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Doutrina Nacional O TEMA DAS QUOTAS PARA AFRODESCENDENTES EM
CONCURSOS PBLICOS
THE ISSUE OF THE AFRODESCENDANTS SHARES ON BRAZILIAN CIVIL
SERVICE EXAMS
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy1Doutor e Mestre em Filosofia do
Direito e do Estado pela Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo PUC-SP
1 Livre-Docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de
Direito da Universidade de So Paulo USP, Consultor-Geral da
Unio.
RESUMO: O artigo discute a constitu-cionalidade de eventual
regra que fixe cotas para afrodescendentes em concursos pblicos, no
contexto da Po-ltica Nacional de Promoo da Igual-dade Racial. Tem
como pano de fundo o problema histrico da discriminao, isto , a
escravido. Discorre sobre a eliminao de qualquer fonte de
discriminao e desigualdade raciais, direta ou indireta, mediante a
gerao de oportunidades. Trata tambm de poltica de cotas nas escolas
pblicas no ensino superior. Discorre sobre cotas raciais e cotas
sociais.
PALAVRAS-CHAVE: Poltica Nacional de Promoo da Igualdade Racial;
Lei n 12.288, de 20 de julho de 2010; Estatuto da Igualdade Racial;
declarao de Durban; aes afirmativas; igualdade
formal; igualdade material; cotas raciais; cotas sociais;
precedentes normativos; combinao de critrios.
ABSTRACT: The paper discusses the constitutionality of a
possible statute that provides shares for afrodescendants on
Brazilian civil service exams, in the context of a national policy
toward racial equality. It has as a backdrop the historical problem
of the discrimination, that is, slavery. The paper goes into the
elimination of any source of discrimination and racial inequality,
direct or indirect, towards the promotion of opportunities. The
paper also deals with the politics of afrodescendants shares in
public universities. It finally considers racial and social shares
for afrodescendants.
KEYWORDS: National policy of racial equality; Law 12.288, july,
the 20th, 2010;
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statute of racial equality; the Durban declaration; affirmative
actions; formal equality; substantive equality; racial shares;
social shares; precedents; combination of criteria.
SUMRIO: Introduo e contornos do problema; I O tema da promoo da
igualdade racial; II As aes afirmativas e as cotas sociais e
raciais; III As cotas raciais na jurisprudncia do Supremo Tribunal
Federal; IV O tema das cotas para afrodescendentes em concursos
pblicos na compreenso do Superior Tribunal de Justia; Consideraes
complementares e conclusivas; Referncias.
SUMMARY: Introduction; I The issue of the promotion of racial
equality; II Affirmative actions, racial and social shares; III
Racial shares in the oppinons of the Brazilian Supreme Court; IV
The issue of the afrodescendants shares in the civil service exams
in the comprehension of the Brazilian Superior Court of Justice;
Complementary and conclusive remarks; References.
INTRODUO E CONTORNOS DO PROBLEMA
Opresente ensaio tem por objetivo discutir o tema das cotas para
afrodescendentes em concursos pblicos2. Explora-se, inicialmente,
intenso conjunto de arranjos institucionais, que tem como meta a
promoo da igualdade social. Menciona-se algum antecedente histrico,
com o propsito de se evidenciar a complexidade que matiza a
questo.
A percepo de aes afirmativas central no debate. Nesse sentido,
faz-se alguma digresso em torno de diferenas e semelhanas entre
cotas sociais e cotas raciais. Estas ltimas foram objeto de deciso
do Supremo Tribunal Federal, a propsito da utilizao deste mecanismo
para preenchimento de vagas em universidades pblicas.
Em seguida, a propsito de lei paranaense que disps sobre reserva
de cotas em concurso pblico, observa-se o modo como o Superior
Tribunal de Justia tratou a questo, do ponto de vista da
legalidade, bem entendido. Tenta- -se alguma prognose para decises
futuras, isto , na hiptese da multiplicao da judicializao dessa
questo.
Como se ver, conclui-se pela plausibilidade do uso do sistema de
cotas para afrodescendentes em concursos pblicos parece contemplar
orientao
2 O presente ensaio nasce de estudo que teve como objetivo
confeco de parecer a propsito de confeco de projeto de lei relativo
fixao de cotas para afrodescendentes em concursos pblicos federais.
Trata-se do Parecer ASMG-AGU-CGU n 7.
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constitucional que aponta para a necessidade do efetivo alcance
de uma sociedade justa e solidria.
I O TEMA DA PROMOO DA IGUALDADE RACIALIntensa produo normativa
tem ensejado arranjos institucionais que
objetivam a promoo da igualdade racial entre ns. A Lei n 7.716,
de 5 de janeiro de 1989, definiu os crimes resultantes dos
preconceitos de raa e cor, em contexto que remonta Lei n 1.390, de
3 de julho de 1951, Lei Afonso Arinos. O Decreto n 4.886, de 20 de
novembro de 2013, instituiu a Poltica Nacional de Promoo de
Igualdade Racial PNPIR. Este ltimo marco legal nuclear na concepo e
no desenvolvimento efetivo de polticas de promoo de igualdade
racial.
O Decreto n 65.810, de 8 de dezembro de 1969, promulgou a
Conveno Internacional sobre Eliminao de todas as Formas de
Discriminao Racial. A Portaria MP n 1.500, de 12 de novembro de
2002, instituiu o campo raa/cor no Sistema Integrado de Administrao
de Recursos Humanos do Governo Federal Siape. A Lei n 10.678, de 23
de maio de 2003, criou a Secretaria Especial de Polticas de Promoo
da Igual Racial da Presidncia da Repblica. O Decreto n 5.397, de 22
de maro de 2005, dispe sobre o Conselho Nacional de Combate
Discriminao CNCD.
Na origem desse amplo programa de ao, que orienta polticas
pblicas, o j referido Decreto n 4.886, de 2003, de onde se colhe de
amplo conjunto de consideranda as linhas centrais que devem
orientar a atuao estatal no contexto do complexo problema que aqui
se explicita. Levou-se em conta que o Estado deve redefinir o seu
papel no que se refere prestao dos servios pblicos, buscando
traduzir a igualdade formal em igualdade de oportunidades e
tratamento. Pretende-se transitar da formalidade do tratamento
isonmico para o conjunto de medidas reais e efetivas que possam
garantir a igualdade de tratamento e de oportunidades.
Reconheceu-se quecompete ao Estado a implantao de aes, norteadas
pelos princpios da transversalidade, da participao e da
descentralizao, capazes de impulsionar de modo especial segmento
que h cinco sculos trabalha para edificar o Pas, mas que continua
sendo o alvo predileto
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de toda sorte de mazelas, discriminaes, ofensas a direitos e
violncias, material e simblica.
