This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Inte cionalidade e ferlOIEdmund Husserl
empreendeu, com afenomenologia,a ultima grande
tentativa defunda~ao total
do conhecimento
eI10 ()gl~l
EDMUND HUSSERL NASCEU em 8 de abril de 1859, em
Prossnitz, pequena cidade da Moravia, regiao da atual
Rep(lblica Checa. Este filho de abastados comercian-
tes judeus, que todavia se converteria ao cristianismo,
nao se dedicou desde cedo a filosofia. Sua forma<;ao
academica foi feita na area de ciencias exatas, como
estudante de~~~trC?nomiaJemLeipzig, e de~ate~em Bedim e em Viena. Foi nesta ultima cidade que,
em 1884, ele come<;ou a freqlientar os cursos de Franz
Brentano. Isso mudaria de maneira radical a dire<;aode
sua vida, levando-o em dire<;aoa filosofia. E, com esta,
a ideia de "intencionalidade da consciencia", que ele
herdou diretamente de Brentano, com quem polemi-
zaria, contudo, ate 0 final de seus dias - uma cena de
parriddio bastante comum na hist6ria da filosofia.
'<'
'"o>-~ CARLOSALBERTORIBEIRO DE MOURA3 e doutor e livre-docente em filosofia da
no<;;ao de intencionalidade s6 emerge,~ de maneira cabal com a identifica<;;ao~ ~ sumiria, estabelecida por ele, entre filo-~ '(J sofia,.e fenomenologia
d· N
I0 felntanfto,esta
~ '2 nao loi 0 primeiro mo e 0 i os6 ico por.J\ ~ ele perseguido. Sob a inspira<;;ao direta-1 0 e dominadora de Brentano, Husser!
IV entendia por filosofia uma certa analise~v- t dos conceitos utilizados pelas ciencias,.~ •~ que seria essencial para fundamenta-Ias-+ ~ de maneira definitiva. Nessa fase, a filo-~-::. sofia coincidia com a "clarifica<;;ao"dos_0 I.:,.. conceitos cientfficos.
Foi a crise desse primeiro modelode analise filos6fica que levou Husser!a reformular a pergunta basica feitapel a filosofia, inventando entao a feno-menologia. E dando a intencionalidadeurn papel decisivo para solucionar 0
problema que, doravante, ele situarano centro da filosofia. Por isso, vale apena levar em conta 0 cenario em quese desdobrava aquela "clarifica<;;ao"dosconceitos cientfficos, para circunscrevero momenta preciso em que a inten-cionalidade foi promovida a conceitofundamental da filosofia.
Clarificar urn conceito e mvesti-gar a sua origem. E voltar ao objetoque ele designa para verificar quais desuas "marcas distintivas" esse conceitoexprime. Com isso, 0 conceito torna-se"claro". Mas, no mesmo gesto, indican-do-se que 0 conceito investigado ternefetivamente urn objeto, mostra-se queesse conceito e valida, fundamenta-se 0
conceito. Essa e uma das tarefas imagina-das por Brentano para a sua "psicologia
Thomas Edisoninventa 0fonografoe, tres anosdepois, alampadaelEHrica.
!i A Conferencia ' Os irmaos
de Berlim, regulamenta
a partilha daAfrica pelaspotenciaseuropeias.
Auguste eLouis Lumiere,inventores docinematografo,realizam aprimeira eXibi~ao
! publica decinema.
('Tada canscienciae consciencia de algurnacoisa": essa afirnla~aoaparentenlente banal
conduz ~lcrfticade Busserl a tradi~ao
filos6fica
descritiva". Husserl adota a ideia e, mate-matico por forma<;;ao,e para a aritrneticaque dirige sua aten<;;ao. 0 que supoe aexistencia de uma carencia nessa cien-cia, que seria em si mesma incompleta,exigindo 0 trabalho complementar destadisciplina chamada filosofia.
PSICOLOGISMOSOs primeiros trabalhos de Husser!, Sabrea canceita de niimera e a Filasafia daaritmetica, ja praticam essa "clarifica-<;;ao",pretendendo investigar, por exem-plo, 0 conceito de numero. Trata-se deassunto sobre a qual os matematicosnao se entendem, 0 que por si s6 atestaa necessidade de uma investiga<;;ao su-plementar, que nao pode se resumir auma mera defini<;;ao.
