1 Fernando Pessoa - Ortónimo Fernando Pessoa é, como vimos, um poeta rural sob cuja tutela se reúnem poetas diversos, assumidamente diferentes de si, criações literárias com vida própria – os heterónimos. Mas o poeta também foi ele-mesmo e com o seu nome assinou uma obra também ela com características próprias. É uma obra vasta, a obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas apesar da sua complexidade, poderemos enunciar algumas das linhas formais e de sentido que caracterizam a sua poesia lírica Antes de mais, a poesia de Fernando Pessoa ortónimo é uma poesia marcada pela procura incessante de uma verdade que o poeta sabe impossível de alcançar; a decifração do enigma do ser. O ser, sabe-o Pessoa, é um mistério indecifrável desde já porque procurar desvendá-lo é confrontar-se com a sua pluralidade, porque ele é muitos, e sendo muitos é ninguém. Por isso, o poeta afirma negativamente o impossível encontro com a sua identidade (“Não sei quem sou”, “Nunca me vi nem achei”), da mesma forma que afirma negativamente a sua pluralidade (“Não sei quantas almas tenho”). A verdade é que o poeta não foge à fragmentação que o confronto com o seu plural acarreta, antes a procura, como único caminho para o encontro consigo mesmo, já que “Ser um é cadeia, /Ser eu não é ser”, mas sabe que esse é um caminho sem retorno e que cada um dos fragmentos ou a totalidade dos fragmentos em que a sua alma de estilhaçou jamais lhe devolverão a unidade perdida. Como afirma num poema “Torno-me eles e não eu.” Ou num outro “Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico, e em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim.”. Resta-lhe, pois, a interrogação filosófica, ontológica do mistério, mesmo que essa interrogação se perca como um eco de si mesmo e o poeta seja espectador de si mesmo, a sua “própria paisagem”. Resta-lhe também angustia de saber as perguntas irrespondíveis. Resta-lhe ainda olhar em espelhos de “aguas paradas” que não lhe devolvem o rosto, e a imagem que neles encontra só lhe acrescenta a solidão interior e a melancolia de saber-se “um mar de sargaços / um mar onde boiam lentos / fragmentos de um mar de além”. Além é uma palavra que podemos associar à poesia de Fernando Pessoa ortónimo. É que, impelindo pela sua permanente inquietação, sente que “tudo é do outro lado”, tudo está para além do muro ou para além da curva da estrada. Por isso, o sonho é preciso, é preciso ir ao encontro do jardim encantado ou da ilha do sul, mesmo que saiba que os “sonhos são dores” e “que não é com ilhas do fim do mundo / que cura a alma seu mal profundo”. Mesmo que o sonho o afaste da vida e dos outros, o impeça de viver a vida como ela é ou parece ser. E é muitas vezes com resignação que aceita o desajuste entre a realidade e o sonho, continuando que interrogar-se se este não será mais real que aquela. Além é ainda passado, infância irremediavelmente perdida, o tempo em que o eu era feliz porque ainda não se tinha procurado e, por isso, são se tinha fragmentado. A nostalgia da infância é, assim, um dos temas mais tocantes da poesia de Pessoa ortónimo que recorda o tempo em que era
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
1
Fernando Pessoa - Ortónimo
Fernando Pessoa é, como vimos, um poeta rural sob cuja tutela se reúnem poetas diversos,
assumidamente diferentes de si, criações literárias com vida própria – os heterónimos. Mas o poeta
também foi ele-mesmo e com o seu nome assinou uma obra também ela com características
próprias. É uma obra vasta, a obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas apesar da sua complexidade,
poderemos enunciar algumas das linhas formais e de sentido que caracterizam a sua poesia lírica
Antes de mais, a poesia de Fernando Pessoa ortónimo é uma poesia marcada pela procura
incessante de uma verdade que o poeta sabe impossível de alcançar; a decifração do enigma do
ser. O ser, sabe-o Pessoa, é um mistério indecifrável desde já porque procurar desvendá-lo é
confrontar-se com a sua pluralidade, porque ele é muitos, e sendo muitos é ninguém. Por isso, o
poeta afirma negativamente o impossível encontro com a sua identidade (“Não sei quem sou”,
“Nunca me vi nem achei”), da mesma forma que afirma negativamente a sua pluralidade (“Não sei
quantas almas tenho”).
