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- Revista dos Alunos do Programa de Ps-graduao em Cincia da
Religio - UFJF
O Desafio da Recepo Bblica na Modernidade Tardia
The Challenge of Biblical Reception in Late Modernity
Srgio Ricardo Gonalves Dusilek1 [email protected]
Resumo:
O objetivo deste texto compreender, a partir de Auerbach, o
realismo da literatura bblica e sua relao com a recepo bblica no
contexto da modernidade tardia. Buscar-se- compreender a partir do
pensamento de Erich Auerbach o lugar da recepo bblica em ambiente
avesso a um texto carregado de uma pretenso de autoridade. Trata-se
de um trabalho fronteirio, pois alm por tratar da hermenutica
bblica num conceitual filosfico, a problemtica da recepo bblica
hodierna aponta para um desafio religioso para o cristianismo, uma
vez que ele no prescinde do seu livro sagrado. Nele, a comunicao
sempre foi indireta, pela Palavra. Palavras-Chave: Hermenutica;
Auerbach; Recepo; Figura; Mimesis
Abstract: The purpose of this text is to comprehend, from
Auerbach, the reality of Biblical literature and its relationship
with biblical reception, in the context of late modernity. We will
search to understand from Erick Auerbachs reasoning the place of
biblical reception on an environment that is not prone to a text
loaded with an authority pretension. This is a borderline work,
because besides dealing with the biblical hermeneutic on a
philosophical concept, the problem of the hodiern biblical
reception points to a religious challenge for Christianity, as it
does not prescind its Holy Book. In it, the communication has
always been indirect, by the Word. Keywords: Hermeneutics;
Auerbach; Reception; Figure; Mimesis
Introduo
Que tipo de abertura pode existir para o sagrado num contexto
cultural que
procurou eliminar no final do sculo XIX tudo aquilo que no cabia
dentro de um
positivismo cientfico? Como falar do sagrado a uma sociedade que
ora no o reconhece
ou desconhece, ora o despreza? Ao abordar a questo da recepo
bblica na
modernidade tardia, entra-se na invaso do sagrado na vida
humana. O que era antes
uma dimenso pelo advento da modernidade se tornou invasivo.
De fato houve uma tentativa de expurgo da religiosidade. Charles
Eliot (Eliot,
1909, p. 391) apregoava no incio do sculo passado que os
aspectos no explicveis do
1 Aluno do Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Cincia da
Religio da UFJF.
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fenmeno religioso seriam plenamente compreendidos em algum
momento futuro e
que, portanto, a religio se traduziria no bem-estar humano. A
privatizao da vida
deveria ser traduzida em atitude solidria para com o outro,
tanto que os mdicos
seriam os ministros dessa nova religio (Eliot, 1909, p. 399).
Mas, essa mesma postura
de absolutizao da esfera individual promoveria uma crnica
ausncia de dilogo e
uma ruptura com todo tipo de heteronomia. Eliot falava de uma
espcie de religio sem
religiosos, ou ainda da manuteno viva dos melhores ideais e
valores sem a
permanncia da estrutura religiosa por detrs lhes conferindo ora
vigor, ora fraqueza.
Karen Armstrong por sua vez assinala que em meados do sculo XX,
a maioria
dos ocidentais achava que a religio nunca mais desempenharia um
papel de destaque
nos acontecimentos mundiais (Armstrong, 2001, p. 229). Mas, no
final do sculo XX e
incio do XXI, o mundo foi surpreendido com a fora atrativa da
proposta religiosa
presente nos movimentos fundamentalistas (Armstrong, 2001, p.
353). A religio
continuava a ter papel preponderante na cultura, sendo agora
alada para compreender o
chamado choque de civilizaes.
nesse contexto de fora, manifesta por um lado na procura pelo
banimento da
experincia religiosa e por outro na imposio de sua presena, que
se busca
compreender o lugar da recepo bblica na atualidade e como se d
esse processo. Para
tanto, essa comunicao almejar buscar em Erich Auerbach o
constructo terico para
compreender como se d esse acolhimento do texto bblico na
modernidade tardia, bem
como elencar os possveis fatores de atratividade que essa obra
literria tem mesmo
numa cultura to diversa da qual foi formada.
