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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM IMAGEM E SOM LILA SILVA FOSTER FILMES DOMÉSTICOS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO ACERVO DA CINEMATECA BRASILEIRA SÃO CARLOS 2010
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May 06, 2023

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM IMAGEM E SOM

LILA SILVA FOSTER

FILMES DOMÉSTICOS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO ACERVO DA CINEMATECA BRASILEIRA

SÃO CARLOS 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM IMAGEM E SOM

LILA SILVA FOSTER

FILMES DOMÉSTICOS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO ACERVO DA CINEMATECA BRASILEIRA

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, na linha História e Políticas do Audiovisual, para obtenção do título de mestre em Imagem e Som. Orientação: Prof. Dra. Luciana Sá Leitão Corrêa de Araújo

SÃO CARLOS 2010

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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar

F754fd

Foster, Lila Silva. Filmes domésticos : uma abordagem a partir do acervo da Cinemateca Brasileira / Lila Silva Foster. -- São Carlos : UFSCar, 2010. 133 f. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São Carlos, 2010. 1. Cinema. 2. Filme cinematográfico - conservação e armazenamento. 3. Cinemateca Brasileira. 4. Cinema amador. 5. Cinema brasileiro - história. I. Título. CDD: 791.43 (20a)

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FOLHA DE APROVACAO

LILA SILVA FOSTER

FILMES DOMESTICOS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO ACERVO DA CINEMATECA BRASILEIRA

Dissertaqio apresentada ao Programa de P6s-Graduaqio, para obtenqio do titulo de mestre em Imagem e Som. Area de concentraqiio: Imagem e Som.

Universidade Federal de Siio Carlos. Sio Carlos, 20 de janeiro de 2010.

Orientador(a): &.-4 /&+a Profa. Dra. Luciana Ssi Leitiio CorrCa de Ara$jo UFSCar

Examinador(a): Prof. Dr. Carlos Roberto de Souza Cinemateca Brasileira

Examinador(a): -F- - a Prof. Dr. Arthur Autran Franco de Sii Neto UFSCar

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À nova geração de preservacionistas audiovisuais

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Luciana Corrêa de Araújo pela empolgação, leitura atenta, orientação tranquila e por entender que o amor pelo cinema não é um só e que por isso pode ser extremamente dispersivo; aos professores do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, Arthur Autran e Samuel Paiva, pelos debates dentro e fora da sala de aula; a Carlos Roberto de Souza pelos comentários durante o exame de qualificação e por ter me dado mais confiança em minhas elucubrações sobre a Cinemateca Brasileira; a Felipe Rossit pela atenção e ajuda nos trâmites burocráticos. A todos os funcionários, colaboradores e estagiários da Cinemateca Brasileira que me ajudaram nesse percurso; devo a eles toda a felicidade proporcionada por este trabalho. Aos meus parceiros de Catalogação Claudio Piovesan, José Francisco Mattos, Maria Teresa Silva, Fabio Kawano e Tereza Ruiz; sem eles esse trabalho não seria possível e nem faria sentido. Aos dois últimos, agradeço especialmente pela ajuda técnica e intelectual durante o processo de pesquisa. À revisão empolgante, amizade e proteção de Nira Foster e Laura Mansur; ao meu novo amigo Leonardo Rossato pela hospedagem e cumplicidade, sem ele as idas para São Carlos seriam bem mais cansativas; aos meus parceiros de Cinética, Cléber Eduardo, Ilana Feldman, Francis Vogner dos Reis, Leonardo Mecchi e Eduardo Valente, pela ajuda constante nos meandros da escrita e por sempre me darem o que pensar. Ao meu companheiro Eduardo Campello por me fazer entender que ciência, método e paixão pelo conhecimento podem andar no mesmo passo. Finalmente, a todos aqueles que me contaram histórias sobre os seus filmes de família (em especial, Isabel Vasconcellos) ou que ficaram horas comigo discutindo sobre o passado, o presente e o futuro da Cinemateca Brasileira com fervor, paixão, grandes doses de angústia e sonho. A todos, muito obrigada.

O presente trabalho contou com o apoio financeiro da Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

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RESUMO

A Cinemateca Brasileira, o maior arquivo de filmes do Brasil, há anos armazena, cataloga e

conserva uma parcela de filmes brasileiros que chegou até o nosso tempo. Para que a

preservação de um filme seja realizada de forma plena, no entanto, é necessário que ele possa

existir para além do arquivo e que possa ser acessado pelo público geral e pelo público

especializado. Muitos filmes e coleções atingem a sua preservação plena, outros ficam

armazenados sem terem uma circulação adequada; este é o caso do acervo de filmes

domésticos. A presente pesquisa tem por objetivo a valorização deste acervo através da sua

descrição física e de uma investigação sobre o seu conteúdo. Neste processo será descrito o

trabalho de catalogação atualmente em prática na Cinemateca Brasileira e as particularidades

do trato informacional com os filmes domésticos e, a partir desta investigação, serão

propostos métodos de trabalho e análise para esta coleção específica. Em um espectro mais

amplo, informações históricas e discussões conceituais sobre a formação do campo amador e

do cinema na esfera doméstica, as especificidades da produção na esfera privada e as colunas

de amadores da revista Cinearte complementarão o trabalho de catalogação da Cinemateca

Brasileira.

Palavras-Chave: Filmes domésticos. Preservação de filmes. Cinemateca Brasileira. Cinema amador. História do cinema brasileiro.

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ABSTRACT

Cinemateca Brasileira, the largest film archive in Brazil, for years has stored, catalogued and

conserved a large number of Brazilian films that have survived to the present day. But in

order for a film to be thoroughly preserved it needs to be known by both the general public

and specialized audiences. Some collections manage to be fully preserved while others remain

stored without the adequate circulation: this is the case of the home movies collection. The

aim of the current research is the valorization of this collection through its physical

description and the investigation about its content. Throughout this process, the cataloguing

procedures currently in practice at the archive and the specificities of the collection of home

movies regarding its informational status will be described. From this investigation specific

work methods and forms of analysis will be proposed. In a broader perspective, historical

background and conceptual discussions about the formation of the amateur field, the use of

cinema in the domestic realm, the production of images in the private domain and the amateur

cinema columns of the magazine Cinearte will add to the cataloguing procedures of

Cinemateca Brasileira.

Keywords: Home movies. Film preservation. Cinemateca Brasileira. Amateur Cinema. Brazilian Cinema History.

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SUMÁRIO 

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 8  O primeiro contato: os filmes domésticos da Cinemateca Brasileira............................... 8 O filme doméstico na história do cinema e a bibliografia especializada ....................... 12  1. FILMES DOMÉSTICOS: O ACERVO, O FILME DE FAMÍLIA E O MAPEAMENTO DO CAMPO AMADOR ................................................................ 17  1.1. Descrição do acervo ................................................................................................ 17 1.2. A família como tema da fotografia e do cinema: emoção e memória..................... 27 1.3. A indústria, a democratização dos equipamentos e a formação do campo amador 33 1.4. O cinema brasileiro e o conceito de amadorismo.................................................... 42  2. MÉTODOS DE TRABALHO E PROPOSTAS DE ANÁLISE ........................... 54  2.1. O método de trabalho da Cinemateca Brasileira: um breve percurso ..................... 54 2.2. O caso dos filmes domésticos.................................................................................. 61 2.3. Propostas de catalogação e análise .......................................................................... 70  3. ANÁLISES: UM IDEAL DE PERCURSO ............................................................ 77  3.1. Fichas de Análise: a primeira realidade................................................................... 79 

3.1.1. Reminicências – Aristides Junqueira............................................................ 79 3.1.2. Família Alves de Lima ................................................................................. 88 3.1.3. Família Vasconcellos.................................................................................... 97 

3.2. Duas idéias sobre o passado: a segunda realidade................................................ 104 3.2.1. O filme de família em dois tempos: Reminicências e Recordar é viver ... 105 3.2.2. Um retrato da elite em positivo ................................................................. 113 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 121  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E BIBLIOGRAFIA................................... 127 

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INTRODUÇÃO

O primeiro contato: os filmes domésticos da Cinemateca Brasileira

A lida em um arquivo de filmes nem sempre permite que o arquivista audiovisual

tome um passo para trás e reflita sobre os procedimentos, metodologias e recortes implícitos

em seu trabalho cotidiano. O presente trabalho tem origem na constatação, durante o período

em que trabalhei no setor de Catalogação da Cinemateca Brasileira, de que uma parcela de

filmes incorporados, aqueles definidos institucionalmente como filmes domésticos, não

recebia o mesmo tratamento informacional que outros materiais como curtas-metragens,

longas-metragens e cinejornais. O parâmetro para a identificação deste desnível é a presença

de somente 117 registros na base de dados Filmografia Brasileira, aberta e disponível na

internet para pesquisadores e consulentes, em comparação com os 1.662 materiais

incorporados ao acervo da instituição, presentes na base de controle interno dos materiais

(TRF) e, portanto, não acessível para o público externo.

O ritmo intenso de trabalho, que deve equilibrar a inconstância dos recursos para

manutenção de equipes que possam catalogar e documentar os mais diversos acervos é o que

explica, numa primeira instância, o resultado desta disparidade. Diante das restrições, é

natural que escolhas sejam feitas e que elas sirvam como termômetros do que a sociedade ou

o campo cinematográfico – incluindo realizadores, críticos, técnicos, pesquisadores e

arquivistas – compreende como mais importante. Como um sensor, a invisibilidade dos filmes

domésticos na Cinemateca Brasileira indica algo que não pode ser encarado como uma atitude

isolada ou até mesmo surpreendente.

O escopo do presente trabalho parte de uma instância bem delimitada: o acervo de

filmes domésticos da Cinemateca Brasileira. O contato com os lotes depositados – as imagens

analisadas em mesa enroladeira, as tentativas de datação através das marcas de borda, as

informações coletadas por anotações dos depositantes, as caixas que trazem os pequenos rolos

em 16mm, cheias de rabiscos, anotações, rastros das famílias e dos lugares captados – já é o

suficiente para identificar a sua particularidade. Existe sim uma sensação diferente em lidar

com imagens que mais parecem rastros: enquadramentos instáveis, um filho que aparece de

fralda em um rolo e no seguinte já está andando, meio inseguro, numa praia paulista, uma

mulher que lê o jornal, uma animação improvisada, um dia na escola, uma viagem de carro

pelas curvas de uma estrada. Observamos à distância, mas muitas vezes em um Kodachrome

muito forte, vivo e colorido, algo que só pode ser definido como um mistério.

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Mistério porque não é exatamente do cinema que estamos tratando, mistério porque

poucas informações existem sobre as famílias depositantes, mistério porque nos falta

instrumentos para entendermos o que foge ao habitual, seja na rotina de trabalho, seja do que

é discutido nos meios acadêmicos. Funcionando como um álbum de família em movimento,

importa a muitos desses registros perpetuarem a memória. Algo que não é muito diferente da

missão de um arquivo de filmes: preservar, zelar pela existência de registros que possam ser

vistos, analisados e projetados em um futuro próximo ou distante.

A circulação desses materiais, ao contrário dos filmes de ficção, cinejornais ou

documentários, certamente é muito mais restrita e limitada. Circunscritas pelo âmbito

familiar, pais orgulhosos filmaram uma festa em família, essas imagens foram projetadas após

um almoço de domingo, algum tempo depois foram guardadas por uma mãe ou uma filha

mais zelosa e, diante da sua aparente inutilidade (afinal, projetores deixam de existir), são

transferidas da película para outra mídia mais acessível. As imagens retornam num outro

tempo, para familiares mais distantes, mas com um mesmo sentido: a rememoração de uma

história familiar, a presentificação na imagem dos parentes já envelhecidos ou até mesmo

mortos. A dimensão onírica e fantasmagórica da fotografia, e o poder que ela exerce, é

ressaltada por Susan Sontag e, neste sentido, a fotografia e a imagem em movimento não se

distanciam.

A exemplo dos parentes e amigos mortos, preservados no álbum de família, cuja presença em fotos exorciza uma parte da angústia e do remorso inspirados por seu desaparecimento, as fotos dos arrabaldes agora devastados, das regiões rurais desfiguradas e arrasadas, suprem nossa relação portátil com o passado. Uma foto é tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência. Como o fogo da lareira num quarto, as fotos – sobretudo as de pessoas, de paisagens distantes e de cidades remotas, do passado desaparecido – são estímulos para o sonho (SONTAG: 2004, p.26).

Mesmo que a dimensão emocional e onírica da imagem não escape ao

pesquisador/catalogador, esses objetos, a partir do momento que chegam a uma instituição

pública, se abrem para os nossos olhos com outro estatuto: existe a transferência de uma

memória familiar para uma memória coletiva.

De témoignage de cette vie de famille limité à l’usage des intimes, le film de famille prend une autre valeur. De témoignage de cette vie de famille précise, de ‘garant de l’instituition familiale’, de souvenir de famille limité à l’usage des intimes, le film de famille acquiert un tout autre statut: il tombe dans le domaine public e devient alors un document à caractére spécifique, un témoignage sur un certain aspect du quotidien d’une époque. D’objet de

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famille, il devient fragment de la memóire collective. Il témoigne maintenant de ce qu’étaient ces autres temps, ces autres moeurs, ces autres vies (De KUPYER: 1995, p.13).

É exatamente nesta transposição que se torna mais evidente a ausência de instrumentos

para analisar este objeto de caráter específico. Afinal, como lidar com o filme doméstico

como documento ou como suporte de informação? Como compreender a produção dessas

imagens em um contexto mais amplo, aquele que considera a disseminação da prática do

registro fotográfico ou da imagem em movimento? Como estabelecer ligações ou rupturas

com a produção cinematográfica corrente? Como compreender essas imagens que não se

encaixam em gêneros como a ficção ou o documentário?

A existência do filme doméstico inevitavelmente cristaliza uma falta. A presente

dissertação se configura como uma tentativa de lidar com esse “objeto novo”, principalmente

para torná-lo mais visível dentro do arquivo e, posteriormente, para historiadores de cinema e

pesquisadores em geral. Ela se dará justamente nesta zona de entrecruzamento sintetizado

pela figura do pesquisador-arquivista. A partir da análise do acervo de filmes domésticos e da

prática de catalogação da Cinemateca Brasileira visarei estabelecer definições e problematizar

outras. O que é afinal um filme doméstico? O que a prática no arquivo estabelece como

critérios para a classificação dos filmes? Qual é a política institucional em relação ao acervo?

Tanto no âmbito teórico como no prático, serão exigidas do pesquisador novas posturas e

perspectivas.

Deve ser ressaltado que o próprio movimento deste trabalho é devedor do forte

amadurecimento da Cinemateca Brasileira na disponibilização de informações para o público

interno e externo, além de encontrar ressonância em um movimento mais geral, seja da

história ou da história do cinema, de lidar com outros temas, fontes e perspectivas: aqui, o

arquivo atua como personagem central. Muitas questões serão tateadas superficialmente, mas

sua menção será importante para o objetivo destacado: este pequeno acervo se mostrou

excessivamente rico em imagens, questões e possibilidades. Mesmo que o escopo do trabalho

não permita tal aprofundamento, também devemos reconhecer o filme doméstico como uma

manifestação dentre as várias manifestações do universo do cinema amador. Surgindo como

um fator complicador, o conceito de amadorismo, de natureza extremamente volátil e

circunstancial, será importante no momento de análise de filmes específicos.

Os limites, no entanto, são claros: os filmes a serem analisados estão sob a guarda da

Cinemateca Brasileira. No decorrer da dissertação, será feita uma escolha por um tipo de

produção: filmes produzidos em ambientes familiares, definidos aqui como filme de família.

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Seja sobre os eventos rituais como casamentos e batizados, ou os mais espontâneos de pais

acompanhando o crescimento dos filhos, os filmes nos arrebatam pelo único critério capaz de

uni-los: independentemente da qualidade do registro, o que importa é a captação de momentos

felizes em família. A dimensão emocional insere o filme de família na história da cultura e na

necessidade de preservar o presente como relíquia de afeto e rememoração.

Sendo o filme de família muito próximo do álbum de fotos, as relações entre cinema e

fotografia se mostrarão, ao longo da pesquisa, mais conectadas do que poderíamos imaginar.

A proximidade se dá tanto no percurso do desenvolvimento de equipamentos, o cinema quase

como um aperfeiçoamento da fotografia, a cultura do amadorismo que une fotógrafos e

cinegrafistas, o comércio de equipamentos e as revista especializadas, assim como na

especificidade do uso de fontes não-textuais como objetos para a história. Além do exercício

da fotografia no âmbito doméstico e do filme de família ser muito semelhante, a literatura de

historiadores que utilizam a fotografia como fonte histórica (LE GOFF: 1976; MAUAD:

1996; KOSSOY: 2009; CAMARGO: 1992; LEITE: 2001) será de extrema importância.

A análise deste tipo de produção nos remeterá, portanto, a duas instâncias temporais.

A primeira é compreender o conjunto de fatores que incentivaram a produção dessas imagens

no período. Importará, nesse registro, a biografia do cinegrafista e da família e as condições

de produção na época, incluindo referências da historiografia do cinema brasileiro. Na esfera

do filme doméstico o comércio de equipamentos e a publicidade também serão fontes

importantes para a compreensão do imaginário da época e o conjunto de expectativas em

relação ao cinema, pois a produção amadora se encontra tão inserida na indústria quanto o

filme de ficção.

A segunda instância temporal será o olhar do pesquisador, distante no tempo e

emocionalmente desvinculado das imagens. Quais são as possibilidades de compreensão e

análise dos filmes? Quais são as dificuldades impostas por uma natureza particular? Como

datar, identificar pessoas e lugares? O trabalho aqui será mais concentrado nos procedimentos

de catalogação e nos métodos de trabalho – a história dos materiais dentro do arquivo,

condições de chegada e nível de informações disponíveis – para, em um segundo momento,

proceder à análise das formas de expressão dos filmes.

Questões de método também serão centrais. Os métodos de catalogação aplicados na

Cinemateca Brasileira, cujos princípios estão expostos no Manual de Catalogação, serão a

base para o estabelecimento de propostas específicas para o trato com os filmes domésticos.

Uma das particularidades dos filmes depositados por famílias é o fato de não existirem fontes

secundárias de informação. A família funciona como fonte única para a complementação de

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informações como data de filmagem, pessoas, lugares, eventos. O momento do depósito se

torna central para que informações importantes não se percam, o que de alguma forma

compromete as possibilidades de leitura das imagens.

Apesar do excesso, um objetivo dessa dissertação deve ser destacado: todo o trabalho

teórico tem como meta a realização da análise de filmes específicos, tanto na sua dimensão

documental como na sua estética particular.

O trabalho está divido em quatro capítulos:

1. Filmes domésticos: o acervo, o filme de família e o mapeamento do campo

amador;

2. Métodos de trabalho e propostas de análise;

3. Análises: um ideal de percurso;

4. Considerações finais.

Cabe agora elencarmos algumas das questões desenvolvidas pela bibliografia

específica e que permearão o trabalho realizado.

O filme doméstico na história do cinema e a bibliografia especializada

Lidar com a amplitude desta ausência, principalmente no Brasil, foi o primeiro desafio

do presente trabalho. Patricia Zimmermann (1995; 2008) e Roger Odin (1995), autores que se

dedicaram nos últimos anos à pesquisa sobre filmes domésticos, ressaltam a pouca atenção

recebida pelo tema diante da renovação, ainda em curso, nos estudos cinematográficos. O

amadurecimento dos arquivos, o aperfeiçoamento dos métodos de pesquisa, o crescimento dos

estudos historiográficos no campo do cinema e as mudanças nas perspectivas teóricas, todos

esses fatores incentivaram o maior interesse por outras fontes e temas de pesquisa. Este é o

caso, por exemplo, do crescente interesse pelo cinema silencioso no mundo e no Brasil. A

sobrevivência dos filmes do período, garantida pelo trabalho de muitos arquivos através das

décadas, a informatização de base de dados e o aumento do acesso aos materiais nos últimos

anos, foram fatores que contribuíram para esta renovação (GAUDREAULT: 2008).

Este não foi o caso com o cinema amador e os filmes domésticos. A bibliografia sobre

o tema, escassa se compararmos aos outros recortes, examina esta ausência e busca

estabelecer eixos de análise e discussões acerca da natureza dessa produção, sempre definida

em termos de oposição ao cinema que domina o imaginário social, e por que não,

historiográfico. Ao tentar responder à indagação “Why home movies?”, Patricia

Zimmermann, afirma:

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This innocent query suggests a web of misconceptions and dispossessions. Although the evolution of home movies and amateur film has paralleled the historical trajectory of commercial film since 1895, and despite the pervasive use of home filmmaking technologies since the mid-1920s, home movies too often have been perceived as simply an irrelevant pastime or nostalgic mementos of the past, or dismissed as insignificant byproducts of consumer technology. In the popular imaginary, home movies are often defined by negation: noncommercial, nonprofessional, unnecessary (ZIMMERMANN: 2008, p.1).

Publicado há apenas um ano, Mining the home movies: excavations in histories and

memories, organizado por Patricia Zimmermann e Karen L. Ishizuka, sintetiza e agrupa

produções derivadas da valorização do cinema amador e do filme doméstico. O envolvimento

de arquivos, historiadores e artistas se faz evidente pelos textos, mas também pela produção e

engajamento em outras instâncias, seja na produção de documentários e filmes ou na

consolidação de organizações especializadas. É o caso, por exemplo, do Small

Gauge/Amateur Film Interest Group da AMIA – The Association of Moving Image Archivists,

força tarefa dedicada às bitolas tornadas obsoletas vinculadas à produção amadora (9.5mm,

8mm). O grupo organizou e publicou no site da instituição uma extensa bibliografia sobre o

assunto.

O Orphan Film Symposium, encontro bienal realizado no departamento de cinema da

Universidade de Nova Iorque (NYU) realiza debates e projeções de filmes órfãos (orphan

films), definidos como filmes fora do circuito comercial como cinejornais, filmes domésticos,

filmes educativos, a produção amadora experimental e filmes abandonados que não possuem

referência de propriedade ou detenção de direitos legais.

O mais impressionante é a criação em 1996, pelo Congresso Nacional Americano, da

National Film Preservation Foundation, que sedimenta o reconhecimento do poder público

diante da especificidade de tais produções. Vinculada à Library of Congress, essa instituição

sem fins lucrativos se dedica à disponibilização de recursos e expertise para pequenos

arquivos e coleções para restauro de filmes que não se beneficiavam do movimento mais

amplo de preservação, os filmes esquecidos ou orphan films.

Patricia Zimmermann também publicou, em 1995, Reel families: a social history of

amateur film, no qual ela destrincha a relação entre a indústria, o desenvolvimento dos bens

de consumo para o público amador e o imaginário social que envolve o uso do cinema como

lazer e espaço de profissionalização. Antes de separar o filme doméstico e o cinema amador

do cinema profissional e dominante, ela compreende a retroalimentação entre as duas esferas.

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Reel families argues that amateur film enacts continually realigning social relations and discursive presuppositions–relations functioning in a complex dynamic to professional filmmaking. Thus, not only do economic, aesthetic, political and familial power relations construct the category of amateur film but a negative, compensatory relation to professional film also inscribes its discourse. Historically, amateur film’s trajectory transformed from an economic to a social category: from a participation in entrepreneurial myths to a popularization of professional equipment as consumer items and, finally, to a professionalization of leisure time (ZIMMERMANN: 1995, p.xii).

A obra da autora foi de fundamental importância para ampliar o horizonte de análise

da produção doméstica. O contato inicial com as imagens traz de imediato a sua relação

emocional, de um fragmento de uma história familiar. No entanto, é fundamental

compreendermos o acesso desses produtores aos equipamentos, às técnicas de revelação, à

matéria-prima (como filme virgem) e a relação com esta indústria especializada. É preciso

indagarmos em que medida o imaginário social engendrado pela divisão profissional vs.

amador, explícito pela segmentação do mercado, é capaz de circunscrever e incentivar certas

formas de representação. No caso brasileiro, isso se torna evidente nos anúncios publicitários

da revista Cinearte, que também publicava a coluna “Cinema de Amadores” de Sérgio

Barreto Filho.

Reel families deixa clara a importância do desenvolvimento tecnológico, assunto que

parece predominar na literatura inicial sobre o cinema amador. Configurando-se como um

eixo da pesquisa histórica sobre o tema (ODIN: 2001), a história dos equipamentos e da

tecnologia desenvolvida para o uso do cinema na esfera doméstica ao longo do tempo se

mistura à disseminação de manuais técnicos e aos livros didáticos direcionados para cineastas

amadores. É comum encontrarmos manuais didáticos, muitas vezes editados pelos próprios

fabricantes de equipamentos, com dicas sobre como construir narrativas, organizar as imagens

captadas da família assim como dicas técnicas (fotometria, técnicas de revelação, novos

equipamentos). Essa literatura também ressalta que o cinema doméstico incluía máquinas de

projeção, aluguéis de títulos e aperfeiçoamento de películas e técnicas de revelação. Uma das

obras mais importantes neste âmbito é Home movies: a history of the american industry,

1897-1979 de Alan Katelle, publicado em 2000.

O mesmo autor publicou anteriormente, em The Journal of Film and Video, na edição

no.38 dedicada ao cinema amador e ao filme doméstico, “The evolution of amateur motion

picture equipment : 1895-1965”. Publicada em 1986, a coletânea de textos possui estudos de

casos, análise das relações de gênero, um estudo histórico sobre os departamentos de

marketing para o público amador na Kodak durante os anos 1920 e 1930, assim como textos

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que estabelecem relação entre os filmes amadores e as vanguardas artísticas, o movimento do

cinema vérité, a videoarte e a antropologia. Este conjunto de textos críticos, principalmente

pela variedade das abordagens e pelo momento em que foi publicado, parece ser uma das

obras críticas seminais sobre o assunto.

No campo da preservação, o Journal of Film Preservation, editado pela Fiaf –

Federação Internacional de Arquivos de Filmes, também publicou artigos sobre o cinema

amador nas edições 52 e 56, sendo que o artigo presente nesta última foi resultado de um

Simpósio da Fiaf, realizado em Cartagena entre 21 e 23 de Abril de 1997, dedicado ao cinema

amador. Os casos específicos de tratamento dos materiais dentro dos arquivos, tema também

contemplado em vários artigos de Mining the home movies, são importantes para entendermos

as vicissitudes de cada arquivo e o tratamento recebido pelos filmes de acordo com a sua

utilização. Muitos filmes domésticos são requisitados por produtores de TV e de

documentários como testemunhos visuais de regiões, cidades ou momentos históricos de

interesse para as histórias locais. Essa prática estimula arquivos privados a adquirirem os

filmes, prática nem um pouco usual nos arquivos brasileiros. O interesse comercial pelos

filmes, não só pelo que existe de histórico, mas também pelo efeito de real provocado, não

pode ser desconsiderado.

Várias outras publicações, de acordo com a bibliografia utilizada, também dedicaram

edições e artigos especializados, porém, o acesso foi dificultado por se tratarem de edições

estrangeiras sem publicação no Brasil e sem arquivos acessíveis via internet. Uma constatação

é evidente: nada foi produzido no Brasil especificamente sobre filmes domésticos.

A outra dimensão da análise do filme doméstico, aquela que versa sobre o seu papel

na manutenção de uma integridade da história familiar, permeará alguns dos textos do livro

organizado por Roger Odin, Le film de famille: usage privè, usage public. O espaço

comunicacional diferenciado, instalado pela relação próxima entre os produtores da imagem e

a sua família, desenvolvido no seu texto Le film de famille dans l’instituition familiale,

ressalta exatamente as vicissitudes desta prática amadora. Considerados mal feitos, instáveis

na sua temporalidade e desordenados, a função da imagem em movimento é, nesses filmes,

bem distinta de outras produções: “le film de famille ne raconte pas une histoire: il égrène des

bribes d’action” (ODIN: 1995, p.29). Questões sobre o seu efeito de “autenticidade” causado

no receptor próximo (a família) ou distante (o pesquisador) – efeito explorado pela ficção,

pelos cineastas experimentais e pela publicidade – ressaltarão outro tipo de imaginário social,

aquele que busca no filme de família a imagem espontânea, engendrada fora da representação

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e por isso mais verdadeira (ESQUENAZI: 1995). O efeito de “autenticidade” foi um dos

primeiros catalisadores para o início do trabalho com os filmes domésticos e ele será sempre

considerado como um eixo primordial de mobilização e interesse.

Os capítulos dedicados à metodologia e análise surgirão a partir da confluência de

todas essas vertentes. Menos do que estarem separadas, elas denotam os diversos ângulos dos

quais podemos enquadrar a produção amadora de imagens de família e, conseqüentemente, o

tipo de trabalho que pode ser empreendido pelo arquivista audiovisual. Os diversos ângulos

apontam exatamente para a parcela de invenção que configura o trabalho do arquivista.

Teóricos advindos de instituições mais tradicionais de salvaguarda de acervos pessoais –

predominantemente constituídas de papéis, documentos, diários e anotações – já destacaram a

importância do arquivista para além da manutenção material de arquivos (CERTEAU: 2002;

COOK: 1998). A recente abertura dos arquivos, fortemente influenciada pelo

desenvolvimento tecnológico e a maior facilidade de organização e disponibilização da

informação, somente acrescenta mais responsabilidade ao papel do arquivista.

Todas essas mudanças fundamentais no mundo real das organizações e dos sistemas de armazenamento de documentos têm impacto significativo sobre as tarefas e responsabilidades do arquivista. Como sua intervenção ativa nos processos de manutenção de documentos é agora exigida para que fique assegurado que as propriedades de evidência confiável existam para os documentos, como disso resulta, na base da moderna avaliação (e posterior descrição), a necessidade de que o arquivista investigue e compreenda a natureza complexa de funções, estruturas, processos e contextos, e interprete sua importância relativa, por tudo isso, a idéia tradicional da imparcialidade do arquivista não é mais aceitável – se é que algum dia foi. Os arquivistas, inevitavelmente, injetarão seus próprios valores em todas essas atividades, bem como na própria escolha que terão de fazer, nesta era de recursos limitados, sobre quais criadores, quais sistemas, quais funções, quais programas, quais atividades, quais documentos, na verdade, irão receber atenção arquivística parcial ou total e quais serão simplesmente abandonados (...) Tornaram-se, assim, construtores muito ativos da memória social. Na verdade, afirmaria até que se tornaram o principal agente de formação da memória, sem esquecer das importantes contribuições, nessa tarefa, de seus colegas de museus, bibliotecas, e cultura material (COOK: 1998, p.143-144).

Mesmo que o contexto ao qual Terry Cook se refere seja o de arquivos públicos e

institucionais que lidam com fontes escritas, a importância dada ao arquivista, e a inevitável

parcela de subjetividade e invenção na qual se assenta o seu trabalho cotidiano, permite que o

trabalho seja repensado diante das novas perspectivas históricas e das novas possibilidades de

compartilhamento e gestão de informação: este será o objetivo desta dissertação.

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1. FILMES DOMÉSTICOS: O ACERVO, O FILME DE FAMÍLIA E O

MAPEAMENTO DO CAMPO AMADOR

1.1. Descrição do acervo

É difícil precisar em que momento os filmes domésticos começaram a chegar à

Cinemateca Brasileira. O registro informatizado da data de chegada do material no arquivo só

foi estabelecido como norma nos últimos anos não permitindo um levantamento sistemático

do fluxo de entrada dos materiais. Mas o depósito de um lote parece ter sido marcante para a

identificação de tipo de filme diferenciado: os filmes de viagem e de momentos em família

depositados por Carmencita Silveira Jullien. Os filmes depositados – em 8mm, 16mm e

35mm – acompanham a trajetória da vida de Carmencita entre 1920 e 1960. O lote incluía o

título O Batismo de Carmencita, um filme de família encomendado a Gilberto Rossi em 1923,

além das imagens captadas durante a estadia da família na Europa, filmadas pela mãe

Carmem da Silveira, e os registros posteriores dos filhos de Carmencita em 8mm.

Incorporados ao acervo em novembro de 1984, uma entrevista foi realizada com a depositante

e fichas catalográficas foram elaboradas em um momento muito próximo à chegada dos

materiais.

Este período da história da instituição, momento em que finalmente a Cinemateca

Brasileira tinha uma sede no Parque da Conceição na qual os setores de incorporação,

catalogação e documentação estavam localizados em um mesmo lugar, parece ter sido

marcante para a normatização dos processos de catalogação: grande parte dos registros de

filmes domésticos, disponível na base Filmografia Brasileira, foi elaborada a partir das fichas

catalográficas deste período. O que isso indica é que o nível de informação das duas bases

utilizadas aqui como fonte de pesquisa – Tráfego (TRF) e Filmografia Brasileira (FB) –

sinaliza momentos mais favoráveis ou não para a catalogação mais aprofundada de

determinados materiais.

O acervo de filmes domésticos da Cinemateca Brasileira, de acordo com a

quantificação feita no dia 23 de Julho de 2009, é composto de 1.075 materiais em película e

1.570 incluindo os materiais em vídeo e DVD. Diante do universo geral do acervo, 78.927

registros na base TRF1, os filmes domésticos representam aproximadamente 1.6% do acervo

1 A base de tráfego (TRF), de acordo com o Manual de Catalogação de filmes “é usada para acompanhar a movimentação dos filmes, que vão dos depósitos para outras áreas dentro e fora do arquivo, seja para empréstimo, copiagem, exibição ou consulta. Cada registro se refere a um material, de modo que um mesmo

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da instituição. O número definitivamente não é significativo se comparado a outros tipos de

materiais.

Os filmes que chegam à Cinemateca Brasileira são incorporados e recebem um

número e o primeiro tratamento informacional registrado no Boletim de Entrada, documento

definido como uma certidão de nascimento (CINEMATECA BRASILEIRA: 2002, p.8). As

informações coletadas incluem dados sobre o depositante, a forma de incorporação (doação,

depósito, empréstimo, aquisição, produção e duplicação), título (original ou atribuído) e a

descrição física do material (tipo de material, bitola, cromia, metragem, grau técnico e número

de rolos). O Boletim de Entrada é posteriormente alimentado na base de dados TRF, recurso

primordial para pesquisa e coleta de dados sobre o acervo, momento este em que os filmes

também recebem uma classificação de acordo com a sua categoria: cinejornal (CJ), curta-

metragem (CM), longa-metragem (LM), publicidade (PUB) e filme doméstico (FDO)2.

Uma das primeiras classificações feitas no processo de incorporação divide os

materiais de acordo com acervos. No total, são sete categorias: preservação (PRE), nitrato

(NIT), atendimento (ATE), difusão (DIF), empréstimo (EMP), vídeo (VID) e digital (DIG).

Alguns acervos são determinados pelas suas características físicas como o acervo de nitrato, o

vídeo (VHS, Betacam, U-Matic) e o digital (Beta digital, MiniDV, DVD, etc.); outros pela

função no acervo: difusão (DIF) são cópias do acervo disponíveis para exibição; atendimento

(ATE) são materiais que chegam para prestação de serviço por parte da CB como copiagem

em outras mídias (por exemplo, telecinagem de película para Betacam) ou para orçamentos de

restauro; empréstimo (EMP) são materiais para exibição ou processamento dentro da

Cinemateca mas que não pertencem ao seu acervo. O acervo preservação (PRE) é composto

por materiais em película, incluindo todos os materiais (cópias, negativos, contratipos, copião

etc.), depositados na instituição e, portanto, sob sua salvaguarda, e que podem circular sob

condições específicas. A particularidade dessa categoria está no fato de que materiais sob essa

rubrica podem ser materiais únicos o que confere a esta categoria um status além do critério

organizacional.

título deve possuir tantas entradas quantos forem os materiais referentes a ele no arquivo” (CINEMATECA BRASILEIRA: 2002, p.40). O número de registros de filmes domésticos considera aqueles que constituem o acervo de Preservação (PRE) e o acervo em nitrato (NIT) excluindo, portanto, os filmes que chegaram à instituição para atendimento (ATE).

