MARIA JOS FERREIRA RUIZ
A AO COMUNICATIVA NA PRXIS PEDAGGICA: UM ESTUDO A PARTIR DE HABERMAS
Londrina
2006
2006
MARIA JOS FERREIRA RUIZ
A AO COMUNICATIVA NA PRXIS PEDAGGICA: UM ESTUDO A PARTIR DE HABERMAS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Educao da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientador: Prof. Dr. Loureno Zancanaro
Londrina 2006
MARIA JOS FERREIRA RUIZ
A AO COMUNICATIVA NA PRXIS PEDAGGICA: UM ESTUDO A PARTIR DE HABERMAS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Educao da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao.
BANCA EXAMINADORA __________________________________________
Prof. Dr. Loureno Zancanaro UEL Londrina - PR
__________________________________________
Profa. Dra. Leoni Maria Padilha Henning UEL Londrina - PR
__________________________________________
Prof. Dr. Delamar Jos Volpato Dutra UFSC - Florianopolis SC
Londrina, 21 de novembro de 2006.
minha me Maria Aparecida (in memoriam)pelo exemplo de perseverana, fortaleza edoao. Ao esposo Luiz e filhos Thiago,Fernanda e Nathan.
AGRADECIMENTOS
A Deus pelo dom da vida.
Ao Prof. Dr. Loureno Zancanaro, por sua orientao serena e segura.
Aos professores componentes da banca de qualificao, Prof. Dr. Delamar Jos Volpato Dutra
e Prof. Dr. Leoni Maria Padilha Henning, pelas sugestes que muito auxiliaram na
organizao de minhas idias.
Aos professores e funcionrio do Programa de Mestrado em Educao da UEL especialmente
Rosngela Volpato e Maria Luiza Abbud, pelas sbias palavras proferidas no decorrer das
aulas.
Ao Luiz, meu esposo, pelos momentos que teve de privar-se de minha companhia.
A Thiago, Fernanda e Nathan, pela alegria de t-los como filhos.
A meu pai Jos por insistir no valor dos estudos.
A meus irmos e irms por fazerem parte de minha caminhada existencial.
amiga Zuleika Piassa, pela amorosidade e por indicar o caminho.
amiga Adreana Platt, pela generosidade em compartilhar sua competncia terica.
Aos colegas de curso, pela partilha do saber e pela convivncia acadmica.
Ao Prof. Aluysio Fvaro, pela dedicao ao fazer a reviso de linguagem deste trabalho.
A todos que, direta ou indiretamente, contriburam para que o trabalho pudesse ser realizado.
.
Meu processo de formao completa-se num contextode tradies que partilho com outras pessoas; minhaidentidade tambm marcada pelas identidadescoletivas, e a minha histria de vida est inserida emcontexto de histrias de vida que se entremeiam.Nesta medida a vida que boa para mim tocatambm as formas de vida que nos so comuns(Habermas, 1991).
RUIZ, Maria Jos F. A ao comunicativa na prxis pedaggica: um estudo a partir de Habermas. 2006. 106f. Dissertao (Mestrado em Educao) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2006.
RESUMO Esta pesquisa busca analisar as contribuies da ao comunicativa habermasiana ao ambiente escolar. Parte da crtica racionalidade moderna e enfatiza a forma como a racionalidade instrumental reflete na educao. Considera que desenvolver uma proposta educacional pautada na ao comunicativa um desafio, j que a escola ainda bastante permeada pela razo instrumental. Nesse locus, por vezes, os fins acabam por justificar os meios, valorizando-se mais os resultados estatsticos do que o processo em si mesmo. A escola, dessa forma, passa a ser colonizada pelo mundo sistmico. A pesquisa discute como alguns estudiosos da educao vem a possibilidade de aproximao das idias da razo comunicativa escola, como contraponto racionalidade instrumental que reifica o homem, assim como a natureza. Nesse prisma, defende que essa aproximao traria suporte para uma gesto escolar democrtica na qual a comunicao entre todos os atores envolvidos no processo estaria presente de forma institucional, tornando-se uma possibilidade de melhoria nos conflitos que assolam esse meio. Apresenta alguns princpios da Teoria da ao comunicativa e da Teoria dos atos de fala buscando empreender uma discusso de como essas podem subsidiar uma proposta de educao moral. Faz apontamentos sobre a educao moral em tericos que deram sustentculo a Habermas para a construo de sua tica discursiva. Estabelece, tambm, um confronto entre a dialogicidade a as possibilidades de formao moral na escola. Discute, ainda, alguns pressupostos da democracia e como estes poderiam estar presentes no interior da escola, estimulando a racionalidade comunicativa. Apresenta uma proposta prtica: as assemblias escolares. V esta como possibilidade de empreender na escola a ao comunicativa. Finaliza compreendendo que, embora muitas crticas se faam Teoria da Ao Comunicativa, a mesma tem muito a oferecer prxis pedaggica na formao de pessoas comunicativamente competentes. Palavras-chave: tica discursiva. Razo instrumental. Razo comunicativa. Educao moral. Dialogicidade. Democracia. Assemblias escolares.
RUIZ, Maria Jose F. The communicative action in the praxis pedagogical: a study from Habermas. 2006. 106p. Dissertation (Master degree in Education) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2006.
ABSTRACT
This research searchs to analyze the contributions of the habermasiana communicative action to the pertaining to school environment. Part of the critical one to the modern rationality and emphasizes the form that the instrumental rationality reflects in the education. It considers that to develop a educational proposal ruled for a communicative action is a challenge, since the school still is sufficiently permeated by the instrumental reason. In this locus, for times, the ends are for justifying the ways, valuing more, the statistical results than the process in itself exactly. By the way, the school passes to be colonized by the systematic world. It argues as some scholars of the education see the possibility of approach to the ideas of the communicative reason to the school, as counterpoint to the instrumental rationality that reifica the man, as well as the nature. In this prism, it defends that this approach would bring support for a democratic school management in which, the communication between all the involved actors in the process would be present in institutional form, becoming a possibility of improvement in the conflicts that devastate this way. It presents some principles of the Theory of the communicative action and of the Theory of the acts of it speaks searching to undertake a quarrel of as these can subsidize a proposal of moral education. It makes notes about the moral education in theoreticians who had given support to the Habermas for the construction of his discursive ethics. It establishes, also, a confrontation between the dialogicidade and the possibilities of moral formation in the school. It argues, still, some estimated of the democracy and as these could be present in the interior of the school, stimulating the communicative rationality. Set a practical proposal: the school assemblies. It sees this as a possibility of the undertaking in the school the communicative action. It finishes understanding that although, many critical they make to the Theory of the Communicative Action, the same one has much to offer to the pedagogical praxis in the formation of communicatively competent people.
Keywords: Discursive ethics. Instrumental reason. Communicative reason. Moral education. Dialogicidade. Democracy. Pertaining to school assemblies.
SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................................... 9
CAPTULO 1 HABERMAS E A CRTICA MODERNIDADE ................................ 16
1.1 RAZO NA PERSPECTIVA DO ESCLARECIMENTO (AUFKLRUNG) EM KANT......................... 17
1.2 A CRTICA RACIONALIDADE EM ADORNO E HORKHEIMER............................................... 21
1.3 RAZO COMUNICATIVA EM HABERMAS ............................................................................. 24
CAPTULO 2 AGIR COMUNICATIVO E EDUCAO MORAL............................. 32
2.1 APROXIMAES TICA DISCURSIVA E TEORIA DOS ATOS DE FALA ................................ 32
2.2 FUNDAMENTOS PARA A AO MORAL................................................................................ 40
2.3 AO PRAGMTICA, TICA E MORAL.................................................................................. 50
2.4 O AGIR COMUNICATIVO PARA UMA EDUCAO MORAL .................................................... 55
2.5 EDUCAO MORAL EM KANT: A MORAL DO DEVER............................................................ 58
2.6 EDUCAO MORAL EM PIAGET: DA MORAL HETERNOMA MORAL AUTNOMA............... 63
2.7 EDUCAO MORAL EM KOHLBERG: COMUNIDADE JUSTA E DILEMAS MORAIS .................... 69
2.8 EDUCAO MORAL E DIALOGICIDADE ................................................................................ 71
CAPTULO 3 AO COMUNICATIVA E PARTICIPAO
DEMOCRATICA NA ESCOLA ............................................................................ 74
3.1 EDUCAO E EMANCIPAO NA PERSPECTIVA DE ADORNO ............................................... 74
3.2 TEORIA CRTICA E PENSAMENTO PEDAGGICO................................................................... 77
3.3 COLONIZAO DO MUNDO DA VIDA ESCOLAR .................................................................... 80
3.4 RAZO COMUNICATIVA E EDUCAO ................................................................................ 83
3.5 RAZO COMUNICATIVA, EDUCAO DEMOCRTICA E SABERES ESCOLARES...................... 86
3.6 VALORES E PRTICAS PEDAGGICO-DEMOCRTICAS.......................................................... 92
3.7 POSSVEL APLICAO PEDAGGICA AO AGIR COMUNICATIVO: AS ASSEMBLIAS
ESCOLARES ................................................................................................................. 94
CONSIDERAES FINAIS................................................................................................ 97
REFERNCIAS..................................................................................................................... 102
9
INTRODUO
As questes ticas vm sendo bastante discutidas nesse incio de sculo,
haja vista os problemas como as injustias sociais, a falta de respeito aos direitos humanos, a
violncia, as guerras, a corrupo, o avano tecnolgico e cientfico e o prprio descaso em
relao educao. A escola insere-se nessa controvrsia como uma instituio que pode
substanciar a formao humana, estando atenta s questes apontadas acima, levando ao
esclarecimento e inserindo em seu currculo o debate sobre os valores humanos na sociedade,
na cincia, na poltica e nas tecnologias. Percebemos, no entanto, que muitas discusses que
envolvem a tica na educao no chegam realmente escola como espao microssocial,
ficando por vezes entre acadmicos, filsofos e estudiosos da tica, que refletem sobre as
idias de diferentes pensadores, porm, no se ocupam da transposio didtica necessria
para realmente atingir a escola.
Devemos considerar ainda que, embora a escola, pautada em princpios
ticos, seja condio sine qua non para a construo de uma sociedade mais justa e para a
formao da cidadania, esta instituio no a nica agncia educativa na sociedade.
