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A Comemorao da Vitria: O Banquete Triunfal Assrio
KATIA MARIA PAIM POZZER
Os resultados apresentados nesta comunicao referem-se
concluses
preliminares do projeto de pesquisa Guerra e Religio - Estudo de
textos e imagens do
mundo antigo oriental em curso, que tem por objetivo compreender
a relao entre a
religio e os conflitos militares que marcaram a constituio do
grande imprio
neoassrio na Antiguidade, atravs da representao imagtica dos
simbolismos
religiosos nas narrativas visuais da guerra. Este projeto de
pesquisa conta com apoio do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
(CNPq-Brasil) e da
Fundao da Amparo Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
(FAPERGS), cujas
atividades so desenvolvidas no Laboratrio de Pesquisa do Mundo
Antigo (LAPEMA),
do Curso de Histria da Universidade Luterana do Brasil
(ULBRA).
O I milnio a.C. no Oriente Prximo (Fig. 1) pode ser qualificado
como a idade
dos imprios, pois do sculo IX ao sculo I a.C. foram criados
cinco grandes reinados: o
neoassrio, o neobabilnico, o persa, o helenstico e o parta. A
Assria estava localizada
na regio da plancie entre o norte do rio Tigre e do rio
Eufrates, conhecida como a Alta
Mesopotmia ou Djezireh, mais precisamente, entre as margens do
Tigre e as colinas
dos Montes Zagros. Importantes cidades desta regio, como Nnive,
Arbela e Aur
foram reunidas no II milnio a.C. para formar o estado assrio
(JOANNS, 2000).
Fig. 1 - Mapa da Assria adaptado de Beltrn y Marco (1996)
Professora do Curso de Histria e Coordenadora do LAPEMA da
ULBRA; Doutora em Histria pela
Universit de Paris I Panthon-Sorbonne; CNPq-Brasil, FAPERGS,
ULBRA.
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A formao deste imprio se deu em duas grandes fases: a primeira,
do sculo
XIII a.C. at o ano 1.000 a.C., iniciou-se com a emancipao local
e regional at as
primeiras expedies militares fora do territrio mesopotmico, onde
se destacaram os
reis Tukulti-Ninurta I (1243-1207 a.C.) que venceu Babilnia e
Tiglat-Piliser I (1112-
1074 a.C.) que chegou at o Mediterrneo. A segunda, do ano 1.000
a.C. at a queda de
Nnive em 612 a.C., assistiu a extenso da hegemonia poltica, cada
vez mais profunda e
longnqua, do imprio assrio, desde Assurnazirpal II (883-859
a.C.) at Assurbanipal
(668-631 a.C.). A destruio de Nnive, capital assria, deu-se em
612 a.C., pela
coalizo dos exrcitos meda e babilnico levando ao fim um dos
maiores imprios do
antigo Oriente Prximo (JOANNS, 2001).
Para compreendermos a civilizao e a arte assrias preciso
perceber este
processo histrico, pois o desenvolvimento da cultura dependeu,
diretamente, do que
aconteceu nos campos de batalha. Como nos diz PARROT (2007:32):
Se os assrios
conheceram uma fecundidade artstica, foi para afirmar,
iconograficamente, sua
supremacia.
No mundo mesopotmico, o relevo sobre pedra foi uma das mais
importantes
manifestaes artsticas. Os mais usados foram os baixos-relevos
sobre lajes de
alabastro, repartidas em duas ou mais partes, recobrindo as
paredes dos palcios,
podendo ultrapassar 2m de altura. Seis reis assrios deixaram
este tipo de relevo, em
Nimrd: Assurnazirpal II (883-859 a.C.); Salmanassar III (853-824
a.C.);
Teglatphalassar III (745-727 a.C.) e Sargo II (722-705 a.C.); em
Nnive: Senaqueribe
(705-681 a.C.) e Assurbanipal (669-627 a.C.).
A prtica cultural de criao destes relevos monumentais est
associada ao
momento poltico de construo de grande imprios. A maioria das
cenas representadas
evocam a guerra e as campanhas militares empreendidas pelos
assrios contra seus
inimigos.
