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Populaes Indgenas, Povos Tradicionais e Preservao na
Amaznia1
Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. Barbosa de Almeida
2001
Publicado em Biodiversidade na Amaznia Brasileira. Avaliao e Aes
Prioritrias para a Conservao, Uso Sustentvel e Repartio de
Benefcios., orgs. Joo P. R. Capobianco et al., So Paulo, Instituto
Socioambiental e Estao Liberdade, 2001, pp. 184-193. Traduo revista
do artigo de Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. B. de Almeida,
Indigenous People, Traditional People, and Conservation in the
Amazon, Daedalus. Journal of the American Academy of Arts and
Sciences, vol. 129, n. 2, 2000, pp. 315-338.
Numa surpreendente mudana de rumo ideolgico, as populaes
tradicionais da Amaznia, que at recentemente eram consideradas como
entraves ao 'desenvolvimento', ou na melhor das hipteses como
candidatas a ele, foram promovidas linha de frente da modernidade.
Essa mudana ocorreu basicamente atravs da associao entre essas
populaes e os conhecimentos tradicionais e a conservao ambiental.
Ao mesmo tempo, as comunidades indgenas, antes desprezadas ou
perseguidas pelos vizinhos de fronteira, transformaram-se de
repente em modelos para os demais povos amaznicos despossudos.
1 Esse artigo foi publicado em Biodiversidade na Amaznia
Brasileira. Avaliao e Aes Prioritrias
para a Conservao, Uso Sustentvel e Repartio de Benefcios, orgs
Joo P., R. Capobianco et al, So Paulo, Instituto Socioambiental e
Estao Liberdade, 2001, pp. 184-193. a traduo, com pequenas
corrrees, do artigo de Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. B. de
Almeida, Indigenous People, Traditional People, and Conservation in
the Amazon, Daedalus. Journal of the American Academy of Arts and
Sciences, vol. 129, n. 2, 2000, pp. 315-338.
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Vimo-nos na obrigao de escrever esse artigo em boa parte como
resposta a dois mal-entendidos correntes. O primeiro consiste em
questionar os fundamentos do compromisso das populaes tradicionais
para com a conservao: ser que esse compromisso uma fraude? Ou, para
formular a questo de forma mais branda, ser que no se trata de uma
caso de projeo ocidental de preocupaes ecolgicas sobre um "bom
selvagem ecolgico" construdo ad hoc? O segundo mal-entendido,
obviamente relacionado ao primeiro, afirma que as organizaes
no-governamentais e as ideologias "estrangeiras" so responsveis
pela nova conexo entre a conservao da biodiversidade e os povos
tradicionais. Este mal entendido causou estranhas parcerias entre
militares e a esquerda de pases pobres. Para refutar essas
concepes, vamos dedicar algum tempo a esclarecer o contexto
histrico no qual ocorreu esse processo e os papis respectivos de
distintos agentes na construo dessa conexo: as pessoas comuns,
agentes urbanos, e "estrangeiros". Finalmente, iremos falar do
significado que essa conexo assumiu localmente, de sua importncia
para o Brasil e a comunidade internacional, e de algumas condies
necessrias para o seu xito.
QUEM SO AS POPULAES TRADICIONAIS?
O emprego do termo "populaes tradicionais" propositalmente
abrangente. Contudo, essa abrangncia no deve ser confundida com
confuso conceitual.
Definir as populaes tradicionais pela adeso tradio seria
contraditrio com os conhecimentos antropolgicos atuais. Defini-las
como populaes que tm baixo impacto sobre o o ambiente, para depois
afirmar que so ecolgicamente sustentveis, seria mera tautologia. Se
as definirmos como populaes que esto fora esfera do mercado, vai
ser difcil encontr-las hoje em dia. verdade nos textos acadmicos e
jurdicos costuma-se descrever categorias por meio das propriedades
ou caractersticas dos elementos que as constituem. Mas as
categorias sociais
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tambm podem ser descritas "em extenso" -- isto , pela simples
enumerao dos elementos que as compem. Por enquanto, achamos melhor
definir as "populaes tradicionais" de maneira "extensional", isto ,
enumerando seus "membros" atuais, ou os candidatos a "membros".
Esta abordagem est de acordo com a nfase que daremos criao e
apropriao de categorias. E o que mais imporante, aponta para a
formao de sujeitos atravs de novas prticas.
Isto no to novo assim. Termos como "ndio", indgena", "tribal",
"nativo", aborgene" e "negro" so todos criaes da metrpole, so
frutos do encontro colonial. Contudo, embora tenham sido genricos e
artificiais ao serem criados, esses termos foram sendo aos poucos
habitados por gente de carne e osso. o que acontece, mas no
necessariamente, quando ganham status administrativo ou jurdico. No
deixa de ser notvel o fato de que com muita frequncia os povos que
comearam habitando essas categorias pela fora tenham sido capazes
de apossar-se delas, convertendo termos carregados de preconceito
em bandeiras mobilizadoras. Nesse caso a deportao para um territrio
conceitual estrangeiro terminou resultando na ocupao e defesa desse
territrio. a partir desse momento que a categoria que comeou por
ser definida "em extenso" comea a ser redefinida analiticamente a
partir de propriedades.
No momento, a expresso "populaes tradicionais" ainda est nas
fases iniciais de sua vida. Trata-se de uma categoria pouco
habitada, mas j conta com alguns membros e com candidatos entrada.
Para comear, tem existncia administrativa: o "Centro Nacional de
Populaes Tradicionais", um rgo do IBAMA. Inicialmente, a categoria
congregava seringueiros e castanheiros da da Amaznia. Desde ento
expandiu-se, abrangendo outras grupos que vo de coletores de
berbigo de Santa Catarina a babaueiras do sul do Maranho e
quilombolas do Tocantins. O que todos esses grupos possuem em comum
o fato de que tiveram pelo menos em parte uma histria de baixo
impacto ambiental e de que tm no presente interesses em
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manter ou em recuperar o controle sobre o territrio que
exploram. Mas acima de tudo, esto dispostos a uma negociao: em
troca do controle sobre o territrio, comprometem-se a prestar
servios ambientais1.
COMO OS POVOS (PEQUENOS) FAZEM HISTRIA
Nos ltimos vinte anos, os povos indgenas na Amaznia avanaram
muito. Na dcada de setenta, governadores no se pejavam de
referir-se a eles como "entraves ao progresso". Polticos da direita
e militares colocavam-nos sob suspeio, achando que a nica explicao
para; o interesse internacional dirigido a eles era a cobia. Nesse
perodo, lamentar o "fim do ndio" era lugar-comum. Uns atribuam esse
"fim do ndi" marcha inexorvel do desenvolvimento, enquanto alguns
intelectuais de esquerda atribuam-no no menos inexorvel marcha da
histria. A marcha acelerada desses batalhes no permitia
sobreviventes. O rudo encobria causas mais imediatas do sofrimento,
embora menos impressionantes e inexorveis do que os exrcitos da
histria: a corrupo em muitos nveis, a cooptao por parte de
madeireiros e mineradoras, a expulso de camponeses que se viam
forados a intrusar as terras indgenas, e sobretudo as polticas
governamentais que produziam projetos de infra-estrutura e
incentivos agropecurios. Analogamente, o que iria alterar o curso
dos acontecimentos seria a mobilizao poltica de uma ampla gama de
atores brasileiros e internacionais, e no uma histria sem
agentes.
