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6 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
GLOBAL PLAYER OU ESPECTADOR NAS MARGENS?A RESPONSABILIDADE DE
PROTEGER:
DEFINIO E IMPLICAES PARA O BRASIL
Prof. Dr. Kai Michael Kenkel*
Kai Michael Kenkel Professor Assistente do Instituto de
RelaesInternacionais da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de
Janeiro (IRI/PUC-Rio). Possui graduao com distino pela Johns
Hopkins Universitye mestrado e doutorado pelo Institut
Universitaire de Hautes tudesInternationales da Universidade de
Genebra. De 2004 a 2007 foiPostdoctoral Fellow do Centre of
International Relations da Universidadede British Columbia em
Vancouver, Canad. Esteve como pesquisador visitanteem universidades
do Canad, do Brasil e da frica do Sul. Cidado alemo, especialista
em operaes de paz e publicou tambm sobre relaes cvico-militares,
armas de fogo e processo decisrio de poltica de defesa em
vriospases.
RESUMO
medida que o perfil do Brasil na poltica global se amplia, a
polticaexterna e de segurana do pas encontram novos desafios e
debates que trazemconsigo a necessidade de interrogao sobre novos
conceitos e de mapearrespostas a novos problemas e um arcabouo mais
amplo de responsabilidades.Uma das questes mais prementes a da
interveno humanitria. Se o Brasildeseja avanar com seriedade e
eficcia um papel como global player assimcomo de lder continental,
dever desenvolver uma resposta adequada nooemergente de uma
responsabilidade de proteger e identificar concordnciase
discordncias entre este conceito e as suas prioridades
internacionais. Esseartigo procura proporcionar as bases analticas
para uma discusso frutferasobre o conceito no mbito da comunidade
brasileira de especialistas, com ameta de desenvolver um debate
acadmico de alta relevncia poltica.
Palavras-chave: responsabilidade de proteger interveno
humanitria soberania - direitos humanos
Bem-aventurados os pacificadores, porque sero chamados filhos de
Deus. Mateus 5:9
O autor agradece a colaborao de Manoela Assayag de Magalhes
Souza e Natalia Rayol Fontoura na confeco daverso desse texto em
lngua portuguesa, assim como os comentrios da Professora Mnica
Herz. Na ausncia deindicao contraria as fontes em lngua estrangeira
foram traduzidas livremente no mbito desse texto. Quaisquererros
que permanecem so de inteira responsabilidade do autor.
* E-mail: [email protected]:Instituto de Relaes
Internacionais - Pontifcia Universidade Catlica do Rio de JaneiroR.
Marqus de So Vicente, 225 - Vila dos Diretrios, Casa 20, Gvea - Rio
de Janeiro, RJ, Brasil - 22451-900 - Telefone: +55 21
3527-1557
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7REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
ABSTRACT
As Brazil gains ever more stature in global politics, the
countrys foreignand security policy has encountered new challenges
and debates which havebrought with them the need to engage with new
concepts and to map responsesto emerging concerns as well as a
broader set of responsibilities. One of themost pressing of these
has to do with humanitarian intervention. If Brazil is topursue
seriously a role as a global player as well as a continental
leader, it willneed to develop an adequate response to the emerging
notion of theresponsibility to protect and identify similarities
and differences at theintersection of that concept and its
international profile. This article seeks toprovide the analytical
tools for a fruitful discussion of the concept in the
Braziliancommunity of experts, with an eye to developing an
academic discussion witha strong element of policy relevance.
Keywords: responsibility to protect humanitarian intervention
sovereignty human rights
medida que se amplia a envergadura do Brasil no mundo,
tm-seargumentado que a crescente influncia do pas deve se fazer
refletir em seuperfil junto a organizaes internacionais como as
Naes Unidas. As atenesse concentram, principalmente, em torno da
possibilidade de o Brasil vir aocupar um assento permanente dotado
de poder de veto em um Conselho deSegurana reformado. Deixando de
lado outros temas, uma das principaisquestes que o Brasil precisar
enderear caso decida assumir o status de globalplayer sua posio a
respeito das intervenes humanitrias e, especificamente,da emergncia
de uma suposta responsabilidade de proteger populaes emrisco por
parte da comunidade internacional e do aval deste conceito
pelasNaes Unidas.
Conforme ressaltou um importante lder militar ocidental,
asintervenes humanitrias so controversas tanto quando acontecem,
como noKosovo, quanto quando no acontecem, como em Ruanda1. Por trs
destacontrovrsia est a tenso entre dois princpios centrais do
sistema polticointernacional: a no-interveno e os direitos humanos.
Os recentes fracassosdo Conselho de Segurana em proteger os
direitos humanos desencadearamem alguns meios reaes por uma mudana
em favor dos direitos humanos noequilbrio entre os dois princpios
subsiste, porm, uma igualmente vivazdefesa do manto de proteo
oferecido pela inviolabilidade das fronteiras. Ao
1 NAUMANN, Klaus. The Responsibility to ProtectHumanitarian
Intervention and the Use of Military Force.Canadian Military
Journal. v.5 n. 4 2004-2005. Disponvel em
http://www.journal.forces.gc.ca/vo5/no4/humanitarian-eng.asp.
Acesso em: 31 outubro 2008; pp. 21-30. Aqui, pp. 22-23.
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8 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
aceitar o prmio Nobel da Paz por seu trabalho como
secretrio-geral daOrganizao das Naes Unidas, Kofi Annan definiu
sucintamente o dilemabsico:
... if humanitarian intervention is, indeed, anunacceptable
assault on sovereignty, how should werespond to a Rwanda, to a
Srebrenica to gross andsystematic violations of human rights that
offendevery precept of our common humanity?2
O objetivo deste artigo oferecer uma anlise preliminar de como
estaquesto pode ser respondida no caso brasileiro. O texto em
seguida ofereceum direcionamento sobre as questes e os dilemas
bsicos que compem odebate em torno da interveno humanitria e do
conceito de responsabilidadede proteger, desenvolvido em 2001. Mais
do que proferir definies arbitrriasou do que se aventurar em
prescries polticas, a idia prover os instrumentospara um debate
produtivo com alguma relevncia poltica
Porque a discusso sobre interveno humanitria e responsabilidade
deproteger se relaciona a tantas questes mais amplas de poltica e
de identidadenacionais, algumas das quais com potencial para se
imbuir de forte cargaemocional, elemento-chave deste projeto uma
clara definio das fronteirasda verso oficial do novo conceito. Com
isso feito, o conceito poder serexaminado em sua relevncia e em sua
adequao s necessidades das polticasexterna e de defesa do Brasil .
Em conformidade com esta viso, essas etapasconstituem as trs sees
principais deste artigo.
Com o objetivo de esboar o conceito em questo, a primeira
seoapresenta as origens do conceito de responsabilidade de proteger
(doravantereferido tambm pela abreviao em lngua inglesa, R2P),
procurando delimitaraquilo que ele e, em um esforo de se reduzir a
emoo e de ampliar apreciso do discutido, aquilo que ele no . Nesse
ponto, a dinmica histricada tenso entre no-interveno e direitos
humanos introduzida, com especialateno para os aspectos afetando o
mundo em desenvolvimento e para asrecentes intervenes das grandes
potncias (como a invaso norte-americanado Iraque). Em seguida, a
noo definida minuciosamente conformedesenvolvida por uma comisso
internacional de especialistas, e tem o extensivoaval conferido
pelas Naes Unidas examinado com detalhes. A seosubseqente,
responsvel por abordar a interseo entre a poltica externabrasileira
e a interveno humanitria, perpassa brevemente a
Constituiobrasileira e a postura oficial do pas a respeito de
intervenes e daresponsibilidade de proteger, com nfase particular
para a participao em
2 ANNAN, Kofi. We the Peoples: The Role of the UN in the 21st
Century. New York: United Nations Department ofPublic Information,
2000; p. 48.
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9REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
operaes de paz sob o captulo VII da Carta da ONU e para a
liderana brasileirana MINUSTAH. A concluso, por sua vez, busca
vincular esta discusso maisdetalhada com assuntos mais abrangentes
e com as implicaes de (uma possvel)mudana na poltica externa
brasileira.
Em nenhum momento este texto reivindica autoridade
ouexaustividade; diversamente, guarda a sincera esperana de
inaugurar umadiscusso analtica dos elementos abrangidos.
Particularmente naquilo que dizrespeito seo em que se justapem o
R2P e a poltica (externa) brasileira, asquestes so apresentadas
meramente sob o esforo de delimitao de umesquema bsico de subtemas
e de provimento dos instrumentos para umadiscusso incipiente entre
os especialistas nesses assuntos. A idia tampoucoperpassa a imposio
de uma leitura sobre outra; pelo contrrio, a inteno ilustrar a
dinmica do debate de modo a orientar seu progresso do modo
maisinclusivo possvel. Com isso em mente, o autor tem a esperana de
que estabreve apresentao seja suficiente como ponto de partida para
uma frutferadiscusso sobre este importante conceito.
Definindo a Responsabilidade de Proteger: as origens
doconceito
A noo de responsabilidade de proteger (ou R2P, como esta se
tornouamplamente conhecida) busca equilibrar dois importantes
conceitos no-interveno e respeito pelos direitos humanos na esteira
dos excessosrealizados em nome de ambos que desencadearam centenas
de milhares demortes nos anos 1990. Acompanhando, por um lado, a
apatia e a impotncia dacomunidade internacional diante do genocdio
em Ruanda e, por outro, ainterveno da OTAN no Kosovo em 1999 (a
despeito da carncia de umconsenso sobre sua natureza humanitria), o
governo canadense reuniu umpainel de especialistas internacionais
com a tarefa de dar forma ao novo vnculoentre soberania, interveno
e direitos humanos. O convite a Gareth Evans,presidente da
influente ONG International Crisis Group, e ao amplamenteexperiente
diplomata argelino Mohamed Sahnoun para liderar o grupo, foifeito
em agosto de 2000; a nomeao de mais 10 notveis para serem membrosda
comisso ocorreu no ms seguinte.
A seleo dos membros da comisso realizou-se visando incluso
depersonalidades eminentes do Norte e do Sul globais, assim como
derepresentantes das esferas militar, diplomtica, poltica e
acadmica e deorganizaes internacionais. Alm de Evans e Sahnoun, os
membros da ComissoInternacional sobre Interveno e Soberania dos
Estados International Commissionon Intervention and State
Sovereignty ou ICISS (CIISE), como o rgo ficouconhecido, incluram a
jurista canadense Gisle Ct-Harper; o ex-deputadonorte-americano Lee
Hamilton o acadmico canadense Michael Ignatieff,
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10 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
membro da Comisso Internacional Independente no Kosovo; o
diplomata eparlamentar russo Vladimir Lukin; o general alemo Klaus
Naumann, ex-presidente do Comit Militar da OTAN e membro do Panel
on United NationsPeace Operations; Cyril Ramaphosa,
ex-secretrio-geral do Congresso NacionalAfricano e (presidente) da
Assemblia Constituinte da frica do Sul no ps-apartheid; o
ex-presidente filipino Fidel Ramos; o ex-presidente do
ComitInternacional da Cruz Vermelha, Cornelio Sommaruga; o
ex-ministro dasRelaes Exteriores da Guatemala, Eduardo Stein; e
Ramesh Thakur, acadmicoindiano envolvido no desenvolvimento das
verses preliminares do ComprehensiveTest Ban Treaty e da
International Campaign to Ban Landmines.
