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1 ROBIN COOK HOSPITAL A PRIMEIRA PALAVRA Os Americanos mantêm-se fiéis aos seus mitos. Em nenhum lado é isto tão evidente como no reino carregado de emoções que é a Medicina e os seus serviços. As pessoas acreditam naquilo que querem, no que sempre acreditaram, e ignoram ou desprezam como falso tudo aquilo que possa ameaçar a reconfortante confiança nos seus próprios médicos ou no tipo de tratamento que possam vir a receber. Foi apenas recentemente, e com relutância, que a maioria das pessoas perdeu a presunçosa ideia de que a Medicina nos Estados
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Nov 30, 2018

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1ROBIN COOKHOSPITAL

A PRIMEIRA PALAVRA

Os Americanos mantêm-se fiéis aos seus mitos. Em nenhum ladoé isto tão evidente como no reino carregado de emoções que é aMedicina e os seus serviços.As pessoas acreditam naquilo que querem, no que sempreacreditaram, e ignoram ou desprezam como falso tudo aquilo quepossa ameaçar a reconfortante confiança nos seus próprios médicosou no tipo de tratamento que possam vir a receber.Foi apenas recentemente, e com relutância, que a maioria daspessoas perdeu a presunçosa ideia de que a Medicina nos Estados

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Unidos e o seu pessoal eram os melhores do mundo; e mesmo estadesagradável realidade foi conseguida mais por motivoseconómicos que pela razão em si, mais devido aos elevados custosdos cuidados médicos, do que à qualidade destes.Mesmo reconhecendo que algo está errado, Mrs. Brown mantémsefirme nas suas convicções de que o seu querido médico, que morana sua rua, é o melhor da cidade:- É um homem encantador! E todos os internos, abençoadossejam, são tão delicados e atenciosos!As bases desta admiração pelo mundo médico é algo que resideno espírito do Americano moderno. A sua ligação com a Medicina énos

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demonstrada dia a dia através das horas que passa paralisadoem frente ao televisor, observando os diagnósticos e triunfosterapêuticos dos seus médicos omniscientes.Esse romantismo, com a sua credibilidade directa, resulta noentanto, na sua limitada tolerância, o que torna extremamente difícila apresentação de ideias contraditórias. Não obstante, é essa aintenção do presente livro - destruir a mitologia contemporânea e amística do ano do internato, e demonstrar o que é uma dura2realidade. Os efeitos psicológicos de um internato sobre o médicosão muito profundos. (E sendo assim, imagine-se os efeitos numamultidão de pacientes!)

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Peço fervorosamente ao leitor que avance na leitura sempreconceitos, pondo de lado o impulso quase irresistível deglorificar a Medicina e os que nela estão envolvidos, e que tentecompreender os efeitos de um internato na pessoa de um médico.As pessoas que servem a Medicina são humanas, assediadas poruma multidão de armadilhas - fúria, ansiedade, hostilidade eegocentrísmo.Quando colocadas num ambiente hostil, reagem como sereshumanos, não como curandeiros e super-homens. E, apesar dasséries de televisão, o internato, tal como é nos nossos dias, é umambiente hostil. (Bastam as noites em branco para explicar uma

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série de padrões de comportamento aberrantes; estudos recentesdemonstraram-nos como é possível para um indivíduo tornar-serapidamente esquizofrénico se for privado de repouso suficiente.)Os acontecimentos descritos neste livro são todos reais. São umexemplo típico - e não esporádico - da vida de um interno. O próprioDr. Peters é composto de um pouco da minha experiência pessoal eda de outros colegas internos, tornando-se assim uma amálgama depersonalidades reais, Embora não apresente as aberrações de umapersonalidade psico-social, é no entanto o representante em geraldo interno.

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De tal modo que emerge muitas vezes como sendo um indivíduolamuriento que falha socialmente enquanto evoluiprofissionalmente, o que não nos deve surpreender. É verdade quedurante o seu internato o Dr. Peters adquire grande conhecimento eexperiência médica; mas desenvolve também uma atitude maisobjectiva perante a morte. Contudo, há ao mesmo tempo umaintensidade concomitante na sua revolta e hostilidade reprimidasque o leva a um maior isolamento e comportamento autista, a fortessentimentos de autocompaixão, e a uma incapacidade paraestabelecer relações significativas com os outros.3

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Outros aspectos da prática da Medicina aqui apresentadospode também destruir algumas crenças. Mais uma vez é pedido aoleitor que leia sem preconceitos, para lembrar que a maior parte daimpessoalidade e anonimato atribuídos aos pacientes sãosimplesmente o resultado inevitável da familiaridade com asdoenças humanas.Essa impessoalidade pode, evidentemente, ser levada aextremos quando o paciente deixa de ser um indivíduo e se tornasimplesmente um objecto a ser tratado. Isto é definitivamentepatológico. Existe num interno o potencial de chegar a este estadopatológico. De facto, é muitas vezes obrigado a lidar com ele - e

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geralmente sem orientação - como lhe dita a sua natureza.Uma palavra para poder antecipar um tipo específico de crítica:uma vez que o Dr. Peters fez o internato num hospital escolar, emvez de num Centro Médico da Universidade, poderão alguns dizerque ilações tiradas se aplicam apenas a esse ambiente.Talvez um comentário tenha um certo mérito, mas não creio quereduza validade do argumento central. Pelo contrário, a experiênciado Dr. Peters poderia ser ainda mais intensa se se encontrasse nocentro Universitário. Existe aí uma enorme competição entreinternos, o eterno desejo de ficar à frente do próximo, e, nessecontexto, o trabalho árduo e as buscas na literatura médica têm

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possibilidades de merecer maior preocupação nesse sistema, doque os próprios pacientes.Penso que as experiências do Dr. Peters se aplicamessencialmente tanto à universidade como aos programas de ensinoda comunidade. O que lhe aconteceu é justificado por umaconvincente similaridade de incidentes contados por vários médicosde cada tipo de internato.Não se retrata aqui o tipo de hospital de poucas condições,onde não há ensino. É possível que a crítica se possa aplicar nessescasos.O manuscrito deste livro foi lido por oito médicos, três anosdepois do seu internato. Apenas um discordou do conceito de que oconteúdo do livro era uma realidade autêntica e brutal, e que

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4personificava a situação deles. O dissidente objectou que osmédicos do hospital onde ele estivera interno eram muito maisinteressados que os retratados no livro. Este médico estivera comointerno num centro médico da universidade em West Coast. Talvez sepossa daí tirar a conclusão de que todos os novos internos aídeveriam fazer o internato.Repito que este livro é real. Pode não representar todos ostipos de internato de um hospital, mas mostra-nos a sua maiorparte. Reflecte honestamente uma condição subtil, no mínimodesencorajadora, e no máximo perigosa. Esta é uma razãosuficiente.Décimo quinto DiaCIRURGIA GERAL

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Já estava a dormir quando o telefone tocou mais uma vez, meiahora depois. Atendi-o no final do primeiro toque, esticando o braçoinstintivamente, quase em pânico, derrubando o livro de cirurgia queme fizera adormecer. A enfermeira estava desesperada.- Dr. Peters, o paciente que esteve a ver há pouco deixou derespirar e não lhe sinto o pulso.- Vou já para aí.Desliguei desajeitadamente o telefone e comecei a minharotina: calças, camisa, sapatos, uma corrida pelo corredor paraapanhar elevador enquanto apertava as calças. Carreguei no botãoe ouvi o gemido agudo do motor eléctrico. Enquanto esperava comimpaciência compreendi subitamente que não sabia a que paciente

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a enfermeira se referira. Tinha tantos. Imagens daqueles que haviavisto nessa noite percorreram-me a mente.Mrs. Takura, Roso, Sperry, e o mais recente, um homem idosocom um cancro no estômago. Devia ser ele. Era um doente particulare a primeira vez que o vira tinha sido quando fora chamado paralidar com os pacientes novos, e ele tinha tido subitamente uma fortedor abdominal. Era tão débil e fraco que não se podia mover, equase não conseguiu responder às perguntas...5Tinha apenas escassas informações sobre ele. A enfermeiratambém não sabia muito. Não havia qualquer ficha específica, a não

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ser uma nota breve que dizia que tinha 71 anos e sofria de cancrogástrico há cerca de três anos; haviam-lhe retirado o estômagocirurgicamente três meses antes. Segundo o gráfico, havia dadoentrada no hospital, desta vez devido a tonturas dor e mal-estargeral.Triturando até ao fim as suas deliberações mecânicas, oelevador parou e a porta castanha-avermelhada deslizou paradentro da parede. Entrei, carreguei no botão, e espereiimpacientemente que a besta desastrada me levasse ao rés-dochão.Oexame que fiz ao homem não me revelou nada que nãoesperasse. Estava obviamente a sofrer bastante, e tinha uma boa

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razão. O cancro havia-se espalhado também pelo abdómen, semdúvida. Após ter tentado em vão contactar o seu médico particularpelo telefone, tinha começado simplesmente por lhe aplicar soro eDemerol para o ajudar a dormir. Foi tudo o que me ocorreu.O elevador deixou-me, finalmente, no rés-do-chão. Atravesseirapidamente o pátio, entrei no edifício principal do hospital e subipelas escadas traseiras para o andar onde estava o paciente. Assimque entrei no quarto, deparei com a enfermeira petrificada, semsaber o que fazer, à luz do candeeiro da cama. O homem estava tão

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magro que as suas costelas sobressaíam no peito; o abdómen faziauma cova, abaixo da caixa torácica. Estava completamente imóvel etinha os olhos fechados.Observei o seu peito de perto. Estava tão acostumado a ver osmovimentos provocados por uma respiração pesada, que os meusolhos me levaram a pensar que este se movia um pouco, mas não;procurei o pulso. Nada. Mas existem pessoas que têm o pulso fraco.Verifiquei se estava a medir a pulsação no sítio certo do pulso, olado do polegar, e tentei depois o outro pulso. Nada.- Não houve paragem cardíaca, Doutor. A enfermeira de turnodisse-me que não deveria ser uma paragem cardíaca. - A enfermeira