Porque se partimos, por exemplo,da defini<;;ao oferecida por Euclides,para quem 0 numero e uma "quanti-dade de unidades", caminhamos bempouco. Os pr6prios matematicos naose poem de acordo sobre 0 que sig-nificam "quantidade" ou "unidade", eessa desaven<;;a e a expressao doslimites da atividade de definir concei-tos. Como observou Arist6teles, s6 sedefine 0 que e logicamente composto
(como "homem", definido como "ani-mal racional" ou como "bfpede implu-me"). Isso significa que quando chega-mos aos conceitos elementares nao hamais defini<;;ao possfve!. Agora 0 unicorecurso e a "clarifica<;;ao"desses concei-tos, retornando ao objeto do qualeles foram abstrafdos.
Mas esses bons prop6sitos deHusser! conduziam a urn resultadoinquietante. Ele localizava os objetosdos quais os conceitos matematicosforam abstrafdos em certos "fen6menospsfquicos". Husser! incorria naqueledesvio de conduta para 0 qual, maistarde, ele mesmo forjaria 0 termo "psi-cologismo". As resenhas da Filasafia daaritmetica foram durfssimas. Husser!foi censurado por misturar 16gica compsicologia, 0 que 0 levaria a dissolveros objetos matematicos em "representa-<;;oes",0 que significava nada menos doque decretar 0 fim da objetividade damatematica. Husser! acusa 0 golpe. E elevado a reconhecer que a matematicanao trata de "fen6menos psfquicos",nem de "fen6menos ffsicos", mas simde objetos "ideais".
Mas esse reconhecimento, precisa-mente, vai alterar de maneira decisivao roteiro filos6fico que Husser! se pro-pusera, obrigando-o a formular outravez, por sua conta e risco, a perguntaque inaugurava a filosofia moderna, jaque Descartes foi 0 primeiro a imagina-la: como 0 conhecimento e possfvePPara "clarificar" os conceitos cientfficose preciso rt;tornar aquela base de on-de foram abstrafdos. Mas se essa basenao e mais formada por fen6menos
: Guerra hispano-americana. Os .espanh6is, derrotados,perdem suas coloniasde Cuba, Porto Ricoe das Filipinas. OsEstados Unidos
! despontam como! potencia.
I I
; G~erra dos I Max PlanckBoeres, entre I formula a leios britilnicos 'da radia~aoe os ?olonos 'termica, base dade ongem teoria quilnticaholandesa daAfrica do SuI.
IMo]rte:a Guerra ru~ol A1:ert ~inst~inI rainha ; japonesa, pUblica urnj Vitoria, , vencida pelo artigo sabre aI do Relno i Japao. eletrodlnilmica
Unido. dos corpos emmovimento, no qual'apresenta a leoria II
da relatividade Iespecial.
P iquicos, e sim por objetos que naoao "partes" da pr6pria consciencia,
como esta pode ter acesso aqueles?Como a subjetividade pode ter aces so
~ a rranscendencia? Como 0 sujeito pode~ se reportar a urn mundo de objetos? E~ com a formulac;:ao dessa questao que~ nasce a fenomenologia. E era por meio~ do conceito de intencionalidade que~ Husserl pensava poder resolve-Ia.
Inicio daPrimeiraGuerraMundial.
Einstein Revolu~iio naapresenta Russia. Ossua teoria bolcheviquesgeral da tomam 0relatividade.~ poder.Franz Kafka
. publica A, metamorfose.