Para a investigao destas imagens, utilizamos a metodologia
baseada na obra de
Erwin Panofsky, que divide o processo de anlise visual em trs
momentos: realizao
da descrio pr-iconogrfica, isto , a enumerao dos motivos
artsticos para cada
temtica; realizao da anlise iconogrfica, ou seja, da identificao
de imagens,
estrias e alegorias e realizao da interpretao iconolgica, que a
descoberta e a
interpretao dos valores simblicos nas imagens. A iconografia o
tema e o
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significado das obras de arte em contraposio a sua forma e
iconologia o estudo de
cones ou do simbolismo na representao visual (PANOFSKY,
1995:19).
Os Relevos nos Palcios Assrios
O stio arqueolgico de Nnive, atualmente territrio do Iraque,
conheceu vrias
campanhas de escavaes entre os anos de 1852 e 1932. Os
arquelogos mais
importantes foram A.H. Layard, H.C. Rawlinson, R.C. Thompson e,
mais recentemente,
D. Stronach (CURTIS, READE, 1975).
Estas escavaes identificaram dois palcios: um localizado a
sudoeste,
construdo por Senaqueribe e conhecido com o palcio sem rival e
outro, na parte
norte do stio, construdo por Assurbanipal (RUSSEL, 1995:295). Na
figura (Fig. 2)
abaixo, identifica-se o palcio norte esquerda e o palcio
sudoeste direita.
Fig. 2 Plano de Nnive (BARNETT, 1976:24)
Dentre as maiores produes artsticas assrias encontram-se algumas
das
esculturas excepcionais que adornaram o palcio sudoeste de
Senaqueribe, em Nnive.
Uma delas a Batalha de Til-Tuba (Fig. 3 e 4), uma composio
artstica elaborada sob
o reinado de Assurbanipal1 (668-631 a.C.), onde h muitos
detalhes e a tradicional
averso assria aos espaos vazios usada para expressar o caos da
guerra, com um
movimento incessante de um painel outro (LAYARD, 1853; CURTIS,
READE, 1995;
READE, 2006).
1 Assurbanipal ocupou o palcio de Senaqueribe, seu av e
empreendeu uma grande reforma no local.
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Fig. 3 Relevo de Til-Tuba (CURTIS, READE, 1995:74-75)
Fig. 4 Relevo de Til-Tuba (CURTIS, READE, 1995:74-75)
O relevo da Batalha de Til-Tuba ou do Rio Ulai, que mostra os
assrios
vencendo os elamitas no sul do Ir , indiscutivelmente, a mais
refinada composio em
larga escala da arte assria. A parte inicial do relevo foi
perdida, a derrota do exrcito
elamita composta de trs painis, dentro de uma srie de dez
composies, que narram
a histria completa da campanha militar (WATANABE, 2008).
Localizavam-se nas
paredes da sala XXXIII do palcio sudoeste de Senaqueribe e foram
esculpidos por
ordem de Assurbanipal, em calcrio fossilizado. A pedra,
inexistente na regio, foi
trazida por Senaqueribe de Judi Dagh, na atual Turquia, de barco
pelo rio Tigre. A data
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da guerra de Assurbanipal contra o imprio elamita incerta, h
hipteses indicando
que teria ocorrido entre 663 e 653 a.C. (COLLINS, 2008:25).
O crescente caos da batalha graficamente refletido em todo o
conjunto do
relevo do conflito, onde o rei elamita Tepti-Human-Insunak,
conhecido pelos assrios
como Teumman, junto com seu filho Tammartu so capturados e
decapitados.
Mais adiante na cena, um carro elamita, com um soldado assrio
segurando a
cabea triunfalmente, dirige-se para a Assria, onde Assurbanipal
aguardava o desfecho
da batalha (Fig. 5). Acima desta cena pode-se ler a epgrafe
(BAHRANI, 2008:39):
The head of Teumman, king of Elam, which a follower of my army,
a common soldier,
had cut off in the midst of the battle, they are bringing in
haste to Assyria, to announce
the news of victory2.