1. O Legado da Modernidade e a Recepo Bblica
A modernidade provocou a crise e a ruptura num modo de
interpretar o texto
bblico e tambm de receb-lo. O processo de dessacralizao do mundo
que ela imps,
aliado formao de uma conscincia crtica cada vez maior, acabou
por depreciar e
fazer com que houvesse um abandono da exegese bblica, atribuindo
ao relato uma
conotao lendria (Auerbach, 2011, p. 21). Para um texto que
possui uma pretenso de
autoridade incorporada nele mesma (Auerbach, 2011, p.45) um
fator bem
complicador. Na viso de Auerbach o humanismo fez com que a
figura do homem
fosse colocada a frente da figura de Deus (Auerbach, 2011,
p.175). O
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reposicionamento figural provocou uma autonomia que solapou
qualquer pretenso de
autoridade textual relativo no s Bblia, como tambm a qualquer
outro texto
considerado at ento sagrado.
Essa conscincia crtica que emerge do humanismo se manifesta
especialmente
nas descobertas e no desalojamento do dogma. Interessante que
agora o desvelamento
passa a ser do mundo sensvel que precisava ser compreendido e
dominado, no mais da
divindade e de sua revelao.
A primeira descoberta e, porque no dizer, legado da modernidade
foi a
fascinao com um mundo a ser explorado e conhecido. Auerbach
destaca bem isso ao
citar trechos da fico de Rabelais sobre Pantagruel (Auerbach,
2011, p.234). Os
elementos do moderno esto ali: o otimismo que emerge num
contexto de falta de
esperana por conta da peste negra; a utopia que nasce de um
contraste entre desafios e
perspectivas da vida humana num tempo de descobrimentos; o
smbolo do homem, do
seu corpo como exemplo do muito que ainda se tem para conhecer.
O novo mundo de
Pantagruel passa-se somente na boca dele... No foi a toa que
Rabelais escolheu esse
formato para montar sua narrativa. Se o homem est agora
centralizado, ele precisa
passar por um exaustivo processo de autoconhecimento. Tudo isso
representava uma
ruptura com o mundo medieval, especialmente no tocante ao foco
que era
eminentemente voltado para o futuro, para as possibilidades,
para frente.
A segunda principal descoberta foi a do distanciamento. Ao homem
moderno
pareceu claro a distncia que havia do texto no s pelo tempo, mas
sobretudo pela
mentalidade. Ficou evidente que havia uma distncia histrica e
cultural entre o mundo
do texto e o mundo do leitor (Ricoeur, 2006, p.32). Isso exigia
um processo de
interpretao porque houve a perda da familiaridade com o texto
bblico.
J o distanciamento pela mudana da mentalidade se deu por uma
mudana de
postura diante do relato bblico. Da valorizao do simblico
passou-se a busca pelos
processos de racionalizao, aquilo que Heidegger chamou de
pensamento calculante.
No pensamento calculante, no linguajar da cincia moderna no
havia espao para a
especificidade da linguagem religiosa (Ricoeur, 2006, p.56), uma
vez que ela perdera
sua aderncia na modernidade (Ricoeur, 2008, p.12) o que acabou
ocasionando um
empobrecimento lingstico (Ricoeur, 2008, p.16). A proposta de
domnio da
modernidade inclusive sobre a religio, numa tentativa de
explic-la exaustivamente
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(Ricoeur, 1978, p.53), esquecendo-se para isso da existncia de
uma dinamicidade
prpria outorgada pela f. Interessante que o linguajar cientfico
impinge sobre o rico
simbolismo religioso a conotao de reducionista, quando ele mesmo
que afunila o
universo significante que h no fenmeno religioso.
Nesse sentido vale lembrar que a religio no est sob o domnio das
cincias
naturais ou mesmo humanas, uma vez que ela as ultrapassa por
conter em si um
componente igualmente transcendente. A melhor forma de
compreenso no ento a
reduo da linguagem religiosa e seu enquadramento no dizer
cientfico, mas sim sua
compreenso a partir de sua afinidade com o leitor e pela renovao
da linguagem
oriunda de outro contexto cultural (Ricoeur, 1978, p.41,
116).