INTENCIONALlDADE DEXfOA apresentac;:ao can6nica da intencio-nalidade, tal como esta aparece emtextos de Brentano ou de Husserl,parece a exposic;:ao, muito solene, deuma irritante banalidade. 0 lema daintencionalidade pretende nos ensinarque "toda consciencia e consciencia dealguma coisa". Assim, a percepc;:ao epercepc;:ao de urn percebido, 0 desejo e
Estabelecimento Morte deda Uniiio das Lenin.Republicas StalinSocialistas concentraSovieticas(URSS). 0 poder
I Osfascistas na URSS.I tomam 0 poder na Ii ItiJia. James Joyce
publica Ulisses.
desejo de urn desejado, a imaginac;:ao eimaginac;:ao de urn objeto imaginado ...Mas, sinceramente, quem, algum dia,duvidou dessa trivialidade, para que elaseja reafirmada assim, com tanta pom-pa? Para perceber por que nao hi aquiuma banalidade, e preciso levar emconta que esse curto lema envolve urnaspecto negativo, de critica a tradic;:aofilos6fica, e tambem urn aspecto positi-
Lan~amentode Luzes deNova York, 0primeiro filmeinteiramentefalado .
A quebrada Boisa deValores deNova Yorkprecipitaa crise da
. economiamundial.
Osjaponesesocupam aManchuria.
Os nazistaschegam aopoder na
, Alemanha.
YO, urn acrescimo de conhecimento aolegado desta mesma tradi<;:ao.
Quanto a seu lado negativo, afirmarque "toda consciencia e consciencia dealguma coisa" significa reformular a no-r 'J.-\:\ COM A CHEGADADOSNAZISTASAO
PODER,E PERSEGUIDOPOR SUAORIGEM <;:ao de sujeito do conhecimento, tal comoJUDAIC.",E EXCLUiDODA UNNERSIDADE, esta era concebida pela filosofia moder-MASPROSSEGUEEMSUASPESQUISAS. 0 na, seja na sua metade racionalista, seja1 na sua vertente empirista. 0 sujeito, tal
'/) como Descartes 0 concebia, nao se rela-1& cionava diretamente a coisas, a objetos.~ Ele s6 se relacionava imediatamente a& suas "ideias", eventos de sua pr6pria inte-
rioridade. E essas id€ias eram vistas comosendo ou "imagens" dos objetos situadosno mundo (caso das ideias intelectuais),ou "signos" da existencia desses objetos(caso das ideias sensiveis).
De qualquer forma, esse sujeito car-tesiano permanece fechado no dominiode suas ideias, ilhado na sua pr6priainterioridade. Assim, afirmar que "todaconsciencia e' consciencia de alguma
NAPOLEAO BONAPARTE, pinturainacabada de Jacques LouisDaYi, c. 1798. As expressoes"0 modelo do pintor" e "0yencedor de Austerlitz" 0apresentam segundo modosdistintos de doa!1ao de sentido
FRANZ BRENTANO,mestre de EdmundHusserl na UniYersidade de Vlena.Fotografia sem data
coisa" e dizer que ela se relaciona di-retamente ao mundo, nao esta fechadasobre si mesma mas abre-se imediata-mente ao "exterior" E esse resultado, </)
sobretudo, que Same aplaudira, ja que ~ele the permitira dizer, contra seus ve- ~!hos mesues da Sorbonne, que nossa ~gconsciencia nos lan<;:a diretamente no 0
omundo, no "meio da multidao". ~
Quanto a seu aspecto positivo, a in- ~tencionalidade representara, em primeiro «
lugar, a descoberta de uma certa "ativi- ~dade" de nossa consciencia, que penna- ~necia desconhecida pela uadi<;:ao. Quer ~se considere 0 sujeito cartesiano, com ~seu estoque de "ideias inatas", quer se ~considere 0 sujeito segundo Locke, mera 6~tabula rasa na qual 0 mundo inscrevera as z
"ideias", nos dais casas a consciencia au a ~u
subjetividade 56 entra'elTI cena coJjl1o uma ~insrancia essencialmente passiva, que nao ~contribui em nada para a constitui~ao do ~mundo de nossa experiencia. 2
5Husser! come<;:a a vislumbrar essa ativi- 0
>dade da consciencia bern cedo, nos sells ~Estudos psicol6gicos de 1894. All ele opoe a ~intui~ao 11 repres€mta~ao. Segundo 0 senti-
do que as dais termos tern nesse momen-ro. "intuir" alguma coisa e simplesmenteyer essa coisa, como ao perceber da janelaa arvore all no jardim. Ao conu-ario, existe-representac;:ao" quando eu vejo uma coisamas, atraves desta, viso uma outra coisa.Assim, eu vejo a bandeira, que e apenaslUll pedac;:ode pano pintado e, au-aves de-la. eu visa outra coisa, visa urn determina-do pais. E nesse dominio do "representar"que Husserl descobrira a presenc;:ade umacerta "atividade" da consciencia.
