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* Publicado originalmente na Revista do Museu Paulista, v. 8, p.
13-57, 1954, a partir de manuscrito encontrado no mesmo museu e
datado de 02/12/1908. Transcrio de Mahyara Vale e Alexandre
Bretchenaider.
Apontamentos sobre os Guarani*Notes about the Guarani
Curt Nimuendaj
Apresentao da presente edio
Pablo Antunha BarbosaGraciela Chamorro
Na introduo geral deste nmero, j dissemos que As lendas da criao
e destruio do mundo como fundamentos da reli-gio dos
Apapocva-Guarani tardaram muito a chegar ao pblico lusfono, tendo
sido publicada em portugus apenas em 1987. Nesse sentido, possvel
dizer que devemos a Egon Schaden os primeiros esforos de divulgao
em portugus das pesquisas sobre os Guarani realizadas por
Nimuendaj.
Em 1954, Egon Schaden traduziu, anotou e publicou pela primeira
vez um manuscrito em alemo de Nimuendaj na Revista do Museu
Paulista, instituio onde se encontrava o manuscrito original. Os
Apontamentos sobre os Guarani datam, contudo, de dezembro de 1908 e
correspondem assim ao esboo preliminar para a elaborao dAs
lendas... que s viria ao pblico seis anos depois.
Se num primeiro momento foi graas traduo ao por-tugus dos
Apontamentos... que o pblico brasileiro pde ter o acesso facilitado
aos dados de Nimuendaj sobre os Guarani, pode-se dizer que, aps a
traduo de 1987, dAs lendas... tal texto caiu em total esquecimento
aos olhos dos estudiosos dos Guarani. No entanto, como comenta
Schaden na apresentao que faz dos Apontamentos..., a traduo desse
texto no tinha por nico objetivo preencher apenas o vazio da
inexistncia de uma traduo dAs lendas... ao portugus. Ao contrrio,
para Schaden, os dois textos deviam ser lidos de forma
complemen-tar e simultnea, uma vez que muitas observaes
interessantes presentes nos Apontamentos... no haviam sido
aproveitadas no trabalho publicado na revista Zeitschrift fr
Ethnologie de Berlim em 19141.
Tellus, ano 13, n. 24, p. 311-360, jan./jun. 2013 Campo Grande,
MS
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312 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
Apesar de termos feito pesquisas em arquivos, infelizmente no
nos foi possvel localizar para esta reedio o manuscrito original de
Nimuendaj a partir do qual Schaden realizou a traduo e a anotao do
texto. Teria sido extremamente interessante compar-lo com a traduo
de Schaden para po-der esclarecer alguns detalhes que ainda
permanecem confusos na primeira edio dos Apontamentos.... Por
exemplo, na reproduo da genealogia da famlia de Jos Francisco
Honrio, pai adotivo de Nimuendaj, anexada no fi nal do texto e
reproduzida neste dossi, h incoerncias geracionais e de parentesco
se comparadas s informaes existentes nAs lendas... Sem ter acesso
ao documento original, no nos foi possvel saber se tais
incongruncias so apenas o resultado de erros de transcrio, traduo e
digitao por parte de Schaden ou, ao contrrio, se poca da elaborao
dos Apontamentos... Nimuendaj ainda tinha dvidas em relao aos laos
de parentesco dos membros da famlia que o adotaria.
A reedio dos Apontamentos... se justifi ca ainda mais se
considerar-mos a traduo e reedio dos textos da srie Deutsche
Zeitung de Nimuendaj neste mesmo volume. Entre os seis textos dessa
srie, trs deles abordam suas pesquisas entre os Guarani. Com exceo
do texto Nimongara, publicado recentemente na Revista Mana, os
outros dois nunca haviam sido traduzidos antes ao portugus. Dessa
forma, com a traduo dos textos Da fogueira de acampamento e Os
buscadores do cu so publicados pela primeira vez e num s volume
todos os artigos sobre os Guarani de Nimuendaj de que temos
conhecimento.
Com o intuito de atualizar e iluminar certos pontos do texto,
optou-se por agregar algumas notas de rodap [notas da presente
edio]. Essa foi a nica alterao no contedo do texto, reproduzido do
original, o qual inclui notas de Nimuendaj [nota do autor] e de
Schaden [nota do tradutor].
Apontamentos sobre os Guarani2
Apresenta-se aqui aos estudiosos da etnologia brasileira a
traduo de um manuscrito alemo de Nimuendaj existente no arquivo do
Museu Paulista. So informaes no sistematizadas sobre os costumes, a
lngua, a histria e as peripcias dos Apapocva, grupo indgena do ramo
guarani afamado na literatura americanista graas ao trabalho Die
Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grudlagenn
der Religion der Apapocva-Guarani (Zeitschift fr Ethnologie, v.
XLVI, pp. 284-403, Berlim, 1914), que foi a primeira grande
construo de Curt Nimuendaj ao conhe-cimento de nossos aborgenes.
possvel que em vida o autor se opusesse divulgao dessas notas
despretensiosas, escritas ao correr da pena, objetando talvez que
em sua maioria se encontram corrigidas e ampliadas, no citado
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 313
estudo, do qual, alis, parecem constituir o esboo preliminar.
Assim mesmo, julguei til aceitar a incumbncia de traduzir essas
pginas, primeiramente porque h nelas, em todo caso, observaes
interessantes no aproveitadas no trabalho da Zeitschift fr
Ethnologie e, em segundo lugar, porque este ltimo continua
praticamente inacessvel ao leitor brasileiro.
Em parte, as informaes sobre os sofrimentos por que os Guarani
pas-saram em seus contatos com gente estranha no poderiam ser
divulgadas na poca em que foram escritas, pois eram vivas algumas
das pessoas em apreo. De qualquer forma, porm, certo que o autor
teve a inteno de depor pe-rante a posteridade sobre a maneira pela
qual se tratavam e maltratavam os ndios. Mas, por simples ditame de
prudncia, se outros motivos no houvesse, o documento devia ser
confi ado provisoriamente ao silncio dos arquivos. Nele se topam, c
e acol, expresses rudes e duras, nascidas da indignao e da revolta.
Traduzem o amor que Nimuendaj voltava a seus irmos da mata e a
intransigncia com que os defendia das injustias de toda sorte. No
nos assistiria o direito de duvidar da sinceridade de seu
testemunho. Sempre e em toda parte a sua voz se levantou para
declarar, alto e bom som, que crime negar tratamento humano a
desprezados e maltrapilhos indgenas, cuja existncia no raro se
transformou em inferno aps a chegada dos portadores da
civilizao.
Quem quer que hoje em dia entre em contacto com ndios Guarani em
situao de marginalidade cultural, no tarda a descobrir a quase
mania-de-perseguio de que so vtimas. uma atitude de esprito
decorrente, em parte dos contactos culturais a que esto expostos h
um sculo e tanto, mas em parte tambm do misticismo religioso
exacerbado pelo mito do cataclis-ma futuro. Ora, de um ndio
acossado pela ideia de que a terra est prestes a ser destruda pelo
fogo, pelas guas ou mesmo pelas trevas, e obsecado pelo mal que, em
sua opinio, sempre em toda parte se lhe pretende fazer, no possvel
exigir julgamento sereno e objetivo em suas relaes com pessoas
estranhas. Baseado em minha prpria experincia, avalio bem as cores
escu-ras e fantsticas em que os Guarani devem ter pintado a
Nimuendaj as suas atribulaes. Talvez haja, pois, algum exagero em
um ou outro episdio que se vai ler, mas claro tambm que o autor no
deve ter poupado esforos para aproximar-se da verdade dos fatos,
que em parte, alis, ocorreram nos anos que conviveu com a
tribo.
Ao etnlogo exigente e vido de largas interpretaes tericas,
possivel-mente no satisfaa o registro casustico das observaes que
se vo ler. Mas no deixar tambm de reconhecer o valor ilustrativo
dos fatos particulares e a sua importncia para a compreenso do
ethos cultural e da personalidade bsica dos Guarani, sobretudo
porque completam os dados do trabalho maior.
Dividem-se esses apontamentos em quatro partes. A maior delas
trata da movimentada histria das migraes guarani entre 1830 e 1908.
Na se-
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314 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
gunda, a que intitulei Acontecimentos vrios, narraram-se
primeiro alguns episdios que exemplifi cam a maneira vergonhosa
pela qual os ndios foram tratados e a seguir descreve-se o batismo
guarani e a cerimnia da adoo de Nimuendaj na comunidade tribal. Em
terceiro lugar, algumas pginas sobre o mdico-feiticeiro. quarta
parte dei o ttulo de Mitologia e crenas religiosas. Seguem-se, em
apndice, a tbua da famlia de Jos Francisco Honrio (que era capito
da aldeia do Ararib), um mapa das regies percorri-das pelos Guarani
em suas migraes pelo territrio paulista, a reproduo de interessante
desenho e, por fi m, rpido bosquejo de objetos de culto
religioso.
Conservei na traduo a grafi a original das palavras indgenas,
embora esta no corresponda exatamente que o autor usou mais tarde.
Ao captulo histrico Nimuendaj acrescentou dezoito notas. Alguns
comentrios meus, precedidos de pequeno vocabulrio de termos guarani
usados pelo autor, encontram-se no fi m da traduo. claro que o
texto poderia dar margem a extensas discusses etnolgicas, que,
alis, em parte foram feitas magistral-mente pelo prprio pesquisador
em seu estudo de 1914. Contudo a compre-enso das pginas aqui
traduzidas no requer erudio, nem muita teoria. Achei por isso, que
no devia sobrecarreg-las com grande nmero de notas explicativas e
comparativas.
So Paulo, 30 de setembro de 1950.Egon Schaden
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 315
I Sobre a histria dos Guarani
1 Os Guarani no Iguatemi por volta de 18303
O bisav de Avacauj4 era capito no Iguatemi5. Certa vez, ps-se a
ca-minho com sua gente, a fi m de trabalhar para os paraguaios. Na
aldeia fi caram somente o fi lho mais velho, a mulher com o fi lho
menor, que era criana de colo, uma segunda mulher e um homem de
idade.
Depois que os Guarani foram rio abaixo, vieram os Avava6 e
assaltaram a aldeia. Mataram o ancio e o fi lho mais velho do
capito, atearam fogo nas cabanas e levaram prisioneiras as duas
mulheres e a criana. Quando noite, no acampamento, o menino7 comeou
a gritar de medo dos Avava, estes o seguraram na fumaa da fogueira
at fi car meio sufocado e sem poder gritar. As mulheres guarani,
porm, na esperana de que os guerreiros de sua aldeia no tardassem
em seguir o rasto dos Avava, foram amarrando as fl echas s cordas
dos arcos, com auxlio de cip, e quando os Avava lhe perguntaram por
que motivo faziam isso, responderam que era costume guarani.
Entrementes, o capito dos Guarani regressou aldeia e viu o que
tinha acontecido. Disse ento aos seus guerreiros: melhor seguirmos
imediata-mente os Avava, talvez os alcancemos ainda! Em seguida, os
Guarani afi a-ram os seu faces8 e calibraram as suas fl echas sobre
o fogo. Foram andando em torno do local, at descobrirem o rasto dos
Avava e depois seguiram-no. Encontraram dois lugares em que os
inimigos haviam pernoitado. Na tarde do terceiro dia chegaram
proximidade de um rio e perceberam que estavam frente aldeia dos
Avava. Alguns estavam no rio, ocupados com um pari, outros faziam
covos, e o chefe, sentado na margem, estava tranando um cesto.
A os Guarani avanaram at o barranco do rio e o capito deles
gri-tou para outro lado: Vamos ver se vocs agora podem conosco!
Dito isto, lanou-se no rio e sobre os Avava. Os Guarani atacaram
trs vezes e mataram muitos inimigos; os restantes fugiram. O irmo
do capito guarani portou-se com grande valentia. Perseguiu dois
Avava, que, na fuga, pularam num poo do rio. Lutou com eles na gua,
mas os dois Avava conseguiram subjug-lo e ele estava prestes a no
resistir mais, quando se lembrou duma faquinha que levava cintura.