Atualmente a mdia, as relaes econmicas, enfim todas as instncias sociais, com toda a
complexidade que lhes inerente, educam os sujeitos que ali esto, sendo talvez um erro
atribuir escola, e apenas a ela, o encargo de solucionar todas as mazelas sociais. A escola
convive diariamente com problemas que no so dela ou, ao menos, no so originados dela.
O desajuste familiar, a violncia, a misria, a fome, entre outros fatores, acabam por limitar
suas possibilidades de ao.
Podemos ainda acrescentar aos problemas citados as anlises sociolgicas
feitas por Zygmunt Bauman (2001, p.186) em seu livro Modernidade Lquida. Para esse
pensador o individualismo est presente na sociedade moderna. As relaes humanas se
tornam fludas, o outro, muitas vezes, tido como objeto de consumo, descartvel. Assim
como as peas de um motor de carro no so mais consertadas e sim substitudas quando
quebram, acontece na vida em geral: no se investe mais nas relaes e sim troca-se o
parceiro (cnjuge, amigo, funcionrio). A desconfiana, tambm, est presente nessas
relaes; as pessoas tm medo de perder o que conquistaram, suas posies de trabalho, o
capital que acumularam, entre outros bens. A competio se acirra em busca do mrito, de ser
o melhor, de passar a frente do outro, que visto como obstculo a ser transposto. Diante
dessas anlises, pensamos que muito h que se discutir na esfera educacional na tentativa de
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propiciar aos educandos momentos de relao intersubjetiva, na tentativa de compreender o
outro, tendo como mediao o dilogo.
A necessidade de imprimir um carter normativo formao tica, foi
percebida. Assim, as polticas curriculares incluem a tica como tema transversal, possvel e
necessrio de ser discutido em todas as disciplinas, em documento como os PCNs
(Parmetros Curriculares Nacionais). O documento organiza blocos de contedos, dando
destaque ao dilogo como assunto a ser trabalhado. De acordo com os PCNs (1998, p. 109;
112), deve-se enfatizar na escola a:
Valorizao do dilogo nas relaes sociais. Valorizao das prprias idias; disponibilidade para ouvir idias e argumentos do outro e reconhecimento da necessidade de rever pontos de vista. Utilizao do dilogo como instrumento de cooperao. Transformao e enriquecimento do saber pessoal pelo dilogo. Participao dialgica na tomada de decises coletivas.
Podemos fazer uma aproximao das idias contidas nessa citao tica
comunicativa habermasiana que busca estabelecer princpios morais no no sujeito, mas na
atividade comunicativa por ele exercida diante de seus semelhantes, com o propsito de
chegar a consenso atravs do ato da fala, visando a auto-reflexo, a auto-avaliao e a
autocorreo. Entretanto, percebemos que o iderio freireano, tambm, est fortemente
presente nesse documento, haja vista a sua imensa contribuio educao de forma geral, na
qual a necessidade do dilogo entre os pares uma constante.
Dessa forma, tanto Habermas como Paulo Freire, poderiam nos acompanhar
mais diretamente nesta pesquisa. O fato de optarmos pelo primeiro se d, todavia, pelos
argumentos a seguir.
Primeiro, o prprio Paulo Freire tematiza incansavelmente sobre a
educao, de forma direta ou indireta. Habermas, porm, deixa essa lacuna a ser preenchida.
Em sua teoria, no versa muito sobre a educao, alm de poucos comentrios circunstanciais,
deixando essa empreitada ainda por ser cumprida por pesquisas que venham fazer um esforo
reflexivo de aproximar de seus pensamentos ao setor escolar.
Segundo, alm da contribuio direta do prprio Freire, atravs dos livros
que escreve, existem inmeras pesquisas nacionais e internacionais, que buscam analisar a
11
educao, alm de outros temas, luz da teoria freireana1. No entanto, pesquisas sobre as
contribuies de Habermas educao ainda so poucas, pelo menos de acordo com os dados
que levantamos nesta pesquisa. Podemos citar aqui, sem desmerecer outras, (HERMANN,
1999; MHL, 2003; GOERGEN, 2004). Sendo assim, apresentamos ainda como ltimo
argumento o fato da escola necessitar de um amplo arcabouo terico que d conta de suas
problemticas. Habermas nos oferece mais uma, entre tantas outras possibilidades, de
repensarmos a educao de nossos tempos, contribuindo assim para apontar caminhos para
futuras prxis pedaggicas.
Concordamos, entretanto, com Goergen (2004, p.113), que estabelecer
relaes entre a teoria habermasiana e a educao um quase-atrevimento, pois o prprio
Habermas poder ainda, quem sabe, vir a provocar alguns debates sobre esse tema. Sendo
assim, j adiantamos que esta pesquisa tem um carter temporal, provisrio, seletivo e
limitado.
Pensamos que tal empreitada possa vir a contribuir, auxiliando na reflexo
da necessidade da efetivao de uma proposta pedaggica que, buscando estabelecer normas
coletivamente para o bem viver, estimule a reflexo moral e a vivncia democrtica. Uma
proposta na qual todos se sintam parte do processo educacional, e necessrios, enquanto seres
sociais que colocam suas idias para a normatizao do coletivo e discutem-nas
racionalmente, buscando sempre o melhor argumento para pensar a convivncia do grupo e
estabelecer novas normas, quando necessrio, embasando-se em alguns princpio da Teoria
da Ao Comunicativa de Habermas. Acreditamos que isso possa gerar um sentimento de
pertena ao grupo. Entendemos que, quando as pessoas se sentem realmente parte de uma
coletividade, chamam para si a responsabilidade sobre os diversos fatores que emergem da
ao pedaggica, no se colocando apenas como espectadoras e cumpridoras de funes
desarticuladas e impensadas na escola.
Diante do exposto e convencidos da convenincia de aproximao das
idias de Habermas educao, assumimos como problema nesta pesquisa verificar quais as
contribuies, limites e possibilidades que a ao comunicativa habermasiana pode trazer
escola.
Dessa forma, esta pesquisa, alm das justificativas supra citadas, tambm se
justifica por unir esforos com aqueles que acreditam na educao como condio para a
constituio de uma outra sociedade, entendendo que:
1 Indicamos o site http://www.paulofreire.org/sobrepf.htm que faz uma compilao de vrias pesquisas em torno do pensamento freireano, ao leitor interessado.
12
H na educao uma dimenso tico-existencial. A busca da compreenso do sentido, corresponde ao desejo de melhores respostas [...]. Sem o desenvolvimento de nossa capacidade de dar respostas, que realmente correspondam ao sentido da estrutura de um mundo concreto, continuamos correndo o risco de reproduzir o mesmo, sem perspectiva de chegarmos a um mundo outro, outro porque melhor que o atual (REZENDE, 1990, p. 85).
Com esse entendimento e, diante dessas expectativas, temos como objetivo
geral, na presente pesquisa, refletir sobre as possibilidades e limites da escola ser um espao
promotor das relaes intersubjetivas, pautada na racionalidade comunicativa. Para tanto,
elencamos como objetivos especficos: entender a crise da racionalidade moderna; enfocar
como essa crise reflete na educao; compreender os princpios da ao comunicativa;
analisar suas contribuies a uma educao moral e democrtica; relacionar, como
possibilidade de estimular a reflexo moral, o conceito de democracia ao da escola; e
apresentar as assemblias escolares como momento para desenvolver a ao comunicativa na
escola.
Em relao metodologia utilizada, o presente estudo uma pesquisa
bibliogrfica na qual buscaremos, partindo de anlise e do tratamento interpretativo dos
dados, apontar alternativas possveis ao problema selecionado. De acordo com Marconi e
Lakatos (1990, p.66), entendemos que a pesquisa bibliogrfica no mera repetio do que
j foi dito ou escrito sobre certo assunto, mas propicia o exame de um tema sob novo enfoque
ou abordagem, chegando a concluses inovadoras.
No intuito de tentar atingir os objetivos propostos, organizaremos a pesquisa
em trs captulos.
O primeiro captulo intitulado: Habermas e a crtica modernidade.
Trata-se de um estudo bibliogrfico sobre a racionalidade no qual buscaremos significar o que
seja razo, esclarecimento e emancipao, razo crtica e razo instrumental, para finalmente,
chegarmos ao conceito de razo comunicativa habermasiano. Neste captulo, teremos como
base o pensamento de alguns autores, Kant, Adorno, Horkheimer e Habermas, em nosso
entendimento, indispensveis discusso.
Fizemos uma tentativa de definir razo, visto que esse termo no tem apenas
um significado, mas passvel de vrias definies. Intencionamos, com essa tentativa,
esclarecer um olhar pedaggico que excursiona pela filosofia, buscando parceria para
compreender o espao escolar.
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A seguir abordamos o conceito de esclarecimento e emancipao em Kant.
Enfocamos como esse filsofo depositou na razo a capacidade de conduzir os homens
cincia, sabedoria e ao esclarecimento, partindo da anlise de seu artigo: Resposta
pergunta: o que esclarecimento?.
Na seqncia, apresentamos o significado de razo crtica e razo
instrumental na perspectiva de Adorno e Horkheimer. Esses filsofos faziam parte da Escola
de Frankfurt e eram crticos da razo moderna. Dessa forma, entendiam que a proposta
iluminista, segundo a qual a razo humana levaria emancipao, ruiu, levando ao que
chamaram de asfixia da razo.
Expomos tambm neste captulo o que Habermas entende por razo
comunicativa. Enfatizamos as expresses: mundo da vida, mundo do sistema e o termo
interesse, por consider-los nucleares no pensamento habermasiano. Filsofo contemporneo
que tambm participa da Escola de Frankfurt, Habermas prope um novo paradigma racional,
contrapondo-se ao pessimismo de Adorno e Horkheimer ante a racionalidade moderna.
No segundo captulo: Agir comunicativo e educao moral
desenvolvemos uma breve fundamentao, elucidando outros conceitos-chave nessa teoria,
quais sejam: agir comunicativo, linguagem, classificao dos atos de fala, princpio de
universalizao (U), princpio do discurso (D) e as regras do Discurso. Neste captulo
enfocaremos, alm do pensamento de Habermas, os de outros autores como Piaget, Kohlberg
e Selman, que serviram de aporte para a construo da teoria habermasiana, no que concerne
ao desenvolvimento da conscincia moral.
Enfocamos a importncia que Habermas atribui linguagem para
desenvolver a Teoria do Agir Comunicativo. Procuramos, tambm, verificar como Habermas
parte dos diferentes usos da linguagem de Austin, interessando-se pelos atos ilocucionrios.