A atuao estatal a mola propulsora de polticas de igualdade que
se pretende (e que se deve).
Quanto ao papel especfico do Governo Federal nesta empreitada,
registrou-se que este pretende fornecer aos agentes sociais e
instituies conhecimento necessrio mudana de mentalidade para
eliminao do preconceito e da discriminao raciais para que seja
incorporada a perspectiva da igualdade racial. Transita-se, assim,
em campo de poltica pblica formulada e reconhecida pelo Poder
Executivo Federal.
Nos consideranda do decreto, consignou-se tambm a linha
conceitual que se vem construindo, reveladora de princpios que
orientam a atuao estatal e que obrigam o Estado. O documento aqui
citado veicula um anexo no qual se define a necessidade da eliminao
de qualquer fonte de discriminao e desigualdade raciais direta ou
indireta, mediante a gerao de oportunidades. H orientao para
fortalecimento institucional, centrado em diretrizes e aes.
Exige-se empenho no aperfeioamento de marcos legais que deem
sustentabilidade s polticas de promoo de igualdade racial e na
consolidao de cultura de planejamento, monitoramento e avaliao. A
reserva de cotas para afrodescendentes em concursos pblicos
resultado dessa orientao, que exige empenho.
Reconheceu-se a necessidade de aperfeioamento dos marcos legais.
Especialmente, pretendeu-se o incentivo adoo de polticas de cotas
nas universidades e no mercado de trabalho. Ainda, tratou-se da
realizao de censo dos servidores pblicos negros. A identificao de
um ndice de desenvolvimento humano para a populao negra, bem como a
construo de um mapa da cidadania da populao negra no Brasil, fecham
o referido anexo. H necessidade de fixao de marco regulatrio que d
segurana jurdica e que d respaldo ao dos agentes pblicos
envolvidos; o problema do racismo demanda solues3.
Seguiu a Lei n 12.288, de 2010, que instituiu o Instituto da
Igualdade Racial. Referido texto normativo tem por objetivo
garantir populao negra
3 O debate relativo s solues para esse problema est, entre
outros, em GALLI, Alessandra. Aes afirmativas: possveis solues para
o racismo no Brasil. In: Direitos humanos: fundamento, proteo e
implementao: perspectivas e desafios contemporneos. Curitiba: Juru,
2007.
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a efetivao da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos
tnicos individuais, coletivos e difusos e o combate discriminao e s
demais formas de intolerncia tnica4. O tema transcende o meramente
jurdico e alcana questes fundamentalmente sociolgicas5.
O estatuto definiu discriminao racial ou tnico-racial,
identificando-ascomo toda distino, excluso, restrio ou preferncia
baseada em raa, cor, descendncia ou origem nacional ou tnica que
tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou
exerccio, em igualdade de condies, de direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos poltico, econmico, social, cultural ou em
qualquer outro campo da vida pblica ou privada.6
A questo tambm muito recorrente no debate acadmico, em tema de
arranjos institucionais e modelos isonmicos7.
Especificou ainda desigualdade racial, caracterizando-a como
toda situao injustificada de diferenciao de acesso e fruio de bens,
servios e oportuni-dades, nas esferas pblica e privada, em virtude
de raa, cor, descendncia ou origem nacional ou tnica8. O
enfrentamento da desigualdade racial, por intermdio de aes
afirmativas, desafio permanente para sociedades democrticas, nas
quais h a herana escravista9.
Nos termos de estudo divulgado pelo Instituto de Estudos
Socioecon-micos Inesc10, houve longa e difcil trajetria para
aprovao da referida lei,
4 Art. 1 da Lei n 12.288, de 20 de julho de 2010.5 Cf., entre
outros, SILVA, Luiz Fernando Martins da. Ao afirmativa e cotas para
afrodescendentes:
algumas consideraes sociojurdicas. In: SANTOS, Renato Emerson
dos; LOBATO, Ftima (Org.). Aes afirmativas: polticas pblicas contra
desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
6 Inciso I do art. 1 da Lei n 12.288, de 2010.7 Conferir, por
todos, SARMENTO, Daniel. O negro e a igualdade no direito
constitucional brasileiro:
discriminao de facto, teoria do impacto desproporcional e aes
afirmativas. In: Novas perspectivas do direito internacional
contemporneo: estudos em homenagem ao Professor Celso D. de
Albuquerque Mello. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
8 Inciso II do art. 1 da Lei n 12.288, de 2010.9 TOMEI, Manuela.
Ao afirmativa para a igualdade racial: caractersticas, impactos e
desafios. Braslia:
OIT, 2005.10 SANTOS, Sales Augusto dos; SANTOS, Joo Vitor Moreno
dos; BERTLIO, Dora Lcio. O processo de
aprovao do estatuto da igualdade racial Lei n 12.288, de 20 de
julho de 2010. Braslia: INESC, 2011.
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proposta pelo Senador Paulo Paim. Ao que consta, o debate fora
originariamente acelerado entre parlamentares afrodescendentes, nos
quais se constatou algum tipo de aliana ou de aproximao com
movimentos negros11.
Ainda especificamente, em tema de cotas para afrodescendentes em
concursos pblicos tem-se notcia de audincia pblica realizada no
Senado Federal na qual se discutiu o assunto. O Portal de Notcias
daquela Casa Legislativa noticiou, em 27 de maro de 2003, que os
debatedores teriam concludo que a Constituio respalda polticas
afirmativas, como forma de reduzir as desigualdades sociais do
Pas12.
A questo do trabalho escravo, origem de todo o problema, nos
revela assunto dramtico13 no que se refere ao estudo da formao do
Estado brasileiro14, situao sempre assustadora e constrangedora15,
marcada por feridas ainda abertas16 em todo o continente
americano17, indicativas de um grande constrangimento que o debate
suscita18.
Tome-se, apenas como exemplo, de argumentao histrica, de alguma
legislao escravista produzida ao longo do Primeiro Reinado, isto ,
em seguida ao triunfo do movimento de independncia. Nesse sentido,
a represso contra os escravos sempre foi assustadora. Exemplifico
com uma ordem de D. Pedro,
11 Cf. SANTOS, Sales Augusto dos et al., cit., p. 11.12 Agncia
Senado, 27 de maro de 2012. Disponvel em: . Acesso em: 24 set.