Uma atividade que se exibe de ma-neira mais dara quando consideramosalguns casas-limite. Como ao vermosurn mero arabesco e, a seguir, perceber-mas esse arabesco como urn simbolo.E a que ocone quando vejo urn trac;:ono papel como sendo urn mero trac;:oe. logo depois, 0 vejo como 0 simboloda operac;:ao ariUnetica de subtrac;:ao.De urn caso ao outro, onde esta a dife-renc;:a?Ela nao esta na materialidade dorrac;:ono papel, que e a mesma nos dois050 . Husser! conduira que a diferenc;:a56 pode se estabelecer par uma certa-panicipac;:ao psiquica". Aquilo mesmoque. pouco tempo depois, ele chamarade am de "doac;:ao de sentido". E essearo que transforma a mero arabesco emimbolo, em "representante" de outra
coisa que e ele mesmo..-\"inrencionalidade" sera, para Husser!,
urn fenomeno da ordem da "representa-pia -. intencionar e tender, par meiode nao impolta quais conteudos dadosa consciencia, a ouU'os conteudos naodadas. e reenviar esses outros comeudosde maneira compreensiva. ASSinldescrita,a inrencionalidade sera equivalente ao"enomeno da "expressao". Existe "inten-cionalidade" sempre que, atraves de urndado. n6 ''visamos'' alga nao dado, ~~
~ pre que uma certa presenc;:a "exprinlli"50 uma dererrninada ausencia. Por isso, sera~ preferfYel falar no plural: serao varias as;- -intencionalldades" em Husser!, situadas~ en1 distimos pianos da expel:;encia e des-= coberras em diferentes nlveis da analise.~ 0 primeiro modelo de intencionalida-~ de que Husser! concebera para elucidar a~ no vida perceptiva sera a "intencionali-== dade de ato". Se ele apresenta a fenome-:2~ nologia como uma "descric;:ao"reflexiva e~ neutra da paisagem de nossa consciencia,
Existe intencionalidadesempre que, atraves
de Uln dado, visamosoutra coisa, sernpre
que Uilla ceriapresen~a "exprill1e'~
A •u111aausenCla
]\il0DO~ n": Do!\(AoE sera justa mente esse conceito de fe-nomeno que exigira 0 reconhecimentode OUU"asfiguras da imencionalidade. Seas sensac;:oes e os atos intencionais saohabitantes da interioridade da conscien-cia, 0 fenomeno, ao contl"ario, nao esta"em mim", mas "diante de mim". E esseconceim de fenomeno que leva Husser!a falar em uma fenomenologia, em umacelta l6gica dos fenomenos. 0 que eesse fenomeno? Ele e a apresentac;:ao deurn objeto para a consciencia. E ele quedetermina essa consciencia como sendopercepc;:ao deste objeto, a arvore, e nao
essa prinleira noc;:ao de intencionalidadeja atesta, por si s6, que na verdade eleinlplanta, nessa paisagem, urn evidenteconstruto te6rico.
Husserl simplesmente transpoe pa-ra 0 dominio da percepc;:aoos conceitos ames forjadosna analise da "representa-c;:ao". Agora, para explicitarcomo se da uma percepc;:aosimples, como aquela da ar-yore no jardim, ele dira queexiste, no interior de nossaconsciencia, urn conjunto de"sensac;:oes" ainda opacas,que par si s6s nao apontam,ainda, para nenhum objeto.Essas sensac;:oes delimitam aregiao da "sensibilidade" nosentido estrim da palavra.