Mergulhou depressa no poo e quando, ao olhar para o alto, viu nadar
acima de si os dois Avava, enterrou a faca no peito de um e no
baixo ventre do outro. A seguir, foi at a margem e no vendo mais a
ningum em toda a redondeza, chamou: meu irmo mais velho, voc est
vivo ainda? Estou vivo! respondeu de longe o capito, que,
juntamente com os seus homens, havia perseguido os Avava
fugitivos.
Mal os Guarani tinham iniciado o ataque, uma das mulheres
prisioneiras correra para o lado deles. Mas a mulher do capito
assustou-se de tal modo
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316 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
com os gritos de assalto e alarido da luta que ela correu com
sua criana para dentro, onde se escondeu. Por longo tempo, os
Guarani chamaram e procuraram-na em vo e, afi nal, tiveram de ir-se
embora sem ela.
O capito, entretanto, no sossegou e da a poucos dias tornou a
levar a sua gente para dentro do mato. Mais uma vez assaltaram o
acampamento dos Avava, mas no encontraram a mulher com a criana,
nem numa terceira expedio, realizada pouco aps. O capito, porm,
incapaz de consolar-se com a perda, fi cou melanclico, de modo que
os seus homens comearam a ter medo dele e, quando pela quarta vez
ele os quis levar contra os Avava, negaram-lhe obedincia. Esperou
ainda alguns dias, mas fi cou pensando s na mulher e no fi lho e
afi nal disse ao irmo: Oua, meu irmo mais novo, eu volto para o
mato e sei que desta vez vou morrer.
E foi, acompanhado somente do nico de seus trs fi lhos que lhe
fi cara, um menino bastante crescido. Pouco depois de irem embora,
chegaram aldeia a mulher e a criana que se haviam procurado. Por
que foi que voc demorou tanto? Perguntou-lhe o irmo do capito. que
eu tinha medo do meu marido, porque pensei que se zangasse comigo
por eu ter fugido para o mato.
Enquanto isso, o capito e o fi lho dele andaram pelos matos em
procura de rastos de Avava.
Ao anoitecer do segundo dia caiu uma chuva forte; o capito
sentou-se debaixo de uma rvore e o fi lho, que levava o arco do
pai, debaixo de outra, um pouco distante. Enquanto estavam a
sentados, veio de mansinho um bando de Avava. Quando o capito os
viu, levantou-se e gritou: Venham c, seus corujas! O menino quis
levar-lhe depressa o arco, mas j era tarde; os Avava lanaram-se
sobre o capito e massacraram-no. Vendo isso, o me-nino fugiu, e
como ele era ainda pequeno, s um dos inimigos foi atrs dele. Quando
este o alcanou, o menino de repente se jogou no cho, quebrando, com
a pequena clava que tinha consigo, a canela de seu perseguidor.
Depois acabou de mat-lo e conseguiu fugir para casa. Meu pai,
disse-me ele, morreu nas mos dos Avava, mas eu tambm matei um
deles.
2 Os Guarani no Tibagi 1835-1850 (??)9
Os Guarani puseram-se em marcha para conhecer a grande gua no
leste. Iam com eles alguns poderosos mdico-feiticeiros. Chegando l,
estes deviam jogar com todos os recursos, para talvez conseguirem
que se pudesse caminhar por sobre a grande gua, para chegar terra
em que no se morre10.
Quando chegaram ao rio Paran, muitos pensaram que j fosse a
gran-de gua. Na ocasio, as guas do Paran estavam revoltas,
construiu-se uma
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 317
grande canoa e os Guarani passaram sem acidente para o outro
lado, uma leva aps a outra. Na margem oposta encontraram alguns
Guaian11,12,13, cuja tribo naquela poca j chegara at Paranapitinga
e Pescaria. Contaram aos Guarani que na regio havia uma ave de
canto muito alto e singular e que na terra cresciam rvores com
agulhas em lugar de folhas. A os Guarani acre-ditaram que de fato j
tinham chegado terra em que ningum morre e com mil privaes seguiram
adiante, cantando e em procura de mel.
A ona seguiu-lhes o rasto e matou um Guarani; ia sempre atrs do
bando e rondava o acampamento. O capito fez construir um mundu, mas
a ona no caiu nele e pegou mais um Guarani. A o capito pensou num
jeito de mat-la, para que ela no exterminasse aos poucos a tribo
toda. Afi ou o faco e ps-se sozinho na trilha da ona, mas esta era
esperta e no apareceu. Todavia ela assaltou outro Guarani. verdade
que a conseguiram enxotar, mas j lhe havia esfacelado os joelhos e
a nuca. Quando os companheiros o acharam, ele ainda podia falar e
deu-lhes o conselho de o abandonarem ali mesmo, pois assim
atingiriam o Jata14 sem serem perturbados. Pediu que lhe
entregassem um marac e disse ao capito que pendurasse outro marac
livremente no acampamento. No momento em que este segundo comeasse
a soar sozinho, teriam um sinal de que a ona estava dando cabo de
sua vida. O capito seguiu o conselho e ao cair noite o marac comeou
a soar sozinho no acampamento. Ento a capito reuniu a sua gente,
dizendo-lhe: Vejam, agora o homem est sendo comido pela ona.
Os Guarani chegaram ao Jata. Depois de cinco dias, a ona os
alcanou e ningum mais teve coragem de ir caa e de buscar gua. O
capito precisou mandar fazer um grande jirau no alto das rvores e,
quando anoitecia, todos subiam a. Uma noite veio a ona e quis subir
pelos troncos das rvores, mas o capito matou-a com a lana.
Mas j no dia seguinte veio outra ona, que matou um Guarani. O
capi-to disse: A esta podemos pegar com facilidade. Mandou fazer um
grande chiqueiro e na ponta, junto a sada colocou dois arcos
armados; em seguida, os Guarani se retiraram para o jirau. noite
veio a ona e fi cou rodando a acampamento, at que de madrugada
entrou no chiqueiro. Ao aproximar-se da sada, atingiram-na as duas
fl echas, que dispararam, e os Guarani desce-ram, acabando de
mat-la.
A seguir, os Guarani se estabeleceram junto ao Tibagi.Depois
vieram os portugueses. Os Guarani viram sobre o rio as numero-
sas e grandes canoas, ouviram os tiros e disseram: Agora estamos
perdidos; ali vem gente de outra tribo. Entre os portugueses havia
o Capito Mini, e que falava um pouco de Guarani. Gritou para os
Guarani que no tivessem medo que nada lhes aconteceria. A
encostaram as canoas, e delas saram negros e cada vez mais negros,
de modo que os Guarani fi caram assustados,
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318 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
perguntando ao Capito Mini: Que bichos so esses? No matam e no
mordem? Mas o Capito Mini lhes disse que era gente. O dono das
canoas mandou ento dar aos Guarani caf e cachaa, de que eles no
gostaram. A o capito Mini colocou um pouco de acar na boca do
Capito Guarani: Isto melhor ainda do que mel, e do acar os Guarani
gostaram. O dono das canoas mandou ento distribuir fazendas e deu
ao capito Guarani um par de calas, mas ele no as quis vestir de
jeito nenhum e afi nal amarrou as per-nas das calas maneira de
avental. O Capito Mini lhe quis mostrar: Veja, assim que voc deve
vestir. O Guarani, porm, fi cou sentado e replicou: Deixe, est bem
assim!15
Entre os Guarani havia uma jovem muito bonita, que o dono das
canoas quis para si. Dormiu uma noite com ela e na manh seguinte
mandou aque-cer gua e levar sua grande tenda uma bacia com gua
quente e outra com gua fria. Em seguida amarraram a jovem,
lavaram-na com sabo e em fi m foraram-na a vestir roupa e calar
sapatos. Vendo isso, os Guarani fi caram to amedrontados que
fugiram durante a noite, deixando apenas um velho que j no era
capaz de correr. Construram sua aldeia mais para jusante e l fi
caram morando por algum tempo. Receberam mais uma vez a visita dos
portugueses, mas estes os agradaram e no fi zeram nada de mal.
Os Guarani voltaram depois ao Jata, na mesma poca em que os
Guaian chegaram a So Joo Batista do Rio Verde. Foi esse tempo que
chegaram aos ndios trs frades16: Frei Mateu [sic] aos Caio de So
Sebastio do Piraju17, Frei Timteo aos Guarani do Jata. Frei Pacfi
co faleceu pouco depois, mais Frei Timteo presidiu por longo perodo
aldeia do Jata18. Aconselhava os Guarani a trabalharem, distribua
os trabalhos da lavoura e trouxe todos os apetrechos necessrio a
fabricao de cachaa e de acar. Entretanto os Guarani no queriam
viver maneira que ele propunha, no queriam tomar caf, nem comer
carne de gado: Para que? Ento havemos de morrer aqui de tanto
trabalhar? Uma noite retiraram-se s escondidas e foram reunir-se
aos Guaian do Rio Verde. Viajaram sob a direo de Guyracamb.
Por esse tempo um negociante, encontrando-se com outro bando de
Guarani no Paranapanema, abaixo da foz do Tibagi, foi assassinado
com seus homens, apesar de ter sido amistosa a sua aproximao aos
Guarani. Julgaram os Guarani que, apesar de tudo, lhes cumpria
prevenir um assalto da parte dos portugueses. Quando o negociante
os mandou buscar lenha, cada qual trouxe dentro de seu feixe de
lenha um tacape. Ao raiar do dia o chefe Guarani acordou os seus
homens; massacraram os portugueses, que estavam dormindo, e fugiram
rio abaixo, voltando para o Mato Grosso19.
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 319
3 Os Guarani no rio Verde e no rio das Cinzas 1850 (??)-1890
Guaian e Guarani trabalhavam conjuntamente na diviso de terras,
junto ao Itarar, ao Rio Verde etc. e, concludos os trabalhos,
receberam em paga, como propriedade eterna, o tringulo de terras
que fi ca entre rio Verde, o Itarar e o atual Itaporanga. E quando
morrer o ltimo ndio estabeleceu-se na ocasio as terras ho de
pertencer a seus ces.
Sob a direo de Frei Pacfi co, os ndios construram a capela de So
Joo Batista, que ainda existe em Itaporanga, e tornaram-se mais
numerosos graas chegada de novos elementos das tribos Guarani e
Caio20,21. De outro lado, parece que o grupo Guaian no sofreu
aumento pela chegada de companhei-ros de tribo. Apesar de se ter
dado um cruzamento em grande escala entre as trs tribos22,
tornaram-se cada vez mais tensas as relaes, especialmente entre os
Guarani e os Guaian. Com insistncia, os Guaian, que no princpio
eram numericamente mais fortes, levantavam contra os Guarani a
acusao de que estes lhes matavam as crianas com feitiaria. Quando
afi nal os Guaian exi-giram, para a realizao de suas danas oguau,
um rancho sagrado do capito Araguyra (Honrio), no qual este
levantara as imagens de Nianderequey e de Chyvyi23, os Guarani
destruram o rancho e vrios bandos, na maioria de mistura com Caio,
imigraram, primeiramente para o Rio das Cinzas.
L existia j uma aldeia de Guarani junto Barra Grande24, de onde
v-rios bandos foram para jusante, estabelecendo-se a.
Primeiramente, o bando do Capito Lucas fi xou morada na margem
direita, entre a barra do Piranha e a do Boi Pintado, mas no tardou
a abandonar esse local.
Por outro lado, a segunda aldeia foi talvez a mais prspera que
at o presente existiu no Rio das Cinzas. Foi fundada e dirigida por
um chefe enrgico e inteligente, o jovem Capito Tupmbei25. A
princpio, o bando de Tupmbei morou nas proximidades do atual Santo
Antnio da Platina, no Boi Pintado, mas depois migrou para jusante,
indo parar na margem esquerda do Rio das Cinzas, em frente
embocadura do Jacarezinho. Infelizmente Tupm-bei morreu muito cedo,
o que constituiu grave perda para a tribo. Certa vez, quando subia
o rio com canoas carregadas de produtos da aldeia para serem
vendidos aos brasileiros, os Guarani da Barra Grande, vendo-o
aproximar-se da aldeia, receberam-no com uma salva de tiros em
sinal de regozijo. Tupmbei, na inteno de responder salva, pegou a
garrucha que se encontrava diante dele no fundo da canoa, mas a
arma disparou antes do tempo. A descarga feriu-o mortalmente no
baixo-ventre; veio a falecer no dia seguinte, enquanto o levavam de
volta aldeia, e foi enterrado nas imediaes do Poo do Suru-bim. Aps
a sua morte a aldeia se dispersou. Os Caio voltaram para o Mato
Grosso, os Guarani para a Barra Grande. S um resto insignifi cante
fi cou a, abandonando o local mais tarde, em 1905, por causa dos
bravios Coroados.