2013.13 O tema da escravido e da justia, especialmente ao longo do
Segundo Reinado, explorado por
NEQUETE, Lenine, Escravos & magistrados no Segundo Reinado.
Braslia: Ministrio da Justia, Fundao Petrnio Portella, 1988.
14 A relao entre escravido e instituies do Estado, a exemplo da
Justia, tema explorado por NEQUETE, Lenine, Escravos &
magistrados no Segundo Reinado. Braslia: Ministrio da Justia,
Fundao Petrnio Portella, 1988.
15 Conferir, por exemplo, a propsito da impresso que a escravido
provocava em viajantes que passavam pelo Rio de Janeiro, SELA,
Eneida Maria Mercadante. Modos de ser, modos de ver Viajantes
europeus e escravos africanos no Rio de Janeiro 1908-1850.
Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
16 Conferir, nesse sentido, LARA, Silvia Hunold. Fragmentos
setecentistas Escravido, cultura e poder na Amrica portuguesa. So
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
17 Conferir, especialmente, MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores
do corpo, missionrios da mente Senhores, letrados e o controle dos
escravos nas Amricas 1660-1860. So Paulo: Companhia das Letras,
2004.
18 Inusitada e assustadora, entre outros, a relao entre
cientistas e a questo racial no Brasil, no contexto do delicadssimo
problema da escravido. Conferir, por todos, SCHWARCZ, Lilia Moritz,
O espetculo das raas Cientistas, instituies e questo racial no
Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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datada de 2 de abril de 1825, que mandava castigar
correcionalmente os escravos presos por pequenos roubos, fazendo-os
depois entregar a seus senhores:
Constando a S. M. o Imperador que os escravos presos por
pequenos roubos, apresentados s autoridades criminais desta Corte,
tm sido por elas soltos, sem receberem o castigo que merecem para
sua emenda e necessrio exemplo, manda o mesmo A. S., pela
Secretaria de Estado dos Negcios da Justia, que o Ouvidor da
Comarca do Rio de Janeiro faa castigar correcionalmente a todos os
pretos, que por tais crimes lhe foram apresentados, fazendo-os
depois entregar a seus respectivos senhores.Palcio do Rio de
Janeiro, em 2 de abril de 1825.Clemente Ferreira Frana.19
Ao que parece, havia senhores de escravos que eram empregados
pblicos, e que levavam os escravos para as reparties onde
trabalhavam. Combatia-se a prtica. Nesse sentido, uma ordem de D.
Pedro I, veiculada pelo Ministrio da Marinha e datada de 17 de
agosto de 1830:
Sua Majestade o Imperador, querendo evitar os abusos que se
podem seguir de se admitirem escravos ao servio das mesmas
Reparties em que os respectivos senhores se acham empregados, h por
bem que V. S. de acordo com o Inspetor do Arsenal de Marinha, expea
as ordens necessrias a fim de que sejam despedidos todos os
escravos tais circunstncias, empregando V. S. igualmente a maior
vigilncia para que debaixo do nome de senhores supostos e quaisquer
outros pretextos se no iluda esta imperial disposio. Deus guarde a
V. S.Pao, em 17 de agosto de 1830.Marqus de Paranagu.Sr. Luiz da
Cunha Moreira.20
19 Ordem n 82 do Ministrio da Justia, em 2 de abril de 1825.20
Ordem n 149 do Ministrio da Marinha, em 17 de agosto de 1830.
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Exemplos identificados supra, e explicitados em frmulas
ortogrficas do portugus contemporneo, remetem a exerccio de memria
institucional que justifica que o elemento histrico tambm seja
levado em conta, em qualquer juzo a propsito de soluo para o
problema, tambm como componente justificativo de situao
existencial, a exigir pronta interveno do Estado. H, assim,
componente histrico de muita importncia, justificativo de que
construa soluo institucional que contemple a dramtica questo.
Conta-se tambm com componente na ordem internacional, ao qual
aderimos sem restries, e refiro-me Declarao de Durban, proferida na
frica do Sul, de 31 de agosto a 8 de setembro de 2001. Parcela do
conjunto dos consideranda da abertura do texto acordado sintetiza
movimentao universal, no sentido de se combater quaisquer formas de
manifestao de racismo. Na referida declarao h conjunto de situaes
que ento se reconheceu, circunstncia que provoca a ao estatal, no
sentido de fomentar efetivamente a igualdade de condies entre as
pessoas. De tal modo, reproduzo, com nfases minhas, excertos do que
ento se pactuou:
[...]76. Reconhecemos que a desigualdade de condies polticas,
econmicas, culturais e sociais podem reproduzir e promover o
racismo, discriminao racial, xenofobia e intolerncia correlata, e
tm como resultado a exacerbao da desigualdade. Acreditamos que a
igualdade de oportunidades real para todos, em todas as esferas,
incluindo a do desenvolvimento, fundamental para a erradicao do
racismo, discriminao racial, xenofobia e intolerncia
correlata;[...]107. Destacamos a necessidade de se desenhar,
promover e implementar em nveis nacional, regional e internacional,
estratgias, programas, polticas e legislao adequados, os quais
possam incluir medidas positivas e especiais para um maior
desenvolvimento social igualitrio e para a realizao de direitos
civis, polticos, econmicos, sociais e culturais de todas as vtimas
de racismo, discriminao racial, xenofobia e intolerncia correlata,
inclusive atravs do acesso mais efetivo s instituies polticas,
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jurdicas e administrativas, bem como a necessidade de se
promover o acesso efetivo justia para garantir que os benefcios do
desenvolvimento, da cincia e da tecnologia contribuam efetivamente
para a melhoria da qualidade de vida para todos, sem discriminao
[...].
Verifica-se a construo conceitual de um arranjo institucional
que exige medidas efetivas. Ao conjunto de iniciativas que se
desenha denomina-se de aes afirmativas. A questo (affirmative
action) vem sendo discutida nos Estados Unidos da Amrica h um bom
tempo. Especialmente, em tema de contrataes governamentais, h
expressiva construo jurisprudencial nos casos City of Richmond v.
Croson (1989) e Adarand v. Pena (1995). No caso City of Richmond,
por exemplo, discutiu-se programa daquela cidade, que exigia
subcontratao de 30% de trabalhadores recrutados entre minorias
raciais, por parte de contratantes que realizassem obras para a
municipalidade21. A Suprema Corte julgou que o programa de integrao
racial da cidade de Richmond era insuficientemente concebido para
atingir aos objetivos que pretendia22.