A essas sensac;:oes seacrescenta 0 am propria men-te intencional. Esse ato serachama do de "apreensao" oude "noese" - termo deriva-do do nous grego, que de-signa 0 momenta especificodo "pensamento". Esse ato eo responsavel pela "doac;:aode senti do" que vai "animar"aquele conjunto de sensac;:oesopacas, fazendo com que aconsciencia se tome "direc;:ao"a um objeto transcendente, aarvore ali no jardim. Apenasgrac;:as a esse jogo entre sen-sac;:oes e ato doador de sen-tido a arvore "aparece" paraa consciencia, ja que agora aessa consciencia e oferecidourn "fenomeno" da arvore.
ARVDRE DA VIDA, detalhe do FrisoStoclet, pintado por Gustav
Klimt entre 1905 e 1909
DOA{:lO DE SENTI DO: jovem com
~
Sinal matematico de igual nasla, simbolo de sua participac;ao
. na luta pela Igualdade racial,"i '. na marcha pelos direitos civis
~ em Washington, em 1963
,,}gundO uma outra perspecti-. va. E essa variabilidade in-
" definida das "perspectivas""j sobre urn objeto que levariHusserl a apresentar 0 "fe-nomeno" como sendo urnmodo subjetivo de doa~ao,
~ ja que sempre reportado{~ a urn "ponto de vista" par-., cial e mutavel.
C2 Mas e importante levar emconta uma tese que vai influirdecisivamente na compreen-saG que Husser! tera daquiloque e 0 "objeto intencional"ao qual uma consciencia sereporta. Nenhum objeto nose dado independentementede algum modo de doa~ao.Ele nao e nada situado ao!ado do modo de doa~o eque se poderia apreenderem uma especie de intui~aosimples, quer dizer, indepen-
dente de uma perspectiva. ao existe a"coisa mesma", a coisa independente deurn ponto de vista unilateral e variavelatraves do qual ela se apresenta a alguem.Quando eu vario a minha perspectivasubjetiva sobre a arvore, 0 que obtenhoe outra perspectiva igualmente subjetivasobre e!a: nunea a arvore me sera dadasem a prisao a urn ponto de vista.
Mas se e assim, 0 que pode ser 0 obje-to intencional de uma consciencia? Se esseobjeto nao pode ser nada situado aquemou alem de seus modos subjetivos dedoa~ao, ele s6 poderi se confundir coma totalidade dos fenomenos que 0 trazema nossa presen~a. 0 objeto intencionalsera a unidade sintetica de seus multiplosmodos de doa~ao ou fenomenos. E e issoque permite a Husserl afirmar a existenciado "a priori da correla~ao" entre cons-ciencia e objeto, a certeza de que todaconsciencia e consciencia de urn objetoe, reciprocamente, de que todo objeto eobjeto para uma consciencia.
de qualquer outro. Mas nao e s6 isso. 0fenomeno determina tambem 0 modocomo 0 objeto e apresentado a conscien-cia, sob que "aspecto" ele nos e dado.
Afinal, qualquer objeto sempre nose dado em urn "modo de doa~ao" queo apresenta segundo urn aspecto parti-cular e pOI' principio varia vel. 0 que jase atesta no plano da linguagem. Assim,as expressoes "0 vencedor de Austerlitz"e "0 vencido de Waterloo" referem-se ao mesmo personagem, NapoleaoBonaparte. Mas cada uma delas 0 apre-senta segundo urn aspecto determinado,segundo urn distinto modo de doa~ao.
o mesmo acontece em nossa per-cep~ao de urn objeto qualquer. A cad amomento, e apenas urn aspecto de-terminado do objeto que vem a nossapresen~a, urn aspecto que e variave!e dependente de urn ponto de vista. Edistinto 0 modo de doa~ao que me exi-be a arvore se eu a percebo da janela oudo jardim, segundo este angulo ou se-
Investigar como 0 conhecimento epossivel, como a subjetividade, porteracesso a urn mundo de objetos, se con-fundira agora com a questao de sabercomo uma multiplicidade de fenomenospode ser a apresenta~ao, para a cons-ciencia, de urn objeto uno e identico a simesmo. Isso significa reconhecer que, seexiste intencionalidade, e porque existeo trabalho secreta de uma "sintese" queunifica os multiplos fenomenos comoapresenta~oes de urn e 0 mesmo objeto.Se a intencionalidade de Brentano parecea Husserl esteril para a filosofia, e porquee!e se limitava a repetir indefinidamenteque "toda consciencia e consciencia dealguma coisa", sem nunca investigar assinteses que, secretamente, estao toman-do possive! esse resultado final.