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320 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
Inicialmente os Coroados no haviam feito investidas no rio das
Cinzas, at que um belo dia os afugentou, a tiros de espingardas, um
brasileiro em cujo paiol estavam tentando roubar milho. Da a pouco
tempo, os Coroados assaltaram-lhe a casa na ausncia dele,
queimando-a e trucidando a famlia. Como de costume, os Guarani
foram acusados pelos brasileiros, que diziam terem eles estado de
conluio com os Coroados para provar a sua inocncia, tiveram de
seguir com os bugreiros em perseguio aos coroados. A perseguio,
como de regra, terminou com a matana de uma aldeia, e a partir
dessa poca verifi caram-se tambm anualmente no rio das Cinzas
assaltos e dadas. Procurou-se tambm nessa poca conseguir a rendio
dos Coroados, empregando para tal fi m os companheiros de tribo
mansos do Jata; todavia os bravios declararam no render-se enquanto
houvesse coeso. Seguiram-se novas expedies de bugreiros e novos
assaltos. Por fi m os Coroados surgiram igualmente no Jacarezinho
onde mataram um pescador Guarani, lanando ao rio o cadver mutilado.
A seguir, tambm o ltimo resto do bando de Tupmbei se retirou para
Barra Grande.
Antes disso j se dissolvera por sua vez a quarta aldeia, situada
na margem direita da grande volta do Laranjinha. O capito Pedro,
dessa aldeia, que fora a passeio a Jata, perdeu em sua ausncia o fi
lho predileto, que morreu subitamente. Quando regressou
indicaram-lhe como culpados a dois Caio que estavam de partida para
o Mato Grosso e dos quais se dizia terem morto o fi lho com
feitio.
Joo Pedro mandou ento quatro Guarani para lhes armarem uma
cilada abaixo do Jacarezinho; um dos Caio foi realmente morto,
enquanto o outro conseguiu escapar, chegando ferido aldeia dos
Guarani do Jacarezinho. Joo Pedro perseguiu-o tambm a, mandando
mat-lo a tiro enquanto dormia26. Depois dessas ocorrncias, conduziu
a maior parte de seu bando para o sul de Mato Grosso, onde ele
morreu; os que permaneceram no primitivo lugar debandaram depois.
Parte dos homens de Joo Pedro reapareceu recentemente integrado no
bando de Jos Itapura, que subiu o Paran com seus Guarani e Caio, fi
xando-se acima da barra do Tiet, perto de Itapura. Em 1905 foi a So
Paulo, a fi m de solicitar a doao, a seu bando, de terras das
proximidades de Itapura, mas no obteve resposta defi nitiva. Depois
morou no rio Vermelho, em frente barra do Tiet, mas ao irromper a
revoluo fugiu descendo o Paran. Em princpios de 1907 tornou a
aparecer em So Paulo, sendo con-fi rmado no posto de capito, e
recebendo tambm, ao que parece, as terras que pediu, mas desde essa
ocasio ignora-se novamente o seu paradeiro27.
Em consequncia das referidas hostilidades entre as tribos do rio
Verde, o Capito Yvyrai por sua vez abandonou So Joo Batista,
dirigindo-se com a sua gente para Bananal28,29, perto de Conceio de
Itanham, onde o Governo havia dado terras aos Guarani a
estabelecidos. Todavia, no gostou do lugar, e por isso seguiu para
o serto do baixo Batalha, sem primeiro voltar a Rio Verde.
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 321
4 Os Guarani no Dourados e no Jacutinga 1890-1895
No baixo Batalha, Yvyrai se encontrou com outro bando, que
subira o Tiet sob a direo do Capito Antoninho. Com esses dois
chefes veio ter certo dia Frei Sabino30. Este conseguiu interessar
o capito Yvyrai (Leme) pelo plano da fundao de uma colnia indgena
junto barra do Dourados31. O capito Antoninho, porm, no quis saber
do plano e com o seu bando tornou a descer o Tiet. verdade que mais
tarde subiu novamente o rio, mas, na regio que medeia entre Dois
Crregos e Ja, a tribo toda foi vitimada por uma epidemia. O capito
Antoninho voltou s para o Mato Grosso, onde faleceu pouco
depois.
A fi m de ter mais gente sua disposio, o capito Yvyrai enviou um
homem ao rio Verde, a fi m de chamar ainda mais companheiros de
tribo. O convite teve entusistica aceitao da parte do capito
Araguyra (Honrio), que, movido pelo avano ilegal dos brasileiros
pelo territrio indgena adentro, bem como pelas rixas com os Guaian,
j havia emigrado uma vez para o rio das Cinzas, onde, no entanto,
permanecera pouco tempo.
Perto do stio de Jos Ferreira, no curso inferior da Batalha,
Araguyra se encontrou com Yvyrai e com Frei Sabino. Desceram
imediatamente o Batalha e o Tiet, em direo barra do Dourados, onde
Frei Sabino, mandou demar-car a colnia na margem direita do rio
Dourados. Mandou que cada um dos chefes derrubasse com seus homens
seis alqueires de mata virgem. Depois disso, plantar-se-ia cana e
fabricar-se-ia aguardente, para que j haviam sido trazidos os
necessrios apetrechos. Quando a derrubada estava pela metade, Frei
Sabino declarou ter necessidade de fazer uma viagem a So Paulo.
Entre os ndios haviam surgido febres malignas e, como houvesse
falta de remdios, Frei Sabino prometeu traz-los. Na qualidade de
substituto seu e de adminis-trador dos seus bens, deixou no
Dourados o sertanejo Adozinho, que, alis, fi zera o transporte dos
objetos at a.
Os que haviam permanecido no lugar fi caram esperando por muito
tempo, mas Frei Sabino no voltou. Entrementes, as condies de sade
no Dourados iam piorando cada vez mais. A sezo32 colhia uma vtima
aps outra, espalhando a morte, sobretudo, entre as crianas. Um fi
lho e duas fi lhas de Yvyrai faleceram. Quando o nmero de mortos
atingiu a 7, sem que houvesse chegado qualquer notcia de Frei
Sabino, Adozinho resolveu subir o rio at o stio de Jos Ferreira,
onde esperava obter informaes seguras. Da a poucos dias, regressou
com a notcia de que no se precisava mais esperar por Frei Sabino.
Constava que um vigrio residente na outra margem do Tiet, na
fazenda de um certo Antonio Sabino, apresentara a denncia contra
Frei Sabino autoridade competente em So Paulo, declarando a empresa
como falcatrua por meio de um documento assinado por seis
testemunhas. Em virtude disso, o frade no teria mais recebido
subsdio algum, no voltando mais para junto dos ndios.
-
322 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
Adozinho ento abriu sem demora todos os caixotes e volumes, deu
algumas miudezas aos ndios, e conservou o restante a ttulo de
remunerao pelos seus trabalhos; embarcou esses objetos na grande
canoa que a havia e foi-se embora com eles. Os Guarani seguiram por
terra, to depressa como lhe permitiam os seus numerosos doentes;
foi uma terrvel retirada, pois no percurso relativamente pequeno
entre a barra do Dourados e o stio de Jos Ferreira morreram mais
onze pessoas vitimadas pela sezo, entre eles quatro fi lhas, um
irmo e um neto do Capito Araguyra. Jos Ferreira deu acolhi-da
provisria aos ndios, enviando Araguyra Fortaleza com ordem para
fazer compras ao seu bando, que no possua roupas nem ferramentas.
Em Fortaleza, Araguyra se encontrou fortuitamente com Frei Sabino,
que lhe props acompanh-lo So Paulo, onde o ndio declararia que de
qualquer modo desejava a continuao da obra de Frei Sabino junto ao
Dourados. No entanto Araguyra no quis mais saber de coisa alguma e
acusou o frade de culpado da morte dos 18 Guarani que a febre havia
colhido no serto.
O capito Yvyrai33 fi cou morando com Jos Ferreira, ao passo que
Araguyra migrou com os seus homens para a regio de So Paulo dos
Agudos, onde pelo espao de quase dois anos trabalhou para um
fazendeiro, ao qual, no decorrer do tempo, teria fi cado devendo a
soma de 1.200$000. Por fi m, Ismael Marinho Falco34 resgatou a
dvida dos ndios, passando a traba-lhar com eles durante uma srie de
anos na medio de fazendas na regio do Batalha e, ocasionalmente,
tambm mais longe, para os lados de Pederneiras e Avar. Mais tarde,
chegou ainda um grupo sob chefi a do capito Chico, mas este morreu
pouco depois. Falco comprou quatro alqueires de capoeira no curso
superior do Jacutinga, bem como porcos para criao, entregando-os
aos Guarani, que a se estabeleceram; ia busc-los sempre que deles
precisava.
5 Os Guarani no rio feio 1895-1901
Por esse tempo, o sertanejo Adozinho, partindo da povoao situada
margem do Estiva, na regio das nascentes do Dourados, atravessara o
Ribeiro Congonhas, passando pela divisa das guas e entrando no
territrio do Rio Feio, onde descobriu o Ribeiro da Lontra. Falou
dessa descoberta aos Guarani, enaltecendo a piscosidade do rio e a
excelente caa das matas da regio, e lembrando que a os Guarani
ainda poderiam receber do Governo terras como propriedade sua, ao
passo que no Jacutinga moravam em cho estranho. Como, alm disso, os
Guarani sentissem sobremodo penosa a situ-ao em que viviam, de
serem chamados por Falco em qualquer poca do ano e sem considerao
pelos seus prprios interesses, a fi m de trabalharem durante meses
seguidos, Araguyra um belo dia se ps a caminho do serto com seus
homens; depois de alguma procura infrutfera, encontrou de fato
-
Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 323
o rio em apreo e comeou imediatamente a abrir roa junto foz de
Lontra, no local a que hoje devido mania, de certas pessoas, de
porem em tudo nomes guarani, embora no tenham a menor noo desse
idioma leva a tola denominao Guaranyuva35. Foi a que os Guarani
passaram os seus dias mais felizes desde a sada de Mato Grosso at
hoje. A caa e a pesca eram ex-traordinariamente rendosas, as
plantaes e, em especial, a criao de sunos davam bom resultado, e
nas fazendas recm-fundadas no alto rio Feio ainda se pagavam na
poca salrios relativamente altos.
Isto durou at que principiaram as incurses dos Coroados. De h
muito tempo havia notcia da presena desses ndios e sabia-se terem
infl igido em Agosto de 1887 sangrenta derrota na margem dos Pintos
aos moradores dos Campos de Avanhandava, obrigando-os a abandonarem
todo o lado esquerdo do Tiet. No rio Feio, porm, os seus vestgios
eram rarssimos e, na maioria dos casos, datavam de vrios anos, no
havendo notcia de nenhum caso em que tivessem enfrentado os
moradores com atitude hostil.
Mas uma ocasio em que os Guarani ousaram, numa caada, descer at
abaixo da embocadura do Jacar, encontraram junto barra de um riacho
(Ribeiro dos Sete Ranchos, da Comisso Geogrfi ca) sete cabanas
recentes, nas quais ainda se encontravam alguns utenslios. Pouco
tempo depois, numa excurso para sudoeste, Araguyra chegou
inopinadamente to perto de uma aldeia que pde ouvir o rudo do
trabalho no pilo. Sem mais indagar, voltou imediatamente.