A ICISS divulgou seu relatrio, The Responsibility to Protect3,
em dezembrode 2001. O patrocnio canadense empreitada parece
bastante lgico. Umapotncia mdia com forte tradio em iniciativa para
o estabelecimento denormas e em contribuio com operaes das Naes
Unidas papis combinadosnas posies-chave exercidas pelo ministro
canadense das Relaes Exterioresna criao da prtica com o
secretrio-geral Hammarskjld em 19564, o Canadhavia adotado desde
1996, e pretendia operacionalizar, o conceito de seguranahumana,
uma fuso da lgica tradicional de segurana com aquela
dedesenvolvimento5. A emergncia do conceito de responsabilidade de
proteger,traado pelo relatrio de 2001 da ICISS, constitui,
portanto, um passo adiantena progresso de normas e de conceitos
relacionados com a adaptao do conceitode segurana s exigncias em
mutao do mundo ps-Guerra Fria6. Estaevoluo pode ser e ser, em seo
subseqente vinculada aodesenvolvimento de instrumentos de direito
humanitrio e de direitos humanosaps o Holocausto e a Segunda Guerra
Mundial.
Outra marca da abordagem canadense existente no conceito
deresponsabilidade de proteger a tentativa clara de relacionar
estas noes apolticas e escolhas concretas que possam ser
implementadas pelos Estados. Orelatrio da ICISS nasceu desses
esforos de adaptao dos conceitos e dosinstrumentos disposio da
comunidade internacional, equilibrando o antigo
3 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE
SOVEREIGNTY. The Responsibility toProtect: Report of the
International Commission on Intervention and State Sovereignty.
Ottawa: International DevelopmentResearch Centre, 2001.
4 Vide BELLAMY, Alex J., WILLIAMS, Paul e GRIFFIN, STUART.
Understanding Peacekeeping. Malden: Polity Press,2004; pp.
103-108.
5 KENKEL, Kai Michael. Whispering to the Prince: Academic
experts and national security policy formulation in Brazil,
SouthAfrica and Canada. Tese de Doutorado, Institut Universitaire
de Hautes tudes Internationales, Universidade deGenebra, 2005; pp.
199-266. Disponvel em
http://www.unige.ch/cyberdocuments/theses2004/KenkelKM/meta.html;
acesso em 31 outubro 2008.
6 Sobre esta evoluo, Vide mais em KENKEL, Kai Michael. Norms,
morality and intervention: Germany, Canadaand UN peacekeeping.
Artigo preparado para apresentao na 49 Conveno Anual da
International StudiesAssociation, 26 29 maro 2008, San Francisco,
USA. Disponvel em:ht tp ://www.a l l academic.com/one/i sa/ i s
a08/index.php?cmd=Download+Document&key
=unpublished_manuscript&file_
index=2&pop_up=true&no_click_key=true&attachment_style=attachment&PHPSESSID=a6e38217ec79648cfd76cea0060dc53d;
acesso em 31 de outubro de 2008.
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11REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
e o novo e forjando novas ferramentas e novos arcabouos de ao
para amanuteno da paz e da segurana.Objetivos da ICISS
O trabalho da Comisso baseou-se na necessidade de equilbrio
doprincpio da no-interveno, cuja interpretao estrita levou quilo
que eladefiniu como horror da inao nos casos da Bsnia, de Ruanda e
da Somlia,com a forte ao de motivao humanitria da OTAN no Kosovo,
ainda queesta haja sido realizada sem consentimento ou consenso.
Segundo Evans, otrabalho da ICISS foi expresso em termos de um dos
dilemas fundamentais queemergem do conflito entre os princpios
inerentes soberania:
What should be the response of the internationalcommunity when
faced with situations of catastrophichuman rights violations within
states, where the statein question claims immunity from
intervention basedon longstanding principles of national
sovereignty?7
Em outras palavras, de modo geral, a meta da Comisso era
identificaros meios conceituais e concretos disposio dos guardies
da seguranainternacional em situaes em que haveria um imperativo
moral e legal deassistncia s populaes em grave perigo de seus
governos escudados no recursoao princpio da no-interveno e da
inviolabilidade de fronteiras. Ela estava svoltas com a oferta de
uma soluo para os momentos em que o princpiosoberano da
no-interveno nunca questionado como pilar da ordem nosistema
internacional torna-se, na sntese de Thakur, um obstculo realizaoda
liberdade8.
Os objetivos mais concretos da Comisso foram pelo menos
dois:primeiramente, a mudana dos termos do debate de uma
perspectiva daspotncias interventoras e de seus supostos direitos
de interveno para aqueladas vtimas potenciais e do direito destas
proteo, com a concomitanteresponsibilidade dos Estados-parte pelos
instrumentos de direitos humanos ede direito humanitrio para
prov-la (a proteo)9. A segunda meta principalda ICISS foi a
sistematizao da resposta das Naes Unidas e de outrasinstituies da
comunidade internacional, por meio da proviso de diretrizes
7 EVANS, Gareth. From Humanitarian Intervention to the
Responsibility to Protect. Wisconsin International LawJournal. v.
24, n. 3, 2006; pp. 703-722.
8 THAKUR, Ramesh. The United Nations, Peace and Security: From
Collective Security to the Responsibility to Protect.Cambridge:
Cambridge University Press, 2006; p. 255.
9 ICISS, pargrafo 2.29; WEISS, Thomas G. R2P after 9/11 and the
World Summit. Wisconsin International LawJournal. v. 24, n. 3,
2006; pp. 741-760. Aqui, p. 744; WEISS, Thomas G. The Sunset of
Humanitarian Intervention?The Responsibility to Protect in a
Unipolar Era. Security Dialogue. v. 35, n. 2, 2004; pp. 135153.
Aqui, p. 139.Weiss foi diretor de pesquisa da ICISS.
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12 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
de ao universalmente aceitveis, especificamente critrios
no-subjetivos ejustificativas para interveno. Isso serviria para
afastar o aspecto moralista e aemotividade do teor das discusses10,
e para remover um determinado elementode arbtrio das grandes
potncias nas decises intervencionistas11. Os critriosfixos
evitariam exageros de ao e de inao. Percebendo isso, para se
prevenirda necessidade de uma deciso polmica em favor de qualquer
das interpretaesda norma, a Comisso definiu como sua referncia as
crescentes eficincia econsistncia do Conselho de Segurana das Naes
Unidas em lidar com criseshumanitrias, tomada como inadequadas em
situaes anteriores
Even when situations cried out for some kind ofresponse and the
international community did reactthrough the UN, it was too often
erratic, incomplete,or counterproductive. So we had the debacle of
theintervention in Somalia in 1993, the patheticallyinadequate
response to the genocide in Rwanda in1994, the lamentable failure
to prevent murderousethnic cleansing in the Balkans, in particular
inSrebrenica, in 1995, and also the Kosovo situation in1999 when
the international community did in factintervene, as it probably
should have, but did sowithout the authority of the Security
Council.12
A Comisso comeou, ento, examinando em detalhe os
fundamentoslegais da soberania e da norma de no-interveno, assim
como o concorrenteregime de direitos humanos, e designou para si
prpria objetivos claros a respeitodo estabelecimento de fronteiras
entre os dois princpios:
to establish clearer rules, procedures and criteria
fordetermining whether, when and how to intervene;to establish the
legitimacy of military interventionwhen necessary and after all
other approaches havefailed;to ensure that military intervention,
when it occurs,is carried out only for the purposes proposed,
iseffective, and is undertaken with proper concern tominimize the
human costs and institutional damagethat will result; and
10 THAKUR, p. 254.11 GUICHERD, p. 20, aponta que critrios fixos
so igualmente propensos a excluir intervenes planejadas, j que
podem servir como base para um grande nmero destas. A seo sobre
falsos amigos examinar esta declarao maisdetalhadamente.
12 EVANS, p. 706.13 ICISS, pargrafo 2.3.
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13REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
to help eliminate, where possible, the causes ofconflict while
enhancing the prospects for durableand sustainable peace13.
da maior importncia recordar, porm, que o R2P nunca se afasta
daproeminncia da soberania. A essncia do argumento proposto pela
Comissono a rejeio, mas a adaptao deste conceito; este se
deslocando da idia desoberania como controle soberano como impune e
isento de prestao decontas para uma viso da soberania como
responsabilidade de um Estado degarantir o bem-estar de seus
cidados, apoiado residualmente e apenas emcasos extremos pela
responsabilidade da comunidade internacional em assisti-lo nesta
ao. Em resumo, a idia no era substituir um conceito pelo outro,mas
desenvolver uma norma poltica unificadora que refletiria o que
haviamudado e, de forma tambm importante, aquilo que no havia
mudado nadefinio de soberania com a emergncia do regime de direitos
humanos14.Essas transformaes sero discutidas em seguida sob o
objetivo deesclarecimento dos conceitos bsicos necessrios para a
delimitao dos contornosdo R2P anteriormente avaliao de sua validade
para o contexto brasileiro.
O que o R2P no : soberania, no-interveno e direitoshumanos
O Relatrio da ICISS foi o ponto culminante de um processo em
cursode definio, de codificao e de institucionalizao das normas de
interveno,cuja crescente ateno ao impedimento e preveno do genocdio
ilustradapelo progresso das resolues do CSNU desde o Iraque at a
Somlia, desde aBsnia at o Kosovo, descritos no seminal trabalho
Saving Strangers, de NicholasWheeler15.
Soberania e direitos humanos: uma relao em mutao
A tenso fundamental entre os componentes interno e externo
dasoberania o contrato vertical entre o soberano e o cidado (fonte
das14 NAUMANN, p. 23.15 WHEELER, Nicholas J. Saving Strangers:
Humanitarian Intervention in International Society. Oxford: Oxford
University
Press, 2000. Vide tambm KALDOR, Mary. New & Old Wars:
Organized violence in a global era. 2a edio. Stanford:Stanford
University Press, 2007 e FINNEMORE, Martha. The Purpose of
Intervention: Changing Beliefs about the Useof Force. Ithaca:
Cornell University, 2003.
16 Nesse mrito, vide HOFFMANN, Stanley. Sovereignty and the
Ethics of Intervention. In HOFFMANN, Stanley. TheEthics and
Politics of Humanitarian Intervention. Notre Dame: Notre Dame
University Press, 1996, pp. 38-60.