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6parecia estar na defensiva."Cala-te", pensei, irritado e aliviado ao mesmo tempo. Nãoestava preocupado em declarar ser uma paragem cardíaca. Sóqueria ter a certeza absoluta, porque esta era a primeira vez que mevia confrontado com a responsabilidade de declarar a morte. Claroque tinha havido casos de mortes na escola médica, uma sériedeles, mas isso fora antes - cerca de um ano, de facto não haviamuito tempo -, e nessa altura o pessoal médico da casa tinha láestado para ajudar, interno ou residente; não era, em suma, umatarefa de estudante.Agora eu pertencia ao pessoal médico e tinha de tomar a

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decisão - o dever de fazer um julgamento -, pensei nervosamente,como no basebol, seguro ou fora, e sem dó do árbitro. Estava morto.Ou... não estaria? Demerol, um homem velho e fraco, anestesiaprofunda - a combinação poderia provocar animação suspensa.Tirei lentamente o meu estetoscópio, adiando a decisão, e pusfinalmente os auscultadores nos ouvidos enquanto colocava odiafragma no lugar do coração.Uma série de ruídos estaladiços ecoou aos eus ouvidosenquanto os seus pêlos do peito se moviam por baixo doestetoscópio como resposta aos meus tremores. Não conseguiaouvir o coração - no entanto, poderia? Abafado, e fraco?... A minha

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imaginação sobreaquecida continuava a dar-me o batimento vital,próprio da vida.Compreendi então que o que ecoava aos meus ouvidos era omeu próprio coração. Tentei mais uma vez encontrar a pulsação, nospulsos, nas virilhas e no pescoço. Estavam silenciosos, mas, noentanto, algo me dizia que ele estava vivo, que iria acordar, e euseria considerado um incompetente. Como poderia ele estar mortose havíamos conversado apenas algumas horas antes? Detesteiestar naquela situação. Quem era eu para decidir se o homemmorrera ou não? Quem era eu?A enfermeira e eu entreolhámo-nos sob a luz do candeeiro.Estivera de tal modo absorvido nos meus pensamentos que quase

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me surpreendi por a ver ainda ali. Ao levantar as pálpebras do7homem, deparei com um par de olhos castanhos, que pareciamnormais se não fosse pelo facto de as pupilas não dilatarem quandopassei com a lanterna pela parte córnea envelhecida. Tive a certezade que estava morto; esperava que sim, uma vez que ia pronunciálo.- Acho que está morto - disse, olhando outra vez para aenfermeira, mas ela afastou o olhar. Provavelmente pensava que euera estúpido.- É a primeira vez que um paciente sob os meus cuidados morre -disse ela, voltando-se para mim subitamente. As suas mãos caíam

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flácidas, impotentes. Finalmente compreendi que ela me imploravaque dissesse alguma coisa sobre o Demerol, que não havia sido oDemerol que ela lhe havia dado. Mas como havia eu de saber o queo matara? Veio-me à ideia uma cena de um antigo filme de terrorque o corpo se começa a erguer lentamente de uma gaveta damorgue.Começava a estar aborrecido comigo mesmo, mas tinha detentar ouvir o coração mais uma vez. Pus o estetoscópio. Naquelanoite calma, minha própria respiração ecoava na minha mente. Estámorto; a morte, fria e silenciosa, murmuravam os centros racionaisdo meu cérebro. Deveria dizer algo simpático à enfermeira. Talvez

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"deve ter sido muito suave e sem dor; morreu com dignidade. Tenhoa certeza que lhe está agradecido pelo Demerol." Agradecido? Queestranha palavra para dizer.Aqui estava eu a lutar contra as minhas próprias incertezas, malconseguindo derrotá-las, e ainda a tentar acalmar outra pessoa.Lutando com o desejo de lhe tomar mais uma vez o pulso, levantei olençol que o cobria.- Talvez seja melhor mandar chamar o médico particular - disse,ao sairmos do quarto.O médico particular atendeu tão rapidamente o telefone que asua voz foi como um banho de água fria no meu rosto. Disse-lhequem e por que lhe estava a ligar.

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- Certo, certo. Avise a família e prepare a autópsia. Quero8verificar o que se passou com a conecção que fiz entre a bolsa doestômago e intestino delgado. Foi uma anastomose feita apenascom camada de suturas. Acho que esse é realmente o melhorsistema; é muito mais rápido. De qualquer modo, o homem foi umcaso curioso, especialmente porque sobreviveu muito mais tempo doque esperávamos. Por isso trate-me da autópsia, certo, Dr. Peters?- Ok, vou tentar. - Depois desta jovial conversa da parte dele,voltei a estar ligado ao silêncio da minha mente, tentando organizaros pensamentos. O médico particular queria uma autópsia. Óptimo.

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Óptimo mesmo. Onde estava o número da família? Um braço demulher veio em meu auxílio, apontando para uma linha do livro:- Parente mais próximo: filho. - Era realmente uma situaçãopéssima. Um estúpido interno desconhecido a telefonar a meio danoite, Tentei imaginar uma palavra neutra, que servisse para opropósito sem aquele significado. "Morto... desaparecido... não,falecido." O ruído do telefone foi interrompido por um "Estou?"alegre.- Aqui fala o Dr. Peters, e... lamento informá-la de que o seu paifaleceu. - Houve um longo silêncio do outro lado; talvez não metivesse entendido. Alguém falou.- Já estávamos à espera.

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- Há mais uma coisa. - A palavra "autópsia" estava-me na pontada língua.- Sim?- Bem... não importa agora. Falaremos disso mais tarde, masqueria pedir-lhe que viesse esta noite ao hospital. - Era o que aenfermeira me havia estado a dizer com uma pantomima agitada.- Ok, estaremos aí. Obrigado.- Os meus pêsames e muito obrigado.Uma enfermeira mais velha materializou-se saindo da escuridãodo corredor e enfiou uma série de papéis oficiais debaixo do meunariz, indicando-me onde deveria assinar e apontar a hora daocorrência.Perguntei-me quando teria ele morrido: realmente não sabia.

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- A que horas faleceu ele? - perguntei à recém-chegada, que se9colocara ao meu lado direito.- Faleceu no momento em que o declarou morto, Doutor. - Estaenfermeira, supervisora do turno da noite, era conhecida pela suaretórica mordaz e pela desconfiança que nutria pelos internos. Masnem mesmo o seutom ácido e a sua troça óbvia pela minhaingenuidade podiam apagar a imagem do cadáver a erguer-se dagaveta.- Chamem-me assim que a família chegar - disse.- Com certeza, e obrigada.- Bem, obrigado - respondi. Toda a gente agradecia. No meucansaço, todas estas pequenas coisas se tornavam enormes e

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absurdas. O desejo de ir verificar mais uma vez o pulso aindaestava presente mas, com algum esforço, saí rapidamente do quartodo homem; as enfermeiras podiam estar a olhar. Por que mecontinuava a preocupar com a ideia de ele acordar? E quanto aohomem como pessoa, isso não interessava? Claro que sim, mas nãoo conhecia. Parei no princípio das escadas.É verdade, não o conhecia, mas ele era uma pessoa. Um homemidoso, de 71 anos, claro, mas ainda assim um homem, um pai, umapessoa. Continuei a descer as escadas. Não podia enganar-me. Seele se levantasse agora seria motivo de gozo no hospital. A

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confiança que tinha em ser um médico crescia gradualmente; issoacabaria com ela.De volta ao elevador, tentei lembrar-me de quando começara amudar, mas apenas conseguia recordar cenas, possíveis pontos deviragem, tais como a da minha visita à enfermaria durante o tempode aulas e da rapariguinha de 11 anos deitada na cama que nosolhava esperançosa. Sofria de fibrose cística, que é geralmentemortal. E quanto ouvia o pessoal médico discutir o caso, sentia-meenfraquecer sem conseguir olhá-la de frente.- Talvez haja uma hipótese de a manter viva mais alguns anos -disse o médico de apoio quando nos retirámos. Nesse instante,quase me senti um canalizador.