Alm da narrativa central descrita, esse conjunto de relevos
apresenta outros
momentos da batalha. Os anais histricos assrios relatam que
Teummam foi decapitado
no meio da batalha de Til-Tuba, em 653 a.C., e sua cabea foi
carregada em um carro de
guerra triunfal para a cidade de Arbela no norte da Assria, onde
foi exibida para a
populao e, finalmente, para o palcio em Nnive para compor a
ornamentao do
banquete comemorativo da vitria Assria.
Fig. 5 Carro de guerra com a cabea de Teumman (CURTIS,
READE,
1995:74)
Assurbanipal no participou pessoalmente da campanha contra o
Elam e,
paradoxalmente encontrou-se na posio de caador de cabeas. Em
outras
sociedades que praticavam a decapitao, a no-participao na
batalha era sinnimo de
perda de prestgio. Para Assurbanipal, a decapitao de Teumman
funcionou como
evidncia de seu papel ativo, como rei da Assria, na campanha
militar (BONATZ,
2005:94). Aqui o papel de caador de cabeas dado a um soldado
comum e a morte
2 A cabea de Teumman, rei do Elam, que um servo de meu exrcito,
um soldado comum, cortou no meio
da batalha, eles esto trazendo depressa para a Assria para
anunciar a vitria.
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de Teumman como um evento corriqueiro de guerra, sem o aspecto
heroico. O fato de
Teumman ter sido morto por um simples soldado se reveste de uma
certa punio
adicionada prpria morte, pois o rei no teve direito a uma execuo
cerimonial,
Teumman foi reduzido categoria de um soldado qualquer, perdendo
sua condio de
nobre real.
A particularidade desta narrativa que a segunda parte dela, a da
comemorao
da vitria, foi encontrada no palcio norte de Assurbanipal em
Nnive. O relevo, que
nosso principal objeto de anlise, fazia parte do andar superior
da sala S e, atualmente,
encontra-se no Museu Britnico, em Londres (Fig. 6 e 7). Segundo
BARNETT
(1976:56): A cena descrita no palcio de Nnive de Assurbanipal
que mostra-o
reclinado em uma cama sob uma videira, em presena de sua rainha,
certamente uma
das mais memorveis, mas tambm uma das mais enigmticas da arte do
Antigo Oriente
Prximo.
O Banquete Triunfal no Jardim
Fig. 6 O Banquete Triunfal no Jardim lado direito (COLLINS,
2008:136).
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Fig. 7 O Banquete Triunfal no Jardim lado esquerdo (COLLINS,
2008:136).
A cena a apoteose da glorificao de vrios aspectos da realeza no
ciclo do
relevo, na sala S, do palcio norte e a mensagem de vitria e
triunfo militar revelada
pela cabea cortada do rei elamita Teumman. Alm disso, os nobres
elamitas so
forados a servirem o banquete, enquanto que os armamentos esto
guardados, sobre
uma mesa, ao lado do banco reclinado de Assurbanipal.
V-se o jardim real e uma fileira de mulheres e homens que tocam
flautas e liras,
e ao fundo deles v-se rvores, palmeiras e pssaros. V-se servas
que usam longas
tnicas, faixas na cabea, joias e esto com os ps calados, duas
delas carregam nas
mos bandejas com alimentos e outras carregam abanadores, todas
elas esto
caminhando na direo central onde o rei e a rainha se
encontram.
Acima da cena temos uma inscrio fragmentada:
[...]x
1 [x x]-ti- SIGme i-ram-mu gi-mir mal-ki k[i-at...... ]
[...] x [ ] LUGAL
me KUR NIM. MAki ina KU-ti AN.R u dnin-ll ik-
su-d[] U-[()ia]
[...]a(?) x[z]i-zu-ma nap-tan MAN-ti--nu U rame-ni--nu e-pu--ma
-e-
rib-u-ni x [......].
Cuja traduo :
[...] (cujas) boas (obras) eles (isto , os deuses) amor, todos
os prncipes de
toda...