17 RAMSBOTHAM, Oliver e WOODHOUSE, Tom. Humanitarian
Intervention in Contemporary Conflict. CambridgeMA: Polity Press,
1996; p. 34. O general Sir Hugh Beach traa as origens do debate
sobre aquilo que se tornouconhecido como interveno humanitria ainda
mais longe, nas operaes romanas na Dalmcia e na Judia elasprprias,
ironicamente, regies que atraem ateno substancial dos peacekeepers
hoje em dia. Vide BEACH, Hugh.Just War and the Responsibility to
Protect: Developments in UN Peacekeeping and Humanitarian
Intervention.Disarmament Diplomacy. n. 80, 2005. Disponvel em
http://www.acronym.org.uk/dd/dd80/80hb.htm. Acessoem 31 outubro
2008.
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14 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
concepes de direitos humanos) e a igualdade horizontal e a
autonomia dasquais resultam a no-interveno e a inviolabilidade16
intrnseca ao sistemavestfaliano desde seu incio17. J nos acordos
que deram concluso Guerra dosTrinta Anos, est claro que a soberania
no implica a completa liberdade dossoberanos para realizar aquilo
que lhes agrade no interior de suas fronteiras,sem temor de
interveno por potncias estrangeiras em nome da proteodos seres
humanos18. Francis Kofi Abiew identifica duas motivaes para
ainterveno de potncias estrangeiras, baseando-se no tratamento de
umsoberano frente a seus prprios cidados (deste modo diferenciando
esta formade interveno de outras formas de ao militar, como guerras
de agresso).
A primeira destas motivaes constituda por casos em que as aes
deum soberano em relao a um grupo no interior de seu Estado afeta
diretamentea segurana do Estado interventor; a segunda, por sua
vez, acontece quando ainterveno ocorre em nome de valores humanos
universais que levam o Estadoa exigir a mudana do tratamento do
mesmo grupo, na ausncia de ameaaexistencial direta ao
interventor19.
Emerge da uma limitao inata do princpio da inviolabilidade
soberana:os mesmos tratados que puseram fim Guerra dos Trinta Anos
e resguardam onovo princpio de ordem poltica tambm estabelecem a
noo de cuius regio,eius religio, limitando o poder dos lderes
soberanos de impor prefernciasreligiosas sobre seus sditos.20 Em
sua seminal obra The Purpose of Intervention:Changing Beliefs About
the Use of Force, Martha Finnemore analisa a expansodeste elemento
de liberdade religiosa para populaes-alvo ainda maiores como passar
do tempo 21. Esta crescente universalizao se torna um
aspecto-chavedos debates em torno dos fundamentos de interveno nos
anos aps a SegundaGuerra Mundial e destaca o papel essencial das
organizaes internacionais nodesenvolvimento e na propagao de normas
de interveno. Ao lado dauniversalizao das populaes alvos de
incurses humanitrias, veio a codificaodas bases para interveno; o
lcus desta sistematizao est nas normas dedireitos humanos e ao
humanitria estabelecidos por organizaes como asNaes Unidas e o
Comit Internacional da Cruz Vermelha (CICV).
A institucionalizao de normas para interveno elaboradas
emorganizaes internacionais foi iniciada a srio com o provimento de
proteos minorias nacionais sob o Pacto da Liga das Naes. Esta
tentativa falhoulamentavelmente em resistir manipulao da Alemanha
nazista e, em ltimainstncia, diante da ausncia de compromisso das
grandes potncias da poca,foi impotente na conteno do Holocausto. A
barbrie sem paralelos do Shoah
18 ABIEW, Francis Kofi. The Evolution of the Doctrine and
Practice of Humanitarian Intervention. Boston: Kluwer
LawInternational, 1999; p. 20.
19 ibid., p. 22.20 ibid., pp. 44-45.21 FINNEMORE, pp. 66-73.
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15REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
acabou por prover importante mpeto ao desenvolvimento paralelo
de normasprticas de interveno e de suportes legais e normativos
para um regimecodificado de interveno humanitria. De fato, de
acordo com outropesquisador, foram mesmo os julgamentos de
Nuremberg uma das primeirasocasies em que os indivduos emergiram
como sujeitos de direitointernacional22.
Uma das definies preliminares de interveno humanitria data
de1836, quando o professor Wheeler a identificou como justificando
ainterferncia quando os interesses gerais da humanidade fossem
violados pelosexcessos de governos brbaros e despticos23. O
doutrinador de Direito L.F.E.Goldie criou, por sua vez, outra
definio precursora, enfatizando a ausncia deauto-interesse
estratgico no critrio humanitrio: a interveno humanitriadeve ser
vista como ato gratuito para prevenir a continuidade de
atividadesgenocidas contra minorias que sejam independentes, e no
os Estadosinterventores 24.
A tradio da guerra justa fornece tambm uma definio til
deinterveno humanitria:
[i]nterventions are held to be similar to, if notinstances of,
the kind of aggressive war widely heldto be impermissible, indeed
criminal, insofar as itordinarily involves border-crossing and is
notundertaken for the sake of legitimate self-defense.But an
intervention can be understood to be distinctfrom aggression when
this is defined as a crime, andto be possibly justifiable because
its purposes do notinclude an ongoing occupation of the
targetsterritory, or the removal of whatever politicalindependence
that nation might have. Th[is] sort of intervention is humanitarian
in a narrowsense: namely, intervention undertaken for the sakeof
protecting or securing noncitizens fundamentalhuman rights when
these rights either (1) areviolated by their governments own
actions or by itsrefusal to prevent other agents from doing so, or
(2)
22 POPOVSKI, Vesselin. Sovereignty as Duty to Protect Human
Rights. UN Chronicle Online Edition. 2004, n. 4.Disponvel em
http://www.un.org/Pubs/chronicle/2004/issue4/0404p16.html. Acesso
em 31 outubro 2008.
23 Citado em LILLICH, Richard B. Humanitarian Intervention and
the United Nations. Charlottesville: University ofVirginia Press,
1973; p. 25. Citado em seguida em ADELMAN, Howard. Humanitarian
Intervention: The Case ofthe Kurds. International Journal of
Refugee Law. v. 4, n. 1, 1992; pp. 4-38. Aqui, nota de rodap 32, p.
18.
24 Citado em LILLICH, p. 46; citado em ADELMAN, nota de rodap 33
p. 18.25 BOYLE, Joseph. Traditional Just War Theory and
Humanitarian Intervention. In NARDIN, Terry and WILLIAMS,
Melissa S. Williams, orgs. Humanitarian Intervention. New York:
New York University Press, 2006; pp. 31-58. Aqui,p. 32. Sobre
estados falidos vide tambm WEISS, Thomas G. Humanitarian
Intervention: Ideas in Action. Malden:Polity Press, 2007; p.
28.
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16 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
are in jeopardy because of an anarchic situation inwhich no
government exists capable of securing thoserights, typically the
condition of a failed state.25
J o jurista argentino Fernando Tesn relaciona mais o conceito
idiade limitaes ao comportamento soberano aceitvel (assim como
deconstrangimentos natureza da prpria interveno):
proportionate transboundary help, including forciblehelp,
provided by governments to individuals inanother state who are
being denied basic humanrights and who themselves would be
rationally willingto revolt against their oppressive
government.26
O ritmo tanto das mudanas prticas quando das normativas
sobreinterveno humanitria se acelerou consideravelmente aps as
experinciasdo Holocausto e da Segunda Guerra Mundial. A importncia
destes catalisadoreseventos no deve ser relevada: nas palavras de
um dos mais influentes inovadoresda doutrina jurdica, os esforos de
estabelecimento de critrios para intervenoefetivos na proteo dos
mais fracos foram feitos sob a gide dos fantasmas deBirkenau,
Treblinka, Chelmno e Sobibor27. Os regimes estabelecidos no
perodops-guerra para assegurar que esta experincia jamais seria
repetidarepresentaram o pice da aplicabilidade do conceito de
direitos humanos, e acodificao deste conceito em um regime legal
internacional de direitoshumanos foi o mais relevante
desenvolvimento do perodo da Guerra Fria.
Os documentos-chave reconhecendo as sustentaes do regime legal
dedireitos humanos foram ambos adotados em 1948: a recomendatria
DeclaraoUniversal de Direitos Humanos, e a vinculante Conveno para
Preveno ePunio do Crime de Genocdio28. Um dos mais importantes
efeitos em longoprazo desses documentos, em termos normativos, seu
foco na situao legaldo indivduo no direito internacional, tendo
este foco exercido influnciafundamental sobre o limite e a base
para interveno, assim como servidocomo alicerce para relevantes
conceitos polticos subseqentes, como o R2P.O carter legalmente
cogente dessas convenes e tratados os estabelece como
26 TESN, Fernando. Humanitarian Intervention: An Inquiry into
Law and Morality. Ardsmore-on-Hudson: TransnationalPublishers,
1998; p. 5. Citado em ABIEW, nota de rodap 37, p. 31. Mario BETTATI
relaciona a possibilidade deao transfronteiria ao carter
transnacional da pessoa humana. Le droit dingrence : mutation de
lordre international.Paris: O. Jacob, 1996; p. 39.
27 BETTATI, p. 11.28 O ano de 1966 observou a adoo de trs outras
contribuies-chave para a regulamentao dos direitos humanos:
a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao
Racial, e os dois Pactos Internacionais dosDireitos Civis e
Polticos, e dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Desde
ponto em diante, os tratados dedireitos humanos tenderam a focar
categorias especficas de violao; vemos, ento, a adoo da Conveno
sobrea Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra a Mulher,
de 1979; a Conveno contra a Tortura e outrasPenas ou Tratamentos
Cruis, de 1984; e a Conveno das Naes Unidas sobre os Direitos da
Criana, de 1989.
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17REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
diretrizes universais para a conduta estatal. Apesar disso, as
lacunas destesdocumentos tm sido crescentemente percebidas, desde
sua ratificao, comobases para a interveno. na Carta das Naes
Unidas, adotada em 1945,porm, que estes fundamentos so delimitados
no contexto de disposies legaismais abrangentes sobre o uso da fora
nas relaes internacionais.
As Naes Unidas so, em seu mago, uma organizao composta
porEstados soberanos. A Carta a constitui deste modo e valoriza
significativamenteo princpio da independncia soberana sentimento
que atingiu seu pice coma adoo (embora no-vinculante) da Declarao
de Inadmissibilidade deInterveno em Assuntos Internos dos Estados e
de Proteo sua Independnciae Soberania pela Assemblia Geral, em
196529.
As principais provises da Carta das Naes Unidas
regulamentandosoberania, interveno e uso da fora so os pargrafos 4
e 7 de seu artigo 2.O pargrafo 2(4) estabelece a proibio da
interveno em termos bastanteclaros:
All Members shall refrain in their internationalrelations from
the threat or use of force against theterritorial integrity or
political independence of anystate, or in any other manner
inconsistent with thePurposes of the United Nations.