2 A categoria Registro (RG) foi adicionada recentemente e compreende imagens de eventos internos à instituição ou registro de eventos sem finalização. Não é possível afirmar se na prática cotidiana a categoria está sendo aplicada a filmes domésticos.

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As tabelas abaixo indicam a composição do acervo de filmes domésticos de acordo

com as seguintes categorias:

1. Tipo de acervo

ACERVO QUANTIDADE DE MATERIAIS PORCENTAGEM

PRESERVAÇÃO 1.075 68%

ATENDIMENTO 228 14,5%

NITRATO 07 0,04%

VÍDEO 169 10,7%

DIGITAL 98 6,2%

TOTAL 1.577 -

2. Bitola

BITOLAS QUANTIDADE DE MATERIAIS PORCENTAGEM

35mm 145 13,4%

16mm 669 62,2%

Super 8 187 17,3%

8mm 66 6%

9.5mm 8 0,07%

Total 1.075 -

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3. Tipo de material (acervo película)3

MATERIAL QUANTIDADE PORCENTAGEM

DPX4 (reversível de imagem) 511 48%

DPZ (reversível combinado/pista de som magnética) 6 0,05%

COZ (cópia sonora) 76 7,2%

COX (cópia de imagem) 340 32%

NOX (negativo original de imagem, maioria 35mm) 78 7,4%

NOY (negativo de som, 35mm) 12 1%

DNX (contratipo de imagem) 28 2,6%

4. Estado de conservação (legenda na página seguinte)

Grau Técnico de Conservação (GT) QUANTIDADE PORCENTAGEM 0A 10 0,09% 1A 8 0,07% 1B 425 39,5% 2B 240 22% 3C 248 23% 3Cx 48 4,4% 3Cxx 51 4,7% 3Cxxx 25 2,3%

3 Alguns registros na base de dados estão incompletos no campo referente ao tipo de material e grau técnico, gerando assim uma diferença numérica em relação ao total de materiais. Em todas as tabelas as porcentagens são aproximadas.

4 A sigla DP provém do inglês duplicate positive, ou máster em português, indicando um material positivo de segunda geração e de baixo contraste. Destinado à duplicação ou copiagem, o máster funciona como uma matriz positiva de segunda geração. O reversível será sempre uma matriz positiva e por isso se utiliza a sigla DP para o material. No entanto, o termo é improvisado já que o reversível é uma matriz positiva de primeira geração (um positivo original) que não possui as mesmas qualidades físicas e possibilidades de duplicação de um máster.

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Legenda para a tabela 4: A atribuição do Grau Técnico de Conservação (GT) se dá de acordo com o Manual de Manuseio de Películas Cinematográficas. As definições a seguir foram adaptadas a partir dos termos utilizados no Manual:

• 0A – O material está novo, não apresenta nenhum dano físico ou químico. • 1A – A emulsão e o suporte apresentam leves danos físicos visíveis na área da imagem ou som. • 1B – Há danos físicos-químicos no filme, porém de pouca intensidade ou quantidade. • 2B – Os danos físicos-químicos observados têm muita intensidade ou quantidade, deixando o material

frágil para uso. • 3C – O filme em acetato apresenta sinal de deterioração do suporte em qualquer estágio. O filme já

começa a cheirar a vinagre (ácido acético) mas ainda não apresenta nenhum outro sinal de deterioração. Nesse estágio o filme ainda é duplicável normalmente, mas o processo já se iniciou e chegar ao estágio seguinte é uma questão de tempo.

• 3Cx – Desplastificação no segundo estágio, quando o filme além de cheirar, já tem o suporte com abaulamento, encanoamento ou outra deformação física.

• 3Cxx – Desplastificação no terceiro estágio. O material fica cheio de cristais, que são partículas brancas e duras, com forma tipicamente mineral. Em geral nesse estágio a imagem já está danificada e ao se observar a película na mesa de luz percebe-se uma rede de formas geométricas sobrepostas à imagem, formando reticulação. O suporte pode perder a rigidez chegando a uma textura próxima à do papel.

• 3Cxxx – Desplastificação no quarto estágio. O material todo ou parte dele mela ou empedra. As espirais dos rolos grudam uma nas outras de tal forma que se torna impossível desenrolar a película. Algumas vezes a liberação de ácido acético é tão intensa que, somada à absorção de umidade, dissolve a emulsão, chegando a formar uma espécie de melaço no fundo da lata. A película mostra-se tão deteriorada que já está completamente perdida ou deixa dúvidas quanto à possibilidade de restauração.

A leitura da tabela 1 nos permite perceber a circulação reduzida do acervo de filmes

domésticos que não apresenta nenhum material para difusão ou exibição. Alguns dos

materiais em vídeo ou em suporte digital funcionam como cópia de pesquisa, mas a sua

produção atende à demanda externa de pesquisadores ou produtores. O acervo em nitrato é

composto por somente sete títulos, sendo que quatro deles são estrangeiros. A quantidade dos

materiais em película também indica que o filme doméstico não é preservado enquanto

expressão visual; não existe nenhum vídeo de família depositado na instituição e os materiais

em vídeo e digital são duplicações de originais em película. Neste caso, o que importa mais é

o suporte, que adquire um estatuto de raridade ou objeto de atenção, do que o conteúdo.

O acervo em película é composto predominantemente por materiais em 16mm.

Definida como amadora desde o lançamento da Ciné-Kodak, em 1923, a bitola 16mm

dominaria o comércio doméstico até a massificação do uso das bitolas 8mm e Super-8. No

mesmo período em que o 16mm começou a ser comercializado em larga escala pela Kodak, a

Pathé, cujos equipamentos eram em 9,5mm, também estava presente no mercado doméstico.

O acervo da Cinemateca Brasileira, no entanto, só possui oito materiais em 9,5mm. O 8mm e

o Super-8, lançados no mercado em 1932 e 1965 respectivamente, ambos pela Kodak, se

encontram presentes no acervo de forma extremamente reduzida. Dois motivos podem ser

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esboçados. O primeiro é o fato da instituição não dispor, até a presente data, de equipamentos

para a duplicação e reprodução de materiais neste formato, impedindo que o laboratório seja

um lugar indicado para o processamento de materiais (muitas famílias contatam a instituição

para saber da possibilidade de restauro ou duplicação dos filmes em uma mídia mais

acessível). O segundo é a distância temporal. Para os depositantes, parece existir um momento

em que os filmes domésticos deixam de ser íntimos para se tornarem relíquias

cinematográficas de interesse para os arquivos ou instâncias coletivas. Esta passagem da

esfera privada para a esfera pública só ocorre com o tempo, a morte ou a distância das pessoas

retratadas. Produzidos entre as décadas de 70 e 80, esses filmes talvez comecem a chegar com

maior freqüência nos próximos anos.

A forte presença do reversível (DPX) aponta para a popularidade deste formato. O

filme reversível, disponível somente em Super 8 e 16mm, dispensa a feitura de uma cópia

positiva a partir do negativo, economizando a película que seria usada para a geração da

cópia. Isto possibilitou o barateamento dos processos de revelação e a facilitação do uso do

filme na esfera doméstica. No processo fotoquímico denominado reversível, o filme exposto

fica em negativo, como no processo usual, mas é submetido a um banho químico que dissolve

a maioria dos sais de prata deixando intacto um resíduo de brometo de prata que, quando

exposto novamente, gera uma imagem positiva. Sendo os originais em positivo, a preservação

adequada desses materiais exige a feitura de contratipos (DNX). Alguns contratipos de

imagem existentes foram produzidos por demanda externa, como é o caso do DNX de

CASTRO MAYA. COPACABANA 1930, feito para a inclusão de imagens no filme

Copacabana (2001) de Carla Camurati, e SEGALL. LASAR JENNY MAURICIO SEGALL

– 1928, em 35mm e original em nitrato, para a produção do curta-metragem A Esperança é

Eterna (1954) de Marcos Margulies. No entanto, poucos lotes se encontram plenamente

preservados. Entre eles os filmes das famílias BREITMAN e MACHADO MOREIRA, ambos

inscritos pela Cinemateca do Capitólio e contemplados pelo Programa de Restauro – 2007, e

o lote UDIHARA, que traz imagens da colônia japonesa instalada no norte do Paraná na

década de 1950.

Os filmes que possuem negativos originais (NOX) são na sua grande maioria no

formato 35mm. O lote da família SEVERIANO RIBEIRO é o responsável por esse número.

Proprietários da produtora Atlântida e da rede de exibição Severiano Ribeiro, a família

dispunha de meios para a captação e revelação dos materiais em 35mm. Os eventos retratados

também se situam na esfera pública, e por isso mais oficiais do que espontâneos, indicam que

o público-alvo não estava restrito ao âmbito familiar.

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O número reduzido de contratipos aponta para a necessidade de uma política interna

de preservação de filmes domésticos. O estado de conservação dos materiais, de forma geral,

é um tanto alarmante. Aproximadamente 34% dos filmes já estão atacados pela síndrome do

vinagre sendo representativos os números referentes aos estados mais críticos de deterioração.

O acesso à coleção, feito basicamente através de cópias em DVD, também é extremamente

reduzido. O acervo DIG dispõe de somente 34 cópias em DVD de filmes domésticos do

acervo.

De 2007, ano em que se iniciou a presente pesquisa, até 2009 foram incorporados

aproximadamente mais de 200 rolos de filmes domésticos. Quase sempre guiado pela

necessidade e vontade de produção de cópias no formato DVD por parte dos depositantes, o

fluxo de entrada desses materiais reitera o interesse familiar mesmo com o passar dos anos e

insere os filmes em uma esfera pública restrita.

Para além das informações disponíveis na base TRF sobre os materiais depositados, o

acervo de filmes domésticos é extremamente frágil no que tange o seu estatuto jurídico e

informacional. Os registros de depositantes estão defasados dificultando o acesso às famílias

depositantes, fonte primordial de informação. Muitos títulos atribuídos no momento da

incorporação (primeiro momento da catalogação) são excessivamente genéricos e poderiam

ser mais esclarecedores acerca do conteúdo já que a maioria dos filmes domésticos não passa

pelo processo completo de catalogação. É o caso, por exemplo, dos títulos ALVES DE LIMA.

VIAGEM I, ALVES DE LIMA. VIAGEM II e ALVES DE LIMA. VIAGEM III.

Tampouco existe uma clareza quanto à possibilidade de uso dessas imagens – ricas em

informações sobre lugares, práticas sociais, eventos históricos do passado – por pesquisadores

ou por produtores interessados pois os contratos de depósito não foram realizados de forma

completa. Para o público em geral, que inclui possíveis depositantes, também não é clara a

importância desses materiais como fontes históricas e quanto ao interesse de arquivos fílmicos

por esses materiais. Também se desconhece a fragilidade da película quando não armazenada

em condições adequadas; muitos filmes chegam em um grau avançado de deterioração. Foi

uma matéria no “Fantástico” , em setembro de 2002, sobre o Censo Cinematográfico, por

exemplo, que incentivou o depósito dos filmes do médico A.C. Mattos por sua filha Marieta

Mattos. Além das cenas familiares, os filmes trazem registros da cidade de Piracicaba e da

ESALQ - Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz no começo da década de 1930,

fontes importantes para uma história regional.

A formação do acervo também se deu de maneira irregular já que é resultante da

iniciativa das famílias ou de instituições (por exemplo, Museu Castro Maya, Cinemateca do

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Capitólio, Museu Histórico Padre Carlos Weiss). Uma prospecção mais ampla permitiria que

nós identificássemos de que maneira a coleção de filmes domésticos da Cinemateca Brasileira

expressa o processo da produção de filmes de família e/ou filmes amadores no país. Diante

das dificuldades, precisamos nos indagar se estes materiais não deveriam ter contratos,

processos de incorporação específicos e uma “campanha” de valorização em torno deles,

ampliando também o acesso aos filmes para museus e universidades interessadas. Até alguns

anos atrás as famílias que depositavam os seus filmes recebiam uma cópia do material como

contrapartida do depósito. O crescimento institucional e o aumento da demanda de prestação

de serviços por parte do laboratório, no entanto, impediram que este incentivo ao depósito se

mantivesse. Mas o que aconteceria se o depósito fosse incentivado? Quais seriam as

condições de ideais de processamento de filmes e de informações?

Dos materiais depositados, a base Filmografia Brasileira nos fornece informações de

conteúdo sobre filmes domésticos de somente treze famílias. Entre 1910 e 1969, com imagens

produzidas em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Portugal, Suíça e França, os

filmes definidos como domésticos trazem semelhanças temáticas. Além dos rituais mais

marcantes como casamentos, aniversários e batizados, as imagens espontâneas das

brincadeiras infantis e os registros de viagem são também uma constante. No entanto, algo

foge dessa esfera familiar como SILVEIRA JULLIEN. TROPAS MILITARES (1930-1939)

ou UDIHARA. INAUGURAÇÃO DE PRÉDIO DO CORREIO (1949). Essas câmeras

voltadas para eventos públicos tornam o conceito de filme doméstico mais elástico, pois

ultrapassa o limite da esfera privada.

Na prática cotidiana na Cinemateca Brasileira não existe uma definição escrita que

estabeleça critérios para a classificação desses filmes, ela é muitas vezes determinada pelo

contexto de doação e incorporação. Há alguns indícios bem claros: lotes trazidos por

familiares, a bitola dos materiais (16mm ou 8mm) e a “não finalização” (filme sem montagem

ou letreiros). Outras definições, porém, podem ser problematizadas. A imagem mais antiga

preservada pela Cinemateca Brasileira é REMINICÊNCIAS, captado por Aristides Junqueira

entre os anos de 1909-1920c. A base FB não o classifica como filme doméstico mesmo que o

conteúdo das imagens seja semelhante a qualquer outro filme classificado como tal: Aristides

Junqueira pula para a câmera, familiares e amigos chegam a um casamento, crianças

fantasiadas brincam na rua e uma mãe que carrega o seu filho fantasiado de pierrot saúda a

câmera. Cinegrafista de carreira, Aristides Junqueira filmou famílias importantes como nos

filmes O PRESIDENTE DO ESTADO E SEUS FAMILIARES (1910) e A EXMA.FAMÍLIA

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BUENO BRANDÃO EM BELO HORIZONTE NO DIA 11 DE JULHO DE 1913. Os dois

últimos, contratados, são filmes de família profissionais enquanto o primeiro é claramente um

filme mais espontâneo que poderia ser definido, dependendo da perspectiva adotada, como

filme doméstico.

O termo doméstico, na verdade, traz uma ambivalência. Ele pode ser delimitado, em

linhas básicas, de acordo com a raiz da palavra domesticu: habituado em casa. A definição

traz uma dimensão espacial facilmente circunscrita: filmes feitos dentro de casa. Mas

podemos estender casa para lar e família ou tomarmos o filme feito em casa como filme

caseiro, improvisado, mal feito, o que muitos qualificariam como amador. Essa polissemia,

que ora indica o tema filmado, ora o modo de produção, permite que os filmes mais variados

sejam alocados na mesma categoria ou que filmes semelhantes sejam classificados de maneira

distinta. As classificações do acervo absorvem essa contradição.

Na base de dados Filmografia Brasileira, por exemplo, o termo FILME DOMÉSTICO

está sob a rubrica CATEGORIA complementada pelos termos CURTA-METRAGEM,

SILENCIOSO, NÃO-FICÇÃO; o gênero é definido como DOCUMENTÁRIO. Todas essas

categorias complementares estão vinculadas ao conceito de obra cinematográfica o que é

insuficiente para descrever os materiais em questão. O termo CURTA-METRAGEM descreve

a sua condição física de curta duração, porém é inadequado, pois o mesmo termo define obras

– documentais ou de ficção – e não registros sem finalização como é o caso de grande parte

do acervo

NÃO-FICÇÃO indica uma ausência de intencionalidade de constituir uma obra, o que

é um termo acertado para muitos registros. DOCUMENTÁRIO, por outro lado, infere numa

construção discursiva consciente e também possui uma forte carga como gênero constituído o

que de certa maneira o distancia dos registros na esfera doméstica. Se da recepção desses

filmes percebemos uma aproximação com a “realidade” – existe sim uma autenticidade que os

difere de outras formas de expressão cinematográfica – ela não significa a mesma

aproximação com o real do que aquela implicada no termo documentário. Alguns filmes,

principalmente aqueles que captam eventos históricos, talvez se encaixem nessa categoria.

Mas, via de regra, seria inadequado considerar a produção doméstica como

DOCUMENTÁRIO. Peter MacNamara no artigo “Amateur film as a historical Record – A

democratic history?” propõe uma interessante distinção entre esses dois formatos de registro:

The filmmaker who records the family at play on the beach, or the scenes at Aunt Marie’s wedding records the realities of location, transport, costume,

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social customs and relationships. This is not simply the distinction between creative and documentary film. The amateur is a member of a community, working within that community, recording and expressing the priorities of personal, family and community existence. The amateur filmmaker shows us the dynamic relationship between people, place and event, as does the documentary filmmaker, but also gives us insight into the mentality of the community from within. Generalizations are always dangerous, but it is reasonable to assert that the amateur filmmaker recording events has less control over the ‘scene’ than the professional, and has less interest in faking context (MacNAMARA: 1996, p.42).

Percebe-se que a primeira dificuldade na lida com os filmes domésticos é exatamente

a de compreendê-los como uma expressão cinematográfica diferente, com propósitos, formas

expressivas e utilização distinta do cinema como usualmente o compreendemos. Além disso,

a diversidade de significação dos termos – cinema amador, filme caseiro, filme doméstico,

home movies, home cinema, film de famille – condensam uma enorme complexidade. Esta

dificuldade, no entanto, é inerente aos processos de definição de fenômenos culturais ainda

pouco explorados pela historiografia. No Brasil, o estudo teórico e histórico mais detido sobre

a produção de filmes na esfera doméstica não possui um debate amadurecido sobre os

conceitos e as suas implicações históricas, sendo o ponto de partida a compreensão do senso

comum do filme doméstico como uma filmagem improvisada e tecnicamente mal feita de

eventos familiares. Mas o que dizer de filmes classificados como domésticos que

ambicionavam o rigor técnico mesmo quando filmando as suas famílias? Ou das tentativas

ficcionais pautadas pelos códigos narrativos e pelas revistas especializadas? Ou ainda de

filmes que trazem somente paisagens ou imagens de eventos públicos? Existem diferenças

entre um filme de casamento feito por um profissional ou por um membro da própria família?

Fred Camper, por exemplo, ressalta no seu artigo “Some notes on the home movies” a

dificuldade de compor uma taxonomia do campo apontando para diversas formas de

mobilização envolvidas na feitura de filmes domésticos:

It would be presumptuous to offer anything but the most preliminary taxonomies of the home movie. What is needed is first of all an archival source, in which all type and manner of home movies are collected and preserved. Then scholars could go about the work of screening, studying, evaluating (…) There are several ways of categorizing the home movie. Several forms of subject-matter commonly occur. There is the film of a special family event (…) there is the portrait of a family of the group (…) there is the travel movie, with or without family members included in the image. One can also, however, categorize the home movie by the mode the subject is depicted. There are the pseudo-narrative forms, with an editing style that often borrows from classical narrative, and devices such as intertitles…There are the unedited presentations of a subject in which filmmakers have tried to observe their subject matter with a minimum of

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interference. Equally, if not more common, are those films in which the subject, rather than ignoring the camera, actually poses for it, even to the extent of mugging or waving to the lens; the filmmaker often interacts with this subject in turn. Finally, there is the most extreme case, those films in which it seems that the subject exists only for the camera, such as the children’s party in which all the children are seen in obvious poses (CAMPER: 1986, p.10-11).

Na Cinemateca Brasileira encontramos diversos tipos de filmes domésticos. Perceber

essa variedade ressalta a necessidade de esmiuçarmos algumas questões envolvidas nessas

diferenças principalmente quando consideramos essa produção a partir do caso brasileiro. Em

linhas gerais, o acervo nos remete a inúmeras perspectivas, cada uma delas com implicações

históricas, conceituais e culturais que serão desenvolvidas de acordo com os seguintes

tópicos:

1. A família como tema da fotografia e do cinema: emoção e memória;

2. A indústria, a democratização dos equipamentos e a formação do campo amador;

3. O cinema brasileiro e o conceito de amadorismo.

1.2. A família como tema da fotografia e do cinema: emoção e memória

“Os ‘Álbuns de Família’ que eram clássicos e pesadões em cima dos panos de crochê feitos pela Nonoca quando estava no colégio, das mesinhas

delicadas das salas de visitas, ao lado daqueles grandes caracóis que as crianças punham no ouvido para ouvir as ondas do mar...passaram a ser

cinematográficas.” (Cinearte, “O desenvolvimento do Cinema de amadores do nosso Paiz”, v.3, n.144, 1928, p.17)

Numa primeira instância, definiremos o filme de família pelo recorte temático e

intencional: registrar os eventos formais e informais dentro do círculo familiar. Desde o início

do cinema, a família foi tema privilegiado como demonstra o filme O almoço do bebê dos

Irmãos Lumière ainda em 1896. A aproximação entre a fotografia e o cinema, neste caso,

situa essas duas formas de captação mecânica em um mesmo patamar, ambas funcionando

como um recorte do tempo da vida de um parente ou de um evento em família que, quando re-

apresentado em outro tempo, possui enorme poder psicológico. Essa foi uma das diretrizes do

pensamento de André Bazin no que concerne a ontologia da imagem fotográfica:

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A imagem pode ser nebulosa, descolorida, sem valor documental, mas ela provém por sua gênese da ontologia do modelo; ela é o modelo. Daí o fascínio das fotografias de álbuns. Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagóricas, quase ilegíveis, já deixaram de ser tradicionais retratos de família para se tornarem inquietante presença de vidas paralisadas em suas durações, libertas de seus destinos, não pelo sortilégio da arte, mas em virtude de uma mecânica impassível; pois a fotografia não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o subtrai à sua própria corrupção (BAZIN: 1991, p.24).

O polêmico debate em torno do conceito de realismo cinematográfico de André Bazin,

principalmente acerca da natureza objetiva da captação mecânica, não será desenvolvido aqui.

Mas o “efeito de realidade” e a capacidade de repor presenças em outro tempo e espaço não

podem ser negligenciados quando analisamos ou tentamos definir o filme de família: o álbum

e o filme de família serão os depositários mais potentes da memória familiar e da recordação

de histórias de vida. Tratamos aqui de narrativas imagéticas – uma projeção da idéia e da vida

em família expressa em imagens – o que infere numa escolha extremamente subjetiva do que

se pretende guardar e relembrar sobre determinada pessoa ou grupo, mas isso em nada retira o

fato de que tais coisas aconteceram, tais pessoas existiram e que o filme de família nos re-

apresenta fatos passados (o tempo transcorrido). Para Kossoy,

Através das fotografias reconstituímos nossas trajetórias ao longo da vida: o batismo, a primeira-comunhão, os pais e irmãos, os vizinhos, os amores e os olhares, as reuniões e realizações, as sucessivas paisagens, os filhos, os novos amigos, a cada página novos personagens aparecem, enquanto outros desaparecem das páginas do álbum e da vida. Dificilmente nos desligaremos emocionalmente dessas imagens (KOSSOY: 2001, p.107).

Afinal, como entender a recepção e o efeito de realidade causado pela imagem em

movimento e articular procedimentos de análise a partir de uma sensação? A apropriação

contemporânea desses materiais, incluindo a publicidade e as narrativas ficcionais que

emulam o estilo dos filmes domésticos, tem como força motriz o efeito de realidade, a

recepção permeada por credulidade, mistério e magia. Qual é a influência dessas sensações no

momento da análise? Essa sensação basta como definição do filme de família?

Tratando mais especificamente do tema, Jean-Pierre Esquenazi cria o termo “o efeito

filme de família” para esse espaço criado entre as imagens da intimidade e o observador

próximo (o núcleo familiar), ou distante (o espectador contemporâneo e o arquivista)

(ESQUENAZI: 1995, p.207). No seu texto “L’effet ‘film de famille’”, o autor se pergunta: o

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que mais produz essa sensação de proximidade? Existe uma estética do filme de família?

Afinal, o define um filme de família?

Esquenazi iniciará o seu esforço de definição elencando três eixos possíveis: a

condição de produção (filmes realizados no círculo familiar), o seu conteúdo (filmes que

mostram eventos de família) e a sua estética (filmes mal feitos e precários tecnicamente). Para

o autor, nenhum desses recortes responde afirmativamente ao que é o filme de família (ou

filme doméstico como comumente falamos em português) porque existem casos que

contrariam uma suposta regra. Todas essas questões pairam sobre os filmes do acervo e um

recorte temático ou estético evidentemente é insuficiente.

O texto de Esquenazi retoma e atualiza o realismo baziniano ao evidenciar a

importância do contexto comunicacional entre a imagem e sua recepção:

Et ce que nous trouvons au départ de cette ‘capacité onthologique’ du cinéma, c’est un effet analoque à l’introduction acceptable de termes particuliers dans le langage. Strawson montre qu’une telle introduction présuposse, en fin de compte, un geste designative (Strawson écrit ‘demonstratif’): “La forme la plus simple d’une telle proposition est: “Il y a là un seul tel et tel.”. C’est dire que ce qui est en cause dans la capacité ontologique du cinema, ce n’est pás l’image elle-même, isolée de sés processus de réception, mais le rapport que cette image entretient avec le geste désignatif, ou démonstratif, que la prise de vues manifeste. Toute image cinématográphique contient ce geste fondamental, quelque chose qu’on pourrait paraphraser par: “ceci est”. Mais ce geste ne devient qu’accepté par le spectateur. L’important est donc que le “ceci”, le geste lui-même, n’acquiert son efficacité que dans l’espace de la reception. (...) Nous pourrions dire que c’est seulement dans l’espace de recéption que l’image filmique devient événement, c’est-à-dire qu’elle prend sens. Une telle approche evite les apories d’un “realisme essentiel” du cinema, en conservant la question du realism comme un problème au coeur de tout film. Problème qui se manifeste dans une confrontation entre: - la façon dont le film dispose ses corps matériels (…) por construire une configuration d’espace-temps et induire son domaine de crédibilité référentielle; - et le type de lecture référentielle d’un spectateur donné (ESQUENAZI: 1995, p.212-213).

Quando Esquenazi ressalta que o efeito de realismo só se constitui em um contexto

comunicacional, ele retira a pretensa objetividade conferida à imagem para estabelecer um

conjunto de relações que nos importa. Primeiramente, podemos definir a particularidade da

recepção das imagens em dois momentos: o primeiro é o contexto familiar e o segundo um

contexto temporal e fisicamente distante como é o caso do arquivista audiovisual

(ESQUENAZI: 1995). Talvez a técnica não importasse tanto para o pai que filmava seus

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filhos pois era o momento revisitado durante uma projeção que fortalecia a atenção dos

espectadores familiares, era a própria presença na tela que realizava a pretensão inicial. Este

mesmo contexto explica a estética de improviso de muitos filmes domésticos, o que o senso-

comum toma como definidor, e uma sensação de proximidade causada por esta estética

improvisada. O filme de família serve para re-apresentar esses momentos e essas pessoas.

Para o arquivista, a sensação de estar invadindo uma intimidade alheia não deixa de ter

o seu peso. Pensar, refletir sobre essas imagens significa invadir algo que não nos diz

respeito? Quais são os efeitos na percepção quando se testemunha eventos e pessoas reais e

afetivamente conectadas? Qual é a dificuldade de conferir valor e analisar esses pedaços de

histórias de vida de anônimos sem recair somente no seu impacto emocional? O esforço a ser

feito no estabelecimento desses filmes como fontes históricas tem que conferir sentidos que

não perpassam somente as vidas individuais, mas um arcabouço cultural mais amplo, capaz de

estabelecer diálogos entre disciplinas.

Para além dos efeitos, outro fator importante é a circulação dessas imagens no espaço

e no tempo. Situando este debate no início do século XX, momento de eclosão da circulação

da fotografia e do cinema, Tom Gunning ressalta no texto “O retrato do corpo humano: a

fotografia, os detetives e os primórdios do cinema”:

Embora a inovação técnica das imagens em movimento tenha introduzido a possibilidade literal de retratar velocidade e movimento, o lugar do cinema em uma nova lógica de circulação havia sido antecipado pela comercialização das fotografias fixas, em especial o cartão-postal e o estereoscópio. Como indicou Jonathan Crary, é preciso repensar a história da fotografia sem focar unicamente o modo da nova representação tecnológica que ela introduziu, mas considerando seu papel na ‘remodelação de todo um território no qual sinais e imagens, efetivamente apartados de um referente, circulam e proliferam’. O debate sobre a ontologia da imagem fotográfica centrou-se no vínculo de indexação que uma fotografia mantém com o seu referente, enquanto Crary dirige nossa atenção para o uso prático das fotografias, no qual essa conexão a um referente se inter-relaciona com a natureza destacável da imagem, com sua capacidade de ganhar uma mobilidade que seu referente nunca possuiu de circular separadamente (GUNNING: 2004, p.36).

Impossível não pensarmos a carga de herança que tais artefatos possuem. Através das

gerações, esses documentos da história familiar muitas vezes simbolizam os feitos e

sacralizam a “imagem da família”. Em todos os casos, são souvenirs, objetos de lembrança

transportados no tempo e no espaço. A possibilidade de constituir um legado forma uma

espécie de cálculo para a posteridade na produção dos filmes, influenciando assim o tema e a

forma de se filmar e de se guardar. No presente, existe uma projeção para o futuro de como

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esse passado deve existir para as novas gerações. No caso da fotografia, essa eterna presença

se dá de forma mais marcante porque as fotos habitam as paredes das casas, os colares, as

carteiras, os álbuns de família na mesa de centro da sala: o acesso se dá de forma direta. O

cinema, por outro lado, possui o movimento, mas necessita da mediação de um aparato para

“acontecer”: o impacto do movimento deixa de existir pela dificuldade atual de projeção.

Talvez seja esse um dos motivos que reveste o filme de mais força. A experiência da imagem

em movimento, além de ser mais realista, é mais rara. A análise de filmes específicos nos

mostrará como essa preocupação com a posteridade e o caráter especial do evento da

filmagem podem assumir características formais.

O poder de arrebatamento dessas imagens funciona, portanto, como importante

componente no elo emotivo entre pessoas e na reconstituição de uma história familiar,

contada e recontada através de gerações. Os filmes de família do acervo da Cinemateca

Brasileira trazem uma interessante confluência de temporalidades e deslocamentos espaciais.

Nascidos para circular, eles percorreram espaços diferentes cumprindo expectativas diversas.

Os materiais que chegam ao arquivo já passaram pela sua primeira “morte”; o seu projeto

inicial de circulação sofreu uma alteração de sentido. Diante da impossibilidade de projeção

em casa ou nos cinemas, os rolos em película são depositados na instituição como artefatos

“mortos” no seu objetivo inicial5, mas vivos enquanto memória do cinema, da representação

visual da família ou como vestígios de práticas de representação familiar que se tornaram

obsoletas6. Este segundo momento de circulação é onde se encontra o arquivista que mesmo

distante ainda compartilha do impacto dessas imagens.

Se considerarmos o tipo de circulação e o conjunto de expectativas envolvidas nos

filmes de família do acervo, fica evidente a transformação dos “ideais” e efeitos envolvidos na

sua produção através do tempo, a mudança nas relações familiares e a sua representação. O

acervo conta com títulos dos mais diversos: o trecho da coletânea Reminicências de 1909,

filmes domésticos anônimos da década de 1920, filmes de casamento encomendados e

imagens de convivência entre os cineastas do Cinema Novo e seus filhos na década de 1960.

O contexto de produção dessas imagens não é necessariamente o mesmo e uma investigação

sobre a mobilização em jogo no momento da filmagem é uma importante ferramenta de

análise. Uma das diferenças mais evidentes é quando um filme é produzido por um 5 As imagens provavelmente se mantêm “vivas” em outro suporte, como o VHS ou o DVD.

6 Uma das grandes diferenças entre a captação analógica e os vídeos e as fotos de família em formato digital é a sua reprodução e circulação: essas imagens não nasceram para durar, mas sim, para circular em uma velocidade e quantidade sem comparação com os registros mais antigos.

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cinegrafista contratado. Pontuá-la é importante porque indica outras relações entre o retratante

e o retratado e uma circulação posterior que almeja “efeitos” diferentes. Este fator já foi

ressaltado por Fred Camper quando ele confere diferenças na relação entre quem filma e o

sujeito filmado.

Uma particularidade dos filmes de família amadores, por exemplo, é que eles trazem,

independente de sua época, uma relação muito próxima da câmera com os retratados e são

produzidos para consumo familiar. São freqüentes as brincadeiras, registros que muitas vezes

acompanham o crescimento das crianças, os momentos de férias, o dia na praia. Eles podem

ser semelhantes a um álbum de fotografias e ter uma edição ou uma mínima organização. Ou

podem ser como fotos guardadas em uma caixa: os rolos são guardados sem organização, os

assuntos pulam de um para o outro sem ordem cronológica e os “personagens” envelhecem e

rejuvenescem, a cronologia muda sem qualquer indicação. É comum que as imagens se

restrinjam ao espaço doméstico, não somente à casa, mas à esfera privada, desvinculada do

trabalho. O exterior é a praia, a fazenda, ou a cidade que se visita durante as férias.

A freqüente falta de finalização indica que o propósito ali não é a produção de um

filme, mas o prazer da captação que se desdobra no momento da brincadeira com a câmera e

no registro de momentos especiais em família. Importa mais o ato de filmar e a necessidade

do registro. A filmagem pode ser inclusive o evento catalisador para unir as pessoas. Roger

Odin define esta relação perfeitamente:

In family cinema, the production of the film is not a primary goal. The filmmaker films to play with the camera and its various gadgets. He/she films for the pleasure of gathering the members of the family (ODIN: 2008, p.257).

A qualidade da imagem depende muito do cinegrafista, mas muitas vezes a câmera se

movimenta sem ter o bom enquadramento como critério. Fica evidente que a dinâmica

familiar e a brincadeira são mais importantes. Alguns exemplos deste tipo de filme:

REMINICÊNCIAS (1909-1920), ALVES DE LIMA (1928c), BOGGIO (1930), CAMARGO

PENTEADO (1952c) e SEIDLHOFER (1952c).

O filme de família profissional7, por outro lado, envolve outra dinâmica. Contratados,

os filmes que cobrem eventos e cerimônias familiares trazem como característica mais

7 Muitos cinegrafistas de profissão filmavam a sua própria família. Neste sentido, o refinamento técnico acompanha a intimidade e não se rompe a sensação de proximidade entre os retratados e o câmera.

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marcante o distanciamento do profissional ou até mesmo uma intenção de distanciamento

para que se pareça mais profissional. Em cada época, o estatuto do profissional será diferente

e este será um aspecto a ser desenvolvido nos tópicos seguintes.