II AS AES AFIRMATIVAS E AS COTAS SOCIAIS E RACIAISA expresso
supostamente surgira com o ex-presidente John Kennedy em
ordem executiva de 1961, proibindo discriminao no regime de
contratao de pessoal de manuteno23. A locuo tambm foi utilizada
pelo ex-presidente Lyndon Johnson24 em ordem executiva de 1965.
Tentava-se eliminar resqucios do passado, fazendo-se historicamente
justia devida s minorias, mediante a reserva de vagas em escolas e
empregos para membros dessas comunidades e grupos tnicos. esse
tambm o contexto do modelo norte-americano.
A referida ordem executiva supra, do ento Presidente Lyndon
Johnson, data de 24 de setembro de 1965. poca, havia grande
dissenso em torno de conflitos raciais; o Civil Rights Act, por
exemplo, daquele mesmo ano. A ordem executiva aqui citada
determinava que o Secretrio do Trabalho (equivalente a nosso
Ministro do Trabalho) tomasse providncias para garantir igualdades
de condies na contrao de trabalhadores pelo Governo
norte-americano.
21 Cf. SCHWEBER, Howard. Affirmative Action. In: Kermit Hall,
The Oxford Companion to American Law, p. 11.
22 Cf. SCHWEBER, Howard. Cit. loc. cit.23 Cf. Scweber, cit., p.
10.24 Lyndon B. Johnson, Executive Order 11246, 1965.
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O presidente norte-americano detm poder e competncia para baixar
ordens executivas que no tm a mesma natureza de nossas medidas
provisrias25. Essas ordens executivas se prestam, basicamente, para
fixao de normas em treze categorias bsicas: comrcio exterior,
auxlio ao estrangeiro, defesa, bem-estar social, interveno
governamental na economia, recursos naturais, agricultura, medalhas
e reconhecimentos pblicos, delegaes de poder, artes e humanidades,
empregos pblicos federais, tributos e custdia de propriedade de
estrangeiros26.
Em tema de bem-estar social, o presidente dos Estados Unidos tem
baixado ordens sobre sistema educacional, sobre projetos de
colaborao entre o Governo e sociedade civil, sobre segurana de
trabalho, aposentadoria, seguro de trabalhadores, programas
federais de combate s drogas, sobre food stamps (selos que podem
ser trocados por comida), sobre reservas indgenas, sobre questes de
gnero e de minorias (especialmente sobre regras de acesso ao
emprego).
Crticos das aes afirmativas considerariam tais procedimentos
como discriminaes reversas (reverse discrimination). O caso Bakke
vs. University of California27, julgado em 1978, indica os
precedentes. Allan Bakke, que no era de grupo minoritrio, requereu
vaga em faculdade de medicina em um dos campi da Universidade da
Califrnia. Embora detentor de boas notas (good score), Bakke fora
preterido porque a aludida universidade reservava dezesseis por
cento de suas vagas para grupos especficos28.
Bakke ajuizou ao contra a universidade, alegando que o programa
de proteo de minorias o discriminava. A Suprema Corte decidiu que o
modelo de ao afirmativa da Universidade da Califrnia era
inconstitucional, usando-se inclusive a expresso reverse
discrimination. Porm, a deciso no foi unnime e em voto vencido
(dissent) o juiz Powell observara que, em no havendo prejuzo para o
interessado, as polticas afirmativas eram perfeitas. Bakke ganhou a
ao e obteve a vaga na faculdade de medicina. Talvez pela primeira
vez uma norma atinente a direitos civis (civil rights) fora
utilizada na proteo de
25 Entre ns, a matria foi tratada por Marco Aurlio Sampaio,
cit., p. 43 e ss.26 Cf. HOWELL, William G. Power Without Persuasion
The Politics of Direct Presidential Action. New
Jersey: Princeton University Press, 2003. p. 189 e ss.27 438
U.S. 265 (1978).28 Sobre o caso Bakke, conferir POSNER, Richard.
The Economics of Justice. Cambridge and London:
Harvard University Press, 1998. p. 351 e ss.
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maiorias. Porm, com base no voto vencido do juiz Powell, muitas
escolas nor-te-americanas mantiveram polticas de aes
afirmativas.
A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu em meados de 2003 um
caso de affirmative action que envolveu a Universidade de Michigan.
Decidiu-se que a prtica da universidade no sentido de que admitir
minorias no violara a XIV emenda da Constituio norte-americana e
que, portanto, no houve discriminao racial ao reverso, como
pretenderia a ala mais conservadora.
Trata-se do caso Grutter v. Bollinger. Sustentou-se a poltica de
aes afirmativas da Universidade de Michigan, ainda que em votao
muito apertada. Dos nove juzes, cinco deles votaram em favor das
polticas de acesso quela universidade, que usava o sistema de
cotas. Os outros quatro negaram a possibilidade, insistindo que o
sistema de cotas era inconstitucional.
Mais recentemente, retomou-se a discusso, por conta do caso
Fisher v. Universidade do Texas. A Suprema Corte norte-americana
anulou uma deciso de corte inferior, que era a favor do sistema de
cotas, dado que esta corte no havia aplicado o teste do strict
scrutiny escrutnio estrito, que exige uma ponderao entre o
interesse pblico na manuteno da poltica desafiada e o interesse
particular invocado. De qualquer modo, no se alterou a linha
construda desde a dcada de 1960.
Retomando-se a discusso para um contexto brasileiro29, e do
ponto de vista conceitual, o problema se concentra na compreenso de
eventuais e
29 Cf., entre outros, GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ao
afirmativa e princpio constitucional da igualdade: o direito como
instrumento de transformao social: a experincia dos EUA. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001;, GOMES, Nilma Lino (Org.). Tempos de lutas:
as aes afirmativas no contexto brasileiro. Braslia: Ministrio da
Educao, 2006; HIGINO NETO, Vicente. Aes afirmativas: razo cnica ou
igualdade substancial? In: Direitos humanos: fundamento, proteo e
implementao: perspectivas e desafios contemporneos. Curitiba: Juru,
2007; JACCOUD, Luciana; OSRIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei. As
polticas pblicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos aps a
abolio. Braslia: Ipea, 2008; LOPES, Carla Patrcia Frade Nogueira. O
sistema de cotas para afrodescendentes e o possvel dilogo com o
direito. Braslia: Ddalo, 2008; MELLO, Marco Aurlio Mendes de
Farias. ptica constitucional: a igualdade e as aes afirmativas. In:
As vertentes do direito constitucional contemporneo: estudos em
homenagem a Manoel Gonalves Ferreira Filho. Rio de Janeiro: Amrica
Jurdica, 2002; OLIVEIRA NETO, Olavo de. Os meios executivos e a
real efetividade das aes afirmativas. In: Direito civil e processo:
estudos em homenagem ao Professor Arruda Alvim. So Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008; RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminao:
discriminao direta, indireta e aes afirmativas. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2008; SANTOS, Sales Augusto dos (Org.). Aes
afirmativas e combate ao racismo nas Amricas. Braslia: Ministrio da
Educao, 2005.