Todavia, ainda no mesmo ano os Coroados fi zeram seu primeiro
assal-to. Os Guarani tinham aberto uma roa margem do Lontra,
bastante para o lado da nascente, onde construram um rancho para
pernoitar. Na primeira noite que a passaram, os Coroados entraram
na aldeia abandonada junto foz do Lontra, saquearam os ranchos,
incendiaram-nos e estragaram tudo o que no puderam levar. Logo a
seguir deu-se o primeiro assalto fazenda Acampamento, no qual os
Coroados, com todos os sinais de feroz sede de vingana36,
trucidaram dois jovens na roa e destruram uma casa (1898)37.
Vendo o dano que se lhes fi zera, os Guarani abandonaram o stio
de sua morada, dirigindo-se para o Coqueiro, onde naquele tempo
morava um certo Vitor Manuel Ferreira, que mais tarde tambm foi
rechaado pelos Co-roados, e quando os seus adversrios surgiram
igualmente por essas bandas, migraram para as proximidades de
Bauru.
Entrementes, os valentes do rio Feio se ajuntaram com o possvel
intuito de empreenderem uma excurso punitiva. Pessoas que ou no
conheciam os Guarani ou lhes queriam mal, tendo sua frente
Adozinho, levantaram, como de costume, a acusao de que os Guarani
de certo modo teriam trado os brasileiros perante os Coroados e
exigiram, sob ameaas, a sua participa-o na dada38 que se planejava.
Araguyra, em cujo esprito talvez tivesse
-
324 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
acordado o antigo dio contra os Avava, bem como a recordao do
pai por eles raptado e o av por eles trucidado39, participou da
expedio, juntamente com mais trs homens da tribo.
Partindo da fazenda Acampamento, foram para oeste, dobrando
depois para o sul, e surpreendendo pequeno acampamento dos
Coroados, onde ma-taram a tiros um velho casal e um jovem ndio e
prenderam vivo um rapaz. Os bugreiros regressaram triunfantes,
trazendo na ponta de uma vara os rgos sexuais do velho Coroado.
Da a pouco tempo, os sertanistas que acompanhavam o engenheiro
Slvio S. Martim em sua viagem fl uvial exterminaram at o ltimo
homem em outro grande acampamento dos Coroados pouco acima do lugar
agora chamado Quinze de Novembro. Dessa como de trs outras excurses
que se seguiram aos assaltos do Dourado, do Sucuri e do Congonhas,
participaram os Guarani, tendo-se destacado principalmente o
Guarani Tangaraj (Antnio Roque dos Santos)40, natural das
proximidades de Conceio de Itanham.
Quando os Guarani estavam acampados perto de Bauru, veio ter com
eles o Padre Claro Monteiro Homem de Melo que os persuadiu a
voltarem ao Rio Feio. Levou Araguyra consigo So Paulo, conseguindo
que lhe fosse conferida a patente de capito e declarado propriedade
dos Guarani o terri-trio dos ribeiros Lontra e Curuuhy (gua
Branca). Depois disso, voltou Guaranyuva, com tima equipagem e uma
poro de objetos de permuta, fongrafo etc., alcanando com promessas
ao capito prometeu 1.500$000, aos outros menos e ameaas que
Araguyra com cinco homens da tribo (Avajoguera41, Tangaraj42,
Ponchi43 e Tavy44) o acompanhassem na via-gem fl uvial que
empreendia no intuito de catequisar os Coroados. Alm dos nomeados,
participaram um caboclo (Salvador Pintado45), a mulher deste, uma
Guarani (Ciniana46) e um menino (Eij47), dez pessoas ao todo.
Antes da partida, o Padre Claro forou Araguyra mediante a ameaa
de entreg-lo com toda a tribo cadeia de Agudos a dar o seu
consentimen-to para que ele se casasse com a fi lha do capito,
Niapery48,49, unio contra a qual Araguyra no fundo no tinha objeo a
fazer, mas que desejava ver adiada at a volta.
Com toda solenidade, o Padre Claro se casou a si prprio com a fi
lha do chefe guarani50, e em seguida partiu com seus homens em duas
canoas. S excepcionalmente o padre entregava armas aos seus
companheiros, por-que receava que lhe estragassem a misso, atirando
contra os coroados em momento importuno.
J abaixo da embocadura do Ivinhema se tornaram visveis os
vestgios dos Coroados, que rodeavam a expedio. Os Guarani
negaram-se a seguir adiante, exigindo a uma voz que se iniciasse a
retirada. O Padre Claro decla-rou que neste caso seguiria sozinho.
Afi nal os Guarani se deixaram persuadir
-
Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 325
mais uma vez, com exceo do velho Ponchi, que persistiu em sua
negativa, voltando aldeia sozinho e a p, embora a distncia
equivalesse a dia e meio de viagem e o padre no lhe cedesse arma
alguma, nem sequer uma faca.
Os outros continuaram a jornada, ningum sabe por quanto tempo.
Dos Coroados encontraram-se pegadas, mas nenhum deles se deixou
ver. Finalmen-te, quando os mantimentos comearam a escassear, mais
uma vez os Guarani exigiram que se voltasse. Como precisamente
nesse ponto houvesse um cami-nho de ndios que dava no rio, o padre
o seguiu em companhia de Araguyra para explorar o terreno. Depois
de pouco tempo, porm, Araguyra se negou a seguir adiante e voltou,
ao passo que o Padre Claro prosseguiu sozinho, colo-cando sobre o
caminho presentes para os Coroados. Quando afi nal regressou, ao
anoitecer, esses objetos j no se encontravam a. Alta noite chegou
ao lugar em que se achavam as canoas, declarando haver estado numa
elevao, de onde vira que, da a um dia de viagem, o rio Feio
desemboca num rio maior.
Isto induziu mais uma vez os Guarani a avanarem, mas como noite
do dia seguinte no tivessem alcanado a embocadura51, o prprio Padre
Claro resolveu regressar. Mandou fi ncar um mouro beira do rio,
muniu-o de uma inscrio e na madrugada seguinte iniciou com os
companheiros a viagem para montante.
Ao meio-dia desse mesmo dia, quando passavam por uma volta do
rio, surgiu repentinamente no barranco da margem direita um grupo
de Coroa-dos, despejando uma rajada de fl echas sobre a primeira
das canoas, na qual se encontravam o Padre Claro, Araguyra e
Avajoguera. O Padre Claro, que no momento da agresso dormia deitado
no fundo da canoa, descarregou a espingarda, mas logo a seguir caiu
varado de fl echas. Avajoguera, embora j ferido por uma fl echada
no ombro, ainda disparou a sua garrucha de dois canos e depois
pulou no rio. Aps alcanar a outra margem, atingiu-o uma se-gunda fl
echa na regio lombar. Araguyra, que por sua vez pulara logo no rio,
mergulhando na gua, recebeu ao chegar margem, uma fl echada nas
costas. Conseguiu ainda subir o barranco, por onde no momento
passava correndo Eij; pediu a este que arrancasse a ponta da fl
echa, que sara no peito. Feito isso, o capito ainda tentou falar,
mas o sangue lhe jorrou pela boca e pelo nariz: fez a Eij um sinal
com a mo para fugir e morreu. Os que se encon-travam na segunda
canoa, abandonaram-na logo que se deu o ataque contra a primeira,
nadando para a margem oposta. A Rap arrancou penosamente, com os
dentes, a ponta da fl echa cravada no osso de quadril de
Avajoguera. O ferido era incapaz de andar, pelo que os outros o
quiseram arrastar consigo; o transporte, porm lhe causava dores
tais que ele suplicou que o deixassem a mesmo. Ficou, pois, para
trs e naturalmente nunca mais tornou a parecer52.
Sem armas apenas Rap tinha uma faca com feitio de punhal , sem
mantimentos, sem fogo, duramente perseguidos pelos Coroados, os
Guarani
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326 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
foram fugindo rio acima pelas matas e pelos pntanos. Uma vez
lograram escapar dos perseguidores somente porque dividiram as
pegadas e, mudan-do de rumo, cruzaram o rio Feio. Da por diante
marcharam em dois grupos separados. Tavy, Rap e Eij alcanaram a
aldeia do Lontra depois de quatro dias, e Tangaraj, Salvador
Pintado e a mulher deste somente depois de seis. Salvador no tivera
resistncia sufi ciente para acompanhar a fuga dos Guarani na ltima
parte do trajeto, a sua mulher ndia53, tivera de carreg-lo nas
costas.
Igualmente Eij, que na ocasio mal tinha 13 anos de idade,
contou-me vrias vezes que, tomado de desespero pela fome e pelo
cansao, pediu aos camaradas que o abandonassem. Mas Rap no cedeu e
tocou-o para frente fora de pancadas. Tangaraj esteve por longo
tempo entre a vida e a morte em consequncia das fadigas que
sofreram, e Tavy fi cou cego de um dos olhos.
Quando se divulgou a notcia dos acontecimentos, todos os objetos
de algum modo transportveis foram levados a Bauru por soldados
visto se afi r-mar em toda parte que os prprios Guarani teriam
assassinado o Padre Claro, mentira idiota que ainda hoje em dia se
costuma repetir e acreditar no serto. Mais tarde, os insultos
porque teriam abandonado covardemente o padre na hora do perigo e
as suspeitas da parte dos parentes do padre, que exigiam dos
Guarani a entrega de no sei quantos contos de ris, que se afi rmara
terem sido depositados em suas mos e dos quais, segundo os Guarani,
somente o administrador da Fazenda Faca talvez pudesse saber alguma
coisa eis as montanhas de ouro que Claro Monteiro prometera aos
companheiros pelos seus servios54.
Os Coroados, por sua vez, tornaram a incendiar a aldeia do
Lontra e destruram tambm a nova roa. A uma rvore do terreiro ataram
uma grande ponta de fl echa tinta de sangue e ao lado, sobre dois
ramos cortados, enfi aram os cartuchos detonados da garrucha de
Avajoguera. Foi o que encontraram os bugreiros que, auxiliados com
dinheiro e armas pela municipalidade de Bauru, empreenderam pouco
tempo depois uma expedio punitiva contra os coroados, que teve
pleno xito.
6 Os Guarani no Avari 1901-1906
Os Guarani no fi caram morando por muito tempo nas proximida-des
de Bauru, mas tornaram a concentrar-se junto embocadura do Avari no
Batalha, lugar em que anteriormente, antes de Falco os estabelecer
no Jacutinga, j haviam feito roa. Logo que possvel, Avacauj, o fi
lho mais velho de Araguyra, se preparou para uma viagem a So Paulo,
a fi m de a conseguir a sua nomeao para o cargo de capito. A essa
altura de modo algum consigo entender com que aparncia de direito
uma poro de brasi-
-
Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 327
leiros se imiscuiu subitamente nos negcios dos Guarani,
declarando Avacauj incompetente para esse posto. Avacauj moo
direito, bom chefe de famlia e se acaso alguma vez se embriaga,
procura retirar-se sem espalhafato. Em sua qualidade de capito
deveria, certo, ter mais energia e mais interesse pelo bem-estar da
comunidade; desfruta na tribo mais prestgio como mdico-feiticeiro
do que como capito. Mas observando o candidato da oposio, vejo
nitidamente que seus adversrios no se preocupavam com as melhores
qualidades de carter. Todavia, graas ao auxilio dos amigos e de seu
pai, hoje falecido, Avacauj pde reunir os meios necessrios para ir
a So Paulo. Foi nomeado capito, regressando para o seio da tribo
com a patente, o uniforme e os sarampos. A doena grassou
terrivelmente entre as crianas guarani, mas tambm adultos
faleceram. A situao da tribo teria sido desesperadora, se os
Guarani no tivessem tido auxlio de Ismael Marinho Falco, que lhes
deu conselhos e medicamentos.
Mesmo depois de nomeado capito, Avacauj (Jos Francisco Honrio)
estava longe de se ver livre das intrigas dos adversrios. Antes do
mais, trata-ram de convencer a Tangaraj55, homem ambicioso, mas um
pouco velhaco, de que era ele que deveria caber o posto de Avacauj.
Com a maior facilidade, Tangaraj aceitou esse ponto de vista,
portando-se de maneira correspon-dente, o que deu origem a
desentendimento aberto entre ele e Avacauj, em consequncia do qual
Tangaraj, levando consigo quase a metade da tribo, foi
estabelecer-se a jusante, na margem oposta do Jacutinga, onde os
Guarani fi caram inteiramente na dependncia do fazendeiro Jos
Soares. Mas tambm no quiseram que Avacauj continuasse como capito
dos restantes56.