Nas imagens feitas por profissionais, a família não é mais somente a nuclear. Existe

certo status que as imagens pretendem garantir acompanhando o próprio caráter da cerimônia

e de demonstração pública dos méritos individuais ou da família. É o caso de filmagens de

formaturas, casamentos, batizados, bar mitzvahs e bodas de prata. Esses filmes se situam na

esfera pública mais do que na esfera privada e, principalmente nos casos de filmes do

primeiro período do cinema brasileiro, compunham sessões públicas de projeção nos cinemas.

Alguns exemplos do acervo: CAÇA À RAPOSA (Antonio Campos, 1913), UM DOMINGO

EM CASA DE VOVÔ (Antonio Campos, 1914), BATISMO DE CARMENCITA (Gilberto

Rossi, 1921), ENLACE MATRIMONIAL DO SNR. ANDREW JORGE MOURA DE

CASTRO COM A SENHORITA MARIA DO CARMO MORÉ LEITE (1942) e BODAS DE

PRATA DE SIOMA E ROSA BREITMAN (Samuel Breitman, 1950c).

O importante é ressaltar que a família sempre foi foco de câmeras: amadoras,

profissionais, analógicas, digitais, de vídeo e de cinema. Esta demanda será amplamente

atendida pela indústria de equipamentos e formará um nicho de mercado para uma série de

cinegrafistas/cineastas/operadores de câmera que produziram imagens sob contrato de

famílias que desejavam, e ainda desejam, ter filmes como recordação. A separação entre o

filme amador e o filme profissional foi feita aqui a partir da inserção de um agente externo (o

profissional), ou de uma pretensão de profissionalismo, e o que isto implica na dinâmica da

família diante de uma câmera. Mas a separação entre o profissional e o amador é

extremamente complexa e permeada de implicações. Ela será analisa agora a partir da

influência da indústria e da difusão de equipamentos no âmbito internacional e depois a partir

das influências dessa separação no caso brasileiro.

1.3. A indústria, a democratização dos equipamentos e a formação do campo amador

O maior acontecimento comercial, tecnológico e industrial da cinematografia amadora

foi o lançamento da câmera Ciné-Kodak e do projetor Kodascope, em 1923. A

comercialização em larga escala destes equipamentos para uso doméstico, que estabelecia o

16mm como bitola padrão utilizando também a película reversível, teve uma enorme

conseqüência na consolidação do conceito de amadorismo e disseminou pelo mundo o ideário

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de produção de filmes domésticos. Além disso, incentivou uma demanda pela apreensão das

técnicas e códigos do cinema industrial por parte do “homem comum”.

O caminho até o lançamento da Ciné-Kodak demonstra a complexa rede de conexões

que interligam desenvolvimento empresarial, aperfeiçoamento mecânico de câmeras e

equipamentos de projeção, invenções no ramo químico, novos formatos de películas e

câmeras, práticas de distribuição alternativa e a formação de uma demanda por filmes em

espaços diferentes das salas de cinema. O desenvolvimento do cinema no âmbito doméstico

como mercado terá influências na produção de imagens amadoras. Na história do

amadorismo e da exploração do lar como nicho comercial, três empresas tiveram papel

fundamental: Edison, Eastman-Kodak e Pathé-Frères.

O lar sempre foi um ambiente de potencial aproveitamento por parte da indústria de

equipamentos e de difusão de filmes. Começando com o desenvolvimento de projetores, as

primeiras tentativas de comercialização de equipamentos para uso doméstico se deram

somente alguns anos após a invenção e difusão do cinematógrafo: “a remarkably brief lag

separates the appearance of the first motion pictures (via Edison’s Kinetoscope in 1894 and

Lumière’s exhibitions in 1865) and the earliest film projectors designed for amateurs”

(SINGER: 1985, p.38).

Na Europa e nos Estados Unidos, entre 1896 e 1912, diversos fabricantes de

brinquedos, lanternas mágicas, equipamentos de cinema e produtos ópticos, inventaram

formatos de máquinas de projeção. Eles podiam ser um simples aparelho que se adaptava a

outros instrumentos já disponíveis no mercado, como o W.Watson’s Motorgraph que era

acoplado a lanternas mágicas possibilitando a projeção de filmes curtinhos em 35mm; uma

simplificação do Edison Kinetoscope, como foi o caso do American Parlor Kinetoscope, de

1897, que substituía a película em celulóide por um papel opaco e a luz elétrica por luz

natural, barateando assim todo o processo, ou o mais desenvolvido Ikonograph, lançado entre

1904 e 1906, que utilizava a película no formato 17.5mm (SINGER: 1985).

Esses lançamentos tiveram sucesso e preços variáveis e a quantidade de invenções e

investimentos não foi o suficiente para formar um comércio atraente para outros fabricantes e

uma demanda por parte dos consumidores. Para Ben Singer, o ano de 1912 marca uma

mudança nesse cenário com a entrada de diversas empresas no ramo principalmente como

alternativa viável à exibição comercial. Os novos projetores permitiam a exibição de filmes

com duração de até doze minutos e possibilitavam a difusão de títulos comerciais em casa. Os

motivos para esta eclosão, elencados pelo autor a título de hipótese, seriam os seguintes:

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The obvious question that arises from the industry’s relatively sudden and widespread interest in home cinema is why this development should have occurred at the specific time it did. A commonsense hypothesis might simply be to say that by 1912, commercial film exhibition had grown to such enormous dimensions that equipment manufacturers felt confident about the existence of a consumer base for home cinema. This commonsense explanation strikes me as viable, but one should at least acknowledge the possible influence of such things as the patent situation, which may have eased somewhat at that time, or the emergence of film exchanges willing to deal with amateur exhibitors, enabling them to rent instead of buy titles. These factors (if indeed factors) await further research (SINGER: 1985, p.44).

O mais marcante, porém, parece ter sido a liderança e influência das campanhas de

marketing de grandes empresas da época formando o comércio de equipamentos amadores

como um nicho de enorme potencial. A Pathé Frères lança na França o projetor Pathé K-O-K,

comercializado nos Estados Unidos, a partir de 1913, com o nome de Pathéscope. O

Pathéscope usava o filme em 28mm com quatro perfurações de um lado do fotograma e duas

do outro. O motivo para tal tamanho seria a possibilidade de projetar uma imagem de

qualidade, sem ter que dispor de toda a matéria-prima usada no 35mm, mas com um tamanho

grande o suficiente para ser usado em espaços maiores como igrejas e clubes, público

potencial desses equipamentos, sem perder a qualidade de projeção. O 28mm impediria que

filmes em nitrato, como era o caso do 35mm, fossem utilizados nos projetores domésticos

dando margem para o mau uso e acidentes graves. Motivações comerciais também guiavam o

formato das perfurações: a patente garantia à Pathé a exclusividade de tal sistema,

direcionando o público para o uso do projetor Pathé devido ao enorme sucesso dos títulos da

empresa disponíveis para aluguel com o mesmo sistema de perfurações. A Pathé dispunha de

um grande catálogo de títulos em 28mm, incluindo filmes educativos com enorme apelo para

igrejas e escolas, que eram emprestados a cada semana, sendo que a quantidade de títulos

enviados via correio dependia do valor da adesão anual que variava entre 50 e 100 dólares

(SINGER: 1985).

O sucesso do Pathéscope não foi equiparado pelo Edison Home Kinetoscope,

apelidado “Home P.K”, de Edison. Bem mais complicado do que o 28mm, o projetor usava

um filme 22mm que continha três fileiras de imagens com perfurações passando dos dois

lados da fileira central (cada fotograma tinha 5.7mm). A primeira fileira passava pelo projetor

em uma direção, havia uma alteração da abertura de projeção, a direção era invertida para a

projeção da segunda fileira e o mesmo movimento era feito para a terceira fileira. O sistema

também permitia a economia de película e concentrava o equivalente a 1.000 pés do formato

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padrão em um rolo de 77 pés. Edison também contava com uma biblioteca de títulos

exclusivos com empréstimos via correio. Problemas de qualidade de projeção, pouco

conhecimento sobre sistemas ópticos da parte dos representantes de vendas (acostumados com

a venda de fonógrafos), preços altos e pouco investimento em marketing, além das próprias

deficiências técnicas, foram alguns dos motivos do fracasso da empreitada em 1914

(SINGER: 1985).

Com a falência do Home P.K, a Pathé obteve grandes vantagens o mercado doméstico

de projetores. A maior dificuldade encontrada por outros fabricantes de equipamentos de

projeção era a pouca oferta de filme em acetato não-inflamável. Isso dificultava o acesso aos

títulos que atraíam o público doméstico dando uma larga vantagem para a Pathé, que produzia

os seus próprios títulos em safety film, em um formato exclusivo (SINGER: 1985). O

problema de fornecimento de película permite entrever uma série de disputas e acordos que

também influenciaram o comércio de equipamentos e filmes no âmbito doméstico. A

personagem principal, neste caso, é a empresa de fornecimento de filme virgem, a Eastman-

Kodak.

A entrada da Eastman-Kodak no universo do cinema começa a partir da fabricação de

filme transparente em rolo o que contribuiu para o desenvolvimento da câmera

cinematográfica de Edison em 1891. Anos depois, mobilizado pela exploração do mercado

doméstico, Edison solicitou a George Eastman uma película mais segura. Em 1909, a

Eastman-Kodak lançou a película com base de acetato, o safety film,8, em solo norte-

americano. Apesar de mais segura, a película não-inflamável não foi adotada como padrão

pela indústria, ficando o seu comércio restrito à esfera doméstica.

Nos termos da indústria de cinema profissional, em processo de formação durante o

período, a proximidade com Edison também levou a Eastman-Kodak a fechar um acordo de

exclusividade com a Motion Pictures Patents Company (MPPC), criada em 1909: dona da

patente do formato 35mm, a MPPC designa a Eastman Kodak como a sua única fornecedora

de filme virgem e, em contra-partida, a empresa se compromete a interromper o fornecimento

de película a não membros, com a exceção do fornecimento de película e negativos para

atividades científicas9. O acordo garantia uma grande fatia do mercado para a Eastman

8 De acordo com texto de George Sadoul, a Pathé, via ajuda de Lumière, e a Ansco também dominavam a tecnologia de produção de película não-inflamável em 1909. A vantagem da Eastman era a dominação do mercado e a enorme capacidade de produção (SADOUL: 1956).

9 No território europeu, um congresso de exibidores, produtores e fabricantes de película foi realizado para elaborar uma reação ao truste americano de Edison e à crise dos negócios no continente. O congresso aconteceu

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Kodak, mas abria precedentes para outras empresas, como a alemã Ansco, venderem filme

virgem para os não-afiliado à MPPC (BOWSER: 1990; SADOUL: 1956).

Este percurso histórico é importante para entendermos a intensidade de inventos,

disputas e acordos que pautaram os primeiros anos do cinema mundial. Até a criação da

MPPC, a indústria ainda não tinha formatos de produção e projeção unificados, basta

lembrarmo-nos dos projetores para uso doméstico desenvolvidos nos primeiros anos, cada um

com um sistema de filme e projeção diferentes, assim como os esquemas de distribuição e

exibição não eram ainda normatizados. Esta movimentação acaba por estabelecer

definitivamente as invenções de Edison – o filme 35mm, com quatro perfurações laterais de

cada lado – como padrão da indústria e formato profissional de câmeras, projetores e

negativos. A MPPC, mesmo que enfraquecida poucos anos depois, estabeleceu as normas do

cinema profissional.

A profissionalização acabou por incentivar outro movimento de invenções e corrida

tecnológica importantes para a delimitação do campo amador. A MPPC atuava basicamente

no cinema profissional. Para empreendedores do período, o uso do cinema em outras esferas

era uma forma de fugir do controle das patentes e investir em um mercado em crescimento:

consumidores ávidos por novidades a serem utilizadas nos momentos de lazer. A Pathé, com

o lançamento do Pathéscope em 1912, e de uma câmera em 28mm para filmagens domésticas,

investiu neste segmento talvez até mesmo para escapar da pressão exercida pela MPPC-

Edison. O cinema doméstico e o uso amador de equipamentos era um mercado em potencial e

até 1923 houve uma profusão de inventos e inventores que tentavam desenvolver

equipamentos sem, no entanto, terem muito sucesso além de pequenos nichos de consumo.

A entrada da Kodak no mercado de cinema amador foi extremamente marcante. Além

de desenvolver o filme reversível, que barateava o processo de feitura de cópias, a empresa

tinha a capacidade de produzir o filme em acetato em larga escala. Com o seu monopólio e

no dia 2 de Fevereiro de 1909, em Paris, e contou com a representação de cinqüenta sociedades e com a conturbada presença de George Eastman como observador. Na verdade, Eastman fora ao congresso averiguar as descobertas de seu concorrente alemão, a Ansco, que também havia desenvolvido a tecnologia para a produção de película não-inflamável, ainda em 1908. O empresário americano temia que a película não-inflamável pudesse virar padrão da indústria européia, ainda sua maior consumidora, e se esforça para ser o fornecedor de um cartel europeu que estava por se formar. Durante o congresso, Eastman descobre que a Pathé, sua maior compradora, também iria instalar uma fábrica de películas virgens não inflamáveis em Vincennes. Em meio a discussões e ameaças, os dois empresários rompem. O congresso, que não conseguiu estabelecer qualquer tipo de acordo entre os seus integrantes, foi chamado de “Congrès des Dupes” (“O congresso dos enganados”) devido ao conjunto de desacordos entre seus membros (SADOUL: 1956, p. 59-60).

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forte capacidade de investimentos, em 1923 a empresa lança a câmera Ciné-Kodak e o

projetor Kodascope. O desenvolvimento da câmera em 16mm conta com a expertise adquirida

com a produção de câmeras fotográficas e, ao contrário dos inventos de Edison, a Eastman

não via a necessidade de impedir que outros fabricantes produzissem sistemas e câmeras no

mesmo formato já que ela detinha a patente para produção do filme virgem em 16mm. Em

1920, a empresa já tinha desenvolvido um protótipo da câmera em 16mm e, diante do sucesso

dos testes empreendidos, a Kodak anuncia os seus planos de lançar o novo equipamento no

mercado. A empresa convida os dois maiores produtores de câmeras, a Bell & Howell e a

Victor Animatograph, para assistir à demonstração da câmera com o novo filme e, como

resultado, a Bell & Howell logo substitui o lançamento da sua câmera em 17.5mm pelo

formato da Eastman. A Victor Animatograph, que tinha acabado de lançar a sua câmera no

formato 28mm, também adota o sistema 16mm pouco depois (KATELE: 1986).

A Bell & Howell, importante fabricante de câmeras do período que inclusive ajudara a

melhorar o sistema em 35mm de Edison e era uma das licenciadas da MPPC, começa a

produzir câmeras em 16mm ainda em 1921 e, junto com a Kodak e a Victor Animatograph, as

três empresas conseguem estabelecer o 16mm como padrão amador, obliterando as iniciativas

de pequenos empreendedores:

The institution of 16mm as the standardized amateur gauge marks an important turning point in the history of amateur film. Major corporations like Bell and Howell and Eastman Kodak ousted small-time entrepreneurial inventors who lacked the capital and the manufacturing and advertising resources necessary to reach national markets. These large manufacturers redefined amateur film as a consumer commodity; the mainstream press published articles on amateur film and ran Kodak, Bell and Howell, and Victor Animatograph ads. The 16mm amateur gauge formed a filmmaking caste system: 35mm for professional and 16mm for families (ZIMMERMANN: 1995, p.27).

O lançamento da Ciné-Kodak é seguido pela abertura de laboratórios de

processamento e representantes de vendas no mundo todo, inclusive no Brasil, como

demonstram os anúncios nas revistas Cinearte e A Scena Muda. No Natal de 1922, também

havia sido lançada a Pathé-Baby, câmera leve, de fácil manuseio utilizando o filme 9,5mm, e

o Pathé-Rural, um projetor em 17,5mm para o circuito alternativo de exibição como fazendas

e igrejas. A empresa francesa continua o seu sucesso no ramo amador mantendo os seus

formatos diferenciados

O começo dos anos 20 marca, portanto, a escalada mundial do cinema doméstico. Isso

compreendia a venda de equipamentos de projeção, câmeras, venda e aluguel de filmes e uma

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forte campanha de marketing. Mesmo com o predomínio do 16mm como bitola amadora, a

Pathé se mantém no mercado principalmente pelo sucesso de seus equipamentos de uso

amador, os baixos custos e sua vasta biblioteca de títulos. No Brasil, materiais publicitários

das duas empresas podem ser encontrados em publicações especializadas da época.

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Filmar e projetar filmes – A variedade de produtos oferecidos pela Kodak (A Scena Muda, Rio de

Janeiro, v.8, n.384, p. 4, 02 ago. 1928. il.).

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A facilidade de manuseio e os momentos de diversão em família (Cinearte, Rio de Janeiro, v.3, n.147,

p. 4, 19 dez. 1928. il.).

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Em todas as campanhas publicitárias, a família era o alvo principal para a produção de

filmes de preservação da memória e a casa se tornaria um espaço de exibição dos filmes de

família ou de filmes comerciais disponíveis em formatos não-profissionais. O grau de

consumo destes equipamentos no Brasil é incerto, mas a entrada do produto no país gera um

duplo movimento. O primeiro é que a facilidade do manuseio dessas câmeras permitia que

cineastas amadores, diante de uma indústria inexistente, investissem no aprendizado e na

feitura de fitas nacionais. Esta tentativa marca fortemente a coluna de Sérgio Barreto Filho,

“Cinema de Amadores”, publicada em Cinearte. O segundo é que, pela leitura da coluna,

também é possível identificar a presença de representantes e laboratórios das duas marcas no

Rio de Janeiro, São Paulo e Recife. Com essa rede de apoio, surgem também os filmes de

família amadores cujas imagens dialogam fortemente com a publicidade veiculada pelas

empresas: a praia, as férias, as viagens, o crescimento dos filhos e os eventos em família são

temas preponderantes.

A dimensão ideológica dessa divisão entre o profissional e o amador será facilmente

percebida nos debates das colunas de amadores da revista Cinearte, a primeira chamada “Um

pouco de technica” substituída posteriormente pela “Cinema de Amadores”, e no ideário de

produção e de recorte temático incentivado pela publicidade e pelas campanhas de marketing.

O amadorismo não pode ser pensado fora desse nicho de mercado de amplitude internacional.

Mas existem matizes e diferenças na forma como se dá a apropriação dessas práticas e idéias

no caso brasileiro. A seguir tentarei mapear algumas dessas questões a partir dos cinegrafistas

do primeiro cinema e das colunas de amadores na revista Cinearte.

1.4. O cinema brasileiro e o conceito de amadorismo

Não é sem consciência do perigo e fragilidade conceitual que este título foi conferido à

presente seção. É como um esboço de uma vertente da história do cinema brasileiro, ainda a

ser desenvolvida, que o conceito de cinema amador surge aqui. Menos do que propor uma

teleologia, o amadorismo será pensado como ponto de vista norteador de certas manifestações

cinematográficas. Esta idéia será posta em debate de acordo com períodos que nos

interessarão para a análise de dois lotes específicos, marcadamente, o cinema dos primeiros

tempos (início da atividade de Aristides Junqueira, em torno de 1909) e a eclosão dos

equipamentos mais acessíveis (final da década de 1920, filmes da família Alves de Lima).

A dificuldade de conceituação, como nos capítulos anteriores, se mantém. Quando

Roger Odin elenca as dificuldades inerentes a uma história do cinema amador, a questão é a

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própria definição do campo que lhe parece difícil diante da heterogeneidade das

manifestações. Sempre pensado em relação ao cinema profissional, o campo de atuação dos

cinegrafistas amadores e o conceito de amadorismo variam não somente historicamente, mas

também geograficamente. Como conclusão, o autor afirma:

Esisteno cosí diversi spazi amatoriali, ciascuno caratterizzato da un modo di comunicazione specifico. Render conto del cinema amatoriale presuppone l’accettazione di questa eterogeneità e di questa labilità constitutive di un campo esistente solo in virtú del sistema di opposizione esterne (amatoriale/professionale) e interne (i differenti spazi si definiscono l’uno rapporto all’atro) che lo caratterizza in un determinato momento: un sistema in continua evoluzione (ODIN: 2001, p.321).

As demandas criadas pela indústria de equipamentos e o registro familiar formam dois

desses “modos de comunicação específicos”. Ambos inferem em produtores e espaços

singulares concernentes a um determinado ideário do amadorismo, o que reflete as variações

do contexto comunicacional (Esquenazi), as “several forms of subject-matter” (Camper) ou o

“modo di comunicazione specifico” (Odin). Uma questão mais complicada talvez seja que,

para além da heterogeneidade, os casos particulares revelarão entrecruzamentos entre esses

espaços. Neste sentido, cabe uma escolha do foco unificador das imagens. Nos capítulos

posteriores, os filmes analisados estão sob a rubrica “filme de família”, pois são peças

produzidas durante eventos familiares e com a clara intenção de cristalizar a memória

familiar. Porém, o estatuto de cada cinegrafista e o seu contexto de produção podem indicar

outras perspectivas.

O desafio que se estabelece aqui é entender essas variações de acordo com o caso

brasileiro. No Brasil, o profissionalismo é um padrão que durante décadas nos foi totalmente

exterior devido a nossa condição de país importador, dependente e subdesenvolvido. Em

termos práticos, os cinegrafistas do período silencioso conseguiram contornar dificuldades

técnicas através do conhecimento da fotografia e de uma grande dose de invenção. No final da

década de 1920, a empreitada das colunas da revista Cinearte “Um pouco de technica” e,

posteriormente, “Cinema de Amadores”, consolidava uma verdadeira campanha didática pelo

aperfeiçoamento do cinema brasileiro de acordo com um ideal de profissionalização

representado pelo cinema americano. O cinema amador era um caminho para o cinema

profissional.

Um pouco diferente é o espaço das associações de amadores e dos foto-cineclubes,

um campo formado por diletantes, cinegrafistas e artistas envolvidos com a técnica, com a

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paixão pelos equipamentos e pela produção de filmes caseiros, campo que assume

características específicas de acordo com o período histórico, grupo e região do país. De um

lado o amadorismo é um estágio, de outro ele é uma prática, com seus códigos de conduta e

uma cultura específica. Como pano de fundo, a precariedade técnica nos assombrará como

condição inescapável. Arriscaremos aqui uma descrição de algum desses movimentos.

Um fator interessante ao pensarmos a história do ponto de vista amador é que ele nos

leva para a compreensão da materialidade do processo cinematográfico, mudando o eixo do

cinema como uma construção intelectual (predomínio do filme de ficção na historiografia)

para as condições básicas necessárias para a feitura de um filme. Mesmo que as

generalizações possam ser precipitadas, uma condição do cineasta amador é o fato dele

dominar ou acumular funções técnicas, um processo de feitura de filmes sem a divisão do

trabalho. Por este motivo podemos tecer ligações entre o cinema artesanal dos primeiros

tempos e as atividades dos diversos foto-cine clubes pelo Brasil: os amadores são, muitas

vezes, técnicos completos.

O que subjaz à nossa condição, na verdade, é que a precariedade ou a inexistência de

certas estruturas obriga, em cada momento histórico ou região do país, a arranjos e soluções

dadas às circunstâncias materiais. Por este motivo, a história do comércio de equipamentos e a

venda de matéria-prima como negativos e químicos para revelação é de fundamental

importância, pois, no nível individual, ela delineia as possibilidades técnicas e criativas de

cada cinegrafista/diretor10 e, de forma mais genérica, ela sinaliza o estatuto brasileiro dentro

da rede de comércio internacional.

Quando Maria Rita Galvão inicia o seu breve histórico Cinema brasileiro: o período

silencioso com a advertência

desde o início, é preciso que se tenha em mente o que significou a introdução do cinema – fruto direto da pesquisa científica, do progresso técnico e do desenvolvimento industrial – num país pouco desenvolvido como era o Brasil nos últimos anos do século XIX (GALVÃO: 1987, p.15) [grifo nosso],

10 A variação da nomenclatura dos “produtores de imagem” – operador de câmera, cinegrafista, fotógrafo, diretor – é um tópico que condensa esta variação do que significa ser um profissional do cinema, tema que infelizmente não poderá ser desenvolvido aqui. No verbete de Júlio Ferrez no Dicionário de cineastas um sinal dessa indefinição: “começou trabalhando com o pai em foto fixa, passando à fotografia em movimento (cinema) e já em 1907 operava a câmera em documentários (...). Como na época ainda não estivessem definidas as funções – diretor, fotógrafo etc. – era o operador de câmera quem na realidade criava o filme” (MIRANDA: 1990, p.142).

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fica evidente a importância do cinema não só como uma arte da representação mas como um

empreendimento técnico, científico e industrial que, no período, vivia uma forte efervescência

de inventos dos quais nós não fazíamos parte; os parâmetros estavam sendo decididos muito

longe daqui. Isso não impossibilitava a produção de filmes, desde que alguns materiais

pudessem ser importados. Neste período os cinegrafistas, até por uma questão de

sobrevivência, lidam com a precariedade de forma criativa. No cinema chamado artesanal,

uma só pessoa era responsável por grande parte dos processos, sem ainda a divisão do

trabalho que logo se estabelece nos países desenvolvidos. Nos primeiros anos do século XX,

O cinema era ainda fundamentalmente artesanato, e mesmo no Brasil, onde o atraso técnico retardava o desenvolvimento industrial, fazer filmes era uma atividade relativamente simples para os artesãos imigrantes que passam a se ocupar dela. E, desde que dispusesse de um equipamento importado, podia recrutar fotógrafos – com que o Brasil já contava com número suficiente havia anos – para este novo campo de atividade. O trabalho de um cinegrafista se reduzia, em última análise, a acertar a máquina e girar a manivela (por isso eram chamados de ‘homens do realejo’) e o conhecimento fotográfico resolvia os problemas de revelação e copiagem (GALVÃO: 1987, p.20, [grifo nosso].

A descrição do cinegrafista na citação acima soa excessivamente simplificada. Seria

necessário nos certificarmos do trabalho envolvido na obtenção de matéria-prima e construção

de laboratórios – algo que não se dá sem trabalho e investimento financeiro. Fato é que se

existia um certo grau de profissionalismo neste período, ele era definido por um domínio

técnico sobre os processos de revelação e conhecimentos mecânicos e tipo de comércio

herdados da fotografia; isso era o que significava uma qualificação profissional ou o que

permitia uma atuação na área. Não por acaso, a grande maioria dos cinegrafistas profissionais

da época construíam câmeras a partir de projetores ou criavam o próprio equipamento, como

foi o caso de Antonio Campos (trabalhando em São Paulo) e Aristides Junqueira (Minas

Gerais); eram pioneiros na importação de equipamentos, como Julio Ferrez (Rio de Janeiro);

ou construíram laboratórios próprios como Eduardo Hirtz e Francisco Santos (Rio Grande do

Sul) (MIRANDA: 1990; GOMES: 2008; GALVÃO: 1987).

Podemos arriscar que a atividade profissional no cinema era uma continuidade do

trabalho como fotógrafos e o ímpeto para seguir na produção de filmes, em meio a tantas

dificuldades, uma decisão individual. Não existia estrutura suficiente para a formação de um

campo profissional estável. De acordo com Jean-Claude Bernardet,

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Quando o produto cinematográfico existe, não é em função de uma relação entre produção e mercado, mas por decisão própria de um indivíduo que, por motivos pessoais, se volta para o cinema. Frequentemente são artesãos fotógrafos para quem a máquina de filmar representa um passo a mais, o cinema e o engenho ultramoderno (BERNARDET: 1979, p.29).

Se no cinema brasileiro até 1911 a produção ficcional ainda tinha um espaço favorável

de produção e distribuição, nos anos seguintes a atividade profissional brasileira se guiaria

pelo filme de registro, o “natural” ou, pejorativamente, o filme de cavação (GOMES: 1996;

SOUZA: 2004). Após esse período, internacionalmente o cinema se profissionaliza de tal

forma que a nós parece caber somente a categoria de amadores. Sobre o perfil da produção até

este momento de transição, José Inácio de Melo e Souza afirma:

A tendência para a substituição dos produtos importados por manufaturas locais sempre existiu na economia brasileira dos séculos XIX e XX e, desse modo, o cinema, como atividade econômica, logo se inseriu dentro das regras do desenvolvimento capitalista periférico, sem contudo conseguir oferecer ao mercado um produto ficcional sofisticado em termos de fatura e narrativa. Assim como tinha acontecido nos cinemas metropolitanos até 1904-1905, as “atualidades locais”, os documentários e curtas-metragens sobre fatos ligados diretamente aos habitantes da cidade em que eram exibidos tais filmes formavam a maior parte da produção (transformada na década de 1920 na “cavação”). Todos se perguntam por que o fenômeno alterou o seu perfil em 1911 (SOUZA: 2004, p.238-9).

Na conclusão da obra citada:

A Bela Época, ocorrida entre 1907 e 1911, estava fadada ao desaparecimento após um momento em que o produto artesanal feito no Brasil podia se ombrear com o cinema também artesanal estrangeiro. A produção em escala industrial do divertimento enlatado sujeitou e agregou os mercados periféricos aos seus ditames sem que pudéssemos competir dentro das regras do novo estágio capitalista (op.cit., p.338-339) [grifo nosso].

A partir de então, ser profissional, nos termos dos países exportadores, significava ter

estrutura de produção (divisão do trabalho), conhecimentos de técnicas narrativas, estúdios,

fornecimento de matéria-prima, estrutura internacional de distribuição, laboratórios e pesquisa

científica. Deste período em diante, as árduas tentativas de se produzir filmes ficcionais no

Brasil “padecerão” de amadorismo nos mais variados aspectos, sendo o mais marcante deles o

fato dos filmes não renderem dinheiro ou pelo menos não o suficiente para sustentar uma

atividade constante; o profissional, de fato, continuava sendo o produtor de naturais.

(GALVÃO; MELLO SOUZA; SALLES GOMES).

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Menos do que ser uma mudança de status do cinegrafista, a transição que pretendemos

delimitar aqui é de uma transformação cultural e econômica – sempre suscetível e dependente

de movimentos externos – dos termos de inserção no campo profissional. No período que

podemos chamar de cinema artesanal (antes de 1911) o caminho para a profissionalização

significava uma real inserção no mercado, com filmes naturais e de ficção que atingiam seu

público. Depois da denominada Bela Época do Cinema Brasileiro parecia ser impossível

resistir e responder à entrada do produto estrangeiro e ao arcabouço ideológico alimentado

pelo marketing da indústria norte-americana e seu potente star-system.

Aristides Junqueira é um cinegrafista cuja trajetória ilustra bem este primeiro

momento do cinema artesanal. Fotógrafo, ele filma sua família em 1909 ainda tateando o

cinema, mas, no ano seguinte produz um documentário para a Exposição Internacional de

Turim, partindo para a Europa em 1911 para apresentá-lo. Ciente da necessidade recorrente

de novos conhecimentos, ele aproveita a viagem para conhecer novas técnicas e comprar

equipamentos. Cinegrafista profissional pelo resto da vida, entre as décadas de 1910 e 1950,

Aristides Junqueira produziu diversos títulos encomendados por políticos e governos, se

deslocando pelo país – Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraíba, Pará, Pernambuco – atrás de

trabalhos.

Para o presente recorte, o importante é pontuar uma alteração nos termos e nas

definições. Se antes o produto era classificado como artesanal, definindo a produção em

termos gerais, nos anos 1920 o campo cinematográfico se torna mais complexo. Os termos

“amador” e “profissional” serão difíceis de definir. É possível perceber os deslocamentos

desses conceitos na atividade em torno da revista Cinearte nos seus primeiros anos de

publicação.

Na primeira edição da revista Cinearte, em março de 1926, a coluna “Um pouco de

technica” estabelece uma diferenciação entre os tipos de amadores. Neste período, o comércio

de equipamentos amadores e a rede de laboratórios para processamento já estavam instalados

no Brasil e a coluna buscava atender à demanda criada pelo público amador. Ao mesmo

tempo, a revista era um claro veículo de divulgação e profunda admiração pelos estúdios

americanos, o cinema profissional por excelência. Essa mistura vai se condensar de forma

extremamente interessante nas colunas dedicadas aos amadores escritas por Sergio Barreto

Filho. Reconhecendo o alcance dos equipamentos feitos para as filmagens domésticas ao

encontrar

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pelas praias de banho, recanto pitorescos, dezenas de pessoas armadas desse minúsculo aparelho de apanhar vistas animadas, que uma vez copiadas são projetadas através de outro aparelho também de reduzidíssimas dimensões que servem de diversão familiar” (Cinearte, “Um pouco de technica”, v.1, n.3, 1926),

o colunista também tenta inserir os amadores brasileiros no universo amador-profissional, ao

mesmo tempo em que aposta no aprimoramento técnico dos amadores, encarados como

futuros profissionais do cinema brasileiro.

De um lado, as famílias com a sua câmera em punho filmando o crescimento dos

filhos, do outro, os amadores interessados e engajados na cinematografia. Os últimos

formavam o público alvo da coluna, aqueles amadores que eram, ou ambicionavam ser,

técnicos completos:

Esta seção se destina aos amadores da cinematografia. A multiplicidade dos aparelhos ao alcance de todas as bolsas que hoje se encontram no mercado, de diferentes marcas e várias origens, cada vez torna mais possível a adoção de mais essa diversão por parte dos leigos no assunto. Assim como as chapas fotográficas secas acabaram com os mistérios da fotografia dantes confinada à laboratórios quase alquímicos, assim esses aparelhos reduzidos tanto no peso e volume como no preço estão a divulgar os segredos da cinematografia, gerando possibilidades novas a quantos desejam se dedicar a esse ramo de atividades. Os amadores são de diferentes espécies também. Uns se dedicam apenas à tomada de vistas deixando as operações posteriores, revelação, fixagem e impressão ao cuidado dos laboratórios que tantos existem hoje e todos não tendo mãos a medir com esse novo maná que do céu lhes cai sob o aspecto de filmes de amadores a revelar. Outros, porém, e principalmente os do interior, que não dispõem de laboratórios que lhes aliviem a tarefa, adquirindo um aparelho de tomada de vistas, têm de prover da demais aparelhagem para as operações fotográficas indispensáveis. A esse, especialmente, é que deverá interessar esta secção. (Cinearte, “Um pouco de technica”, v.1, n.1, 1926).

A coluna, escrita por Sergio Barreto Filho, será publicada com o nome “Um pouco de

technica” até o n.71 de 1927. No n.144 de 1928 volta como “O desenvolvimento do Cinema

de Amadores no nosso paiz” e, logo depois, “Cinema de Amadores”. Sérgio Barreto Filho se

dedicou à “Cinema de Amadores” até 1933, ano de sua morte (a coluna foi posteriormente

assumida por Jurandyr Noronha) (ROSSATO: 2008).

Os títulos não deixam de indicar certa trajetória assumida pelos escritos de Sérgio

Barreto. As primeiras colunas possuíam um didatismo técnico extremamente amplo,

incentivando a iniciação do amador pela fotografia, passando por técnicas de revelação,

receitas de soluções fotográficas e banhos, noções de enquadramento, roteiro e projeção. Se

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existia uma preocupação com a educação dos amadores, existia também uma tentativa de

estabelecer “normas técnicas” para a cadeia do cinema como um todo. As fotos de sets e

fábricas estrangeiras e pequenas notícias de Hollywood acompanham os textos numa forma

de ilustração do ideal de competência a ser alcançado.