Em fins dos anos setenta, as questes indgenas transformaram-se
em importante preocupao nacional.2 Na Constituio de 1934, e em
todas as
2 A nica mobilizao nacional comparvel em torno das terras
indgenas ocorreu na primeira dcada
do sculo vinte, resultando na criao do SPI em 1910. Os exemplos
da Colnia so menos claros, mas pode-se, com certo anacronismo,
incluir as lutas dos jesutas do sculo XVIII contra a escravido
indgena entre os movimentos de grande escala. A criao do Parque
Nacional do Xingu em 1961, embora tenha tinha muito apoio nas
cidades, foi uma experincia isolada, a ponto de chegar-se a dizer
que se tratava de uma vitrina. Os massacres, expulses e outras
formas de violncia no eram
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constituies brasileiras promulgadas desde ento (1937, 1946, 1967
e 1969), as terras indgenas e suas riquezas eram destinadas ao
usufruto coletivo e exclusivo de grupos etnicos determinados. A
propriedade da terra da Unio, e as terras indgenas no podem ser
vendidas nem alienadas. Por outro lado, no Cdigo Civil de 1916, os
povos indgenas eram agrupados junto com os maiores de 16 e menos de
21 anos como "relativamente capazes". Tratava-se de um remendo de
ltima hora, j que Cdigo Civil no tratava das questes indgenas.
"Pessoas com capacidade relativa", por serem fceis de enganar,
gozam de proteo especial em assuntos comerciais. Embora o conceito
de tutela sobre populaes indgenas parea no mnimo derrogatrio e
anacrnico, na prtica deu-lhes uma proteo jurdica eficaz. Qualquer
negcio feito em prejuzo de indgenas e sem assistncia jurdica pode
ser questionado e anulado na justia. Alm disso, como no havia caso
de ttulo fundirio coletivo na legislao brasileira, o status jurdico
da tutela costumava ser compreendido como a base para a
excepcionalidade dos direitos fundirios indgenas -- o que um erro,
j que a ocupao prvia ( isto , a antigidade histrica) que fundamenta
os dos direitos indgenas terra.
Em 1978, um ministro props um decreto a proposta de emancipao
dos chamados "ndios aculturados". A proposta significava que
receberiam ttulos individuais de propriedade, que poderiam colocar
no mercado. Em outras palavras, a terra indgena poderia ser
vendida. Os efeitos de uma medida como essa so fceis de avaliar,
havendo precedentes na histria do Brasil. As leis de 1850 e 1854
resultaram em trs dcadas de liquidao dos ttulos indgenas (M.
Carneiro da Cunha, 1993).3
Em 1978, a ditadura militar manietava todas as manifestaes
polticas. Todavia, as questes indgenas no eram consideradas
polticas. A
normalmente tratados como temas nacionais, e sim como lamentveis
atos de violncia localizada. No se percebia que havia condies
estruturais para essas formas de violncia.
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insatisfao reprimida, para surpresa de muitos, encontrou nessas
questes um canal para expressar-se. A proibio de protestos polticos
pode ter sido a razo pela qual o chamado projeto de emancipao, tema
bastante distante para a maioria dos brasileiros urbanos, canalizou
um protesto de tamanha amplitude. O projeto de emancipao foi
finalmente descartado, embora resuscitando desde sob diferentes
disfarces. A campanha contra a emancipao das terras indgenas
marcaria porm o incio de uma dcada de intensa mobilizao em torno
das lutas indgenas. Foi fundada3 a primeira organizao indgena de
carter nacional, bem como um nmero significativo de Comisses
Pr-ndio, formadas basicamente por voluntrios, sobretudo antroplogos
e advogados. O CIMI (Conselho Indigenista Missionrio), integrante
da influente CNBB (Confederao Nacional dos Bispos do Brasil),
fortaleceu-se com a incluso de advogados militantes. A Associao
Brasileira de Antropologia, que naquela poca tinha cerca de
seiscentos membros, tambm tornou-se bastante na questo dos direitos
indgenas. As principais instituies que que apoiavam este tipo de
trabalho eram a ICCO, uma organizao holandesa de igrejas
protestantes, a Fundao Ford, sediada no Rio de Janeiro e, em grau
menor, algumas ONGs alems e a Oxfam Britnica. Todos esses agentes
iniciaram aes judiciais, a maioria delas vitoriosas, e campanhas
para a demarcao e proteo das terras indgenas.
No obstante os resultados desiguais dessas campanhas, elas
tiveram consequncias importantes. Em primeiro lugar, ajudaram a
delinear quais eram as principais ameaas enfrentadas pelas populaes
indgenas. Alm disso, geraram uma coalizo baseada na confiana mtua
que resultou de estudos, metas e campanhas em comum. Sublinharemos
apenas dois exemplos.
3 A UNI (Unio das Naes Indgenas), que iria desempenhar um
importante papel nos anos oitenta, a
despeito de suas origens urbanas, ou exatamente por causa delas.
Essa organizao seria sucedida no fim da dcada de oitenta e nos anos
noventa por organizaes indgenas de base tnica ou regional.
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O primeiro exemplo foi a aliana entre antroplogos e procuradores
federais, construda em torno da necessidade que tinha o governo de
se defender contra as aes de indenizao, em geral fraudulentas,
movidas por supostos proprietrios de terras indgenas. Depois de
perder ao aps ao na justia, e insatisfeitos com a assistncia que
recebiam da da FUNAI (Fundao Nacional do ndio), a Procuradoria
Geral da Repblica solicitou a ajuda da Associao Brasileira de
Antropologia para ajud-la na investigao dos fatos. Os resultados
positivos cimentaram um relacionamento duradouro de confiana mtua
que daria frutos na Constituio de 1988.
O outro exemplo foi o apoio da Associao Brasileira de Gelogos,
proibio da prospeco mineral em indgenas, visando proteger as
reservas minerais brasileiras contra um poderosssimo lobby de
mineradoras multinacionais. Esse apoio foi construdo em torno de um
projeto colaborativo desenvolvido pelo Centro Ecumnico de
Documentao Indgena (CEDI), com a finalidade de mapear a superposio
de terras indgenas e de reas solicitadas para prospeo mineral. O
Projeto Radambrasil, levantamento por radar realizado na Amaznia na
dcada de 70, havia suscitado grandes expectativas de riquezas
minerais, causando uma corrida por concesses para pesquisa e
minerao. Como na legislao a propriedade da terra no coincide com a
propriedade do subsolo, sendo o subsolo propriedade federal,
travou-se uma acirrada batalha para se decidir se podia ou no haver
pesquisa e minerao em subsolo indgena.
Em 1987, quando a Assemblia Constituinte comeou a debater a nova
constituio, estabeleceu-se uma eficiente frente de lderes indgenas,
antroplogos, advogados e gelogos. Havia uma definio clara dos
direitos indgenas que deveriam ser assegurados na nova Constituio,
e havia uma quase unanimidade no programa para a constituinte, com
a exceo parcial do CIMI.