HORIZONTESMas tudo isso supora a delimita~ao deduas outras figuras da intencionalidade.Nos sellS Estudos psicol6gicos de 1894,Husser! opunha a "intui~ao" a "representa-~ao", opunha 0 dominio da percep~ao aodominio da expressao. E simples notar co-mo essa oposi~o e artificial e arbitciria, eem que sentido a intui~o e integralmenteurn evento da ordem da "representa~ao".
Quando percebo urn cuba, e urnde seus "aspectos" que me e dado: vejodiretamente tais ou tais lados do cubo,segundo tal angulo e ilumina~ao. Mas naotenho consciencia de perceber apenas doisrerangulos, mas sim este solido de seisfaces que e 0 cubo. Tenho consciencia doaspecto que me e efetivamente dado, mastenho consciencia tambem dos aspectosque nao me SaG dados. E apenas umaparte do objeto que me e apresentada,mas atraves desta parte eu viso 0 tado. Issosignifiea que 0 aspecto dado reenvia aosaspectos nao dados. E se e assim, existeaqui uma outra figura da intencionalidade.
Husser! a chamara de "intencionalidadedo horizonte interno". E faci questao de gsublinhar que todo objeto tern seu hori- ~zonte interno de determina~oes, que nao SsaG atualmente dadas, mas que saG visadas ~pela consciencia. 0 objeto percebido e ~habitado pOI'uma expressividade que liga ~cada urn de seus aspectos aos demais. ~Husser! dara enorrne imporrancia a essa ~intencionalidade que se situa no plano dos 2
~enomenos" e costura entre si todos osaspectos de eada objeto, fazendo com quecada urn deles reenvie aos demais. Semessa intencionalidade, nem mesmo teria-:nos consciencia de algo assim como urn~o. Se 0 aspeeto dado nao reenviasseaos aspectos nao dados, se cada aspectonao exprimisse os demais, nem teriamosurn "mundo da experiencia".
E ao lado dessa nova intencionalidadehayera ainda uma outra, a "intencionali-dade do horizonte externo" dos objetos.Quando percebo 0 cuba, eu 0 percebocomo figura sobre urn fundo. Mais ainda,eu 0 percebo sobre a mesa, mesa que estaem minha sala, sala deste predio, situadonesta cidade. 0 objeto percebido reenviaao seu entorno, ele 0 exprime e, no limi-te, e 0 "mundo" que se expoe na menor
Aleln da intencionalidadede ato, Husser! considera
a intencionalidadede horizonte intel1l0
e de hOl1zonte externodos objetos
de nossas percep;:oes. Se esse "mundo"nunca pode se transformar, efetivamente,em objeto de nossa experiencia, resta quede alguma maneira ele se exibe ou se ex-prime neste seu pequeno fragmento quee 0 objeto de nossa percep~ao atua!.
A intencionalidade do horizonte ex-terno sera vista como arqueologicamenteanterior a intencionalidade do horizonteinterno. E no solo de uma consciencia glo-bal do "mundo" que se recorta, para nos,
a consciencia de eada objeto singular. Enesse plano dos "horizontes" que Husser!situara a originalidade da analise intencio-nal. Se na analise "real" nos decompomosurn todo em suas partes constituintes, naanalise "intencional" explicitarnos os "ho-rizontes" do percebido, tudo aquilo queexiste de "potencial" no atualmente dado.
Existe uma diferen~a notavel entreessas intencionalidades de horizonte ea primeira figura de intencionalidadetratada por Husser!. Nao se trata apenasdo fato de essas intencionalidades sedesdobrarem seja no plano dos "feno-menos", seja no plano dos "objetos",enquanto a primeira era urn evento dainterioridade da consciencia. Se a pri-meira figura era chamada de "intencio-nalidade de ato", e porque ela envolvia
um trabalho da consClencia, uma ativadoar;:ao de sentido. As intencionalidadesde horizonte, ao contrario, nao parecemenvolver qualquer atividade expressada consciencia. Tudo se passa como seelas operassem espontaneamente dian-te de um eu passivo, assim como umcorar;:ao que bate.