Outro reflexo da conscincia crtica herdada do humanismo foi o
desalojamento
do dogma. Uma vez que o eixo foi descolado e deslocado de Deus
para o ser humano,
tudo passou a ser objeto de aferio. Os dogmas que at ento
funcionavam como
absolutos, foram expulsos do paraso. No dizer de Karen: numa
sociedade que
valorizava apenas a verdade racional ou cientificamente
demonstrvel, o dogma se
constitura num problema (Armstrong, 2001, p. 199). Exemplo
clssico desse conceito
foi o discurso do telogo batista Harry Emerson Fosdick no qual,
ao passo que
assinalava a similaridade do aspecto religioso na defesa do
nascimento virginal de
fundadores de grandes religies (Jesus, Buda, Zoroastro,
Lao-Tzu), considerava
inaceitvel os fundamentalistas sublinharem o que chamou de
tradio em termos de um
milagre biolgico (Fosdick, 1978, p. 3). Falar a um povo que nada
entendia de dogma e
que passou a possuir uma plida idia dos mistrios da f se tornou
um problema
(Auerbach, 2011, p. 91).
Essa dificuldade com o dogma nunca foi resolvida, seja pela sua
negao
completa, seja pela adoo de uma via subjetiva para o mesmo. Emil
Brunner assim
destaca como marca da teologia e religio contemporneas: O slogan
moderno,
nenhuma doutrina mas vida; nenhum dogma mas prtica, em si mesmo
uma
doutrina, at mesmo um dogma, mas no uma doutrina crist nem um
dogma cristo.
o ditado de um pragmatismo tico ou de um misticismo. (Brunner,
2000, p.28).
Dessa feita nota-se que h uma inter-relao entre a nova formulao
dogmtica
e o legado da modernidade. Tal conexo se d pela via da
subjetividade. a valorizao
do mstico na modernidade tardia como reflexo direto do recalque
imposto pelo
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Iluminismo. O mstico aqui, mais do que abertura para o divino,
deve ser visto pelo
prisma da expresso da individualidade, visto ter se tornado
espao para manipulao
do sobrenatural. H um visvel xamanismo nas prticas religiosas da
modernidade
tardia, o que remonta a poca do incio do cristianismo,
especialmente na sua
penetrao por aquilo que ficou conhecido como sia Menor. Assim,
reside aqui o
renascimento de um contexto da recepo do kerygma cristo, a
saber: voltar a falar de
Deus a uma sociedade pag e mstica (Auerbach, 2011, p. 72).
A interpretao bblica afetada no somente pela via da
subjetividade que
procura legitimar uma hermenutica espiritualista-alegrica
prejudicando a
compreenso do significado do texto (Auerbach, 2011, p. 170),
como se manifesta
tambm nos fundamentalismos. As formas objetivadas de contato com
o texto, que na
sua paradoxalidade de enfatizar os dogmas e emprestar-lhes ao
mesmo tempo um
pretenso mtodo e linguajar cientfico, esto em voga. O resultado
dessa perspectiva
que a literalidade com que encarado o texto sagrado torna sem
efeito o labor
interpretativo e adiciona ao resultado uma incompreenso sistmica
do texto.
Outro legado da modernidade aquilo que Auerbach denominou quebra
da
moldura (Auerbach, 2011, p. 139). Para ele na narrativa bblica h
uma interligao no
plano maior entre os acontecimentos figurais (Auerbach, 2011, p.
139). Exemplo disso
o relato de Farinata e Cavalcante de Dante Alighieri, no qual os
personagens apresentam
num plano espiritual a consumao do comportamento que mantinham
antes de
morrerem. No contexto da modernidade quebra-se essa moldura
abrindo a porta para a
secularizao que, para Auerbach, nada mais era que uma outra
tentativa de explicar as
aes humanas (Auerbach, 2011, p.139), pluralizando o espectro de
representaes
possveis reduzindo2 a verso bblica a uma possibilidade.
Por fim cabe falar num especial caso de desalojamento. Trata-se
aqui do prprio
ser humano. As revolues industrial e tecnolgica tornaram o homem
numa mquina.