No surpreende que as questes mais controversas girassem em torno
da permisso para a construo de hidroeltricas e de acesso a
terras
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indgenas por parte de no-ndios. Os interesses das empresas
privadas eram muito fortes no que diz respeito minerao. Enquanto
estava sendo discutido um anteprojeto de constituio no qual se
proiba qualquer tipo de acesso ao subsolo indgena, orquestrou-se
uma enorme campanha de imprensa contra os direitos indgenas. Poucos
dias antes do relator submeter o novo texto, cinco dos principais
jornais em cinco capitais fizeram cobertura de pgina inteira
durante uma semana, sobre uma suposta conspirao internacional para
manter elevados os preos do estanho, barrando para isso a extrao de
cassiterita das terras indgenas e impedindo assim que o estanho
amaznico chegasse ao mercado. Outra bateria de acusaes foi dirigida
contra o CIMI, que insistia no uso do termo "naes" para as
sociedade indgenas -- um termo bem arcaico muito encontrado em
documentos histricos at o final do sculo dezenove, quando foi
substitudo pela palavra "tribo". Naes, no jargo contemporneo,
poderia significar uma reivindicao de autonomia. A assinatura de um
abaixo-assinado por austracos em favor dos direitos indgenas foi
usada como prova da conspirao estrangeira que se escondia por detrs
dos direitos indgenas. Essas e outras acusaes igualmente criativas,
junto com a publicao de documentos forjados, mantiveram a
temperatura alta at a divulgao da nova minuta da constituio. No
surpreende que nesta verso os direitos indgenas tivessem sido
drasticamente mutilados. A recuperao da maioria destes direitos no
texto definitivo da constituio foi uma faanha poltica cujo mrito
cabe macia presena indgena, sobretudo de Kaiaps, habilidade de
negociao do falecido Senador Severo Gomes, e eficincia de um grande
nmero de ONGs.
Afinal os direitos indgenas foram includos em em uma seo prpria
da Constituio de 1988. A definio de terra indgena no Artigo 231
explicitamente incluiu no somente os espaos de habitao e as reas
cultivadas, mas tambm o territrio demandado para a preservao dos
recursos ambientais necessrios ao bem-estar dos povos indgenas,
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como da terra necessria para sua reproduo fsica e cultural, em
conformidade com seus hbitos, costumes e tradies."
Os direitos das terras indgenas foram declarados como sendo
"originrios", um termo jurdico que implica precedncia, e que limita
o papel do estado a reconhecer esses direitos, mas no a outorg-los.
Esta formulao tem a virtude de ligar os direitos territoriais s
suas razes histricas (e no a um estgio cultural ou a um situao de
tutela). Reconheceu-se a personalidade jurdica dos grupos e das
associaes indgenas, em especial sua capacidade de abrir processos
em nome prprio, independentemente da opinio do tutor, incumbindo-se
Procuradoria da Repblica a responsabilidade de de assisti-los
perante os tribunais. Todas essas medidas constituam instrumentos
bsicos para a garantia de seus direitos.5
Ao longo desse processo, o xito das reivindicaes fundirias
indgenas ganhou destaque, com o resultado inesperado e paradoxal de
que outros setores despossudos da sociedade, como os quilombolas e,
como veremos, os seringueiros, comeassem a emul-los.
SERINGUEIROS E AMBIENTALISTAS
No final da dcada de 1970. O governo do Estado havia publicado
em 1975 anncios de jornal convidando os interessados a "plantar no
Acre e exportar para o Pacfico", e a decadncia econmica dos antigos
seringais baseados no sistema de aviamento criava oportunidades
para compra de terra barata. O fato de que essas terras no tinham
ttulos legais fazia com que a primeira tarefa dos compradores de
terra fosse a de expulsar os seringueiros posseiros. Reagindo
invaso de fazendeiros e especuladores que viam nas terras baratas
do Acre uma nova fronteira para enriquecimento fcil, criou-se a
partir de 1977 uma rede de sindicatos rurais que, aliados ao da
Igreja, canalizaram a resistncia dos seringueiros contra a expulso.
Essa luta contra a derrubada das florestas tomou a forma dos
"empates",
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liderados originalmente pelo presidente do STR de Brasilia, o
sindicalista Wilson Pinheiro. Esse lder de aes de base foi
assassinado no incio da dcada de 1980, mas Chico Mendes, no
sindicato do municpio vizinho de Xapuri, continuou e ampliou a
ttica dos empates. Por essa poca, o trabalho dos sindicatos era
apoiado no apenas pela Igreja (em sua diocese do Rio Purus, e no
pela Diocese do Rio Juru) mas por novas organizaes de apoio s lutas
indgenas e de seringueiros.
Em 1984, vrios sindicatos amaznicos propuseram, em reunio
nacional da CONTAG, uma soluo de reforma agrria para seringueiros
que previa mdulos de terra de 600 hectares, chocando muitos de seus
companheiros que no entendiam a necessidade de tanta floresta para
uma famlia s. E a partir de 1985, Chico Mendes resolveu agir
audaciosamente para tirar o movimento dos empates da situao de
defensiva em que havia sido colocado. Uma das aes consistiu em
chamar os moradores das cidades para participar dos empates: assim,
em 1986, jovem a professora e sindicalista Marina Silva, ao lado de
dois agrnomos, um antroplogo e um fotgrafo, participaram ao lado de
uma centena de seringueiros de mais uma operao de empate, com a
diferena de que agora o movimento era claramente voltado, como as
aes de desobedincia civil organizadas por Gandhi na ndia e por
Luther King nos EUA, para a nao como um todo. O empate de 1986
terminou sob a emergente liderana de Marina Silva e o comando de
Chico Mendes com a ocupao do IBDF e a ateno da imprensa para as
irregularidades envolvidas nas autorizaes para derrubar a mata.
Outra ao de Chico Mendes consistiu em propor a Mary Allegretti
uma ao de impacto pblico em apoio aos seringueiros. Em resposta,
Mary organizou em Braslia, com apoio de entidades no-governamentais
e do governo, um surpreendente encontro em que 120 lideranas
sindicais de toda a Amaznia, com perfil de seringueiros, se
defrontaram diretamente com tcnicos governamentais responsveis pela
poltica da borracha, com
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deputados e ministros, com intelectuais e especialistas. Ao
final do Encontro, eles haviam criado uma entidade igualmente
estranha e no-planejada: o Conselho Nacional dos Seringueiros. E,
coisa igualmente significativa, haviam produzido uma carta de
princpios que inclua, em sua seo agrria, a reivindicao de criao de
"Reservas Extrativistas" para seringueiros, sem diviso em lotes, e
com mdulos de no mnimo 300 hectares.
Embora os seringueiros estivessem h anos reivindicando uma
reforma agrria que permitisse a continuidade de suas atividades
extrativas, era a primeira vez que a palavra Reserva era utilizada,
numa transposio direta da proteo associada s terras indgenas. Nos
anos que se seguiram, os seringueiros perceberam que a conexo entre
os empates contra o desmatamento e o programa de conservar as
florestas em forma de Reservas Extrativistas tinha o potencial de
atrair aliados poderosos.
Os seringueiros que eram poucos anos antes uma categoria
condenada ao rpido desaparecimento assumiram ao final dos anos
oitenta uma posio de vanguarda em mobilizaes ecolgicas. No final de
1988, emergiu uma aliana para a defesa das florestas e de seus
habitantes, com o nome de "Aliana dos Povos da Floresta",
abrangendo os seringueiros e grupos indgenas atravs das duas
organizaes nacionais que haviam se formado nos anos anteriores: o
Conselho Nacional dos Seringueiros e a Unio das Naes Indgenas. A
reunio de Altamira, organizada pelos Kaiaps contra o projeto da
represa do Xingu, tinha uma conotao ambiental explcita. No final
dos anos 1980, a conexo ambientalista tornara-se inevitvel. Em
contraste com o modelo de Yellowstone que expulsava tribos indgenas
para criar um ambiente americano "intocado", reivindicava-se aqui
que as comunidades locais, que tinham protegido o ambiente e que
baseavam sua vida nele, no fossem vtimas das preocupaes
ambientais.