Sendo assim, as intencionalidades dehorizonte apontam para a existencia deuma expressividade inscrita na nossa ex-periencia perceptiva, que trabalha semnenhuma doar;:ao de sentido operadapor um sujeito ativo. Em nossa expe-riencia detiva, 0 lado dado do cubo re-envia aos lados nao dados, cada objetoreenvia a sua circunvizinhanr;:a e enfime 0 "mundo" que se exprime em cadapercepr;:ao. Como compreender essa ex-pressividade desde sempre ja dada?
CONSC !\ie.. )0 TEMPeHusser! pensara encontrar sua chave nanossa "consciencia do tempo". Comosera tambem no plano da temporalidadeque ele situara a raiz daquela "sintese"
encarregada de unificar uma multiplici-dade de fen6menos como sendo a apre-sentar;:ao, para a consciencia, de um e 0
mesmo objeto. E esse passo nos levaraa novas figuras da intencionalidade, doreenvio do dado ao nao dado, da ex-pressao do ausente no presente.
A fenomenologia nao trata do tem-po "objetivo", aquele sobre 0 qual 0
fisico se debrur;:a. Ela investiga a tem-poralidade interna a nossa conscien-cia, aquela em que transcorre a nossaexperiencia de um objeto temporal,como na experiencia de um som quedura. E bastante comum, na hist6riada filosofia, encontrarmos 0 temporepresentado como sendo uma suces-saG de instantes descontinuos, umasucessao de "presentes". Era assim queDescartes, por exemplo, compreendia 0
tempo. Husserl considera essa imagemuma abstrar;:ao sem qualquer relar;:aocom nossa experiencia efetiva.
Se 0 tempo fosse essa sucessao deinstantes descontinuos, seria impossive!ouvir uma melodia. Quando temos a
experiencia de um som que dura, temosconsciencia do momento "presente",mas tambem do passado imediato e dofuturo pr6xinlO, sem 0 que a me!odianem seria experimentada por n6s comoum objeto que dura. 0 essencial emnossa experiencia do tempo nao e a abs-trar;:ao do "instante", mas sim aquilo queHusser! chamara de "presente vivo". Eleja envolve uma celta extensao temporal,indui, alem do "agora", um "passadoimediato" e um "futuro pr6ximo".
No interior desse presente vivo, 0
momenta temporal do "agora" reenviaa urn passado imediato que nao estamais "presente", assim como a um futuropr6ximo que ainda nao chegou. Aqui, no-vamente, atraves do dado visamos 0 naodado. 1550 significa que nossa conscienciado tempo e costurada pelo trabalho deduas intencionalidades originais. Husser!chamara de "retenr;:ao"a intencionalidadepela qual 0 passado imediato esta "quase ,~presente" a minha consciencia. E de "pro- g
. '"tensao" a intencionalidade grar;:as a qual iEeu me di.rijo ao futuro pr6ximo. ~
Reten<,;ao e protensao nao SaG atosda consciencia. E passivamente, semqualquer atividade de um eu, que 0
presente se liga ao passado imediato eao futuro proximo. Assim, a reten<,;aonao se confunde com a memoria. Esta eo ato deliberado em que um sujeito ati-'"0 evoca um passado revolto. Quandoou<';oa melodia, nao e preciso qualquerato meu para que minha consciencia dopresente retenha 0 momento temporalpassado e aponte para 0 futuro.