Para ele so os atos ilocucionrios que pressupem a interao comunicativa, sendo atravs
deles que os sujeitos, capazes de fala, se tornam sujeitos sociais e no apenas falantes.
Discutimos como Habermas apresenta o princpio D e o princpio U e como formula as
regras do Discurso.
Aproximamo-nos, ainda no segundo captulo, do conceito de moral em
Habermas, pois, se entendemos que essa pesquisa possa vir a contribuir com uma
fundamentao filosfica que d respaldo ao fazer da escola, esse conceito to enfatizado
neste filsofo, no poderia deixar de ser abordado. No tivemos, no entanto, a pretenso de
esgotarmos o conceito de moral em Habermas. Entendemos que compreender como este
filsofo, partindo da teoria de Kant sobre a moral subjetivista, reformula-a discursivamente,
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seria problema para uma outra pesquisa2. Apontamos, ento, como Habermas busca respaldo
em outras teorias, dentre elas o estruturalismo gentico de Piaget e Kohlberg, para relacionar
o agir comunicativo questo moral. Enfocamos, tambm, que a partir dos nveis de
moralidade de Kohlberg, e dos nveis de entendimento interpessoal de Selman, Habermas
pensa em nveis de interao.
Damos seqncia ainda neste captulo questo da moralidade.
Defendemos a necessidade da escola pautar-se em aes que garantam a aproximao dos
alunos ao agir moral. Para tanto, buscamos, nas teorias que embasaram Habermas para a
construo de seu conceito de moralidade, luz para fundamentar uma proposta de ao
pedaggica voltada formao moral.
Na seqncia abordamos alguns pressupostos kantianos em relao
educao moral. Kant pensava em uma educao moral atravs do dever, de acordo com a
qual o ser humano deveria fazer o bem por que era o bem e no em razo de ele estar
determinado por leis exteriores, mas sim pela vontade livre. Citamos como Kohlberg pensa a
educao moral atravs da construo do que chama de comunidade justa e tambm atravs
da discusso de dilemas morais e voltamos a Piaget que descreve a existncia de duas formas
de agir moral: a moral da heteronomia e a moral da autonomia.
O retorno deste captulo sobre o iderio desses trs pensadores justifica-se
por serem eles, bases para a construo do pensamento moral em Habermas, o que pode ser
verificado em seu livro Conscincia moral e agir comunicativo.
Finalizamos o segundo captulo, relacionando a educao moral
dialogicidade na escola, apoiando-nos em Adela Cortina, pesquisadora espanhola que vem
desenvolvendo vrios estudos sobre tica e educao moral, num vis habermasiano.
No terceiro e ltimo captulo, relacionamos a crtica racionalidade
moderna, com a esfera da educao escolar. Verificamos que Adorno v na educao um
caminho que pode levar emancipao. Enfocamos, tambm, como alguns tericos da Teoria
Crtica, percebem a influncia da razo instrumental no pensamento pedaggico.
Aproximamos a anlise social de Habermas ao fazer da escola, partindo do conceito de
colonizao do mundo da vida, explanando como ele se apresenta, por vezes, na escola.
Citamos como alguns estudiosos da educao vem a possibilidade de
aproximao das idias da razo comunicativa habermasiana escola. Essa aproximao
traria ao ambiente escolar suporte para uma gesto democrtica, na qual, a comunicao entre
2 Indicamos ao leitor interessado sobre o tema moral em Habermas, com maior rigor, a leitura do livro de Dutra (2002), A reformulao discursiva da moral kantiana (vide referncias).
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todos os atores envolvidos no processo estaria presente de forma institucional, tornando-se
uma possibilidade de melhoria nos conflitos que assolam esse meio.
Apresentamos ainda uma discusso sobre alguns princpios da democracia.
Defendemos que, se pensamos em empreender uma proposta pedaggica que realmente
valorize a formao democrtica, precisamos pautar-nos nos princpios da racionalidade
comunicativa.
Encerramos o captulo discorrendo sobre o agir comunicativo na ao
pedaggica. Nele apresentamos a prtica das assemblias escolares como forma de contribuir
para uma educao voltada questo da competncia comunicativa.
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CAPTULO 1
HABERMAS E A CRTICA MODERNIDADE
Antes de adentrarmos na crtica ao projeto da racionalidade iluminista
elaborada por Habermas e outros filsofos, que o objetivo maior deste captulo, achamos
oportuno buscar um esclarecimento sobre o conceito de razo. Os diferentes usos da palavra
razo fazem parte do vocabulrio do nosso cotidiano. Chau (2000, p. 43) mostra que a
usamos com diferentes conceitos e em diferentes momentos. Dizemos que uma pessoa est
com a razo quando queremos concordar com seus pensamentos e dizeres. Empregamos,
tambm, esse termo como sinnimo de motivo quando questionamos as razes que levaram
determinada pessoa a agir de certa forma. Assim como utilizamos razo como sinnimo de
lucidez, para nos referirmos a algum que recuperou a razo, aps t-la perdido em um
momento de fria, por exemplo.
Durante sculos construiu-se a crena cultural de que razo e emoo
constituem dois aspectos diferentes da natureza humana. Culturalmente aprendemos que a
razo est ligada ao intelecto, contrapondo-se assim s paixes ou sentimentos. Entendemos
que, quando algum recupera a razo, isso significa que o conhecimento intelectual e a
conscincia se tornaram mais fortes que as paixes, os sentimentos e as emoes. Atravs do
senso comum aprendemos, at mesmo, que razo e emoo possuem localizaes anatmicas
diferentes em nosso corpo. A razo est no crebro, rgo central do intelecto, a emoo no
corao, rgo do afeto, do amor3. A razo, como capacidade puramente intelectual,
considerada como algo positivo, que leva o homem a conseguir o conhecimento verdadeiro
sobre a natureza, a sociedade, a histria (CHAU, 2000, p.43).
Todas essas questes vm tona ao tentarmos conceituar razo, palavra que,
como se viu, no possui apenas um significado, porquanto todos eles esto fortemente
permeados de componentes temporais, ou seja, so construdos e reconstrudos histrica e
culturalmente.
Porm, buscando em Chau (1999) num esforo de conceituao, vimos que
a palavra razo remete-se a duas fontes que indicam sentidos equivalentes. Uma a palavra
3 Pensamento esse obviamente j superado com os avanos dos estudos da neuropsicologia, que no nosso objeto de estudo aqui neste trabalho.
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latina ratio e a outra a palavra grega logos, dois substantivos derivados de verbos que
apresentam sentidos muito parecidos. Logos vem do verbo legein que quer dizer: contar,
reunir, juntar, calcular; o outro verbo reor que significa: contar, reunir, medir, juntar,
separar, calcular. Ela ainda nos mostra que razo significa capacidade intelectual para
pensar e exprimir-se correta e claramente e dizer as coisas tais como so. Podemos, ento,
dizer que razo uma maneira de organizar a realidade que assim se torna, por ao daquela,
compreensvel.
Chau (2000, p. 43) diz que, por vezes, consideramos razo como a
conscincia moral que observa as paixes, orienta a vontade e oferece finalidades ticas para a
ao. Ainda acrescenta que esse termo concebido segundo um ideal da clareza, da
ordenao e do rigor e preciso das palavras.
Porm, a filosofia nos mostra, de acordo com Chau (2000, p.43-4), que
alguns filsofos no vem a razo apenas como capacidade intelectual e moral dos seres
humanos. Estes definem, tambm, razo como uma propriedade ou qualidade primordial das
prprias coisas, existindo na prpria realidade. Sendo assim, o homem conhece a realidade,
entendida aqui como a natureza, a sociedade, a histria, porque essa mesma realidade
racional em si mesma. Nessa linha de pensamento desponta no apenas um, mas dois
conceitos de razo: a razo objetiva, para a qual a realidade racional em si mesma e a razo
subjetiva, para qual a razo uma capacidade intelectual e moral do homem ao conhecer e
organizar os dados objetivos da realidade que o cerca.
Essas, alm de outras consideraes sobre a razo, aparecem numa ampla
literatura sobre o tema. Portanto, bastam-nos os conceitos aqui mencionados, pois que so
suficientes para mostrar a polissemia do termo.
1.1 RAZO NA PERSPECTIVA DO ESCLARECIMENTO (AUFKLRUNG) EM KANT
Somando-se aos conceitos citados acima, durante a Histria da Filosofia
surgem outras duas concepes do termo razo. O inatismo que considera a razo como uma
caracterstica humana natural e o empirismo para o qual a razo adquirida atravs da
experincia sensvel. O filsofo Immanuel Kant (1724-1804), expoente do iluminismo
alemo, supera essas duas concepes afirmando que a razo inata quanto a sua estrutura e
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s suas operaes, mas os contedos conhecidos por ela provm da experincia (CHAU,
2000, p. 50).
Assim como os demais iluministas Kant acredita no poder emancipador da
razo. Atravs da capacidade reflexiva racional o homem pode buscar critrios seguros para
orientar sua ao. A natureza humana, em ltimos termos, identifica-se com a natureza da
razo, sendo esta una e universal. Nessa concepo, atravs da educao o homem seria
capaz de buscar respostas criativas e inventivas para todo e qualquer problema que surgisse na
humanidade. Os iluministas, sofrendo influncia das concepes burguesas que despontavam,
entendiam que a humanidade precisava encontrar formas de instaurar uma nova ordem social,
na qual o homem tivesse liberdade de pensamento e de ao, orientados unicamente pela
faculdade racional. Essa nova ordem social unia esforos para libertar-se do jugo dominante
do teocentrismo e projetava uma educao laica , universal nica e gratuita, que engendraria
transformaes sociais, polticas e culturais. Outra caracterstica do pensamento iluminista o
princpio da subjetividade, o qual traz uma outra configurao cultural, fundada no direito do
indivduo. Dessa forma, o mundo torna-se algo postulado pela conscincia, despede-se da
viso mgica ou metafsica e revela um poder instituinte do sujeito cognoscente. A razo
passa a ser encarada como uma faculdade competente para promover o progresso tcnico-
cientfico e, conseqentemente, a melhoria da qualidade de vida. Os iluministas, por sua vez,
ensinam: a difuso universal dos conhecimentos e das tcnicas seria indispensvel para a
libertao do homem, concorrendo para seu bem-estar e felicidade nesse mundo. O homem
poderia desnudar a natureza, compreendendo suas leis e transformando-a para atingir seus
objetivos e passar a govern-la (MHL, 2003, p. 223; 225).