O artigo 2(7) estende a proibio a intervenes no envolvendo o
usoda fora, mas consagra pioneiramente uma das excees-chave ao
princpio dano-interveno:
Nothing contained in the present Charter shallauthorize the
United Nations to intervene in matterswhich are essentially within
the domestic jurisdictionof any state or shall require the Members
to submitsuch matters to settlement under the presentCharter; but
this principle shall not prejudice theapplication of enforcement
measures under ChapterVII.
Apesar de a proibio interveno, com ou sem uso de fora,
serjuridicamente bastante forte, a Carta fornece tambm uma srie de
exceesexplcitas e implcitas sua aplicabilidade, das quais foram
derivados o direito
29 Vide ABIEW, pp. 68-69. Sobre a grande fissura entre as
soberanias de jure e de facto em Estados do Terceiro Mundo,vide
JACKSON, Robert e ROSBERG, Carl. Why Africas Weak States Persist:
The Empirical and Juridical inStatehood. World Politics. v. 35, n.
1, 1982; pp. 1-24.
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18 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
e, posteriormente, a responsabilidade de intervir. A primeira
destas exceesj est presente no texto do artigo 2(7), autorizando a
prpria organizao aintervir nos casos em que o Conselho de Segurana
tenha concordado em agirsegundo as provises do captulo VII
regulamentando ao relativa a ameaas paz, ruptura da paz e atos de
agresso. Quando o Conselho de Segurana,exercendo seus poderes de
acordo com a Carta, declara a situao uma ameaa paz internacional e
segurana, este est de fato estabelecendo uma exceolegalmente
aceitvel s provises do artigo 2 (7). Esta circunstncia ressalta
alacuna entre legalidade e legitimidade presente na prtica da ONU
naquiloque diz respeito interveno, como discutiremos mais
adiante.
Uma parcela significativa da academia oferece outra exceo, mais
tcita, regra de no-interveno estabelecida no artigo 2(7) do
componente dedireitos humanos da Carta. Abiew relaciona este desejo
novamente ao legadodo Holocausto:
[o]ne of the goals of the allied powers during WorldWar II was
the realization that only internationalprotection and promotion of
human rights can achieveinternational peace and progress. This was
a reactionto the atrocities of the Holocaust which providedthe
impetus for the struggle for human rights.30
A Carta est de fato repleta de referncia aos direitos humanos e
aoscompromissos dos Estados-membros de buscar a proteo destes31.
Seuprembulo afirma, em sua segunda alnea, subordinada somente meta
de darfim ao conflito armado, a determinao dos signatrios de
reafirmar a f nosdireitos fundamentais do homem, na dignidade e no
valor do ser humano, naigualdade de direito dos homens e das
mulheres, assim como das naes grandese pequenas. O artigo 1(3), por
sua vez, afirma o compromisso de ao dosmembros para promover e
estimular o respeito aos direitos humanos e sliberdades
fundamentais para todos, sem distino de raa, sexo, lngua oureligio.
O captulo IX, por fim, determina o nvel mais alto de compromissocom
a busca da universalizao dos direitos humanos:
Artigo 55 Com o fim de criar condies de estabilidade e
bem-estar, necessrias s relaes pacficas e amistosasentre as Naes,
baseadas no respeito ao princpio daigualdade de direitos e da
autodeterminao dospovos, as Naes Unidas favorecero:
30 ABIEW, p. 75.31 RAMSBOTHAM e WOODHOUSE tambm fazem esta relao
em pp. 61-63.
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19REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
c. o respeito universal e efetivo dos direitos do homem e das
liberdadesfundamentais para todos, sem distino de raa, sexo, lngua
ou religio.
Artigo 56 Para a realizao dos propsitos enumerados noArtigo 55,
todos os Membros da Organizao secomprometem a agir em cooperao com
esta, emconjunto ou separadamente. 32.
A conexo entre a manuteno da paz e a manuteno do respeito
aosdireitos humanos foi destacada ainda em 1950 por Sir Hersch
Lauterpacht, umdos principais doutrinadores de Direito do perodo
ps-guerra:
[t]he correlation between peace and observance offundamental
human rights is now a recognized fact.the circumstance that the
legal duty to respectfundamental human rights has become part and
parcelof the new international system upon which peacedepends, adds
emphasis to that intimate connection.33
Concomitantemente aos desenvolvimentos na
regulamentaointernacional de direitos humanos j descritos
brevemente acima, doisfenmenos caracterizam a evoluo das normas
para interveno humanitrianas Naes Unidas durante a Guerra Fria.
Foram estes os esforos da organizaoem lidar com a onda de
descolonizaes e com os regimes que empregavam oapartheid; e com a
emergncia de organizaes no-governamentais humanitrias.O artigo 2
(7) no impediu a Assemblia Geral ou o Conselho de Seguranade adotar
resolues exigindo o fim do colonialismo ou dos governos de
minorias,o que ilustra claramente que, j na dcada de 1960, o
Conselho de Seguranaestava preparado para perceber as situaes
internas e as formas de governocomo ameaas paz internacional e
segurana sujeitas, portanto, aplicaodas medidas do captulo VII que
autorizavam a suspenso da proibio do artigo2(4).
Nesse mrito, Finnemore descreve o poder normativo das
resoluessobre descolonizao:
32 Sobre as provises de direitos humanos da Carta como excees ao
seu carter em geral no-intervencionista, videROBERTS, pp. 71.
33 LAUTERPACHT, Hersch. International Law and Human Rights.
London: Stevens, 1950; p. 186. Citado em ABIEW,nota de rodap 35, p.
75.
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20 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
...formal international organizations, particularly theUnited
Nations, played a significant role in thedecolonization process and
the consolidation ofanticolonialism norms. The self-determination
normslaid out in the Charter, the trusteeship system it setup, and
the one-state-one-vote voting structure thatgave majority power to
weak, often formerlycolonized states, all contributed to an
internationallegal, organizational, and normative environment
thatmade colonial practices increasingly illegitimate anddifficult
to carry out.34
A transformao efetiva do conceito e a implementao da
intervenomilitar comeam no final da dcada de 1980, com o fim da
confrontao bipolarda Guerra Fria e com as mudanas que o acompanham,
em especial em doiscampos: mudanas na natureza da guerra (de
inter-estatais para civis, e comenvolvimento crescente de civis) e
crescente cooperao no Conselho deSegurana. O relatrio do
secretrio-geral, Javier Prez de Cuellar, sobre ostrabalhos da
organizao em 1991 revela claramente uma mudana no equilbrioentre
independncia soberana e proteo dos direitos humanos, e merece
umacitao por extenso:35
the fact must be squarely faced that the campaignfor the
protection of human rights has brought resultsmostly in conditions
of relative normalcy and withresponsive Governments. In other
conditions, whenhuman wrongs are committed in systematic fashionand
on a massive scaleinstances are widelydispersed over both time and
placethe inter-governmental machinery of the United Nations
hasoften been a helpless witness rather than an effectiveagent for
checking their perpetration.The encouragement of respect for human
rightsbecomes a vacuous claim if human wrongs committedon a major
scale are met with lack of timely andcommensurate action by the
United Nations. To
34 FINNEMORE, Martha. Constructing Norms of Humanitarian
Intervention. In KATZENSTEIN, Peter, org. The Cultureof National
Security. Ithaca: Cornell University Press, 1996; pp. 153-185.
Aqui, pp. 174-175.
35 ABIEW cita algumas destas passagens na nota de rodap 100, pp.
97-98. A citao que ele apresenta dos nmeros daspginas a partir de
uma fonte secundria no correspondem ao documento original da
ONU.
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21REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
promote human rights means little if it does not meanto defend
them when they are most under attack.I believe that the protection
of human rights has nowbecome one of the keystones in the arch of
peace. Iam also convinced that it now involves more a
[sic]concerted exertion of international influence andpressure
through timely appeal, admonition,remonstrance or condemnation and,
in the last resort,an appropriate United Nations presence, than
whatwas regarded as permissible under traditionalinternational
law.It is now increasingly felt that the principle of
non-interference with the essential domestic jurisdictionof States
cannot be regarded as a protective barrierbehind which human rights
could be massively orsystematically violated with impunity.
Omissionsor failures due to a variety of contingentcircumstances do
not constitute a precedent. Withthe heightened international
interest in universalizinga regime of human rights, there is a
marked andmost welcome shift in public attitudes. To try to
resistit would be politically as unwise as it is
morallyindefensible.36
Prez de Cuellar escreveu seu relatrio aps o fim da Segunda
Guerrado Golfo, tambm conhecida sob a designao militar
norte-americanaOperao Escudo do Deserto/Tempestade do Deserto (do
ingls OperationDesert Shield/Storm), concluda em fevereiro de 1991.
H uma convicogeneralizada que a resposta das Naes Unidas durante a
Guerra do Golfo foi aprimeira em uma progresso de mandatos do
Conselho de Segurana cujoresultado foi a ampliao da aplicabilidade
da interveno humanitria37 e arestrio do princpio da soberania, por
meio do reconhecimento crescente dasviolaes domsticas de direitos
humanos, assim como das catstrofeshumanitrias, como ameaas paz
internacional e segurana um gatilho-chave para a ao da ONU
estabelecido pelo artigo 34 da Carta.38.Estes
36 ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. Assemblia Geral. Report of the
Secretary-General on the Work of theOrganization. 13 setembro 1991.
Documento das Naes Unidas A/46/1.
37 RAMSBOTHAM e WOODHOUSE relacionam interveno humanitria a
misses de paz da ONU ao classificar asltimas como intervenes
humanitrias no-forosas; pp. 123.
38 RAMSBOTHAM e WOODHOUSE; pp. 133-4; BETTATI p. 47. Vide tambm
a interessante abordagem em SYLVAN,Donald A. e PEVEHOUSE, John C.
Deciding whether to Intervene. In KEREN, Michael e SYLVAN, Donald
A.,orgs. International intervention: sovereignty versus
responsibility. Portland OR: Frank Cass, 2002; pp. 56-74. Aqui,
pp.58, 61.
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22 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
mandatos esto contidos nas resolues lidando, respectivamente,
com as crisesenvolvendo refugiados curdos no Iraque, com a situao
humanitria na Somlia,com o genocdio de Ruanda e com a dissoluo da
antiga Iugoslvia. O progressodetalhado destas resolues na criao de
precedente para (aes) humanitrias, porm, bastante volumoso, podendo
ser melhor acompanhado tendo comobase o excelente livro Saving
Strangers, de Nicholas Wheeler39.