Quando um "agora" decai no pas-ado, gra<,;asa reten<,;ao ele permanece
,"isado por mim, atraves de novo agoraque tomou 0 seu lugar. Ele esta "quasepresente" ali, mas atraves de um outromodo de doa<,;ao.E um "fenomeno" doantigo "agora" que permanece "retido"no novo presente. E como 0 momentatemporal clo "agora" e entendiclo porHusser! como um limite ideal, como 0
ponto de interse<,;ao entre a serie dasreten<,;oes e a serie das protensoes, elenao sera na verda de um "dado fenome-nologico". Nossa experiencia do presen-te e sempre a experiencia cle um celtopassado, 0 som que dura e a unidadeintetica dos multiplos moclos de doa-
<,;aoque 0 apresentam a nos.E na consciencia do tempo que
Husser! termina a sua "arqueologia".Entender a intencionalidade e verificar
Segundo afenOillenologia,a consciencia dotenlpo conduz anovas figuras daintencionalidade,
a expressao doausente no presente
como pode existir, para nos, a estrutu-ra "sentido", 0 reenvio compreensivodo dado ao nao dado. Se nossa ex-periencia e tecida por uma expressivi-clade, se existem as intencionalidadesde horizonte, se 0 aspecto dado docubo exprime os aspectos nao dados, secada objeto que percebo expoe 0 "mun-do" do qual ele faz parte, no limite,e gra<,;as a estlUtura de nossa consci-encia do tempo. Se para nos 0 ciadoremete ao nao dado e 0 exprime, e por-que nossa consciencia do tempo e talque, nela, 0 presente sempre exprime 0
passado e 0 futuroE ate este plano que se precisa re-
gredir para compreender como nossaconsciencia e sempre consciencia cle umobjeto, como nossa subjetividade po deter acesso a um munclo transcendente.E se compreender isso envolve desco-
Edmund Husserl tornou-seprofessor da Universidadede Freiburg em 1916. Ao seaposentar, em 1928,foi sucedido por seu ex-aluno Martin Heidegger,a quem considerava seuherdeiro. Husserl continuoua desenvolver pesquisasna Universidade, ate quea ascensao de Hitler ao poder,em 1933, calou a sua voz.Devido a ascendencia judaica,o filosofo foi afastado e teveproibido 0 aCSiSsoa bibliotecada Universidadej coube
a Heidegger, membro dopartido nazista, comunicarao antigo mestre a decisao.
Ainda assim, respeitadointernacionalmente comourn dos mais importantesintelectuais de seu tempo,Husserl teve oportunidade derealizar, em 1935, conferenciasem Viena e depois emPraga, rompendo 0 cordaode isolamento imposto pelonazismo. Uma dessas palestrasdeu origem a seu ultimo texto,de 1936, intitulado A crisedas ciencias europeias e a
brir qual e a "sintese" que unifica osmultiplos fen6menos como apre-senta-<,;oes de um objeto identico, Husser!a localizara na propria sintese dotempo, naquela sintese "passiva" queunifica os diferentes momentos tempo-rais em um so tempo.
No decorrer de sua vida, progres-sivamente Husser! silencia sobre a pri-meira Figura de intencionalidade por eledescoberta, a "intencionalidade de ato".Nao que ele a renegue. Simplesmente,nao se volta mais a esse assunto. Ele sepreocupara sobretudo em explicitar 0
fundamento temporal das intenciona-lidades de horizonte. E este e um dosangulos para entender 0 prestigio quea "temporalidade" adquire na filosofiacontemporanea. Nao e pouca gl6ria serpromo vida a lUtima instancia gra<,;as aqual existe, para nos, a estrutura "sen-tido", a "expressao", 0 reenvio de umacoisa a outra coisa .•
mLMjaljli:i$ijdii~!!1ml@ Le developpement de I'intentionnalite dans la
phenomenologie husserlienne. Denise Souche-Dagues. M. Nijhoff, 1972.
•• Husserlian meditations. Robert Sokolowski.Northwestern University Press, 1974.
'" Husserl et la naissance de la phenomenologie.Jean-Frangois Lavigne. PUF, 2005.
fenomenologia transcendental.Em 1937, a doenc;:atornou
impossivel a continuidadede seu trabalho intelectual.Husserl passou a expressaruma preocupac;:aoconstante:"Vivi como filosofo", repetia,"quero morrer como filosofo."Ele morreu em 1938. No anaseguinte, seus manuscritosforam transferidosclandestinamente para aBelgica. Dois anos depois,Heidegger retirou, da segundaedic;:aode sua obra 5er etempo, a dedicatoria a Husser!.