Aqueles cidados, sua frente um certo Francisco Pereira da Costa
Ribeiro57, o mais miservel patife que at hoje encontrei no serto,
reuniram-se e, armados, se colocaram diante do rancho de Avacauj no
Avari, exigindo categoricamente a entrega da patente de capito.
Avacauj declarou que devolveria a patente somente em So Paulo, onde
a recebera, e afi nal, aps muito falatrio e barulho, os heris se
retiraram sem conseguir o seu intento.
Em compensao, nomearam outro capito e fato signifi cativo no
Tangaraj, mas ao velho Curuu (Manuel Fernandes), homem muito
direito, mas sobremodo retrado, incapaz de dizer uma palavra em
pblico e, muito menos, de dar alguma ordem ou instrues. Curuu, que
absolutamente no gosta de falar em circunstncia alguma, calou-se
tambm diante de seus pro-tetores. Estes falsifi caram ento uma
patente de capito, declarando haver sido, por solicitao deles,
enviada de So Paulo para Curuu, e convidando-o a ir fazenda de Jos
Soares, a fi m de ser entregue solenemente. Mas eis que o velho
revelou ter um respeito demasiado profundo de seu capito legtimo,
que recebera o posto por direito de sucesso; no aceitou a patente e
continua ainda hoje como um dos mais fi is adeptos de Avacauj.
Assim tambm esse golpe falhou.
-
328 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
Entretanto, certo que o prestgio de Avacauj sofreu bastante com
essas maquinaes. Os Guarani, que em outras circunstncias se
sujeitam cegamente a seu capito, comearam agora a criticar as
atitudes deste, e quase no havia quem no descobrisse que possua,
por sua vez, as qualidades indispensveis para o posto58; a par da
obedincia, desapareceu tambm a unidade, de sorte que a decadncia se
foi manifestando em ritmo crescente. J no se realizavam as antigas
caadas e trabalhos de lavoura coletivos, que se costumavam
empre-ender sob a chefi a do capito, e cujo produto se distribua
equitativamente entre todos, nem to pouco se faziam mais, nas
povoaes, as jornadas e compras em comum, cada qual trabalhava e
vadiava como bem entendia e, dessa maneira, quase todos fi caram
muito endividados. Quando depois a Estrada de Ferro No-roeste do
Brasil veio se aproximando do Batalha, o stio junto ao Avari se
tornou insustentvel por causa das constantes importunaes da parte
dos trabalhadores da estrada, que praticavam impunemente as mais
grosseiras arbitrariedades, tentando vrias vezes violentar mulheres
guarani. Como, alm disso, os Guarani sofressem bastante com os
brasileiros, que iam apertando cada vez mais o cerco em torno
deles, Avacauj resolveu abandonar a aldeia do Avari. Numa excurso
de reconhecimento, empreendida a cavalo ao rio Feio em maio de
1906, quase camos (Ponchi e eu) nas mos dos Coroados, verifi cando
assim que a terra dos Guarani margem do Lontra ainda no era
habitvel para ns. Outra excurso, ao rio das Cinzas, no trouxe
tampouco resultado favorvel59.
Ficou resolvida, por isso, a mudana para o Ararib, onde havia
anos, alguns Guarani tinham adquirido terras de Falco. De bom
grado, Falco per-mitiu tambm aos outros Guarani que morassem e
plantassem l, e, a pedido do capito, at confi rmou a licena por
escrito. Em virtude disso, os Guarani, em junho de 1906, venderam a
um brasileiro, pela quantia de 150$000, as suas benfeitorias no
Avari.
7 Os Guarani no Ararib desde 1906
Em 11 de junho os primeiros Guarani mudaram para o Ararib, mas
no primeiro tempo quase no chegaram a abrir roa, porque logo no
princpio sofreram muito com a maleita. Todavia, conseguiram
derrubar algum mato pelo fi m da estao, mas pouco antes de queimar
a roa foram expulsos pelo Coronel Jos Ferreira Figueiredo, que
declarou ser falso o ttulo de posse de Falco, ameaando os Guarani
de assalto pelos seus capangas e de incndio dos ranchos, caso no
abandonassem imediatamente a regio do Ararib. Os Gua-rani se
dispersaram em todos os sentidos, localizando-se em diferentes
pontos do Batalha, onde a maioria deles caiu nas mos do mencionado
Francisco P. da Costa Ribeiro, que os explorou e violentou da
maneira mais revoltante. A somente 8 famlias pude persuadir, pouco
a pouco, a voltarem ao Ararib, para
-
Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 329
queimarem e plantarem a roa. A sezo e a maleita tornaram a
colher as suas vtimas entre as crianas, males que a em maio de 1907
veio juntar-se ainda a disenteria. Assim, a aldeia do Ararib fi cou
reduzida fi nalmente a 8 homens, 10 mulheres, 10 crianas. Na outra
margem do Batalha esto espalhadas ainda 5 famlias (5 homens, 5
mulheres, 12 crianas) e abaixo do Jacutinga moram mais 5 famlias (5
homens, 5 mulheres, 7 crianas). O total dos Guarani no serto de
Bauru soma, pois, 67 indivduos (18 homens, 20 mulheres, 29
crianas)60.
Vila Leopoldina, 2 de dezembro de 1908Curt Unkel
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330 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
Mapa das regies percorridas pelos Guarani em suas migraes pelo
territrio paulista (in Curt Nimuendaj, Apontamentos sobre os
Guarani)
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 331
Desenhos representando: a. Dourado (Piraju); b. Pacu e
borboleta; c. Ema; d. Martim-pescador.
Bosquejo de objetos de culto religioso.
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332 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
II Acontecimentos Vrios
1
A aldeia da barra do Ava61 estava quase abandonada. Em companhia
das mulheres e crianas, os Guarani haviam ido a Bauru, a fi m de
trabalha-rem, numa medio de terras, para o Dr. Ismael Marinho
Falco. Na aldeia encontravam-se apenas o Caio semi bravio Uembe62
com sua famlia, e a mulher e fi lha do mdico-feiticeiro Jos Pedro,
que andavam adoentados de febre. Ademais morava alm do Batalha o
velho Ponchi (Joo Caador) com sua numerosa famlia.
Pouco antes do pr do sol apareceram de repente na aldeia dois
ne-gros, camaradas do fazendeiro Francisco Pereira da Costa
Ribeiro. Vinham armados at os dentes e um pouco tocados,
encaminhado-se diretamente ao rancho de Jos Pedro. Logo a mulher de
Jos Pedro viu os indivduos suspei-tos aproximaram-se por entre os
arbustos, ela abriu, tirando algumas varas, a parede posterior do
rancho e fugiu para o interior da fl oresta seguida dos gritos
furiosos dos negros, cujo golpe falhara. Naturalmente voltaram ento
a sua raiva contra a cabana, destruindo o mais que podiam. Jos
Pedro, na qua-lidade de mdico-feiticeiro, possua enorme cruz junto
a uma das paredes do rancho, e direita e esquerda dela, sobre
suporte de madeira duas vasilhas singulares, em forma de funil e de
barro vermelho, nas quais costumavam guardar o diadema de penas
(acanguaa), as enfi adas peitorais (jaa) e outros adornos para
danas. Os pretos derrubaram a cruz e os suportes, quebraram os
vasos e cortaram os enfeites de penas com o faco. Ademais
despejaram um saco de farinha de milho e outro de feijo, espalhando
o contedo pelo cho, e demolindo o jirau sobre o qual havia
encontrado esses sacos.
Em seguida, foram ao rancho de Uembe e, como o encontrassem
igual-mente abandonado comearam tambm a a sua ao destruidora.
Uembe vendo o que os pretos faziam no rancho de Jos Pedro, se
apres-sara em esconder no mato a mulher e os fi lhos e correra
morada de Ponchi, a fi m de pedir socorro.
Os dois ndios voltaram no momento em que os pretos estavam
ter-minando suas aes no rancho de Uembe. Quando os primeiros se
aproxi-maram, um dos pretos saiu para o terreiro, para ver quem que
vinha, mas no teve muito tempo para isso, pois o velho Ponchi o
derrubou com hbil capoeira e imediatamente Uembe se lanou sobre
ele, amarrando-o com embira. Ouvindo o barulho, o segundo tambm
quis sair, mas logo a porta se viu atacado por Ponchi, que tornou a
empurr-lo para o interior do rancho, vencendo-o aps breve luta, e
amarrando-o por sua vez. Feito isso, os ndios arrastaram os dois
presos at uma peroba cada, qual os ataram em posio
-
Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 333
recurvada e altamente incomoda. Entrementes, tambm as mulheres e
crianas haviam aparecido e quando a mulher de Uembe interrompeu em
lamentaes ao ver a destruio no interior de seu rancho, o Caio foi
tomando de tal raiva que arrancou da palha do telhado o arco e a fl
echa apontando para um dos prisioneiros. Mas Ponchi lhe segurou os
braos evitando o derramamento de sangue. Depois dessa cena, os
presos, que primeiro haviam esbravejado de modo assustador,
ameaando liquidar toda a canalha de bugres se no fossem soltos
imediatamente tomaram atitude mais mansa e aps o cair da noite, que
veio acompanhada de sensvel friagem, comearam a pedir que o
soltassem. Por tudo que lhes era sagrado juraram considerar-se
culpados e que nunca mais entrariam na aldeia; afi rmaram ter
chegado inteiramente embriagados sem saber o que faziam e assim por
diante. De madrugada Ponchi ento o soltou, mas levou logo as suas
armas a Vitor Manuel Ferreira, que morava junto Ponte do Batalha,
exercendo, nessa poca, as funes de inspetor de quarteiro.
Voltando fazenda, os dois pretos tiraram vantagem do fato de se
en-contrarem a alguns soldados de Bauru, que acabavam de voltar do
serto, onde haviam procurado algum malandro, sem contudo
encontr-lo. Para no voltarem de mos vazias foram casa de Ponchi,
prenderam-no e levaram-no Bauru, sob a acusao de ter roubado as
armas de dois brasileiros.
2
Diante do rancho de Uembe, que entre os brasileiros eram
conhecidos como Manuel Bobo por causa de seus estpidos modos
bravios, apresentou-se Francisco da Costa Ribeiro, vulgo Chico
Mestre63, entregando uma poro de presentes, como j o fi zera vrias
vezes. Era porque Uembe tinha uma fi lha, Maria Tacoapan, de uns
treze anos de idade. Depois que tivera oportunida-de de ver bem
essa menina, Chico Mestre foi tomado de singular afeio por Manuel
Bobo, de que se fazia tanta troa, e esforou-se por familiariz-lo
com os mais indispensveis elementos fundamentais de nossa
civilizao. A esse Caio semi bravio, que acabava de chegar do Mato
Grosso e que no era capaz de contar at 5 sem olhar para seus dedos,
fazia presente de uma poro de bugigangas inteis, e no se esquecia
naturalmente de Tacoapan. Ao pai dava s vezes cachaa em maior
quantidade do que este podia suportar. En-tre outras coisas
presenteou-o tambm com uma espingarda de caa. Apesar de tudo isso,
Uembe se mostrava bastante insensvel e a questo comeou a tomar
outro rumo somente depois de Chico Mestre conseguir que o Caio
fosse morar com ele na fazenda.
Foi a que durante um mutiro Chico Mestre procurou apoderar-se da
menina, mas esta gritou, o Capito Avacauj interveio e, embora Chico
Mestre,
-
334 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
armado de garrucha, o fi zesse recuar, a tentativa tinha falhado
por essa vez. E Uembe induzido pelos outros ndios declarou que no
entregaria a fi lha a Chico Mestre e tornou a mudar-se para a
aldeia.
Chico Mestre ps-se a procurar outros caminhos para alcanar seu
objetivo. Como casado e pai de trs ou quatro fi lhos mandou a
famlia toda casa dos sogros na proximidade de So Paulo dos Agudos e
declarou aos ndios que se tinha divorciado com o fi m de casar com
a fi lha de Uembe. Como isso tambm no desse resultado, tornou-se
rabugento, declarando que poria na conta de Uembe todos os
presentes que lhes fi zera no decorrer do tempo e que cobraria a
dvida sem a menor considerao. Uembe ento se transferiu novamente
para a fazenda64 e Chico Mestre tomou Tacoapan para sua
companheira.