A velocidade das mudanas e o alargamento do horizonte humano
geraram crises de
adaptao (Auerbach, 2011, p. 495). Auerbach assim se
expressa:
Em todos os cantos do mundo surgiram crises de adaptao que se
amontoaram e aglutinaram; levaram para as perturbaes que ainda no
acabamos de sobreviver. Atravs dessa violenta movimentao, causada
pelo embate das mais heterogneas formas de vida e de ideais
2 A noo de reduo aqui est calcada na perda da posio. Antes a
Bblia era a nica representao possvel; agora se tornara uma das
representaes admitidas.
Jakeline Nunes
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na Europa, tornaram-se vacilantes no somente as vises
religiosas, filosficas, morais e econmicas que pertenciam antiga
herana e que, apesar de algumas agitaes anteriores, ainda
conservaram, graas a uma lenta acomodao e transformao, considervel
autoridade; tambm, no somente os pensamentos do Iluminismo,
revolucionrios no sculo XVIII e ainda na primeira metade do sculo
XIX, a democracia e o liberalismo, mas tambm as novas foras
revolucionrias do socialismo, surgidas elas prprias j em meio ao
auge do capitalismo ameaavam fender-se e desfibrar-se; perdiam a
sua unidade e a sua clara delimitabilidade devido aos numerosos
grupos que se combatiam mutuamente, devido s singulares ligaes que
determinados grupos fizeram com pensamentos no socialistas, devido
capitulao interna da maioria deles durante a Primeira Guerra
Mundial e, finalmente, devido tendncia de alguns dos seus
seguidores mais radicais de se passar ao campo dos seus contrrios
mais opostos (Auerbach, 2011, p. 495).
Reside aqui o aspecto bem destacado por Hannah Arendt da techn ,
que
coisificou o homem (Arendt, 2000). Brakemeier afirma que o ser
humano no se
satisfaz em desempenhar o papel de uma mquina (Brakemeier, 2005,
p. 17), buscando
algo que lhe d dignidade. Apesar da uniformidade que a produo
cria, h mais pessoas
que no sabem seu lugar (Auerbach, 2011, p. 409). Heidegger leu
esse fenmeno como
uma crise da habitao (Heidegger, 2012, p. 136), na qual o homem
moderno perdeu a
sua capacidade de conexo que possibilitava diante da quadratura,
receber os acenos do
Ser.
para um homem sem cho e com um texto sem lastro que a
comunicao
bblica deve ser feita. A questo que reside como comunicar a um
homem desconexo,
que no sabe mais seu lugar no mundo (Auerbach, 2011, p. 411).
Destaca-se que
justamente por conta de sua extensa rede de referncias o ser
humano perdeu seu lugar.
Essa desconexo primria resulta num paradoxal movimento de
conexes menores, que
implica numa extensa rede de significaes (Auerbach, 2011, p. 53)
e que acabam
sufocando o que intudo nos relatos bblicos. A recepo experimenta
seu
asfixiamento. Contudo, a simples indiferena j constitui por si
uma deciso, um sinal
de recepo.
2. A Atratividade do Texto Bblico
Diante do legado da modernidade tardia cabe indagar o lugar que
pode ter o
texto sagrado e, no caso bblico, nesse contexto cultural.
Auerbach defende a idia de
uma atratividade da narrativa escriturstica baseada no realismo
criatural (Auerbach,
Jakeline Nunes
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2011, p. 225) que figura, representa a realidade. Pela
interpretao figural cria-se uma
relao entre dois acontecimentos ou duas pessoas, na qual um
deles no s se
significa a si mesmo, mas tambm ao outro e este ltimo compreende
ou completa o
outro (Auerbach, 2011, p. 62). Ele destaca que apesar dos plos
da figura estar
separados temporalmente eles se conectam dentro do tempo como
acontecimentos ou
figuras reais (Auerbach, 2011, p. 62). Registra-se tambm uma
conexo com o
contexto histrico-universal que representa a prpria moldura da
interpretao
figurativa (Auerbach, 2011, p. 136).
A figurao, que se torna possvel pelo realismo judaico-cristo
presente na
Bblia, promove o intercmbio de vivncias narrativas entre o mundo
do texto e o
mundo do leitor. Essa troca empresta uma vivacidade a narrativa,
na qual o intrprete se
percebe nas situaes vividas pelos tipos, pelos personagens
contidos no texto.