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possveis diferenas entre cotas raciais e cotas sociais30, para
efeitos aplicao de regras de isonomia, luz do texto constitucional
vigente e das interpretaes autorizadas do texto decorrentes.
Em seguida, e tambm o ponto de vista conceitual, deve-se avaliar
se h disposio constitucional expressa no sentido de se contemplar
polticas de aes afirmativas ou, se, por outro lado, deve-se
recorrer a leitura sistemtica do texto, forte em presunes da tcnica
de mutao constitucional. No h, objetivamente, regra constitucional
que contemple a pretenso.
Em princpio, ao que consta, as cotas sociais identificariam
reserva de vagas para garantia de oportunidades, em todos os
sentidos, com base em critrios de poder econmico. Cotas raciais,
por outro lado, identificariam reserva de vagas com base em
critrios especficos de cor, raa e etnia. Deve-se indagar se as
cotas raciais se justificariam como cotas sociais31.
Eventual fixao de regime de cotas para afrodescendentes em
concursos pblicos contemplaria, em princpio, modelo de cotas
raciais. Por outro lado, dado amplo conjunto estatstico que
comprova que afrodescendentes seriam economicamente
hipossuficientes, pode-se compreender que o modelo de cotas
raciais, no caso, efetiva tambm uma frmula de cotas sociais.
Essa prtica comea a vicejar no Governo Federal, por fora de
experimentalismo que deve marcar a Administrao contempornea. Por
exemplo, um Edital de 19 de janeiro de 2012 regulamentou Concurso
de Admisso Carreira de Diplomata. Fixou-se nesse normativo o regime
de autodeclarao para afrodescendentes. A estes foram reservadas, at
a primeira etapa, 10% das vagas.
Por ltimo, deve-se ressaltar, em tema de cotas sociais, que o
Decreto n 6.593, de 2 de outubro de 2008, regulamentou o art. 11 da
Lei n 8.112, de 11 de dezembro de 1990, quanto iseno de pagamento
de taxa de inscrio em concursos pblicos realizados no mbito do
Poder Executivo Federal.
Fixou-se que os editais de concurso pblico dos rgos da
Administrao direta, das autarquias e das fundaes pblicas do Poder
Executivo federal devero prever a possibilidade de iseno de taxa de
inscrio para candidatos
30 O tema explorado por Lincoln Frias, em As cotas raciais e
sociais em universidades pblicas so justas? (Revista Direito,
Estado e Sociedade, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de
Janeiro, Departamento de Direito, n. 41, p. 130 e ss., jul./dez.
2012.
31 Como observado, a discusso muito bem colocada em Lincoln
Frias, cit. loc. cit.
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Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013
O TEMA DAS QUOTAS PARA... 25
inscritos no Cadastro nico para Programas Sociais do Governo
Federal, bem como para membros de famlias de baixa renda32. Aes
afirmativas, por intermdio de cotas raciais e sociais, so de ampla
aceitao no debate poltico brasileiro contemporneo. Verifica-se, em
seguida, se haveria constitucionali-dade em lei que reservasse
cotas para afrodescendentes em concursos pblicos, bem como se
haveria alguma ilegalidade em medida nesse sentido.
Por isso, deve-se consultar as jurisprudncias do Supremo
Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justia. Este ltimo
tratou da legalidade de uma lei paranaense que reservou cotas para
afrodescendentes em concurso daquela unidade federada. Aquele
primeiro cuidou de cotas em universidades pblicas. da jurisprudncia
do Supremo Tribunal Federal que se pode fazer um prognstico de
eventual desate de discusso sobre cotas para afrodescendentes em
concursos pblicos. Adianto concluso, no sentido de que haver
necessidade de lei que compatibilize cotas sociais com cotas
raciais.
III AS COTAS RACIAIS NA JURISPRUDNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
A discusso intensa. Envolve mirade de problemas que transcendem
ao argumento da justia histrica no contexto discursivo das chamadas
aes afirmativas, em desfavor de compreenso que resiste ao modelo
que se prope, e que qualifica cotas raciais e sociais como
discriminao reversa. E foi por causa de dissenso havido em relao ao
regime de cotas nas escolas pblicas do ensino superior, no que toca
constitucionalidade do modelo, que o problema chegou naturalmente
ao Supremo Tribunal Federal33.
32 Art. 1 do Decreto n 6.593, de 2008.33 H extensa bibliografia
sobre o assunto. Conferir: BARBIERI, Carla Bertucci; QUEIROZ,
Jos
Guilherme Carneiro. Da constitucionalidade das cotas para
afrodescendentes em universidades brasileiras. In: Direitos
humanos: fundamento, proteo e implementao: perspectivas e desafios
contemporneos. Curitiba: Juru, 2007; BELLINTANI, Leila Pinheiro. Ao
afirmativa e os princpios do direito: a questo das quotas raciais
para ingresso no ensino superior no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006; BERNARDINO, Joaze; GALDINO, Daniela (Org.). Levando a
raa a srio: ao afirmativa e universidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2004; BRANDO, Carlos da Fonseca. As cotas da universidade pblica
brasileira: ser esse o caminho? Campinas: Autores Associados, 2005;
DUARTE, Evandro C. Piza; BERTLIO, Dora Lcia de Lima; SILVA, Paulo
Vincius Baptista da (Coord.). Cotas raciais no ensino superior:
entre o jurdico e o poltico. Curitiba: Juru, 2008; FERES JNIOR,
Joo; ZONIN, Jonas. Ao afirmativa e universidade: experincias
nacionais comparadas. Braslia: Editora UnB, 2006; GOMES, Nilma
Lino; MARTINS, Aracy Alves (Org.). Afirmando direitos: acesso e
permanncia de jovens negros na universidade. Belo Horizonte:
Autntica, 2004; VIEIRA JUNIOR, Ronaldo Jorge
-
26
Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013
Doutrina Nacional
Refiro-me ADPF 186-MC/DF, proposta pelo Partido Democratas DEM,
em face de atos administrativos da Universidade de Braslia, que
instituram cotas raciais para ingresso de alunos na referida
instituio pblica34. Por unanimidade, julgou-se improcedente a
arguio35.