O vnculo entre o exerccio da soberania com o direito e
aresponsabilidade de proteger seres humanos verticalmente foi
sistematizadopela primeira vez na obra seminal Sovereignty as
responsibility: conflict managementin Africa, do diplomata e
professor de Direito sudans Francis M. Deng e deseus colegas do
Instituto Brookings, baseado em Washington. Este trabalho
serveexplicitamente como molde para muitos dos travaux prparatoires
conceituais deinterpretao da ICISS para a soberania e, por isso,
merece uma extensa citaode sua exegese, feita por Amitai
Etzioni:
Deng et al. sought to provide moral and legallegitimacy for
intervention in the affairs ofindependent states by recasting
sovereignty as notmerely the right to be undisturbed from
without,but the responsibility to perform the tasks expectedof an
effective government. If a state fails to fulfillits obligations to
its citizens, the right to inviolabilityshould be regarded as lost,
first voluntarily as thestate itself asks for help from its peers,
and theninvoluntarily as it has help imposed on it in responseto
its own inactivity or incapacity and to theunassuaged needs of its
own people. It followstherefore that the sovereign states
responsibilityand accountability to both domestic and
externalconstituencies must be affirmed as interconnectedprinciples
of national and international order.5 Theinternational community
expects states to bring theirdomestic law and conduct in line with
establishedinternational standards; if they do not, other
nationshave a responsibility to interfere in the offendingstates
internal affairs. Thus Deng et al.s justification
39 Nicholas J. Wheeler. Saving Strangers: Humanitarian
Intervention in International Society. Oxford: OxfordUniversity
Press, 2000. Sobre o desenvolvimento do regime de direitos humanos,
vide tambm RODRIGUES,Simone Martins. Segurana Internacional e
Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
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23REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
for humanitarian intervention turns what was oncea taboo of
international relations into a moralimperative40.
Nem todos os Estados e nem todos os especialistas, contudo,
endossarama viso de Deng na mesma medida que a ICISS e o sistema
das Naes Unidasfizeram. Uma das linhas centrais de argumentao a
contrariar a perspectivade responsibilidade pela proteo dos
direitos humanos como incorporada soberania a afirmao de que a
proviso de direitos humanos permanececonceitualmente fora da noo de
soberania e constitui, pelo contrrio, umprincpio compensatrio em
uso no alcance dos suportes legais e normativos dacomunidade
internacional.
O debate continua entre as duas interpretaes da relao entre
soberania,no-interveno e direitos humanos. Uma destas interpretaes,
extensamentedescrita acima, percebe tanto a igualdade horizontal
dos Estados incorporada,em parte, pela norma de no-interveno quanto
o contrato vertical pormeio do qual os Estados derivam seus
direitos daqueles de seus cidados como partes integrais de uma
tenso inerente aos conceitos de soberania. Outraviso adota aquilo
que, em essncia, equivale a equacionar a prpria
soberaniaexclusivamente com o componente externo e horizontal de
no-interveno einviolabilidade das fronteiras. Em respeito de seus
efeitos intelectuais, estasegunda interpretao gera uma tendncia de
situar os direitos dos Estados eaqueles direitos dos cidados
individuais em potencial oposio, com a soberaniaaliada aos
interesses estatais enquanto a primeira enfoca a necessidade
deequilbrio das foras contrapostas em questo.
Independentemente de serem localizados dentro ou fora da noo
desoberania, os princpios de direitos humanos so quase
universalmenteconsiderados como detentores de igual posio entre os
fundamentos da Cartadas Naes Unidas. Alm disso, a dinmica neste
caso vista como sendo umade soberania, assim definida, perdendo
espao para os direitos humanos aolongo do tempo. Um autor,
preocupado com as conseqncias operacionaisdestes conceitos para a
participao em misses de paz de um Estado latino-americano que apia
o R2P, define brevemente a situao e o dilema delaresultante:
[e]l orden internacional diseado en la Carta de lasNaciones
Unidas estaba basado en tres pilares: lasolucin no violento de los
conflictos, la Soberanade los Estados y los Derechos Humanos. Ya
hemosvisto cmo la soberana y el principio de no injerencia
40 ETZIONI p. 73. As citaes so de DENG et al, pp. xviiiii.
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24 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
han experimentado cambios de trascendencia. Sucede,adems, que el
principio de soberana de los estadospuede ser contradictorio con el
de la defensa de losderechos humanos cuando es un Estado el que
losviola.La globalizacin ha convertido el orden internacionalen un
concepto dinmico en el que los estados ya nopueden ser el nico
actor y destinatario.El orden internacional no puede ya limitarse a
laausencia de guerras entre estados. Debe promoverlos derechos de
los ciudadanos, su bienestar, sulibertad personal. En paralelo a la
transformacin dela soberana, el estado ha perdido aqu un campo enle
que ejerca un claro monopolio. En definitiva, el mundo globalizado
ha relativizadoen funcin del poder de los Estados el
consolidadoprincipio de no-intervencin, afectando la nocin
sesoberana que rega hasta muy pocos aos, comovoluntad nacional sin
limitaciones.41
Na anlise do mesmo autor, a prtica da ONU e, especialmente,
asdeclaraes formais de seus rgos constituintes parecem situar os
direitos dosindivduos, conforme dispostos nos direitos humanos,
acima daqueles dos Estados,manifestos na noo de soberania como
liberdade frente interveno. Oprincpio resumido por um pesquisador
da Universidade das Naes Unidas(UNU United Nations University): the
sovereignty of States means thesovereignty of people, not of
leaders 42. Na prtica, porm, os direitos dosEstados ainda ocupam
uma posio privilegiada dentro das prprias NaesUnidas, uma vez que
as votaes nos rgos decisrios so realizadas por Estadose dependem
dos interesses e dos poderes relativos destes. A perspectiva
adotadapelos vrios Estados com relao s mudanas nas normas de
soberania depende,evidentemente, dos fatores estruturais
regulamentando suas posies no sistemainternacional. Dito sem
rodeios, fragile states dislike it, seeing themselves aspossible
targets43.
Normas de interveno e o mundo em desenvolvimento
41 LE DANTEC GALLARDO, Cristin. Participacin en Operaciones de
Paz, Consecuencias y la soberana. In LEDANTEC GALLARDO, Cristin et
al. Operaciones de Paz: Tres Visiones Fundadas. Santiago de Chile:
Academia Nacionalde Estudios Polticos y Estratgicos, 2006; pp.
13-106. Aqui, pp. 33-34.
42 Vide POPOVSKI; consagrado primeiramente em COMMISSION ON
GLOBAL GOVERNANCE. Our GlobalNeighborhood: Report of the Commission
on Global Governance. Oxford: Oxford University Press, 1995; pp.
68-70.
43 Vide BEACH.
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25REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
Os Estados do mundo em desenvolvimento vem a si prprios em
umasituao de fragilidade de facto diante dos pases desenvolvidos do
hemisfrioNorte, por vezes se percebendo vtimas de relaes econmicas
e militaresdesiguais. Muitos deles buscam, ento, refgio nos
princpios da soberania paraamortecer esses golpes, associando a
sustentao da igualdade soberana dosEstados com a manuteno de sua
presena nos rgos decisrios internacionaise defendendo
justificadamente a proibio legal da interveno em face
dasexperincias duradouras de interveno e de explorao por parte das
potnciasdo Norte no passado44. Mohammed Ayoob discute vigorosamente
a posio doSul no campo acadmico deste debate45, enquanto, no nvel
oficial, tal perspectivafoi eloquentemente descrita pelo presidente
argelino Abdelaziz Bouteflika aodiscursar na Assemblia Geral como
presidente da Organizao da UnidadeAfricana em 1999:
We do not deny the right of northern-hemispherepublic opinion to
denounce the breaches of humanrights where they exist. Nor do we
deny that theUnited Nations has the right and the duty to
helpsuffering humanity. But we remain extremelysensitive to any
undermining of our sovereignty notonly because sovereignty is our
final defence againstthe rules of an unjust world, but because we
have noactive part in the decision-making process in theSecurity
Council nor in monitoring theimplementation of decisions.46
Os Estados em posio de relativa fragilidade no sistema global
tmmaior propenso a reduzir o conceito de soberania ao componente
dainviolabilidade e da liberdade frente interveno, buscando a
proteo emrelao a ameaas reais do passado. A ironia de se ter
antigos Estados coloniaisbuscando atualmente intervir em nome dos
direitos humanos no , contudo,ignorada pelos proponentes de novas
normas de interveno:
Concerns about the degradation of sovereignty oftencome from
developing countries whose borders havebeen breached by countries
that now champion
44 A tradio legalista da poltica externa brasileira deriva tambm
desta necessidade. A Amrica Latina, em particular,enfrentou
intervenes de grandes potncias, e a possibilidade percebida de
subverso ou mesmo de interveno porparte dos Estados Unidos
permanece pertinentemente associada s avaliaes de riscos no
continente.
45 AYOOB, Mohammed. Humanitarian Intervention and State
Sovereignty. International Journal of Human Rights. v.6, n. 1,
2002, pp.81-102; AYOOB, Mohammed. Third World Perspectives on
Humanitarian Intervention andInternational Administration. Global
Governance. v. 10, n. 1, 2004; pp. 99-118.
46 ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. Assemblia Geral. Procs-verbal of
the fourth plenary meeting of the54th session. Documento das Naes
Unidas A/54/PV.4 de 20 de setembro de 1999. Vide tambm WEISS,
After9/11; pp. 748-749.
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26 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
protecting human beings and ignoring borders. Atthe same time,
repressive regimes hiding behind theshield of sovereignty should
also be obvious to anystudent of history.47
Alm disso, alguns Estados em desenvolvimento tm menor
probabilidadede aceitar a noo de soberania como responsabilidade em
razo dapreponderncia de governos no-democrticos dentro desta
categoria de Estados,independentemente de como esta seja definida.
Por extenso, estes Estadosapresentam maior probabilidade de
filiar-se a uma interpretao que percebeos direitos humanos como
residentes fora da soberania e como ameaas funoprotetora do
princpio da soberania para os Estados mais fracos.
A resposta dos proponentes de uma reviso das normas para
interveno dupla. Em primeiro lugar, o foco de conceitos como o R2P
no est nosdireitos das grandes potncias, isto , na liberdade de
intervir, mas nos direitosdas populaes em condio de sofrimento, as
quais esto predominantementenos Estados mais fracos do sistema
internacional48. Em segundo lugar, e commaior importncia, deve-se
recordar que as solues propostas pelo R2Pultrapassam a interveno
militar e, mais do que arrogar aos Estados poderososo dever de
intervir, buscam sempre uma resoluo primeiro no nvel do Estadomais
fraco; sendo a idia presumir o fracasso da capacidade do Estado, e
no desua vontade49. Nas palavras do diretor de pesquisas da
ICISS,
For those who chart changes in internationaldiscourse, the
evolution toward reinforcing statecapacity is key. This is not
nostalgia for the repressivenational security state of the past,
but recognition,even among committed advocates of human rightsand
robust intervention, that state authority iselementary to enduring
peace and reconciliation. The remedy thus is not to rely on
internationaltrusteeships and transnational NGOs, but rather
tofortify, reconstitute, or build viable states from
failed,collapsed, or weak ones.50
Com esta abordagem baseada na responsabilidade primria do
prprioEstado, os proponentes da responsibilidade de proteger
comearam a forneceruma resposta cogente e coerente com as
importantes reservas apresentadas47 WEISS, After 9/11, p. 749.48
ibid., p. 744.49 LUCK, Edward C. The United Nations and the
Responsibility to Protect. Stanley Foundation Policy Analysis
Brief.