[...] Os reis do Elam, a quem, com o auxlio de Aur e Ninlil,
foram capturados.
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[...] Estiveram (?), e suas prprias mos, prepararam sua refeio
real, e
trouxeram-no diante de mim.
Como figura central da cena v-se o rei assrio reclinado em uma
cama, ele veste
uma tnica adornada de smbolos e est coberto por uma capa um
pouco abaixo da
cintura, na cabea usa uma tiara, tem seu brao direito levantado
e na mo um clice
que leva na altura da boca, seu outro brao est encostado sobre o
mvel e em sua mo
esquerda segura uma flor de ltus, que um smbolo da realeza. A
frente do rei est a
rainha assria, Aur-arrat, sentada em seu trono, na cabea ela usa
uma coroa e est
vestindo uma longa tnica ricamente adornada, em uma das mos tem
um clice, e na
outra mo segura uma flor, seus ps esto calados. Eles bebem e
escutam msica, mas
os olhos de Assurbanipal esto focados na cabea de Teumman que
est pendurada em
uma rvore. Esta cena mostra, claramente, o banquete real
consagrado uma vitria
militar sobre o inimigo.
Quando observamos o comportamento de Assurbanipal com a cabea
de
Teumman, de uma perspectiva antropolgica, surgem duas questes. A
primeira se
refere a natureza de caa a cabeas de Assurbanipal, pois a cabea
de Teumman no
apenas um trofu de combate e a prova da morte do rei, mas possui
outro significado.
Para a antropologia contempornea, a decapitao definida como um a
forma coerente
e organizada de violncia, na qual a cabea assume o sentido
ritualstico especfico,
assim como o ato de pegar a cabea, consagr-la e comemorar de
vrias formas.
De acordo com esta definio, podemos admitir que Assurbanipal
imprimiu ao
ritual de decapitao um sentido antropolgico, pois esta
significao muito diferente
da forma que os assrios praticavam a decapitao na guerra para
fins estatsticos, para
contagem dos inimigos mortos. Aqui, ao contrrio, a cabea de
Teumman retm o foco
da ateno do ritual que foi consagrado e comemorado tanto nos
textos como nas
imagens.
A segunda questo sobre os fatores que fazem com que a exposio da
cabea
de Teumman seja um ato ritual potente: o fator poltico; o
religioso e o da tradio. O
fator poltico: assim como outras civilizaes que praticavam a
decapitao, a cabea
emerge como um smbolo poltico que possibilita a comemorao de um
importante
evento histrico, neste caso a derrota do Elam e a manuteno do
controle ideolgico
sobre o passado. O fator religioso: a guerra de Assurbanipal
contra o Elam, assim como
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outras campanhas militares assrias, eram vistas como uma misso
divina, como
indicam numerosos textos. E o fator da tradio: Assurbanipal
coloca o ritual da
decapitao dentro da tradio imemorial quando cita o orculo
(BAHRANI, 2008:41):
I, Assurbanipal, king of Assyria, displayed publicly the head of
Teumman, king of
Elam, in front of gate inside the city, where from of old it had
been said by the
oracle:The head of thy foes shalt cut off3.
O texto se refere ao cumprimento de uma profecia que destinava a
vitria de
Assurbanipal, decretada pelos deuses4, e , ao mesmo tempo, uma
justificativa para a
guerra e para a vitria assria, confirmadas pela exposio pblica
da cabea do rei do
Elam. A cabea a parte do corpo que atua como smbolo da evidncia
da vitria em
todo o tempo da narrativa, pois a cabea a parte do corpo que
confere a identidade da
pessoa.
No documento conhecido como o cilindro B de Assurbanipal, que
contm
narrativas histricas e registros das guerras, h uma meno que diz
(BAHRANI,
2008:41): With the decapitated head of Teumman, king of Elam, I
took the road to
Arbela amid rejoicing5.