Em Kant a razo uma faculdade livre, o que significa que capaz de se
autofundamentar e autodeterminar-se, motivo pelo qual esse filsofo um grande defensor do
poder emancipador da razo atravs do esclarecimento que aguaria a capacidade humana
de criar a cincia e instituir a moral. Kant deixa-nos uma vasta obra sobre a razo e,
entretanto, como nosso objetivo nesta pesquisa no expor em detalhes o pensamento
kantiano em relao racionalidade, selecionamos, para efeito didtico, apenas um artigo do
filsofo que, em nossa opinio, pode contribuir com a discusso aqui empreendida. Nesse
artigo Kant faz uma crtica aos sujeitos que ofuscam a capacidade racional, insistindo em
deleg-la a tutores esclarecidos, o que dificulta, no seu entender, o progresso da razo e,
conseqentemente, o desenvolvimento da humanidade.
Em 1784, Kant publicou o artigo: Resposta pergunta: O Que
Esclarecimento? (Aufklrung) em um Jornal da poca intitulado: Mensrio Berlinense.
19
importante ressaltar que o filsofo escreve esse artigo no auge do Iluminismo alemo, na
inteno de chamar a ateno dos intelectuais da poca, assim como da populao, sobre a
importncia de livrarem-se do jugo dos tutores. Esses tutores, para Kant, eram pessoas que
chamavam para si a responsabilidade de falar em nome de outras. Defende, por conseguinte,
que cada qual deva fazer o uso esclarecido e pblico de sua razo, no delegando a outrem
essa responsabilidade.
No artigo, Kant explica que o esclarecimento acontece paulatinamente
medida que o homem sai de sua menoridade. Entende que o prprio homem o culpado por
esta menoridade, pois, muitas vezes, no capaz de usar seu prprio entendimento sem a
direo de outras pessoas (KANT, 1974, p.102).
O homem, ao libertar-se de seus instintos animais, poderia fazer uso de seu
entendimento, porm, se no o faz devido preguia e covardia, pois muito mais
cmodo ser menor e regido pelo outro. Delegar a outrem a tomada de decises em lugar de
arriscar-se a faz-lo e arcar com as conseqncias das decises tomadas menos perigoso.
Nessa linha de pensamento, Kant expe no tenho necessidade de pensar, quando posso
simplesmente pagar; outros se encarregam em meu lugar dos negcios desagradveis (KANT,
1974, p.102-3).
Ao invs de fazer uso de seu prprio esclarecimento o homem delega-o a
tutores que o conduzem como animal domstico. Os tutores, medida que guiam esse animal
vo, com cautela, mostrando-lhe os perigos que ele pode correr se tentar caminhar sozinho
com suas prprias pernas. Andar sozinho seria fazer uso de seu prprio esclarecimento, sem o
jugo de outra pessoa (KANT, 1974, p.103).
Para Kant, os grilhes de uma perptua menoridade so impostos pelos
tutores esclarecidos que tornam o homem temeroso. Esses tutores mostram a esse homem,
fragilizado pela falta de entendimento, que quem deles se livrasse s seria capaz de dar um
salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque no est habituado a esse
movimento livre. So esses lembretes constantes que fazem com que seja difcil
desvencilhar-se da menoridade. A menoridade torna-se, ento, natural ao homem que passa
at mesmo a estim-la (KANT, 1974, p.103).
Esse filsofo afirma que, se as pessoas tivessem liberdade, inevitavelmente,
haveriam de tornar-se esclarecidas. Assim, libertas da menoridade, espalhariam ao seu redor
o esprito de uma avaliao racional do prprio valor e da vocao de cada homem em
pensar por si mesmo (KANT, 1974, p.103).
20
Kant observa que atravs de uma revoluo talvez acontecesse a queda do
despotismo pessoal que oprime, busca a ordem e tem em vista o lucro e o domnio.
Entretanto, nem mesmo a revoluo produziria a reformulao do modo de pensar das
pessoas. Essa reformulao do modo de pensar, para Kant, condio necessria ao
esclarecimento.
Enquanto grande parte do povo for destituda de pensamento, uma
revoluo apenas traria outros preconceitos. Temos a impresso de que Kant faz, aqui, uma
crtica s correntes revolucionrias que, por vezes, pensam em destituir o poder de quem
domina, usando do povo, porm, nem sempre com objetivos nobres e humanistas, como j
vimos tantas vezes ocorrer na histria da humanidade.
Dando seqncia a seu raciocnio, ele diferencia o uso da razo em: uso
pblico e uso privado. O uso pblico aquele que qualquer homem, enquanto sbio, faz
dela [da razo] diante do grande pblico do mundo letrado. O uso privado aquele que o
sbio pode fazer de sua razo em um certo cargo pblico ou funo a ele confiado (KANT,
1974, p.103).
Entretanto, percebemos que fazer uso pblico da razo no significa apenas
dirigir-se oralmente a um grande pblico, o que para Kant ainda uso privado da razo. A
razo, para ele, s se torna pblica atravs do registro escrito que uma forma de socializao
ampla dessa mesma razo, sem estar subordinado s influncias diretas do meio, ou do cargo
que se ocupa. O sbio que se dirige a um pblico, por meio de obras escritas de acordo com
seu prprio entendimento, pode certamente raciocinar, sem que por isso sofram os negcios a
que ele est sujeito em parte como membro passivo (KANT, 1974, p.103).
No uso privado, o homem dotado de sabedoria; no entanto deve seguir as
normas s quais est subordinado. Mesmo que leve seu conhecimento e suas idias ao
pblico, estas no podem entrar em conflito com as normas j preestabelecidas de acordo
com o cargo que ocupa (KANT, 1974, p.109 -10).
Kant, referindo-se poca em que escreveu o artigo, afirma que no se
encontrava em uma poca esclarecida, mas em uma poca de esclarecimento, pois faltava
muito para que os homens fossem capazes de fazer uso pblico de sua razo (KANT, 1974,
p.112).
Acredita que os homens se desprendem por si mesmos progressivamente
do estado de selvageria, principalmente quando tm liberdade, religiosamente falando.
Entretanto, para o filsofo, esse processo lento e muito difcil.
21
Kant finaliza o seu artigo com maestria afirmando que somente um
monarca esclarecido, chefe de um numeroso e bem disciplinado exrcito para garantir a
tranqilidade pblica, pode dizer ao povo o que seria impossvel a um outro, a saber:
"Raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei".
Parece-nos que Kant estaria fazendo aluso ao que Deus o prprio esclarecido tenha dito
ao homem (KANT, 1974, p.114). Conclui dizendo que a natureza por baixo desse duro
envoltrio d espao ao desejo de expanso da liberdade de esprito do povo, o pensamento
livre. Sendo assim, o filosofo preconizava que, o povo se tornaria cada vez mais capaz de agir
de acordo com a liberdade, e o governante, por sua vez, acharia conveniente para si prprio
tratar o homem, que agora mais que uma simples mquina, de acordo com a sua dignidade
(KANT, 1974, p.114).
Dois sculos se passaram e j estamos caminhando no terceiro sculo, aps
Kant ter redigido brilhantemente seu artigo, no qual faz o que ele mesmo denomina de uso
pblico da razo. Entretanto, Habermas pensa que os ideais de esclarecimento (Aufklrung)
de Kant ainda estejam por acontecer. Porm, ele no pensa em um esclarecimento individual
do ser cognoscente, mas sim um esclarecimento coletivo que acontecer medida que os
sujeitos, capazes de comunicao, avanarem nos nveis de interao, atingindo o nvel mais
evoludo do agir comunicativo: o do Discurso. Entraremos em maiores detalhes sobre o
conceito de agir comunicativo e de Discurso em Habermas nos captulos que se seguem.
1.2 A CRTICA RACIONALIDADE EM ADORNO E HORKHEIMER
Alguns tericos enfatizam que a exaltao do racionalismo proclamada por
Kant e outros iluministas da Idade Moderna levaria ao desenvolvimento tcnico-cientfico,
porm, traria consigo uma quantidade enorme de problemas humanos, sociais, econmicos,
entre outros. aqui que se situa a crtica razo moderna empreendida por muitos filsofos,
entre os quais, os tericos frankfurtianos Adorno (1903-1969) e Horkheimer (1895-1973),
fundadores da Escola de Frankfurt. Freitag (1986, p.10) faz uma retomada histrica dessa
instituio, desde sua origem at a contemporaneidade. Esclarece-nos que com a expresso
22
Escola de Frankfurt procura-se designar a institucionalizao dos trabalhos de um grupo de
intelectuais marxistas, no ortodoxos4.
No pensamento dos tericos de Frankfurt, a crtica razo instrumental,
tpica do capitalismo, sempre uma constante5. Para eles existem duas formas de razo: a
razo crtica que busca desvelar as contradies internas do sistema capitalista e a razo
instrumental tpica do capitalismo. Esta ltima acaba por dominar a natureza e o homem
atravs do desenvolvimento da tcnica e da cincia. Nesse sentido Chau esclarece:
Os filsofos da Teoria Crtica consideram que existem, na verdade, duas modalidades da razo: a razo instrumental ou razo tcnico-cientfica, que est a servio da explorao e da dominao, da opresso e da violncia, e a razo crtica ou filosfica, que reflete sobre as contradies e os conflitos sociais e polticos e se apresenta como fora libertadora (CHAU, 2000, p.51).
Nessa perspectiva, a razo instrumental nasce quando o sujeito do
conhecimento toma a deciso de que conhecer dominar e controlar a natureza e os seres
humanos (CHAU, 2000, p. 119).
Freitag (1986, p. 35), por sua vez, alude que, para os frankfurtianos, o
projeto racional do iluminismo converteu-se no uso de: uma razo alienada que se desviou
do seu objetivo emancipador original transformando-se em seu contrrio: a razo
instrumental, o controle totalitrio da natureza e a dominao incondicional dos homens.
Esse fenmeno leva morte da razo crtica, por ter sido a razo
asfixiada e narcotizada pelo capitalismo. Adorno e Horkheimer possuem uma viso bastante
pessimista acerca das mudanas sociais, visto que acreditam que o proletariado, classe que
Marx idealizou que um dia viria unir-se e desmobilizar o capitalismo, foi sobrepujado e
absorvido pelo sistema.