Vivacidade e intercmbio esses que resultam da capacidade de
insero do leitor, que
inerente ao realismo contido no texto bblico.
Auerbach destaca tambm que essa atratividade reside no processo
figural,
especialmente nas figuras do Velho Testamento. Elas estavam em
modelagem
constante, sendo testadas em provas ao contrrio do realismo
caricaturesco dos gregos,
onde os personagens se tornavam caricaturas da realidade
(Auerbach, 2011, p. 23; 37).
Isso fez com que os personagens bblicos tivessem maior
proximidade com o mundo
real do que as figuras homricas (Auerbach, 2011, p. 26). O
processo de modelagem
remete ao aspecto pedaggico do mal, do sofrimento, usados para
aprimorar a f dos
personagens. Esse processo de aprimoramento envolto em provas,
testes, cria uma
atmosfera de identificao com o leitor e propicia sua insero numa
meta-narrativa,
numa histria maior. Ele percebe que h um todo e compreende sua
participao e
contribuio nesse todo.
Outro fator de atrao a presena de diferentes tipos de estilo
(Auerbach, 2011,
p. 41). Na narrativa do Antigo Testamento h a presena mesclada
do sublime com o
trgico, com o problemtico, com o quotidiano, o que exerce poder
de atrao no texto
(Auerbach, 2011, p. 29). Soma-se a isso a explorao de uma
profundidade imediata da
emoo, apresentada de maneira mais ordenada, humana e esperanosa
(Auerbach,
2011, p. 59).
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O texto bblico possui tambm um grau de compreensibilidade
universal
(Auerbach, 2011, p. 134). Isso est presente tanto na exposio de
dramas universais
tais como traio, vingana, perdas (Auerbach, 2011, p. 37), como
na sua pluralidade de
sentidos que demanda o labor interpretativo (Auerbach, 2011, p.
20). H que se ressaltar
tambm a configurao social do Antigo Testamento, onde no se
percebe claramente a
diviso de classes (Auerbach, 2011, p. 18).
O realismo contido na Bblia no s possibilita essa insero do
leitor na
narrativa escriturstica como tambm cria sua identificao com o
texto. Insero pela
identificao caminho sinalizador da recepo do texto.
Alm disso, a linguagem bblica traz uma articulao de realidades
vitais para o
ser humano as quais Ricoeur chamou de mal radical, herdando uma
perspectiva
kantiana, e esperana da graa potencializada (Ricoeur, 2008, p.
16). Essa articulao
que exerce enorme poder atrativo visto tratar dos dois parmetros
principais da vida, a
explicao da causa da ocorrncia de situaes ruins na vida e o nimo
para continuar
insistindo no projeto que viver. A esperana, como filha da f,
necessita desta para
interpretar o texto bblico. No dizer de Ricoeur a f certamente
um ato que no se
deixa reduzir a nenhuma fala, a nenhuma escrita. Este ato
representa o limite de toda
hermenutica, porque ele a origem de toda interpretao (Ricoeur,
1996, p. 182).
3. Os Desafios da Hermenutica Bblica
Aps reconhecer os principais elementos que explicam a tardia
atratividade
bblica, resta destacar os desafios que a modernidade tardia
trouxe para a hermenutica
das Escrituras. Nesse sentido, a primeira questo que se
apresenta como o homem
moderno pode ser inserido numa narrativa que possui no seu bojo
uma pretenso de
consumao atemporal, isto , de um texto que possui a pretenso de,
embora inserido
num contexto, no se deixar condicionar por ele?
Auerbach sinaliza para a ao de uma interpretao
reinterpretativa
(Auerbach, 2011, p. 41), j presente no Novo Testamento. O Velho
Testamento foi
transformado em figuras as quais apontam para a premncia de
Jesus. na figurao
que se encontra parte da justificao para essa atemporalidade do
texto. Isso pode bem
ser notado na Epstola aos Hebreus contida na parte crist da
Bblia, onde as principais
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figuras do judasmo so colocadas em contraposio com a supremacia
de Jesus Cristo.