Ao contrrio, para que o meio ambiente fosse protegido elas
deveriam responsabilizar-se pela gesto e controle dos recursos
naturais nos ambientes em que viviam. O que era novo era o papel
ativo atribudo s
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comunidades locais. No incio de 1992, a conexo explcita entre
povos indgenas e e conservao ganhou dimenso internacional com a
criao da Aliana Internacional dos Povos Tribais e Indgenas das
Florestas Tropicais, da qual uma das organizaes fundadoras era a
COICA (Confederao das Organizaes Indgenas da Bacia Amaznica). A
Conveno para Diversidade Biolgica e a Agenda 21, aprovadas durante
a Rio 92, reconhecia explicitamente o papel relevante desempenhado
pelas comunidades indgenas e locais. Caberia Colmbia, em 1996,
implementar em grande escala a idia de tornar as populaes indgenas
oficialmente responsveis por uma grande extenso de florestas
tropicais. No Brasil, como veremos abaixo, a mesma idia foi
aplicada seis anos antes do que na Colmbia, numa escala menor mas
nem por isso menos importante, nas Reservas Extrativistas. Foram
aqui os seringueiros, e no os grupos indgenas, os primeiros
protagonistas da experincia.
TERRA INDGENA E UNIDADES DE CONSERVAO
Calcula-se que a populao indgena no Brasil esteja em torno de
310.000 indivduos, dos quais 280.000 vivem em terras indgenas.
Embora essa populao seja relativamente pequena, riqussima em
diversidade social. H 206 sociedade indgenas, 160 das quais esto na
Amaznia, e aproximadamente 195 lnguas diferentes. Estima-se que
haja ainda 50 grupos indgenas arredios e sem contato contato
regular com o mundo exterior.
Com exceo do curto e violento do ciclo da borracha que durou de
1870 a 1910, a maior parte da Amaznia afastada da calha principal
do rio Amazonas permaneceu relativamente indiferente ocupao
europia. Em consequncia, a maioria dos grupos indgenas que
sobreviveram e a maior parte das terras indgenas que conseguiram
conservar esto na Amaznia.
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Assim que esto na Amaznia quase 99 por cento das Terras Indgenas
brasileiras.
A extenso das terras indgenas em conjunto impressiona. Os ndios
tm direito constitucional a quase 12 por cento do territrio
brasileiro, com terras distribudas em 574 reas diferentes e
abrangendo 20 por cento da Amaznia brasileira. As unidades de
conservao na Amaznia onde permitida a presena humana, as unidades
de conservao de uso direto, cobrem outros 8,4 % da regio.
Na dcada de 1980, a extenso das terras indgenas no Brasil
parecia exagerada: "muita terra para pouco ndio". Este enfoque
mudou. A matria de capa de Veja de 20 de junho de 1999 falava dos
3.600 ndios xinguanos que "preservam um paraso ecolgico" do tamanho
da Blgica. O ponto era que um pequeno nmero de ndios podia cuidar
bem de um vasto territrio. A idia de que as pessoas mais
qualificadas para fazer conservao de um territrio so as pessoas que
nele vivem sustentavelmente tambm a premissa da criao das Reservas
Extrativas.
claro que nem todas as reas de conservao podem ser administradas
pelos habitantes preexistentes nelas. Mas tambm claro que no Brasil
uma poltica ecolgica slida e vivel tem que incluir as populaes
locais. Alm disso, expulsar as pessoas das reas de preservao sem
oferecer-lhes meios alternativos de subsistncia uma rota segura
para desastres.
OS POVOS TRADICIONAIS SO MESMOS CONSERVACIONISTAS?
Os inimigos da participao das populaes tradicionais na conservao
argumentam (1) nem todas as sociedades tradicionais so
conservacionistas e (2) mesmo as que o so hoje podem mudar para
pior quando tiverem acesso ao mercado.
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Durante muito tempo, existiu entre antroplogos,
conservacionistas, governantes e as prprias populaes tradicionais
aquilo que um antroplogo chamou, em outro contexto, de
"mal-entendido til". Esse mal-entendido gira em torno do que se
pode chamar de essencializao do relacionamento entre as populaes
tradicionais e o meio ambiente. Um conjunto de idias que
representam os grupos indgenas como sendo naturalmente
conservacionistas resultou no que tem sido chamado de "o mito do
bom selvagem ecolgico""46 bvio que no existem conservacionistas
naturais, , porm, mesmo que se traduza "natural" por "cultural", a
questo permanece: as populaes tradicionais podem ser descritas como
"conservacionistas culturais"?.
O ambientalismo pode designar um conjunto de prticas, e pode
referir-se a uma ideologia. H portanto trs situaes diferentes que
tendem a ser condundidas quando se utiliza um nico termo para
designar todas as trs.
Primeiro, pode-se ter a ideologia sem a prtica efetiva trata-se
aqui do caso de apoio verbal conservao. Em seguida, vem o caso em
que esto presentes tanto as prticas sustentveis como a cosmologia.
Muitas sociedades indgenas da Amaznia defendem uma espcie de
ideologia lavoisieriana na qual nada se perde e tudo se recicla,
inclusive a vida e as almas. Essas sociedades tm uma ideologia de
explorao limitada dos recursos naturais, onde os seres humanos so
os mantenedores do equilbrio do universo que inclui tanto a
natureza como a sobrenatureza. Valores, tabus de alimentao e de
caa, e sanes institucionais ou sobrenaturais, lhes fornecem os
instrumentos para agir em consonncia com esta ideologia. Tais
sociedade podem facilmente se enquadrar na categoria de
conservacionistas culturais. O exemplo dos Yagua peruanos vem logo
mente.5
4 Kent Redford e A. Stearman 1991, 1993; A. M. Stearman
1994.
5 Chaumeil 1983.
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Finalmente, pode-se ter as prticas culturais sem a ideologia.6
Neste caso, podemos pensar em populaes que, embora sem uma
ideologia explicitamente conservacionista, seguem regras culturais
para o uso dos recursos naturais que, dada a densidade populacional
e o territrio em que se aplicam, so sustentveis. Vale observar que,
para conservar recursos, uma sociedade no necessita evitar
completamente a predao. Basta que a mantenha sob limites. Se uma
sociedade aprova a matana de um bando de macacos, inclusive fmeas e
prole, e se esse massacre, embora repugnante, no tem altera o
estoque da populao, ento a sociedade no est infringindo as prticas
de conservao. O que se pode perguntar se os hbitos em questo so
compatveis com o uso sustentvel, e no se eles so moralmente
errados. Podemos objetar caa esportiva em nossa sociedade; o fato
que associaes norte-americanas cuja origem so organizaes de
caadores, como a Federao da Vida Silvestre (Wildlife Federation)
esto tendo uma crescente preocupao com a conservao ambiental, com
resultados positivos. Os grupos indgenas poderiam, da mesma
maneira, conservar e gerir o ambiente em que vivem, com
criatividade e competncia7. Contudo, isso no decorre
necessariamente de uma cosmologia de equilbrio da natureza, e pode
resultar antes de consideraes ligadas ao desejo de manter um
estoque de recursos.
Grupos indgenas e mesmo alguns grupos migrantes como os
seringueiros de fato protegeram e talvez tenham at enriquecido a
biodiversidade nas florestas neotropicais. As florestas amaznicas
so dominadas por espcies que controlam o acesso luz solar. Grupos
humanos, ao abrir pequenas clareiras na floresta, criam
oportunidades para
6 N. Gonzales 1992.
7 Bale faz uma reviso pormenorizada das evidncias de que as
sociedades amaznicas enriquecem os
recursos naturais, sejam eles rios, solos, animais ou
diversidade botnica.W. Bale 1989, W. Balee e A. Gentry 1989, A.
Anderson 1991, H. Kaplan e K. Kopischke 1992 etc.