Relatada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, houve tambm deciso
cautelar do Ministro Gilmar Mendes indeferindo a medida. O voto do
Ministro Relator, Ricardo Lewandowski, at a data presente, ainda no
foi publicado. Recolhe-se, no entanto, das notas taquigrficas e de
apontamentos feitos ao
Arajo. Responsabilizao objetiva do Estado: segregao
institucional do negro e adoo de aes afirmativas como reparao aos
danos causados. Curitiba: Juru, 2005; ARENHART, Srgio Cruz. Reserva
de quotas pelo critrio racial para o exame vestibular: princpio da
isonomia: princpio do promotor natural. Revista de Processo, v. 30,
n. 126, p. 141-151, ago. 2005; BARROZO, Paulo Daflon. A ideia de
igualdade e as aes afirmativas. Lua Nova: Revista de Cultura e
Poltica, n. 63, p. 103-141, 2004; CARVALHO, Jos Murilo de.
Universidade pblica, elitista? Cincia Hoje, v. 34, n. 203, p.
16-20, abr. 2004; BRAGRA, Maria Lcia de Santana; SILVEIRA, Maria
Helena Vargas da (Org.). O programa diversidade na universidade e a
construo de uma poltica educacional anti-racista. Braslia: Secad:
Unesco, 2007; CARVALHO, Jos Jorge de. Incluso tnica e racial no
Brasil: a questo das cotas no ensino superior. So Paulo: Attar
Editorial, 2006; GUIMARES, Fbio Cunha. Sistema de cotas para negros
nas universidades. Goinia: Universidade Catlica de Gois, 2007;
IKAWA, Daniela. Aes afirmativas em universidades. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008; LOPES, Maria Auxiliadora; BRAGA, Maria Lcia de
Santana (Org.). Acesso e permanncia da populao negra no ensino
superior. Braslia: Ministrio da Educao, Unesco, 2007; NASCIMENTO,
Paulo Cezar do. Ao afirmativa no Brasil e o acesso dos negros ao
ensino superior por meio do sistema de cotas, 2006.
34 Necessrio tambm o conhecimento das linhas gerais do
pensamento da subscritora da pea do Partido Democratas no Supremo
Tribunal Federal. Nesse sentido, conferir, KAUFMANN, Roberta
Fragoso Menezes. Aes afirmativas brasileira: necessidade ou mito?
Uma anlise histrico-jurdico-comparativa do negro nos Estados Unidos
da Amrica e no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007;
KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. As diversas cores do Brasil: a
inconstitucionalidade de programas afirmativos em que a raa seja o
nico critrio levado em considerao, Revista de Direito
Constitucional e Internacional, v. 15, n. 60, p. 207-258, jul./set.
2007.
35 Deciso: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do
Relator, rejeitou as preliminares de cabimento da arguio e de sua
conexo com a ADIn 3.197. Votou o Presidente. No mrito, aps o voto
do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator), julgando
totalmente improcedente a argio, o julgamento foi suspenso.
Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli. Falaram: pelo requerente,
a Dra. Roberta Fragoso Menezes Kaufmann; pelos interessados, a Dra.
Indira Ernesto Silva Quaresma, Procuradora-Federal; pela
Advocacia-Geral da Unio, o Ministro Lus Incio Lucena Adams,
Advogado-Geral da Unio; pelos amici curiae Movimento contra o
Desvirtuamento do Esprito da Poltica de Aes Afirmativas nas
Universidades Federais e Instituto de Direito Pblico e Defesa
Comunitria Popoular IDEP, a Dra. Wanda Marisa Gomes Siqueira;
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Dr. Ophir
Cavalcante Jnior; Defensoria Pblica da Unio, o Dr. Haman Tabosa de
Moraes e Crdova, Defensor-Pblico Geral.
-
Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013
O TEMA DAS QUOTAS PARA... 27
longo do histrico, julgamento linha de raciocnio que qualifica a
ratio decidendi, a razo de decidir, que revela do ponto de vista
realista o modo como o Supremo Tribunal Federal compreende o
arranjo institucional de que aqui se trata.
Discutiu-se em torno da constitucionalidade das aes afirmativas.
Nesse sentido, o Ministro Relator ops contedos e conceitos de
igualdade formal em face de contedos e conceitos de igualdade
material. Evidenciou a isonomia em um sentido concreto, real,
substancial, e no meramente de aparncia ou de inscrio normativa.
Invocou justia distributiva como critrio de superao real de
desigualdades. Buscou referencial de critrios objetivos. Discorreu
em torno de um papel simblico e necessrio de polticas de incluso,
especialmente no mbito universitrio.
Concluiu, ao que consta, que polticas de ao afirmativa em
universidades objetivam fixar ambiente acadmico plural,
diversificado, de modo a se enfrentar distores sociais que esto
historicamente consolidadas entre ns. Insistiu na proporcionalidade
e na razoabilidade que matizam as medidas. Considerou que estas so
transitrias, com previso de avaliao peridica de resultados.
Finalmente, fixou que essas polticas efetivamente empregariam
mtodos seletivos eficazes e compatveis para com o princpio da
dignidade da pessoa humana.
O julgado leva a crer que se o tema da constitucionalidade das
cotas para afrodescendentes for submetido ao Supremo Tribunal
Federal, luz da tcnica do uso do precedente, vai se manter a mesma
ratio decidendi, isto , a mesma razo de decidir36. Bem entendida, e
em princpio, se mantida a frmula das regras para cotas nas
universidades, que mescla cotas raciais e cotas sociais.
Tem-se, assim, realismo jurdico que informa prognose em favor da
tese da constitucionalidade das cotas para afrodescendentes em
concursos pblicos. Verifica-se, em seguida, discusso no Superior
Tribunal de Justia, a propsito de lei paranaense que tratou do tema
de que aqui se cuida.
36 H ampla literatura no tema, interpretao do precedente.
Conferir, por exemplo, MACCORMICK, D. Neil; SUMMERS, Robert S.
Interpreting Precedents a Comparative Study. Aldershot: Dartmouth,
1997; CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law.
Oxford: Clarendon Press, 2004; SESMA, Victoria Iturralde. El
Precedente en el Common Law. Madrid: Editorial Civitas, 1995.
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28
Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013
Doutrina Nacional
IV O TEMA DAS COTAS PARA AFRODESCENDENTES EM CONCURSOS PBLICOS
NA COMPREENSO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA
Por intermdio da Lei Estadual n 14.204, de 2003, disps-se, no
Estado do Paran, sobre reserva de vagas em concursos pblicos para
afrodescendentes. Reservou-se 10% (dez por cento) das vagas
oferecidas nos certames pblicos naquela unidade federada, efetuados
pelo Poder Pblico daquele Estado, para provimento de cargos
efetivos para afrodescendentes37.