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A porta do elevador abriu-se. De alguma forma, desta vez,10minhas responsabilidades haviam mudado. Estava agora apreocupar-me que alguém se pudesse levantar da morgue e arruinarminha imagem, fazendo-me passar pelo ridículo. Está certo haviamudado, notoriamente para pior, mas que podia eu fazer acercadisso?Já no meu quarto, a cama gemeu sob o peso do meu corpo. Nasemiobscuridade, os olhos da minha mente percorreram cadadetalhe daquele corpo magro. Isto aconteceria aos outros internos?Não sabia ao certo, mas também não podia imaginar o que lhespassaria pela cabeça. Pareciam tão seguros, tão certos mesmo

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quando não tinham esse direito. Antes de aqui estar, imaginava ascrises de um interno duma forma talvez diferente, um pouco maisnobre. Eram sempre à volta de um doente que tentáramos salvarcom grande luta, angústia de uma vida perdida.Mas aqui estou a remoer-me com a ideia de que um paciente deoutro médico recomeçasse a respirar, aborrecia-me não conseguirrelacioná-lo com a pessoa em si. Faltava um quarto para as dez.Apressei-me, agarrei no telefone e liguei para a ala dasenfermeiras. Precisava naquele momento de estar com alguém, paraprovar que a vida continua.- Mrs. Stevens, por favor. Jan, podes aqui vir? Não, não se passa

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nada. Claro, traz as mangas. É isso mesmo, estou de serviço.Podia ver algumas estrelas através dos cortinados. Estava comointerno havia duas semanas e tinham sido as mais longas duassemanas dos meus 25 anos, o ponto mais alto de tudo, do liceu, dafaculdade, da escola médica. Como havia sonhado com aquilo!Agora, quase toda a gente que conhecia estava no estado de graçado internato, e, quando não era uma desgraça, era uma confusão. -Bem, Peters, agora é que foi.Só lhe quero lembrar que é muito fácil sair da liga, mas muitodifícil entrar outra vez. - Esta é uma citação directa do meu professorde cirurgia quando soube que eu decidira fazer o internato num

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centro que não pertencia à universidade, longe da torre de marfimdo circuito médico, e ir trabalhar nas zonas desfavorecidas. E para o11sistema médico não há sítio melhor que o Havai.Nos termos do sistema de trabalho ditado pelo computador, euestaria destinado a um internato de uma qualquer Ivy League.Nesse aspecto, era claramente evidente que havia saltado fora. Masjá não podia evitá-lo. Assim que acabei a escola médica, comecei aver que ser médico era entregar-me ao sistema, como um tronco auma máquina de cortar.No fim do tratamento, já deveria estar alisado, cheio de

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conhecimentos e pronto a arranjar compradores, provavelmente. Masassim como as aparas saltam, também as partes "não produtivas" dapersonalidade devem ir, tais como a empatia, a humanidade e oinstinto de se preocupar. Tinha de evitar isso, se conseguisse, senão fosse já tarde de mais. Saltei por isso no último minuto.- Bem, Peters, agora é que a fez bonita.O facto de o homem magro ter morrido deixara-me um pouconervoso, e levantei-me da cama mesmo antes de a Jan ter batido.Graças a Deus não era o telefone. Estava com um certo receio dotelefone.- É óptimo ver-te, com as mangas e tudo. Mangas, exactamente

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do que eu estava a precisar. Claro que podes acender a luz. Estavasó aqui a pensar. Está bem, deixa isso. Pratos e talheres? Querescomer as mangas agora? - Eu não queria mangas, mas isso não erarazão, e de qualquer modo ela estava deliciosa com a luz suave areflectir-se no cabelo, e cheirava tão bem como se tivesse acabadode sair do chuveiro. Um perfume mais doce que qualquer perfume.Mas a coisa que mais atraía em Jan era a sua voz. Talvez elacantasse um pouco para mim.Fui buscar o prato e duas facas, sentámo-nos no chão ecomeçámos a comer as mangas. Não falámos, a princípio, e essa erauma das razões porque gostava dela, pela sua reserva. Tinha

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também um aspecto agradável de se olhar, e parecia tão jovem,pensava eu. Já havíamos estado juntos duas vezes anteriormente,antes desta noite, mas não éramos, no entanto, muito íntimos. Nãotinha importância. Bem, não tinha importância porque me apeteciaconhecê-la melhor, especialmente nessa altura. Havia algo de12poético no seu cabelo louro e feições delicadas; só nessa ocasiãosenti necessidade de a conhecer melhor.A manga era pegajosa. Tirei-lhe a pele toda e dirigi-me ao lavalouçaspara lavar as mãos. Quando voltei de novo para junto delaolhava para outro lado, e a luminosidade vinda da janela dava aos

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seus cabelos um tom de prata esplendoroso. Estava encostada a umbraço, com as pernas dobradas para o outro lado.Quase lhe pedi para cantar Tenta lembrar-te, mas não o fiz,provavelmente porque ela o faria - ela cantava quase tudo o que lhepedia para cantar. Se tivesse começado a cantar nesse momento,toda a gente das outras alas a iria ouvir. De facto, podiam atéprovavelmente ouvir-nos a comer as mangas. Ao sentar-me ao ladodela, voltou o rosto e pude ver os seus olhos.- Aconteceu algo esta noite - comecei.- Eu sei - disse ela.Aquilo quase me fez parar por ali. Eu sei. Sabia, sabia. E não sóeu sabia que ela não sabia, como também que não seria capaz de

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lhe explicar. Continuei.- Pronunciei a morte do velhote magro como sendo devida a umcancro no estômago, e agora estou com receio de que o telefonetoque e que seja a enfermeira a dizer-me que afinal ele está vivo.Ela virou a cabeça para o outro lado, afastando o olhar. Foientão que disse a palavra certa.Disse que era divertido! Divertido?- Achas que é absurdo? Bem, era de facto absurdo, mas eratambém divertido.- Sabes que uma pessoa morreu esta noite, e só consigo pensaré que ela pode estar viva, e isso seria uma boa partida. Umapartida para mim.Ela concordou. E a sua análise do assunto terminou ali.Continuei:- Não achas estranho eu ter essa opinião estúpida sobre o finalda vida de alguém?

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Isso foi de mais para ela, penso, porque a sua resposta foi13perguntar-me se gostava de mangas. Gosto de mangas, só quenaquele momento não me apetecia comer. Ainda lhe ofereci aminha. Apesar de tudo, sentia-me um pouco melhor, como se atransmissão dos meus pensamentos tivesse retirado o velhotemagro da minha mente. Perguntei a mim mesmo se Jan cantariaAquaríus. Ela tornava-me feliz de uma forma simples.Enlacei-a com o braço e ela pôs-me um pouco de manga na boca,derrubando uma barreira sem dar por isso. "Está bem, não falaremosdo velhote magro", pensei. Beijei-a e, quando me apercebi de que

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ela também me beijava, pensei como seria bom fazer amor com ela.Beijámo-nos mais uma vez, e ela abraçou-me, de modo que pudesentir o seu calor e suavidade.Tinha as mãos pegajosas da manga, mas passei-as ao longo dassuas costas, perguntando a mim mesmo se ela faria amor comigo.Essa ideia afastou todas as outras da minha mente. Sentia-meridículo ali no chão, e estava já a imaginar como haveríamos de irpara a cama, quando me apercebi de que ela nada trazia por baixodo vestido leve; tinha estado demasiado ocupado a acariciar-lhe ascostas. Ela sentiu o meu desejo de sair dali e levantou-se ao mesmotempo.

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Tentei tirar-lhe o vestido, mas ela agarrou-me no braço ecomeçou a desapertá-lo atrás, e saiu de dentro dele, maravilhosasob a luz suave. Pode não ter compreendido o meu problema, masrealmente conseguira fazer-me esquecê-lo. A poesia em que eu aenvolvera alargava-se agora aos seus seios. Tirei a camisa, oestetoscópio, e aproximei-me rapidamente, com medo que elapudesse desaparecer.O telefone tocou. Aquele momento tinha-se desvanecido, e naminha cabeça estava novamente o velhote magro. Jan deitou-se nacama, enquanto eu olhava para o telefone. Dez segundos antes, aminha cabeça estava clara e bem dirigida; agora era novamente

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uma selva. E com a confusão ocorreu-me algo terrível: ele está arespirar. Deixei o telefone tocar mais três vezes, esperando queficasse por ali. Era a enfermeira.- Dr. Peters, a família chegou.14- Obrigado. Vou já para aí.Senti-me inundado por uma sensação de alívio; era apenas afamília. O homem continuava morto.Pus a minha mão no fundo das costas de Jan; a sua pele quentee macia exigia atenção, e a curvagraciosa das suas costas não meajudava a pensar em como pedir à família para fazer a autópsia. Foifácil encontrar a minha camisa, mas o estetoscópio conseguiuenganar-me até que o pisei enquanto vestia a camisa.- Jan, tenho de ir ao hospital. Espero vir depressa. - Saí do calor

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do quarto a pestanejar diante da luz fluorescente do corredor, acaminho da tortura do elevador.Existe algo de sinistro no silêncio e na escuridão de um hospitaladormecido. Eram já dez e meia e só estavam de serviço os turnosda noite, uma espécie de vida feita de luzes suaves e vozes baixas.Atravessei o corredor em direcção à ala das enfermeiras, passandopor quartos assinalados apenas por luzes fracas.Podia ver do outro lado duas enfermeiras a conversar, emboranão conseguisse ouvi-las. O corredor parecia-me excepcionalmentelongo, desta vez, como se fosse um túnel, e a luz ao fundo lembravame

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uma pintura de Rembrandt, de áreas claramente iluminadasemolduradas em terracota. Sabia que a calma podia ser desfeita aqualquer momento, levando-me a uma nova crise, mas por enquantoesse mundo conservava-se intacto.Uma autópsia. Tinha de lhes pedir para fazer a autópsia.Lembrei-me da primeira que vira, no segundo ano da escola médica,no início do nosso curso de patologia, quando eu ainda pensavaque a Medicina podia curar toda a gente.- Venham para aqui, homens, e ponham-se à volta da mesa.Parecíamos todos idênticos, nas nossas batas brancas, amarcharmos como crianças bem comportadas, que até penso que

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éramos. E foi então que a vi. Não a que tínhamos ido observar, massim outra, numa outra gaveta, e que seria a próxima a serautopsiada. Tinha a pele de um amarelo frio e acinzentado, comuma erupção de herpes zoster, de lesões incrustadas que iam do15braço até à cintura, passando pelo peito. A Herpes Zoster é umadoença séria da pele caracterizada por grandes feridas incrustadas.O seu efeito visual tinha sido sem dúvida assustador. A mulherestava deitada na placa de cimento manchada. Caía água à suavolta e por baixo dela, fazendo uma caleira na base, originando umruído quase obsceno de sucção.