A entrada triunfal de Assurbanipal em Nnive, a exibio da cabea
de
Teumman, rei do Elam e a libao com vinho esto na inscrio
(BONATZ, 2005:96):
At that time I grabbed in my hands that bow, I set it up over
the head of Te-Umman,
king of Elam6. No est clara a cronologia destes fatos, em todo o
caso, a cabea de
Teumman deve ter sido preparada, talvez defumada, para ser
conservada e servir todos
estes usos.
3 Eu, Assurbanipal, rei da Assria, mostrei publicamente a cabea
de Teummam, rei do Elam, em frente
dos portes da cidade onde o ancio tinha dito que a profecia do
orculo predizia: A cabea de teus
inimigos deve cortar.
4 Os mesopotmicos utilizavam-se dos adivinhos para compreender e
interpretar as mensagens
criptografadas dos deuses, mas acreditavam, tambm, que os deuses
poderiam se dirigir diretamente
aos homens atravs da revelao. Juntamente com o exame das vsceras
de animais sacrificados para
este fim, a interpretao dos sonhos constituiu o procedimento
divinatrio mais antigo na
Mesopotmia (POZZER, 2008:176).
5 Com a cabea decapitada de Teummam, rei do Elam, eu tomei o
caminho (da Assria) e enchi Arbela de
alegria.
6 Naquele tempo eu peguei entre minhas mos a taa, eu versei
sobre a cabea de Teumman, rei do Elam.
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O Banquete Comemorativo
A partir do incio do III milnio a.C na Sumria e do II milnio a.C
em outras
regies da Mesopotmia e da Sria, inmeros documentos comprovam a
existncia de
festins ritualsticos. A documentao iconogrfica e epigrfica da
antiga Mesopotmia
sobre os banquetes privilegia a esfera do poder real e religioso
(JOANNS, 2001:716).
A partir dela sabemos da realizao de banquetes com a finalidade
de celebrar uma
importante vitria militar, a inaugurao de um novo templo ou
palcio ou a de tomar
importantes decises sobre o futuro.
Na documentao do Antigo Oriente Prximo comum o ato de beber e
brindar
entre os deuses: casamentos sagrados, fertilidade e abundncia,
julgamentos, deciso
dos destinos e a paz e a manuteno da ordem csmica (GLASSNER,
2003).
Identificamos uma grande similaridade entre a cena do banquete
de
Assurbanipal e imagens de selos-cilindros elamitas do perodo
arcaico, com cenas de
casais divinos bebendo vinho. Uma hiptese que Assurbanipal tenha
escolhido esta
cena para apropriar-se de uma frmula de tradio elamita, de
prosperidade e de bem-
estar, como busca de legitimao religiosa/ideolgica entre os
elamitas recm
conquistados.
A combinao particular de Assurbanipal nesta cena, com o rei, a
taa e a
videira esto associados a vrios aspectos da realeza divina e
vitria e o triunfo sobre
os inimigos, numa demonstrao de poder, prosperidade e bem-estar.
A videira , desde
o perodo arcaico, um smbolo da iconografia elamita (NYLANDER,
1999:82). O que,
precisamente, explicaria a sua mutilao por parte dos
conquistadores de Nnive (a
coalizao do exrcito meda e babilnico) em 612 a.C.
A situao de iconoclasmo em Nnive, com o rosto e as mos mutiladas
de
Assurbanipal, de sua rainha e das taas de vinho, pode ser
entendida como uma tentativa
de destruio do gestual da comemorao (NYLANDER, 1999:75).
A Mutilao dos Corpos
A mutilao dos corpos uma prtica atestada na Mesopotmia e no
Egito
antigos, na iconografia e na produo textual. A identidade do
inimigo morto e do grupo
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social ao qual ele pertence colocado colocado em evidncia
(MINUNNO,
2008:249).
Dentre as mutilaes possveis, a decapitao a preferida, pois a
cabea a
expresso da personalidade, nica e individual e quando ela
exposta, ningum pode
duvidar de sua morte. O corte das mos outro tipo de mutilao
bastante utilizado
sobretudo no Egito. As mos tambm so uma marca da personalidade e
cort-las um
ato simblico de grande fora. A mutilao torna-se, assim, um
instrumento de
propaganda poltica.