Essa forma dicotomizada da racionalidade, em crtica e intrumental,
formulada pela Teoria Crtica, defende um comportamento crtico conflitante com a cincia,
a cultura e a sociedade, capaz de levar o indivduo a conscientizar-se e no aceitar
naturalmente as determinaes da existncia. Apresenta uma proposta de reorganizao da
sociedade que faa superar o que ele chama de crise da razo, criticando assim o Iluminismo. 4 Uma das caractersticas fundamentais da Teoria Crtica, desde suas origens, tem sido sua negativa em considerar o marxismo como um corpo acabado de verdades. Ser crtico significa at mesmo reduzir a validade de categorias dialticas como as de totalidade, por mais necessrias que elas sejam historicamente na contraposio ao empirismo ingnuo (PUCCI, 2003 p. 15). 5 J que nosso objetivo aqui no apresentar o histrico da Escola de Frankfurt, recomendamos ao leitor interessado a leitura do livro: Teoria Crtica: ontem e hoje, da professora Brbara Freitag (vide referncias).
23
Para os filsofos que sustentam essa teoria, a razo o elemento de conformidade e de
manuteno do status quo, e isso os leva, ento, a propor uma reflexo sobre essa mesma
razo.
Horkheimer demonstra que a Teoria Crtica questiona o conservadorismo da
teoria tradicional. Prope, ento, a transformao social em um movimento dialtico, para
fugir da passividade e da aceitao que no levam a questionar os problemas sociais. Ao
contrrio da teoria tradicional, que analisa os dados como fatos isolados na natureza, a teoria
crtica da sociedade [...] tem como objeto os homens como produtores de todas suas formas
histricas de vida. Sendo assim, o autor prossegue citando:
A teoria crtica, que visa a felicidade de todos os indivduos, ao contrrio dos servidores dos Estados autoritrios, no aceita a continuao da misria. A autocontemplao da razo, que constitua o grau mximo de felicidade para a velha filosofia, se transformou, dentro do pensamento mais recente, no conceito materialista da sociedade livre e autodeterminante (HORKHEIMER, 1983, p.158).
A negao dos fins emancipatrios do iluminismo para Adorno e
Horkheimer denunciada, no livro Dialtica do Esclarecimento, publicado em 1947. Para
Freitag (1986, p. 173), o ponto de partida dos autores, nessa obra, o texto de Kant sobre o
esclarecimento. Se, para Kant, a razo um instrumento inato de emancipao do homem
atravs da qual a humanidade traaria seu prprio caminho, sua prpria histria, para esses
tericos ocorre que essa razo kantiana conduziu a um saber tcnico e cientfico que
afundou a humanidade na alienao, na represso e na dominao.
Adorno e Horkheimer, no livro citado, concluem que a modernidade, poca
em que se esperava a plena realizao do processo de esclarecimento, v-se envolta em trevas.
importante ressaltar que a obra escrita no exlio norte-americano. O
exlio dos filsofos se deu em virtude da Segunda Guerra Mundial, pois a Escola de Frankfurt
era financiada por um judeu. Deste modo, pode-se compreender o pessimismo de Adorno e
Horkheimer, j que foram testemunhas visuais dos horrores e do pesadelo do nazismo. Esses
acontecimentos os fazem repudiar a forma com que a racionalidade iluminista fora
conduzida, levando barbrie. A tendncia no apenas ideal, mas tambm prtica,
autodestruio, caracteriza a racionalidade desde o incio e de modo nenhum apenas a fase em
que essa tendncia evidencia-se sem disfarce (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.16).
24
Adorno e Horkheimer (1985, p.20) entendem que os ideais iluministas que
prometiam livrar os homens do medo e investi-los na posio de senhores ruiu e o que
aconteceu na realidade foi o desencantamento do mundo. Isso ocorreu porque o
desenvolvimento da razo, que afastou o homem do misticismo e levou a humanidade ao
desenvolvimento racional da tcnica e da cincia, no tinha os ideais nobres de melhoria de
qualidade de vida que proclamavam.
Esses tericos fazem duras crticas aos filsofos iluministas que enfatizavam
o uso da razo, do conhecimento, do esclarecimento para superar os problemas sociais.
Ressaltam que o saber que poder no conhece nenhuma barreira, nem na escravizao da
criatura, nem na complacncia em face dos senhores do mundo. Para eles o saber est a
servio da economia burguesa, dos empresrios e a tcnica a essncia desse saber, que no
visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o mtodo, a utilizao do
trabalho de outros, o capital (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.20).
Ao buscar o esclarecimento afastando-se da conscincia mtica, o homem
acaba por coisificar a si e a natureza. Os autores denunciam que o progresso, que ocorre
pelo uso da razo instrumental, no levou ao esclarecimento, mas, ps no horizonte da
humanidade, a sua autodestruio. Sendo assim, finalizam o captulo sobre o conceito de
esclarecimento, alertando que o esclarecimento se converte, a servio do presente, na total
mistificao das massas. O esclarecimento converte-se em mito a partir do momento que
reificado, ou seja, torna-se coisa e o pensamento excludo do seu cerne, processo esse que
ocorre quando a humanidade passa a no pensar o prprio esclarecimento (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p.52).
1.3 RAZO COMUNICATIVA EM HABERMAS
Em 1950, aps o exlio, os tericos da Teoria Crtica retornam Alemanha e
do continuidade ao trabalho intelectual da Escola de Frankfurt. Nos primeiros anos da
dcada de sessenta ingressam nessa instituio alguns jovens filsofos que vo somar suas
idias ao pensamento dos que ali j esto. Entre eles encontra-se Jrgen Habermas (1929). A
publicao literria de Habermas bastante profcua, chegando, entre 1970 e 1985, a liderar a
produo terica dos filsofos da Escola de Frankfurt. Este autor, parte das premissas de
Adorno e Horkheimer, porm, supera o pessimismo dos colegas, estabelecendo um novo
25
paradigma de razo: a razo comunicativa. Esse processo ainda est em curso, porquanto
Habermas um filsofo alemo contemporneo ainda vivo, e vem desenvolvendo uma vasta
contribuio literria sobre esse novo paradigma racional (FREITAG, 1986, p.157).
Habermas faz contraponto ao pensamento de Adorno e Horkheimer quando
enfatizam que a razo estaria asfixiada pelo capitalismo. Entende que a promessa de
liberdade e igualdade feita pelos iluministas ainda no se cumpriu, porm, para que ela venha
a acontecer prope:
Comecemos por lanar sobre novos fundamentos toda a nossa compreenso da razo, do ser humano e da sociedade; pede antes de mais nada, que deixemos de lado o paradigma da conscincia e entendamos que a racionalidade no depende diretamente do sujeito, mas da intersubjetividade; que atrelemos, assim, o pensamento a uma lgica de descentralizao em relao ao ego (HABERMAS, 2004 p. VIII).
Ao referir-se ao paradigma da conscincia, Habermas est fazendo uma
crtica ao projeto de racionalidade kantiana e de outros filsofos iluministas. Se, para Kant, a
razo tem sua sede no sujeito epistmico, que conhece o objeto para agir sobre ele, para
Habermas a sede da razo est na organizao intersubjetiva da fala entre os sujeitos sociais,
capazes de comunicao. Isso faz com que a relao entre sujeito e objeto deixe de ser
monolgica e passe a ser dialgica e intersubjetiva, o que podemos observar na citao
abaixo:
Kant concebe a autocompreenso racional dos atores como um saber de si da pessoa, por meio do qual confronta esse conhecimento da primeira pessoa com o conhecimento na terceira pessoa de um observador. Entre ambos existe um desnvel transcedental, de tal maneira que a autocompreenso do sujeito inteligvel no pode ser corrigida fundamentalmente atravs do conhecimento do mundo. Contrariamente a isso, os sujeitos agindo comunicativamente se tratam literalmente como falantes e destinatrios, nos papis da primeira e da segunda pessoas no mesmo nvel do olhar. Contraem uma relao interpessoal, na qual se entendem sobre algo no mundo objetivo e admitem os mesmos referentes mundanos. Nessa posio perfomativa6, diante do pano de fundo de um mundo da vida intersubjetivamente partilhado, fazem simultaneamente, uns para os outros, experincias comunicativas entre si. Compreendem o que o outro diz ou acha. Aprendem das informaes e objees dos oponentes e mostram, com ironia ou silncio, suas concluses sobre asseres paradoxais, influncias, etc (HABERMAS, 2001, p. 52-3).
6 Mais adiante aprofundaremos o que Habermas entende por posio performativa.
26
Dessa forma, Habermas (1998, p. 297) explica que: "O paradigma da
filosofia da conscincia encontra-se esgotado. Sendo assim, os sintomas de esgotamento
devem dissolver-se na transio para o paradigma da compreenso". Razo e verdade s
podem surgir de relaes dialgicas, nas quais os sujeitos interagem.
Habermas (1998, p.297) afirma que o acordo comunicacional proposto,
que se mede pelo reconhecimento intersubjetivo de exigncias de validade, permite a
formao de uma rede de interaes sociais e contextos de mundo da vida7. Para ele, mundo
da vida o lugar das relaes interpessoais, no qual os sujeitos interagem na busca de
consensos. J o mundo do sistema aquele prprio do sistema capitalista no qual as relaes
acontecem de acordo com os interesses monetrios, de indivduos ou pequenos grupos que
buscam o sucesso imediato.
Com suas prprias palavras Habermas assim define mundo da vida:
O lugar transcendental em que falante e ouvinte saem ao encontro; em que podem considerar reciprocamente a pretenso de que suas emisses concordam com o mundo (com o mundo objetivo, com o mundo subjetivo e com o mundo social); e em que podem criticar e exibir os fundamentos dessas pretenses de validez, resolver seus desentendimentos e chegar a um acordo (HABERMAS, 1987 p. 179 - traduo nossa).
Nessa citao v-se que, em Habermas, o mundo da vida engloba a
existncia de trs mundos que se inter-relacionam: o objetivo (o mundo das coisas em si), o
social (no qual surgem as normas) e o subjetivo (que pressupe a individualidade,
personalidade e sentimentos). Desse modo, ao se manifestarem, atravs da razo
comunicativa, os sujeitos integram componentes desses trs mundos, fazem suas asseres e
ficam na expectativa de saber se elas so ou no aceitas pelos outros componentes do mesmo
grupo. Sobre essa questo ele acrescenta:
Falantes e ouvintes empregam o sistema de referncia que constituem os trs mundos como marco de interpretao da ao. No fazem referncia a si, mas a algo em um mundo, porm relativisam sua manifestao contando com a possibilidade de que sua validez seja posta em pauta de juzo por outro ator (HABERMAS, 1987, p.171 - traduo nossa).