Mas no tinha ainda passado uma semana quando Tacoapan fugiu da
fazenda em estado lamentvel, aparecendo certa noite, em companhia
das pessoas da famlia e de algumas velhas mulheres guarani, no
rancho de Ponchi onde por acaso eu me encontrava sozinho. No sei
quem, maldosa-mente, tinha aconselhado os ndios a irem Bauru para
dar queixa; o certo que, na madrugada seguinte, apesar dos meus
insistentes conselhos em contrrio, se puseram a caminho com
Tacoapan a fi m de contarem a histria ao delegado de Bauru.
Quando, porm, afi nal chegaram cidade, Chico Mestre, tambm j se
encontrava a e provou, com duas testemunhas, que havia mais de um
ano que Tacoapan se prostitura. Com o ar puro de anjo celeste Chico
Mestre saiu da audincia e no havia naturalmente quem deixasse de
falar mal dos srdidos bugres que no tm vergonha sequer de vender os
prprios fi lhos.
Alis, Chico Mestre, depois de assim demostrar aos Guarani que
lu-tariam em vo pelo direito, que se decidira estar ao lado dele,
tomou para com aqueles uma atitude de extraordinria generosidade.
Deu ordens para que o jovem Guarani Jesuno Galdino Eij, sobrinho do
capito, que tambm trabalhava na fazenda, casasse Tacoapan. O prprio
Chico Mestre foi uma das testemunhas, quando Eij e Tacoapan se
casaram no civil em Bauru. No somente pagou as despesas da
formalidade, mas, para festejar o acon-tecimento, comprou tambm,
carne, cachaa e foguetes. Eij no viveu um dia sequer em companhia
da mulher que lhe fora imposta e faleceu no ano seguinte.
Atualmente Tacoapan de fato prostituta, recebendo ainda, de vez em
quando, a visita de Chico Mestre.
Uembe caiu inteiramente no desfavor de Chico Mestre. Quando
deixei a aldeia, h ano e meio65, ele no somente no tinha nada em
seu miservel rancho, mais ainda devia a Chico Mestre 400$000,
depois de ter trabalhado na roa deste pelo espao de trs meses.
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 335
3
Na noite de 14 a 15 de Julho de 1906 toda a horda dos Guarani do
Batalha estava reunida junto ao rancho de Ponchi, de fronte da
barra do Avari. verdade que nessa poca o capito Avacauj j se havia
transferido com sua gente para o Ararib, e somente Ponchi
permanecera nas imediaes do antigo stio. Naquele dia, porm, todos
se reuniram mais uma vez na velha aldeia. que o fi lho de Avacauj,
nascido havia uns 15 dias, ia ser batizado66.
A noite era luarenta e fria. Em toda parte, no terreiro e na
beira da mata, reluziam as pequenas fogueiras dos Guarani e em
torno estavam deitados os vultos dos ndios envoltos em cobertas e
roupas; no se ouvia o menor rudo e somente de vez em quando surgia
no raio luminoso da fogueira um rosto amarelado, soprando de olhos
fechados na brasa, para avivar o fogo. Junto com Guyrapej67, rapaz
de quinze anos de idade e fi lho mais velho do capito, eu estava
deitado ao lado da fogueira, sob o poncho, sentindo frio. Ponchi e
sua mulher, bem como o capito e a mulher e o fi lho mais novo,
estavam no rancho.
Por volta da meia-noite o mdico-feiticeiro Jos Pedro68 ergueu-se
ao lado de sua fogueira no terreiro, sentou-se em posio adequada e
comeou a cantar com fervor, e precipitadamente acompanhado pelo
canto e pelos golpes de taku da mulher e da fi lha. Depois de algum
tempo, ps-se em p, indo ter com Avacauj no interior do rancho, onde
nesse nterim se acendera luminosa fogueira. Com ele entraram a
mulher e fi lha e a estas seguiram-se aos poucos quase todas as
mulheres e moas crescidas, mas nenhum homem e nenhuma criana. No
rancho recomeou o canto em coro, prologando-se por cerca de trs
horas. As melodias se tornavam cada vez mais singulares e montonas,
os vrios cantos iam fi cando cada vez mais curtos e repetiam-se
mais depressa. Jos Pedro e seus acompanhantes no cantavam nenhuma
das melodias empregadas com tanta frequncia em outras
oportunidades; todas pareciam ser especfi cas para o caso. Um dos
cantos se distinguia por ser inter-rompido vrias vezes por curta
gargalhada a modo de arrulho e a meia-voz.
De repente, ouvi algum chamar a Guyrapej e a mim. Levantamo-nos
depressa, entramos no rancho e colocamo-nos ao lado da entrada,
espera do que iria acontecer.
No centro do rancho, Jos Pedro estava sentado no cho e diante
dele Ponchi e a mulher deste. Ela segurava no brao o pequeno, que
dormia tranqui-lo, ao passo que ele tinha uma cuia com gua, na qual
havia entrecasca de cedro. No bordo externo da cuia estava colada,
de um e de outro lado, uma velinha de cera de abelha. Mulheres e
moas estavam sentadas juntas as paredes, seguran-do os taku. De um
dos lados do mdico-feiticeiro estava acocorada a me da criana, o
rosto meio virado para o lado, e chorando amargamente, e do
outro
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336 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
estava a sua mulher e fi lha. Avacauj semivestido, jazia na
rede, a um canto do rancho, perto de uma fogueira quase apagada, e
no se incomodava com nada. Durante os cantos, que no se
interrompiam, Jos Pedro se comportava de modo extremamente
singular. Inclinava-se para frente, abaixava a cabea e com ambas as
mos esfregava apressadamente o peito nu; a seguir, erguia o tronco
e com as mos faziam movimentos como se quisesse tirar alguma coisa
de suas costas e pass-la por sobre a cabea, mais ou menos como que
despindo a camisa. Depois disso levantava as mos bem alto em cima
da cabea, sacudindo-as uma contra a outra, e passando-as em seguida
pelo ar por sobre a criana, maneira de um hipnotizador. Da algum
tempo parecia recolher cuidadosamente com ambas as mos qualquer
coisa invisvel que encontrasse sobre a cuia, para depois estend-la
sobre a criana. Por fi m molhou com a gua da cuia as palmas das mos
e com as pontas dos dedos umedeceu o vrtice da cabea e o peito da
criana. Depois disso, Ponchi se levantou, indo ao canto colocar a
cuia numa forquilha de trs pontas envolta de traado de guaimb; a
esposa entregou a criana me e ambos ento se retiraram do centro do
rancho. A esta altura, Jos Pedro se levantou tambm, pondo-se em p
diante da cuia colocada na forquilha. Em posio pouco inclinada
bateu no cho alguns compassos com o p, depois endireitou o corpo,
levantou os braos sobre a cabea e deu alguns pulos, mais ou menos
como se estivesse danando czardas69 e a seguir afastou-se por sua
vez, para o lado. O canto e a msica de taku foram interrompidos e
houve uma pausa. E em tudo o que se passara eu no tinha percebido o
momento em que o mdico-feiticeiro, depois de muitos esforos,
descobre afi nal o nome da criana, cochichando-o ao ouvido dos
padrinhos. Segundo a opinio dos Guarani, o novo nome de um ser
humano deve ser descoberto pelo mdico-feiticeiro por meio de
inspirao, no podendo nunca ser objeto de escolha. Acham
simplesmente ridculo que o padre na igreja indague, antes do
batismo, qual o nome que dever por na criana. Ora, se nem isto ele
sabe!
Pela porta do rancho, olhei para Cruzeiro do Sul e vi que dentro
em pouco comearia a clarear o dia. Fazia um frio de rachar.
Avacauj levantou-se da rede e mandou pr junto parede um
ban-quinho baixo que mal tinha 5 cm de altura. Em seguida, trocou
em voz baixa algumas palavras com Ponchi, que depressa se aproximou
de mim e apon-tando para o banquinho me disse em guarani: Vem
sentar-te aqui. Tirei o poncho e obedeci. Ponchi tornou a tirar a
cuia da forquilha e com ela se ps minha direita, enquanto a mulher
dele fi cou a meu lado esquerdo. Aps pequena pausa, Avacauj se
colocou diante de mim, principiando a cantar, acompanhado de
mulheres e moas. A cena decorreu de modo anlogo a an-terior, com a
diferena de que as melodias de Avacauj no eram como as de Jos Pedro
e os seus gestos menos nervosos. Mas nem por isso deixou de
des-pender grandes esforos, como se via nitidamente pela expresso
angustiada, atormentada e excitada de seus olhos estreitos.
Finalmente ps a mo na cuia
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 337
e Ponchi cochichou ao meu ouvido: Levanta-te. Obedeci e Avacauj
me humedeceu o vrtice da cabea e o peito como antes se fi zera
criana. Aps isto, caminhamos vagarosamente em crculo no interior do
rancho, um atrs do outro, na frente Avacauj , atrs dele Ponchi com
a cuia, em seguida eu e por fi m a mulher de Ponchi, que de atrs me
segurava pelo pulso. Voltando ao nosso lugar, retomamos as posies
anteriores e a mesma cena se repetiu mais uma vez. Mas depois da
caminhada em crculo interrompeu-se o canto, Avacauj chegou-se bem
perto de mim, aproximou o rosto ao meu e tomando de xtase, disse em
guarani e com voz excitada: Teu pai est falando. Este (apontando
para Ponchi e a mulher dele) teu padrinho esta tua ultima madrinha.
Teu nome Nimuendaja Nimuendaj como te chama a nossa gente.
Nimuendaj!, repetiu com voz forte, dando um passo para trs e
estendendo as duas mos sobre a minha cabea, como que abenoando-me.
Ponchi, que tornara a pr a cuia na forquilha, me apertou sobre o
ombro, para que eu me sentasse no banquinho, enquanto o canto
recomeou. Afi nal Avacauj deixou cair as mos, a melodia emudeceu e
a cerimnia estava terminada70.
III O mdico-feiticeiro
Do ponto de vista do canto medicinal, os indivduos adultos de
uma aldeia se dividem em dois grupos: os dos que cantam, a grande
maioria, e o dos que no cantam. Estes ltimos se abstm de to
importante prtica, no porque acaso lhes falte voz ou ouvido
musical, mais simplesmente por carecerem de inspirao. Muitos j tm
essas inspiraes desde a juventude, outros recebem-nas muito tarde e
de modo inteiramente inesperado.
Em nosso bando havia um velho mestio Caio, Curuu, casado com uma
mestia de Guaian de uns 35 anos de idade. Creio que essa mulher, de
nome Tacoarembypy, era em todo o grupo a nica que no cantava. Certa
noite, ela teve um sonho comprido: apareceu-lhe a viso do falecido
pai, que lhe mostrou lindas e curiosas fl ores do Alm, dando-lhe
uma srie de bons conselhos, e recomendando-lhe, para casos de
necessidade, uma pequena estrofe, muitas vezes repetida, que lhe
ensinou. Tacoarembypy acordou, narrou imediatamente o sonho ao
marido e velha me e naquela mesma noite comeou a cantar.
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338 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
Em sua interminvel repetio, essa melodia era idntica aos
cacarejos de uma galinha que acaba de pr um ovo.
Ainda na mesma noite alguns se digiram ao rancho de Curuu, e
pela manh j estava reunida a toda a aldeia, ouvindo a narrao do
sonho e es-cutando o canto. Tacoarembypy se mostrava incansvel.
Passou a maior parte do dia sentada junto parede e cantando. noite,
Curuu veio ter conosco, convidando-nos a pernoitar em seu rancho,
para que ouvssemos melhor o canto da esposa. Sem dvida, sentia-se
feliz com a transformao que to su-bitamente se passara em sua
mulher. Infelizmente eu no pude acompanhar os outros, porque nessa
noite estava com um acesso de febre. Na madrugada seguinte fui a
cavalo ao Jacutinga e, passando pelo rancho de Curuu, apeei para
entrar um momento. Tacoarembypy estava ainda sentada junto parede.