Disps-se tambm que a fixao do nmero de vagas reservadas aos
afrodescendentes, bem como respectivo percentual, far-se-ia pelo
total de vagas no edital de abertura do concurso pblico e se
efetivaria no processo de nomeao38. Fixou-se que, uma vez
preenchido o percentual estabelecido no edital de abertura, a
Administrao ficaria desobrigada a abrir nova reserva de vagas
durante a vigncia do concurso em questo39. Explicitou-se que,
quando o nmero de vagas reservadas aos afrodescendentes resultasse
em frao, arredondar-se-ia para o nmero inteiro imediatamente
superior, em caso de frao igual ou maior do que 0,5 (zero vrgula
cinco); ou para nmero inteiro imediatamente inferior, em caso de
frao menor do que 0,5 (zero vrgula cinco)40.
De igual modo, disps-se que a observncia do percentual de vagas
reservadas aos afrodescendentes dar-se-ia durante todo o perodo de
validade do concurso e aplicar-se-ia a todos os cargos
oferecidos41. A lei paranaense tambm disps que o acesso dos
candidatos reserva de vagas deve obedecer ao pressuposto do
procedimento nico de seleo42. Consignou-se que, na hiptese de no
preenchimento da quota prevista na regra geral, as vagas
remanescentes seriam revertidas para os demais candidatos
qualificados no certame, observada a respectiva ordem de
classificao43.
Nuclear na lei, a definio de afrodescendente, quando se
consignou que a condio daquele que assim se declare expressamente,
identificando-se como
37 Art. 1 da Lei paranaense n 14.204, de 2003.38 1 do art. 1 da
Lei paranaense n 14.204, de 2003.39 2 do art. 1 da Lei paranaense n
14.204, de 2003.40 3 do art. 1 da Lei paranaense n 14.204, de
2003.41 4 do art. 1 da Lei paranaense n 14.204, de 2003.42 Art. 2
da Lei paranaense n 14.204, de 2003.43 Art. 3 da Lei paranaense n
14.204, de 2003.
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Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013
O TEMA DAS QUOTAS PARA... 29
de cor preta ou parda, a raa etnia negra44. Disps-se que,
detectada a falsidade na declarao, deve-se sujeitar o infrator s
penas da lei (falsidade), identificando-se ainda outras
penalidades, como a pena disciplinar de demisso, na hiptese de
nomeado para cargo efetivo nessas condies, ou, no desdobramento do
concurso, a anulao da inscrio, garantindo-se, sempre, a ampla
defesa45.
A lei no se aplicaria aos concursos ento em andamento46. Isto ,
no teria efeitos ex tunc ou projeo em situaes pendentes. A regra
renovava. Seus efeitos so ex nunc. A lei paranaense de cotas no
servio pblico foi judicializada47. A questo ao Superior Tribunal de
Justia, por meio de recurso em mandado de segurana48. Relatado pelo
Ministro Felix Fischer, trata-se de mandado de segurana que se
reporta a concurso pblico realizado na Universidade Estadual Norte
do Paran. Nesta ocasio, ementou-se, como segue e com nfases
minhas:
RECURSO ORDINRIO EM MANDADO DE SEGURANA CONCURSO PBLICO ANU-LAO
DO CERTAME DESCUMPRIMENTO DE LEI ESTADUAL RESERVA DE VAGAS PARA
AFRO-DESCENDENTES CONSTITUCIONALIDADE IMPOSSIBILIDADE DE A
AUTONOMIA UNIVER-SITRIA SOBREPOR-SE LEI INEXISTNCIA DE DIREITO
LQUIDO E CERTO RECURSO DESPROVIDO1. A reparao ou compensao dos
fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade
jurdica constitui poltica de ao afirmativa que se inscreve nos
quadros da sociedade fraterna que se l desde o prembulo da
Constituio de 1988. 2. A lei estadual que prev a reserva de vagas
para afrodescendentes em concurso pblico est de acordo com a ordem
constitucional vigente. 3. As Universidades Pblicas
44 Art. 4 da Lei paranaense n 14.204, de 2003.45 Art. 5 da Lei
paranaense n 14.204, de 2003.46 Art. 6 da Lei paranaense n 14.204,
de 2003.47 Percepo fincada na cincia poltica pode nos dar conta de
que judicializao de alguns problemas de
polticas pblicas pode redundar na reduo da complexidade da
questo. Alm do que o Judicirio seria, nesse sentido, um poderoso
ator que desequilibra a disputa, na medida em que detm poder que
transcende aos demais atores. que o Judicirio quem d a palavra
final.
48 Superior Tribunal de Justia, Recurso em Mandado de Segurana n
26.089/PR (2008/0003014-1).
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30
Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013
Doutrina Nacional
possuem autonomia suficiente para gerir seu pessoal, bem como o
prprio patrimnio financeiro. O exerccio dessa autonomia no pode,
contudo, sobrepor-se ao quanto dispem a Constituio e as leis. 4. A
existncia de outras ilegalidades no certame justifica, in casu, a
anulao do concurso, restando prejudicada a alegao de que as vagas
reservadas a afrodescendentes sequer foram ocupadas. Recurso
desprovido.
No corpo do voto h vrias passagens que objetiva e
inquestionavelmente sufragam a legalidade de lei que disponha sobre
cotas para afrodescendentes em concursos pblicos. Assim, do ponto
de vista da legalidade, h precedente do Superior Tribunal de Justia
que sufraga a tese de que h possibilidade de lei que disponha sobre
reserva de cotas para afrodescendentes em certames pblicos para
provimento de cargos. Bem entendido, no se trata aqui de cotas
sociais, das quais se obtm um quantitativo de cotas raciais, a
exemplo do que ocorrera na legislao referente a cotas nas
universidades pblicas. Assim, na forma, e no fundo, diferentes os
arranjos institucionais decorrentes de uma frmula de cotas para
afrodescendentes no contexto do acesso s universidades pblicas,
comparados com o modelo para acesso ao servio pblico.
CONSIDERAES COMPLEMENTARES E CONCLUSIVASNo h disposio expressa
no texto constitucional no sentido de que a
reserva de cotas para afrodescendentes em concursos pblicos seja
mandatria. Assim, do ponto de vista da absoluta literalidade, no h
norma constitucional que objetivamente sufrague a pretenso de que
aqui se cuida. A ilao decorre de compreenso sistemtica do texto,
sobremodo com base no inciso I do art. 3 da Constituio de 1988, que
dispe que objetivo fundamental da Repblica Federativa do Brasil a
construo de uma sociedade livre, justa e solidria. H na medida
garantia de cotas para afrodescendentes permanente busca de justia,
em ambiente de forte solidariedade.