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Alguns traços a lápis haviam sido feitos na etiqueta colocada nobraço direito. O seu cabelo parecia fraco e quebradiço. Mas o quemais me impressionara fora a cor desagradável da sua pele. Deviater cerca de 30 anos, não era muito mais velha que eu, pensei. Estavisão não me havia feito sentir fisicamente doente, como a algunscolegas, mas sim de algum modo impotente.Estava inegavelmente morta, mas, no entanto, pareceria estarviva se não fosse pela cor da pele. Morta, viva, morta.. estaspalavras, completamente opostas, pareciam fundir-se na minhamente. O cadáver que havia dissecado no primeiro ano de anatomia

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não se parecia com este. Estava morto e nada sugeria ter estadovivo. É o ambiente que dá esta ideia, disse para mim mesmo,aquela sala cinzenta-escura e a luz indirecta, já de si parecendomanchada e decadente ao tentar entrar pelas janelas deprimentes.Que diabo queres, Peters? Um carro fúnebre com cobertura develudo, velas, e rosas?Mas não era aquela mulher o cadáver que vínhamos ver.Comprimi-me contra as batas brancas agrupadas à volta de outramesa, e pude observar órgãos e ouvi os ruídos gorgolejantes que oprofessor de patologia fazia ao abrir o corpo, demonstrando a suatécnica. Não consegui ver o suficiente para apreciar a lição, e, de

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qualquer modo, o que me havia interessado tinha sido o que estavaatrás de mim. Os outros seguiam atentamente a aula; eu nãoconseguia deixar de olhar para o outro cadáver. Não queria tocarlhe,mas fi-lo, e ter descoberto que não estava assim tão frio aindapiorou as coisas.Já não me sentia chocado, apenas um pouco assustado com ofacto de ela me ter demonstrado elementarmente que a diferença16entre a vida e a morte era uma questão de tempo e de sorte. Issonada significava para ela agora. Devia também ter tido medo,porque era uma mulher jovem, talvez até desejável e cheia depossibilidades, e estava agora morta e amarelada, deitada no

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cimento manchado, numa suja sala subterrânea. Era uma coisa lidarcom sexo quando o indivíduo estava vivo, quente e vigoroso. Masnão conseguia lidar com isto. O meu cérebro agitado registara milpensamentos; o sexo havia inegavelmente estado entre eles, asminhas recordações do amor.Havia sido há muito tempo, e a seis mil milhas de distância.Neste momento tinha de tratar da autópsia do homem magro.- A família está ali, no sofá, Doutor - disse uma das enfermeirasquando cheguei à recepção. Duas pesssoas pareceram materializarsede repente vindas do nada. Enquanto me aproximava, a palavra"autópsia" lembrava-me a cada instante aquele cabelo baço e a

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herpes zoster. Talvez devesse chamar-lhe "post-mortem", soavamelhor.- Os meus pêsâmes.- Obrigado. Já estávamos à espera.- Gostaríamos de fazer uma autópsia. - Afinal, a palavra saiu-memuito naturalmente.- Claro, é o mínimo que podemos fazer."O mínimo que podemos fazer?" Surpreendia-me que sentissemque tinham de fazer alguma coisa. Já me sentia suficientementeconstrangido por ter sido eu quem lhes telefonara a meio da noite adizer que o pai deles havia morrido, e sentia-me agora ainda maisao pedir-lhes autorização para realizar a autópsia.

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Mas aparentemente também pareciam sentir-se culpados. Umavez que ninguém era culpado da morte, todos partilhavam a culpa. Omínimo que podemos fazer? Estava a subestimar um simplescomentário. Que reacção esperara eu deles? Acusações? Lamúrias?Como iria aprender mais tarde, a maior parte das pessoas ficasimplesmente paralisada perante a morte, e condicionada pelo seucomportamento reflexivo normal e civil.- Nós tratamos do resto dos papéis, Doutor - ofereceu-se uma17das enfermeiras.- Obrigado.- Queríamos agradecer-lhe pelo que fez - disse o filho, assimque saímos da ala.

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- De nada. - Eram boas pessoas, pensei, ao afastar-me,felizmente não leram o meu pensamento, Senti nesse momento umanecessidade de ir verificar o pulso do homem. Qual seria a reacçãodeles se soubessem do meu medo? Ficariam aborrecidos, ouchocados. Provavelmente ficariam primeiro chocados e depoisaborrecidos. E que pensariam se o pai acordasse na morgue? Sorripara dentro, porque é muito raro levar-se agora alguém para amorgue. A maior parte vai para uma capela funerária. Demasiadosprogramas de TV e filmes de má qualidade. Estava a ser parvo.Costumo devanear quando estou cansado, e neste momento, sentiameexausto.

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- Doutor, tem aqui uma chamada. - A voz apanhou-me quando iaquase no fim do corredor escuro. "Deve ser a Jan", pensei, e lembreimesubitamente da imagem dela nua no meu quarto. A imagemfundiu-se com a cena na escola médica, do cadáver amarelado e daherpes zoster no seu peito. Mas afinal a chamada não era de Jan;vinha da enfermaria A, era outra enfermeira agitada. Algo sobre atensão venosa de alguém que havia descido.O filho do homem magro ainda ali estava. Olhei-o mais uma vez,por um instante, e senti-me subitamente orgulhoso por ali estar, edepois estúpido, pelo meu orgulho. Olhando para o outro lado do

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corredor, pensei que a minha situação podia ser tudo menosgloriosa.Tensão venosa? O meu conhecimento consistia numa definiçãomemorizada um pouco duvidosa: "A pressão venosa é a pressãomedida em repouso nas grandes veias do corpo." Para além disso,praticamente nada mais sabia. Sem ligar a isso, apressei-me, comose soubesse tudo. Era esse o meu dever.A pouca coragem que ainda tinha desapareceu quando vi asenfermeiras à volta do quarto de Marsha Potts. Marsha Potts era a18tragédia do hospital. Nas rondas do primeiro dia do meu internato,

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duas semanas antes, estivéramos no seu quarto a ouvir desenrolar ahistória. O que a tinha levado para a clínica havia sido sintomas deúlcera, e ali estavam eles, grandes como tudo, nos raios-X. Erasempre bom poder ver uma úlcera.O radiologista estava satisfeito porque tinha uma boaradiografia e os cirurgiões estavam extáticos, cumprimentando-seum ao outro pelo seu diagnóstico perspicaz e afiando os bisturis.Era óptimo. Geralmente era óptimo também para o paciente, masnão para Marsha.Os cirurgiões haviam efectuado uma gastrectomia, retirando amaior parte do estômago e selando o final do intestino delgado que

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normalmente sai do estômago. Haviam então seleccionado um pontoa alguns centímetros abaixo do intestino e, depois de lhe fazeremum orifício, coseram-lhe uma pequena bolsa feita dos restos doestômago, dando assim a Marsha um novo estômago, se bem quemais pequeno. Esta operação, conhecida como Billroth II, envolveuma enorme quantidade de cortes e pontos, e é por isso muitopopular entre os cirurgiões.Marsh a tinha atravessado tudo aquilo muito brandamente - pelomenos, era essa a opinião geral - até ao terceiro dia, altura em quea ligação entre o intestino e a bolsa do estômago se rompeu. Isso

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deu origem a que os sucos pancreático e gástrico se derramassemno interior do abdómen e ela começou a digerir-se a si própria.As enzimas digestivas comeram-na literalmente até à incisão, eo seu abdómen tornou-se num ferimento aberto de cerca de trintacentímetros de diâmetro. As enfermeiras mantínham-no coberto comalimentos para lactentes, numa tentativa de absorver uma parte dosuco pancreático e neutralizaras enzimas. O odor putrefacto epenetrante deixava toda a gente mal-disposta, havia semanas. Maspara mim o pior neste caso era saber que o não podia resolver. Demaneira alguma.Ao entrar no pequeno quarto onde ela se encontrava isolada,

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verifiquei que a situação não podia ser pior. A sua pele apresentava19uma cor amarela-acinzentada e os seus braços caíam para os lados,agitando-se debilmente. A enfermeira sentiu-se aliviada com aminha visita, mas em vez de me sentir confiante só conseguiapensar "Oh, minha tonta se conseguisses ver o que me vai pelacabeça não verias nada, apenas, um imenso vazio".Marsha Potts tinha aparentemente sofrido uma insuficiênciageral. Ao folhear a pilha de gráficos e resultados de análises, tenteidescortinar o que se passara e ganhar um pouco de tempo para me

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orientar. Uma enorme barata negra subia a parede por cima do leitomas não lhe prestei muita importância; mais tarde trataria dela. Eraduro imaginar que qualquer forma de vida podia depender de mim.Comecei, contudo, a verificar que a minha mente aindafuncionava. Claro, o pulso. Procurei-o, e batia fortemente, cerca de72 pulsações por minuto, quase normal.Óptimo. Ora, se a pressão venosa tinha descido a zeroenquanto o bater do coração parecia estar a funcionar bem, issodeveria significar que não havia sangue suficiente nas veias. Pelomenos estava a pensar. A última coisa que queria fazer era retirar o

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penso espesso e ensopado do seu abdómen. Gotas de suorescorreram-me pela face.Estava imenso calor ali. A tensão? A enfermeira dissera que erade 110/90. Como diabo é que a tensão e o pulso estavam tão bemsem a pressão venosa? Sem a pressão venosa, o coração nãobombeava, e se não o fazia não podia sair nada, daí não havertensão ou pulso. Era assim que deveria funcionar, mas obviamentenão era o que se passava neste caso. Malditos professores defisiologia. No laboratório de fisiologia da escola médica havia umcão com tubos inseridos no coração nas artérias e nas veias. Ascoisas aí funcionavam perfeitamente, como era costume no

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laboratório. Quando os médicos reduziram a tensão do cão, aobaixarem a pressão venosa, a tensão do animal baixourapidamente. Seria automático e reproduzível, como se o cão fosseuma máquina.Mas Marsha Potts não era uma máquina. Mesmo assim, por quenão reagia ela como os animais do laboratório, em vez de me20presentear com uma esmagadora e insolúvel dificuldade? Mal sabiapor onde começar a examiná-la. Não apresentava inchaços na peledevido à retenção de fluidos, excepto nas costas; o local normalpara aparecer esse tipo de edema, como resultado de estar deitadadurante muito tempo. Marsha estava de cama havia cerca de três