Agosto 2008. Disponvel em
www.stanleyfdn.org/publications/pab/LuckPAB808.pdf. Acesso em 31
outubro2008; p. 2.
50 WEISS, Sunset, p. 138.
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27REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
pelos Estados que, por instinto histrico, vem a si prprios como
potenciaisalvos. Simultaneamente, esta resposta oferece, para os
partidrios da intervenohumanitria, um esboo dos meios para que eles
dissociem em definitivo suasmotivaes daquelas dos Estados propensos
interveno unilateral auto-interessada, uma vez que a mudana para
uma nfase nas populaes em condiode sofrimento e na construo de
capacidades enfraquece inerentemente areivindicao de legitimidade
dos ltimos.
Falsos amigos: o Iraque e os princpios de
intervenohumanitria
Tendo em vista o momento de publicao de seu relatrio, a ICISS
estavaconsciente do risco de confuso entre seus princpios e aqueles
subjacentes aorenovado unilateralismo americano aps os ataques de
11 de setembro. Assimcomo necessrio estabelecer uma justificativa
em favor da interveno emalguns casos, igualmente imperativo
delinear um limite mximo daquilo queconstitui a interveno
humanitria. Embora os detalhes de como isso feitoestejam contidos
no Relatrio da ICISS e em seus documentos de pesquisa deapoio, os
elementos-chave devem ser descritos aqui, com o objetivo de
delinearclaramente os contornos do conceito e de se transmitir
coerentemente o queeste no , antes que o conceito seja formalmente
apresentado. Nas palavras deWeiss,
Rigorous application of the tenets of theresponsibility to
protect does not permit theirbeing used as a pretext for
pre-emption. ButWashingtons broad and loose application
ofhumanitarian rhetoric to Afghanistan and Iraqex post facto
suggests why care should be givento parsing the ICISSs
criteria.51
Apontando as conseqncias nefastas da apropriao, pelas
grandespotncias, da linguagem do humanitarismo para aes
unilaterais, Weiss claroao afirmar que intervenes como aquela dos
Estados Unidos e da Gr-Bretanha(que ele descreve como falsos amigos
da interveno humanitria)52 no Iraqueno devem ser confundidas com a
inteno verdadeira da Comisso aodesenvolver a noo de
responsibilidade de proteger:
Changing the language to R2P from humanitarianintervention has
not changed the underlying politicaldynamics. Shortly after the
so-called victory in the
51 ibid., p. 144.52 WEISS, After 9/11, p. 752.
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28 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
war in Iraq, I argued that the sun had set onhumanitarian
intervention because the obsessionswith Afghanistan, Iraq, and
terrorism meant thatstrategic considerations would trump
humanitarianconcerns for the foreseeable future. Subsequently,the
sloppy and disingenuous use of the h word byWashington and London
has played into the hands ofthose Third World countries that wish
to slow orreverse normative progress.53
Weiss descreve com algum nvel de detalhamento as tentativas dos
EstadosUnidos de articular o rtulo do R2P invaso do Iraque e
destaca a rejeio ea obstruo desta jogada pelas potncias mdias
Argentina, Chile e Alemanha todas proponentes, em diferentes
dimenses, do R2P conforme definido pelaICISS54. A posio ambgua dos
Estados Unidos diante da linguagem do R2P favorecendo-o quando este
coincide com seus interesses nacionais definidos, eo opondo quando
esta justaposio no est presente pode ser vista claramentena
resposta formal ao rascunho do World Summit Outcome Document de
2005, naqual o representante permanente dos Estados Unidos, John
Bolton, argumentaconcomitantemente que a ao para pr fim ao genocdio
deveria ser limitadaao aprovado pelo Conselho de Segurana e que
catstrofes humanitrias em sino obrigam responsabilidade diante da
comunidade internacional. Essasreivindicaes, que rompem
simultaneamente as fronteiras superior einferior do conceito de
R2P, logicamente refletem o desejo de manutenoda independncia
norte-americana de intervir unilateralmente e dedesvencilhar a ao
das amarras do multilateralismo55. Elas tambm vodiretamente contra
o argumento de Ayoob e de outros que insistem no mximode incluso
global no processo decisrio sobre a interveno em desejoendossado
pela viso da ICISS sobre o R2P, conforme ser demonstrado
adiante.56
Weiss aponta para o risco de que, como conseqncia, a
terminologia humanitriapossa tornar reais os temores das naes em
desenvolvimento e se tornar aquiloque ele definiu como uma cortina
de fumaa para tiranos, referindo-se, emparticular, ao artigo
publicado no Foreign Affairs propondo um corolrio do deverde
prevenir com base em linguagem similar57.
As manipulaes do conceito do R2P, como sua vinculao ao
Iraquepelos Estados Unidos, ou recente incurso de tropas russas na
Gergia, devem
53 ibid., p. 758.54 ibid., p. 749-752.55 Disponvel em
http://www.responsibilitytoprotect.org/
index.php?module=uploads&func=download&fileId=219.56
WEISS, Sunset, p. 142.57 ibid., p.143.
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29REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
ser destacadas claramente das motivaes, das definies e dos
critrios reaisque formam a base de trabalho da ICISS. Este novo
impulso do humanitarismobusca alinhar a interpretao da soberania
com as mudanas normativas ecom seus efeitos concretos realizadas na
prtica internacional desenvolvidana posteridade de Kigali, de
Srebrenica e de Mogadscio. Ao mesmo tempo,esta nova perspectiva
manteve, na realidade, muitos dos tradicionais elementosprotetores
da soberania e do multilateralismo zelosamente guardados por
seusdetratores, uma vez que o foco permanece na capacidade do
Estado, no naimposio; que houve um deslocamento do direito de
interveno das potnciasmais fortes em direo aos indivduos em risco;
isso torna a incluso de maisEstados frgeis em rgos decisrios
relevantes de primordial importncia.
O objetivo da seo anterior foi duplo: situar o conceito de R2P
noextenso e corrente debate em torno do nexo entre soberania,
interveno,direitos humanos e tica, e delimitar o conceito apontando
aquilo que ele no, isto , desarticulando-o de associaes indesejveis
que deformem suasfronteiras e seus critrios. O R2P, conforme
definido pela ICISS em seguida eendossado por vrios rgos dentro do
sistema das Naes Unidas, no constituiuma tentativa de solapar os
elementos de proteo da soberania. Nas palavrasdo Assessor Especial
das Naes Unidas sobre R2P, Edward Luck, o R2P noaltera, mas, na
verdade, refora, a obrigao legal dos Estados-membros de seabster do
uso da fora, exceto se em conformidade com a Carta58.
O R2P oferece, entretanto, um novo esclarecimento sobre o
princpioda no-interveno, situando-o em relao s obrigaes soberanas
paralelasestabelecidas pela regulamentao de direitos humanos. Em
resumo, elecondiciona a inviolabilidade ao respeito dos princpios
legais internacionais,como os direitos dos indivduos, assinados e
ratificados com livre escolha pelavasta maioria dos Estados.
O R2P no um novo conceito imposto por potncias estrangeiras
oupor uma organizao internacional, mas uma continuidade lgica e
umasistematizao dos princpios que todos os membros de boa reputao
nacomunidade internacional especialmente aqueles com tradies
legalistas depoltica externa internalizaram h algum tempo. O tpico
a seguir ilustracomo o R2P foi implementado na prtica pela Comisso
Internacional sobreInterveno e Soberania Estatal (ICISS) em
2000-2001.
O que o R2P: critrios claros para interveno
A ICISS tornou pblico em dezembro de 2001 seu relatrio
TheResponsibility to Protect, referncia definitiva at o presente
momento para osparmetros e para os objetivos do R2P. Este documento
torna bastante clara aconservao dos elementos centrais da
soberania, embora exponha seu interesse
58 LUCK, p. 7.
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30 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
de incorporar a esta noo a viso moderna observada no arcabouo
estabelecidopor Francis Deng no Instituto Brookings:
All that said, sovereignty does still matter. It isstrongly
arguable that effective and legitimate statesremain the best way to
ensure that the benefits ofthe internationalization of trade,
investment,technology and communication will be equitablyshared.
Those states which can call upon strongregional alliances, internal
peace, and a strong andindependent civil society, seem clearly best
placedto benefit from globalization. They will also be likelyto be
those most respectful of human rights. And insecurity terms, a
cohesive and peaceful internationalsystem is far more likely to be
achieved through thecooperation of effective states, confident of
theirplace in the world, than in an environment of
fragile,collapsed, fragmenting or generally chaotic
stateentities.The defence of state sovereignty, by even its
strongestsupporters, does not include any claim of theunlimited
power of a state to do what it wants to itsown people. The
Commission heard no such claim atany stage during our worldwide
consultations. It isacknowledged that sovereignty implies a
dualresponsibility: externally to respect the sovereigntyof other
states, and internally, to respect the dignityand basic rights of
all the people within the state. Ininternational human rights
covenants, in UN practice,and in state practice itself, sovereignty
is nowunderstood as embracing this dual responsibility.Sovereignty
as responsibility has become theminimum content of good
international citizenship.59
O relatrio sustenta que caso um Estado no deseje ou no possa
cumprirsua obrigao legal de garantir o bem-estar de seus cidados, h
umaresponsibilidade residual e no primria ou irrestrita inerente
comunidadeinternacional, derivada da prtica legal previamente
existente, de cumprireste dever em nome do Estado em processo de
fracasso. A responsabilidade limitada e aplicvel somente sob
condies muito estritas, delimitadas de forma
59 ICISS, pargrafos 1.34-1.35.
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31REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
unvoca pela ICISS. A Comisso apia esta mudana no contedo da
soberaniaem quatro elementos fundamentais de precedncia legal:
The foundations of the responsibility to protect, as aguiding
principle for the international community ofstates, lie in:A.
obligations inherent in the concept of sovereignty;B. the
responsibility of the Security Council, underArticle 24 of the UN
Charter, for themaintenance of international peace and security;C.
specific legal obligations under human rights andhuman protection
declarations,covenants and treaties, international humanitarian
lawand national law;D. the developing practice of states,
regionalorganizations and the Security Council itself.60
Em termos de bases conceituais, o prximo passo sistematizar
asimplicaes da transformao da linguagem que sustenta a abordagem
daComisso:
The Commission is of the view that the debate aboutintervention
for human protection purposes shouldfocus not on the right to
intervene but on theresponsibility to protect. The proposed change
interminology is also a change in perspective, reversing
60 ICISS, p. XI. Deve-se observar que esta escolha de fontes
deriva de prtica extensa, no adiciona novos documentosou se afasta
das interpretaes estabelecidas do direito internacional, e se
limita a fontes jurdicas relativamente no-questionveis. Uma das
principais questes em torno do status do R2P dentro do sistema ONU
em vista dessesprincpios se este pode, de fato, ser considerado,
atualmente, uma parte da prtica legal costumeira dos Estados.Bruno
Simma, autor de respeitvel comentrio legal sobre a Carta da ONU,
afirma que as normas de direitoshumanos no so rgidas, mas so
principalmente responsveis por diretrizes mais vagas de ao, e que a
barreirapara sua considerao como jus cogens muito alta. Apesar
disso, ele tambm afirma as excees do captulo VII aoslimites
estabelecidos pelo artigo 2(7). SIMMA, Bruno et al. The Charter of
the United Nations: a commentary. Oxford:Oxford University Press,
2002; pp. 710-711; SIMMA, Bruno. NATO, the UN and the use of force:
legal aspects.European Journal of International Law. v. 10, n. 1,
1999; pp. 1-22. Aqui, p. 3. Weiss no surpreendeu ao reivindicar
queo R2P certamente se qualifica como direito costumeiro, enquanto
Focarelli destaca a diferena entre apoio poltico,embora
sistematizado, e a existncia de uma norma legal. (FOCARELLI, Carlo.