A verdade é que o poeta não foge à fragmentação que o confronto com o seu plural acarreta, antes
a procura, como único caminho para o encontro consigo mesmo, já que “Ser um é cadeia, /Ser eu
não é ser”, mas sabe que esse é um caminho sem retorno e que cada um dos fragmentos ou a
totalidade dos fragmentos em que a sua alma de estilhaçou jamais lhe devolverão a unidade
perdida. Como afirma num poema “Torno-me eles e não eu.” Ou num outro “Partiu-se o espelho
mágico em que me revia idêntico, e em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim.”.
Resta-lhe, pois, a interrogação filosófica, ontológica do mistério, mesmo que essa interrogação
se perca como um eco de si mesmo e o poeta seja espectador de si mesmo, a sua “própria
paisagem”. Resta-lhe também angustia de saber as perguntas irrespondíveis. Resta-lhe ainda olhar
em espelhos de “aguas paradas” que não lhe devolvem o rosto, e a imagem que neles encontra só
lhe acrescenta a solidão interior e a melancolia de saber-se “um mar de sargaços / um mar onde
boiam lentos / fragmentos de um mar de além”.
Além é uma palavra que podemos associar à poesia de Fernando Pessoa ortónimo. É que, impelindo
pela sua permanente inquietação, sente que “tudo é do outro lado”, tudo está para além do muro
ou para além da curva da estrada. Por isso, o sonho é preciso, é preciso ir ao encontro do jardim
encantado ou da ilha do sul, mesmo que saiba que os “sonhos são dores” e “que não é com ilhas do
fim do mundo / que cura a alma seu mal profundo”. Mesmo que o sonho o afaste da vida e dos
outros, o impeça de viver a vida como ela é ou parece ser. E é muitas vezes com resignação que
aceita o desajuste entre a realidade e o sonho, continuando que interrogar-se se este não será mais
real que aquela.
Além é ainda passado, infância irremediavelmente perdida, o tempo em que o eu era feliz porque
ainda não se tinha procurado e, por isso, são se tinha fragmentado. A nostalgia da infância é,
assim, um dos temas mais tocantes da poesia de Pessoa ortónimo que recorda o tempo em que era
2
feliz sem saber o que era. “A criança que fui vive ou morreu?”. Interroga-se lancinantemente o
poeta e ainda “E eu era feliz? Não sei :\ Fui-o outrora”.
A criança que foi é como o gato que brinca na rua ou a ceifeira cuja sorte o poeta inveja, já que
sentem alegria e satisfação sem saberem que a sentem, ao contrário do poeta que já não pode
sentir essa alegria sem pensar nela, e consequentemente, deixa-la de senti-la. “O que em mim esta
pensando” afirma tristemente ao ouvir o canto da ceifeira que “Ondula como um canto de ave”. A
dor de pensar, é assim, outro dos temas da poesia de Pessoa ortónimo, o poeta fingidor que
procura escrever distanciado do sentimento, já que a “composição de um poema lírico deve ser feita
não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela” e, por isso, a poesia não pode
ser a expressão direta de uma emoção vivida, mas a expressão direta do rasto dessa emoção. Para
Pessoa, a poesia é, pois, fingimento poético.
É uma poesia intensamente musical que recorre à métrica curta e frequentemente à quadra, no
gosto pela tradição lírica lusitana e popular. Faz uso de um vocabulário simples e sóbrio e utiliza um
tom espontâneo, muitas vezes interrogativo, muitas vezes negativo, por vezes irónico. No entanto, é
também uma poesia que faz uso de uma linguagem fortemente simbólica, onde abundam as
metáforas inesperadas e os paradoxos desconcertantes.