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que espcies oprimidas tenham uma janela de acesso luz solar --
como quando cai uma grande rvore.89
O segundo argumento prope que, embora as sociedades tradicionais
possam ter explorado o ambiente de forma sustentvel no passado, as
populaes de fronteira com as quais interagem iro influenci-las com
estratgias mopes de uso dos recursos. Na ausncia de instituies
adequadas e pouca informao sobre oportunidades alternativas, a
anomia iria dissolver moralmente os grupos sociais, medida em que
jovens com esprito empresarial entrassem em conflito com os antigos
costumes e com os valores de reciprocidade.
Segundo essa linha de argumentao, embora a "cultura tradicional"
tenha promovido a conservao no passado, as necessidades induzidas
pela articulao com a economia de mercado iro levar inevitavelmente
a mudanas culturais e superexplorao dos recursos naturais. De fato,
com certeza haver mudanas, mas no necessariamente superexplorao.
Pois o que a situao equilibrada anterior ao contato tambm implica
que, dadas certas condies estruturais, as populaes tradicionais
podem desempenhar um papel importante na conservao.
O que este cenrio deixa de reconhecer que a situao mudou, e com
ela a validade dos antigos paradigmas. As populaes tradicionais nem
esto mais fora da economia central nem esto mais simplesmente na
periferia do sistema mundial. As populaes tradicionais e suas
organizaes no tratam apenas com fazendeiros, madeireiros e
garimpeiros. Tornaram-se parceiros de instituies centrais como as
Naes Unidas, o Banco Mundial e as poderosas ONGs do primeiro
mundo.
Tampouco o mercado onde hoje atuam as populaes tradicionais o
mesmo de ontem. At recentemente, as sociedades indgenas, para
obter
8 Bale 1994:119-123.
-
17
renda monetria, precisavam de mercadorias de primeira gerao:
matrias-primas como a borracha, castanha-do-par, minrios e madeira.
Pularam a a segunda gerao de mercadorias com valor agregado
industrial, e mal passaram pelos servios ou mercadorias de terceira
gerao. E comeam a participar da economia da informao -- as
mercadorias de quarta gerao -- atravs do valor agregadp ao
conhecimento indgena e local.9.10 E entraram no mercado emergente
da de "valores da existncia", tais como a biodiversidade e as
paisagens naturais. Em 1994, havia compradores que pagavam por um
certificado de um metro quadrado de floresta na Amrica Central,
sabendo que nunca veriam esse metro quadrado.
COMO QUE A CONSERVAO ADQUIRE SENTIDO LOCAL? UM ESTUDO DE
CASO
Uma dificuldade no chamado envolvimento de comunidades locais em
projetos de conservao que via de regra primeiro esses projetos so
elaborados por algum em posio de poder, e s depois vem a fase de
"envolver" grupos locais neles. Mas mesmo nos casos em que a origem
de projetos conservacionistas so iniciativas de grupos locais,
resta a dificuldade de ajustar os planos de ao em diferentes
esferas, de conseguir recursos externos, de obter a capacidade
tcnica necessria. No que segue, narraremos sumariamente o processo
de combinao entre conservao e reforma agrria que resultou na inveno
das Reservas Extrativistas. Ao fazer isso entraremos em detalhes na
aparncia minsculos, para evidenciar o papel desempenhado pela
iniciativa local e tambm por universidades e organizaes
no-governamentais e governamentais, brasileiras e estrangeiras.
Em 23 de janeiro de 1990 foi criada a Reserva Extrativista do
Alto Juru, atravs do do decreto nmero 98.863. Era a primeira
unidade de
9 Cunningham 1991, G.Nijar 1996, St.Brush 1993, M. Carneiro da
Cunha et alii 1998 and 1999.
-
18
conservao desse tipo, um territrio de meio milho de hectares que
passaria do controle de patres para a condio jurdica de terra da
unio destinada ao usufruto exclusivo de moradores, atravs de
contrato de concesso, e cuja administrao poderia ser por lei
realizada atravs de convnios entre governo e as associaes
representativas locais.
Essa conquista foi o resultado de uma articulao de organizaes e
pessoas em diferentes nveis, incluindo militantes das delegacias
sindicais da floresta, lideranas do Conselho Nacional de
Seringueiros (sediado na capital do Acre), pesquisadores e
assessores, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico, a
Procuradoria Geral da Repblica e algumas ONGs brasileiras e
estrangeiras. E foi tambm o resultado de acontecimentos inesperados
e de conexes contingentes, de um efeito do "desenvolvimento
desigual e combinado" que colocou na linha de frente do
ambientalismo um dos lugares mais remotos e isolados do pas, onde a
luta dos seringueiros no se dava contra os novos fazendeiros e sim
contra os patres de barraces. 11
Nos anos anteriores, a idia das Reservas Extrativistas havia se
difundido no Brasil e no estrangeiro com sucesso, associando-se s
idias de programas sustentveis baseados nas comunidades locais.10
Quando a palavra "reserva" veio a pblico em 1985, lida por Chico
Mendes na declarao que encerrou o Encontro Nacional de Seringueiros
realizado em Braslia, ela no tinha um significado preciso. O que
ele indicava, conforme a delegao de Rondnia que o introduziu no
texto, era que as terras de seringueiros deveriam ter a mesma
proteo que as reservas indgenas.
O termo s veio a ganhar um significado mais especfico dezembro
de 1986 na zona rural do municpio de Brasilia, Acre, numa paisagem
de castanheiras sobreviventes em uma paisagem devastada. Nessa
reunio de trabalho que inclua os membros do Conselho Nacional dos
Seringueiros, e
10 M. Alegretti 1990, Schwartzmann 1989.
-
19
um pequeno grupo de assessores, um dos temas era o estatuto
fundirio das Reservas Extrativistas. A condio expressa no documento
de Braslia dizia apenas que as terras no podiam ser "divididas em
lotes", devendo-se respeitar o sistema tradicional das colocaes.
Uma antroploga com experincia na FUNAI explicou a situao jurdica
das terras indgenas e outras alternativas fundirias. Lderes
seringueiros socialistas inclinavam-se para o sistema das terras
indgenas, porque era o nico que impedia por completo qualquer
possibilidade de reprivatizao da floresta atravs da venda da terra.
Assim, aps deliberar a portas fechadas, sem interferncia da
assessoria, o Conselho optou pela soluo de "propriedade da unio" e
"usufruto (coletivo) exclusivo da terra" por seringueiros.
Outro tema importante dessa reunio de Brasilia foi a questo
econmica. At ento, todas as lideranas sindicais dos seringueiros,
inclusive Chico Mendes, estavam convencidas de que a produo da
borracha amaznica tinha uma importncia fundamental para a economia
nacional. Essa crena era aparentemente confirmada pela importncia
da atividade extrativa na economia do Estado do Acre. Uma exposio
realizada por um dos assessores resumiu alguns fatos bsicos, dentre
eles o fato de que a borracha natural amaznica fornecia apenas uma
pequena parcela da borracha utilizada pela indstria nacional, com
preos protegidos pelo governo j que era mais barato para as
empresas importar do que comprar no pas. Mesmo que a populao dos
seringais nativos fosse apoiado pelo governo, a produo total da
Amaznia provavelmente no passaria das 40.000 toneladas que havia
atingido no pico do ciclo da borracha, ainda muito aqum do volume
de matria-prima demandado pela indstria nacional, e um volume quase
insignificante no mercado mundial. Alm do mais, naquela ocasio,
1986, comeavam a ser desmantelados os mecanismos de proteo aos
preos e de subsdios aos patres seringalistas. Um dos lderes
presentes, exatamente aquele que defendera a soluo coletivista para
as Reservas, e que havia perguntado antes o que era "ecologia",
quebrou o
-
20
silncia dizendo que se no queriam borracha, pelo menos havia
quem quisesse a ecologia. E isso eles sabiam fazer.