A cabea inclinada para o lado, os olhos fechados e os braos cados,
cantava com voz singular e insegura a sua estrofe! Como fi quei
ausente durante dois dias, no posso dizer ao certo por quanto tempo
continuou sentada a.
H Guarani que cantam uma nica melodia, outros cantam vrias.
Nunca, porm, ouvi algum cantar outra coisa seno as suas prprias
ins-piraes. As melodias assemelham-se de modo caracterstico, a um
sinal de sereia, principiando uma nota alta, percorrendo a escala
com alguns saltos e repeties, e descansando depois demoradamente
sobre uma ou duas notas baixas. Quero mencionar que os Guarani
diante dos quais cantei a melodia de uma dana de lobo dos Blackfeet
de Montana71, imediatamente a reconhe-ceram como nianderu
porai72.
Motivos para se cantar so os seguintes acontecimentos: partida
para a viagem ou outra empresa de importncia, maus pressgios, maus
sonhos, doenas, nascimento, batismo, festa de nimongarai, bito.
Nestes casos canta, de ordinrio, o prprio Guarani a que se liga
o acon-tecimento; todavia o batismo e a direo da festa nimongarai
so atribuies ex-clusivas de certos indivduos, que no so os
mdico-feiticeiros propriamente ditos. Em nosso bando havia dois
deles. Geralmente eram chamados tambm em casos de doena grave, bito
ou nascimento, e em tempos antigos uma vez ou outra at por
brasileiros. Somente estes mdico-feiticeiros propriamente ditos
usam o mbarac para acompanhar o seu canto, enquanto a mulher,
sen-tada no cho, canta o soprano, marcando o compasso com pancadas
de taku.
Quando Avacauj era chamado para atender a um doente, saia de
casa meia-noite em companhia da mulher. (Os cantos se fazem ouvir
sem-pre entre a meia-noite e a madrugada). Chegando ao rancho em
que jazia o doente, Avacauj pedia gua para lavar as mos, e de
ordinrio, mandava tambm apagar o fogo e tirar a camisa do enfermo.
A mulher, com o taku, sentava-se em qualquer canto, ao passo que
ele prprio, munido de mbarac, se colocava diante do paciente,
principiando a cantar. De incio, fazia ouvir
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 339
algumas notas estiradas, murmuradas com fraca voz, e depois de
pequena pausa, ia continuando at, aos poucos, entrar em uma de suas
melodias; ento acompanhava o canto com o mbarac, encolhia o pescoo,
dobrava um pouco o joelho ao compasso, ou ia batendo no cho com um
dos ps, enquanto a mulher se punha a acompanhar o canto na
terceira73 e a marcar o compasso no cho com o taku. Sem interrupo,
continuavam a mesma melodia por uns quinze minutos, pelo menos; a
esta altura, paravam um pouco para, a seguir, iniciarem outra.
Depois de se prolongarem esses cantos por cerca de hora e meia ou
duas horas, o mdico-feiticeiro comeava a fi car ipochy74 (bravo),
como dizem os Guarani, isto , entrava em xtase. Gritava cada vez
mais alto e com crescente excitao, enquanto as pateadas se
transformavam em verdadeiros pulos; furiosamente, no compasso do
canto, avanava com o mbarac em direo ao enfermo, enquanto o seu
rosto tomava sempre pe-culiar expresso de medo e de sofrimento.
Via-se bem o esforo que fazia. De repente pendurava o mbarac na
parede e interrompia o canto, ao passo que a mulher o continuava e
ele prprio tirava simplesmente a molstia do doente. A enfermidade
deve ser qualquer coisa como um invlucro muito fi no, que rasga
facilmente e que o mdico-feiticeiro, comeando na cabea, ia
recolhendo aos poucos e muito cuidadosamente, pondo-o de lado, sem
tocar no corpo do enfermo. Em seguida, passava algumas vezes sobre
ele com as mos, como que para tirar o ltimo vestgio, batia palmas,
aspirava-o hlito na concha formada pelas mos e despejava-o
cuidadosamente sobre todo o corpo do doente. Executava todas essas
manipulaes como se de fato tivesse substancia palpveis na mo.
Aps isso, recomeava o canto, tornava a fi car ipochy e a
historia toda se repetia mais uma ou duas vezes. Ao raiar do dia,
ou poucos antes, a cerimnia chegava ao fi m.
claro que no se deve, por ventura, encarar o processo como orao
em benefcio do paciente, que o mdico-feiticeiro dirija a um ente
divino. Todo ser vivo, e creio mesmo que tambm todo ser inanimado,
tem sua fora mgica, e o problema apenas o de desprender essa fora
e, eventualmente, de intensifi c-la, a fi m de faz-la agir
diretamente sobre outras. O meio empre-gado o canto medicinal e se
o cantor est ipochy que sua fora mgica se tornou livre, podendo
agir sobre o doente. Essa explicao parece encontrar apoio tambm em
outro fato: depois de entrar em xtase, o mdico-feiticeiro, que a
princpio canta sem articular palavras, deixa escapar s vezes uma ou
outra palavra como que murmurada. Nos poucos casos em que eu
conseguia entender uma dessas palavras, era sempre ou um nome de
pessoa ou o nome de um lugar sem a menor relao com o caso em apreo.
Evidentemente, o mdico-feiticeiro se lembrava, durante o canto, de
seus feitos anteriores, in-tensifi cado com essa recordao a sua
fora mgica.
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340 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
Uma vez ou outra, nos intervalos entre os cantos, o
mdico-feiticeiro murmurava tambm algumas mais compridas, enquanto
inspirava o ar mo-do caracterstico em lugar de expir-lo, razo pela
qual no foi possvel em nenhum destes casos, entender uma palavra
sequer. No obstante, eu cumpria meu dever, respondendo em coro
juntamente com os outros, que estavam sentados em torno, Taingnme!,
o que signifi ca certamente ou amm.
No batismo e no nimongarai o mdico-feiticeiro usa um diadema de
plumas, tendo no centro um topete vermelho de pica-pau e sobre a
testa as penas caudais da tesoura. Nessas ocasies acompanham-no
todas as canto-ras, batendo os takus. Levam geralmente no rosto,
como o prprio mdico-feiticeiro, uma pintura vermelha e no peito
enfi ada de semente de mau (yva ), o colar (joaa), com borlas de
penas de tucano.
IV Mitologia e crenas religiosas75
1 Nianderequey76 e Chyvyi
Naquele tempo o mundo era como ainda hoje o cu; bastava algum
plantar hoje, para amanh colher milho verde.
Era uma mulher que tinha trs homens e que fazia os servios
doms-ticos para os trs. Depois de algum tempo, dois dos homens
foram embora e no voltaram mais. E a mulher ento fi cou vivendo com
um s; este era Nianderu77. A ela fi cou grvida de gmeos.
Certa vez, Nianderu voltou da roa para casa e disse: Ontem
plantei milho, v buscar algumas espigas verdes para mim. A mulher
replicou: Como que posso buscar milho verde hoje, se foi plantado
ontem somente? A Nianderu saiu do rancho e no voltou mais; e,
chegando a uma encruzi-lhada, fechou atrs de si o caminho por onde
viera, fi cando no cho algumas penas de arara.
Afi nal, porm, a mulher se dirigiu roa, e vendo que de fato j
havia milho verde, foi procura de Nianderu. Chegando encruzilhada,
bateu com a mo no ventre e perguntou: Meu fi lho, qual o caminho
que seu pai seguiu? Foi por ali, respondeu o fi lho. A a mulher
tomou o caminho indicado. De repente a criana falou: Me, apanhe
para mim a fl or bonita que esta a a beira do caminho! E a mulher
obedeceu. Da a pouco, a criana, tornou a falar: Me, apanhe para mim
a fl or bonita que esta ali a beira do caminho!. A mulher obedeceu,
mas em cima da fl or havia uma vespa, que deu uma ferroada na mo da
mulher. A ela fi cou com raiva e falou: Meu fi lho como que voc
quer essas fl ores, se nem mesmo nasceu ainda? A a mulher chegou
outra encruzilhada e tornou a bater no ventre, perguntando: Meu
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 341
fi lho, em que direo que foi o seu pai? Por ali, respondeu a
criana. A mulher tomou esse rumo, mas era o caminho errado, que ia
dar diretamente no lugar em que estava Jagu. Jagu assaltou-a,
despedaou-a e comeu-lhe a carne, mas levou para casa os gmeos, a fi
m de prepar-los de modo especial. Em casa, primeiro quis ass-los,
mas toda vs que lhe queria enfi ar o espeto no nus, a ponta se
quebrava. Ento Jagu resolveu cozinh-los e aqueceu gua, mas esta
logo esfriou que nela jogou os gmeos. Em seguida, tentou amass-los
no pilo para transform-los em paoca, mas escapavam para o lado toda
vez que descia a mo de pilo. A, fi nalmente, Jagu desistiu de seu
intento e resolveu cri-los. Deitou-os numa cuia, que ps do lado do
fogo, e chamou o gamb Mbycu, para amamentar os gmeos. Como que eu
poderia fazer isso, disse o Mbycu, se eu tenho uma catinga to
forte? Afi nal, porm, foi ao rio lavou as tetas e em seguida
amamentou os gmeos. Em recompensa, estes lhes conferiram mais tarde
a faculdade de parir os fi lhotes sem sofrer dor alguma, ao
contrrio dos outros animais, que tem que padecer com isso.
Nianderequey cedo se tornou grande e esperto, mas Chyvyi fi cou
pe-queno e no parava de chorar e de reclamar pela me. Jagu
deixou-os ento brincar no terreiro, mas amarrou-os ao poste de sua
casa por meio de um longo barbante preso aos ps deles. Mais tarde,
fez arcos e fl echas para eles, e mandou que fossem caar
passarinhos. Disse-lhes, porm: Vocs no devem ir nunca por esse
caminho ali; vocs devem caar nesse e naquele ponto. Os gmeos
obedeceram e de cada vez trouxeram ona uma poro de passarinhos.
Uma vez, porm, tomaram o caminho proibido e logo no princpio
vi-ram um jacu. Nianderequey aproximou-se de mansinho e atirou uma
fl echa que atingiu o jacu no pescoo. Caiu no cho e disse a
Nianderequey. Va ao papagaio; ele lhe contar uma histria. No disse
mais nada, pois o jacu no pode falar muito, a sua voz como a de
gente papuda. Nianderequey curou a ferida da goela do jacu, mas a
mancha nua e vermelha perdura ainda hoje. Depois seguiu adiante e
de fato no tardou a avistar o papagaio, que pousava no galho. Esse
comeou a falar logo, pois um grande falador, mesmo hoje em dia: Por
que voc mata a ns aves, para levar-nos a Jagu como comida? Jagu
comeu a me de vocs; os ossos dela encontram-se ainda neste caminho,
e foi por isso que ele os proibiu de vir aqui. A os gmeos foram
adiante, e chegando ao lugar em que estavam espalhados os ossos da
me, sentaram-se e desataram a chorar.
A Nianderequey recolheu os ossos, juntou-os e formou o corpo de
terra. E quase o teria conseguido, se Chyvyi no tivesse fi cado
impaciente, lanando-se sobre ele para mamar, e destruindo assim
todo o trabalho.
Segundo outro relato, Nianderequey completou a sua obra, fazendo
a me voltar vida, mas a impacincia do irmo o impediu de terminar um
dos seios, razo pela qual ainda hoje so desiguais os seios das
mulheres.
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342 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
A os irmos foram a um lugar em que havia muitas pitangas
maduras. Sobre a gua Nianderequey ps uma pinguela, colocando-a de
tal modo que da margem podia ser virada com facilidade. Enquanto
isso Chyvyi estava sen-tado na margem, jogando na gua folhas secas
e pequenos galhos. As folhas se transformavam em peixes de toda
espcie e os galhinhos em jacars e sucuris.
Quando chegaram casa trouxeram frutos para Jagu e disseram que
no mato havia muitos ainda. A Jagu resolveu ir l no dia seguinte e
convidou tambm todos os parentes a comparecerem no lugar indicado.