Análise de Poemas
"Sou um Evadido"
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
Reflexão:
3
O sujeito poético neste poema procura caracterizar a sua realidade fragmentada, servindo-se do
campo semântico de prisão.
Através da reflexão filosófica a sua opção de fuga aos limites do ser, procura realçar a naturalidade
de cansaço que caracteriza o ser humano e afirma que ser uno é ser prisão e que, por isso, só vivera
plenamente fingido de si próprio.
"Viajar! Perder países!"
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.
Reflexão:
A noção de viagem presente no primeiro verso está associada à ideia de procura para o sujeito
poético viajar não implica ganhar países, ganhar lugares na rota da sua vida; significa, antes,
procura de si mesmo, encontro consigo mesmo.
No entanto, o poema parte de uma ideia paradoxal de viagem, falando-se aqui de uma viagem
permanente, de partidas constantes, na qual cada rosto de si mesmo encontrado é um lugar
imediatamente perdido. Ou seja, trata-se de uma viagem permanente procura e descoberta do ser
que é sempre outro e não tem amarras a ninguém, nem a si mesmo.
"Não sei quantas almas tenho"
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
4
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Reflexão:
Este poema é claramente ilustrativo da temática do “ser”. Mas outros temas ou ideias nele se
revelam poesia pessoante: o desconhecimento de si mesmo; a perda de identidade, a ideia de
mobilidade; a solidão e a angústia.
No poema, o sujeito poético assiste à sua fragmentação como se a sua consciência fosse um ser
exterior a si mesmo; como se, ao olhar-se visse uma paisagem de si mesmo ou como se,
autoanalisar-se lesse um livro cujas páginas são o seu próprio “ser”. Estas ideias tornam-se
evidentes na utilização de diversas metáforas que sugerem a ideia do “eu” alheio e exterior a si
mesmo.
"Autopsicografia"
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
5
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Reflexão:
Neste poema Fernando Pessoa fala da teoria do fingimento poético, pois um poema não traduz
aquilo que o poeta sente, mas sim aquilo que o poeta imagina a partir da recordação do que
anteriormente sentiu. O poeta é, assim, um fingidor que escreve uma emoção fingida, pensada, por
isso fruto da razão da imaginação e não a emoção sentida pelo coração, que apenas chega ao
poema transfigurada na tal emoção trabalhada praticamente.
O leitor não sente nem a emoção vivida realmente pelo poeta, nem a emoção por ele fingida no
poema, sentido apenas o que na sua inteligência é provocado pelo poema – assim, a poesia,
segundo Fernando Pessoa, é a intelectualização da emoção.
"Isto"
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Reflexão:
Neste poema o sujeito poético utiliza a imaginação, deixando de parte todas as emoções.
6
O poeta neste poema compara todas as suas emoções a um terraço, esta comparação permite
salientar a separação entre as sensações e as emoções.
Basicamente, este poema foi escrito como resposta à falta de compreensão, por parte dos leitores,
do poema “Autopsicografia”. Como tal, no último verso do poema, o sujeito poético dirige-se aos
leitores para salientar a ideia de que a eles caberá um sentir diferente de poeta, isto é, cada leitor
terá a liberdade de sentir o poema como quiser, seja com emoção, ou seja. Com inteligência.
A relação existente entre os dois poemas “Autopsicografia” e “Isto” tem como tema comum o
fingimento poético, funcionando ambos como uma espécie de arte poética, nos quais o sujeito
poético expõe a sua teoria da poesia como intelectualização da emoção.
"Ela canta, Pobre ceifeira"
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Reflexão:
7
Ela canta pobre ceifeira" é um poema não datado de Fernando Pessoa, de autoria ortónima, e escrito
antes de 1915, publicado na revista Athena, em Dezembro de 1924.