The Responsibility to ProtectDoctrine and Humanitarian
Intervention: Too Many Ambiguities for a Working Doctrine. Journal
of Conflict &Security Law. 2008; pp. 1-23. Byers afirma que
mais do que os constrangimentos legais, a prtica das grandes
potnciasserve de molde para as regras sobre uso da fora. (BYERS,
Michael. Not yet havoc: geopolitical change and theinternational
rules on military force. Review of International Studies. v. 31,
2005; pp. 51-70. Aqui, p. 68). Videtambm BREAU, Susan C. The Impact
of the Responsibility to Protect on Peacekeeping. Journal of
Conflict & SecurityLaw. v. 11, n. 3, 2007; pp. 429-464, e o
trabalho de Theresa Reinold sobre os requisites para a cogncia das
normasemergentes.
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32 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
the perceptions inherent in the traditional language,and adding
some additional ones:First, the responsibility to protect implies
anevaluation of the issues from the point of view ofthose seeking
or needing support, rather than thosewho may be considering
intervention. Our preferredterminology refocuses the international
searchlightback where it should always be: on the duty to
protectcommunities from mass killing, women fromsystematic rape and
children from starvation.Secondly, the responsibility to protect
acknowledgesthat the primary responsibility in this regard
restswith the state concerned, and that it is only if thestate is
unable or unwilling to fulfill this responsibility,or is itself the
perpetrator, that it becomes theresponsibility of the international
community to actin its place. In many cases, the state will seek
toacquit its responsibility in full and active partnershipwith
representatives of the international community.Thus the
responsibility to protect is more of alinking concept that bridges
the divide betweenintervention and sovereignty; the language of
theright or duty to intervene is intrinsically
moreconfrontational.Thirdly, the responsibility to protect means
not justthe responsibility to react, but the responsibilityto
prevent61 and the responsibility to rebuild aswell. It directs our
attention to the costs and resultsof action versus no action, and
provides conceptual,normative and operational linkages
betweenassistance, intervention and reconstruction.62
Embora os elementos constitutivos das responsabilidades de
prevenir ede reconstruir sejam partes iguais e inerentes do R2P e
sirvam, inter alia, paratornar o conceito mais apropriado para uma
eventual adoo por Estados comperfis de poltica externa como o
brasileiro, a presente discusso se limitar squestes envolvendo o
desdobramento de foras armadas, enquadradas naresponsabilidade de
reagir. A contribuio crucial do relatrio do R2P nesse
61 Para mais sobre preveno, vide BELLAMY, Alex J. Conflict
Prevention and the Responsibility to Protect.Global Governance. v.
14, n. 2, 2008; pp. 135-156.
62 ICISS, pargrafo 2.29.
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33REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
mrito so os critrios por ele estabelecidos para a interveno, os
quaisconstituem o ponto essencial de toda a abordagem do R2P para o
tema emquesto . Esses critrios so: autoridade correta, causa justa,
inteno correta,ltimo recurso, meios proporcionais e razoveis
perspectivas de sucesso63.
A questo da autoridade correta com referncia ao uso da fora
nasrelaes internacionais suficientemente complexa e contenciosa
para merecerum captulo inteiro (captulo 6) no Relatrio da ICISS. A
Comisso identificainequivocamente, assim como feito na Carta das
Naes Unidas, o Conselhode Segurana como nico rbitro primordial
nesta questo No caso de umConselho de Segurana imobilizado pelo
veto de um membro permanente, aComisso sugere as seguintes
possibilidades de desbloqueio:
If the Security Council rejects a proposal or fails todeal with
it in a reasonable time, alternative optionsare:I. consideration of
the matter by the GeneralAssembly in Emergency Special Session
under theUniting for Peace procedure; andII. action within area of
jurisdiction by regional orsub-regional organizations under Chapter
VIII of theCharter, subject to their seeking
subsequentauthorization from the Security Council.64
O outro importante critrio a causa justa a respeito do qual
aComisso tambm recorre a grande detalhamento, em conformidade com
suamisso indicada:
military intervention for human protectionpurposes is justified
in two broad sets ofcircumstances, namely in order to halt or
avert:large scale loss of life, actual or apprehended, with
genocidalintent or not, which is the product either of deliberate
stateaction, or state neglect or inability to act, or a failed
statesituation; orlarge scale ethnic cleansing, actual or
apprehended, whethercarried out by killing, forced expulsion, acts
of terror orrape.
63 ibid., pargrafo 4.16.64 ibid., pp. XII-XIII.
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34 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
these conditions would typically include thefollowing types of
conscience-shocking situation:those actions defined by the
framework of the 1948Genocide Convention that involve large
scalethreatened or actual loss of life;the threat or occurrence of
large scale loss of life,whether the product of genocidal intent or
not, andwhether or not involving state action;different
manifestations of ethnic cleansing,including the systematic killing
of members of aparticular group in order to diminish or
eliminatetheir presence in a particular area;the systematic
physical removal of members of aparticular group from a particular
geographical area;acts of terror designed to force people to flee;
andthe systematic rape for political purposes of womenof a
particular group (either as another form ofterrorism, or as a means
of changing the ethniccomposition of that group);those crimes
against humanity and violations of thelaws of war, as defined in
the Geneva Conventionsand Additional Protocols and elsewhere,
whichinvolve large scale killing or ethnic cleansing;situations of
state collapse and the resultant exposureof the population to mass
starvation and/or civil war;and overwhelming natural or
environmentalcatastrophes, where the state concerned is
eitherunwilling or unable to cope, or call for assistance,and
significant loss of life is occurring or threatened.65
O critrio da causa justa e o requerimento da autoridade correta
socomplementados por quatro princpios de precauo, que
fornecemfundamento para a rejeio de possveis intervenes moda antiga
realizadaspelas grandes potncias:
A. Right intention: The primary purpose of theintervention,
whatever other motives interveningstates may have, must be to halt
or avert humansuffering. Right intention is better assured with
65 ibid. pargrafos 4.19 e 4.20.
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35REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
multilateral operations, clearly supported byregional opinion
and the victims concerned.B. Last resort: Military intervention can
only bejustified when every non-military option for theprevention
or peaceful resolution of the crisis hasbeen explored, with
reasonable grounds for believinglesser measures would not have
succeeded.C. Proportional means: The scale, duration andintensity
of the planned military intervention shouldbe the minimum necessary
to secure the definedhuman protection objective.D. Reasonable
prospects: There must be areasonable chance of success in halting
or avertingthe suffering which has justified the intervention,with
the consequences of action not likely to be worsethan the
consequences of inaction.66
Conforme observado, esses critrios so centrais na tentativa da
Comissode satisfazer seu objetivo de remover o mximo possvel o
elementodiscricionrio das decises sobre intervenes. O conceito, em
sua formulaooficial proposta pela ICISS, provou-se, de fato,
bem-definido o suficiente paraservir como base para o incio das
discusses e, aps algum tempo, para oendosso de diversos rgos do
sistema das Naes Unidas.
Aval e operacionalizao pelas Naes Unidas
A forma mais sucinta de se investigar a adeso ao R2P e
suaoperacionalizao por parte da ONU se d por meio dos documentos
oficiaisde seus rgos constituintes. Apesar de Luck argumentar que o
ento secretrio-geral Boutros Boutros-Ghali havia lanado as bases
para o vnculo entre soberaniae responsabilidade em suas declaraes j
em 199267, o percurso do R2P naONU comea, naturalmente, com sua
estruturao pela ICISS em 2001. Desdeento, os principais documentos
a respaldar o conceito so, em ordem, o relatriodo Painel de Alto
Nvel (High-Level Panel), de 2004; o relatrio In LargerFreedom, de
2005, do secretrio-geral Kofi Annan; e o World Summit
OutcomeDocument, de 200668. A primeira resoluo a fazer meno
explcita
66 ibid., p. XII. Deve-se notar que estes critrios so derivados
da tradio crist da guerra justa.Vide tambm aderivao destes
princpios na doutrina catlica em BEACH.
67 LUCK, p. 2.68 ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. A more secure world:
Our shared responsibility. Report of the High-level
Panel on Threats, Challenges and Change. New York: United
Nations, 2004; ORGANIZAO DAS NAESUNIDAS. Secretrio-Geral. In larger
freedom: towards development, security and human rights for all.
Report of theSecretary-General. Documento das Naes Unidas
A/59/2005; ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS.Assemblia Geral. 2005 World
Summit Outcome. Documento das Naes Unidas A/RES/60/1.
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36 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
responsabilidade de proteger foi, convenientemente, a S/RES/1674
de 28 deabril de 2006, sobre a proteo de civis em conflitos
armados.
O envolvimento no-oficial da ONU com os princpios bsicos por
trsdo R2P comea, porm, anteriormente publicao do relatrio R2P, com
umartigo de Annan para a revista Economist, datado de setembro de
1999 e intituladoTwo Concepts of Sovereignty. Preocupado
principalmente com conflito noKosovo, o argumento de Annan poca
ainda firmemente arraigado supracitada convico de que os direitos
humanos esto localizados fora dosfundamentos da soberania. No mesmo
texto, Annan estabelece, porm, basespara a reconciliao dos
dois:
I believe it is essential that the internationalcommunity reach
consensusnot only on theprinciple that massive and systematic
violations ofhuman rights must be checked, wherever they takeplace,
but also on ways of deciding what action isnecessary, and when, and
by whom.To those for whom the greatest threat to the futureof
international order is the use of force in theabsence of a Security
Council mandate, one mightsay: leave Kosovo aside for a moment, and
think aboutRwanda. Imagine for one moment that, in those darkdays
and hours leading up to the genocide, there hadbeen a coalition of
states ready and willing to act indefence of the Tutsi population,
but the council hadrefused or delayed giving the green light.