No entanto, Habermas, no analisa o mundo da vida e o mundo do sistema
de forma excludente e antagnica, entendendo que esses mundos retroagem e retroalimentam-
7 Expresso primeiramente usada por Husserl. O mundo da vida o horizonte, o pano de fundo, onde se processa a racionalidade comunicativa (DUTRA, 2002. p.155).
27
se constantemente, estando a produo simblica do mundo da vida atrelada a produo
material do mundo do sistema:
Naturalmente, um mundo de vida reproduz-se materialmente sobre os resultados das aes e conseqncias das aces orientados para objectivos, com as quais aqueles que pertencem a esse mundo da vida intervm nesse mundo. Porm, estas aces instrumentais esto cruzadas com a as aces comunicacionais, na medida em que representam a execuo de planos que esto ligados aos planos de outros participantes em interaces sobre definies comuns de situao e processos de comunicao (HABERMAS, 1998, p.296-7).
Outro conceito nuclear no pensamento habermasiano, que entendemos ser
relevante para o entendimento da razo comunicativa, o de interesse. Em Conhecimento e
Interesse Habermas (1983, p. 302) parte da crtica ao cientificismo positivista que busca um
nvel de abstrao liberto de interesses naturais da vida prtica. Nessa linha de pensamento
o mundo aparece objetivamente como um universo de fatos, passvel de descrio, revelado
pela conexo interior fatual sujeita a leis".
Entretanto, Habermas contrrio a tais pressupostos e postula que o
interesse o guia do conhecimento e que ambos possuem conexes mtuas. Entende o
interesse como algo natural da espcie humana, desde que esta precisa se adaptar natureza e
ao mesmo tempo procurar superar as limitaes que essa mesma lhe impe, para que possa
ento evoluir enquanto espcie, na busca da autoconservao. Da sua primeira tese sobre
conhecimento e interesse:
O sujeito transcendental tem seu fundamento na histria natural do gnero humano. [...] o interesse especfico da histria natural, problematizado por aqueles interessados no processo do conhecimento, origina-se ao mesmo tempo da natureza e da ruptura cultural com a mesma. Ao mesmo tempo em que ocorre a recepo afirmao do impulso natural, se d o processo de libertao da coao da natureza. No interesse de autoconservao, na medida em que conserva a aparncia natural, corresponde um sistema social que compensa as deficincias da capacidade orgnica do homem, garantindo-lhe uma existncia histrica ante as ameaas externas da natureza (HABERMAS, 1983, p. 308-9- grifos do autor).
Todavia, a sociedade no se organiza apenas em torno da autoconservao.
O Indivduo, alm de se preservar enquanto espcie, tambm busca estabelecer relaes
sociais. Assim, o interesse, inicialmente individual, precisa caminhar para interesses coletivos.
A sobrevivncia pura e simples carrega em si uma grandeza histrica: seu critrio
28
determinado pela valorizao de vida boa, operada pela mediao da conscincia social.
Nessa linha de pensamento, Habermas (1983, p. 309) elabora sua segunda tese sobre
conhecimento e interesse dizendo: Minha segunda tese sinteticamente define o conhecimento
como instrumento de autoconservao, porm transcendendo a mera autoconservao.
A espcie humana nesse processo de socializao desenvolve trs categorias
de saber: a informao, a interpretao e a anlise. A informao aumenta as possibilidades de
explorao da tcnica. A interpretao orienta a ao. A anlise, por sua vez, faz com que a
conscincia se liberte de poderes j sedimentados. Essas categorias, para Habermas aparecem
no todo social relacionadas a meios do processo de socializao. Esses meios seriam: o
trabalho, a linguagem e o domnio, atravs dos quais:
A espcie humana assegura sua prpria existncia num sistema de trabalho social e de auto-afirmao violenta; [...] herda por mediao da tradio formas de vida, comunica-se por intermdio da linguagem coloquial; assegura a identificao do indivduo em relao s normas grupais, mediante a identificao do Ego. Desta maneira, o interesse guia do conhecimento, determina a funo do Ego no seu processo adaptativo s condies externas de existncia que permeia sua formao no contexto comunicativo da vida social, construindo uma identidade oriunda do conflito entre pretenses impulsivas e a coero do social (HABERMAS, 1983, p. 309).
Essas formulaes levam Habermas a sua terceira tese sobre conhecimento
e interesse, a saber: Os interesses orientadores do conhecimento formam-se por mediao do
trabalho, da linguagem e do domnio.
Nessa altura do texto, Habermas (1983, p. 310) comea a tecer um
raciocnio vinculando interesse e conhecimento emancipao8. Habermas fala de um
interesse emancipatrio atravs da linguagem, medida que o homem, capaz de razo,
comea, ele mesmo, a refletir sobre essa razo. A razo significa, antes de mais nada, querer
a razo. Na auto-reflexo, o conhecimento por amor ao conhecimento aparece
coincidentemente com o interesse na emancipao. O autor elabora sua quarta tese sobre
conhecimento e interesse Conhecimento e interesse identificam-se na fora reflexiva.
Mas, para Habermas, certo que a comunicao atravs da linguagem s
pode ocorrer de maneira plena em uma sociedade emancipada. Uma sociedade que
contribua para a emancipao de seus membros. Entretanto, no processo civilizatrio, essa 8 Diferente de Kant que postula a emancipao atravs do esforo individual na busca pelo esclarecimento, em Habermas a emancipao entendida como um processo que ocorre a medida que os homens pensam, falam, e agem coletivamente de forma racional, libertando-se no s da forma de conceber o mundo a si impostas pela tradio, como das formas de poder hipostasiadas pelas instituies (ARAGO, 1992, p.55).
29
emancipao no facilitada e o dilogo abafado por foras maiores que o reprimem, o que
leva Habermas (1983, p. 310) a elaborar a quinta e ltima tese a respeito do vnculo entre
conhecimento e interesse. Percebemos, no entanto, essa tese como uma proposta, um ensejo:
A unidade do conhecimento com o interesse verifica-se numa dialtica que reconstrua o
elemento reprimido a partir dos traos histricos do dilogo proibido.
Dessa forma, percebemos que Habermas defende que a cincia necessita
no apenas refletir acerca dos interesses determinantes do conhecimento, mas tambm lutar
contra aqueles que renegam a vinculao do conhecimento com o interesse.
Vimos, at aqui, que Habermas, ao enfocar essas teses sobre conhecimento
e interesse, considera que h o interesse de emancipao natural do homem que transgride as
leis da natureza para autoconservar a espcie e tambm o interesse de emancipao em
relao s formas de dominao social. pensando assim que categoriza trs formas de
interesse: o tcnico, o prtico e o emancipatrio (ARAGO, 1997, p. 56).
O interesse tcnico o que leva o homem ao domnio da natureza para dela
dispor, aproveitando de seus recursos e at mesmo tentando recri-la artificialmente, para
retirar dela um maior rendimento, dispondo de menos recursos. O interesse prtico o que
leva os homens a organizar as relaes entre si atravs da normatividade. Esse interesse visa
uma regulao interna, atravs de normas sociais que uma vez aceitas e institucionalizadas
no podem ser desrespeitadas, estando sob pena de punio quem o fizer. Leva ento a
represso que ocorre atravs do poder e da dependncia social (ARAGO, 1997, p. 56).
Por sua vez, o interesse emancipatrio surge quando os sujeitos comeam a
criticar, em coletividade, a forma de poder hipostasiada na sociedade, buscando a liberdade
contra as coeres internas e externas, atravs da razo comunicativa. Esse interesse leva
conscincia crtica, auto-reflexo do chamado interesse prtico e de suas normas. Visa a
interao entre sujeitos sociais, fundamentada na ao racional comunicativa e no apenas na
ao normativa. Adota a racionalidade crtica como critrio, no uma racionalidade qualquer,
mas uma racionalidade libertadora, emancipadora (ARAGO, 1997, p. 59).
At aqui expomos alguns conceitos-chave que Habermas utiliza em sua
teoria. Sabemos, no entanto, que essa breve reflexo no deu conta da totalidade do
pensamento desse autor. Desse modo, buscamos em outros tericos, que escrevem sobre a
racionalidade comunicativa habermasiana, suporte para uma maior compreenso.
Com esse entendimento, vimos em Freitag (1986, p. 112-3) que Habermas
acredita no potencial de racionalidade inerente razo comunicativa, parcialmente
institucionalizada na linguagem cotidiana. Para ele, a razo resulta daquilo que em um
30
contexto social, vivido e compartilhado por atores linguisticamente competentes, pode ser
elaborado como querido e aceito por todos.
J Macedo esclarece que Habermas entende no ter a racionalidade apenas
a ver com o saber, mas tambm, com a forma com que o homem se utiliza desse saber. Ao
discorrer sobre a racionalidade tcnica ou instrumental, e a racionalidade comunicativa,
enfatiza que a racionalidade tcnica, ligada ao controle, trabalha o conhecimento como
elemento neutro e objetivo que permite o domnio do ambiente, por meio da descoberta de
regularidades. Por sua vez:
A racionalidade comunicativa, [...], encara a cincia como um complexo constitudo pelo saber e pelo poder. Sua eficincia medida por um conjunto de condies de validade que deve presidir as interaes de sujeitos sociais, sujeitos que buscam a emancipao. No social, argumenta Habermas, esses dois tipos de racionalidade orientam a razo humana, funcionando como dois plos dialticos que apontam para o comando da sociedade e para a diferenciao da cultura, da sociedade e da personalidade. A racionalidade da mquina, eminentemente tcnica, tambm uma construo e uma necessidade social (MACEDO,1997, p. 44).
No entanto, acontece que no sistema de produo capitalista esses dois
plos, racionalidade tcnica e racionalidade comunicativa, so desestabilizados e a
racionalidade tcnica passa a ser a nica considerada capaz de produzir conhecimento.
Historicamente, o desprezo da comunicao em favor de uma interao mediada por
algoritmos matemticos transformou as relaes humanas em relaes objetivas (MACEDO,
1997, p. 44-5).