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meses. Inclinei-lhe a mão esquerda para trás e ela reagiu, voltandoareflexivamente para a frente. Fantástico. Tinha um adejo hepático.Quando há uma falha no fígado, o paciente desenvolve um reflexocurioso: se se dobrar a mão em direcção ao pulso, ela volta paratrás num movimento reflexo, como uma criança a dizer adeus.Experimentando a alegria de uma descoberta positiva, olhei maisuma vez para o gráfico.O adejo hepático não estava ali descrito. Não sabia muito sobrea pressão venosa, não podia escrever inúmeras páginas sobre oadejo hepático, que havia encontrado antes apenas uma vez. Testeia sua outra mão, e o reflexo actuou mais uma vez. Isso significava

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que ela estava muito mal. De facto, enquanto devaneava pelasapreciações académicas do meu diagnóstico, a mulher estava a amorrer.Na verdade, ela estava já praticamente morta; contudo,tecnicamente, estava ainda viva. Tinha amigos e familiares quepensavam nela como uma pessoa viva. Mas não podia falar, e cadaórgão do seu organismo estava a falhar. Conseguiria ainda pensar?Provavelmente não. De facto, por apenas um momento, pensei queela estaria melhor se estivesse morta, mas afastei esse pensamentoseveramente. Como é que se pode saber se alguém está melhormorto? Não se pode, é pura suposição.

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O caso da Marsha Potts estava também a ficar fisicamenteconfuso. A mulher que sofria de herpes zoster no peito parecia maisviva, mas estava de facto morta. A que se encontrava à minha frenteno pequeno quarto estava viva... mas e se tentasse umaintravenosa?- Que quantidade de fluido lhe foi administrado durante asúltimas vinte e quatro horas? - perguntei à enfermeira.21- Está tudo aqui, na folha de aplicações. Foram cerca de 4000 cc."Quatro mil!" Tentei não aparentar surpresa, embora achassedemasiado. De que tipo?- Bem, na sua maior parte salino, mas também algum Isolyte M -respondeu.

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Que raio seria Isolyte M? Nunca tinha ouvido falar de tal.Voltando o frasco, pude ler "Isolyte M" de um lado, e do outro:"Sódio, cloreto, potássio, magnésio... " Não precisava de ler mais;era uma solução de subsistência. A folha de entradas e saídas erauma confusão de números que pareciam escritos ao acaso. Desde oinício da estada na escola médica me sentira fascinado peloequilíbrio de fluidos e electrólitos, de tal modo que algumas vezesme preocupava com o sódio e quase me esquecia do paciente.As entradas e as saídas pareciam ajustar-se, com excepção doque havia ensopado o enorme penso que cobria a ferida. Havia sido

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aplicada uma sucção de fossa para sugar o fluido da ferida noabdómen, mas não parecia estar a dar muito resultado.O alimento infantil que recebia não deveria ter provavelmenteum efeito muito nutritivo. Era transportado para o estômago por umtubo que lhe entrava nas narinas; uma vez que os seus sucosdigestivos haviam formado uma fístula, ou passagem, entre oestômago e o cólon o alimento passava directamente do estômagopara o intestino grosso e para o recto sem praticamente sofreralteração.Apesar de não aparentar estar desidratada, a sua urinamostrava sinais evidentes de infecção, na forma de sangue, bílis epequenos residuos de matéria orgânica que flutuavam no saco do

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catéter. Com tanta matéria, a única maneira de saber se a urinaestava muito concentrada era testar a sua gravidade específica.- Suponho que não há nenhum hidrómetro neste andar, ou há? -A enfermeira desapareceu, satisfeita por poder fazer alguma coisa,sem ligar ao tipo de tarefa. Ainda não encontrara explicação para atensão venosa de Marsha. Continuei a examiná-la, procurando sinaisde uma falha cardíaca para a explicar, mas não encontrei nada.Aparentemente o inevitável tinha de ser feito; teria de verificar22a lesão.- Era isto que queria, Doutor? - A enfermeira entregou-me um

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frasco de testes para verificar o nível de açúcar na urina.- Não, um hidrómetro, um pequeno instrumento que se põe aflutuar na urina. É parecido com um termómetro. - Desapareceunovamente enquanto eu verificava a etiqueta do frasco que ela mehavia dado. Talvez fizesse um teste ao açúcar na urina, de qualquermodo; não havia razão para o não fazer.- É isto, Doutor?- É isso mesmo. - Desprendi o saco do catéter. Prendendo arespiração para evitar o odor, enchi o pequeno frasco com o quecalculei ser urina suficiente para fazer o hidrómetro flutuar. Coloqueiocuidadosamente na urina, mas não consegui fazer interpretação

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alguma. O raio do aparelho mantinha-se num só lado do frasco emvez de flutuar, como devia.Segurei o frasco na minha mão esquerda e bati-lhe com o nó dodedo indicador, tentando libertá-lo. Apenas consegui derramar urinano braço. Depois de ter adicionado mais urina ao frasco, conseguifinalmente pôr o hidrómetro a funcionar.A gravidade específica estava normal dentro dos seus limites -estava absolutamente normal, de facto - portanto, Marsha nãoestava desidratada. Por alguma razão, o pessoal médico evitavasempre a palavra "normal" sem lhe acrescentar qualificativos; utilizasesempre "dentro dos limites normais" ou "essencialmente normal".

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Marsha gemeu novamente. Ao inspirar o ar, fui confrontado comuma sinfonia de odores no quarto. Desde que me lembro, nunca fuicapaz de aguentar maus cheiros.Na instrução primária, quando um dos meus colegas vomitou, euquase o imitei, comum reflexo simpático, assim que o odor mealcançou. Na escola médica, apesar das três máscaras e de toda aespécie de truques mentais, era conhecido por ter vómitos no meiodo laboratório de patologia.Ainda estava a tentar encontrar uma explicação para o estadode Marsha Potts quando me ocorreu que ela poderia ter bactérias23Gram-negativas no seu sistema sanguíneo; por exemplo, uma

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infecção bacteriana como pseudomonas; estas levavam por vezes aum estado apelidado de septicemia Gram-negativa, que é uma dasvisões mais terríveis da medicina. O paciente tanto pode estar bemnum minuto, como no seguinte ter um arrepio e ir tudo para o diabo.Talvez fosse essa a explicação para a quebra da tensão venosa.Mas não via sinal algum da septicemia.Marsha gemia agora regularmente, e cada gemido era como umaacusação para mim. Por que não conseguia eu descobrir o que sepassava? Ao dar a volta para o outro lado da cama, chamei aatenção da enfermeira para o insecto que se havia movido algunscentímetros, à altura de um ombro.

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A enfermeira deu um salto e desapareceu, voltando em seguidacom um monte de papel higiénico, que fez abarata desaparecer.Aquele tipo de bicho não me incomodava, pelo menos não tantocomo os ratos do hospital de Nova Iorque. A administração dohospital afirmou saber da sua existência e estava a tratar doassunto, mas o facto é que eles continuavam lá.Havia talvez algo errado com a válvula reguladora de trêsentradas na conduta intravenosa. Quando abri a válvula na posiçãode medir a tensão venosa, não se moveu do zero. Fechei-anovamente com rapidez, enchi a coluna com a solução de IV e ligueiaentão à paciente.O nível manteve-se elevado por alguns segundos antes de

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começar a baixar rapidamente, depois mais lentamente, como aenfermeira disse que sucederia. Primeiro para 10 cm, e finalmentepara zero. Era intrigante, especialmente com as válvulas de trêssaídas. Nunca consegui regulá-las como deve ser, por nunca saberqual delas abrir ou fechar para uma ligação.Pedi à enfermeira uma seringa cheia de solução salina edesengatei o sistema todo de tubagem que ia do catéter até à veiafemoral, mesmo abaixo das virilhas. Marsha havia sido durante tantotempo sustentada Por via intravenosa que as veias dos braços jánão serviam para a IV, e os médicos haviam começado a utilizar as24

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veias das pernas. Para meu espanto, não voltou sangue algum daveia para o tubo do catéter, mesmo sem a pressão da solução demanutenção. Ao introduzir cerca de 10 cc da solução salina nocatéter com a seringa, senti uma resistência clara; depois,subitamente, a solução entrou mais facilmente. Quando retirei oêmbolo da seringa, apareceu um fio de sangue no catéter.Havia obviamente um tampão no terminal do catéter dentro daveia de Marsha, provavelmente um coágulo de sangue, que haviaactuado como um retentor, permitindo a entrada da solução, masimpedindo a saída do sangue. A leitura da tensão venosa dependia

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do facto de o sangue poder subir pelo catéter. Transmiti isso àenfermeira, mas não lhe disse que o coágulo já deveria estarprovavelmente nos pulmões de Marsha. Se assim fosse, deveria serpequeno, graças a Deus.Ao engatar mais uma vez a coluna, enchi-a e liguei-a à paciente.Depois de ter a certeza de que mostrava uma tensão normal, e queia manter assim, recomecei com a IV.- Desculpe, Doutor, não sabia - disse a enfermeira.- Não é preciso pedir desculpa, não há problema. - Sentia-mesatisfeito por ter resolvido um problema, ainda que pequeno. Tendoem consideração que começara sem ter a mais pequena ideia sobre