Should sucha coalition then have stood idly by while the
horrorunfolded?To those for whom the Kosovo action heralded a
newera when states and groups of states can take militaryaction
outside the established mechanisms forenforcing international law,
one might equally ask: Isthere not a danger of such interventions
underminingthe imperfect, yet resilient, security system
createdafter the second world war, and of setting
dangerousprecedents for future interventions without a
clearcriterion to decide who might invoke theseprecedents and in
what circumstances? If the new commitment to humanitarian action
isto retain the support of the worlds peoples, it mustbeand must be
seen to beuniversal, irrespective
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37REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
of region or nation. Humanity, after all, isindivisible. 69
O primeiro documento oficial ps-ICISS da ONU a endossar o R2P
foi orelatrio do Painel de Alto Nvel sobre Ameaas, Desafios e
Mudanas, compostopor 16 membros convocados pelo secretrio-geral
respeitando um equilbrioglobal entre Norte e Sul e incluindo um
eminente representante brasileiro, oembaixador Joo Clemente Baena
Soares. O relatrio do Painel foi inequvocoem seu apoio ao novo
princpio organizacional:
The principle of non-intervention in internal affairscannot be
used to protect genocidal acts or otheratrocities, such as
large-scale violations ofinternational humanitarian law or
large-scale ethniccleansing, which can properly be considered a
threatto international security and as such provoke actionby the
Security Council.70We endorse the emerging norm that there is
acollective international responsibility to protect,exercisable by
the Security Council authorizingmilitary intervention as a last
resort, in the event ofgenocide and other large-scale killing,
ethniccleansing or serious violations of internationalhumanitarian
law which sovereign Governmentshave proved powerless or unwilling
to prevent.71
Annan complementou o aval do Painel com o seu prprio no relatrio
InLarger Freedom, fazendo meno nominal ao conceito:
While I am well aware of the sensitivities involvedin this
issue, I strongly agree with this approach. Ibelieve that we must
embrace the responsibility toprotect, and, when necessary, we must
act on it. Thisresponsibility lies, first and foremost, with
eachindividual State, whose primary raison dtre andduty is to
protect its population. But if nationalauthorities are unable or
unwilling to protect their
69 ANNAN, Kofi. Two concepts of sovereignty. The Economist. 18
setembro 1999. Disponvel em:
www.un.org/News/ossg/sg/stories/kaecon.html. Acesso em: 31 outubro
2008.
70 High-Level Panel, pargrafo 200.71 ibid., pargrafo 203.
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38 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
citizens, then the responsibility shifts to theinternational
community to use diplomatic,humanitarian and other methods to help
protect thehuman rights and well-being of civilian populations.When
such methods appear insufficient, the SecurityCouncil may out of
necessity decide to take actionunder the Charter of the United
Nations, includingenforcement action, if so required.72
Apesar disso, a mais importante das declaraes da ONU
possivelmenteo World Summit Outcome Document, de 2006; sua
relevncia primordial tem duplofundamento: o primeiro tem base em
sua autoria, uma vez que sinaliza a adesoao R2P pelos chefes de
Estado mundiais reunidos. O segundo elemento residena transformao
de um ainda um pouco nebuloso e certamente contenciosoconceito em
um arcabouo operacionalizvel de ao para a comunidadeinternacional.
Este segundo passo realizado por meio da limitao daaplicabilidade
do conceito e do aprofundamento dos instrumentos disponveispara se
lidar com aquilo que abrangido pela definio mais restrita.
Estaabordagem limitada, mas profunda (narrow, but deep), a qual se
tornou amarca do engajamento da ONU no conceito, traa as reas de
aplicao doR2P:
Each individual State has the responsibility to protectits
populations from genocide, war crimes, ethniccleansing and crimes
against humanity. Thisresponsibility entails the prevention of such
crimes,including their incitement, through appropriate andnecessary
means. We accept that responsibility andwill act in accordance with
it. ...The international community, through the UnitedNations, also
has the responsibility to use appropriatediplomatic, humanitarian
and other peaceful means,in accordance with Chapters VI and VIII of
theCharter, to help to protect populations fromgenocide, war
crimes, ethnic cleansing and crimesagainst humanity. In this
context, we are prepared totake collective action, in a timely and
decisive manner,through the Security Council, in accordance with
theCharter, including Chapter VII, on a case-by-case basisand in
cooperation with relevant regional
72 In Larger Freedom, pargrafo 135.
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39REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
organizations as appropriate, should peaceful meansbe inadequate
and national authorities are manifestlyfailing to protect their
populations from genocide,war crimes, ethnic cleansing and crimes
againsthumanity. We also intend to commit ourselves, asnecessary
and appropriate, to helping States buildcapacity to protect their
populations from genocide,war crimes, ethnic cleansing and crimes
againsthumanity and to assisting those which are under stressbefore
crises and conflicts break out.73
O secretrio-geral das Naes Unidas, Ban-Ki Moon, fez um
memorveldiscurso em 15 de julho de 2008 em Berlim, no qual
expressou a continuidadede seu apoio ao R2P e respondeu de forma
resoluta aos Estados crticos doconceito, incluindo, especialmente,
os pases em desenvolvimento do Sul. ocasio, um dos primeiros
destaques do discurso de Ban foi justamente umaoperacionalizao
narrow but deep do conceito:
we need a common understanding of what R2P isand, just as
importantly, of what it is not. R2P is nota new code for
humanitarian intervention. Rather,it is built on a more positive
and affirmative conceptof sovereignty as responsibility. [L]et me
clear uptwo more misconceptions and then say a word abouthow we are
proceeding in the effort to turn promiseinto practice, words into
deeds. Some contend thatR2P is a Western or Northern invention,
beingimposed on the global South. Nothing could befurther from the
truth. It was the first two AfricanSecretaries-General of the
United Nations Boutros Boutros-Ghali and Kofi Annan who
firstexplored evolving notions of sovereignty andhumanitarian
intervention. And the African Unionhas been explicit: in the year
2000, five years beforethe Summit declaration, the African Union
assertedthe right of the Union to intervene in a memberState
pursuant to a decision of the Assembly in respectof grave
circumstances, namely: war crimes, genocideand crimes against
humanity. Equally incorrect is
73 World Summit Outcome, pargrafos 138-139.
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40 REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
the assumption that the responsibility to protect isin
contradiction to sovereignty. Properly understood,RtoP is an ally
of sovereignty, not an adversary. StrongStates protect their
people, while weak ones areeither unwilling or unable to do so.
Protection wasone of the core purposes of the formation of
Statesand the Westphalian system. By helping States meetone of
their core responsibilities, R2P seeks tostrengthen sovereignty,
not weaken it.74
No discurso em Berlim, Ban responde s crticas dos
Estados-membrosda ONU cticos quanto ao R2P; muitos dos quais sendo
naes do hemisfriosul com resistncia instintiva e histrica a
qualquer modificao no princpio dano-interveno, que eles vem como
imperativa para sua segurana e parasua participao no sistema
internacional. Em relao ao princpio dainviolabilidade de
fronteiras, isto particularmente verdadeiro no
contextolatino-americano, onde a perspectiva de diminuio da
autonomia soberana dosEstados da regio tem sido historicamente uma
motivao real para preocupao.Alguns Estados latino-americanos
adotaram o R2P, enquanto outros semantiveram relutantes. Um Estado
desta ltima categoria justamente o Brasil.A seo subsequente
ilustrar a relao entre o R2P e os princpios tradicionaise atuais da
poltica externa brasileira.
R2P e as polticas externa e de segurana brasileiras
A poltica externa brasileira, tal como desenvolvida pelo
Ministrio dasRelaes Exteriores, baseia-se em uma leitura
fundamentalmente grotiana dasrelaes internacionais75. O primeiro
marco deste entendimento pela diplomacianacional a forte aderncia
ao direito internacional como garantia contra aassimetria de poder
que caracteriza a posio do Brasil no sistema internacional76.Isto
particularmente verdadeiro em relao resoluo pacfica de disputas e
inviolabilidade das fronteiras (no-interveno). H ainda duas
outrascaractersticas definidoras da tradio da poltica externa
brasileira, de particular
74 ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. Departamento de Informao Pblica.
Secretary-General defends,clarifies Responsibility to Protect at
Berlin Event on Responsible Sovereignty: International Cooperation
fora Changed World. Documento das Naes Unidas SG/SM/11701.
Disponvel em
http://www.un.org/News/Press/docs/2008/sgsm11701.doc.htm. Acesso
em: 31 outubro 2008.
75 GOFFREDO JNIOR, Gustavo Snchal de. Entre poder e direito: A
tradio grotiana na poltica externa brasileira.Braslia: Instituto
Rio Branco/FUNAG, 2005. Para mais sobre a tradio grotiana, Vide
WIGHT, Martin. InternationalTheory: the three traditions. London:
Leicester University Press/RIAA, 1991.
76 PINHEIRO, Letcia. Trados pelo Desejo: Um Ensaio sobre a
Teoria e a Prtica da Poltica Externa BrasileiraContempornea.
Contexto Internacional. v. 22, n. 2, 2000; pp. 305-335. Esp. p.
323. Disponvel em
http://publique.rdc.puc-rio.br/contextointernacional/media/Pinheiro_vol22n2.pdf.
Acesso em 31 de outubro de 2008.
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41REVISTA DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL
interesse a esta anlise: O recurso ao multilateralismo, e uma
forte confianana promoo de normas dentro das instituies existentes.
As ligaes entretodos estes princpios esto concretizadas no papel
fundamental exercido pelanorma da soberania na poltica externa
brasileira. Relacionado a esta viso esto reconhecimento por alguns
diplomatas brasileiros da utilidade do conceito desoft power na
busca dos objetivos do pas77.
De acordo com um dos mais proeminentes diplomatas brasileiros,
adiplomacia brasileira tem uma tradio principista, ou seja, de
buscar agir semprede acordo com normas internacionais, [inclusive]
no plano da segurana (com adefesa dos princpios da no-interveno, da
soluo pacifica)...78. Omultilateralismo, no entanto, produz tenses
em ao menos dois destes princpiosorientadores, exacerbadas pela
entrada em cena do R2P:
a defesa do princpio de soberania acompanhada deesforos de
afirmar a legitimidade do pas como atorcentral no cenrio
internacional. Assim, pode-seafirmar a tentativa de alcanar um
equilbrio entre aaceitao da crescente rede de normas
internacionaise condicionalidades e a proteo da soberania
estatal79
Esta contradio ecoa em outra tenso fundamental no perfil
internacionaldo Brasil: aquela entre o papel de liderana do pas no
continente e seu desejoem fortalecer seu papel como uma potncia
mdia no nvel global. Tod