Os gmeos, porm, estavam escondidos junto pinguela e, quando chegou
a primeira ona, Nianderequey, esperou at que ela estivesse no meio
da pinguela; em seguida, gritou para Chyvyi: Vire! Chyvyi virou a
pinguela, Jagu caiu na gua e foi devorado pelos animais aquticos. O
mesmo aconteceu com todas as outras onas que apareceram. Em ltimo
lugar, chegou a jaguatirica, que ainda pode observar como a
predecessora foi derrubada na gua. A fi cou desconfi ada,
preferindo no pisar na pinguela. A jaguatirica estava grvida de
dois fi lhotes; uma pintada e uma parda, e dessas trs descendem
todas as onas que ainda vivem hoje em dia.
Do captulo seguinte no estou bem lembrado. Trata de um homem
ve-lho e muito grande, a custa do qual os gmeos se divertem
terrivelmente com auxlio de quatis criados por Nianderequey para
este fi m. H duas narrativas que explicam como que os gmeos matam
afi nal o velho gigante:
Os gmeos, depois de pintarem o rosto com urucu, foram ter com o
gigante. Este os achou to bonitos que ele se deixou persuadir pelos
irmos a submeter-se a uma operao com o fi m de obter o mesmo
adorno: os gmeos lhe tiraram a pele dos respectivos lugares do
rosto, esfregando um p ardido nas feridas, de sorte que o gigante
faleceu em consequncia das dores.
Segundo a outra verso, o gigante costumava lavar diariamente os
rgos sexuais numa lagoa. Nianderequey espalhou um p ardido na gua e
o gigante morreu com dores horrveis depois de ter feito a lavagem
habitual.
O gigante tinha duas fi lhas, de cabeleira vigorosa e comprida,
que os gmeos tomaram como mulheres. Nianderequey realizou a defl
orao com auxlio de um pnis talhado de madeira. Chyvyi, que no teve
a mesma cau-tela, fi cou doente, e por isso que ainda hoje h doenas
venreas. Depois os gmeos puseram fogo cabeleira comprida das duas e
queimaram-nas.
s vezes narravam-se ainda outros episdios, dos quais no estou
lembrado. Quando me contaram pela primeira vez a histria de Niara,
o fi nal era o seguinte. Depois eles foram subir. E aquele um tomou
contas do cu em cima e o outro do cu em baixo. Mais tarde ouvi
frequentemente a seguida verso:
Os irmos resolveram ir em procura do pai. Andaram, andaram, at
chegarem ao primeiro cu, onde mora Nianderu. Aqui vamos fi car
disse
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 343
Chyvyi, mas Nianderequey replicou: Este talvez no seja o nosso
pai. Seguiram, pois o seu caminho, chegando a Cheruvuu, no segundo
cu. A fi cou Chyvyi, mas Nianderequey foi adiante e como nunca
voltou, deve estar certamente no terceiro cu. O nome do senhor do
terceiro cu , porm, qua-se desconhecido entre os Guarani. Ouvi
pronunci-lo uma nica vez e no consigo lembrar dele
(Cherumbacui?)78.
2 As manchas da lua
No princpio havia uma poro de moos e moas, que, entretanto,
viviam separados e no se conheciam. E quando se resolveu que
dormiriam juntos pela primeira vez, fi caram com medo. Depois de
anoitecer, quando estava bem escuro, as meninas se deitaram no
rancho, uma depois da outra, enquanto os homens fi caram fora,
junto fogueira, cantando e batendo o p, para criarem coragem. Em
seguida, entraram e no escuro cada um tomou uma companheira sem
reconhec-la.
Um dos homens, porm, tinha a curiosidade de saber quem era a sua
companheira. Vrias vezes lhe falou em voz baixa, perguntando pelo
nome, mas ela no respondeu. A ele lambeu os prprios dedos,
esfregou-os no cho e passou-os no rosto da menina.
Muito antes de clarear o dia os homens se levantaram, voltaram
para junto da fogueira e falaram sobre as meninas, mas nenhum sabia
com qual delas havia tido relaes. Somente aquele afi rmava que
reconheceria a mulher dele, de vez que lhe marcara o rosto com
terra mida. Depois de amanhecer, todos viram que ele tinha marcado
a prpria irm.
Irmo e irm, Nianderu e Jacy andam pelo cu, mas Nianderu
desapa-rece quando no lado oposto assoma o rosto manchado da
irm79.
3 Niandejry80
Niandejry era um grande feiticeiro. Os Judeus, porm, queriam
mat-lo. Amarraram-no a um poste e fi zeram tentativas de todo
jeito. Niandejry no morria, porque era um feiticeiro poderoso. Sua
me Niandecy, estava ao lado e chorava.
A os Judeus trouxeram outro homem, que era cego. Deram-lhe uma
lan-a na mo, dirigiam-na contra Niandejry e quando a gua espirrou,
algumas gotas caram sobre os olhos do cego, que assim recuperou
imediatamente a vista, enquanto Niandejry morreu. Mas depois de
perceber a quem matara, o homem curado se enforcou.
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344 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
A histria no esta bem completa. O narrador acrescentou a
seguinte observao: Esta histria propriamente no nossa, mas tambm
muito velha e nos sabemos que verdadeira.
A lenda provm, evidentemente, da poca do domnio dos jesutas
paraguaios sobre os antepassados dos nossos Guarani.
Niandejry signifi ca nosso senhor, Niandecy nossa me81.
4 Crenas sobre a imortalidade
Aps a morte, a parte boa da alma separa-se da parte ruim. A
parte ruim fi ca na proximidade da habitao do defunto, incomodando
s vezes de noite os sobreviventes com sua voz e apario.
No Ararib, uma faixa de mata virgem que se conservara entre a
roa de Avacauj e a de Curuu era tida como logradouro dos Angury,
depois de ter dado, com rpidos intervalos, a morte de vrias crianas
vitimadas pela febre. Avacauj, o grande chefe e mdico-feiticeiro,
naturalmente forjou logo o plano de mudar para outra regio, mais
afi nal prevaleceu a proposta de Poyj, mais sensato que aconselhara
derrubar simplesmente o mato e fazer uma roa em seu lugar.
Andando-se de noite pela fl oresta, diz Avacauj, e ouvindo-se a
beira do caminho sussurros e os gemidos do Angury, prefervel
voltar. Pois seguindo-se para frente o Angury aparece deitado no
caminho com a forma de cadver ou visto na forma de um cachorro
preto ou coisa semelhante. Quem o avista, ou morre imediatamente, a
mesmo, ou ento caso saiba de uma forma mgica poderosa, conseguir
passar, mas no tardar a ser lavado pela morte.
Avacauj se vangloriava: Os outros tem medo do Angury; eu apenas
tenho d dele. Quer tornar a viver entre os parentes e, no entanto,
no pode. Era ele, precisamente, que sentia mais medo.
Certa vez estvamos numa caada ele, a mulher dele, o fi lho e eu
e acampados longe de qualquer stio adaptado, junto ao ribeiro das
Antas. De repente ouviu-se no silncio da noite uma voz estridente e
prolongada, muito semelhante maneira pela qual os brasileiros
costumam dar sinais a grandes distncias. Todos naturalmente se
assustaram e puseram-se a escutar cheios de curiosidades. O grito
se repetiu mais uma vez e, em seguida, no se ouviu mais nada. Era
curioso que, embora o autor dos gritos me parecesse estar a menos
de um km de distncia, cada um de ns, Avacauj , a mulher dele e eu,
indicava uma direo diferente de onde a voz teria vindo, enquanto o
rapaz, que, alis, era tambm o mais sonolento, no tinha ouvido coisa
alguma. Foi o sufi ciente para que Avacauj dissesse tratar-se de um
Angury, declarao
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Tellus, ano 13, n. 24, jan./jun. 2013 345
que foi apoiada vivamente pela mulher e pelo fi lho. Ele
sentou-se logo em posio adequada juntamente com a mulher e ambos fi
caram cantando a noite toda. Ainda antes que comeasse a clarear o
dia, reunimos os nossos objetos, deixando o mais depressa possvel,
o soturno lugar.
O que havia de bom na alma do defunto vai para o feliz Alm. A
tudo continua como nos tempos de Nianderequey, em que se plantava
hoje e ama-nh j se comia milho verde.
***
Certa vez, um jovem Guarani viajou para o Rio, onde foi muito
bem recebido, pediu que o aceitassem como o marinheiro. Acederam a
seu desejo e mais tarde lhe foi confi ado o comando de um grande
navio.
Quando iniciou a primeira viagem com o navio, havia neste uma
por-o de italianos. Saiu para o mar, passando da gua azul para
vermelha, e da vermelha para a preta. A o mar devorou o navio, o
Guarani e toda a ita-lianada. Mas no outro lado todos saram sos e
salvos. A avistaram uma ilha e navegaram em direo dela, mais a ilha
ia recuando diante do navio e no podia ser alcanada. Por fi m o
Guarani se lembrou da cano mgica de sua tribo e depois de cantar
por algum tempo, a ilha de fato fi cou parada, e o navio se pde
aproximar. O Guarani desembarcou, mas logo que alguns dos outros
lhe quisesse seguir a ilha tornava a recuar. A mandou os homens
esperarem at que ele voltasse, e dirigiu-se para o interior da
ilha, onde havia uma fl oresta de rvores frutferas, umas com fl
ores e outras com frutos de todas as espcies. Ouvia-se o chilreio
dos passarinhos e do recesso da mata vinham as canes do Guarani,
simultaneamente com as pateadas dos danadores e os sons dos taku. A
o Guarani entrou na fl oresta e no voltou nunca mais.
Por muito tempo, os homens do navio fi caram esperando em vo
pela volta dele. Como ele, no entanto, no aparecesse, e a ilha
recuasse a cada tentativa de desembarque, resolveram ir-se
embora.
O Guarani, porm, leva agora uma vida boa. Est outra vez no meio
de sua gente, e no lhe falta nada, nem precisar morrer82.
***
A pessoa que morre com algum desejo muito vivo e no satisfeito
pode renascer83 por intermdio de uma mulher de seu parentesco.
Quando no ano de 1900, Avajoguera, o cunhado de Avacauj,
empre-endeu a viajem para o rio Feio em companhia do Pe. Claro
Monteiro, deixou grvida na aldeia a sua jovem mulher. Por isso ele
talvez desejasse com mais
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346 Curt NIMUENDAJU. Apontamentos sobre os Guarani
intensidade do que qualquer outro o xito da expedio. Quando os
Coro-ados assaltaram a canoa do Padre, Avajoguera recebeu uma fl
echada no ombro e outro na regio ilaca. A ponta da segunda fl echa
lhe foi tirada por um companheiro de tribo, Rap que lhe arrancou
com os dentes. Depois foi abandonado, a seu prprio pedido, por seus
camaradas fugitivos, e nunca mais se teve noticias dele.
Quando, em julho de 1906, Avacauj levou a Ponchi seu fi lho
recm-nascido Avaroquyj, para faz-lo batizar a na presena de toda a
tribo, Rap notou casualmente pequenas manchas escuras no ombro e na
coxa do pequeno, exatamente no lugar em que Avajoguera fora
atingido pelas fl echadas. Saiu precipitadamente do rancho e correu
para a roa, onde fi cou sentado por longo tempo, primeiro chorando
e soluando amargamente, e, depois, cantando. Todos os Guarani
olharam os sinais e, partir desse momento, fi caram com fi rme
convico de que Avaroquyj Avajoguera renascido.
Quando, mais tarde se cogitou de dar tambm um nome brasileiro ao
menino, o pai me disse: Primeiro quis por-lhe o nome de Incio (como
se chamara Avajoguera), mais no tive coragem.
O renascimento pode dar-se tambm pelo caso de ser muito intenso
o luto dos parentes. Assim, Avacauj julgava reconhecer o seu pai
Araguyra, igualmente morto junto com o Pe. Claro, na pessoa de seu
prprio fi lho, que nasceu aps a morte de Araguyra, mas que faleceu
depois de pouco tempo, vitimado pela febre.
Por sua vez, Ponchi que, segundo todos me contaram, fi cara
intei-ramente inconsolvel com a morte do pai, julgava rev-lo na
pessoa de seu segundo fi lho,