H um estabelecimento de correlaes mediante a exegese (Auerbach,
2011, p. 41).
Naquilo que Auerbach denominou interpretao reinterpretativa h
um
processo de adaptao da mensagem s condies de um circuito mais
amplo de
destinatrios, o que pode ser notado pela variao de estilos que
procura acompanhar os
diferentes pontos de vistas dos receptores do texto. Dessa
feita, ela no s se faz
presente na Escritura como tambm na realidade da modernidade
tardia. possvel
interpretar reinterpretando a narrativa hodierna com sua
diversificao das condies de
vida (Auerbach, 2011, pp. 285-6). Mesmo porque nesse molde h um
forte link com a
existencialidade. H uma compreenso existencial do texto. Urbano
Zilles afirma que a
modernidade insistiu na experincia pessoal pela qual cada pessoa
percebe a realidade
de Deus e isso de forma sensorial (Zilles, 1993, pp. 25; 31).
nesse momento que o
texto uma vez apropriado ento vivenciado.
Essa vivncia o alvo maior da comunicao e, por conseguinte, da
recepo
bblica. Trata-se da prpria Mimesis, a imitao na vida do tipo
bblico. Lembrando que
a principal atividade mimtica refere-se a Jesus, o que Auerbach
destaca em seu texto
na referncia a So Francisco (Auerbach, 2011, p. 141).
Outro desafio traduzir essa atratividade presente no texto
bblico em interesse
no leitor (Auerbach, 2011, p. 48). No modelo cristo, o autor
elevado funo divina,
uma vez que ele se insere na narrativa. Ricoeur se limita a uma
teologia uniforme da
dupla autoria, divina e humana, onde Deus colocado como a causa
formal e o escritor
como a causa instrumental (Ricoeur, 2008, p. 87). Esse interesse
no somente no
carter literrio do texto, mas sobretudo seu aspecto fidesta,
visto que a Escritura
objetiva despertar f e gerar um novo corao, uma experincia de
encontro com Deus,
de converso. Tal despertamento ocorre mediante um ato espiritual
onde a Providncia
Divina viabiliza a interpretao figural conectando numa espcie de
intellectus
spiritualis dois acontecimentos que no esto ligados nem pelo
tempo, nem pela
causalidade (Auerbach, 2011, pp.76; 169).
Interligada com a providncia divina est a compreenso de Cristo
como chave
hermenutica que possibilita a compreenso e recepo do texto.
Ocorre que Auerbach
reconhece a existncia de passagens bblicas, no poucas, que
possuem um carter to
hermtico que dificulta a aplicao desse princpio interpretativo.
Para interpret-las,
Jakeline Nunes
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segundo ele, continua sendo necessrio humildade e f (Auerbach,
2011, p. 134).
Nesses filtros encontra-se a universalidade da Bblia, uma vez
que todos os seres
humanos podem ter e exercer humildade e f.
A hermenutica bblica se depara tambm o dilema da contextualizao.
Isso
porque hermenutica a decifrao da vida no espelho do texto
(Ricoeur, 2008, p.
49). Como proceder uma exegese textual na qual a contextualizao
se faa presente,
sem cair nos extremismos dos fundamentalismos e subjetivismos.
Auerbach destacou
que os escritores cristos patrsticos, quanto mais aprofundados
na cultura estavam,
mais se preocupavam com o dilogo com a mesma, vertendo o contedo
do
Cristianismo em textos no como meras tradues, mas como adaptao s
suas
prprias tradies conceituais e expressivas (Auerbach, 2011, p.
63). Ricoeur
corrobora com essa percepo ao dizer que interpretar a Escritura
ao mesmo tempo
ampliar seu significado como significado sagrado e incorporar os
resqucios da cultura
secular nessa compreenso (Ricoeur, 2008, p. 49). necessrio
compreender o mundo
em que vivemos (Auerbach, 2011, p. 494) e isso se faz mediante o
dilogo com a
cultura.
Por fim cabe perguntar se a conscincia crtica, herana da
modernidade, impede
ou mesmo condiciona a recepo bblica. Para Auerbach ela
apresentou uma nova
maneira de ler o texto, agora como narrativa. Nessa narrativa
esto contidos os cuidados
e temas que passaro pela mmesis, isto , que sero vivenciados.