Desde o início, porém, é clara a distinção entre o “amador de férias” e o amador com

pretensões técnico-profissionais, diferença que com o tempo vai sendo revestida de uma forte

campanha em prol do fortalecimento do cinema brasileiro como um todo. Essa campanha

aponta para um conjunto importante de definições com fortes reverberações ideológicas e

práticas. Quando Sergio Barreto Filho usa um texto de Mr.Herbert McKay11 sobre as

possibilidades do 16mm como guia para a sua coluna da edição n.165, ele se aproveita de um

conjunto de categorias de amadores utilizadas pelo norte-americano. Existiriam, no universo

amador que utiliza o 16mm12, três categorias: “o fazedor de fitas de casa”, “os amadores-

produtores” e aqueles que fazem “o uso prático da câmera”.

A primeira categoria, apesar de mais numerosa, é desprovida de interesse por questões

técnicas e de laboratório e logo “a câmera é posta para um canto, enquanto ele [o fazedor de

fitas] se volta mais uma vez para outros divertimentos; por exemplo: o xadrez, a dama, o

gamão”. Provindos desse universo surgem os “amadores-produtores”, interessados na feitura

de fotodramas. A constatação do americano é que “o espírito progressivo do amador é

principalmente dramático. Para cada um amador interessado na técnica fotográfica e da

cinematografia, há nove outros interessados no (sic) meandros do seu campo dramático” . A

terceira categoria é mais técnica e investe no aperfeiçoamento e em adaptações das câmeras

em 16mm para que ela chegue a “um ponto tal onde ela possa ser posta ao par da câmera

profissional”.

Sergio Barreto Filho reconhece que a realidade brasileira não se encontra no mesmo

patamar, até os amadores norte-americanos são mais profissionais do que os nossos amadores:

Ao lermos as últimas frases do deão de New York Institute of Photography, ficamos forçosamente a pensar na quantidade de amadores desse gênero que se acha espalhada por todo o nosso país. Quem edita os seus filmes? Quem? Há algum amador que considere o seu trabalho depois de abaixar a alavanca do motor da sua câmera? Qual! Nenhum é a resposta. Todos consideram o

11 De acordo com a coluna, reitor da New York Institute of Photography e o texto fora apresentado durante o congresso da Society of Motion Picture Engineers do mesmo ano.

12 Nos Estados Unidos, o 16mm já era massivamente utilizado pelos “amadores-profissionais”. Este campo também já era fortalecido sendo que a “Amateur Cinema League” fora criada em 28 de Julho de 1926 (SWANSON: 2003).

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filme pronto logo que o filme passou do magazine superior para o inferior dentro da câmera. Os nossos amadores ainda são dessa classe que aponta o deão do Instituto. É uma verdade dura, “mas é a Verdade”! (Cinearte, “Cinema de Amadores”, v.4, n.165, p.24, 1929).

O estilo direto de conversa com o leitor renderá frutos. A coluna fica cada vez mais

pontuada por respostas a cartas de amadores e iniciantes em busca de conselhos e dicas

técnicas. Impressiona o fato de cartas chegarem de todo o país. Com os incentivos diretos do

editor, aos poucos são enviadas notícias de formação de associações de amadores, celebradas

com grande entusiasmo pelo colunista. Em 1929 é divulgada a criação do Cine-Club de

Amadores em Porto Alegre e a Beryllus-Film do Brasil na Tijuca e, em 1930, a Associação

Brasileiros Cinematográficos anuncia a produção da sua primeira obra ficcional, As férias de

Durval, e envia fotos para a coluna. A Sociedade Cinematográfica de Amadores é criada em 6

de maio de 1931 com sede em Madureira, Rio de Janeiro. Os amadores mandam fotos e

notícias das filmagens e a seção de cartas “Os amadores desejam saber” parece evidenciar

uma forte movimentação do universo amador (ROSSATO: 2008).

Aos poucos a coluna também agrega a campanha pelo cinema brasileiro, defendida

por Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, e a empolgação gerada pela produção de Barro humano

(Adhemar Gonzaga, 1929). A coluna “Filmagem Brasileira” parece “contaminar” o espírito

da coluna de Sergio Barreto Filho e dos amadores em geral. Para além da profissionalização

técnica, os esforços de construção de filmes narrativos cumprem quase uma missão cívica.

Numa carta endereçada à coluna pelo Sr.J.P.D. de Curitiba:

Como admirador que sou da “sétima arte”, da arte de Benedetti, Cecil B. De Mille, Borzage, Griffith, etc., quisera que esta distinta redação me aconselhasse uma câmera de amadores, das muitas que existem no mercado, afim de pode alistar-me, mais tarde, ao grupo que mais alto eleva o nome da Pátria (Cinearte, “Cinema de Amadores”, v.4, n.161, 1929, p.12).

O que podemos depreender da leitura das colunas e das cartas é que o ideal envolvido

na produção de filmes amadores buscava suplantar o nosso atraso, uma necessidade de

progresso que parecia se tornar mais aguda diante da avalanche de imagens e informações que

tomavam conta da revista: fotos de estúdios norte-americanos e das estrelas hollywoodianas;

as notícias dos bastidores de produção; comentários sobre os equipamentos profissionais e a

qualidade artística dos filmes criticados13. Imbuído de uma missão, os diversos colunistas

13 Da coluna Pedro Lima sobre Braza dormida (Humberto Mauro, 1928): “Mas nenhuma outra produção alcançou sucesso mais completo do ‘Braza Dormida’. E isto sucedeu agora, quando os films americanos nos põe

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viam o seu esforço reconhecido em trabalhos como Barro humano e no diretor Humberto

Mauro, que fora leitor assíduo da revista e que começou a sua carreira cinematográfica com

uma pequena Pathé-Baby. Na coluna da edição n.151 intitulada “A Questão Diretorial”,

Sergio Barreto Filho escreve:

O Cinema de Amadores não arruína a ninguém: muito pelo contrario, ele poderá ser o meio, como o foi para nosso amigo da Phebo Brasil Film, Humberto Mauro, de se chegar a ser um bom diretor. Centenas de rapazes que me lêem, estou mais do que certo desta verdade, possuem câmeras cinematográficas de amadores; mas amadores propriamente, no sentido que lhe venho dando de umas semanas para cá, por intermédio destes artigos, isso eles absolutamente não são.

E sob a foto que ilustra a seção:

“Barro Humano”, já tão falado, é todo feito por amadores, afinal de contas. (Cinearte, “O desenvolvimento do Cinema de Amadores no nosso Paiz”, v.4, n.151, 1929, p.18).

A coluna desta edição é uma das mais interessantes. Nela Sérgio Barreto se aprofunda

na descrição do que é o Cinema Profissional, a divisão de trabalho no sistema hollywoodiano

e os orçamentos vultosos sob responsabilidade do produtor. Comentários como “no cinema

profissional não é o diretor quem entra com os dinheiros. E aí é que o calo aperta...” quando

no cinema amador “a questão muda de figura porque ele, o diretor amador, vai ter mais

liberdade para filmar o que quizer” deixam claras as ambições do cinema amador que estava

sendo produzido pelo grupo da Cinearte: filmes feitos em grupo, de forte pendor artístico e

com liberdade. Das estirpes de amadores, esta seria a mais nobre.

As colunas de Sergio Barreto Filho servem como um mapeamento impressionante da

atividade amadora que acontecia no período. Infelizmente, os filmes não sobreviveram. O

único indício encontrado até agora de um amador ativo na coluna com filmes existentes na

Cinemateca Brasileira é do amador Alfredo Fomm14, que na edição n.177 tem uma carta

publicada:

num confronto por demais chocante, cheios de recursos e depois de muitos anos de trabalho constante” (Cinearte, “A estréa de “Braza Dormida” no Pathé Palace”, v.4, n.161, 1929, p.04).

14 Os filmes domésticos de Alfredo Fomm estão depositados na Cinemateca Brasileira e serão analisados no capítulo 3. Uma catalogação mais apurada do lote depositado nos permitiria identificar se existe algum material deste período.

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UNIÃO CINEMATOGRAPHICA DE AMADORES Recebemos da associação acima o seguinte aviso, endereçado a todos os amadores: “Tendo o prazer de comunicar que fundei uma sociedade de Cinema de Amadores, a que dei o nome de M.C.A. (União Cinematográfica de Amadores) e trabalhamos com filme de 16 milímetros, vendemos cópias, e alugamos filmes dos amadores que se interessarem. Alfredo Fomm – Director – Rua Javary, 144. – São Paulo”. (Cinearte, “Cinema de Amadores”, v.4, n.177, 1929, p.33).

A leitura dos textos, na verdade, amplia mais do que reduz o escopo do termo

amadorismo. Mas podemos extrair dali algumas diretrizes que guiam a prática amadora. A

primeira é aquela que se aproxima da fotografia de família, não necessariamente preocupada

com a técnica, e já desenvolvida no item 1.2. A segunda é a formação do campo amador com

a chegada dos equipamentos em bitolas sub-standard, a instalação dos escritórios de

representação, as colunas dedicadas a este nicho e a formação de associações. Com os anos, a

institucionalização de diversos outros foto-cineclubes aponta para a intensidade das atividades

e da troca nacional entre as diversas associações. É o caso das publicações do Foto-Cine

Clube Bandeirante e da atividade do cinegrafista amador Sioma Breitman e Alfredo Fomm,

ambos donos de estabelecimento comerciais que processavam e produziam filmes. Podemos

denominá-los de “amadores-profissionais”.

O terceiro ponto, que não se constitui necessariamente como uma diretriz, é a

condição amadora do cinema brasileiro, a sua precariedade econômica, a ausência de

industrialização e a dependência. Esteticamente esta condição se reverte no que Paulo Emílio

chamará de “incapacidade criativa de copiar”.

Este tema necessitaria um aprofundamento muito maior do que a presente pesquisa é

capaz de realizar. Basta, por agora, compreendermos que a condição amadora, e a sua

precariedade implícita, pode ser articulada em termos afirmativos ou negativos. O movimento

que pautou a magnitude do projeto da Vera Cruz e sua pretensão de se assemelhar à indústria

americana, ideário também compartilhado pela Cinearte, buscava negar a nossa precariedade.

Por outro lado, a precariedade pode ser força constitutiva do próprio processo criativo como é

o caso da violenta “Estética da Fome” de Glauber Rocha. Invertendo os sinais, a

profissionalização também pode ser negada como no movimento de contracultura dos

superoitistas na década de 1970 que tornou a bitola amadora Super 8 uma opção econômica e

política, privilegiando também o domínio de todos os processos da feitura de um filme e

voltando à vocação artesanal do cinema. Este último movimento marca uma faceta do

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amadorismo que será amplamente explorada pelo cinema experimental nacional e

internacionalmente.

Cada um desses “espaços” estabelecerá seus termos de atuação e interlocutores, seja a

revista de fãs, os sets de filmagem composto por amigos, os festivais amadores, as redações

das revistas especializadas. A atividade amadora também não pode ser definida sem que

analisemos os casos particulares, a história dos cinegrafistas, das associações, dos

movimentos e dos filmes.

Neste trabalho, o recorte para análise, como afirmado anteriormente, será o de filmes

de família de três períodos diferentes. Cabe agora compreendermos os processos de

catalogação empreendidos pela Cinemateca Brasileira e o lugar dos filmes domésticos neste

percurso. Além das dificuldades naturais no trato informacional com esses materiais,

tentaremos definir formas de melhorar a sua incorporação, permitindo assim uma catalogação

mais completa e uma divulgação mais ampla do acervo de filmes domésticos.

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2. MÉTODOS DE TRABALHO E PROPOSTAS DE ANÁLISE

2.1. O método de trabalho da Cinemateca Brasileira: um breve percurso

O evento mais importante da chegada de um filme à Cinemateca Brasileira é quando

ele recebe o seu Boletim de Entrada, adquirindo assim o seu lugar dentro do sistema de gestão

informacional do arquivo. Sem esse registro podemos dizer que o filme não existe. Depois ele

é armazenado nas estantes para, em algum momento da sua história, ser devidamente

catalogado. As informações, mais ou menos completas, continuam circulando pela

engrenagem do arquivo para chegar, em um momento também indeterminado, ao consulente

ou pesquisador do acervo. Para além dos arquivistas, poucas pessoas são capazes de entender

a importância e complexidade dessa engrenagem.

Um filme, no entanto, traz uma imagem muito acertada: Toda memória do mundo

(Toute la mémoire du monde, 1956), de Alain Resnais. De um emaranhando de objetos

guardados em um porão – possíveis artefatos para a história – o filme descreve

metodicamente o caminho de livros depositados na Biblioteca Nacional Francesa, do

momento em que eles chegam até o encontro com o consulente. Nem mesmo a beleza dos

enquadramentos e os movimentos de câmera são capazes de atenuar a rigidez metódica dos

procedimentos: os registros de chegada, a indexação, a catalogação, a organização das

estantes, o armazenamento. Os objetos e as informações, que compõem um universo finito,

mas gigantesco, só podem ser recuperados por causa da aplicação destes métodos de trabalho.

Todo esse esforço de racionalização e organização adquire seu pleno sentido quando um

consulente é capaz de encontrar, em meio a uma constelação de objetos, a informação ou

livros que deseja, fazendo girar a roda da história e do conhecimento.

A Cinemateca Brasileira já esteve repleta de ambientes parecidos com o porão do

filme de Resnais. Realizar o inventário de um acervo pode durar anos, ou até mesmo décadas,

e nos últimos anos coube à equipe de arquivistas da instituição tornar constante esse trabalho

básico, incluindo a breve inspeção dos filmes e a inserção dessas informações na base de

dados; esse trabalho é tamanho que ele ocupa quase a totalidade do tempo dos funcionários

dos setores de Catalogação e Preservação. Para além dos materiais em película, o aumento da

entrada de materiais no acervo inclui centenas de fitas de vídeo (Betacam, Beta digital, Mini

Dv, DVcam), principalmente pela instituição do Depósito Legal dos projetos produzidos a

partir das Leis de Incentivo, intesificando o trabalho envolvido no inventário. Nos últimos

anos a instituição conseguiu sistematizar essa chegada de tal forma que somente depósitos ou

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doações de grandes proporções não são imediatamente inventariados. A realização da segunda

etapa de coleta e catalogação de conteúdo, no entanto, varia enormemente. Uma breve

explicação do caminho dos filmes dentro do arquivo nos permitirá entender como e porque se

dá esta deficiência.

O Boletim de Entrada registra a data de chegada do material, a origem, a forma de

incorporação, a finalidade, a descrição física, às vezes uma mínima descrição de conteúdo, o

código do depositante e, o mais importante, o número de entrada e o título. O título em muitos

casos pode ser retirado dos letreiros, em outros casos ele deve ser atribuído de acordo com as

imagens ou com informações secundárias como aquelas contidas em rótulos, latas ou dados

fornecidos pelos depositantes. É importante neste momento a coleta de dados dos novos

depositantes (ou atualização dos antigos), que em muitos casos são também os detentores dos

direitos patrimoniais dos filmes, dados que são posteriormente alimentados na base DOSSIÊ.

Após esse primeiro registro, o material será armazenado, de acordo com o seu status e

qualidade física, ganhando assim um topo, o seu endereço dentro do arquivo. Todas essas

informações serão inseridas na base de dados TRF e o material será acessado e o seu status

atualizado a partir do seu número de entrada.

O primeiro passo de um estagiário quando chega à Cinemateca Brasileira, por

exemplo, é apreender esse processo que chamamos de incorporação. Por mais simples que

ele possa parecer, este momento é de fundamental importância pois é quando é decidido o

“destino” do filme: dependendo das informações inseridas nesse Boletim de Entrada, e,

posteriormente na base de dados, um filme pode seguir diversos caminhos. Se o filme é um

nitrato, ele será catalogado e armazenado com mais rapidez, se for depósito legal os seus

letreiros serão anotados antes de outros, se for cinejornal ele pode seguir para a Catalogação

para a descrição de conteúdo, se estiver atacado pela síndrome do vinagre ele será analisado

em um lugar diferente dos filmes ainda não afetados.

Na incorporação também se dá a identificação de uma série de materiais que chegam

ao arquivo em um estado extremamente precário, tanto fisicamente como no nível de

informação disponível para futura catalogação. Nestes casos, conferir um título pode fazer

com que um filme “apareça” ou “desapareça”. Por exemplo, um arquivista mais atento pode

identificar trechos de um filme conhecido no que aparentemente eram só sobras, ou o

contrário, uma cópia em 16mm de um filme conhecido, mas sem letreiro, pode ser

classificado como um material “não identificado”.

Esses exemplos não significam erros e acertos, eles somente acentuam que mesmo

numa atividade básica dentro do arquivo, a gestão de informação não é uma mera aplicação

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de um método, mas sim, uma relação de conhecimento estabelecida entre o arquivista e o

material que se tem em mãos. Falo em mãos porque incorporar filmes, catalogar a partir de

visionamento em mesa enroladeira, analisar o grau técnico e a qualidade física do material,

tudo isso requer força e trabalho físico, deslocamentos e habilidades: o arquivista trabalha

fisicamente e intelectualmente o tempo inteiro. A incorporação, portanto, cumpre a função

inicial de inventariar os filmes que chegam ao acervo e é o primeiro passo deste processo

mais complexo de catalogação. De acordo com o Manual de Catalogação da Cinemateca

Brasileira:

O simples registro de informações a partir da visão de um filme não configura a catalogação. Ela pressupõe uma complexa tarefa profissional, que exige primeiro a coleta e a análise de dados a partir do próprio material examinado, de fontes escritas e mesmo orais – sendo a coleta feita a partir de uma prévia estruturação de quais dados serão armazenados. Segue-se o registro dos dados de uma maneira organizada e a criação de um sistema de fichários que permita a eficiente recuperação das informações que apóiam o funcionamento das atividades do arquivo (...) A catalogação exige pessoal treinado, capaz de trabalhar com autonomia, pensar com clareza, avaliar dados frequentemente contraditórios, ser preciso e detalhado, bem como de acessar informações suplementares, necessárias para responder às perguntas do pessoal do arquivo e de usuários externos (CINEMATECA BRASILEIRA: 2002, p.5).

O segundo momento da catalogação se inicia quando a base de dados é alimentada

com as informações dos boletins de entrada. A primeira classificação em relação ao conteúdo

das imagens (consideraremos aqui somente os materiais em película) é feita quando as

informações do Boletim de Entrada são inseridas na base pelos arquivistas do setor de

Catalogação e os filmes são definidos de acordo com as categorias existentes: cinejornal (CJ),

curta-metragem (CM), longa-metragem (LM), filme doméstico (FDO) e publicidade (PUB)15

. Cada categoria seguirá um caminho específico dentro da dinâmica de catalogação.

As energias se concentram, primeiramente, nos cinejornais, curtas-metragens e longas-

metragens. A anotação dos letreiros é feita em mesa enroladeira e consiste na transcrição de

todas as informações contidas nos créditos iniciais e finais, incluindo cartelas e intertítulos

quando existentes, constituindo um registro da equipe e todos os envolvidos na feitura do

filme a partir da fonte primária que é o filme. A descrição de conteúdo na Cinemateca

Brasileira visa, primordialmente, descrever as imagens e sons para posterior indexação feita

no setor de Documentação, trabalho que comporá o registro do título na base FB.

15 Atualmente, a Catalogação passou a adotar também a categoria registro (RG).

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O sistema de trabalho e de circulação de informação funciona de forma mais azeitada

para estes três materiais: em um momento próximo à chegada, os letreiros são anotados, o

conteúdo dos cinejornais é descrito e as fichas de catalogação são enviadas para a

documentação. Existe algo de automático nesse processo indicando que a absorção de

prioridades de catalogação se tornou um método de trabalho naturalizado. Existem motivos

históricos, no entanto, para que esses materiais sejam catalogados de forma mais completa.

No caso dos cinejornais, a instituição considerou necessária a valorização desse acervo. Na

introdução do catálogo Cinejornal Carriço, elaborado pela equipe da Cinemateca Brasileira,

Carlos Roberto de Souza afirma:

Na Cinemateca Brasileira, pelo menos em seus primeiros cinquenta anos, apenas uma parcela muito pequena do acervo passou pelas duas fases descritas acima [inventário e catalogação]. Por motivos históricos sobejamente conhecidos, a instituição não teve meios de realizar, com a profundidade que sabia necessária, boa parte de suas principais atribuições e isso inclui a segunda etapa de catalogação do acervo fílmico. Em todo caso, cabe informar que, na tentativa de aprofundar o conhecimento de pelo menos parte do acervo, a instituição privilegiou, em determinado momento de sua história, a catalogação das coleções de cinejornais brasileiros (CINEMATECA BRASILEIRA: 2001 p.6).

Essa valorização permanece, assim como se privilegia a catalogação da produção do

período silencioso. Já os curtas-metragens e os longas-metragens seguem outra lógica.

A base Filmografia Brasileira une informações de fontes primárias (o próprio filme) e

secundárias (jornais, revistas, catálogos etc.). Retirar as informações das fontes primárias

significa contribuir para o grau de segurança da base FB. Neste sentido, o letreiro é um

documento que comprova ou refuta as informações de fontes secundárias16. No trabalho do

arquivo, a priorização de anotação de letreiros de curtas-metragens e longas-metragens recém-

chegados segue esta lógica de atualização da base com informações seguras17. Cabe aqui a

observação de que a veracidade dos créditos não pode ser tomada como absoluta, eles podem

escamotear um conjunto de negociações que somente a pesquisa histórica será capaz de

esclarecer. Por este motivo, os letreiros são somente mais uma fonte de pesquisa.

16 Quando a base indica que a fonte de informações é o “Material examinado” sabemos que o filme cumpriu o caminho completo de catalogação.

17 Na base de materiais TRF, o campo do título é classificado em título atribuído, título não confirmado e título original. O material só recebe o status de título original quando o título consta do letreiro anotado.

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É preciso ressaltar que o trabalho executado não conclui o processo de catalogação.

Para além dessa função de assegurar a certeza dos dados, ele inclui pesquisa em fontes

secundárias, a indexação do conteúdo e a classificação em categorias e gêneros. O olhar do

catalogador se volta para o conteúdo dessas imagens, codificadas em palavras-chaves e

termos descritores, que ajudarão na recuperação de informação na pesquisa em base de dados.

Na Cinemateca Brasileira, esse processo de catalogação é dividido por dois setores: a

Catalogação alimenta os Boletins de Entrada, faz a anotação e cotejo dos letreiros e a

descrição de conteúdo, e a Documentação faz a indexação de acordo com os documentos

enviados, realiza pesquisa em fontes secundárias e alimenta a base Filmografia Brasileira.

Mesmo que uma das fontes primordiais da Filmografia Brasileira sejam os filmes

incorporados ao acervo, ela não se restringe às fontes primárias. Publicações, catálogos de

mostras, jornais e revistas podem indicar a existência e conter dados sobre filmes,

principalmente do primeiro período do cinema brasileiro, que não existem no acervo ou que

foram perdidos, e a FB absorve essas informações. Além disso, a FB só incorpora obras

(curtas-metragens, longas-metragens e cinejornais) e alguns tipos de registros como filmes

domésticos. Ela não é, portanto, uma base de dados de conteúdo de imagens cuja função seria,

de acordo com o Manual de Catalogação, servir “de ligação entre a informação procurada

pelo consulente e a possibilidade de um aprofundamento na qualidade informativa sobre o

material sem manuseio indevido do próprio material” (CINEMATECA BRASILEIRA, 2002,

p.43).

A descrição de imagem efetuada atualmente privilegia o fornecimento de informações

para a indexação e não a descrição do conteúdo propriamente dito, que incluiria descrição

plano-a-plano, transcrição de banda sonora, observações sobre movimentação de câmera,

traços de estilo etc. É importante destacar que não existe um formato ideal de descrição, ela se

pauta pelo objetivo almejado. Filmes de ficção não precisam ser descritos ostensivamente,

uma indexação e uma sinopse são suficientes, pois esses materiais circulam no cinema, via

VHS ou DVD, e são acessíveis através de fontes secundárias como sinopses e críticas em

jornais e revistas. No caso dos cinejornais, talvez a indexação e reconhecimento de

personalidades não baste, pois a descrição provavelmente será o primeiro contato do

pesquisador com o material. Neste caso, anotações de estilo, enquadramento e movimentação

de câmera podem ser importantes.

A questão é que historicamente houve motivos para que o método de trabalho tenha se

estruturado desta forma. A base Filmografia Brasileira surge como necessidade de se fazer o

levantamento mais completo possível da produção do cinema brasileiro e compará-lo com o

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que havia sido preservado até o momento, compondo assim um diagnóstico do estado de

preservação do cinema nacional. Cabe aqui ressaltar que a consolidação da própria base

Filmografia Brasileira, e a enorme dedicação de ter as fontes primárias como fonte primordial,

é resultado de um longo esforço histórico que só conseguiu a sua plena realização com o

início do Censo Cinematográfico, projeto realizado entre 2001 e 2003. Carlos Roberto de

Souza, em um breve histórico do desejo e da necessidade da elaboração dessa filmografia,

aponta a idealização deste empreendimento na sua tese de doutorado A Cinemateca Brasileira

e a preservação de filmes no Brasil:

Esse monumental panorama de fundo era a Filmografia Geral do Cinema Brasileiro, trabalho a que a Cinemateca Brasileira se dedicava praticamente desde os esforços pioneiros de Caio Scheiby com suas fichas em papel. Com o apoio da Embrafilme, nos anos de 1980, a atividade recebera um considerável reforço e nos anos seguintes publicaram-se quatro fascículos com registros dos filmes produzidos até 1930. A escassez de recursos provocara o esmorecimento dos trabalhos da Filmografia. Por outro lado, a fragmentação dos setores da Cinemateca tivera como lamentável consequência uma separação entre a Documentação e a Catalogação, pilares sobre os quais é construída toda filmografia cientificamente válida. A Filmografia Brasileira passou a ser um “projeto da Documentação” e a atitude levaria os encarregados da elaboração dos registros filmográficos a ter pouco trato com o que deveria ser seu alimento básico: a informação levantada a partir das fontes primárias, os próprios filmes. Documentos em papel – press releases, catálogos, etc. – passaram a ser as fontes privilegiadas, num óbvio desvio de percurso. Com o Censo, a Filmografia foi retomada em novos moldes. As circunstâncias também eram outras, tinha-se uma grande familiaridade com o uso da informática nas bases de dados, estávamos todos reunidos no mesmo espaço, havia recursos para equipamento e pessoal. O projeto representou a integração das diferentes áreas da Cinemateca num propósito coletivo: tornar rapidamente disponíveis através de um veículo moderno e flexível, a Internet, os dados filmográficos coletados, pesquisados, criticados e consolidados. Tratava-se de dar acesso a um público amplo e desconhecido, inicialmente às informações sobre esse universo – o conjunto da produção cinematográfica brasileira – do qual havia alguns mapas históricos parciais mas não a exata noção da sua dimensão (SOUZA: 2009, p.259).

Ressaltar essa diferença é importante porque a gestão de informação, no caso da

dinâmica estabelecida atualmente, não significa necessariamente uma maior acessibilidade do

público externo ao conteúdo das imagens presentes no acervo. Este não é o papel da base

Filmografia Brasileira, a não ser como intenção. Permitir e definir os termos desse acesso

ainda é um desafio para a instituição. Atualmente, para pesquisadores, acadêmicos e

produtores em busca de imagens, a pesquisa se dá pelo setor de Atendimento que,

infelizmente, não se encontra suficientemente próximo da Catalogação, setor que acaba por

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ter um grande conhecimento do acervo por conta da rotina de incorporação e alimentação da

base de dados TRF, atividade que poderia ampliar e modificar a relação com o público

externo. Mesmo quando se conhece o acervo em película, os materiais em formatos que

permitem o visionamento – DVD, VHS, Betacam ou Beta digital – existem de forma reduzida

se comparado à totalidade do acervo existente ou de possível interesse. O acesso a longas e

curtas para programadores segue outra lógica e se dá pelo setor de Difusão, mais centrado na

possibilidade de projeção e empréstimo dos materiais, assim como a mediação na negociação

com os detentores dos direitos patrimoniais e de difusão das obras.

Mesmo que a Cinemateca Brasileira não tenha ainda elaborado o seu estatuto e

princípios de atuação, é evidente que por muitos anos o arquivo resolveu armazenar tudo sem

distinção de formato, diretor, período ou estado de conservação. Esta atitude visava reverter a

gravidade do abandono do nosso patrimônio cinematográfico dos anos anteriores, quando os

filmes simplesmente desapareciam, eram vendidos para a retirada da prata, queimavam por

falta de câmaras de armazenamento adequadas e se perderam para sempre. Essa urgência com

o passado elencou tudo como prioritário – o que é guardado pode ser importante algum dia –

transferindo outra urgência para o futuro: afinal, o que é importante? Muito provavelmente

este foi o movimento que permitiu que os filmes domésticos fossem recebidos e armazenados.

Voltando um pouco ao início deste processo cabe agora pensarmos nos filmes que

habitam as sombras do acervo como é o caso do filme doméstico. Se pensarmos

proporcionalmente, a maior parte de um acervo de filmes, em qualquer parte do mundo,

habita as sombras: fica guardado, não é projetado ou acessado por pesquisadores. Por que?

Simplesmente porque a história não opera com a totalidade, mas com recortes, momentos de

valorização de determinada prática cinematográfica, com obras e autores de maior

repercussão estética e política, quer dizer, com escolhas dentro e fora no universo

arquivístico. Um acervo de filmes já é, naturalmente, um reflexo dessas escolhas. Afinal,

foram as pessoas que coligiram, recolheram, armazenaram ou simplesmente jogaram fora os

filmes que em algum momento possuíram.

Independente disso, as cinematecas nunca poderiam ambicionar a valorização

completa do seu acervo. Isso seria impossível fisicamente e financeiramente, mas não só: a

totalidade diria muito pouco do que é o presente e o conjunto de expectativas e mobilizações

em relação ao passado, ou seja, uma prática historicizada. Para a instituição é fundamental

que se elenque prioridades respondendo a demandas do seu tempo porque a perda, a

destruição e o abandono são constitutivos. São eles, inclusive, que possibilitam o pensamento

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histórico acerca do cinema. Em The death of cinema, Paolo Cherchi Usai elabora um

postulado sobre a conexão entre destruição e o pensamento histórico:

VII It is the destruction of moving images that makes film history possible That is to say, the Present is indivisible and overwhelming, while the Past present us with a limited set of choices on which to exercise such knowledge as we are able to glean from the range of perspectives that remain [XLIV]. If all moving images were available, the massive fact of their presence would impede any effort to establish criteria of relevance – more so, indeed, than if they had all been obliterated, for then, at least, selective comprehension would be replaced by pure conjecture (CHERCHI USAI: 2005, p.18-19).

Garantida a existência física, cabe pensarmos na outra existência que esses filmes

possam ter. Sem a devida catalogação, muito dificilmente eles sairão das estantes. Assim

como os cinejornais foram valorizados, porque não valorizarmos os filmes domésticos?

Acredito que para além da ausência no Brasil de um movimento historiográfico de

valorização do filme doméstico, incluindo aqui os estudos acadêmicos de cinema, ele é um

objeto de difícil trato e exige que outros métodos de catalogação e documentação sejam

aplicados. A seguir tentarei elencar essas dificuldades e ao mesmo tempo propor formas de

melhorar a circulação de informações concernentes a eles.

2.2. O caso dos filmes domésticos

Os filmes domésticos sempre chegam pelas mãos de um familiar próximo ou distante

e o grau de interesse do depositante pode variar imensamente. Alguns filmes chegam porque a

família já produziu cópias em outros suportes e depositam os filmes na Cinemateca sem

necessariamente ter escolhido a instituição como uma mantenedora dessa “história familiar”.

Por alguma razão acredito que algumas pessoas sentem pena em jogar os filmes fora, mesmo

quando o acesso através de outras mídias já está garantido. Nestes casos, apesar de

depositados em uma instituição de salvaguarda eles são, efetivamente, abandonados: ninguém

volta para reaver os materiais ou fornece informações suficientes sobre a família depositante.

É possível perceber também que nessa transição da esfera privada para a esfera pública não

existe pudor de que as imagens passem por olhos estranhos, ou consciência de que a memória

familiar também possa compor um quadro mais amplo da história da vida privada e das suas

representações. É muito provável que as pessoas retratadas já tenham morrido e que os

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eventos retratados não sejam de forma alguma “comprometedores” porque as famílias não

impõem condições de restrição.

É comum também as famílias procurarem a Cinemateca para processamento dos

filmes, demanda que a instituição, infelizmente, carece de estrutura suficiente para atender,

principalmente quando há urgência. Em alguns contatos que tive com depositantes de lotes

familiares ficou evidente que a busca por estas imagens se pautava por uma forte necessidade

emocional: os depositantes mais idosos, por exemplo, sentem pressa para que essas imagens

sejam transferidas para as novas gerações. Outro caso marcante foi o de uma mulher de meia

idade, claramente emocionada, que pretendia reavivar o seu casamento recém-terminado com

as imagens do seu filme de casamento: por este motivo ela foi à Cinemateca solicitar um

orçamento de telecinagem.

A nostalgia, o olhar para o passado, a rememoração feliz dos velhos tempos resultando

em uma enorme atenção para as imagens depositadas marcaram, não por acaso, a entrevista

de dois depositantes – Belizária Salles Penteado e Domingos Giobbi. Eles, muito

generosamente e com um claro orgulho das famílias e das imagens, se dispuseram a contar

um pouco da história familiar e da feitura dos filmes. Os dois casos representam o que

chamaríamos de depositante ideal, aquele que compreende a importância das informações e

da manutenção de registros de familiares para consulta posterior.

Em todos os casos é patente que os depositantes de filmes domésticos são especiais.

Primeiro pela relação de proximidade que eles podem criar com o arquivista ao narrar a

relação da família com a própria filmagem e a recepção das imagens. Este contato requer

delicadeza e uma postura que busque identificar o significado que essas imagens assumiram

para a família ou para o familiar entrevistado. A entrevista também é de extrema importância

para obtenção de informações para uma catalogação completa do material incluindo o período

da filmagem, os equipamentos utilizados e as pessoas retratadas. É verdade que nem todos os

depositantes estão dispostos a dar um relato mais detalhado e nem sempre é possível que um

catalogador dedique especial atenção a este momento. Mas vale ressaltar que uma catalogação

plena dos títulos só acontece através deste contato mais próximo com os depositantes e do

registro de informações básicas (local, pessoas, situações, cinegrafista) já que a família é a

nossa única fonte pois, com raríssima exceções, não existem fontes secundárias que se refiram

aos filmes denominados como não-ficcionais:

Generally speaking documentaries and non-fiction film have not been documented as systematically or as thoroughly as feature film. Material

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which does not receive theatrical release (which constitutes the majority of such titles) emanates from a wide variety of sources – films made by companies to promote their product and processes, the company training or publicity film, community videos, early medical and scientific film, amateur film and home movies, the vast range of educational and instructional films from organizations of all kinds (TERRIS: 1998, p.29-30).

Uma alternativa para que este recolhimento de informações não seja tão frágil seria o

preenchimento de um questionário direcionado para os depositantes de filmes domésticos.