Cotrim (2000, p. 226), por sua vez, cita que Habermas ao propor um novo
paradigma racional, fazendo contraponto aos seus colegas Adorno e Horkheimer, entende que
no se trata de estar a razo narcotizada, mas sim de precisar ser colocada em nova base, ou
seja, na base comunicacional. Dessa forma, para ele, a crtica razo feita por Adorno e
Horkheimer perigosa e pode levar ao que chama de irrazo. Ressalta que o potencial para
a racionalizao do mundo ainda no est esgotado, o que faz com que este filsofo seja
apontado por muitos como o ltimo grande racionalista
Habermas discorda tambm da crtica feita pelos seus parceiros
frankfurtianos, quando esses afirmam que a conscincia do proletariado, que viria, segundo
Marx, a romper com o sistema capitalista, estaria narcotizada, perpetuando ento esse sistema.
Na realidade, o filsofo rompe com a teoria marxista em seus pontos fundamentais, tais
como a centralidade do trabalho e a identificao do proletariado como agente de
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transformao social. Vislumbra uma nova forma de ao social que venha a fortalecer as
estruturas, possibilitando, ento, condies de liberdade e no-constrangimento,
imprescindveis ao dilogo (COTRIM, 2000, p. 226).
Sabemos no haver, nestas breves consideraes em torno da razo
comunicativa, um esclarecimento suficiente sobre a totalidade desse conceito. Pensamos,
entretanto, que, como uma primeira aproximao ao assunto, o que foi abordado at aqui
contribuiu para um sucinto, mas necessrio entendimento.
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CAPTULO 2
AGIR COMUNICATIVO E EDUCAO MORAL
Neste captulo empenhamo-nos em apresentar alguns conceitos que
julgamos de grande importncia para um primeiro entendimento sobre a Teoria da Ao
Comunicativa. Buscamos compreender, mesmo que parcialmente, como a tica discursiva
entra no cenrio do pensamento filosfico no final do sculo XX e alguns de seus princpios.
Apresentamos, tambm, brevemente, alguns pressupostos da teoria dos atos de fala. Partindo
da anlise do livro Conscincia moral e agir comunicativo, procuramos aproximar as
anlises de Habermas de uma ao pedaggica que valorize a formao moral.
2.1 APROXIMAES TICA DISCURSIVA E TEORIA DOS ATOS DE FALA
Diante da problemtica exposta no captulo anterior, Herrero (2001) entende
que algumas teorias filosficas, especificamente aquelas que discorrem sobre a tica,
comeam a ser repensadas. Aparece ento a necessidade de reformulao das correntes
ticas, vistas at ento, como tentativa de dar conta das mazelas nas quais o mundo
contemporneo imergiu com a consolidao do capitalismo, sistema que por sua natureza,
acaba por reafirmar a racionalidade instrumental.
As reflexes sobre a tica, tornam-se mais abragentes e aprofundam a
problematizao sobre o desenvolvimento cientfico, em especial, nas reas da tecnologia, da
biologia, entre outras. Esse desenvolvimento apresenta desafios humanidade, sendo
necessrio refletir sobre a responsabilidade em mbito mundial que essa nova situao exige.
Torna-se imperativo, ento, elaborar concepes tericas que conjeturem sobre o
equacionamento dos novos dilemas ticos que surgem. Uma das possibilidades, porm no a
nica, que se apresenta na segunda metade do sculo XX, so as teorias que se apiam no uso
da linguagem, colocando-a como mdium intransponvel de toda reflexo terica e prtica.
Essas teorias executam o que alguns tericos chamam de reviravolta lingstico-pragmtica
no enfrentamento dos problemas filosficos atuais. Comea-se a valorizar a linguagem como
33
forma de mediao entre sujeitos racionais capazes de fala. Nesse bojo surge a tica do
discurso. Essa corrente das discusses sobre a tica na contemporaneidade pensada
primeiramente por K.-O. Apel na dcada de 70. Habermas, por sua vez, apropria-se dessas
idias, porm, faz intensas alteraes nessa teoria, como veremos a seguir (HERRERO, 2001,
p. 163).
Entendemos, juntamente com Cortina e Martnez, que a proposta da tica
do discurso em Habermas busca um procedimento prtico ao moral, podendo ento ser
reconhecida como uma tica formalista procedimental. Partindo dos pressupostos kantianos,
essa concepo afirma que a tarefa da tica no outra que a dimenso universalizvel do
fenmeno moral, dimenso que coincide com as normas do que justo, e no do que bom.
Entre os eticistas adeptos dessa forma de pensar encontram-se, Kohlberg, Apel e Habermas.
Todos eles insistem em que a tica no tem como tarefa a recomendao de contedos
morais concretos, e sim a descoberta de procedimentos que permitam legitimar (e
deslegitimar) normas procedentes da vida cotidiana. Sendo assim, busca-se uma vontade
racional diante do que todos poderiam querer como norma universalizvel, diferentemente,
nesse aspecto, da tica kantiana que tende a convenincias subjetivas. Acolher o ponto de
vista moral, seria ento defender interesses no individuais, mas sim, universalizveis que
podem ser aceitos por todos (CORTINA; MARTNEZ, 2005, p. 88; 110).
A tica do discurso, ainda de acordo com Cortina e Martinez, busca, atravs
do dilogo, defender valores sociais como a liberdade, a justia e a solidariedade. Nessa
concepo, o dilogo visto como um procedimento que respeita a individualidade, porm
busca um relacionamento intersubjetivo, pois, em um dilogo, precisamos contar com
pessoas, mas tambm com a relao que existe entre elas. Nessa perspectiva, atravs do
dilogo, pretende-se questionar a normatizao de uma dada organizao social, tentando
discernir aquelas que so moralmente vlidas e capazes de contribuir com o processo de
humanizao. obvio que no seria qualquer forma de dilogo que alcanaria esse intento,
porque, ao discutir sobre as questes que nos cercam em nosso cotidiano, podemos assumir
atitudes diferenciadas. Podemos dialogar por dialogar, ou seja, sem a menor expectativa de
verificar se desejamos, ou no, chegar a um entendimento sobre determinado assunto. Mas,
podemos, tambm, buscar um maior rigor nesse dilogo, porque o motivo que nos leva a
dialogar realmente nos preocupa e faz com que desejemos verificar se h possibilidades de
entendimento acerca desse motivo. A primeira situao assemelha-se mais a um monlogo,
porm a segunda apresenta o dilogo como uma busca cooperativa da justia e da correo,
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atravs do melhor argumento, sendo essa a atitude que se espera na tica discursiva
(CORTINA; MARTNEZ, 2005, p. 91-2).
Nas palavras de Cortina a tica do discurso :
[...] uma tica racional que, depois da experincia nazista, recusa-se a deixar as questes morais em mos do sadio senso comum do povo, e exige que demos razes para nossas opes morais. Os dirigentes nacional-socialistas recusavam-se a fornecer as razes para seus atos - fundament-los-, apegando-se ao pretexto de que, para legitim-los, bastava o sadio senso comum do povo alemo. Levando-se em conta as atrocidades desencadeadas por semelhante recusa, a tica discursiva exige que se forneam as razes das opes morais, pelo menos daquelas que afetam o mnimo de justia ao qual todo ser humano tem direito (CORTINA, 2003, p. 60-1).
Pensamos que, com a citao acima, se encerra a necessidade de justificar o
porqu do surgimento dessa nova forma para pensar a tica. Habermas, ao reelaborar a tica
do discurso, afirma que uma das idias fundamentais desta o agir orientado para o
entendimento mtuo ou o agir comunicativo. Esse agir pressupe interaes comunicativas.
Para esse filsofo so comunicativas as interaes nas quais as pessoas envolvidas se pem
de acordo para coordenar seus planos de ao, o acordo alcanado em cada caso medindo-se
pelo reconhecimento intersubjetivo das pretenses de validez. O agir comunicativo
pressupe, ento, que os indivduos envolvidos em uma comunicao busquem um
entendimento acerca dos assuntos em volta dos quais gire a discusso, atravs do uso racional
da linguagem (HABERMAS, 2003, p.79).
Segundo Habermas: a linguagem o verdadeiro trao distintivo do ser
humano, pois lhe atribui a capacidade de tornar-se um ser individual, social e cultural,
fornecendo-lhe uma identidade e possibilitando-lhe partilhar de estruturas de conscincia
coletiva. ela que compe a especificidade humana, diferenciando-a dos outros animais.
Alm de que, atravs da utilizao da linguagem enquanto forma de comunicao que busca
um entendimento, os homens assumem um papel duplo; so, ao mesmo tempo, falantes e
atores (ARAGO, 1997, p. 52).
Habermas fundamenta a Teoria da Ao Comunicativa, partindo dos
estudos de Austin sobre os atos de fala. Para este, a linguagem comporta usos diferentes, a
saber: o locucionrio, o perlocucionrio e o ilocucionrio.
Em relao aos atos locunionrios podemos entender que so atos de fala
que tm sentido e referncia definidos, mas so apenas constatativos. Os perlocucionrios
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consistem em obter algum efeito sobre algum pelo fato de se dizer alguma coisa, efeito esse
que podemos exemplificar como ofender, convencer, dissuadir, entre outros. Os atos
perlocucionrios so estratgicos. J, atravs dos atos ilocucinrios, buscamos, ao dizer algo
a algum, um assentimento racional quanto a sua satisfao ou adequao ao que foi dito, ou
seja, buscamos validade para o que falamos. Podem ser exemplificados, como atos de fala que
visem nomeaes, promessas, declaraes, perguntas, entre outros. Os atos ilocucionrios so
pragmticos, ou seja, por meio deles espera-se atingir uma ao atravs do consenso
(DUTRA, 2002, p.121).
Dessa diferenciao entre atos de fala, os que interessaram a Habermas
foram os atos ilocucionrios, posto que pressupem a interao comunicativa. No visam
apenas constatar algo, ou persuadir atravs da fala. Ao adequar a teoria do ato de fala a sua
teoria, Habermas substitui a expresso fora ilocucionria por pretenso de validade.
Na teoria habermasiana, os atos de fala ilocucionrios so classificados em
trs funes especficas: constatativas, regulativas e expressivas.
A funo constatativa a responsvel pela aquisio, transmisso e crtica
do conhecimento cultural, pois, quando os participantes de uma comunicao buscam
alcanar um entendimento sobre algo referente ao mundo objetivo, o fazem dentro de uma
especfica tradio cultural que usam, transmitem e criticam (ARAGO, 1997, p. 50).