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o que fazer, os resultados pareciam-me notáveis, embora a pacienteestivesse na mesma.Marsha gemeu mais uma vez, contorcendo os lábios. Era apenasuma sombra do que fora, realmente, e ao dar-me conta dissodesapareceu o meu sentimento de ter conseguido alguma coisa.Tudo que queria fazer nesse momento era poder sair dali, mas aindanão era possível.- Doutor, já que está aqui, importava-se de dar uma olhada aMr. Roso? Os seus soluços não deixam os outros doentes dormir.Ao afastar-me com a enfermeira pelo corredor em direcção aoquarto de Mr. Roso, não pude deixar de pensar que aquele hospital

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era de facto um edifício insólito, algo inteiramente novo na minhaexperiência. Os seus corredores comunicavam directamente com o25exterior, pelo menos na velha parte inferior, e a relva crescia mesmoaté no fundo do corredor. Uma enorme sapucaieira dominava o átrio,sussurrando e inclinando-se com o vento. Enormes árvores tropicaisadornavam o solo meticulosamente tratado. Era muito diferente dosoutros hospitais onde havia trabalhado. Havia uma árvore nosjardins da escola médica em Nova Iorque, mas foi deitada abaixoantes de me ir embora.O resto era tudo em cimento e tijolos, tudo amarelo. Mas o pior

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de todos havia sido Bellevue, onde fizera o meu quarto ano detrabalho clínico (trabalhando essencialmente como interno, emborafosse oficialmente estudante). Os corredores aí haviam sidopintados com uma deprimente cor castanha, cuja tinta caía já comouma pele, e de tal modo asquerosa que andávamos peloscorredores sempre no centro para evitar tocar-lhes. O meu quartotinha uma janela partida e uma canalização caprichosa. Situava-seno outro extremo das alas médicas do hospital e só podia seralcançado atravessando o centro respiratório, onde estavam todosos doentes com tuberculose.Ao atravessá-lo continha muitas vezes a respiração

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inconscientemente, e chegava por isso sem fôlego ao meu destino.Se Dante pudesse ter tido oportunidade de ver Bellevue, ter-lhe-iadado um lugar proeminente no seu Inferno.Como detestei aqueles dois meses. Vi uma vez um filme que mefez lembrar de Bellevue; foi O Julgamento, de Kafka, e nele ospersonagens erravam para sempre em corredores infinitos. Assim eraBellevue, com corredores infinitos, especialmente para quem prendea respiração. Qualquer janela suficientemente limpa revelava-nosoutros edifícios sujos com mais corredores. Até mesmo um inocenteacto da natureza poderia ser perigoso.

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Uma vez que me dirigi para os lavabos dos homens com algumapressa, escorreguei ao passar pela porta e caí literalmente em cimade um grupo de pacientes ocupados a injectarem-se com heroínacom as seringas do hospital. Foi a primeira vez que doentes meameaçaram de morte, mas não a última.O Havai não se parecia nada com Bellevue. Não havia sido26ameaçado aqui, pelo menos por enquanto, e as paredes eramlimpas e cuidadosamente pintadas, mesmo na cave. Sempreimaginei que todas as caves fossem iguais, mas aquela estavalimpa, até mesmo brilhante.Não sei por que os doentes com tuberculose me preocupavam

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tanto; talvez fosse aquela parte irracional que existe em todos nós,suponho, quando se determina que há algumas coisas que nos sãoprejudiciais e outras que não nos afectam. Após ter estudado ahipertensão maligna, pensava agora, cada vez que tinha uma dor decabeça, que estava afectado por ela. Talvez a tuberculose meincomodasse tanto porque o meu primeiro doente a quem fiz umdiagnóstico físico a tinha.Quando ainda era estudante, havíamo-nos auscultado todos unsaos outros, do que haviam resultado muitos risos e poucaaprendizagem. Tínhamos sido então enviados para um hospital parapodermos fazê-lo com pacientes pela primeira vez.

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O hospital chamava-se o Memorial de Goldwater, e faziaBellevue parecer o Waldorf. Após ter tirado um cartão com o nomede alguém escrito, aproximei-me da cama de um homem sentindo-metão transparentemente novato que poderia muito bem ter levadoestampado na cabeça um letreiro a dizer segundo ano da escolamédica, primeira tentativa". Ia tudo muito bem até escutar a suaregião do ângulo costofrénico esquerdo do lado direito da cama. Aoinclinar-me para o seu peito, disse-lhe para tossir, o que ele fez,directamente no meu ouvido.Senti as gotas caírem na parte entre o pescoço e o cabelo,todas aquelas gotas de flegma amarela cheia de organismos

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tuberculosos resistentes aos antibióticos. Nem mesmo o champô doslavabos dos homens, ou seja, o sabonete líquido da farmácia, mefizeram sentir bem. Assim que cheguei ao apartamento lavei acabeça várias vezes, como Lady Macbeth.Até aqui, não tivera de lidar com pacientes de tuberculose nestehospital. Talvez não os houvesse no Havai.A minha divagação terminara. Olhei para a enfermeira que mepedira para ir ver Roso. Era mais um dos encantos do Havai, muito27bonita, com uma mistura de sangue chinês e havaiano, creio eu, comuma figura elegante, olhos de amêndoa e dentes perfeitos.- Gosta de surf? - perguntei-lhe, ao chegarmos à porta daenfermaria dos homens.

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- Não sei - disse ela suavemente.- Vive perto do hospital?- Não, vivo no vale de Manoa, com os meus pais. - Era umapena. Queria continuar a ouvi-la, mas estávamos a chegar ao quartode Roso.- O Roso tem vomitado?- Não, nem por isso, tem é estado com soluços. Nunca penseique os soluços pudessem ser tão desagradáveis. Sente-se muitoinfeliz.Ao dar uma olhada ao meu relógio, antes de entrar naenfermaria, reparei que era quase meia-noite. Mesmo assim, não meimportei ir vê-lo. Ele era, por várias razões, o meu doente favorito.As luzes fracas ao nível do chão davam uma luminiscência que

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banhava o corredor, e pareciam misturar-se com os sons calmos darespiração e do ressonar. Um soluço agudo quebrou estatranquilidade, e o ressonar mudou o seu ritmo.Seria capaz de encontrar Roso no meio da maior escuridão porcausa dos soluços. Tínhamo-lo operado na segunda manhã do meuinternato. Na verdade, "tínhamo-lo" não era a palavra certa; oresidente-chefe e um residente do segundo ano haviam efectuado aoperação, enquanto eu segurei nos retractores durante três horas.Era o primeiro a admitir a minha inépcia na sala de operações; domodo porque as coisas caminhavam, a minha ignorância era umasegurança.

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Ao contrário da maior parte dos estudantes de Medicina, queestavam em regra ansiosos por uma cirurgia, eu tinha poucaexperiência nesse campo, devida em parte ao facto de não querertido tê-la, mas também por estar um pouco mais interessado noselectrólitos e nos problemas de fluidos após as operações. Issotinha dado jeito a todos. Os outros estudantes não se interessavam28pela química, enquanto eu me dava ao trabalho de ficar seis horasna sala de observações, observando os outros a cortarem e acoserem. Especialmente depois de uma cena que ocorrera dasegunda vez que preparei para uma operação, em Nova Iorque.

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Tratava-se de uma operação a um cancro, uma remoção completados seios, ou uma mastectomia radical, como é chamada peloGrande Sorriso, o mais famoso cirurgião do mundo.Sendo na altura apenas um estudante do segundo ano, sentiauma grande apreensão, e o facto de estarem todos um poucotensos, mesmo os médicos residentes, agravou ainda mais a minhaansiedade. O Grande Sorriso entrou subitamente na sala deOperações sumptuosamente magnífico e atrasado como erahabitual. Verificou alguns instrumentos no grande tabuleiroesterilizado, pegou neles e atirou-os para o chão, gritando queestavam riscados e dobrados, e que não eram aceitáveis.

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O ruído assustou de tal modo o anestesista que este deu umsalto e arrancou a máscara à doente. Desapareci, esperando quenão dessem pela minha falta, o que de facto sucedeu.Comecei a ficar para ver as operaçÕes do princípio ao fim, masaté hoje não consegui ainda entender os cirurgiões. Um deles erageralmente, um indivíduo calmo e agradável, menos quando seencontrava na sala de operações, onde tive ocasião de o ver umavez atirar uma pinça ao anestesista residente apenas porque opaciente se movera.Numa outra ocasião, o mesmo indivíduo dispensara um doscirurgiões residentes da sala de operações, alegando que o seu

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hálito era demasiado forte. Em nenhum caso havia sentido incentivopara passar mais tempo na sala de operações. Estava ainda muitoverde em cirurgia no início do meu internato.Apesar da minha inexperiência, conhecia a rotina do trabalho,como lavar as mãos, como as pôr, como as secar, e como vestir abata e as luvas; sabia mesmo dar alguns nós cirúrgicos. Tínha-osaprendido à custa de erros e experiência. A minha primeiraesterilização, no terceiro ano da escola médica, havia sido para29efectuar um trabalho de sutura na sala de operações das urgências.Passei dez minutos a lavar as mãos e os antebraços e limpei

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cuidadosamente as unhas com um palito de laranjeira antes de pôrdesajeitadamente a bata. Tinha vestidas as calças largas, a touca,a máscara e tudo o resto, e a enfermeira tinha-me finalmenteajudado a pôr as luvas de borracha.Após vinte e cinco minutos de esforço e de concentração, estavafinalmente pronto para ir; tinha as mãos tão esterilizadas como umapedra lunar. Depois, peguei casualmente num banco e dirigi-me aopaciente, contaminando assim as mãos, a bata, tudo. A enfermeira emédico residente desataram a rir-se histericamente; até mesmo opaciente atordoado se juntou a eles quando tive de recomeçar tudo.