Uma proposta de questionário poderia ser a seguinte:

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Largo Senador Raul Cardoso 207 V. Clementino - São Paulo / SP Brasil - CEP: 04021-070 Fone / Fax: (011) 3512-6111

cinemateca brasileira

cinemateca brasileira

DEPÓSITO DE FILMES DOMÉSTICOS

O recolhimento das seguintes informações é de fundamental importância para a catalogação dos filmes domésticos depositados na Cinemateca Brasileira. Por favor, preencha com dados disponíveis e sinta-se livre para complementar com informações de acordo com a sua conveniência.

Nome completo do depositante:

Endereço:

Telefone:

E-mail:

Profissão:

Nome e contato de outros familiares que possam responder pelos filmes:

Liste o nome de pessoas que aparecem nas imagens, o grau de parentesco e profissão:

Existe alguma informação sobre as situações e/ou locais filmados?

Quem era a pessoa responsável pelas filmagens?

Qual era o equipamento utilizado?

Onde eram revelados os filmes?

Existe alguma lembrança da projeção dos filmes?

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Outro complicador é o estatuto jurídico dos filmes. Muitos depósitos de filmes

domésticos não possuem contratos assinados o que constituiria a aceitação dos termos que

regem a doação e o depósito presentes no Contrato de Depósito (disponível no site da

instituição). A doação ou o depósito de filmes prevêem os seguintes direitos à instituição:

Dos Direitos da Depositária VIII - A depositária poderá inscrever, em seu Catálogo Geral, os filmes ou materiais depositados. IX - A depositária poderá empreender pesquisa ou permitir que terceiros consultem os filmes ou materiais depositados, desde que eles estejam em condições técnicas que admitam a manipulação e que essas pesquisas não sejam utilizadas com fins comerciais. As consultas ou pesquisas somente poderão se realizar nas dependências da depositária ou em locais autorizados por esta. X - A depositária poderá exibir os filmes ou expor os materiais depositados em iniciativas culturais promovidas em suas dependências ou nas da SAC - Sociedade Amigos da Cinemateca. Nesses casos, a Cinemateca poderá estabelecer a cobrança de uma taxa de manutenção destinada a custear suas atividades de difusão cultural, conforme legislação em vigor. A exibição cultural fora desses recintos deverá ser expressamente autorizada pelo depositante. Subcláusula Única: A exibição em televisão somente ocorrerá com expressa autorização do depositante. XI - Quando um filme exigir trabalhos de restauração tais como feitura de matrizes de arquivo, de cópias, ou tratamentos especiais, eles serão realizados pela depositária em seu próprio laboratório ou em laboratórios profissionais sob sua supervisão. Subcláusula Um: Nos casos em que o depositante custear esses serviços, ele será o proprietário dos novos materiais produzidos, além de eventual detentor dos direitos de exploração comercial.

A ciência e aceitação dos termos do contrato de depósito já seriam suficientes para

facilitar o acesso aos filmes. Por outro lado, mesmo que os depositantes assinem o contrato, o

potencial uso dessas imagens se concentra muito mais na pesquisa histórica e na cessão de

imagens para uso em documentários, produções para televisão ou para diretores que possam

ter interesse em utilizá-las em seu processo de criação artística. No caso dos filmes

domésticos, é preciso investigar se para além dos direitos de difusão, também não seria

necessário definir os termos de autorização do uso de imagem das pessoas retratadas. Essa é

uma das questões que mobiliza alguns arquivistas e juristas que lidam com acervos familiares

já que, originalmente, grande parte das imagens não foi produzida para utilização além do

circuito familiar (NEDELEC: 2003; DELEFORGE: 2003).

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A distância temporal e a baixa circulação desses materiais, porém, não geraram ainda

essa pressão por autorizações de uso de imagem dos retratados, mas não deixa de ser um

ponto de fragilidade jurídica. A verdade é que o acervo está circundado por inseguranças o

que também dificulta a mobilização em torno dele. Os contratos de depósito deveriam,

obrigatoriamente, conter dados sobre diversos membros da família já que o direito versa sobre

a família e não somente sobre o depositante ou o produtor. No caso do falecimento do

depositante, também é fundamental que outros familiares sejam acessíveis. É comum que não

exista outra forma de contatar a família sem que se realize uma verdadeira busca pelos

possíveis parentes de um depositante falecido ou sem contatos atualizados.

A incorporação dos filmes também tem as suas particularidades. Em geral os filmes

chegam em lotes com vários rolos, normalmente de 32m (tamanho padrão da bobinas de

câmeras amadoras em 16mm). É comum a entrega de material incompleto: ora faltam

fotogramas, ora há quebra de conteúdo. Atribuir um título a essas pequenas unidades é um

desafio já que a cada dez metros as imagens podem mudar de tempo e assunto. O padrão

adotado é de utilizar o sobrenome da família seguido de um título conferido, primeiramente,

de acordo com letreiros e, quando ausentes, com anotações enviadas junto ao filme (na lata,

no rótulo, em cadernos) ou fazer uma descrição da imagem. Privilegia-se sempre os letreiros,

depois as informações de fontes secundárias e, por último, a atribuição de título pelo

arquivista. Documentos enviados com os lotes devem ser guardados e enviados para o setor

de Documentação. Alguns exemplos de títulos: BREITMAN. BODAS DE PRATA ROSA E

SIOMA, CADIER. CENAS FAMILIARES EM 1942 EM MINAS GERAIS I e CASTRO

MAYA. GOIÁS.

Como esses materiais dificilmente serão catalogados de forma completa, o ideal seria

aproveitar o momento de incorporação para descrevê-los da melhor forma possível. A base

TRF não possui campos de indexação, mas seria interessante incluir um campo no qual o

conteúdo possa ser recuperado pela pesquisa nesta base.

Outra questão é que não se diferencia registros, filmagens sem letreiros, aqueles que

saltam de um assunto para outro sem ter uma unidade, e filmes com edição e letreiros. Isso

altera a recepção das imagens principalmente por parte de possíveis consulentes, pois os

formatos também dizem muito sobre o objetivo e as intenções dos cinegrafistas.

Complementar a categoria FDO com informações como EDITADO ou NÃO-EDITADO ou

diferenciar entre filme e registro permite que o pesquisador e/ou catalogador teça

considerações sobre a circulação dos materiais – se foi feito por um profissional ou um

amador, por exemplo – e as expectativas envolvidas. O produtor pode ter ordenado o seu

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material através da edição e inserção de letreiros, tornando a finalização do filme tão

importante quanto a captação das imagens. Um filme feito por um cinegrafista contratado

também indica outras relações que interferem ou contribuem para a catalogação e análise das

imagens.

O glossário das Regras de Catalogação da FIAF (Federação Internacional de Arquivos

de Filme), por exemplo, não traz a definição de filmes domésticos, mas utiliza o termo na

definição de domestic record ou personal record, uma diferenciação sutil mas que dá conta da

separação entre eventos em família e eventos sociais captados por amadores.

Domestic record - moving image material, the subjects of which are family events, usually filmed or recorded by an amateur. Home movies are domestic records. See also Personal record. (FIAF: 1991, p.189). Personal record - moving image materials, the subjects of which are normally personal events, usually filmed or recorded by an amateur. Home movies may be personal records. See also Domestic record. (FIAF: 1991, p.194).

A utilização dos termos na catalogação segue as seguintes premissas:

1.5.2.5. [Personal Record]/[Domestic Record] Use one of these introductory phrases for moving image material, the subjects of which are personal or family events, i.e., “home movies,” usually produced by an amateur. Prefer the phrase “[Domestic record]” when family events are emphasized and “[Personal record]” when they are not. It is of the utmost importance to the integrity of home movie collections to maintain their original intended organization. Supply the name of the person or family who is the subject of the material or is its focal point. Precede the name with a period, space ( . ). Personal names may be recorded either directly or in inverted form, depending upon the requirements of the archive. If an additional title appears on the film, container, or accompanying documentation, include it following the square brackets with the period, space punctuation ( . ). Supply additional numerical or descriptive titles if there are several separate home movie works that need to be uniquely identified. Enclose the entire supplied title in square brackets. Examples: [PERSONAL RECORD. RALPH BARTON]. CAMILLE, OR, The FATE OF A COQUETTE. 1 [PERSONAL RECORD. RALPH BARTON. NEW YORK SCENES, PARIS SCENES, EUROPEAN SCENES] 2 [DOMESTIC RECORD. ROBERT A. TAFT FAMILY] [DOMESTIC RECORD. ICKES, HAROLD]. HEADWATERS FARM 3 [DOMESTIC RECORD. EUGENE MEYER FAMILY. FAMILY CAMPING TRIP IN THE CANADIAN ROCKIES]

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1 “CAMILLE, OR, The FATE OF A COQUETTE” appears on the item and on accompanying material. 2 Cataloger has supplied titles for separate segments assembled by Barton. 3 Title, HEADWATERS FARM, appears on container (FIAF: 1991, p.33).

Na Cinemateca Brasileira termos como REGISTRO e NÃO-EDITADO18 poderiam

ser complementares à categoria FDO. Curiosamente, uma das contribuições da Cinemateca

Brasileira nas Regras de Catalogação da FIAF é a descrição de uma ficha de catalogação de

um filme doméstico, formato que não é de uso corrente nos moldes de trabalho atuais. Usarei

este padrão como base nas fichas de catalogação dos títulos a serem analisados no capítulo 3.

Example 35: A home movie [DOCUMENTARIO DOMESTICO. CARMENCITA DA SILVEIRA JULLIEN.CARMENCITA E PAIS NO NAVIO BAGE]. BAGE, DEC. 1934 - JANV. 1935. -- BR, 1935-1936. -- Direitos legais: Cinemateca Brasileira (?). Reversível original: 1 rolo (36 m.) ; 16 mm. : S., b&p, sil. / BSR SP02662X. A titular possui cópia em vídeo. Este material faz parte de um conjunto que cobre eventos ocorridos entre amigos e familiares da titular: viagem a Paris e arredores, Roma, Veneza, Florença, Turim, Lausanne, Genebra, Chamonix, Nice, Monte Carlo (anos 20); casa de Joana d’Arc; cenas de São Paulo (1928 e 1950), Santos (1928), Rio de Janeiro (1928), Praia Grande (1930); convívio com amigos; casamentos (1930 e 1954); formatura na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (1948) e lançamento das pedras fundamentais da Clínica Infantil Ipiranga e da capela do Colégio Sion. Todos materiais filmados em 16 mm por Carmen da Silveira, mãe da titular. Há também material de 35 mm., sob o título [BATISMO DE CARMENCITA], da Guarani Films, de 1920. Conteúdo: Carmencita, já adolescente, nada na piscina do navio, apoiando-se em duas bóias onde se lê “Bagé.” Grupo de pessoas reunidas em lugar coberto posa para a câmera. Ao fundo, botes salva-vidas e o mar. Homem oriental carrega pequena máquina fotográfica de fole, enquanto outro senhor aparentemente prepara-se para ser fotografado. Vê-se bóia com a inscrição “Bagé - Rio de Janeiro.” Várias tomadas de pessoas em diferentes lugares do

18 De acordo com o Glossário as Regras de Catalogação da FIAF:

Record - 1. in archival moving image cataloging: a noun used as an introductory word in a supplied title to describe unedited moving image material that appears to be coverage of events not specifically staged for the purposes of filming or taping. See also Unedited materials. 2. in general used as a verb: to register information, permanently or in a reproducible form, by photographic, electronic, mechanical, or manual means; to set down in writing (FIAF: 1991, p.196).

Unedited materials - moving image records, either film or video, which have not been subjected to any systematic selection, arranging, or cutting procedures (FIAF: 1991, p.201).

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navio; entre elas identifica-se Carmencita, seus pais, e a poetisa Cecília Meireles, debruçada na amurada do navio, à contra-luz. Panorâmica do mar, avistando-se terra no horizonte. Vista do mar, mais próxima da terra. Distingue-se uma grande cidade à beira-mar e ao fundo um morro, possivelmente o Pão de Açúcar. No mar, várias embarcações, entre elas um enorme veleiro. De acordo com depoimento da titular, o “Bagé” era um vapor brasileiro, no qual seus pais resolveram viajar, por patriotismo. Arrependeram-se devido à falta de condições higiênicas do navio. (Neste registro, a classificação “Documentário doméstico” é anotada no campo “Gênero”,do registro no Bando de Dados.) (FIAF: 1991,p.183).

Quando os materiais são descritos, como foi o caso dos filmes contemplados pelo

Programa de Restauro 2007, o padrão de descrição utilizado pela Catalogação é simples e

segue as propostas do Manual de Catalogação:

...a forma que nos parece mais factível tem sido a descrição das sequências (entendidas como a unidade de espaço, tempo, ação e personagens envolvidos) para os materiais documentais e o resumo do enredo para os filmes de ficção. Essa descrição torna-se definitiva porque pode ser usada de imediato para a indexação de conteúdo do material examinado. Daí a exigência, por vezes paradoxal, de precisão e clareza na descrição, ao lado de uma certa margem de ambiguidade a respeito das informações coletadas. Caberá ao consulente checar a informação anotada pelo catalogador (CINEMATECA BRASILEIRA: 2002, p.32).

A descrição de conteúdo feita não é disponibilizada para o consulente, ela serve

basicamente para a indexação dos títulos para a base FB. Através da FB pouco se sabe da

imagem, do estilo ou movimentação de câmera, somente temas contidos e de possível

interesse. Um consulente que busca uma imagem mais específica terá dificuldade de encontrá-

la ou poderá solicitar um conjunto de filmes ao setor de Atendimento sem que as imagens

contemplem minimamente o que se está buscando. Isso, na verdade, indica a distância entre o

setor de Catalogação e os consulentes: o método deve ter como objetivo final o acesso. Como

acentua Olwen Terris em “There was a film about...The case for the shotlist”: “If the

cataloguing team is divorced from the people who use its records then it is less likely to be

aware of the areas of the collection which may require fuller cataloguing” (TERRIS: 1998,

p.55).

O mais importante seria que a descrição feita atualmente fosse disponibilizada para o

público em geral. Uma descrição plano a plano, que exige um tempo considerável do

catalogador, não seria uma prática a ser utilizada para todos os materiais catalogados, mas

materiais específicos podem exigir um tratamento informacional diferenciado. Mais uma vez

Terris elenca questões importantes:

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...how does the cataloguer decide which films or television programmes to shotlist? This difficult decision should be guided by the nature of the collection and the use (both actual and potential) made of it by the researchers. Which areas of a collection could benefit from more scholarly research? (TERRIS: 1998) [grifo nosso].

Acredito que este seja o caso dos filmes domésticos e o papel da Cinemateca como

principal agente na sua difusão. A coleção possui enorme potencial de pesquisa. Alguns temas

podem ser rapidamente elencados: a história da vida privada através do cinema, o

desenvolvimento das cidades, a representação da família, o delineamento do movimento do

cinema amador no Brasil, o comércio de equipamento fotográfico e cinematográfico no

Brasil, a utilização de bitolas sub-standard pelos movimentos de contracultura, a cultura do

amadorismo e dos foto-cine clubes, a instalação de representantes estrangeiros de grandes

empresas no final dos anos 1920, os sistemas de cor Kodachrome e Kodacolor (comum em

filmes domésticos), o desenvolvimento tecnológico movido pela necessidade de tornar os

equipamentos mais práticos e acessíveis, as colunas para amadores em publicações

especializadas... O campo de pesquisa é vastíssimo. Essas pesquisas só serão possíveis através

de uma mobilização em torno deste acervo.

A segunda fase de análise considerará o cinema como fonte histórica e como

manifestação cultural e artística passível de análise e interpretações das mais diversas áreas

como a história, a antropologia, a arquitetura e as artes visuais. Cada uma dessas perspectivas

pode gerar formatos diferentes de descrição de conteúdo e catalogação; cada olhar será capaz

de ressaltar questões diferentes. A pluralidade de formatos não seria o caso para a Cinemateca

Brasileira, pois a padronização de procedimentos é fundamental. Mas os filmes domésticos

poderiam ter um padrão de descrição um pouco mais complexa contemplando interesse

potencial de pesquisadores. A análise histórica, social, cultural e artística a partir das imagens

e das informações fornecidas pela catalogação e documentação será o guia dos formatos de

descrição e catalogação apresentados a seguir.

2.3. Propostas de catalogação e análise

“Através da fotografia dialogamos com o passado, somos os interlocutores das memórias silenciosas que elas mantêm em suspensão. O fato se dilui.

Sobre o que se passou, têm-se apenas recordações embaçadas, fatos efêmeros de uma realidade em marcha, que se desvanecem, diluem-se nas suas próprias ocorrências. Em relação à fotografia é o instante da gênese: tempo de criação, primeira realidade. O registro fixa o fato, atravessa os

tempos, perpetua a lembrança, preserva a memória, transporta ilusoriamente

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o passado, ou uma idéia dele: tempo de representação, segunda realidade. O efêmero e o perpétuo.”

(KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo, p.21)

Mesmo que a fotografia e o cinema se distanciem em muitos aspectos, para a proposta

de análise tomarei como eixo as reflexões e análises de alguns historiadores em torno da

fotografia enquanto fonte documental (KOSSOY; MAUAD; MOREIRA LEITE). O livro

Fotografia & história de Boris Kossoy traz uma importante sistematização dos procedimentos

de análise a serem aplicados à fotografia como fonte histórica. A primeira questão do autor é

exatamente a de ressaltar a inserção da fotografia no rol de objetos e documentos passíveis de

análise pelo historiador. Para além da dificuldade de ordem cultural, que o autor denominará

de “um aprisionamento multissecular à tradição escrita como forma de transmissão de saber”

(KOSSOY: 2009, p.30), a imagem não é um documento de fácil leitura, ela exige outro

instrumental de análise para historiadores e arquivistas.

Uma das questões de fundo, já esboçadas nos capítulos anteriores, é o binômio

fato/representação e a capacidade indicial da imagem mecanicamente captada que não pode

ser confundida com a verdade. Quando pensamos na investigação histórica que pode ser

empreendida com os filmes domésticos, a sua dimensão de registro, de um fragmento de um

mundo passado, não pode ser negligenciada. A primeira importância do filme doméstico é sua

capacidade de nos re-apresentar o mundo do passado em movimento. É necessária, no

entanto, uma postura crítica, aqui ressaltada pela historiadora Ana Maria Mauad:

A fotografia é uma fonte histórica que demanda por parte do historiador um novo tipo de crítica. O testemunho é válido, não importando se o registro fotográfico foi feito para documentar um fato ou representar um estilo de vida. No entanto, parafraseando Jacques Le Goff, há que se considerar a fotografia, simultaneamente como imagem/documento e como imagem/monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado - condições de vida, moda, infra-estrutura urbana ou rural, condições de trabalho etc. No segundo caso, a fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo (MAUAD: 1996, p.81).

No caso da imagem em movimento, outros fatores acrescentam dificuldade em relação

a sua análise. Quando pensamos no trabalho de arquivo, o trato com a fotografia e o cinema se

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distancia muito. As fotografias se encontram armazenadas e expostas em arquivos públicos e

privados, museus históricos, museus de arte, universidades, instituições públicas ou coleções

particularidades – a pluralidade de espaços e arquivos fotográficos possibilita uma diversidade

de pontos de partida para análise e pesquisa. Por exemplo, um acervo fotográfico de um

museu de arte não segue a mesma diretriz de uma coleção de um acervo público; os diferentes

espaços sinalizam formas distintas de mobilização, valorização e relações de pesquisa. Existe

também uma proximidade muito maior do público pesquisador em relação à utilização da

fotografia já que elas se encontram publicadas em livros e jornais, apontando assim uma

circulação muito mais ampla e um contato mais direto do que com o cinema.

Outro fator é que não existe qualquer pretensão de se preservar “a produção

fotográfica nacional” devido ao fato da fotografia ser uma prática muito mais difundida. A

preservação opera através de recortes. Um arquivo nacional, como a Cinemateca Brasileira,

está imbuído da responsabilidade de preservar o patrimônio audiovisual do país. Isso significa

que o acervo é pensado a partir de um termo muito genérico que é o de “patrimônio

audiovisual”. Os arquivos fotográficos, por outro lado, se guiam por uma noção de coleção –

mesmo quando um arquivo público tem como “obrigação” coletar certas fotografias, na sua

origem elas já são fruto de um recorte – e a manutenção e o acesso às coleções não é tão cara

ou complexa como no cinema. O esforço de se preservar um filme e de se ter uma cópia de

projeção ou acesso, permitindo assim a visualização, é muito mais oneroso. Uma reprodução

fotográfica é algo que pode ser feita caseiramente enquanto o cinema exige uma estrutura

muito mais complexa conferindo outro sentido para o que significa armazenar e preservar um

filme.

Além disso, a fotografia não necessita da mediação de um aparato para ser “vista”. No

cinema, o artefato preservado (rolos de filme) não é o objeto analisado, quer dizer, não é a

imagem em movimento. Esta mediação, por exemplo, torna o momento da descrição física do

artefato (grau de deterioração, metragem, cromia etc.) e da análise do conteúdo dois

momentos que podem se distanciar muito porque nem sempre o pesquisador poderá ter acesso

à imagem em movimento. Ou, no caso do exame das imagens em mesa enroladeira, sempre

haverá algo incompleto neste contato entre o olhar do catalogador/pesquisador e o filme

propriamente dito. O trabalho de catalogação na Cinemateca Brasileira muitas vezes opera

nesta incompletude.

Tomando as diferenças como pano de fundo, algumas das premissas de análise

expostas por Boris Kossoy nos ajudarão a formular propostas de catalogação e pesquisa. A

primeira delas é a importância do que o autor denomina como a “trajetória da fotografia”:

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Toda fotografia tem atrás de si uma história. Olhar para uma fotografia do passado e refletir sobre a trajetória por ela percorrida é situá-la em pelo menos três estágios bem definidos que marcaram a sua existência. Em primeiro lugar houve uma intenção para que ela existisse; esta pode ter partido do próprio fotógrafo que se viu motivado a registrar determinado tema do real ou de um terceiro que o incumbiu para a tarefa. Em decorrência desta intenção teve lugar o segundo estágio: o ato do registro que deu origem à materialização da fotografia. Finalmente, o terceiro estágio: os caminhos percorridos por esta fotografia, as vicissitudes por que passou, as mãos que a dedicaram, os olhos que a viram, as emoções que despertou, os porta-retratos que a emolduraram, os álbuns que a guardaram, os porões e sótãos que a enterraram, as mãos que a salvaram. Neste caso seu conteúdo se manteve, nele o tempo parou. As expressões ainda são as mesmas. Apenas o artefato, no seu todo, envelheceu. (KOSSOY: 2009, p.45)

Estes três “lugares” – intenção, ato do registro e história do artefato – podem ser

descritos mais pormenorizadamente. A intenção forma um arcabouço de referências culturais

ou profissionais do cinegrafista e o objetivo das filmagens. Ela pode ser documental para um

amador que filma uma mobilização popular nas ruas de São Paulo (como é o caso dos filmes

de Belizária Kujawski); técnica para um cinegrafista que aprende as particularidades da

câmera e dos negativos utilizados; ou artística para o pai de família que no seu tempo livre

exercita a sua capacidade de enquadrar a natureza da forma mais bela possível. Marcante

também é a diferença entre um filme de família feito por um profissional e por um amador.

A maneira de circundar essa intenção dependerá da quantidade e da qualidade de

fontes secundárias que poderão complementar o contato com a imagem: entrevistas com os

cinegrafistas (fontes orais), registros pessoais (diários, anotações sobre as filmagens,

biografias), trajetória profissional e depoimentos de familiares. Para a elaboração do que

chamarei de ficha de análise, devem ser registradas informações de origem do cinegrafista, a

profissão, o local de origem e de atuação profissional, histórico familiar, equipamentos,

procedimentos de revelação e depoimentos. Informações técnicas sobre a câmera e o negativo

utilizado também são importantes, assim como os materiais disponíveis do mesmo título ou

coleção e a sua descrição física. Este campo de recolhimento de dados compõe o que Boris

Kossoy denomina como análise técnica, a “análise do artefato, a matéria, ou seja, o conjunto

de informações de ordem técnica que caracterizam a configuração material do documento”

(KOSSOY: 2009, p.77). O modelo da Ficha de Análise é apresentado a seguir:

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FICHA DE ANÁLISE

1. Contexto 1.a – Produtor Nome: Ano e local de nascimento:

Amador

Profissional

Profissão: Empresa produtora:

1.b – Histórico familiar Origem: Ascendentes e descendentes: 1.c – Histórico da Empresa Produtora Origem: Local: Atuação profissional: 1.d – Informações técnicas Câmera: Negativo: Forma de revelação: 1.e – Condições do depósito Nome do depositante: Data de chegada: Data da catalogação: Listagem dos filmes depositados: 2. Análise de conteúdo e formas de expressão 2.a – Descrição de conteúdo Descrição de conteúdo por sequência e minutagem: 2.b – Indexação Termos descritores e descritores secundários

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Ao mesmo tempo em que o delineamento das intenções e a análise técnica comporta

uma certa objetividade, ela seria incompleta sem a interpretação das formas e estilos. Essas

duas dimensões serão divididas no momento da análise. Primeiro as feições técnicas

comporão a análise iconográfica, a “análise do registro visual, a expressão, isto é, o conjunto

de informações visuais que compõem o conteúdo do documento” (KOSSOY: 2009, p.77). Na

ficha de análise, a descrição de conteúdo por sequência contemplará a movimentação de

câmera e o enquadramento. O padrão da Cinemateca Brasileira indica um formato de

descrição de conteúdo nos seguintes moldes:

A descrição de conteúdo propriamente dita consiste grosso modo no levantamento de informações, visuais e sonoras, que poderão ser solicitadas por consulentes. A partir dessa descrição constitui-se o índice recuperador de assuntos dos materiais do acervo. A Ficha de Catalogação pode ser acrescida de uma ou mais folhas de anotações sobre o conteúdo do filme, por exemplo para a descrição das sequências (entendidas como unidade de espaço, tempo, ação e personagens envolvidos) para os materiais documentais e o resumo de enredo para os filmes de ficção (CINEMATECA BRASILEIRA: 2002, p.31).

O Manual de Catalogação também prevê a indicação de enquadramento, movimento

de câmera e trucagens. Na prática cotidiana essas informações não são usualmente

incorporadas à descrição de conteúdo. Para os filmes domésticos será importante descrever

minimamente as características estéticas dos filmes e comentários do catalogador serão

incluídos com a devida identificação. Quando o material já tiver sido descrito pela

catalogação anexarei o modelo de descrição (MODELO I), em prática atualmente na CB, e

proporei uma descrição de conteúdo por sequência, com anotações sobre movimento de

câmera e minutagem (MODELO II)19. As sequências serão divididas como em um roteiro

cinematográfico, indicando o tempo e o espaço da ação que formam uma unidade narrativa.

As cenas dentro das sequências serão separadas por ponto e vírgula ( ; ) e quando houver uma

alteração de espaço, sem ser necessariamente uma alteração de sequência, a cena será

separada por uma barra ( / ). Intertítulos serão indicados entre aspas. Por fim, o histórico dos

lotes e/ou filmes e o seu trajeto até a instituição serão incluídos sempre que possível.

A dimensão factual das imagens – suas referências geográficas, históricas e temporais

– será contemplada no último momento com a indexação desses artefatos, atividade já em

19 Este modelo é similar ao proposto por José Francisco Mattos na sua dissertação de mestrado A representação do conteúdo de imagens em movimento por palavras numa perspectiva documentária (ECA/USP: 2003).

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curso no processo de Documentação. Uma ficha catalográfica também será elaborada a partir

dos lotes e dos materiais examinados seguindo o modelo apresentado pela Cinemateca

Brasileira para as Regras de Catalogação da FIAF.

No próximo capítulo, a Ficha de Análise e a Ficha de Catalogação serão utilizadas

para o estudo de três filmes de família. A utilização desses formatos visa emular o trabalho da

Catalogação e da Documentação. A primeira funcionaria para registros de informações e

pesquisa sobre os filmes domésticos e estaria restrita à circulação interna. A segunda ficha

seria um resumo dessas informações e com o acréscimo da indexação seria disponibilizada

para o público externo.

Outra forma de análise, aquela que comporta uma projeção imaginária sobre a época

em que as imagens foram produzidas e as intenções envolvidas, será desenvolvida a partir das

Fichas de Análise. Neste momento, buscarei estabelecer relações entre os filmes e um

contexto cultural e histórico mais amplo além de explorar as suas características e efeitos

estéticos. Esta segunda realidade, aplicada à fotografia e que estenderemos também aos filmes

de família, é definida por Kossoy nos seguintes termos:

A fotografia não está enclausurada à condição de registro iconográfico, isento dos cenários, personagens e fatos das mais diversas naturezas que configuram os infinitos assuntos a circundar os fotógrafos, onde quer que se movimentem. Há um olhar e uma elaboração estética na construção da imagem fotográfica. A imaginação criadora é a alma dessa forma de expressão; a imagem não pode ser entendida apenas como registro mecânico da realidade dita fatual. A deformação intencional dos assuntos através das possibilidades de efeitos ópticos e químicos, assim como a abstração, montagem e alteração visual da ordem natural das coisas, a criação enfim de novas realidades têm sido exploradas constantemente pelos fotógrafos. Neste sentido, o assunto teatralmente construído segundo uma proposta dramática, psicológica, surrealista, romântica, política, caricaturesca etc., embora fruto do imaginário do autor, não deixa de ser um visível fotográfico captado de uma realidade imaginada. Seu respectivo registro visual documenta a atividade criativa do autor, além de ser, em si mesmo, uma manifestação de arte. A percepção dessa ambígua condição da fotografia é fundamental para sua análise e estudo (KOSSOY: 2009, p.49).

Essas são questões que permearão as análises do capítulo seguinte.

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3. ANÁLISES: UM IDEAL DE PERCURSO

A estrutura do presente capítulo busca reproduzir um ideal de percurso que o filme

doméstico poderia seguir dentro e fora da Cinemateca Brasileira. A Ficha de Análise, por seus

aspectos técnicos e históricos, circunscreve o trabalho dos setores de Catalogação e

Documentação: as informações coletadas a partir das fontes primárias e secundárias são

coligidas, as feições técnicas das coleções são descritas e é feita a Ficha Catalográfica, um

resumo dessas informações a ser disponibilizada para o público externo. O formato da Ficha

Catalográfica se assemelha, em linhas gerais, aos registros da base Filmografia Brasileira que

apresentam as informações levantadas pelos setores e pela consulta às fontes secundárias. O

uso da Ficha Catalográfica, no entanto, foi uma mera opção e visou aproveitar um formato

específico para o tratamento dos filmes domésticos apresentado à Comissão de Catalogação

da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF) pela Cinemateca Brasileira. Como

já foi ressaltado anteriormente, os filmes domésticos, com raras exceções20, não chegam a

cumprir este caminho de forma completa.

Esta primeira parte é o que chamaremos de trabalho interno a ser executado pelo

arquivo e formará a análise da primeira realidade. O objetivo, como na análise técnica e

iconográfica da fotografia proposta por Kossoy visa:

reunir o maior número de dados seguros para a determinação do assunto, fotógrafo e tecnologia (os elementos constitutivos) que deram origem a uma fotografia num preciso espaço e tempo (as coordenadas de situação). Essa determinação se fará através da análise técnica (análise do artefato, a matéria, ou seja, o conjunto de informações de ordem técnica que caracterizam a configuração material do documento) e a análise iconográfica (análise do registro visual, a expressão, isto é, o conjunto de informações visuais que compõem o conteúdo do documento) (KOSSOY: 2009, p.77).

20 O acervo de filmes domésticos da família Breitman, a única coleção a ser incorporada à FB recentemente, foi disponibilizado de forma mais completa em relação a outros registros de filmes domésticos. O campo da sinopse incluiu a transcrição dos letreiros e a descrição de imagem. Os termos descritores e os descritores secundários são muito mais abundantes. O motivo para a diferença no tratamento informacional é que os materiais foram visionados e descritos pela equipe da Documentação. O acesso visual aos materiais enriquece a descrição e a indexação e, consequentemente, o nível de informação disponibilizado para o público externo. O fato da coleção ter sido um dos contemplados pelo Programa de Restauro 2007 explica a presença dos registros na base FB.

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A segunda parte toma os filmes como fonte de pesquisa nas mais diversas áreas e se

ancora neste primeiro momento, mas faz dele somente o seu ponto de partida.

Os filmes escolhidos para a elaboração das fichas são filmes de família de três

períodos históricos: Reminicências de Aristides Junqueira (1909 – 1920c), Alves de Lima.

Praia e animação (1929c) e Vasconcellos. Aniversário de Isabel e batizado de Marilena

(1956). No que tange o trabalho executado pela Cinemateca Brasileira, o primeiro foi

extensamente analisado, possui descrição plano a plano e registro na base FB; o segundo

possui descrição de conteúdo, sem registro na base FB, e o terceiro foi somente incorporado.

O critério para a seleção era contemplar momentos históricos distintos na tentativa de

identificar possíveis semelhanças e diferenças na representação da família e um breve

delineamento do campo amador. Um fator técnico também foi determinante: os filmes

escolhidos estavam disponíveis em DVD, possibilitando a análise da imagem em movimento.

Para além do critério racional e prático, os filmes escolhidos trazem, invariavelmente, a marca

do afeto.

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3.1. Fichas de Análise: a primeira realidade

3.1.1. Reminicências – Aristides Junqueira

1. Contexto

1.a - Produtor Nome: Aristides Francisco de Castro Junqueira

Ano e local de nascimento: Nasceu no dia 28 de Agosto de 1879 na Fazenda Passa Dez - Ouro Preto, Minas Gerais e faleceu no dia 21 de Maio de 1952 em Belo Horizonte, Minas Gerais.

Amador

Profissional X

Histórico Profissional: Iniciou vários cursos de ensino superior – Farmácia em Ouro Preto, Medicina no Rio de Janeiro e Direito em Belo Horizonte –, mas não concluiu nenhum deles. Foi Primeiro coletor Federal durante o governo de Francisco Salles tendo abandonado a carreira para se dedicar à fotografia e ao cinema. Pedro Lima, no artigo “Um pioneiro do cinema nacional – Um pouco da história do mineiro Aristides Francisco de Castro Junqueira” publicado em O Diário no dia 27/05/1955, traz um breve histórico do cinegrafista: “A história do cinema nacional ainda não registra o nome do mineiro Aristides Francisco de Castro Junqueira – um dos pioneiros da cinematografia nacional – que residiu por largos anos em Belo Horizonte e aqui faleceu em 21 de maio de 1952, aos 73 anos de idade.