Ao longo de 1987, a conexo entre reforma agrria de seringueiros
e a questo ambiental foi ampliada na forma de uma aliana entre
seringueiros em ambientalista11. Mas a essa altura as Reservas
Extrativistas eram parte de um programa agrrio, e no de um programa
ambiental, e as primeiras iniciativas legais dirigiam-se para o
INCRA, e no para o IBAMA. Antes de 1988, de fato, poucas pessoas,
como Mary Alegretti, cogitavam da possibilidade das Reservas
Extrativistas serem institudas como reas de conservao. Para os
seringueiros, a questo de fundo era ainda agrria e sindical.
Em outubro de 1989, o Partido dos Trabalhadores perdeu as eleies
presidenciais no segundo turno, com a vitria de Collor sobre Lula.
Em vista da base poltica de direita do recm eleito presidente,
esmoreceu a esperana por uma reforma agrria em nvel federal, alis j
seriamente abalada desde a derrota sofrida pelo programa agrrio da
esquerda em 1985. Mas havia uma janela aberta: se as reservas
extrativistas fossem decretadas como reas de conservao, o
procedimento de desapropriao no precisaria enfrentar todas as
dificuldades encontradas no mbito do INCRA. Assim, logo aps as
eleies de outubro, o Conselho Nacional dos Seringueiros, baseado no
caso especfico da Reserva Extrativista do Alto Juru, com meio milho
de hectares completamente fora dos palnos do INCRA, deu o sinal
verde para o encaminhamento de uma soluo no mbito do IBAMA,. Mas
depois que a Reserva Extrativista de Juru foi decretada em 23 de
janeiro de 1990, com uma vitria dos seringueiros daquela remota
regio contra os patres liderados por Orleir Cameli, outros trs
projetos foram preparados e submetidos em regime de urgncia,
seguindo o mesmo modelo. Esses trs projetos, no Acre (Reserva
Extrativista Chico Mendes),
11 Mendes 1989, S. Hecht e Cockburn 1989, Shoumatoff 1991.
-
21
em Rondnia e no Amap, foram aprovados na noite do ltimo dia do
governo Sarney, em 15 de maro de 1990, aps uma demorada sabatina
com militares na SADEM.
A aliana conservacionista foi assim uma estratgia. E criar as
Reservas Extrativistas como unidades de conservao foi uma escolha
ttica. Dizer que a aliana conservacionista foi uma estratgia, porm,
no quer dizer que ela fosse uma mentira, quer em substncia, quer em
projeto. Quanto ao projeto, ele ainda est sendo traduzido para o
plano local. Quanto substncia, os seringueiros de fato estavam
protegendo a biodiversidade. No alto Juru, como j dito, a borracha
era explorada havia mais de 120 anos, e a rea comprovou-se um hot
spot de diversidade biolgica, com 549 espcies de aves, 103 tipos de
anfbios e 1.536 espcies de borboletas.12
verdade que, como o monsieur Jourdain que falava prosa e no
sabia, os seringueiros conservavam a biodiversidade sem saber. Os
seringueiros pensavam que estavam produzindo borracha, e no
biodiversidade. A borracha tangvel e individualizada. No obstante
as oscilaes de preo, tinha um valor relativamente estvel em
comparao com o poder de compra da moeda. Quando a inflao devastava
o pas inteiro, e os salrios no fim do ms valiam menos da metade do
que no comeo do mesmo ms, os seringueiros conseguiam medir o valor
de seu trabalho na borracha, tanto para trocas entre eles mesmos,
como para compras externas. Se algum quisesse contratar os servios
de um seringueiro como diarista, ouviria um preo de uma diria
expresso como o valor de 10 kg de borracha. Em comparao com o resto
do pas, essa diria era alta. Isso no significa que todo seringueiro
produzisse 10 kg de borracha por dia todos os dias. Um seringueiro
mdio explorava duas estradas de seringa e cada rvore era sangrada
duas vezes por semana, no mximo durante oito meses. Com duas
estradas, trabalharia quatro dias por semana,
12 K. Brown Jr. e A. V. Freitas, no prelo.
-
22
usando o resto para caar no inverno e pescar na estao seca. Alm
do mais, 10 kgs de borracha por dia no eram a produtividade de toda
a regio, e sim um padro das reas mais produtivas. Como diria, porm,
esses 10 kgs representavam dignidade e independncia: o que um homem
podia ganhar num dia se ele quisesse, cuja dimenso monetria era o
que os economistas chamam de custo de oportunidade do trabalho (os
raros empresrios que tentaram estabelecer plantaes de seringueiras
no alto Juru logo descobriram que um dos problemas principais era
achar trabalho). A casa de um seringueiro depende simultneamente da
extrao de borracha (para conseguir dinheiro), da agricultura de
coivara (para obter a base alimentar que a farinha), da criao de
uma pequena criao de ovelhas, porcos ou algumas vacas (como poupana
para o futuro), e da carne obtida com a caa e a pesca. Tambm tem
importncia a coleta sazonal de frutos das palmeiras e alguns outros
itens alimentares, bem como materiais de construo, remdios e
txicos. Mesmo quando no esto fazendo borracha, os seringueiros esto
longe de estarem desempregados.
Sabe-se que as plantaes de seringueiras no prosperam na Amaznia,
principalmente por causa do mal-das-folhas -- pelo menos se
plantadas com a densidade das plantaes asiticas. As seringueiras
permanecem saudveis sob a condio de estarem dispersas pela
floresta. Uma estrada de seringa consiste de cerca de 120 rvores do
gnero Hevea. Uma casa de seringueiro utiliza em mdia duas estradas
e s vezes trs, e a rea total cobrir no primeiro caso pelo menos 300
ha, ou 3 km2. Essa uma rea mnima, mas se inclumos toda a floresta,
inclusive as zonas que no so atravessadas por estradas de seringa,
mas so habitadas pelas caas, na Reserva Extrativista do Alto Juru
as casas ocupam uma rea mdia de 500 hectares ou 5 km2. Esse fato --
a baixa densidade natural das prprias seringueiras na floresta
virgem -- explica a baixa densidade humana nos seringais, por volta
de 1,2 pessoas por quilmetro quadrado (uma famlia com 6 pessoas por
5 km2). Essa densidade compatvel com a conservao da floresta. Nessa
rea total, a extenso desmatada para os pequenos roados
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23
dos seringueiros (mas incluindo aqui os pastos da pequenas
fazendas margem do rioJuru) mal chegam a 1%.
Como seria de esperar, a traduo local do projeto de conservao
variava de acordo com as situaes e planos. Enquanto no leste
acreano os compradores "paulistas" derrubavam a floresta e
enfrentavam os empates dos seringueiros, no oeste acreano ainda
prevalecia nos anos oitenta o antigo sistema dos seringais. Algumas
empresas paulistas haviam comprado a terra, mas nao para uso
imediata, e sim como investimento especulativo, espera da
pavimentao da estrada BR-364. Enquanto isso no vinha, arrendavam a
floresta para os patres locais como Orleir Cameli, que por sua vez
sub-arrendavam a outros patres comerciantes. Em cada boca de um rio
importante estabelecia-se um depsito ou barraco de mercadorias
fornecidas a crdito. O mesmo barraco era onde o candidato a
seringueiro registrava-se como "titular" de uma parelha de
estradas, sob a condio de pagar 33 kgs de borracha anuais por cada.