Pensar-se-ia que um tema bucólico, como uma cena de ceifeiras trabalhando no campo, não atrairia
a atenção de Fernando Pessoa, que é, iminentemente, um poeta racional e pouco dado à observação
plena da natureza. Mesmo em Alberto Caeiro, a natureza aparece muita das vezes como um
adversário, como algo que se contrapõe agressivamente ao homem, mostrando a este quanto ele
está desenquadrado, quanto ele próprio é "pouco natural".
A verdade é que, apesar do tema ser bucólico, a análise do mesmo não é. Vemos que há o ponto de
partida da figura humana - da ceifeira - e a paisagem natural, mas o que de facto interessa o poeta
é algo na ceifeira enquanto ser humano enquadrado na paisagem natural: o seu sentimento de
alegria. "Ela canta (...) Julgando-se feliz talvez", diz o poeta. E é isso que o perturba, é isso que o
faz pensar. É o canto feliz e despreocupado da ceifeira, naturalmente pobre e cansada, que faz
Pessoa interrogar-se. Ela canta como se tivesse mais razões para cantar do que a vida, diz ele.
"Canta sem razão!". Porque para o poeta a vida é feita, principalmente, de desilusão. Como pode
por isso alguém como a ceifeira, ignorante, pobre, trabalhadora do campo, viúva anónima, ser tão
feliz?
"Gato que brincas na rua"
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Reflexão:
Neste poema o sujeito poético revela tristeza e desolação por não conseguir abolir o viço excessivo
do pensamento. O poeta afirma que gostaria de ser a ceifeira, com a sua “alegre inconsciência” –
gostaria de sentir sem pensar; mas paradoxalmente, gostaria também de ser ele mesmo, ou seja,
ter a consciência de ser inconsciente – o que ele deseja é unir o plano do sentir e o plano de pensar
A relação existente entre os dois poemas existentes no tema “a dor de pensar” apresentam um
tema central idêntico: “a dor de pensar” provocada pela intelectualização do sentido. “Ceifeira” e
8
“Gato” são símbolos de uma alegre inconsciência, enquanto Pessoa afirma para si uma espécie de
trituração mental que o conduz a parte alguma – “o que em mim sente, „stá pensado!”
"Não sei ser triste a valer"
Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?
Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!
Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.
Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E ambos nos vêm calcar.
'Stá bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.
Reflexão:
Este poema foi escrito para caracterizar o homem, que sente e pensa. Nele a razão e a emoção são
mentira porque não se conjugam. Por seu lado, a flor, nem sente nem pensa e, no entanto,
desabrocha sem precisar de razão e de coração. Para a flor, florescer é um ato involuntário, tal
como é um ato involuntário para o homem pensar.
O sujeito poético procura realçar um apelo irónico ao “carpe diem” que procura sugerir que,
enquanto a morte não chega, devemos aproveitar cada momento da vida, seja florindo
inconscientemente como uma flor, seja pensando, como é inevitável no homem.
"Boiam leves, desatentos"
9
Boiam leves desatentos,
Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das águas.
Boiam como folhas mortas
Á tona de águas paradas
São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas.
Sono de ser, sem remédio,
Vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não se para, se flui;
Não se existe ou de dói.
Reflexão:
Este poema foi feito para caracterizar os pensamentos do sujeito poético que eram “leves” e
“desatentos”, semelhantes a “algas” ou “cabelos” que “boiam” lentamente “á tona de águas”; são as
coisas insignificantes como “pós” ou como “nadas”. O sujeito poético, observando o seu mundo
inteiro, redu-lo a uma insignificância insuportável. Sobressaem, na caracterização dos pensamentos,
os seguintes recursos: a metáfora, a comparação, a adjetivação expressiva e o paradoxo.
O sujeito poético visiona neste poema um espelho coberto de elementos físicos sem vida, que fazem
lembrar desperdício e que não permitem o encontro consigo mesmo. Deste desencontro resulta a
angústia, a “mágoa”, o tédio, a dor, a frustração e o sentimento de vazio que dominam o sujeito
poético.