Refora essa premissa o texto do prembulo de nosso texto
constitucional, que d conta da instituio de um Estado
Democrtico,
destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e
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Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013
O TEMA DAS QUOTAS PARA... 31
sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a soluo pacfica das
controvrsias.
essa dico que sustenta, na essncia, a constitucionalidade da
concepo e da execuo de aes afirmativas.
O modelo deve ser transitrio, pena em que se transforme em
prenda interminvel, consubstanciando situao que a doutrina denomina
de discriminao reversa. Alm do que, ao que consta, a medida aqui
estudada atende relao de proporcionalidade: meios que sero
empregados (reserva de cotas para afrodescendentes) e fins
objetivados (promoo de igualdade racial)49.
Uma maior presena de afrodescendentes nos vrios postos do servio
pblico (fim objetivado), por intermdio de reserva de cotas,
indubitavelmente meio adequado e pertinente. De tal modo, esse
arranjo institucional contem-plado por juzos de valorao de poltica
pblica e de pertinncia jurdica, a exemplo do teste da
proporcionalidade.
Na trilha do definido pelo Supremo Tribunal Federal, na discusso
sobre as cotas para afrodescendentes em universidades pblicas,
pode-se afirmar que a utilizao desse modelo para o ingresso no
servio pblico, por concurso, seria importante instrumento para a
diversificao e para a realizao do ideal pluralista. Tem-se, assim,
frmula para o enfrentamento e a superao de distores sociais que
plasmam nossa histria. H, no entanto, um componente de cotas
sociais que foi sacrificado e que precisa ser explicado.
Bem entendido, seguindo-se as vrias legislaes que hoje h,
especialmente o Estatuto noticiado, as concepes aqui lanadas
deveriam transcender aos limites dos concursos pblicos. Isto ,
deveria tambm se cogitar de modelo de reservas de cotas em relao a
cargos em confiana, no obstante a especificidade, o objetivo e os
estreitos limites de tirocnio destes ltimos. Haveria necessidade de
que se alterasse o conceito de livre nomeao.
A escolha de detentor de cargo em comisso desdobra-se de algumas
circunstncias fticas, personalssimas, que revelam conhecimento de
reas de atuao e proximidade com a autoridade que indica quem v
ocupar o cargo em comisso aqui mencionado. Esse elemento que
histrico em nosso direito ,
49 Conferir, no tema, proporcionalidade, e por todos, PULIDO,
Carlos Bernal. El principio de proporcionalidade y los derechos
fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Politicos y
Constitucionales, 2007.
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32
Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013
Doutrina Nacional
uma vez aprovada regra que reserve cotas para afrodescendentes
inclusive em cargos comissionados, dever ser redesenhado.
O reconhecimento, por parte do Supremo Tribunal Federal, da
constitucionalidade de polticas de aes afirmativas para
afrodescendentes no regime de ingresso nas universidades federais
decorreu de avaliao de texto legal, devidamente apreciado pelo
Congresso Nacional.
Cuidou-se, poca, da Lei n 12.711, de 29 de agosto de 2012, que
dispe, entre outros, que
as instituies federais de educao superior vinculadas ao
Ministrio da Educao reservaro, em cada con-curso seletivo para
ingresso nos cursos de graduao, por curso e turno, no mnimo 50% de
suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o
ensino mdio em escolas pblicos. Realiza-se, assim, poltica de cotas
sociais.50
O mesmo texto legal, mais a frente, dispe que as referidas vagas
sero preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos,
pardos e indgenas, em proporo ao mnimo igual de pretos, pardos e
indgenas na populao na unidade da Federao onde est situada a
instituio, segundo o ltimo censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica51. Na hiptese, tem-se, assim, poltica de
cotas raciais, a partir de conjunto de vagas que contemplam cotas
sociais.
So duas as questes clssicas que acompanham uma anlise sria sobre
polticas de aes afirmativas. Questiona-se, em primeiro lugar, se
funcionam52; ainda, pergunta-se, seriam justas53? segunda pergunta,
ao que consta, a resposta positiva, em um contexto de uma sociedade
democrtica, que se pretende justa e igualitria. primeira delas,
deve-se compreender que algum experimentalismo seja necessrio.
Fixada a compreenso de que a reserva de cotas para afrodescendentes
em concursos pblicos seja constitucional, opina-se que essa medida
deve ser veiculada por lei, e no por decreto ou por
50 Art. 1 da Lei n 12.711, de 29 de agosto de 2012.51 Art. 3 da
Lei n 12.711, de 2012.52 Cf. DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue The
Theory and Practice of Equality. Cambridge and
London: Harvard University Press, 2000. p. 386 e ss.53 Cf.
DWORKIN, Ronald. Cit., p. 409 e ss.
-
Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013
O TEMA DAS QUOTAS PARA... 33
qualquer outra medida infralegal. A formulao do modelo via
decreto, por exemplo, fomentaria contnua litigncia em tema de
reserva legal e de reflexa discriminao de reversa,
inviabilizando-se a realizao de concursos para provimento de cargos
pblicos.
Necessria a confeco de projeto de lei, estendendo-se o Estatuto
da Igualdade Racial, no qual a medida aqui cogitada pode se
consubstanciar em acrscimo de artigo. Ao Congresso Nacional, em
seguida, o debate sobre essa justssima questo. Vai se debater se as
cotas raciais se dissolvem em contas sociais.
Assim, pode-se concluir que constitucional medida que fixe cotas
para afrodescendentes em concursos pblicos, bem como para cargos em
comisso, por meio de projeto de lei, e por fora de entendimentos do
Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justia, e com
fundamento na efetiva leitura do prembulo e dos excertos da
Constituio, a par dos vrios marcos regulatrios que h, e que exigem
da gerao presente o mais absoluto compromisso com a formao de uma
sociedade justa e solidria. Deve-se compreender que a herana
escravista enseja um especialssimo ingrediente que exige que
compreendamos que cotas sociais no seriam suficientes para a
completa integrao racial que se almeja.
REFERNCIAS
ARENHART, Srgio Cruz. Reserva de quotas pelo critrio racial para
o exame vestibular: princpio da isonomia: princpio do promotor
natural. Revista de Processo, v. 30, n. 126, p. 141-151, ago.
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