Um chefe de famlia era assim por um lado arrendatrio de estradas de
seringa junto ao patro, e por outro lado fregus devedor de
mercadorias junto ao mesmo patro.
O importante para o patro era manter o monoplio sobre o comrcio.
Os patres procuravam controlar o fluxo de borracha, para evitar que
seringueiros endividados (a grande maioria) vendesse borracha para
regates e marreteiros, o que sempre ocorria em alguma medida. Esse
contrabando era motivo de expulso de seringueiros de suas colocaes,
com uso de policiais chamados da cidade para esse fim.
Assim, os seringueiros do Juru, em contraste com os seringueiros
do leste acreano, eram considerados cativos. Os seringueiros do
vale do Acre, a leste, abandonados pelos antigos patres que haviam
vendido seus ttulos aos recm-chegados fazendeiros, eram libertos,
podiam vender a quem quisessem. Na prtica, era impossvel controlar
pessoas espalhadas por um grande territrio de floresta. Durante os
anos oitenta, os patres do Juru que eram mais bem sucedidos
economicamente eram aqueles que ofreciam
-
24
mercadorias abundantes em seus barraces, graas a fartos
financiamentos subsidiados pelo Banco do Brasil. O valor de um
patro era medido pelo tamanho de sua dvida. E o de um seringueiro
tambm.
Os latifundirios acreanos que eram tambm os monopolistas
comerciais tinham uma base legal mnima para suas pretensas
propriedades. Nos anos oitenta, quando havia algum ttulo legal, ele
cobria uma frao mnima da terra, em torno de 10% quando muito. A
renda de 33 kgs de ha por estrada de seringa, e no pela terra em
si, era uma renda pr-capitalista. Sendo fixa e em espcie, no
dependia da produo efetiva ou potencial das estradas, nem dos preos
vigentes. Mas era representava o reconhecimento por parte dos
seringueiros de que o patro era "dono das estradas", e legitimava
assim o status de proprietrios de que gozavam os patres, seu animus
domini. A batalha dos seringueiros do alto Juru no era contra
fazendeiros, e sim contra uma situao humilhante de servido. O
programa bsico das primeiras reunies sindicais era a recusa a pagar
a renda, e o protesto contra a violncia usada para proibir o livre
comrcio. As primeiras escaramuas dessa luta, bem antes do projeto
de Reserva Extrativista, foram as excees ao pagamento da renda
(caso dos seringueiros que abriam suas estradas, ou de velhos), e
depois a luta contra o pagamento de toda renda. 15
A rebelio contra o pagamento da renda e contra a violncia do
monoplio explodiu de vez em 1988, depois de uma reunio com 700
seringueiros na pequena cidade de Cruzeiro do Sul, capital do oeste
acreano. Durante esse mesmo ano, haviam comeado as reunies em que a
proposta de uma Reserva Extrativista comeou a ser discutida.
Seguindo-se ao assassinato de Chico Mendes no final de 1988, no
incio de 1989 foi fundada no rio Tejo uma associao de seringueiros
para gerir uma cooperativa com capital de giro, concedido pelo
BNDES. Isso significa um desafio direto ao monoplio patronal, junto
recusa a pagar a renda. Vencendo aes judiciais de interdito
patrocinadas pela UDR, conflitos violentos, prises e ameaas, por
volta de maio de 1989 uma procisso de
-
25
barcos da "cooperativa" entrou triunfalmente no rio Tejo, no que
viria a se tornar a Reserva Extrativista, carregada de mercadorias,
numa carga apotetica e simblica que simbolizava o fim de uma era.16
Essa primeira tentativa de criar um sistema de comercializao e
abastecimento cooperativista descapitalizou-se aps dois ou trs anos
de funcionamento, e uma das razes que quase ningum entendia de
administrao, muito menos em um ambiente de altssima inflao. Outro
problema que muitos seringueiros no pagaram suas dvidas, em meio a
uma rede de boatos patronais que diziam que "o dinheiro do governo,
no precisa pagar".
Mas a importncia da iniciativa era que, aps o primeiro ano de
funcionamento da Associao, foi criada a Reserva Extrativista do
Alto Juru, em 23 de janeiro de 1990, sob jurisdio do IBAMA. Era uma
soluo a um problema fundirio e social (entre os quais os indcios da
"escravido por dvidas" em seringal arrendado por Orleir Cameli),
mas era tambm uma soluo a um problema de conservao, apoiada em
pareceres de peritos e relatrios de bilogos.
Em contraste com os empates contra a derrubada das rvores em
Xapuri, no Juru as mobilizaes no eram abertamente ecolgicas --
exceto pelo fato de que os delegados sindicais antecipavam o incio
iminente da explorao de mogno ao estilo praticado por Orleir
Cameli, e denunciavam o desleixo com as estradas de seringa. Mas
aps a criao da Reserva, e ao lado da atividade cooperativista,
comeou uma atividade de construo de novas instituies em torno da
Associao dos Seringueiros e Agricultores, a comear pelo Plano de
Utilizao elaborado e aprovado em assemblia no final de 1991.
Iniciaram-se projetos de sade e sobretudo um projeto que envolvia
pesquisa, assessoria e formao de pessoal, com patrocnio de
entidades que iam da McArthur Foundation FAPESP e ao IBAMA, e a
participao de vrias universidades do pas -- com a meta de
demonstrar que em condies adequadas era possvel que populaes locais
gerenciassem uma rea de conservao. Essas condies incluem
direitos
-
26
legais bem definidos, qualidade de vida aceitvel, instituies
democrticas no plano local, acesso a recursos tecnolgicos e
cientficos. O projeto apoiou a Associao em muitas atividades, desde
a realizao de cadastros, mapas e projetos, at a intermediao junto a
organismos nacionais e internacionais. Numa fase seguinte, o prprio
IBAMA iniciou a canalizar recursos dos pases europeus (projeto
PPG-7) para a rea, como uma das experincias "piloto" de
conservao.
O impacto dessas polticas sobre todos os aspectos da vida no
alto Juru foi notvel, mas no surpreende que tenha sido bem
diferente do esperado. Um exemplo que o povo do Juru desenvolveu
sua prpria verso da conservao ambiental. Enquanto os jovens tendiam
a entrar na arena poltica atravs da Associao e depois dos cargos
locais, os homens mais maduros e respeitados constituram um quadro
de "fiscais de base", cuja linha de conduta seguia o modelo dos
velhos "mateiros" dos seringais. Os mateiros eram trabalhadores
especializados que fiscalizavam o estado das estradas de seringa e
tinham autoridade para impor sanes (tais como interditar estradas)
em caso de corte mal feito e que ameaava a vida das rvores. Os
novos "fiscais de base", com contraste com os velhos mateiros, no
tinham autoridade para impor punies, e reclamaram muito disso, at
receberem o status de "fiscais colaboradores" com uma autoridade
limitada para realizar autos de infrao.
Com ou sem autoridade formal, os fiscais de base conduziram sua
misso com um intenso zelo. As principais infraes eram relativas
caa. Toda e qualquer forma de atividade de caa era proibida sob o
cdigo florestal com penas draconianas, como se sabe; mas localmente
essa legislao severa era traduzida basicamente como uma poltica de
equidade social. Assim, no Plano de Utilizao aprovado em assemblia
aps muito debate, foi proibida no apenas a caada comercial (e havia
um pequeno mercado local para a carne de caa no que era ento a Vila
Thaumaturgo, logo depois transformada em capital municipal), os
seringueiros proibiram a
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27
"caada com cachorros". H dois tipos de cachorros na rea: os
cachorros "p-duro" e os caros "cachorros paulistas". Ningum sabe
com certeza se esses cachorros mestios vieram mesmo de So Paulo, ou
se o nome vem de suas capacidades predatrias exageradas, mas em
todo caso os "paulistas" so cachorros que perseguem a caa grande
com muita persistncia, depois de localiz-la sem desviar a ateno --
ao contrrio dos pequenos cachorros "p-duro" que vo atrs de qualquer
animal cujo rastro encontram. O problema com os cachorros
paulistas, segundo o raciocnio do Juru, que eles assustam a caa,
"quando no matam, espantam", e tornam a caa de animais maiores
(veados, porcos silvestres) quase impossvel para quem no os possui.