Artista consumado da pintura e da fotografia, durante quarenta e tantos anos usou a câmara de filmagem, produzindo documentários e reportagens não só em Minas como fora do Estado, principalmente no norte do país (...) Seu primitivo laboratório achava-se instalado nos fundos da sua residência à rua Goitacases n.160 nesta capital. Constava de uma banheira cimentada e de uma grande roda de madeira para revelação de filmes além de outros apetrechos necessários. Em 1911 Aristides Junqueira falando correntemente o francês e o italiano, fez parte da delegação do Estado de Minas junto ao Pavilhão Brasileiro da Exposição internacional de Turim, onde foi exibida uma fita que produzira para o Governo Estadual e que poderá ser considerado como o primeiro filme projetado na Europa tendo por roteiro fazendas de cultura e de gado, indústrias, abrangendo afinal detalhadamente a produção de Minas Gerais em suas diferentes regiões. Foram-lhe conferidos medalhas e diploma de mérito. Naquela época teve oportunidade de visitar em Paris os estúdios cinematográficos da Gaumont e Pathé Fréres, tendo executado trabalhos neste último. Anos depois tendo fundado o jornal cinematográfico “Cine Cruzeiro – A.Junqueira” (antes Cruzeiro do Sul), com sede no Rio e agencia em B.Horizonte, seus filmes projetaram-se nos cinemas do País durante algum tempo revelando o Brasil aos brasileiros. Dos mais arrojados recordamos dois: o documentário das regiões do rio Araguaia em 1925 (exibido na Europa) e as cenas da revolução de

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1932. A respeito do primeiro, “O Globo” do Rio, de 4 de janeiro de 1926, publicou uma entrevista de Aristides Junqueira sobre os usos e costumes dos índios (Carajás, Cherentes, e outros) estampando fotografias em toda a sua primeira página. Em uma de suas viagens ao Norte, filmou em cores o Museu Goeldi de Belém do Pará com as suas aves tipicamente amazonicas e de rara beleza em 16mm. Este filme foi revelado nos EE UU. Em Belo Horizonte Aristides Junqueira produziu inúmeros filmes. Citam-se: o de família (1909) em que aparece o seu pai Cel.Antonio Francisco Junqueira, que fôra o primeiro coletor estadual da Capital falecido em 1914; o primeiro filme de propaganda comercial, por ocasião do aparecimento da revista “Vita”, em 1915; uma pequena comedia em 1921 tendo por artista Charles Chaplin muito bem imitado por um rapaz de B. Horizonte; o filme de uma operação praticada pelo Dr. Humberto Werneck; e o filme oficial do Congresso Eucarístico Nacional em 1936 (sonoro)”

A pequena comédia citada são imagens que compõem o filme Reminicências. Aristides Junqueira não chegou a produzir filmes ficcionais. De acordo com entrevista concedida por Paulo Alvarenga Junqueira, neto de Aristides: “Ele não teve tempo para aventurar-se na ficção. Seus documentários e cinejornais eram seu ganha-pão, único aliás. Como não tinha emprego fixo, vivia correndo atrás de políticos, para ter o que produzir” (GOMES, Paulo Augusto. Pioneiros do Cinema em Minas Gerais, p.36). Fez trabalhos sob encomenda para políticos de Minas Gerais e do Pará. Na década de 1940 se dedicou somente à fotografia e trabalhou para a prefeitura de Belo Horizonte. “Nos anos 40, já cansado de suas andanças, Junqueira retorna a Belo Horizonte. O novo prefeito da cidade é um velho amigo seu: Juscelino Kubitscheck. Numa conversa com ele descobre que a prefeitura possui, encaixotado no seu almoxarifado, moderno e valioso equipamento de microfilmagem – um dos primeiros chegados ao Brasil. A aparelhagem havia sido comprada na administração Otacílio Negrão de Lima e se achava, desde então, inaproveitada, correndo, inclusive, sério risco de deterioração. Com o apoio de Juscelino, Junqueira monta o maquinário, coloca-o em funcionamento, e dirige, por algum tempo, o novo serviço. É, talvez, sua última tarefa relacionada com técnica fotográfica e cinematográfica (...) (FALABELLA: 1978, p.43). Várias fontes citam Reminicências como as únicas imagens produzidas por Aristides Junqueira que sobreviveram. No entanto, na matéria “Um gosto de aventura” publicada no Suplemento Literário de O Estado de Minas Gerais, Ano XIII, no.639, 30/dez/ 1978, também de autoria de Paulo Augusto Gomes, existe uma referência aos “ vários rolos do Cine-Jornal Amazonense, recentemente descobertos, nos quais uma novidade era, por exemplo, a Peleja de Football em Homenagem ao Gen. Lobato filho”. Ainda em FALABELLA: “O crítico e pesquisador Paulo Augusto Gomes dá-nos notícia de ter assistido, num dos festivais de Brasília, à apresentação de um cinejornal de atualidades amazonenses produzido pela Cruzeiro do Sul de Aristides Junqueira, naturalmente recuperado e já copiado em acetato”. Existem referências de que o filme A vida dos índios do Bananal (1924) poderia estar depositado no Museu do Homem, em Paris (GOMES: 2008). É preciso averiguar a existência desses materiais. Alguns de seus filmes foram distribuídos pela Distribuidora de Filmes Brasileiros, empresa estabelecida no Rio de Janeiro, cidade em que possuía escritório de representação de sua empresa.

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1.b – Histórico familiar Ascendentes e descendentes: Antônio Francisco Junqueira (pai) e Arminda Maria Monteiro de Castro (mãe). Teve 12 irmãs e 5 irmãos. Filhos (não foi possível identificar todos os seus descendentes): Chloris, Alice, Heloisa, Moacyr e Zuleika Junqueira (cf. letreiros de Reminicências) Aristides Junqueira e Oswaldo Junqueira. Foi casado por 26 anos com Corinna. Após a morte de sua primeira mulher, casou-se com outra Corina com a qual teve mais um filho.

1.c – Histórico da Empresa Produtora Origem: Cruzeiro do Sul (1910c) e Cine Cruzeiro (décadas de 1930 e 1940c) Local: O primeiro laboratório era localizado na casa do pai na Rua Bahia. A Cine Cruzeiro possuía escritório localizado na Rua do Riachuelo, n.5, Rio de Janeiro e agência na Rua Goytacazes, 160 (residência do cinegrafista).

1.d – Informações técnicas Câmera: Câmera construída pelo próprio cinegrafista. Negativo: O contratipo de imagem 03741-09 possui diversas marcas de borda em branco sem que possamos ter certeza se elas vieram propriamente do negativo: Belgium Gevaert, Kodak (dois quadrados, no.1 20 e Goerz Tenax (do início para o fim do rolo). Forma de revelação: As primeiras imagens de Reminicências provavelmente foram processadas pelo próprio cinegrafista que possuía laboratório caseiro: “seu laboratório ficava na casa de seus pais, situada à rua da Bahia. Era em um pequeno cômodo voltado para a rua Bernardo Guimarães” (entrevista citada) e depois em laboratório na sua residência da Rua Goytacazes.

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1.e – Condições do depósito Nome do depositante e detentores dos direitos patrimoniais: Paula Junqueira (Detentora dos Direitos Patrimoniais) – código: 1947; Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) – código: 0094 e Laboratório Líder – código: 0084. Data de chegada: (?) Data da catalogação: 22 de Outubro de 2009. Listagem dos filmes depositados:

1) Cópia de Imagem (COX); SP1270X; 16mm; BP; 95m; ponta com anotação “Laboratórios da Rex Filme”; letreiros completos.

2) Contratipo de Imagem (DNX); SN00121X; 35mm; BP; 226m; ponta com anotação “Rex Filme” e “TV Bandeirantes”; letreiros completos. 3)

3) Contratipo de Imagem (DNX); 03741-09; BP; 245m; letreiros completos; filme possui diversas marcas de borda em branco sem que possamos ter certeza do material de origem das marcas: Belgium Gevaert, Kodak (dois quadrados) e no.1 20 e Goerz Tenax (do início para o fim do rolo).

4) Cópia de Imagem (COX); 06531-05; BP; 200m; sem os letreiros e sem as imagens iniciais de 1909; embora classificado como máster de imagem (DPX), o material é uma Cópia de Imagem com deslocamento da imagem.

Obs: O título possui cópias em U-Matic (VU0939M, VU0967M e VU00991M fitas do lote Metavídeo – História do Cinema Brasileiro utilizadas na produção da série “90 Anos de Cinema”), DVD (31782-01 e 31968-05; o primeiro é a versão completa com letreiros e o segundo é a versão com cartela do MAM “arquivo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna rio de janeiro” e sem o trecho de 1909) e VHS (VV00924N - versão MAM e VV0925N- completo). Os originais em nitrato se perderam, mas não foi possível rastrear com segurança o que aconteceu com os originais.

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2. Análise de conteúdo e formas de expressão

2.a. Descrição de conteúdo MODELO II – Por sequência com indicação de movimento, enquadramento e minutagem

REMINICÊNCIAS Letreiros iniciais (00:46) “Reminicencias” Descrição de conteúdo e intertítulos “A familia do Cel.Antonio Francisco Junqueira em 1909 quando residia á Rua da Bahia em Bello Horisonte.” “Em um jardim, o Coronel, com sua longa barba, e sua família ao fundo; familiares sorriem e andam em direção à câmera.” “Está neste grupo o seu filho mais velho casado com D.Corinna e seus filhinhos Chloris, Alice, Heloisa, Moacyr e Zuleika.” (01:06) EXTERNA. CASA DE CEL. ANTONIO FRANCISCO JUNQUEIRA – QUINTAL Coronel Antonio Francisco Junqueira e família – as crianças com roupas de festas, as mulheres com saia longa, uma delas veste uma echarpe – atravessam o quadro numa clara encenação para a câmera; o Coronel, com sua longa barba branca, Aristides e Corinna Junqueira fazem movimento semelhante; Aristides Junqueira pula e faz careta. “O Cel.Junqueira falleceu em 1914 e em 1913 o seu filho Aristoteles que também está neste film.” “Comparemos o desenvolvimento da família do filho mais velho, quaes são as criancinhas de 1909?” “O filho delle o Moacyr todo cachiadinho e agora mais alto do que o pae, espadaudo e robusto.” Aristides mostra o rosto das crianças que sorriem. (02:10) EXTERNA. CASA – SACADA, ESCADAS e CARRO Saída de uma casa, noivos descem escada, pessoas observam de uma sacada [câmera faz leve movimento lateral para enquadrar as pessoas descendo atrás dos noivos], algumas pessoas olham diretamente para a câmera e sorriem (02:11) noiva (filha mais velha de Aristides Junqueira) está dentro do carro e sorri.

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(02:53) EXTERNA. IGREJA NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO – ESCADARIA Família e convidados sobem uma escadaria da igreja (?) [câmera está no alto da escada e capta as imagens de cima, pessoas embaixo com carros na rua ao fundo] e aguardam a chegada dos noivos; grupo recebe os noivos que chegam de carro e os acompanha [com as pessoas subindo a escada em direção à câmera, o quadro é totalmente preenchido pelos corpos] (03:01) INTERNA. IGREJA NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO – ALTAR Altar [câmera no alto, plano começa no altar e desce até a cerimônia, imagem fora de foco (03:37) EXTERNA. IGREJA NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO – ESCADARIA Noivos saem da igreja e descem escadaria, pessoas, aparentemente mais pobres, observam do lado de fora [câmera está embaixo e filma a saída da igreja em leve contra-plongée], cortejo de saída atrás dos noivos [câmera acompanha o movimento] (03:47) EXTERNA. RUA ESPÍRITO SANTO Longo cortejo de carros passa por uma alameda [a câmera capta do alto da rua com grande profundidade de campo] / carros param e noiva desce do carro (04:30) EXTERNA. PORTÃO Noivos descem do carro, atravessam portão e são recebidos com chuva de arroz, cortejo segue atrás do casal, grupo sobe a escada e alguns homens tiram o chapéu para entrarem na casa da recepção (04:54) EXTERNA. QUINTAL Casal e família posam como numa foto [panorâmica lateral]; “foto” do casal; familiares partem de costas, três jovens se voltam para a câmera, conversam, aparentemente interagem com o cinegrafista atrás da câmera e sorriem. (06:35) EXTERNA. RUA – FRENTE DA CASA Mulher carrega filho no colo, os dois estão fantasiados de pierrot, criança balança os braços, mulher “conversa” com o cinegrafista; grupo de crianças, jovens e adultos fantasiados de pierrot e marinheiros posam na frente da casa, pessoas sorriem e interagem com o cinegrafista, desmontam a “pose” e alguns vêm em direção à câmera. (07:15) EXTERNA. RUA – JANELA Mulher olha a rua da sacada de uma janela, mulher fantasiada de pierrot entra em quadro. (07:30) EXTERNA. RUA – PORTÃO Grupo fantasiado sai do portão, meninos e meninas vestidos de marinheiro, pierrots e piratas, meninas que estão sentadas ao fundo do quadro se levantam e passam pelo portão; criança pequena fantasiada na frente da casa, jovens gesticulam para que ela interaja com a câmera (07:52) EXTERNA. RUA – MURO Em fila rente a um muro, crianças fantasiadas festejam a chegada de um homem fantasiado de Carlitos, ele imita os movimentos do personagem famoso e brinca com as crianças; “Carlitos” carrega duas crianças nos braços de forma desengonçada, grupo

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fantasiado ao fundo. (08:10) EXTERNA. CIDADE Centro de Belo Horizonte, ruas movimentadas com carros, bondes e pedestres [câmera do alto, plano aberto] (08:15) EXTERNA. RUA – PORTÃO Mulher carrega neném com vestido branco e mostra a criança para a câmera [o movimento da câmera faz parecer que ela está na mão] (08:21) EXTERNA. RUA – JANELA Três mulheres na janela mostram criança. (08:34) EXTERNA. RUA – PORTÃO Casal no portão com criança no colo (Aristides, Corina e filho?), eles brincam (08:40) EXTERNA. RUA, CALÇADA E BONDE Mulheres andam na rua; plano frontal de mulheres andando na calçada, rua movimentada ao lado com carros e carroças, homem de óculos acompanha o grupo; plano frontal de bonde lotado com número 66 e dizeres “Bahia - A.Penna” e “Floresta” (?). (08:57) EXTERNA. RUA - FRENTE DA CASA Mulher com criança no colo, as duas sorriem, ela levanta a criança para o alto mostrando-a para a câmera. (09:10) Fim das imagens. letreiros finais (Não localizados.) Letreiros anotados a partir da cópia de imagem SP01270X; 16mm; BP; 95m e descrição de conteúdo com minutagem a partir do DVD 31782-01 com time code aparente. Obs: De acordo com entrevista concedida por Paulo Alvarenga Junqueira (neto de Aristides Junqueira) para o livro “Pioneiros do Cinema em Minas Gerais”, a primeira filmagem de Reminicências foi realizada no dia 11 de Agosto de 1909, dia do aniversário do Coronel Antônio Francisco Junqueira, no quintal da casa da família localizada na Rua Bahia, como indicam os letreiros. Conforme a mesma entrevista: “As cenas de rua foram filmadas na esquina de (sic) avenida Amazonas com rua dos Tamóios, defronte à igreja Nossa Senhora da Conceição (...) onde foi realizado o casamento de sua filha mais velha. As cenas dos carros em corso foram feitas na rua Espírito Santo, entre as rua Goitacases e Tupis. A casa da recepção ficava do lado esquerdo do Jardim de Infância Delfim Moreira. As cenas em que o próprio Aristides aparece caracterizado como Carlitos foram tomadas em frente à sua casa. No início ele aparece como um mestre de cerimônias, apresentando a família: primeiro seus pais e, em seguida, sua esposa e seus descendentes. Ela ainda não tinha todos os filhos, achando-se, à época, grávida de um deles”.

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2.b. Indexação Termos descritores Família; Automóvel; Carnaval; Cidade;

Criança; Casamento; Humorismo; Transporte coletivo; Moda; Igreja Católica.

Descritores secundários Bonde; Portão; Rua; Vestido; Chapéu; Pedestre; Casa; Carro; Carlitos – Fantasia; Belo Horizonte – MG; Igreja Nossa Senhora da Conceição, Belo Horizonte – MG.

Termos geográficos Rua Espírito Santo, Belo Horizonte – MG; Belo Horizonte – MG.

3. Ficha catalográfica

REMINICÊNCIAS. MINAS GERAIS, BELO HORIZONTE. -- BR, 1909 – 1920C. -- Direitos Patrimoniais: Paula Junqueira Cópia de imagem: SP1270X; 1 rolo (95 m.); 16 mm; BP; Silencioso; Registro pessoal editado. Contratipo de imagem: SN00121X; 1 rolo (226m); 35mm; BP; Silencioso; Registro pessoal editado. Reminicências é uma coleção de registros familiares captados por Aristides Junqueira entre 1909 – 1920c. As filmagens iniciais foram realizadas em 11 de Agosto de 1909, dia do aniversário do Coronel Antônio Francisco Junqueira, pai do cinegrafista, no quintal da casa da família localizada na Rua Bahia. Aparecem no filme o Coronel Antônio Francisco Junqueira (falecido em 1914), o seu filho Aristoteles (falecido em 1913), Aristides Junqueira e sua mulher D. Corinna e os seus respectivos filhos Chloris, Alice, Heloisa, Moacyr e Zuleika. As cenas posteriores, provavelmente filmadas na década de 1920, são imagens do casamento da filha mais velha de Aristides Junqueira e mostram a saída da noiva e dos convidados, a chegada à igreja Nossa Senhora da Conceição, o corso de carros pela Rua Espírito Santo rumo à recepção e o casal com a família reunida posando para o cinegrafista como uma foto. Na frente de sua casa em Belo Horizonte, sua mulher Corina carrega filha pequena no colo e a mostra para a câmera. As duas estão fantasiadas de pierrot e interagem com o cinegrafista. As últimas imagens mostram um Aristides brincalhão, fantasiado de Carlitos e interagindo com crianças fantasiadas de piratas e pierrots, provavelmente para as festividades do Carnaval. O filme termina com imagens do centro de Belo Horizonte, os bondes e o movimento das ruas. Conteúdo: Como um mestre de cerimônias Aristides Junqueira apresenta a sua família. “A familia do Cel.Antonio Francisco Junqueira em 1909 quando residia á Rua da Bahia em Bello Horisonte.”

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“Em um jardim, o Coronel, com sua longa barba, e sua família ao fundo; familiares sorriem e andam em direção à câmera.” “Está neste grupo o seu filho mais velho casado com D.Corinna e seus filhinhos Chloris, Alice, Heloisa, Moacyr e Zuleika.” Familiares atravessam o quadro como uma clara encenação para a câmera. No final, Aristides, sozinho em quadro, pula e faz caretas. “O Cel.Junqueira falleceu em 1914 e em 1913 o seu filho Aristoteles que também está neste film.” “Comparemos o desenvolvimento da família do filho mais velho, quaes são as criancinhas de 1909?” “O filho delle o Moacyr todo cachiadinho e agora mais alto do que o pae, espadaudo e robusto.” Aristides mostra o rosto das crianças que sorriem. Corte para a primeira cena da década de 1920, com os convidados do casamento descendo uma escada e outras pessoas observando de uma sacada. A noiva acena para a câmera de dentro do carro. Família e convidados aguardam a chegada dos noivos na escada da igreja, imagens desfocadas do altar da igreja e saída dos noivos seguida por cortejo. Corso de carros pela Rua Espírito Santo, chegada dos noivos recebidos com chuva de arroz, convidados acompanham. Homens tiram chapéu e vários convidados interagem com o cinegrafista, acenando para a câmera. Casal e família “posam” para a câmera em parte externa da casa de recepção. Na frente de uma casa, Corina carrega filha no colo, as duas estão fantasiadas de pierrot, elas sorriem e interagem com o cinegrafista. Jovens e adultos fantasiados de pierrot e marinheiros posam, sorriem e interagem com o cinegrafista. Em fila rente a um muro, crianças fantasiadas festejam a chegada de “Carlitos” (Aristides Junqueira), todos brincam. Ao final ele carrega duas crianças nos braços de forma desengonçada. Corina, Aristides com filha brincam em frente ao portão. Mulheres andam na calçada, rua movimentada com carros e carroças, homem de óculos acompanha o grupo. Plano frontal de bonde lotado com número 66 e dizeres “Bahia - A.Penna” e “Floresta”.

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3.1.2. Família Alves de Lima

1. Contexto

1.a - Produtor Nome: Família Alves de Lima (cinegrafista não identificado) Ano e local de nascimento:

------ Amador

X Profissional

Histórico Profissional: ------

1.b – Histórico familiar Origem: De acordo com o Boletim de Entrada a depositante é Maria Alves de Lima, mas no registro DOSSIÊ consta o nome Nelita Alves de Lima. Na base de dados não existe nenhum contato telefônico ou descrição da relação de parentesco entre as duas, mas se supõe que sejam mãe e filha. Através de uma pesquisa pela internet, identificou-se que Nelita Alves de Lima foi uma das mulheres de Francisco “Baby” Pignatari, famoso industrial paulistano conhecido pelos seus namoros com atrizes hollywoodianas e estilo de vida boêmio. Outra informação encontrada durante a pesquisa foi a doação de peças da coleção de seu pai, Antônio Alves de Lima, para o Museu Afro-Brasileiro no Ibirapuera. Após uma consulta ao Museu, funcionários informaram que a depositante era amiga e conhecida do atual diretor e foi fornecido o telefone da depositante. Infelizmente, os contatos telefônicos não foram bem sucedidos, mantendo assim a incerteza quanto ao estatuto da coleção.

1.c – Informações técnicas Câmera: Bell & Howell – Filmo 70 (cf. marca de borda) e Cine-Kodak Negativo: Kodacolor, Kodak e Agfa Obs: O Kodacolor, identificado em alguns materiais do lote, é um processo que em inglês se chama lenticular Kodacolor (posteriormente, o filme colorido teria o mesmo nome, mas o processo era diferente). O processo consistia em três filtros (verde, vermelho e azul) acoplados à lente da câmera no momento da filmagem. Com um filme especial em preto e branco, que possuía no suporte pequenas lentes, quando a luz passava pelos filtros coloridos, a intensidade de cada cor era captada pela estrutura lenticular do suporte. Para a projeção também se utilizava os mesmos filtros, possibilitando assim a formação da imagem colorida. Sem o sistema, a projeção era

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em preto e branco. Primeira forma de reproduzir cores em bitolas domésticas, a existência de materiais neste formato confere especial valor a esta coleção. O sistema foi lançado em 30 de Julho de 1928 e substituído em 1935 pelo Kodakchome. O Kodacolor foi mais um invento da Kodak com envolvimento de cientistas de ponta e com forte campanha de lançamento, como narrado por Stephen Pizzelo: “George Eastman House celebrated the 75th anniversary of the introduction of Kodacolor on July 30 -- the day of the famous Kodacolor Party of 1928. The anniversary was marked with a 10 a.m. press conference at a reenactment in the Townson Terrace Garden. George Eastman introduced lenticular Kodacolor to the world from the Eastman estate in Rochester, New York, during a press conference and product-launch party. In addition to special guest Thomas Edison and his family, Eastman's other invited guests included business executives and journalists. The attendees included the publisher of The New York Times and U.S. Daily, representatives of the Associated Press and United Press Association, and high-ranking dignitaries in business, government and entertainment. Edison and Eastman stood side by side in the Terrace Garden, filming their guests with a Model B Cine Kodak camera with a colored lens attached to the front. The group then took a tour of Kodak Park -- where the footage shot earlier that day was being processed -- and returned to the house for dinner. While they ate dessert in the garden, screens were erected and the Kodacolor moving images were projected. Those in attendance saw themselves in color for the first time, and headlines were made around the world. ‘Color pictures, by this great advance, have become a commercial instrument, which can be worked by all people,’ Edison said of the new invention. ‘It is a very simple process, a simple solution of what was thought to be a complex problem. Years ago I worked on color problems myself and made a complete failure of it.’” (PIZZELLO, Stephen. “The Introduction of Kodacolor”. In: American Cinematographer,v.84,n.8,August,2003.) As imagens do evento existem e foram preservadas pela “George Eastman House” e alguns trechos podem ser acessados no You Tube: “Kodacolor Garden Party” (http://www.youtube.com/watch?v=osqjdVZDxCg). Através do filme Kodacolor, foi possível identificar a utilização da câmera Cine-Kodak. A câmera Bell & Howell foi identificada pela marca de borda. Na foto abaixo, é possível perceber duas marcas: a triangular é referente à câmera e a outra é referente negativo Kodak.

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A tabela de marcas de bordas referentes a câmeras amadoras21:

Forma de revelação: Laboratório comercial (?)

21 Esta tabela foi encontrada no laboratório da Cinemateca Brasileira e, após consulta com diversos arquivistas, não foi possível identificar a publicação de origem.

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1.d – Condições do depósito Nome do depositante: Nelita Alves de Lima e Maria Alves de Lima (cód.1615) Data de chegada: 13/ 06/ 2001 Data da catalogação: 21/ 08/ 2008 e 18/ 09/ 2009 Listagem dos filmes depositados:

1) Alves de Lima. Crianças Brincando (05716-01; DPX; 16mm; BP; 130m; 1B) 2) Alves de Lima. Família I (05716-06; DPX;16mm; BP; 100m; 1B) 3) Alves de Lima. Família II (05716-07; DPX; 16mm; BP; 155m; 1B) 4) Alves de Lima. Familiar III (05716-08; DPX; 16mm; BP; 95m; 1B) 5) Alves de Lima. Passeio (05716-02; DPX; 16mm; BP; 120m; 1B) 6) Alves de Lima. Viagem I (05716-03; DPX; 16mm; BP; 125m; 1B) 7) Alves de Lima. Viagem II (05716-04; DPX; 16mm; BP; 65m; 1B) 8) Alves de Lima. Viagem III (05716-05; DPX; 16mm; BP; 35m; 1B)

Títulos também estão disponíveis em DVD (31970-01 a 06; possui marca d’água da Cinemateca Brasileira sobreposta à imagem), Betacam (VB00648N e VB00649N) e MiniDV (31891-01 a 05).

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2. Análise de conteúdo e formas de expressão

2.a. Descrição de conteúdo MODELO 1 – Por sequência e unidade de ação

(ALVES DE LIMA. FAMÍLIA I) Letreiros iniciais (Não localizados.) Descrição de conteúdo (animação com brinquedos em forma de sapo e dinossauro; homem de bigode faz careta; outro homem fuma cigarro; mulher com brinquedo em forma de dinossauro na mão / panorâmica praia; homem planta bananeira na areia e faz acrobacias; banhistas saindo da água; grupo na areia, ao fundo casebre com teto de folha e carros ao lado; mulheres fazem ginástica na praia; homem pula na água e nada; panorâmica do mar; pôr-do-sol; grupo em pequeno cais; pequena casa com escrito “Guarujá”; mulher sorri para a câmera com vara de pescar na mão; velho com chapéu; barco ao mar / navio encalhado no oceano; grupo em barco com navio ao fundo; homem faz careta; mulher finge dormir; lancha em movimento / banhistas subindo morro voltando da praia / homem de óculos com cerveja na mão em terraço; panorâmica vista; grupo desce de carro; interna de grupo fazendo refeição em volta de mesa cheia de frutas; casal desce morro de mãos dadas; grupo na praia, voltam subindo o morro; homem sorri para a câmera) Letreiros finais (Não localizados.) Descrição de conteúdo a partir do reversível de imagem 05716-06; 16mm; BP; 100m; película Kodak (marca de borda indica 1929 como ano de produção da película); Título atribuído cf. base de dados, é preciso verificar se o título pode ser mudado. Lila Foster 21.08.2008

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MODELO 2 – Descrição por sequência com indicação de movimento, enquadramento, minutagem e indexação

(ALVES DE LIMA. FILME DE ANIMAÇÃO E PRAIA)

Letreiros iniciais (Não localizados.) Descrição de conteúdo (01:00:55:12) ANIMAÇÃO DE BONECOS Pequena animação em stop-motion com animais de brinquedo: um sapo pula, um dinossauro anda e move o pescoço e depois surge um gato [é possível perceber a mão que se movimenta para a feitura da animação] (01:01:16:11) INTERNA. ROSTOS Homem 1 faz careta para a câmera; homem de bigode faz caretas e finge que está chorando; homem 1 com cigarro na boca [planos próximos com fundo preto] / Mulher com chapéu sorri para a câmera; ela “conversa” com o cinegrafista e mostra o dinossauro utilizado na animação [plano próximo com fundo preto] / (01:01:48:27) A mesma mulher, com outra roupa, com semblante mais sério [plano próximo, seu rosto está mais iluminado e mais destacado do fundo preto]. (01:01:58:14) EXTERNA. PRAIA DO GUARUJÁ Faixa de areia e vista para o mar e montanhas, dois homens conversam ao longe [plano aberto, panorâmica lateral] / Homem em traje de banho planta bananeira [câmera acompanha o movimento] / mulher de calça e blusa branca [câmera acompanha] / banhistas saem da água, um homem veste calça e blusa branca [planos mais próximos e mais abertos são intercalados] / homem sai da água e vai até a câmera; homem de óculos sai da água / (01:02:39:17) Grupo reunido se seca ao lado de uma tapera e carros estacionados na areia / Duas mulheres de calça e camiseta vão em direção a uma jangada na areia; ao lado da jangada grupo brinca de pegar com a boca um objeto enterrado na areia, alguns conseguem e outros não, os movimentos se assemelham a uma ginástica / homem mergulha no mar e nada [plano próximo] / mar arrebenta na rocha [movimento brusco da câmera]; mar e montanhas [panorâmica]; pôr-do-sol. (01:03:37:26) EXTERNA. DECK - PESCARIA Grupo pesca de um pequeno deck; senhor com vara de pescar, ao fundo uma casa com dizeres “Guarujá” (?); mulher posa para a câmera com vara de pescar, homem lhe passa o anzol, ela sorri; mar [panorâmica]; senhor de chapéu olha o mar [plano lateral, luz de fim de tarde]; mar e barco

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(01:04:35:04) EXTERNA/INTERNA. BARCOS Mulher com boina sorrindo; homem de chapéu [plano próximo lateral] / barco circunda navio naufragado, velas, mastros e restos / (01:05:12:19) Pequeno barco com três pessoas sendo puxado, embarcação naufragada ao fundo [câmera está no barco que puxa] / pescador em jangada [filmado de barco em alta velocidade] / Grupo reunido em barco sorri para a câmera; mar, pedras e arrebentação; homem deitado faz caretas; mulher deitada em cima da mão com lenço na cabeça finge dormir [plano próximo]; casal troca carícias e sorrisos; homem jovem; homem de óculos sorri de dentro da cabine; grupo na proa do barco; pequeno grupo sai em barco de pesca que depois é puxado [vários planos e cortes]; paisagem e barco [panorâmica]; mulher com boina preta; senhora de chapéu; homem de óculos; mulher tímida [todos olham diretamente para a câmera]; paisagem; homem forte de regata no barco, ele pisca para a câmera. (01:07:25:26) EXTERNA. TRILHA E VARANDA Do alto de uma trilha, o grupo vai subindo uma ladeira em trajes de banho, vários fazem brincadeiras para a câmera / em uma varanda no alto, da qual se vê o mar ao fundo, homem de terno se serve um copo de cerveja e bebe com prazer; vista da varanda [panorâmica da paisagem]. (01:08:24:19) EXTERNA. CASA Casal chega à casa, mulher está vestida de terno branco, homem de terno, carro ao fundo. (01:08:32:16) INTERNA. CASA Grupo faz refeição, alguns estão vestidos e outros ainda em traje de banho, mesas cheias de frutas e garrafas [câmera passeia pelo ambiente]. (01:08:46:13) EXTERNA. TRILHA Casal bem arrumado desce ladeira de braços dados. (01:08:48:20) EXTERNA. MAR E LANCHA Lancha [câmera acompanha]. (01:09:09:07) EXTERNA. PRAIA DO GUARUJÁ E LANCHA Mulher de terno, gravata e chapéu sentada na ponta de um pequeno barco na beira d’água, homem agachado na frente dela parece estar tirando foto / mulher sentada na areia encostada em pequeno barco, ela conversa com dois homens que estão sentados no barco / (01:09:15:10) Lancha se aproxima da praia, duas mulheres de terno embarcam, homem está guiando / passeio de lancha, só uma mulher aparece no barco. (01:10:08:11) EXTERNA. TRILHA E JAULA

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Homens e mulheres da sequência anterior sobem ladeira correndo / (01:10:20:22) Dentro de uma jaula, eles imitam animais / Mulher com cigarro [plano próximo] / homem com chapéu sorri e faz caretas. (01:10:34:00) Fim das imagens Letreiros finais (Não localizados.) Descrição de conteúdo a partir do DVD 31970-01; Minutagem cf. time code aparente; Título foi alterado cf. descrição de conteúdo. 2.b. Indexação Termos descritores Alimentação; Animação; Automóvel;

Cigarro; Embarcação; Lazer; Mar; Moda; Mulher; Pesca.

Descritores secundários Chapéu; Maiô; Vestido; Cerveja; Refeição; Animação com bonecos; Jangada; Lancha; Praia; Montanha.

Termos geográficos Guarujá - SP 3. Ficha catalográfica

[ALVES DE LIMA. FILME DE ANIMAÇÃO E PRAIA]. SÃO PAULO, GUARUJÁ. -- BR, 1929c. -- Direitos Patrimoniais: Nelita Alves de Lima e Maria Alves de Lima. Reversível original: 05716-06; 1 rolo (100 m.); 16 mm; BP Silencioso; Registro pessoal não-editado. Este material faz parte de um conjunto de registros pessoais e domésticos da família Alves de Lima. A família é claramente de origem abastada e os filmes registram uma viagem para a Europa, incluindo as cidades de Toledo e Madri (Espanha), com imagens de touradas, do Museu El Greco, da Catedral de Toledo e da Fortaleza de Alcázar. Existem diversos registros de momentos de lazer e de crianças além de momentos entre amigos na praia do Guarujá, na fazenda e na residência em São Paulo. Conteúdo: O filme se inicia com uma pequena animação (aproximadamente 20 segundos) com animais de brinquedo. São três tomadas com três personagens animados: um pequeno sapo pula, um dinossauro move o

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pescoço e depois um gato se encontra com o dinossauro. É possível ver a mão se movimentando no processo de feitura da animação. Planos próximos de homem (1) fazendo careta e fumando, homem (2) de bigode faz caretas e finge chorar, e mulher com chapéu sorri para câmera. No plano seguinte ela mostra o dinossauro utilizado na animação e sorri. Vista de uma praia, homens conversam ao longe. Homem planta bananeira. Grupo brinca na praia e toma banho de mar. Mulheres estão de calça e camisa leve e homens com trajes de banho. Grupo se reúne ao lado de uma cabana e de carros estacionados. Ao lado de uma jangada, homens e mulheres brincam de pegar com a boca um objeto enterrado na areia. Grupo pesca em um pequeno cais, ao fundo uma casa com dizeres “Guarujá” (?). Mulher sorri para a câmera com a vara de pescar na mão. Homem um pouco mais velho observa o mar. Câmera filma de um barco e circunda um navio naufragado. Pequeno barco com três pessoas é puxado, carcaça do navio ao fundo. Grupo reunido na proa do barco sorri para a câmera. Planos próximos dos que integram o passeio, muitos acenam e sorriem para a câmera; casal troca carícias e sorrisos. Do alto de uma trilha vemos a praia abaixo. As pessoas do grupo vão subindo em trajes de banho, quase todos fazem brincadeiras. Em uma varanda localizada no alto, homem de terno se serve um copo de cerveja e bebe com prazer. Casal chega na casa, mulher está vestida de terno branco. Dentro da casa, grupo de aproximadamente vinte pessoas come e bebe em meio a mesas cheias de frutas e garrafas. Na praia, mulher de terno, gravata e chapéu está sentada em um barco e parece posar para um homem que está agachado na sua frente. Uma mulher e dois homens sentados em uma jangada conversam e observam o mar. Lancha se aproxima em alta velocidade, mulheres de terno embarcam e seguem para um passeio. Grupo sobe a ladeira correndo. Dentro de uma jaula, eles parecem imitar animais. Mulher fuma e homem de chapéu sorri e faz caretas.