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No caso de Roso, para além da minha limitada vantagem deestar a tratar dos retractores, tinha percebido que a operação nãoestava a correr bem.O residente chefe não parava de amaldiçoar o fracoprotoplasma e tinha realmente que concordar que o tecido de Rososangrava facilmente. Uma hemorragia séria brotou perto dopâncreas no final do tubo, mas os dois conseguiram terminar oBillroth I, que consiste em ligar o estômago e os intestinos da formaque estavam antes, mas sem a úlcera.Depois era necessário que eu atasse as suturas de Roso; seriaóptimo para qualquer pessoa menos para mim. Pensei em pedir a

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um dos residentes para pôr o dedo na primeira laçada do nó, comose estivesse a atar um presente de natal. Por um segundo, achei aideia divertida.Na verdade, para uma prática tão simples, atar aquele nó haviasido uma tarefa exasperante. As suturas são por vezes muitoestreitas e difíceis de sentir através das luvas de borracha,especialmente nas pontas dos dedos, onde a borracha é maisespessa e onde necessitamos de mais sensibilidade.Sabia que tinha de atar o nó de modo a que as extremidades daincisão ficassem unidas, apenas beijando-se, sem tensão e sempermitir que a pele se enrugue. Senti nessa altura que todos meobservavam e julgavam. Embora me apercebesse disso, nada mais30

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importava a não ser o nó, porque era literalmente a chave para quea operação desse resultado.A extremidade do fio de seda negro que segurava na minha mãodireita desapareceu sob a pele num dos lados da incisão e emergiudo outro lado. Juntei-o à outra extremidade, na mão esquerda, e deio primeiro laço, apertando-o até que as extremidades se tocaramligeiramente. E agora o próximo laço.Mas assim que foi aliviada, a incisão abriu-se. Juntei-a de novo,e dei mais uma laçada o mais depressa que pude, com esperançade vencer a deiscência - a fenda. O que aconteceu foi que asextremidades ficaram perigosamente separadas. A seguir, para meu

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horror, aproximou-se uma mão com uma tesoura que cortou o nó,enquanto se ouviam risos abafados lá atrás.Uma outra mão recomeçou a suturar, enfiando a agulha curva napele para atravessar a incisão e sair do outro lado. Olhei para o céusuplicante: que fazia eu ali se nem conseguia dar um nó?Tive mais uma oportunidade na segunda fila de pontos de Roso,que partiam da primeira parte da sutura que ia na direcção oposta.Na altura em que dera a segunda laçada, a sutura ficara tãoapertada que a pele se juntara em pequenas rugas e asextremidades ficaram enroladas com a tensão. Mais uma vez alguém

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pegou na tesoura, uma amabilidade de um estudante residente dosegundo ano que havia cortado o meu primeiro nó, e a incisãoseparou-se.Parecia tão fácil e rítmico quando eram os outros que faziam.Apesar disso havia detectado alguns truques aqui e ali, uma volta aseguir ao primeiro laço, por exemplo. Em vez de deixar a suturaplana no primeiro laço, puxá-la para nós, com ambos as linhas.Mas isso foi apenas metade. Tentei mais uma vez, com melhoresresultados embora estivesse ainda um pouco apertado. Pelo menostínhamos resolvido o problema de Roso, por enquanto.O primeiro indício de problemas foram os soluços, que haviam

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começado cerca de três dias depois da operação. Vinhamregularmente a cada oito segundos, e eram divertidos ao princípio.31De facto, Roso havia-se tornado numa curiosidade do hospital, comos seus soluços cronometrados. Tinha apenas 55 anos, mas os anospassados nos campos de ananases faziam-no parecer mais velho,todo enrugado e magro.As suas calças teimavam em cair enquanto deambulava pelaenfermaria levando consigo a IV. As veias dos braços também já sehaviam esgotado para a IV e, tal como Marsha, tinha um catéterligado à virilha direita. Isto tornava tudo ainda mais complicado. SeRoso apertasse suficientemente o cinto para manter as calças no

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lugar, a IV pararia. Por isso tinha de andar com uma mão no varãoda IV e a outra nas calças.Roso era filipino e o seu vocabulário em inglês resumia-se acinquenta ou sessenta palavras simples, que utilizava paratransmitir conceitos emocionais. "Corpo não força", como ele diria, eera o suficiente, como a poesia haiku. Compreendia-o e apreciava-omuito. Havia nele algo de tremendamente nobre e corajoso. Paraalém disso, ele gostava de mim, o que, como compreendi maistarde, tinha um peso importante na minha vontade de o manter vivo.Ao ver-me de manhã na ronda, Roso sorria sempre abertamenteapesar dos soluços que faziam todo o seu corpo estremecer.

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Qualquer pessoa podia ver que estava exausto.Tentara todos os tratamentos que pudera encontrar nos livroscirúrgicos, médicos e de farmácia, mesmo da medicina popular;respirar para dentro de um saco de papel não o ajudara. Numa veiamais científica, fi-lo inalar um frasco de 5 por cento de dióxido decarbono, sem obter efeito, nitreto de Amyl e pequenas doses deThorazina que também não deram resultado, assim como cálcio, queexperimentei numa suposição de que os seus soluços pudessemderivar do seu estado de hipernervosismo; os seus reflexos eram tãobruscos que, quando lhe bati abaixo do joelho com o martelo de

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borracha, atirou com a chinela.O meu grande erro havia sido não ter considerado os soluçoscomo sintoma de algo mais profundo. Continuava a vê-los como umproblema isolado, quando na realidade eram apenas um efeito32secundário da catástrofe reprimida no seu interior. Um outro sintomaocorreu quando o médico residente mandou retirar o tubo doestômago de Roso e os fluidos lhe saíram pela boca. Uma horadepois o seu estômago inchara duas vezes mais que o tamanhonormal e começou a vomitar. Nada o poderia ter feito sentir tãoinfeliz como os soluços, os vómitos e a falta de sono; qualquer

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destas coisas seria de enlouquecer uma pessoa, mas o valente Rosolá estava, com um grande sorriso sempre que me via."Corpo não força", dizia ele, sempre as mesmas palavras, mascarregadas com um sentimento diferente de cada vez, dependendoda maneira que se sentia. "Corpo mais forte já." Comecei a utilizar oseu vocabulário nessa maneira curiosa cada vez que falava comalguém que não entendia muito bem inglês. Convencemo-nos de quedando alguns erros também, eles compreenderão melhor.Quando estava na escola médica, com alguns pacientes quefalavam espanhol, dei comigo a dizer a um deles: "Operação precisa

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dentro barriga." Claro que isto não fazia muito sentido, mas se opaciente não compreendeu as palavras percebeu com certeza o seusignificado. Estávamos principalmente a tentar aproximar-nos deles.O pobre Roso estava entubado com o fluido intravenosoacompanhado de sucção gástrica constante através do tubo que lheentrava pelas narinas em direcção ao estômago. Torturado pelossoluços, vomitava cada vez que o tubo saía, quer este o alimentasseou não. Apenas alguns dias atrás, o tubo ficara completamentebloqueado, de modo que Roso estivera às portas da morte porcausa de um pedaço de alimento.

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Ao irrigarmos o tubo do nariz para aliviar o bloqueio, lá saiu ummaterial que parecia borras de café. Era sangue velho. Foi uma sorteeu gostar de verificar as variações nos fluidos e electrólitos quandoia várias vezes por dia verificar a quantidade de sódio e cloreto queexistia nos fluidos que dele provinham. Substituía-os, para além delhes dar manutenção. Cheguei mesmo a dar-lhe magnésio, naesperança de que o pudesse ajudar, depois de uma busca exaustivaque fiz na biblioteca do hospital.Mas o maior problema de Roso era interior, mais para além do33meu saber. Assim como Marsha Potts, estava a gotejar daanastomose, a ligação entre o intestino delgado e a bolsa do

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estômago, e a única diferença era que, no caso de Roso, a incisãonão se tinha desfeito. Estava apenas a gotejar fortemente dentrodele, bloqueando o estômago e causando os soluços, mantendo-onos fluidos IV, fazendo o seu peso descer de dia para dia, de talmodo que pesava agora apenas quarenta quilos.Na luta contra a perda de peso, que significava também a perdadas forças, encontrei uns artigos sobre soluções proteicas e degrande percentagem de glucose, e tentei tudo o que neles seencontrava; continuou mesmo assim a perder peso, indo daaparência normal de magro, até uma aparência esquelética de fome.

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E, apesar disto tudo, ele continuava a sorrir e a falar haiku. Gostavadele. Para além disso, era meu doente e iria vê-lo sempre que demim necessitasse.- Então, Roso, como se sente? - perguntei-lhe, olhando para ele.Que pobre figura era ali deitado, no escuro, só com as calças dopijama vestidas, com o tubo do IV enfiado na virilha direita e o tuboque lhe saía do nariz. O seu corpo estremecia com soluços de oitoem oito segundos.- Doutor, não mais força, fraco muito já. - Conseguiu dizer issoentre soluços. Tínhamos que fazer alguma coisa. Tinha andado atrásdo médico de serviço, o residente-chefe, de toda a gente, mas semresultado. Espera, foi o que me disseram. Eu sabia que não

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podíamos esperar. Roso ainda confiava em mim, mas a sua vontadeestava a esmorecer. - Doutor, não quer viver mais, hic, não mais. -Nunca me haviam dito aquilo, e ouvi-lo gelou-me o sangue. Emborapudesse compreender como se sentia, não queria admitir que elehavia chegado àquele ponto, porque eu sabia o que acontecia aosdoentes que desistiam de lutar.Deixavam-se simplesmente levar, morriam. Algo no espíritohumano podia aguentar tudo, mesmo em presença de um colapso deorigem completamente fisiológica, até que o espírito desistia elevava o corpo com ele. Por vezes o desespero era tão grande que34

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não esperávamos dos pacientes reacções positivas, mas Roso haviaodito: e isso tornava o caso diferente. Disse a mim próprio queRoso queria apenas avisar-me de que estava quase a desistir, masainda o não fizera.Roso precisava desesperadamente de dormir. Embora pudessesatisfazê-lo, era no entanto uma faca de dois gumes. A Sparina, queé um tranquilizante potente, iria anestesiá-lo, até mesmo com ossoluços. Mas com o tubo enfiado na garganta, estava em perigoconstante de apanhar uma pneumonia, especialmente se ficasseinconsciente. Sem o tubo, poderia vomitar, e se vomitasse eestivesse inconsciente poderia sufocar.