"Tudo o que faço ou medito"
Tudo o que faço ou medito
Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço
Um mar onde boiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
10
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
Reflexão:
O sujeito poético neste poema procura autoanalisar-se com a sua lucidez aguda, a sua alma “lúcida
e rica”, na tentativa de se autoconhecer. No entanto, aquilo que encontra é um espelho sem reflexo,
“um mar de sargaço” que impede o encontro consigo mesmo.
Este poema revela a tentativa da descoberta de si mesmo, que lhe revela a impossibilidade de se
conhecer.
"Não sei se é sonho, se realidade"
Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul de olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego deem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Mas já sonhada de desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
Reflexão:
11
O sujeito poético neste poema, numa primeira fase procurou colocar a hipótese de poder alcançar o
sonho, numa segunda fase contradiz a hipótese colocada, expondo a concretização do sonho.
Finalmente conclui que não é necessário fingir para o sonho, porque aquilo que procuramos está
dentro de nós mesmos. No entanto, ao referir que é “Ali, ali / A vida é jovem e o amor sorri”, deixa
entender que mesmo estando dentro de nós, o sonho e a felicidade estão distantes, pois são difíceis
de alcançar.
Este poema foi escrito para explorar o tema tipicamente pessoano do binómio, sonho/realidade.
"Contemplo o que não vejo"
Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.
Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.
Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.
Reflexão:
Este poema foi escrito com o intuito de caracterizar a palavra “muro” que, neste caso, representa
metaforicamente a ideia de fronteira ou de divisão entre a realidade e o sonho, uma separação que
estabelece os limites do sujeito poético.
O sujeito poético neste poema pretende, provavelmente, exprimir a sua incapacidade de sentir (uma
vez que a imaginação só sobrepôs à sensação), ao mesmo tempo que afirma a sua angústia.
"Porque esqueci quem fui quando criança?"
12
Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?
Reflexão:
Trata-se de um dos temas fundamentais da obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas que também é
partilhado pelo seu heterónimo Álvaro de Campos.
Para Fernando Pessoa, a sua infância é o passado irremediavelmente perdido, o tempo longínquo em
que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não tinha iniciado a procura de si mesmo,
e por isso, ainda não se tinha fragmentado. Em muitos poemas, o poeta exprime a memória dessa
infância provocada por um qualquer estímulo – “velha música”, um simples som (“Quando as
crianças brincavam / E eu as oiço brincar), uma imagem ou uma palavra – para concluir
amargamente que o rosto presente, não há coincidência entre o “eu – outrora” e o “eu – agora”.
Em Fernando Pessoa, a passagem da infância a idade adulta não é um processo de rutura, de corte,
de morte: “A criança que fui vive ou morreu?”; “Porque não há semelhança / Entre quem sou e
fui?”. Todo o poema “Porque esqueci quem fui quando criança?” exprime essa admiração
perturbante de se sentir habitado por outro, diferente da criança que foi “sou outro?”.
Desta forma, o passado e o presente opõem-se na poesia de Fernando Pessoa, não se
complementam. O passado é infância, alegria, felicidade “inconsciente”; o presente é nostalgia,
inquietação, desconhecimento de si mesmo e do futuro: “se quem fui é enigma, / E quem serei
visão, / Quem sou ao menos sinta / Isto no meu coração”.
"O menino da sua mãe"
No plaino abandonado
Que a morta brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
13
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
Reflexão:
Este poema foi escrito para poder ser visto de modo metafórico, a representação do próprio poeta
que sabe ser impossível o regresso ao regresso materno, porque a infância ficou para trás,
inevitavelmente perdida, ideia que pode relacionar-se com a temática pessoana “a nostalgia da
infância” – a época de ouro, da felicidade inconsciente, para sempre perdida, que contrasta com a
situação presente caracterizada por consciência aguda que provoca no poeta a sensação de
desconhecimento de si mesmo, a perda de identidade.
O sujeito poético neste poema fala também da cigarreira dada pela sua mãe e o lenço dado pela
alma que o ajudou a criar, são representações do seu passado de “menino” que viveu junto a quem