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3.1.3. Família Vasconcellos

1. Contexto

1.a - Produtor Nome: Alfredo Fomm de Vasconcellos Ano e local de nascimento: Nasceu no dia 16 de Novembro de 1908, São Paulo – SP. Faleceu no dia 17 de Abril de 1987.

Amador

Profissional X

Histórico Profissional: Cinegrafista, empresário e laboratorista. Em texto publicado em seu site pessoal, Isabel Vasconcellos nos dá um pequeno histórico da atuação profissional do pai: “O meu pai, Alfredo Fomm de Vasconcellos, sempre foi apaixonado por tecnologia e, em particular, por cinema e fotografia. Ele nasceu em 1908 e aprendeu tudo sozinho o que, no seu tempo, era o jeito. Aprendeu a ler em inglês só para poder decifrar os livros (que sabe lá Deus como ele conseguia) de fotografia, cinema, rádio, ótica... Pra se ter uma idéia de como, nessa matéria, ele enxergava longe, em 1967 anunciei que me inscrevera no vestibular da Escola Superior de Cinema do Colégio São Luiz. A reação dele: - Você deveria fazer engenharia eletrônica, minha filha. O futuro da imagem não está no cinema como o conhecemos mas sim na eletrônica. Como é que ele sabia? Aos 18 anos, já era fotógrafo profissional e arranjou uma câmera de filmar. Nos anos de 1940 era o chefe do setor de cinema do Consulado Americano em São Paulo e já tinha seu laboratório cinematográfico. Em 1937, fez o seu primeiro filme “doméstico” da série que chamou “Recordar É Viver”. O filme mostra um acampamento que ele e alguns amigos armaram às margens da represa de Guarapiranga, onde o dono de uma grande cervejaria construíra uma réplica de um castelo europeu e onde veio a ser instalado o Clube de Campo de Castelo, vinte anos depois, em 1957. Meu pai foi um dos primeiros sócios do clube e seu diretor por muitos anos. Lá, tínhamos, nos anos de 1960, nosso barco e esquiávamos” (VASCONCELLOS, Isabel. “Memória I”,www.isabelvasconcellos.com.br). 1.b – Histórico familiar Origem: Alfredo Fomm de Vasconcellos (1908-1987) e Wanda Gonçalves de Almeida Vasconcellos (1912-2007) tiveram três filhos: Alfredo Vasconcellos (1934-2007) Ronaldo Alvan de Vasconcellos (1935-2004) Isabel de Almeida Vasconcellos Caetano (1951) De acordo com depoimento de Isabel Vasconcellos, a vida da família era muito

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próxima do trabalho do pai na sua administração da Vascotécnica, laboratório de revelação e processamento de filmes. Alguns filmes de família eram feitos com o pretexto de testar novos equipamentos que chegavam ao laboratório. Isabel ainda possui alguns dos equipamentos do pai como um projetor Bell & Howell, uma câmera Paillard Bolex e uma câmera especial que tirava fotos que podiam ser vista em 3-D. Por influência do pai, Ronaldo Alvan (câmera em diversas filmagens domésticas) e Isabel desenvolveram suas profissões na área de televisão. Alvan, como era chamado, trabalhou na TV Excelsior e, posteriormente, foi executivo da Rede Globo. Isabel estudou na Escola Superior de Cinema São Luiz e manteve programas de entrevista sobre saúde da mulher em diversos canais e emissoras de rádio, atividade que desenvolve até hoje. No seu histórico pessoal, Isabel chama a sua família de “família da Imagem”. 1.c – Histórico da Empresa Produtora Origem: Em 1929, Alfredo Fomm anuncia, em carta à coluna “Cinema de Amadores”, a fundação da M.C.A. (União Cinematographica de Amadores) e termina com os dizeres “trabalhamos com film de 16mm, vendemos cópias e alugamos films de amadores que se interessarem” (Cinearte, “Cinema de Amadores”, v.4, n.177, 1929). Pela leitura da carta, a associação também possuía uma vocação comercial. De acordo com texto de Isabel Vasconcellos: “Na metade da década de 50 ele deixou o emprego para dedicar-se inteiramente ao seu laboratório de cinema, a Vascotécnica Filmes. Pesquisador incansável, impossibilitado de importar os equipamentos de que necessitaria para o bom andamento de sua empresa, começou ele próprio a construir esses equipamentos. Fez a primeira máquina de redução de filmes de 35mm para 16mm do Brasil. Criou suas próprias máquinas de revelação, preto e branco e, depois, colorido. Ajudou os departamentos de jornalismo das TVs que se instalavam no Brasil (Tupi, em 1950 e Record, em 1953) instalando máquinas de revelação reversível e produzindo algumas reportagens em filme, já que o videotape ainda não existia. É dele a única imagem que sobrou da inauguração da TV Tupi em 18 de setembro de 1950, imagem essa que hoje pertence ao arquivo da TV Globo. Em 1967, pressionado pela eterna dificuldade de importação de materiais e máquinas, fechou seu laboratório cinematográfico e ficou apenas com seu trabalho à frente do serviço de filme patrulha do Jockey Club de S.Paulo, serviço que ele próprio instalara no início dos anos 50. Mas nunca abandonou as câmeras” (VASCONCELLOS, Isabel. “Memória I”,www.isabelvasconcellos.com.br). A Vascotécnica foi o laboratório de processamento dos cinejornais de Primo Carbonari e Jean Mazon. Durante o governo Jânio Quadros, Alfredo Vasconcellos começou a produzir a série para a televisão “Rádio Patrulha”, com direção de Antunes Filho, texto de Roberto Freire e Tarcísio Meira e Fulvio Stefanini no elenco. A produção, no entanto, não foi finalizada. O material bruto ainda existe. Local: Vascoténica – Rua Antonio das Chagas, 446 – Santo Amaro

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1.d – Informações técnicas Câmera: -- Negativo: -- Forma de revelação: Laboratório comercial

1.e – Condições do depósito Nome do depositante: Isabel de Almeida Vasconcellos Caetano (código: 1621) Data de chegada: Junho/2003 Data da catalogação: Dezembro/2009 Listagem dos filmes depositados: O lote da família Vasconcellos é o maior da Cinemateca Brasileira. São 65 títulos no total, somando aproximadamente 5.500 metros de filme em 16mm. Por este motivo serão listados os títulos que abarcam diferentes períodos para se ter uma breve perspectiva sobre a coleção:

1) Vasconcellos. 1939 – Itu (07258-05; DPX; 16mm; BP; 55m; 2B; película Kodak e Agfa)

2) Vasconcellos. 1949 – Carnaval (07246-06; COZ; 16mm; BP; som óptico AV; 60m; 1B)

3) Vasconcellos. 1952 – Primeiras imagens de Isabel (07244-08; DPX; 16mm; BP; 110m; 1B; película Dupont safety)

4) Vasconcellos. 1956 – Batizado de Marilena e Aniversário de Isabel (07253-08; COZ; BP; som óptico DV; 60m; 1B; película Gevaert safety)

5) Vasconcellos. Brasília (07253-04; COX; 16mm; BP; 20m)

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2. Análise de conteúdo e formas de expressão

2.a. Descrição de conteúdo

MODELO II – Por sequência com indicação de movimento, enquadramento e minutagem

Descrição de Imagem Pista sonora 00:10 “Aniversário e Batisado” 00:19 “Isabel e Marilena 13.5.56” 00:28 Marilena, uma boneca com vestido branco [FUSÃO] Plano mais próximo de Marilena. 00:45 A pequena Isabel segura Marilena junto ao seu rosto [Plano Próximo], mexe com a língua para fora da boca. 00:60 FADE OUT – FADE IN Encenação do batizado de Marilena. Menino de terno e uma menina menor seguram Marilena perto de uma pia. Um outro menino fica junto à cena. Mulheres atrás observam a encenação e sorriem. Isabel, quase à frente da câmera, olha para a câmera diversas vezes e sorri. Menino molha a cabeça da boneca na pia. Todos sorriem. [O plano é bem próximo, os corpos tomam conta do enquadramento] 01:29 FADE OUT – FADE IN Mesa repleta de doces, PAN lateral mostra mulher na cabeceira da mesa, menino jovem e menina passam ao fundo. 01:40 FADE OUT Tudo escuro, somente bolo, velas acesas e algumas silhuetas. Rosto de Isabel entra na luz e sopra as velas. Luzes da sala se acendem, todos batem palmas, Wanda, mãe de Isabel, está ao lado [Câmera na mão]. PAN lateral mostra convidados, mulher loira pede para o câmera esperar [parada de câmera, depois movimento continua], a mesma mulher segura filho no colo e pede para ele acenar para a câmera. As pessoas acenam e

VOZ OVER (maculina): Esta é a Marilena, ela é uma das personagens principais neste dia. Pois é o seu batizado e o quinto aniversário da Isabel. Hei-las juntas aqui. Agora o batizado. Os padrinhos são a Silmara e o Silvio Armando. Como padre, o Décio vai bem obrigado. MÚSICA: Parabéns para você MÚSICA E EFEITOS SONOROS

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sorriem. 02:32 Alvan com braços cruzados olha para a câmera, ,muitas pessoas ao redor. PAN de convidados em volta da mesa, todos acenam [é possível perceber um spot de luz que ilumina a sala para a filmagem]. Câmera pára, enquadramento se assemelha a uma foto, aos poucos ela se move para trás. Uma silhueta de um homem carregando um bebê entra na frente. 02:50 Mulher com bebê no colo come doce. PAN lateral de convidados e Alfredo Fomm comendo em um outro cômodo da casa, provavelmente na sala de estar. 03:19 Wanda abraça Alfredo, ela o levanta do chão, os dois sorriem e se beijam. Mulheres e crianças em volta observam sorrindo. PAN mostra convidados. 03:42 Isabel no colo do pai Alfredo, ela lhe dá um beijo na bochecha, eles se beijam e se abraçam. Jovem menina entra em quadro e abraça Isabel que lhe dá um beijo. Câmera se move rapidamente para enquadrar duas mulheres com bebês no colo, bebê é mostrado para a câmera. 04:19 Senhora fuma sentada em poltrona. 04:30 FADE OUT/FADE IN Grupo de adultos, um senhor sentado com criança no colo, eles conversam [parecem estar encenando]. 04:43 Casal jovem sentado no sofá, sorriem. 04:50 Casal mais velho, mulher olha para a câmera e sorri. 04:54 Terceiro casal, jovens, ela senta no braço da cadeira. Menina com vestido branco ao lado. 05:03 Senhora dá suco para bebê em copo. Ela pede para bebê acenar, bebê acena e sorri. 05:10 Wanda, senhora e jovem sentadas à mesa conversando. 05:16 FIM DA IMAGEM

MÚSICA E EFEITOS SONOROS MÚSICA E EFEITOS SONOROS.

Descrição de conteúdo feita a partir de DVD emprestado pela depositante.

Lila Foster 01.12.2009

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2.b. Indexação

Termos descritores Alimentação; Brinquedo; Cigarro; Criança; Família; Mulher

Descritores secundários Aniversário; Maternidade; Batizado

Termos geográficos São Paulo - SP

3. Ficha catalográfica

[VASCONCELLOS. ANIVERSÁRIO DE ISABEL E BATIZADO DE MARILENA. 13.5.56]. -- BR, 1956. -- Direitos patrimoniais: Isabel de Almeida Vasconcellos Caetano. Cópia sonora: 07253-08; 1 rolo (60 m.); 16 mm; BP; Sonoro; Registro pessoal editado. Um dos registros familiares produzidos pela família de Alfredo Fomm de Vasconcellos e Wanda Gonçalves de Almeida Vasconcellos, e seus filhos Alfredo, Ronaldo Alvan e Isabel Vasconcellos. A família Vasconcellos é responsável pela maior coleção de filmes domésticos do acervo, contando com aproximadamente 5.500 metros de filme em 16mm. Os filmes datam de 1939 até 1969, acompanhando viagens para Santos e para o interior paulista, festas de aniversário, pequenas encenações familiares, festas escolares e passeios. Alfredo Fomm era dono do laboratório cinematográfico Vascotécnica e começou sua carreira como fotógrafo e cinegrafista amador. Seguindo os passos do pai, os filhos também desenvolveram carreira na área de TV. Conteúdo: “Aniversário e Batizado” “Isabel e Marilena 13.5.56” Narração: Esta é a Marilena, ela é uma das personagens principais neste dia pois é o seu batizado e o quinto aniversário da Isabel. Hei-las juntas aqui. Marilena, uma boneca vestida de branco. Pequena Isabel a segura junto ao rosto. Narração: Agora o batizado. Os padrinhos são a Silmara e o Silvio Armando. Como padre, o Décio vai bem obrigado.

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Encenação do batizado de Marilena. Crianças seguram a boneca perto de uma pia, mulheres ao fundo observam a encenação e Isabel em primeiro plano olha para a câmera diversas vezes sorrindo. Mesa cheia de doces e convidados em volta. No momento do parabéns as luzes estão apagadas e somente as velas iluminam o semblante de Isabel. Convidados batem palma e sorriem. Familiares, crianças e adultos comem bolo e conversam. Alfredo e Wanda trocam beijos brincam um com outro. Isabel é carregada no colo pelo pai, ambos trocam beijos. Em vários momentos convidados acenam e fazem pose para a câmera.

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3.2. Duas idéias sobre o passado: a segunda realidade

O desafio a ser enfrentado pela segunda parte da análise será aceito aqui sem a baliza

de um método formalmente elaborado. A interpretação da imagem, dentro do contexto de

pesquisa aqui desenvolvido, é devedora de dois movimentos. O primeiro se vincula ao

trabalho do arquivista e compreende a formação de um corpus documental, a análise

iconográfica e técnica do objeto a partir da qual se pretende estabelecer relações com um

universo cultural mais amplo. Isso não significa que o arquivo esteja separado da cultura,

muito pelo contrário. O movimento aqui proposto tem como intenção partir de um

determinado objeto conservado pela Cinemateca Brasileira, mas “invisível”, para transformá-

lo em história: os filmes domésticos serão o ponto de partida. Michel de Certeau, na obra A

escrita da história, investiga os meandros da prática história no contexto das discussões da

nova história. Sobre a articulação entre os objetos e a cultura:

Sem dúvida, é demasiado afirmar que o historiador tem “o tempo” como “material de análise” ou como “objeto específico”. Trabalha, de acordo com os seus métodos, os objetos físicos (papéis, pedras, imagens, sons etc.) que distinguem, no continuum do percebido, a organização de uma sociedade e o sistema de pertinências próprias de uma “ciência”. Trabalha sobre um material para transformá-lo em história. Empreende uma manipulação que, como as outras, obedece as regras. Manipulação semelhante é aquela feita com o mineral já refinado. Transformando inicialmente matérias-primas (uma informação primária) em produtos standard (informações secundárias), ele os transporta de uma região da cultura (as “curiosidades”, os arquivos, as coleções, etc.) para a outra (a história) (CERTEAU: 2002, p.79).

É preciso assumir que os métodos utilizados na pesquisa histórica exigem uma

operação técnica no estabelecimento de fontes e de contextualização que não foi

exaustivamente realizada na presente pesquisa. Esta é uma das dificuldades em tentar definir e

dar conta de um objeto até hoje pouco estudado. Não cabe nas dimensões dessa dissertação

iniciar uma discussão mais aprofundada sobre a prática da história diante do objetivo aqui

proposto, qual seja, chamar a atenção para um objeto pouco explorado pelo arquivo e que, por

conta da sua especificidade, necessita de outros métodos de trabalho de gestão informacional.

Mas nesta segunda parte do capítulo se pretende realizar uma operação que passa da “prática

investigadora à escrita” (CERTEAU: 2002, p.84), quer dizer, passar da descrição para a

interpretação, o que nos leva à segunda faceta da análise da imagem

A interpretação da imagem, como o trabalho do crítico de cinema, conta com o acesso

às mais variadas fontes, mas nada substitui o diálogo estabelecido entre as imagens e um olhar

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dotado de um percurso intelectual e sensorial por natureza impossível de se listar ou

descrever. A pesquisa histórica, mesmo que inicial, e a apreciação estética podem se encontrar

em algum momento e é difícil delimitar a qualidade e a forma desse encontro.

Os filmes da família Alves de Lima foram os primeiros a serem visualizados no

contexto da presente pesquisa. A característica de auto-retrato de uma família de elite foi o

que ficou de mais marcante e este tema será o guia para a análise, que incluirá outros títulos

da mesma coleção. O fato de não ter sido possível identificar quem eram as pessoas retratadas

nos filmes intensificou a procura por outras fontes para dar conta da interpretação dos

materiais. A leitura do livro Pathé-Baby de Alcântara Machado pontuará alguns momentos da

análise pela proximidade entre o percurso de viagem das crônicas do autor modernista e os

filmes de viagem dos Alves de Lima.

Os cinegrafistas Aristides Junqueira e Alfredo Fomm Vasconcellos atuaram em

períodos diferentes, mas suas trajetórias profissionais se assemelham. Seus filmes de família

serão o ponto de partida para a investigação sobre filmes produzidos como recordação e

manutenção da memória familiar. Caberá também circundar a influência do ofício dos

cinegrafistas na vida e nas imagens em família.

As fontes secundárias que ancoraram o trabalho foram as mais diversas: filmes de

família do acervo da Cinemateca Brasileira, dados de filmografias, obras literárias, artigos em

jornais e entrevistas com familiares. A variedade não deixa de evidenciar as diversas

articulações que podem ser feitas a partir dos filmes domésticos.

3.2.1. O filme de família em dois tempos: Reminicências e Recordar é viver

Aristides Junqueira e Alfredo Fomm Vasconcellos passam quase anonimamente nas

histórias escritas sobre o cinema brasileiro. O primeiro teve o seu justo reconhecimento como

pioneiro do cinema de Minas Gerais, vários historiadores se dedicaram a sua trajetória

profissional (GOMES; FALABELLA) e Reminicências é um dos registros mais antigos

preservados no Brasil. Alfredo Fomm Vasconcellos permanece anônimo, mas a notoriedade

não precisa ser um pressuposto para a história.

Sobre o interesse pelos anônimos, Boris Kossoy afirma:

Mas por que uma história fotográfica dos anônimos, ou melhor, dos fotógrafos anônimos ou praticamente desconhecidos? Basicamente porque estes representam a massa dos artesãos da imagem, jamais mencionados por qualquer história. A investigação desses fotógrafos provoca avanços significativos tanto na área da fotografia em sua história própria como no

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que toca a memória histórica e fotográfica do país, proporcionando, em suma, novos dados para o conhecimento do passado (KOSSOY: 2007, p.66).

A carreira desses dois cinegrafistas é muito semelhante. Ambos começaram com a

fotografia, tiveram suas empresas produtoras e laboratórios, eram fascinados pela técnica,

tanto por prazer como por necessidade, construíram os seus equipamentos e fizeram filmes de

família, editados claramente para manter a imagem familiar para a posteridade e fazer do

cinema uma fonte de recordação.

Aristides Junqueira é sempre descrito como um aventureiro e nos seus 40 anos de

profissão circulou por todo o Brasil. Passou pelo Amazonas, Rio de Janeiro, Pará, Espírito

Santo, Ceará , Goiás e Pernambuco produzindo cinejornais e documentários como A Exma.

Familia Bueno Brandão (1912), Operação Cirúrgica de dois Xipófagos (1914), Jardim

Zoológico de Belém do Pará (1915), Engenho de Cana de Açúcar (1918), Mineração no

Espírito Santo (1919), Em pleno coração do Brasil (1925), Minas em armas (1932), Penedo

(1936), Aves e animais do Museu Goeldi (1937) dentre vários outros pequenos

documentários. Aristides ainda se aventurou a captar imagens do bando de Lampião sem

conseguir muito sucesso. Em uma de suas viagens para a filmagem de A vida dos índios do

Bananal (1924) ficou por tanto tempo junto aos índios que recebeu o apelido de “Lilide”

(GOMES; FALABELLA)

Em meio a viagens, deslocamentos e ausências, o crescimento dos filhos foi

acompanhado à distância, guiado provavelmente por um forte sentimento de saudade.

Na entrevista de seu neto Paulo Alvarenga Junqueira, existem sinais dessa distância:

Quando não estava em viagem, sua base era Belo Horizonte, mas como a sede da Cruzeiro do Sul era no Rio, vivia trançando de um lado para o outro. Sua vida particular, pelo menos com a primeira esposa e os filhos do primeiro casamento, era muito afetuosa, mas ele era um eterno viajante. Houve uma ocasião em que um de seus filhos, pequeno ainda, levou um amiguinho à sua casa. Apresentou-o à mãe e foi até o quarto do pai com ele. Abriu a porta do armário e disse: “Esse é o cheiro do meu pai”.

Na mesma entrevista, trechos de uma carta:

“Tudo me tem corrido às avessas. Mas agora vou dar o extremo arranco, e para isso partirei sábado pelo Itaquicé para o Pará onde tenho trabalho combinado, e estando minha machina em boas condições sonoras, eu espero que ainda desta vez sahirei vincitore, com o auxílio de Deus (...) Espero que seja proveitosa minha viagem, porque vou bem aparelhado e com um pouco de bom material. (...) Esperimentei minha machina de son direto na fita, comigo mesmo; fiz uma saudação aos filhos, a Corinna e agradeci de viva

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voz a vocês dois o favor que acabaram de fazer. Guardarei esse pedacinho de fita para mostrar a vocês em minha volta” (GOMES: 2008, p.35).

O afeto talvez estivesse na mesma proporção da distância e não deixa de ser um

indicativo da relação carinhosa com a família que Reminicências comece com o registro do

aniversário do seu pai, Coronel Antônio Francisco Junqueira. Não é com um tom sisudo ou

distanciado que a família é apresentada. A dureza dos gestos parece ser simplesmente por

conta do despreparo em lidar com o ainda recente “evento filmagem”. A família atravessa o

quadro numa clara encenação para a câmera – eles ainda estão parados quando a manivela da

câmera começa a ser girada – ou o cinegrafista ainda não tinha o timing ideal para dar início à

ação. No final, Aristides pula e faz caretas para a câmera (quem será que girava a manivela?).

Não se trata de um filme de família aristocrático, cheio de poses sociais e de necessidade de

passar a imagem de poder econômico como é Em família – reminiscências do passado: 1910-

1914 (cinegrafista não identificado) ou Caça à raposa (Antonio Campos, 1913) e Um

domingo em casa de vovô (Antonio Campos, 1910-1914), os dois últimos feitos sob

encomenda para a família de D. Olívia Penteado (FILMOGRAFIA BRASILEIRA).

Os interítulos de Reminicências nos deixam algumas dúvidas de quando este material

pode ter sido editado. Eles indicam o falecimento de seu irmão e de seu pai, em 1913 e 1914

respectivamente, permitindo a conclusão de que foram editados em ou depois de 1914. Os

últimos intertítulos trazem uma noção de passagem de tempo evidenciando que as imagens

são vistas em retrospecto.

“Comparemos o desenvolvimento da família do filho mais velho, quaes são as criancinhas de 1909?” “O filho delle o Moacyr todo cachiadinho e agora mais alto do que o pae, espadaudo e robusto.”

A impressão é de que Aristides comparava as imagens dos dois períodos quando redigiu os

inter-títulos: seu filho Moacyr está mais alto e sua filha se casa. É difícil entender porque não

existem letreiros na segunda parte do filme. Será que a segunda parte é uma colagem de

sobras de imagens de família feitas por outrem?

As cenas de 1920 também podem ser divididas em três partes, de acordo com a

maneira de filmar. O casamento tem um tratamento mais sério, mesmo que vários dos

convidados que passam pela câmera pareçam ter intimidade com a câmera/cinegrafista, já que

muitos acenam e dão risadas. Existe a intenção de registrar o desenvolvimento do “evento

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casamento”: primeiro os noivos partem para igreja, eles chegam, as imagens fora de foco

tentam registrar a cerimônia, os noivos deixam a igreja da Nossa Senhora da Conceição, o

corso de carros passa pela Rua Espírito Santo, os noivos são recebidos com uma chuva de

arroz, “foto” do casal e da família durante a recepção. É necessário ter uma organização e

saber de antemão os lugares ideais para se captar imagens que construam este percurso.

As filmagens feitas perto de casa têm outra atmosfera. Elas em muito se assemelham a

filmes de família de outros tempos e lugares, com um desprendimento na hora de filmar as

mesmas personagens principais: as mães e os filhos. É uma cena afetuosa: a mãe carrega a

filha pequena no colo e a mostra para os olhos do pai. Pode ser que essas imagens

registrassem um dos raros momentos em que Aristides Junqueira estava em casa. Tudo parece

ser mais especial ainda porque é dia de carnaval. A criançada da vizinhança está fantasiada e

encena um pequeno sketch em que esperam parados a chegada de “Carlitos”. Ninguém parece

ser pego de surpresa, mas a alegria e o festejo são espontâneos.

A terceira parte, apesar de pequena, tem um ar documental: registra a rua, o transporte

público e o centro de Belo Horizonte. Não se sabe quem são os jovens que Aristides

acompanha, mas poderiam ser suas filhas Chloris, Alice, Heloisa e Zuleika e seu filho Moacyr

passeando pela cidade.

Aristides Junqueira produziu filmes em todos esses formatos: filmes de família, de

casamento e documentários. Um dos cartões da empresa Cine Cruzeiro trazia os seguintes

dizeres: “Trabalhos cinematográficos silenciosos e sonoros”, “Cantos, discursos,

declamações, danças, festas colegiais e sociais” e “Serviços rápidos e perfeitos” (GOMES:

2008, p.35). Muitos dos seus filmes deviam ser registros que não circulavam nas salas de

cinema, filmes feitos para consumo das próprias famílias ou para espaços de circulação

diferentes, como filmes institucionais e propagandas políticas.

Seus cinejornais produzidos na década de 1930 eram distribuídos pela D.F.B.

(Distribuidora de Filmes Brasileiros) e atingiam os cinemas com mais freqüência. Alguns de

seus documentários também foram projetados no cinema, como A vida dos índios do Bananal

(1924), exibido no Pathé do Rio de Janeiro e Belo Horizonte, e Minas em Armas (1933),

projetado no Glória em Belo Horizonte. Sobre o último, uma de edição 1933 da Cinearte traz

um comentário simpático aos naturais e cita o cinegrafista:

Uma das grandes vantagens que a Comissão de Censura Cinematographica trouxe, é tornar conhecidos, através dos relatórios semanais dos Films censurados, os Films brasileiros do natural e congêneres, que até aqui, em sua maioria eram desconhecidos do publico.

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É verdade que esses Films, as vezes, são encomendas, Films de (?) paga, mas nós sempre gostamos de vê-las e registrá-las. Ultimamente, notamos os seguintes Films naturaes: “Uma vida preciosa que se extinguiu”, da A.Botelho-Film; “Os bailes de carnaval no Alhambra” de Alberto Botelho; “Minas em Armas”, do cap. Aristides Junqueira (...) Como se vê a produção desses Films é grande é pena que não sejam mais exibidos, não tenham uma finalidade mais pratica, são as vezes bem curiosos (“Cinema Brasileiro”, Cinearte, v.8, n.364, p.9, 1933).

A finalidade prática sonhada pelo crítico se distancia da efetiva finalidade prática que

guiou a vida de Aristides Junqueira. Além do gosto pela aventura, as longas viagens eram

necessárias para sustentar a família e manter os negócios. O fato de ser de Belo Horizonte,

local em que a atividade cinematográfica devia ser menor se comparada com Rio de Janeiro e

São Paulo, talvez tenha forçado o cinegrafista a explorar este ramo de serviços em locais

distantes de casa como o Norte e o Nordeste. Ou talvez as imagens desses lugares distantes

fossem de maior interesse para o público do Sudeste. As viagens também serviam para

desenvolver e atualizar conhecimentos da técnica cinematográfica e do registro sonoro.

O trabalho fez com que Aristides ficasse longe da família, mas o que sobrou da sua

produção foi um filme de família que durante esses anos arregimentou os seus descendentes

em torno da preservação da sua memória. Quando Corina, sua segunda mulher, vendeu os

seus filmes para a retirada da prata, Reminicências sobreviveu por motivos óbvios. O filho

Aristides guardou o filme que foi doado para Paulo Alvarenga Junqueira, neto de Aristides,

em 1966. Durante anos ficou guardado dentro de geladeira e, em 1970, foi encaminhado para

Cosme Alves Neto da Cinemateca do MAM, local em que ficaram armazenadas as cópias

feitas em 16mm (GOMES: 2008). As cópias agora estão depositadas na Cinemateca Brasileira

depois da transferência do acervo do MAM em 2004. O original em nitrato se perdeu.

Alfredo Fomm Vasconcellos iniciou sua carreira profissional em outro cenário e em

outra época. Em São Paulo, as novidades técnicas deviam ser mais acessíveis e quando

começou sua atividade na fotografia e no cinema, no final dos anos 1920, o campo

profissional era um pouco mais consolidado. Por isso ele não era uma exceção neste cenário e

não foi um pioneiro da mesma dimensão que Aristides Junqueira.

Quando Alfredo Vasconcellos lança a fundação da M.C.A. (União Cinematographica

de Amadores), em carta à coluna “Cinema de Amadores”, ele termina com os dizeres

“trabalhamos com film de 16mm, vendemos cópias e alugamos films de amadores que se

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interessarem”, temos um indício de que aos 21 anos ele já começara a sua profissão de

prestação de serviços laboratoriais (Cinearte, “Cinema de Amadores”, v.4, n.177, 1929).

Ao contrário de Aristides Junqueira, Alfredo Vasconcellos tinha um contato muito

mais próximo com a família. Os filmes depositados na Cinemateca Brasileira cobrem eventos

e viagens em família que vão de 1939 até a década de 1970. É a maior coleção de filmes

domésticos depositada com aproximadamente 5.500 metros de filmes em 16mm. Seu perfil

profissional em muito se assemelha ao de Aristides, mas o campo de trabalho é mais amplo

por conta do período histórico, talvez pela cidade de atuação, e pela entrada de um novo

personagem no ramo: a televisão.

Na Vascotécnica, seu laboratório profissional, Alfredo produzia vinhetas comerciais,

revelava filmes para Primo Carbonari e Jean Manzon, realizava edições do repórter Tico-Tico

para a TV Tupi e matérias para a recém-inaugurada TV Record. Nesta última, foi o

responsável pela montagem do laboratório. De acordo com o depoimento da sua filha Isabel

Vasconcellos, o laboratório do pai foi um dos primeiros a fazer revelação em cores e para isso

era muito requisitado.

A influência da profissão do pai sobre a família é marcante. Além dos filmes

familiares produzidos, os filhos e a mulher se envolviam ativamente nas filmagens. Quando

Alfredo comprou o microfone Auricon, todos organizaram uma pequena encenação familiar

como teste intitulada Auriconadas (1947). Sentado em uma mesa com uma câmera em um

tripé ao lado, ele finge ser um produtor representando uma companhia que vai fazer “grandes

filmes”. Em busca de profissionais e atores, realiza entrevistas para testes com seus filhos,

Alfredo e Ronaldo Alvan de Vasconcellos, e com sua mulher, Wanda Gonçalves de Almeida

Vasconcellos. Além de extremamente bem humoradas, as cenas são editadas, mostrando que

houve preparo para a realização.

A primeira entrevista é com Wanda. Ela entra em quadro e diz que foi à empresa

porque sabia que estavam precisando de artistas de cinema. Quando o produtor pergunta pela

sua especialidade, ela responde: “eu nunca trabalhei em cinema, vou fazer isso pela primeira

vez. Mas eu penso que um papel de uma irmã mais velha, de mãe... Não pretendo fazer papel

de mocinha. Um papel secundário eu creio que sim”. Ao fim da entrevista ele a encaminha ao

diretor, recém-chegado dos Estados Unidos, e pede que ela tenha paciência porque eles estão

“um pouquinho nervosos”.

A entrevista de Alfredinho é um pouco mais rápida e é ele quem lança as perguntas:

“O senhor é o diretor da empresa?”

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“Sim, sou eu. Você quer trabalhar na equipe? Que fita você quer fazer?” “Aviação!” “Ahh, aviação! Nós vamos precisar de fitas de aviação.” “Que filmes vocês já fizeram?” “Bom, nós não fizemos nenhum até agora, mas nós vamos fazer!”

Alvan, um pouco mais solícito, diz que pode fazer de tudo no cinema. Talvez por essa

solicitude, aliada ao incentivo do pai, ele tenha feito o trabalho de câmera em outra ficção

familiar: O estrilo da Wanda (1947c).

A ação se passa na cabine de projeção que os Vasconcellos tinham em sua própria

casa. Os letreiros iniciais trazem os seguintes reclames: “Este filme foi premiado pela

Academia das Esposas que dão a BRONCA”. Cansada das longas horas de trabalho do

marido, Wanda vai até a cabine de projeção e reclama: “Você está perdendo os melhores anos

de sua vida nessa porcaria. Fica o dia inteiro enfiado naquele laboratório escuro, sábado,

domingo!”. Mesmo assim, Alfredo insiste em trabalhar e só cede quando Wanda diz que lhe

faria uma gemada antes de dormir. Os dois conciliados, Alfredo olha para a câmera e finaliza:

“Bom meus amigos, invistam mesmo em uma boa gemada, a gente descansa um pouquinho

de toda essa tralha de cinema etc. E vamos tomar gemada! Quanto a dormir, isso tem tempo”.

Apesar da bronca, a relação entre o casal é sempre bem humorada como atestam as imagens

de vários outros filmes.

A atenção ao registro da vida em família foi o que motivou a produção de diversos

outros títulos, também editados, com narração e trilha sonora. Esta série recebeu o nome de

Recordar é viver e teve início em 1937. Entre os registros, uma personagem aparece em

destaque: Isabel Vasconcellos.

Isabel nasceu em 1951, dezesseis anos depois de Alvan. Além de ser a primeira

menina, como filha temporã ela recebeu mais atenção cinematográfica dos pais e também dos

irmãos mais velhos. Quando praticava os seus primeiros passos em um andador a família

realizou As primeiras imagens de Isabel e durante os anos foram muitos outros registros:

Isabel em pequenas encenações conversando ao telefone (Isabel ao telefone - 1955), passeio

durante o fim de semana no Parque Ibirapuera (Ibirapuera com primos de Belo Horizonte –

1955), o aniversário de cinco anos (Batizado de Marilena e Aniversário de Isabel –

13.5.1956), as festas juninas na escola (Festas caipiras no Educandário Petrópolis – 1958) e

o carnaval na sala de casa (Comunhão, Natal e Carnaval – 1960 e 1961).

Os filmes servem também como importante registro dos espaços de lazer e bairros de

São Paulo: a estruturação do Parque Ibirapuera na época da “Churrascaria Náutico Bar” que

alugava pequenos barcos para passeios no lago; o Zoológico do Agenor na Vila Maria, Zona

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Norte; a construção da nova casa na Cidade Jockey em Santo Amaro; as competições de esqui

na represa Guarapiranga; a hípica de Santo Amaro. Durante as férias a família também

visitava as praias de Santos e a fazenda de amigos em Matão.

Isabel Vasconcellos em suas memórias definiu a sua família como “a família da

imagem” e tal título não poderia ser mais acertado. Isabel praticamente cresceu diante das

câmeras e é possível acompanhar a mudança do semblante e a intimidade que veio a ter com

as filmagens. A forma de representação também muda com o tempo. Os filmes da década de

1950 parecem com os cinejornais da época: a trilha sonora, a divisão em assuntos e a voz do

narrador. Quando surgem imagens da filha dançando rock com as amigas durante os

aniversários, o filme Boneca Subliminar e Isabel Sax (1959) parece um filme experimental: a

imagem de uma boneca feita em tabletop, a palavra “BONECA” piscando e Isabel fingindo

tocar saxofone com uma luz estourada no seu rosto.