Havia ento um conflito local em torno do acesso igual caa, e os
seringueiros decidiram igualar a todos por baixo: nada de
cachorros. Essa proibio tornou-se a principal bandeira do
conservacionismo local. No ter cachorros, no comeo os paulistas e
depois todo e qualquer cachorro, tornou-se o sinal exterior de
adeso ao projeto da Reserva, talvez at mais do que comprar na
cooperativa e no nos patres que continuavam a atuar como
comerciatnes itinerantes.
H uma dissonncia importante que tem a ver com a prpria noo de
produzir e manter a biodiversidade. Como mencionamos acima, o que
os seringueiros pensavam estar produzindo era primeiro o seu
sustento, e para isso a borracha destinada ao mercado. Em relao a
tudo que est na floresta, a regra geral era a limitao, a absteno
superexplorao, o compartilhamento social, as precaues mgicas e os
pactos de vrios tipos entabulados com mes e protetores do que
podemos chamar de domnios reinos, tais como a me-da-seringueira, a
me da caa e assim por diante. A agricultura, por outro lado, no tem
me. So as pessoas, pensa-se, que controlam aqui todo o processo. H
assim uma radical separao entre o que explorado na natureza e o que
controlado por homens e mulheres, uma aguda disjuno entre o
domesticado e o selvagem. Pode-se perceber isso, por exemplo, no
fato de que no existe categoria correspondente ao que chamamos de
"plantas": a palavra "planta" existe, claro, mas refere-se
-
28
apenas ao que chamaramos de plantas cultivadas, um significado
que parece alis evidente para quem sabe que "planta" vem de
"plantar". E como as espcies silvestres no so plantadas, como
cham-las de "plantas"? Na mata h sim paus, palheiras, cips,
enviras.
Outra pista na mesma direo a distino entre brabo e manso. No uso
regional, brabo se traduz aproximadamente por "selvagem, silvestre,
no-civilizado ou inculto", por oposio a domesticado. Em termos mais
gerais, pode referir-se ao contraste entre criaturas que fogem do
homem e as que no tem medo dele. No sentido mais restrito de
no-domesticado ou inculto, a palavra brabo aplicada aos
recm-chegados inexperientes com o trabalho e a sobrevivncia na
floresta: na Segunda Guerra Mundial, os soldados da borracha eram
chamados de "brabos", ou "selvagens", o que no deixa de ser um
tanto surpreendente. Eram deixados na floresta com vveres e
insrues, s vezes com a orientao de seringueiros mais experientes, a
fim de serem "amansados".
A oposio entre o brabo e o domesticado pervasiva e radical. "De
tudo nesse mundo tem o brabo e tem o manso: tem a anta e tem a
vaca, tem o veado e tem o cabrito, tem o quatipuru e tem o rato,
tem a nambu e tem a galinha. At com gente tem os mansos e tem os
brabos, que so os cabocos" (seu Lico, fiscal de base).
Produzir a biodiversidade, produzir a natureza, pois um oxmoro,
uma contradio em termos (locais). Mas justamente isso que os
recursos do G-7 esto financiando. Como que isso se deveria traduzir
em termos de polticas? Uma resposta econmica direta seria pagar
diretamente aos seringueiros por aquilo em que o mercado mundial
est realmente interessado hoje em dia, que a biodiversidade. Mas
isso vai contra a percepo local. A biodiversidade um subproduto de
um modo de vida, o equivalente do que economistas chamam de
externalidade positiva. As externalidades so produtos que resultam
de uma atividade do produtor e que so "consumidos' por outros
livremente, como a fumaa de uma fbrica
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29
que inalada pelo vizinho (externalidade negativa) ou a segurana
da rua que trazida por uma casa bem protegida (externalidade
positiva). O mercado ignora externalidades. Mas a biodiversidade e
os servios (e desservios) ambientais comeam a ser levados em
considerao, e seus benefcios comeam a ser tratados como algo a ser
remunerado. Isso consequncia, alis, de uma noo ampliada do que o
sistema como um todo. Se os servios ambientais forem pagos
diretamente na Reserva, isso inverte o que figura e o que fundo: o
que era um subproduto, uma consequncia no planejada de um modo de
vida, tornar-se-ia o prprio produto.
Por outro lado, o IBAMA e outros rgos concentraram seus esforos
no desenvolvimento dos chamados produtos florestais sustentveis, e
esperam que as Reservas sejam economicamente viveis com base nesses
produtos, sem incluir em sua contabilidade os servios de conservao.
O problema poderia ser resolvido por meio de uma combinao
criteriosa de produtos florestais de boa qualidade, como fonte de
renda monetria para as famlias, e um fundo que remunerasse
globalmente a diversidade biolgica proporcionando benefcios
coletivos relacionados ao bem-estar da populao, bem como recursos
para financiar as organizaes coletivas locais e projetos
sustentveis. Deve-se lembrar que at agora, com base na idia
naturalizada de povos da floresta que so essencialmente
conservacionistas, no se reservam fundos permanentes para os custos
de governo local na floresta, apesar dos altssimos custos de viagem
para todas as lideranas que moram nos altos rios.
Essas tendncias comeam a acontecer. A conservao foi inicialmente
uma arma poltica em uma luta pela liberdade e por direitos
fundirios. Hoje, os recursos para a conservao esto sendo utilizados
para conseguir motores de canoa, barcos, escolas, instalaes de
sade. A conservao est se tornando parte de projetos locais e sua
importncia est crescendo.
Revisitando os povos tradicionais
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30
Comeamos com uma definio em extenso e dissemos que viria depois
uma definio analtica. Do que vimos, j podemos dar alguns passos
nessa direo e afirmar que populaes tradicionais so grupos que
conquistaram ou esto lutando para conquistas (atravs de meios
prticos e simblicos) uma identidade pblica que inclui algumas, no
necessariamente todas, as seguintes caractersticas: o uso de
tcnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de
organizao social, a presena de instituies com legitimidade para
fazer cumprir suas leis; liderana local e, por fim, traos culturais
que so seletivamente reafirmados e reelaborados.
Portanto, embora seja tautolgico dizer que "povos tradicionais"
tm um baixo impacto destrutivo sobre o ambiente, no tautolgico
dizer que um grupo especfico como o dos coletores de berbigo de
Santa Catarina so, ou tornaram-se, "povos tradicionais", j que se
trata de um processo de auto-constituio. Internamente, esse
processo auto-constituinte requer o estabelecimento de regras de
conservao, bem como de lideranas e instituies legtimas.
Externamente, precisa de alianas com organizaes externas, fora e
dentro do governo.
Deve estar claro agora que a categorias de "populaes
tradicionais" ocupada por sujeitos polticos que esto dispostos a
conferir-lhe substncia, isto , que esto dispostos a constituir um
pacto: comprometer-se a uma srie de prticas, em troca de algum tipo
de benefcio e sobretudo de direitos territoriais. Nessa
perspectiva, mesmo as sociedades que so culturalmente
conservacionistas so, no obstante, em algum sentido,
neotradicionais ou neoconservacionistas.
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