A funo regulativa responsvel pela coordenao de aes via
pretenses de validade reconhecidas intersubjetivamente. Isso ocorre, por conseguinte,
quando esto em uma situao de comunicao racional, na qual os participantes procuram
chegar a acordos sobre normas vigentes, confiam que pertencem a um grupo social e, atravs
da ao comunicativa, fortalecem sua integrao nesse grupo.
A funo expressiva, por fim, a que possibilita a formao da
personalidade, da individualidade dos sujeitos envolvidos em uma situao de interao, j
que nessa situao internalizam as orientaes de valores do grupo social ao qual pertencem,
generalizando essas orientaes para a ao (Arago, 1997, p. 50).
Para Habermas, o ato de fala, na ao comunicativa, pede quatro pretenses
de validade, a saber: pretenso de inteligibilidade, de verdade, de sinceridade e de retitude:
- a pretenso de compreensibilidade, de inteligibilidade, da mensagem contida nos proferimentos comunicativos. - a pretenso de verdade do contedo proposicional da mensagem, isto , dos proferimentos cognitivos referentes ao mundo objetivo, que realizamos atravs de atos de fala constatativos.
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- a pretenso de correo, de justeza do contedo normativo e valorativo da mensagem, isto , dos proferimentos referentes ao mundo social, que se do atravs do ato de fala regulativos e valorativos. - a pretenso de sinceridade e autenticidade manifestada em proferimentos referentes ao mundo subjetivo e que se do atravs de atos de fala expressivos (SIEBENEICHLER, 1994. p. 97).
Como a linguagem ocupa um papel central na compreenso da ao
comunicativa habermasiana, essa teoria conhecida como lingstico-pragmtica, porquanto
atravs do uso da linguagem que ela pretende promover aes coletivas.
A estrutura ilocucionria da linguagem permite que os sujeitos capazes de
fala, no sejam apenas falantes, mas tambm sujeitos sociais, chegando ento ao conceito
habermasiano de ao comunicativa.
Entendemos em Habermas que agir comunicativamente no significa apenas
uma comunicao entre dois ou mais sujeitos; esse agir caracteriza-se principalmente pelo
objetivo de visar o consenso, o entendimento, atravs do reconhecimento intersubjetivo e da
busca pela solidariedade. Em suas palavras:
A ao comunicativa serve tradio e a renovao do saber cultural; sob o aspecto de coordenao da ao, serve integrao social e criao da solidariedade; e sob o aspecto da socializao, finalmente serve formao das identidades pessoais (1987. p. 196 - traduo nossa).
Como contraponto ao agir comunicativo, Habermas (1987, p.164) fala de
um agir estratgico, que ocorre no mundo do sistema, segundo o qual o indivduo age
orientado pelo sucesso imediato, estrategicamente de forma egocntrica, sem interagir. O
outro visto como um obstculo a ser transposto. Nesse agir o grau de cooperao e
estabilidade resulta ento das faixas de interesses dos participantes.
Alm dos conceitos apresentados at ento, o princpio D" (discurso)
fundamental ao entendimento dos princpios bsicos da tica do discurso. Na definio usada
comumente o termo discurso define uma explanao oral unilateral, na qual um falante expe
suas idias a um pblico que participa apenas como ouvinte. Assim o dicionrio Bueno (2003,
p. 220) define o discurso como trabalho literrio recitado perante um pblico. Todavia para
Habermas o significado de Discurso (D) vai alm, pois introduz os aspectos intersubjetivos e
lgico argumentativos, a saber:
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[...] o aspecto intersubjetivo (que serve para classific-lo como uma espcie de gnero de `comunicao`) e o aspecto lgico-argumentativo (que serve para determin-lo como o caso especfico da fundamentao de pretenses de validez problematizadas) (HABERMAS, 2003, p. 9).
Discurso (D), em Habermas, um termo tcnico que consiste na
comunicao [...] destinado a fundamentar as pretenses de validade das opinies e normas
em que se baseia implicitamente a outra forma de comunicao, fala ou discurso, que chama
de `agir comunicativo ou interao (HABERMAS, 2003, p. 9).
A tica discursiva habermasiana pode ser entendida como uma reformulao
da tica universalista kantiana. Para Kant, em seu Imperativo Categrico, uma norma poderia
ser considerada lcita a partir do momento em que pudesse ser desejada como lei universal
pelo sujeito que a elaborasse. Para exemplificar, se algum entende que pode roubar, em uma
situao extrema de fome, deve entender, ento, que toda a pessoa em situao de fome
poder faz-lo. Entretanto, se Kant em seu Imperativo Categrico parte do sujeito em si,
Habermas prope que esse imperativo seja submetido a uma situao intersubjetiva de
comunicao. Em suas prprias palavras:
Nessa perspectiva, tambm o imperativo categrico precisa ser reformulado no sentido proposto: `Ao invs de prescrever a todos os demais como vlida uma mxima que eu quero que seja uma lei universal, tenho que apresentar minha mxima a todos os demais para um exame discursivo de sua pretenso de universalidade. O peso desloca daquilo que cada (indivduo) pode querer sem contradio como lei universal para aquilo que todos querem de comum acordo reconhecer como uma lei universal (HABERMAS, 2003, p. 88).
Em relao ao princpio de universalizao (U), outro conceito nuclear
nessa teoria, Habermas (2003, p. 86) assinala ser um princpio que fora cada um, no crculo
dos concernidos, a adotar, quando da ponderao dos interesses, a perspectiva de todos os
outros. O princpio de universalizao (U) visa a explanao argumentativa de uma ao
coletiva para assim prevenir a deformao de perspectiva na interpretao dos respectivos
interesses prprios pelos demais participante de um dilogo. Embasado na adoo ideal de
papis de Mead, Habermas vai concordar que segundo o princpio de universalizao (U)
toda norma valida deve satisfazer a condio:
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[...] que as conseqncias e efeitos colaterais, que (previsivelmente) resultarem para a satisfao dos interesses de cada um dos indivduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos (e preferidos a todas as conseqncias das possibilidades de alternativas e conhecidas de regrarem) (Habermas, 2003, - grifos do autor).
Habermas acrescenta, entretanto, que esse princpio (U) deve ser erigido em
uma situao de fala sem coao. Entende que uma situao de fala ideal aquela em que
os sujeitos estejam em situao de horizontalidade, sem coao, e em que possam expressar
livremente suas opinies acerca dos mais diversos assuntos. Essa livre expresso diminui,
segundo Habermas (2003, p. 87), os conflitos de ao, j que ao entrarem numa
argumentao moral, os participantes prosseguem seu agir comunicativo numa atitude
reflexiva com objetivo de restaurar um consenso perturbado.
Ainda em relao ao princpio de universalidade (U), Habermas (2003,
p.88) compreende que, apesar de universais, as necessidades vo ser interpretadas luz de
fatores culturais e precisam ser revistas constantemente. As normas sociais, depois de
erigidas, no so entendidas como imutveis, podendo variar de acordo com as necessidades
coletivas.
Todavia, Habermas aconselha que devemos tomar um certo cuidado com o
princpio de universalidade porque, por detrs da fachada de uma validade categrica pode
estar oculto e fortificado um interesse unicamente capaz de se impor. Muitas atrocidades
vemos acontecer em nome de um falso princpio de universalidade por grupos que no
respeitam as histrias de vidas particulares e individuais. Em Habermas, o universalismo vai
aparecer como o universalismo do igual respeito por todos e da solidariedade para com tudo
que comporta a marca da humanidade. Dessa forma alude:
[...] que ningum pode ser excludo em nome do universalismo moral nem as classes subprivilegiadas nem as naes exploradas, nem as mulheres domesticadas nem as minorias marginalizadas. Quem, em nome do universalismo, exclui o Outro, que tem o direito de permanecer um estranho em relao aos outros, atraioa os seus prprios princpios (HABERMAS, 1991, p. 115 - grifos do autor).
Duas suposies, segundo Habermas so necessrias para desenvolver uma
tica do discurso, a saber:
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(a) que as pretenses de validez normativas tenham um sentido cognitivo e possam ser tratadas como pretenses de verdade; (b) que a fundamentao de normas e mandamentos exija a efetuao de um Discurso real e no seja possvel monologicamente, sob a forma de uma argumentao hipottica desenvolvida em pensamento (HABERMAS, 2003, p. 88).
Portanto, na tica do discurso, pressupondo a intersubjetividade, os
concernidos em um dilogo desenvolvem uma linha de ao coletiva, coordenam as
intenes individuais e chegam, ento, a uma deciso comum sobre essa linha de ao.
Mas, para essa ao ser validada e reconhecida por todos, necessrio que ela seja fruto de
argumentaes espontneas, em virtude das quais, todas as pessoas possam assentir ou no
nessa pretenso de ao (HABERMAS, 2003, p. 92).
Habermas refere que R. Alexy parte de suas anlises a respeito da tica do
discurso e introduz:
1- lcito a todo sujeito capaz de falar e agir participar de Discursos. 2- lcito a qualquer um problematizar qualquer assero. 3- lcito a qualquer um introduzir qualquer assero no Discurso. 4- lcito a qualquer um manifestar suas atitudes, desejos e necessidades. 5- No lcito impedir falante algum, por uma coero exercida dentro ou fora do Discurso, de valer-se de seus direitos estabelecidos em 1 e 2 (HABERMAS, 2003, p.112).
Embora aceite como vlidas as regras elaboradas por R. Alexy, Habermas
entende que nem sempre essas regras permearo as situaes de Discursos. Muitas vezes, o
que ocorrer so aproximaes a essas regras. Isso se d porque uma situao de Discurso lida
com muitas variveis, diferente das regras estabelecidas para uma partida de xadrez, na qual
as aes podem ser presumidas antecipadamente. Para Habermas (2003, p. 114) as regras do
Discurso so apenas a representao de pressuposies pragmticas, feitas tacitamente e
sabidas intuitivamente, de uma prtica discursiva privilegiada.
As regras do Discurso significam apenas que os atores envolvidos em uma
argumentao tm em mente situaes comunicativas consideradas ideais, as quais, porm,
devem presumir que o que poder ocorrer na realidade uma aproximao suficiente , talvez,
para os fins pretendidos. Habermas (2003, p.115) alerta:
Ora, visto que os Discursos esto submetidos s limitaes do espao e do tempo e tm lugar em contextos sociais; visto que os participantes de argumentaes no so caracteres inteligveis e tambm so movidos por outros motivos alm do nico aceitvel, que o da busca cooperativa da
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verdade; visto que os temas e as contribuies tm que ser ordenados, as relevncias asseguradas, as competncias a