O trabalho cotidiano do pai na administração da Vascotécnica devia ser intenso e

mesmo quando estava em casa o trabalho continuava. Seu filho Alvan foi câmera em muitas

filmagens domésticas e Isabel revisava cópias e revelava filmes aos 11 anos de idade. Ambos

cultivaram o hábito da filmagem doméstica e desenvolveram suas carreiras profissionais na

televisão.

A maioria dos filmes conservados pela Cinemateca Brasileira são filmes domésticos.

Na coleção existe uma vinheta comercial da Vascotécnica e um registro muito bem filmado

de Brasília em um período muito próximo da sua inauguração. Uma tentativa de realizar obra

ficcional também faz parte do acervo. Incentivado por uma lei promulgada por Jânio Quadros

exigindo que os canais de televisão programassem uma produção nacional para cada nove

produções, Alfredo produziu e começou as gravações de Rádio Patrulha. O programa foi

gravado no porão do Teatro Maria Della Costa e contou com texto de Roberto Freire e direção

de Antunes Filho. No elenco, Tarcísio Meira e Fúlvio Stefanini. O programa não foi

finalizado e restaram os copiões.

A família Vasconcellos não guardou os materiais da Vascotécnica pelo mesmo motivo

por que a família Junqueira se desfez dos filmes profissionais de Aristides: os filmes

pertencem a esferas diferentes e a sua preservação também segue caminhos distintos. Para a

família talvez seja mais natural guardar filmes que compõem a memória familiar e não seria

possível guardar toda produção desses profissionais imagem. Aristides Junqueira e Alfredo

Vasconcellos eram artesãos e lidavam com todas as dimensões práticas do cinema. O trabalho

era o ganha-pão para o sustento da família e não uma atividade esporádica.

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Tais profissionais pontuam a história do cinema brasileiro, mas seus filmes muitas

vezes só assumem status de preservação quando são imagens de “antigamente”. Foi o caso de

Aristides Junqueira e dos “cavadores”. Isso talvez seja natural e não é sinônimo

necessariamente de descaso. Mesmo no presente, o trabalho de profissionais com o mesmo

perfil pode passar despercebido já que existem mais e mais trabalhadores da imagem. O

tempo decorrido, os arquivos e o olhar do historiador continuam sendo, portanto, o critério de

sua valorização.

3.2.2. Um retrato da elite em positivo

O cinema brasileiro dedicou pouca atenção ao retrato de sua elite. Quando João

Moreira Salles decidiu finalizar Santiago, iniciado anos antes, a voz over, os espaços vazios

de sua casa na Gávea, as pequenas histórias de sua infância e adolescência formavam uma

imagem fugidia do que seria a vida entre empregados, educação especial, festas, objetos caros

e viagens para o exterior. O retrato de um cineasta pertencente à elite econômica se faz pelo

contato com o outro, o antigo mordomo da família, não como uma cópia impressa em

positivo, mas uma imagem em negativo, na qual se percebem os vultos, mas não se vêem os

rostos: as imagens estão invertidas.

Não é possível ter certeza de quem são os Alves de Lima que aparecem e intitulam a

coleção depositada na Cinemateca Brasileira. Não é possível sequer saber se são de fato Alves

de Lima. O que podemos afirmar é que, nas décadas de 1920 e 1930, quem possuía

equipamentos para filmagem doméstica, e não era um amador fanático por equipamentos ou

um profissional, pertencia à elite. Filmar a família era um hobby caro e não espanta que o

acervo de filmes domésticos da Cinemateca Brasileira tenha entre seus títulos sobrenomes

como Bittencourt, Prado, Penteado, Salles, Mello, Segall e Silveira Jullien.

Bastaria olhar para as imagens para saber que se trata de uma família rica, com ar

cosmopolita e um certo desprendimento moderno. Nelita Alves de Lima, nome que consta no

registro de depósito e que se suspeita ser a criança que aparece diversas vezes nas imagens,

figurou entre os nomes das jovens da elite paulistana na década de 1960. Em seu retrato da

“Era dos Festivais”, Zuza Homem de Mello se refere a ela e a seu grupo de amigas na década

de 1960:

Defronte ao Grande Hotel, do outro lado da avenida Marechal Deodoro, com suas calçadas de cor rosada, ficava a maior atração do Guarujá nos anos 60, o famoso Grill do Guarujá. Seu principal atrativo era a piscina em foram de ameba, rodeada pelo bar semicoberto de um lado e tendo do outro uma

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escada que parecia flutuar no espaço com seus degraus de placas de concreto, conduzindo ao mezanino apoiado em colunas em V. Era mesmo um conjunto espetacular, cercado por um muro alto e muita vegetação, cuja face externa, frente ao mar, morria na própria areia da praia. A piscina era o point obrigatório por onde circulava invariavelmente uma “dona boa” que se esticava ao sol, ou onde se reunia um grupo de “gente bem” bebericando em alguma mesa. Era freqüentada pelos playboys e pelas mais lindas e cobiçadas socialites da Paulicéia, como Carmem Terezinha Solbiatti (Maryink Veiga depois de casada), Nelita Alves de Lima, as irmãs Lúcia e Cecília Matarazzo (que se tornaram respectivamente Falcão e Braga), e a deslumbrante Xinha D’Orey, que fora Glamour Girl do Clube Harmonia de São Paulo. A homarada girava em torno dessas e outras puro-sangue (HOMEM DE MELLO: 2003, p. 23).

Nelita foi casada com Francisco “Baby” Pignatari, playboy paulistano, descendente

dos Matarazzo, industrial do processamento de cobre e milionário: talvez o personagem mais

famoso dessa história. Foram sete anos de casamento e o início da construção de uma casa na

Chácara Tangará, com cinema com projeção cinemascope, jardins de Burle Marx, projeto

arquitetônico de Niemeyer, toda a magnitude do projeto era uma prova de amor. A construção

da casa ficou inacabada com a separação em 1957 (OLIVEIRA: 2003). Alçado à categoria de

playboy internacional, a edição da revista Time de dezembro de 1958 dedicou a ele um

extenso artigo sobre as suas aventuras com atrizes hollywoodianas, as bebedeiras, os gastos

em carros velozes, as irresponsabilidades juvenis e alguns indícios da sua capacidade de

trabalho aliada à vida noturna intensa. Na reportagem, duas fotos: uma do casal Baby

Pignatari e Nelita Alves de Lima em uma de suas fábricas de processamento de cobre, e outra

com vista aérea da construção da casa ilustram os “anos de casado”, cumpridos, como

descreve o jornalista, com grande esforço (O’NEIL: 1958).

A vida mostrada nos filmes domésticos dos Alves de Lima se situa em outro tempo,

mais precisamente entre o final da década de 1920 e o começo de 1930. A atenção especial

dedicada à mulher pontua os filmes da coleção Alves de Lima em que aparece a provável mãe

de Nelita: são numerosos, além de muito bonitos, os closes dedicados a ela. O ar de leveza, de

um desprendimento que talvez somente o dinheiro possa dar, se faz presente em alguns

filmetes divertidos, como a pequena animação, os closes dos amigos sorridentes fazendo

careta, o gole de cerveja, a brincadeira em grupo na praia e o banho de mar. As casas na praia,

na cidade e no campo são indícios de uma vida confortável, do carro disponível para as

viagens no fim de semana e de um grupo em harmonia.

Existe um transbordamento ali. O enquadramento tomado por corpos abraçados, todos

em contato próximo uns com os outros, evoca uma aceitação do contato físico e não uma ode

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aos bons costumes ou uma separação entre coisas que homens podem e mulheres não podem

fazer. Os ares são definitivamente modernos e muito diferentes do retrato da família burguesa

de Amar, verbo intransitivo (1927) de Mário de Andrade. As mulheres não se escondem,

somente quando a imagem que desejam para si não está de acordo com um rosto sem

maquiagem, despreparado para as filmagens durante um acampamento ou um chá da tarde

entre amigos íntimos. Elas posam, olham detidamente para aquele que filma, trocam beijos

entre os amigos e plantam bananeira para a câmera. Além dos vestidos, usam calças e, com ar

desafiador, uma delas desce do carro com seu terno de linho e cabelo curto.

Como elite que eram, esses homens e mulheres deviam compartilhar da atitude e

comportamento transformador dos modernistas e dos mesmos interesses pelo cinema, pelas

novidades técnicas e pela vida cosmopolita. O ar serelepe pontua diversas brincadeiras: a

imitação de animais em uma jaula, os amigos que trocam um cigarro de boca em boca, o

passeio de barco totalmente sem luxo, e o acampamento na beira do rio. Se não fosse o

interesse pela novidade aliada à disponibilidade de recursos, talvez o cinegrafista da família

não tivesse comprado uma Bell & Howell – câmera motorizada que dispensava o girar da

manivela e na época o equipamento tecnicamente mais avançado – ou não teria investido no

complexo sistema Kodacolor para filmagens cotidianas.

A opção mais barata de câmera no período era a pequena Pathé-Baby, título das

narrativas de viagem de Alcântara Machado pela Europa, o primeiro livro do autor a ser

editado. O título revela a presença da câmera como parte integrante do pacote de viagem,

como se o passeio não pudesse se dar sem o seu registro, neste caso um pouco mais

modernizado, com a substituição da cena estática da fotografia pelas imagens em movimento.

Seria possível imaginar que Alcântara Machado e os Alves de Lima pudessem se

encontrar em algum navio partindo para a Europa, como aconteceu com os Silveira Jullien e a

poetisa Cecília Meireles em meados da década de 1930. O escritor partiu de Santos a bordo do

navio Flandria no dia 24 de março de 1925 e retornou no dia 2 de novembro do mesmo ano.

Antes de partir, fez um acordo com Mário Guastini, diretor do Jornal do Commercio, para

enviar crônicas semanais ao jornal. Foram duas versões editadas: a do jornal, em 1925, e o

livro, publicado o ano seguinte, com ilustrações de Paim que evocam a projeção das crônicas

em uma tela de cinema com acompanhamento musical. O design gráfico do índice emula um

programa de cinema, não sem alguns toques de ironia: “Programa sessões corridas”,

“Ouverture, por Oswald de Andrade”, “Barcelona, película de sensação em 2 partes”, “Estão

suspensas as entradas de FAVOR” e “Brevemente! Braz, Bexiga e Barra Funda (contos)

Brevemente!”.

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Alguns dos lugares descritos pelo escritor também foram visitados pelo casal Alves de

Lima e amigos durante viagem pelo velho continente. Se, como descreve Oswald de Andrade

no prefácio, Pathé-Baby é “cinema com cheiro”, um livro próximo da reportagem em que

Alcântara Machado “apossou-se sem espanto temperatura occasional cada gente cada paiz”, a

relação entre os filmes de viagem dos Alves de Lima e a literatura de viagem do escritor

modernista é somente temática (MACHADO: 1982, p.13).

As crônicas em Pathé-Baby descrevem os espaços, uma atenção típica de quem viaja

ou visita um lugar pela primeira vez, mas a geografia não é somente espacial. Ela comporta e

torna central os tipos humanos, cuja descrição um tanto grotesca e realista a não agradou

muitos leitores. No artigo “Um viajante de bom humor”, publicado no Diário da Noite (em 7

de novembro de 1929), Agripino Grieco descreve a falta de compromisso com o ideal

civilizado europeu:

Sabe ele que em espanhol ou italiano, idiomas tão docemente cantantes, também se diz muita bobagem; sabe que nos palácios europeus também mora muito tipo abestalhado, e, que afinal, ser da terra de Dante e ser besta não deixa de ser mais humilhante que ser besta sendo apenas da terra do sr. Laudelino Freire (In: LARA: 1982, p.56).

Os filmes de viagem dos Alves de Lima, por outro lado, são tomados por planos

abertos e panorâmicas de movimentos repetitivos que descrevem os sítios turísticos visitados.

As pessoas surgem pequeninas perto dos monumentos e a câmera abandona os rostos para

enquadrar o nome do Museu El Greco, a Catedral de Toledo, a Fortaleza de Alcázar, o

Monastério de San Juan de Los Reyes, as montanhas, os arabescos e as imagens de santos

incrustadas nas paredes das catedrais. O filme de viagem amador, neste caso, busca registrar

os lugares visitados e não existe uma instância discursiva que vá além do registro. A

arquitetura de Toledo, na Espanha, encanta o turista brasileiro. Já o cronista Alcântara

Machado destaca os homens em meio ao mesmo cenário, na crônica “Toledo”:

O Castillo de Galliana (la mora más celebrada de toda la moreria) esfarela-se na paisagem de terreiro varrido. A estação dá a nota oriental, e os Ford brigam com os carros. Sol. A Puente de Alcántara é um pulo sobre o Tajo (sic) que vai para Lisboa. Nas sete colinas a cidade de fisionomia medieval se escarrapacha. Burricos, melancias e soldados misturam-se na Plaza de Zocodover, alaranjada, vermelha, branca, desbotada. Os adolescentes da Academia de la Infanteria compram doces e cigarros. - El Mesón del Sevillano, donde habitó y escribió el inmortal Cervantes.

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É uma velha que poz Negrita nos cabelos a hospedaria de cinco mil anos e telhado de cinco semanas. A Puerta Nueva de Visagra tem torres de igreja, janelas de moradia, e um aleijado vendendo bilhetes de loteria. EN ESTA CIUDAD ESTÁN PROHIBIDAS LA MENDICIDAD Y LA BLASFEMIA. O francês de chapéu panamá usa anéis de mulher. Todo branco em redor, todo verde no centro, o Patio de San Juan de los Reyes. A cosinha (sic) da casa do Greco é aperitivo. Zumbidos. Gerânios. A mulher do guarda. Os filhos da mulher do guarda. Sete. E os doze apóstolos nas telas esfumaçadas, enfileiradas. Ruas de emboscada. Becos de conspiração. Ladeiras de nigromância. Bafo de muitos séculos. Gente de preto. Só de preto. Janelas gradeadas. Portas de castelo. - Buenos dias, señor marqués. Parece um capado. (MACHADO: 1982, p.223 e 224)

Durante a sua viagem, Alcântara Machado também descreveu uma tarde nas touradas.

A sua foi em Barcelona, enquanto a dos Alves de Lima foi no recém construído Las Ventas,

em Madrid. É pela filmagem da tourada que sabemos que a viagem não pode ter acontecido

antes de 1931, ano em que a arena foi inaugurada. A descrição do evento guia a mão do

cinegrafista, mas aqui existe um sentido de cronologia e desenvolvimento da ação. Primeiro a

fachada da arena; lá dentro ele filma o público entrar, corta para a entrada dos cavalos, que

anuncia o começo do espetáculo, o touro zanza pela arena sozinho para logo depois encontrar

o seu desafiante. O cinegrafista guarda filme o suficiente para registrar as três partes da

tourada: a apresentação do touro quando diversos toureiros atiçam o animal com suas capas, a

entrada dos picadores em seus cavalos que espetam suas lanças no animal, e a “dança” final

com o toureiro, não tão romanceada como nos filmes de ficção. Depois, o sacrifício e o corpo

morto do animal sendo puxado por cavalos.

O touro está no centro, porém distante. Mas também não poderia ser diferente. A

câmera amadora do turista não tem o acesso ou a organização de um cinegrafista uma equipe

de cinema que pretende destrinchar o espetáculo em vários planos para torná-lo completo

depois na montagem. O espetáculo aqui é “íntegro” em termos imagéticos: a arena está cheia

e diante da grandiosidade – dos golpes desferidos e do público – parece faltar o som, a ovação

da platéia ou os sussurros de medo diante de uma tragédia eminente. O que falta ao filme, por

motivos técnicos e também por não estar tão interessado na movimentação do público, sobra

na descrição em Pathé-Baby:

As patas do touro negro golpeiam a terra. Borboletear de capas. O cavalo de olhos vendados recebe a chifrada, sacode as patas dianteiras no alto, cai destripado. O touro cola-se contra outro.

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- Que viene! Que viene! O picador é uma peteca no ar. O ventre lacerado do cavalo sobe e desce com vida. (...) A banda, vestida de vermelho, toca La bejarana. Só, Lagarito avança. Devagar. O touro abaixa a cabeça deante do homem azul que caminha. E pula como um autômato. A capa resvala sobre os chifres. - Olé! Vai e vem deante do focinho espumante. - Olé! O toreador é um peão roçando a nunca peluda. - Olé! (...) O delírio levanta vinte e cinco mil entusiasmos. As palmas sacodem o anfiteatro ondeante (...) Ribomba a exclamação. - Mátalo! Mátalo! O silêncio principia com um toque de clarim. Arqueja a emoção coletiva. A três passos da vítima raivosa, toreador e lâmina são um ângulo reto que espreita. Um segundo. Dois. Tr...A espada branca mergulha por metade na nunca arqueada. Reluz, tremendo. Em silêncio, no silêncio, o touro tomba deante do matador erecto. No berreiro desvairado lenços se agitam como flâmulas que saúdam. Bengalas, pentes, mantilhas e carteiras são o despojo do entusiasmo rolando no chão revolto. Lagartito recebe uma orelha do touro. Ganha a outra. Ganha o rabo. Dá duas voltas pela arena, chapéu erguido. - Viva! Viva! Viva! A banda berra a Canção do Toreador. (MACHADO: 1982, p.180 e 181)

Para os Alves de Lima a viagem para a Europa e os momentos entre amigos podem ter

sido o preâmbulo da chegada da filha, uma passagem de tempo que, se não pode ser datada

com precisão, percebe-se pelos personagens que começam a habitar a casa e também pela

vida, um pouco mais calma, talvez um pouco mais caseira. Além dos companheiros da mesma

idade, surgem senhores e senhoras, familiares mais velhos que não olham para a câmera com

a mesma intimidade. Em uma cena, uma senhora com semblante marcado, olhos fundos e

tristes, se recusa inicialmente a ser filmada. As filhas ou netas (não é possível afirmar) tentam

levantar o seu rosto em meio à resistência e risadas. O corte direto para o seu rosto em

primeiro plano, a imagem de uma mulher desgastada, que não compartilha do mesmo

entusiasmo pela cena da filmagem, destoa dos outros que sentem prazer e sabem posar para a

câmera.

O ambiente doméstico se delineia pelas filmagens da filha brincando no quintal, a

babá que olha por ela, os cuidados da mãe, o banho de sol na piscina, a bóia em formato de

jacaré, os vários cachorros e o papagaio de estimação. Prevalece um ar de leveza, do convívio

com a família e os amigos.

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Quando do lançamento de Pathé-Baby, Mário de Andrade escreveu para o Jornal do

Commercio (em 24 de fevereiro de 1926):

Falei ainda na ‘impertinência leviana e serelepe’ de Pathé-Baby. Me parece que em parte isso proveio da conquista feita por A.de A.M.: o Modernismo. Entre as características mais fortes deste a impertinência, o serelepismo e a leviandade dominam. Leveza ficaria melhor...Leviano é palavra em evolução aqui na terra e permite falar que a gaze é leviana e o indivíduo é leviano. O Modernismo muito que trata as cousas assim, com uma rapidez, com uma leveza e sem-cerimônia tais que os próprios traços profundos vêm à tona e meio que desaparecem na fluidez da frase voando. Essa levianeza está no livro. É rápido dogmático nítido a ponto de dar a sensação quase sensorial de impertinência. De golpe A. de A.M. se apoderou com talento ágil do segredo de ser moderno. A simultaneidade bem composta de sensações e idéias encontra valiosa e excelente adesão em Pathé-Baby. Mas em geral o livro persevera na arte-cocktail, arte-caviar, predispositiva, que tem sido a mais abundante manifestação do Modernismo por enquanto. (LARA: 1982, p.55).

Registros distintos, porém aproximáveis. Os filmes dos Alves de Lima dão “a

sensação quase sensorial de impertinência” em muitos de seus momentos. Não uma

impertinência crítica, mas uma impertinência terna, de um convívio “sem-cerimônia”, uma

relação mais plena entre homens e mulheres, sinônimo de transformações sociais e culturais

do período. Quando se forma a família, a mulher se mostra muito mais refratária à filmagem e

busca chamar toda a atenção para a filha. Uma mudança na estrutura familiar em que a

criança agora se torna o centro das atenções e das filmagens.

As imagens também parecem ser naturalmente irrefletidas e voltadas para si, não para

o universo social, para o movimento das ruas ou para o rosto objetivado do “outro”. As

poucas cenas que são filmadas fora do âmbito familiar também funcionam como um indício

da classe social da família: a hípica, o clube social em que somente homens exibem saltos

ornamentais, a fazenda e seus empregados. As cenas em que aparecem trabalhadores

japoneses dançando em trajes típicos dão uma impressão clara da vida precária que deviam

levar como imigrantes trabalhadores na lavoura e são uma das únicas imagens em que outra

classe social aparece em cena.

Outra cena que impressiona é a luta de boxe entre um homem branco e um homem

negro. No quintal de uma das casas da cidade, os dois, munidos de suas luvas, lutam de

verdade. Eles claramente têm conhecimento do esporte e seria interessante investigarmos

como a luta era encarada socialmente na época das imagens, provavelmente no começo dos

anos 1930. Se havia conhecimento da luta, qual era o espaço para treino? É o mesmo clube de

elite que aparece em outro filme?

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Na luta, o negro aparece em desvantagem; muito mais golpes são desferidos em seu

rosto. A luta é filmada em velocidade normal e depois em câmera lenta, dando um efeito

muito mais potente e que acentua a suposta derrota do adversário.

No final, os dois posam lado a lado olhando para a câmera e corta para o lutador negro

mostrando seus músculos. O olhar para o outro, no entanto, é muito mais raro e prevalece

como decisiva a ambientação “arte-cocktail”, os momentos de lazer entre família e amigos. A

coleção de filmes domésticos da família Alves de Lima forma um retrato em positivo que

ainda tem uma história a ser contada através da coleção de filmes domésticos da Cinemateca

Brasileira.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando um trabalho acadêmico, de natureza primordialmente teórica, se mistura a

uma proposta de trabalho em contato com o mundo real de uma instituição algumas coisas

podem se perder no meio do caminho. O que se perde tem a ver justamente com os

pressupostos e ponto de partida de uma e outra investigação. A teoria, de acordo com a

origem da palavra, pressupõe um passar de olhos, uma perspectiva abrangente que busca no

recorte estabelecer os instrumentos possíveis para uma investigação mais geral. O trabalho

cotidiano, por outro lado, se ressente por não ter um ponto de vista mais geral, afogado que

está em pequenos afazeres, toques de telefone, reuniões, demandas imediatas.

A pesquisa desenvolvida aqui oscilou entre essas duas perspectivas, não sem ter

sofrido perdas. A tentativa de esboçar um movimento do cinema amador partindo dos

primórdios do cinema brasileiro, passando por uma pequena introdução sobre o surgimento

dos equipamentos para uso doméstico e o ideário das colunas de Cinearte, ainda merece um

aprofundamento e uma pesquisa que busque em fontes primárias e em publicações da época

um levantamento mais apurado da produção amadora e das associações criadas a partir do

final da década de 1920. O acervo de filmes domésticos também se mostrou muito maior e

muito mais rico do que poderia imaginar. Para que a investigação teórica e as propostas

práticas pudessem tomar forma alguns dos objetivos iniciais não puderam ser realizados

como, por exemplo, a análise e catalogação de uma quantidade maior de filmes. Um ponto de

partida, porém, se manteve irretocado: a experiência de trabalho e dos filmes deveria pautar as

discussões propostas.

O estalo inicial para que essa pesquisa se deu quando incorporei os filmes domésticos

da família Seidlhofer (décadas de 1950 e 1960). O estado de conservação dos filmes, as cores

principalmente, o registro da vida privada e a dedicação dada a sua organização me

impressionaram. Os filmes vieram acompanhados de anotações minuciosas e uma coleção de

títulos “de catálogos” com filmes sobre excursões para as savanas africanas e as montanhas

dos Estados Unidos. As imagens também contemplavam diversas fases da vida de Maria

Regina Seidlhofer: a infância em Santos, o carro novo da família, o passeio para a escola e os

recitais de piano, a pré-adolescência, a mudança para Viena e, num enorme salto, o

nascimento da sua filha Johanna. Eu queria que outras pessoas pudessem ver o que estava

vendo. A produção familiar e a coleção de filmes para serem projetados em casa indicavam

uma nova e diferente relação com o consumo e a produção de filmes. Era a entrada em um

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universo pequeno, mas vasto o suficiente e que merecia ser explorado. Infelizmente não pude

catalogar essa coleção pois as imagens não estavam disponíveis em DVD.

Os filmes de Maria Regina Seidlhofer, uma pianista prodígio, continham imagens de

seus recitais no Teatro Cultura Artística. Construído em março de 1950, um incêndio

consumiu as suas instalações em agosto de 2008. Quando a pesquisa começou o teatro ainda

existia, agora restam os registros visuais. Isto nos serve para pensarmos a imponderabilidade e

as catástrofes que fazem parte de toda instituição cultural de longa atuação. Com os seus

quase 65 anos, a Cinemateca Brasileira passou por revezes diversos, incluindo incêndios,

enchentes, mudanças de governo e falta de recursos. A instituição só se manteve viva pela

pura insistência de funcionários e pessoas que compreenderam a importância crucial de um

órgão de salvaguarda de filmes brasileiros. Esses anos, no entanto, parecem ter passado.

A proximidade com a Secretaria do Audiovisual e os projetos financiados via leis de

renúncia fiscal trouxeram crescimento e estabilidade. O número crescente de funcionários e

de projetos, assim como as responsabilidades envolvidas numa maior proximidade com o

Ministério da Cultura, a gestão de projetos da Secretaria do Audiovisual e a responsabilidade

pela salvaguarda dos materiais que cumprem função de depósito legal, todas essas questões

colocam a instituição em um “lugar” diferente dos anos de extrema instabilidade e urgência.

Com esse fortalecimento a Cinemateca assumiu uma nova posição diante da

comunidade cinematográfica e da cultura brasileira como um todo. Nos termos da nova

configuração da “cultura dos projetos”, a Cinemateca tem mais visibilidade e currículo e,

portanto, mais recursos. Por este motivo, aliado à importância fundamental da instituição no

passado e no presente, ela tem atuado como um órgão central na administração e nas

delimitações de atividades em preservação, o que não pode ser confundido com uma real

política de preservação.

Nesta mesma onda de aquecimento financeiro proporcionado pelas leis de incentivo, o

cinema brasileiro, em todas as suas esferas – produção de mostras, pesquisas, produção de

filmes, políticas de difusão – vive um novo momento de enorme intensidade: há muito tempo

não se investia tanto em cinema, tanto politicamente como financeiramente. As decisões

sobre o perfil dos projetos financiados, no entanto, ficaram nas mãos da iniciativa privada. Os

projetos da Cinemateca Brasileira muitas vezes tiveram que se adaptar às prioridades da

iniciativa privada, criando projetos mais atrativos para o marketing cultural das empresas. O

crescimento não vem acompanhado de uma perspectiva em longo prazo. A reformulação das

leis em curso atualmente no Ministério da Cultura visa alterar esse quadro.

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As conseqüências desta super atividade no universo da preservação audiovisual é

perceptível pela formação do SiBIA – Sistema Brasileiro de Informações Audiovisuais,

vinculada à Secretaria do Audiovisual e sob coordenação da Cinemateca Brasileira, e a ABPA

– Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, que promove o Encontro Anual de

Arquivos (em 2009, na sua terceira edição) na Mostra de Cinema de Ouro Preto. Para a

Cinemateca, no entanto, um impasse se impõe.

O crescimento institucional acontece em meio a uma transformação tecnológica na

qual o filme não se define simplesmente pelo seu suporte. A digitalização do mundo do

audiovisual, longe de ser um problema per se, impõe questões de ordem filosóficas e

estruturantes para um arquivo de filmes. Primeiro porque é necessário formular o que deve ser

objeto da instituição: o audiovisual? Os registros visuais em película? O cinema? A televisão?

Um recorte? A totalidade? Será que as suas atribuições não deviam ser descentralizadas?

Essas perguntas devem ser respondidas porque a produção de imagens cresce

exponencialmente (nos formatos analógicos e digitais) e não é mais possível querer armazenar

tudo. Para além dos fatores quantitativos, o suporte digital é ainda extremamente frágil em

termos de preservação, cercando a longevidade desses novos materiais de enorme incerteza.

O segundo dilema levantado pela digitalização são as possibilidades de acesso. Os

projetos de abertura do acervo, com o advento da tecnologia de transferência digital e acesso

via internet, se concentram na digitalização e soam como uma solução evidente para a

melhora da relação entre a instituição e o seu público. O que parece se fragilizar com o tempo,

porém, é a pesquisa e a produção intelectual do próprio quadro técnico da Cinemateca

Brasileira nos diversos projetos executados. Digitalizar, simplesmente, é um problema. Sem

pesquisa e uma mobilização em torno dos projetos que atinja a comunidade interna dos

preservacionistas e a comunidade cinematográfica em geral (estudantes, pesquisadores,

críticos, cineastas etc.) e, sem uma melhora na qualidade e na quantidade das informações

disponibilizadas, as imagens se perdem no mar de hiperinformação que se tornou a internet.

A ênfase neste processo visa ressaltar que o caminho para o acesso e difusão do acervo

não pode se dar somente pela disponibilização de imagens digitalizadas. Não basta também

que os filmes sejam restaurados sem que se pense na forma de lhes dar acesso amplo e de

qualidade. A circulação de filmes tem se tornado um problema porque agora pagamos a conta

de anos sem uma política e consciência de preservação: muitos filmes que sobreviveram não

podem ser projetados pela sua fragilidade física. Igualmente, é preciso reconhecer que não se

pode restaurar e dar acesso a tudo e que o passado deve ser acessado a partir de uma postura

crítica. O arquivista audiovisual tem um papel fundamental nisso.

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É importante que a Cinemateca, incluindo todos os seus setores, estabeleça critérios,

olhe para a sua coleção de forma ativa, propondo recortes, desenvolvendo pesquisa,

publicando os resultados dos trabalhos realizados e sendo mais ativa nos debates sobre

preservação e nas coleções a serem valorizadas. Importante também é o estabelecimento de

novos métodos de trabalho e a percepção de que a mudança é uma atitude necessária: os

métodos de trabalho também têm suas feições históricas e devem ser, de tempos em tempos,

postos sob nova luz. Tais premissas podem assumir contornos excessivamente ideais e, para

alguns, até mesmo surreais já que o trabalho cotidiano e a conjuntura política indicam, com a

exceção de alguns focos de resistência, uma força que vai em direção contrária a este

movimento.

Os termos de atuação, acesso e difusão definitivamente não são fáceis ou simples de

serem estabelecidos, mas a Cinemateca Brasileira precisa lidar urgentemente com a

formulação da sua collection policy. O fortalecimento e o crescimento da instituição, visíveis

pela estruturação física da sede no Matadouro (antecâmaras, biblioteca, documentação,

laboratório), pela consolidação das bases de dados, pelo trabalho de inventário e a

disponibilização da FB na internet e pelos projetos de restauro, tornam latente a necessidade

de se estabelecer novos parâmetros de atuação justamente porque foram deitadas as bases para

uma nova relação entre a instituição, o corpo funcional e o público externo. Sem uma política

formalmente estabelecida através de um estatuto, uma filosofia da instituição, os projetos,

independentemente da sua qualidade, são regidos pela urgência e redundam num

enfraquecimento do seu potencial.

É evidente que a presente dissertação foi uma tentativa de injetar idéias e

questionamentos na situação atual da Cinemateca Brasileira. A especificidade do acervo de

filmes domésticos requer outra forma de catalogação e gestão de informação e uma

participação mais ativa do arquivista, algo que acredito que deva acontecer no trabalho da

Cinemateca como um todo. Além da sua diferença em relação ao cinema como usualmente o

concebemos, acervos pessoais dependem de informações de outras fontes para que se tornem

visíveis e a sua natureza específica os torna potentes objetos da história da vida privada e da

representação da família no século XX. Sem uma participação ativa do arquivo, eles

permanecerão guardados.

Arquivos nacionais como o Irish Film Institute e o Swedish Film Institute possuem

setores dedicados exclusivamente para a produção amadora. Arquivos regionais, públicos ou

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privados, como o Northwest Film Institute (Inglaterra), o Northeast Historic Film (Estados

Unidos) e a Associazione Home Movies (Itália) reconhecem a importância da produção de

filmes amadores e domésticos para a história local de cada região e investem na sua

preservação. Os projetos muitas vezes contam com a digitalização para dar visibilidade aos

seus acervos, mas não sem investir em pesquisa.

Um movimento mais geral de valorização da produção amadora e de filmes

domésticos sintetizado no Home Movie Day, evento que acontece todos os anos em diferentes

cidades do mundo no dia 17 de outubro, cristaliza o apoio de diversas instituições e a

conscientização do potencial que essas imagens possuem, não só como pesquisa, mas como

inclusão de novos personagens na missão de preservação da cultura audiovisual. Durante o

dia, filmes de família e amadores são revisados e, quando possível, projetados para o dono

dos filmes e para o público presente. Instruções sobre a melhor forma de passar os filmes

para formatos mais acessíveis (DVD ou outro arquivo digital) e como preservar as matrizes

em casa são fundamentais para a compreensão da natureza complexa da película

cinematográfica e a beleza envolvida na sua preservação. Uma movimentação em torno do

acervo de filmes domésticos da Cinemateca Brasileira é de extrema importância para que a

história da produção doméstica não se perca. A produção de imagens amadoras continua e a

produção feita em película é uma importante parte dessa história.

Durante o curso desta pesquisa, foram muitas as descobertas que fiz. Descobri

personagens extremamente ativos no universo do cinema amador como Sioma Breitman e

Alfredo Fomm. O espírito amador, aquele que é fascinado pelos equipamentos e pela

filmagem com equipes concisas, com domínio de todo o processo da feitura de um filme,

ainda persiste em mostras de Super-8 como o Curta 8, em Curitiba, e o Festival de Cinema

Super 8 de Campinas. O cinema de contracultura feito em Super 8 precisa de uma filmografia

mais ostensiva. A atividade e engajamento de Sergio Barreto Filho nas suas colunas em

Cinearte merecem uma pesquisa mais sistemática, assim como as revistas de amadores

publicadas durante as décadas de 1950 e 1960. O simples fato de estar mais consciente desse

tipo de produção tornou massivo e evidente o uso do filme doméstico como recurso narrativo

e estético em uma enorme variedade de filmes ficcionais e propagandas contemporâneas. A

pesquisa foi motivo para que as pessoas me contassem histórias de projeções domésticas, de

filmes de família e da importância que eles possuem, formando um imaginário ainda pouco

explorado em termos teóricos. Existe ainda um longo percurso a ser seguido na compreensão

deste universo.

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Voltando à dupla feição dessa dissertação, a da teoria misturada à prática, eu espero

que a reflexão aqui empreendida possa contribuir para o trabalho em preservação audiovisual,

para a valorização do cinema amador e dos filmes domésticos e, principalmente, para o

fortalecimento da Cinemateca Brasileira. O meu anseio é de que essa pesquisa tenha sim, na

medida do possível, reverberações no mundo real.

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