Por isso que nele a
moral figural e a realidade se torna dependente da figurao. A
Escritura passa a ser
acolhida no mais como dogma ou com uma prvia e externa
autoridade. Exemplo disso
o que Ricoeur fala de uma leitura confessante na qual a
comunidade de leitores
confere ao texto a autoridade (Ricoeur, 2006). No mais o texto
em si, mas agora o que
projeto sobre ele define a autoridade. A crise deixada pela
modernidade ento no mais
oriunda da relao tensa entre autonomia e heteronomia, porm da
constatao de que
falta uma narrativa ordenadora, que unifique as realidades
estanques. Isso fruto de
uma conscincia mais livre, mais abrangente (Auerbach, 2011, p.
286), contudo, mais
perdida no sentido de ausncia de esteio.
Concluso
Jakeline Nunes
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- Revista dos Alunos do Programa de Ps-graduao em Cincia da
Religio - UFJF
Sacrilegens, Juiz de Fora,v.10,n.2, p.109-120, jul-dez/2013 - S.
Dusilek - http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2014/07/10-2-9.pdf
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Engana-se quem pensa que o trabalho aqui apresentado atem-se no
seu todo a
questo bblica. Logicamente que muitas particularidades da
narrativa bblica foram
aqui expostas e, nessa dimenso, se atm ao texto citado. Contudo,
a proposta aqui vai
alm. Num contexto globalizante em que as fronteiras
territoriais, conceituais e culturais
so convidadas a uma dissolvio, pesquisar sobre o lugar da recepo
de um texto
sagrado torna-se desafiador e, por que no, balizador.
A modernidade se tornou um fenmeno global. Talvez no com o
mesmo
processo e cristalizao com a qual foi sendo construda na Europa.
Contudo, fato que
a modernidade ganhou feies globais. Em diferentes reas do mundo
e sobre diversas
culturas, a modernizao pode ser sentida. Em pases mais pobres
notou-se uma
assimilao do conforto moderno, sem que com ele viesse um dilogo
cultural,
promovendo anacronismos patentes. Essa modernizao acentuou a
insegurana do ser
humano, abrindo espao para os fundamentalismos e para as vias
privadas e subjetivas
de expresso religiosa. E, nesse aspecto, o dilogo some do
horizonte. Armstrong
destaca que os movimentos messinicos de restaurao de uma
religiosidade original
foram os que mais contriburam para uma privatizao da religio que
escasseia as
interfaces com o espao pblico (Armstrong, 2001, p. 134).
Realocada em novo patamar pela modernidade que no mais o de
autoridade, a
recepo do texto bblico passou da esfera de domnio, de poder,
para o literrio. Sua
recepo se d hoje pela necessidade do ser humano de possuir no s
uma narrativa,
como tambm uma meta-narrativa que empreste sentido, conexo para
a vida. Ver o
texto sagrado pelo prisma literrio possibilitou entre outros a
valorizao da
especificidade da linguagem religiosa e de seu rico contedo
simblico. Buscar as bases
de uma atualidade da Bblia e como se daria sua recepo na
modernidade representa
uma visualizao de um modo dialogal. Isto porque o desafio da
modernidade plural
est ligado ao lugar das religies nessa nova maneira de
configurar a vida. Lugar da
refigurao que Auerbach tanto destaca.
Por fim, torna-se importante a comparao desses aspectos
dialogais com outras
narrativas religiosas, outras expresses religiosas que tenham
por referncia um livro
sagrado. Se em grande parte do mundo a humanidade afetada pela
modernidade, pode
ser que nessas demais localidades os princpios de recepo do
texto vislumbrados por
Erich Auerbach em sua Mimesis, consigam promover uma ponte para
um dilogo entre
Jakeline Nunes
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- Revista dos Alunos do Programa de Ps-graduao em Cincia da
Religio - UFJF
Sacrilegens, Juiz de Fora,v.10,n.2, p.109-120, jul-dez/2013 - S.
Dusilek - http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2014/07/10-2-9.pdf
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a religio e a modernidade, entre a religio e a cincia. Mas isso
fica como sugesto
para um aprofundamento posterior.
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