A decapitao dos inimigos era um elemento indispensvel na guerra
assria.
Aps a batalha elas eram mostradas como trofus e eram testemunhas
do prestgio e da
qualidade do exrcito vitorioso. O acmulo de cabeas era um meio
de mostrar o poder
militar, mas uma cabea annima tornava-se um objeto annimo. Raras
foram as vezes
que uma cabea era nomeada. No perodo neoassrio, a conexo
simblica entre a
cabea como um trofu humano e a imagem de poder foram mais
evidentes no reinado
de Assurbanipal.
Existem inscries parietais que contm a descrio dos
acontecimentos
reproduzidos nos painis iconogrficos. Um dos trechos diz que
(RUSSELL, 1999:168)
"The defeat of the troops os Teumman, king of Elam. At Til-Tuba,
Assurbanipal, great
king, strong king, king of the world, king of Assyria, defeated
countless of his warriors
and threw down their corpses".7
Podemos traar um paralelo entre esta cena e a Epopeia de
Gilgame, quando ele
leva a cabea do monstro Humbaba para o santurio de Enlil em
Nippur (V tablete,
coluna VI: 10-15) (MALBRAN-LABAT, 1988). O ritual envolvendo a
cabea de
Teumman confere Assurbanipal o papel de detentor da tradio e de
cumpridor do
desejos divinos. Mas, a nfase dada a individualizao da cabea de
Teumman, foi um
novo conceito visual, criado no reinado de Assurbanipal, como
triunfo real. Isto confere
prtica de decapitao um sentido antropolgico especfico que sugere
que este ritual
era uma prtica estabelecida no passado. A mutilao, em geral, e o
ritual da
decapitao, em particular, tornam-se um aspecto integrado deste
sistema cultural.
7 A derrota das tropas de Teumman, rei do Elam. A Til-Tuba,
Assurbanipal, grande rei, poderoso rei, rei
do mundo, rei da Assria, derrotou incontveis guerreiros e atirou
seus corpos na gua.
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Concluso
Como podemos compreender estas narrativas artstico-histricas?
Segundo o
mito sumrio Enki, ordenador do mundo a arte da guerra o ltimo
dos atributos da
civilizao (BOTTRO, KRAMER, 1993). Assim, para os mesopotmicos, a
habilidade
da guerra, da pilhagem e da morte estavam entre os aspectos de
um comportamento
civilizado.
Este conjunto de relevos um dos mais expressivos da arte
neoassria e o tema
central destas representaes a comemorao da vitria da guerra
contra o Elam.
Como narrativa principal o banquete nos jardins reais, onde
somente o rei Assurbanipal
e a rainha Aur-arrat so retratados, com a exposio da cabea do
adversrio, o rei
Teumman, como prmio de guerra para a Assria.
Entendemos que as imagens so representaes de ideais, sonhos,
medos e
crenas de uma poca e significam a apresentao de algo em
substituio daquilo que
se encontra ausente, tornando-se uma ferramenta de expresso e
comunicao, pois so
transmissoras de uma mensagem (BURKE, 2005).
Tais representaes serviam como propaganda poltica, social,
econmica,
religiosa, com uma forte carga ideolgica, que tinha como
objetivo legitimar o poder
dos governantes perante seus sditos. Mas tambm poderiam ser
objeto de admirao da
realeza em uma tentativa de perpetuao de sua imagem e, assim, de
seu poder
(MARCUS, 2000).
Estes relevos monumentais foram expostos nas paredes internas
dos palcios e,
portanto, sua circulao era restrita aos convidados do rei e s
delegaes diplomticas
estrangeiras. Os reis assrios construram palcios para servir de
ncleo administrativo,
mas tambm como instrumento de propaganda, decorado de modo a
impor ao visitante
a impresso da esmagadora potncia assria. Esta decorao fazia,
essencialmente, a
exaltao da pessoa do rei e da evocao de seus altos feitos para
seus contemporneos
e para toda a eternidade (SERRES, OLIVEIRA, SILVA, LIMA, POZZER,
2008:178).
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