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O Demerol e o velhote magro lá em cima também meincomodavam. Os familiares haviam sido maravilhosos, nuncasentindo a dúvida em mim, aceitando as minhas palavras, nãonegando a autópsia. E se eu lhes dissesse quepensava que o paiestava morto? Como haveriam eles de saber que a diferença entre avida e a morte não era muitas vezes a preto e branco, mas cinzentae indistinta? Vejamos Marsha Potts, por exemplo: estava morta ouviva, ou em algum outro espaço entre ambos os casos? Acho quepoderia ainda considerá-la viva, porque se melhorasse talvez ficasseboa; por outro lado, ela não iria provavelmente melhorar, e pelomenos uma parte do seu cérebro estaria já morta.

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Parte do seu fígado estaria também destruída, como se via pelaicterícia e pelos adejos hepáticos; e os seus rins também. Não era,mais uma vez, a preto e branco. Não mais que a minha decisãoacerca de Roso e da Sparina.Mas Roso necessitava de descanso e eu sentia uma grandenecessidade de fazer algo por ele. É uma forte propensão humana,essa de poder fazer algo; se alguém desmaiar numa multidão,haverá sempre alguém que vá buscar um copo com água, e alguémque improvise uma almofada. Ambas as acções são ridículas emtermos médicos, mas as pessoas sentem-se melhor se puderem fazer

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alguma coisa, mesmo numa situação que exija um tipo de acçãopara que não estão preparadas.Havia tido essa sensação várias vezes. Uma vez, durante um35jogo de futebol no liceu, encontrei-me perante uma delas, naconfusão, quando houve um tipo que partiu uma perna com um sombem audível, ficando dobrada abaixo do joelho. Entrámos todos empânico, embora ele não aparentasse ter muitas dores, e fiel aoprotótipo corri para lhe trazer um copo com água. Creio que foinaquele momento que me decidi inconscientemente a ser médico. Aideia de saber o que fazer, de satisfazer uma necessidade de agir,era esplêndida.

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Muito bem, Peters, agora já és um médico - faz alguma coisa porRoso. Ok, seria a Sparina, e no segundo em que tomei aqueladecisão inundou-me a alegria da acção directa e positiva.- Roso, fazer dormir, fazer mais forte. - Ao sentar-me na ala dasenfermeiras, a enfermeira de olhos amendoados entregou-me orelatório de Roso. Parecia ainda mais bonita que antes.- É chinesa? - perguntei-lhe, sem olhar para ela.- Chinesa e havaiana. O meu avô da parte da minha mãe erahavaiano.Pensei que seria interessante conhecê-la.- Então, vive em casa com a família, não é? - Não me respondeu.Bem, esqueçamos isso. Abri a ficha para nela anotar a

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administração de Sparina. É pena, no entanto. Parecia-se mesmocomo as raparigas havaianas que imaginara ver debaixo de umacascata, e a minha vida sexual, se assim lhe podemos chamar,abrangia apenas Jan. Estaria Jan ainda lá, mesmo sendo já meianoite?"É melhor sair já daqui", pensei, enquanto escrevia "Sparina 100mg. IM stat", pus uma marca na ficha para indicar a nova ordem ecoloquei-a no suporte. Roso iria dormir. Da última vez que lheadministrara 100 mg, dormira durante dezoito horas.- Doutor, já que está aqui não se importava de ver o doente quepôs o gesso e o quadriplégico? - A pergunta fiel e familiar. Conheciao quadriplégico mas o outro não.

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- Que se passa com ele? - perguntei, hesitante, receando umpedido, para pôr uma nova camada de gesso àquela hora.36- Queixa-se de que sente algo a cortá-lo nas costas quando semove.- E o quadriplégico?- Recusa-se a tomar o antibiótico. Na realidade, preferia não tersabido as respostas. As pessoas paralisadas causam-me quasetanta impressão como as tuberculosas. Recordei-me de um dosedifícios mais agradáveis e do serviço médico mais deprimente naescola médica, neurologia e neurocirurgia. Lembrava-me de umpaciente que tivera de observar e que respondia às minhasperguntas à medida que lhe ia espetando uma agulha.

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Parecia tão normal que até me interrogara a mim próprio porqueestava ele ali. Mas nessa precisa altura, ao introduzir-lhe a agulhamais uma vez, os seus olhos desapareceram subitamente e a parteesquerda do seu corpo ficou paralisada, atirando-o para o ladoesquerdo, quase caindo. Só conseguia ver o branco dos seus olhos eficara quase tão paralisado como ele, sem saber que diabo fazer.Nem tivera a satisfação de poder ir buscar um copo com água.Havia apenas tido uma convulsão, mas eu não sabia disso nessaaltura. Poderia ter estado a morrer, que eu ficaria ali com a boca

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aberta. Ninguém fora do mundo médico pode imaginar o quesignifica um tipo de crise dessas para um estudante de Medicina.Tornamo-nos de tal modo tímidos que tentamos não dar nas vistasquando algo corre mal.Os estudantes de neurologia eram incentivados a apreciar oelegante diagnóstico do Professor Doutor com as mãos nos bolsos."Algumas vias da espinal medula cruzam para o outro lado antes dechegar ao cérebro. Outras não.Se se tiver uma lesão que efectivamente tenha cortado um ladoda espinal medula, as vias que cruzam continuarão a funcionar. Porexemplo, vejam como este paciente consegue sentir a mudança de

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temperatura, mas não tem um proprioceptivo, uma vez que possomover-lhe um dedo do pé em qualquer direcção sem ele se dar contadisso." E assim por diante.Tínhamo-nos todos divertido muito ao conversarmos sobre essas37confusas fibras da temperatura que atravessam as comissurasventrais brancas e sobem o sistema lateral espinotalâmico para onúcleo ventral do tálamo. Houve uma grande discussão sobre se asfibras tinham ou não mielina. Nenhum campo da Medicina se podeequiparar à neurologia no que diz respeito à linguagem profissional.Entretanto, ninguém se lembrou mais do doente. Bem, quase não

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havia tempo para isso, tentando memorizar todas as tractos enúcleos, e, além disso, não podíamos fazer coisa alguma.Talvez fosse esta sensação de impossibilidade que se tornavatão difícil de aguentar emocionalmente. Lembro-me especialmentede um caso particular passado na escola médica, embora não fosseinvulgar, de facto, tratava-se de um caso típico. O paciente estavadeitado à nossa frente num respirador, movendo constantemente osmúsculos faciais. Nada mais nele se movia, não conseguia controlarmais parte nenhuma do seu corpo porque este se encontravacompletamente imobilizado, sem sensações nos tecidos ou nos

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ossos, completamente indefeso e totalmente dependente dorespirador para sobreviver. O Professor Doutor continuou: "Irão achareste caso extremamente interessante, meus senhores; trata-se deuma fractura do processo odontoídeo, que provocou umencurtamento da espinal medula mesmo no ponto em que sai docérebro."O professor estava a adorar aquilo. O seu diagnóstico triunfaltinha sido realizado, dissera-nos orgulhosamente, depois de umaverificação da boca com raios-X. Ficara inchado como um pombo,fora de si, virtualmente arrulhando, numa longa dissertação acercada maneira que o atlas havia sido deslocado do seu eixo.Não conseguia tirar os olhos do doente, que olhava fixamente

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para o espelho acima da sua cabeça. Mais ou menos da minhaidade e talvez um caso irrecuperável. Saber que o seu corpo e o meueram essencialmente iguais, com a diferença provocada apenas poruma pequena desconexão no pescoço, e que esta diferençafraccional era total, tornou-me consciente do meu corpo naquelemomento como nunca antes, e senti vergonha dele. Senti fomenesse preciso momento, e senti também as pontas dos dedos, uma38dor nas costas; sensações que ele nunca mais teria. Invadiu-me umaraiva impotente e uma espécie de tristeza. O movimento é umaparte tão importante na vida, quase a própria vida, que com esse

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hábito quotidiano as pessoas negam esse tipo de morte. Contudo,estava perante uma morte em vida, e a minha mente gritava-me queo meu próprio corpo estava condicionado pela mesma corda frágilque ali jazia no respirador. Desde essa altura, nos maus momentos,pensei muitas vezes que a morbidez da Medicina a tornava um maucaminho para mim, mas apesar disso continuei. Terão os outrosmédicos dúvidas como esta?Mas agora tratava-se do homem com o gesso. Veria depois oquadriplégico. Tirei uma serra do armário e desci o corredor com aenfermeira. Ao entrar no quarto, deparou-se-nos um homemcompletamente ligado do umbigo aos dedos dos pés da perna

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direita. Tinha a perna esquerda nua. Havia fracturado o fémur emduas partes nessa manhã, entre a virilha e o joelho, e o gesso haviasido posto no lado direito. Era o seu primeiro dia com o gesso esentia-se imensamente desconfortável, como é costume. Encontrei aponta que o incomodava, e cortei-lhe algumas partes. Teria sidomais rápido com a serra eléctrica da sala de emergências, mas nãoera a altura certa para a usar, à meia-noite, devido ao ruído quefazia. Além disso, a vibração assustava sempre o doente, apesardas nossas tentativas de lhes assegurar que a lâmina se limitariaapenas às áreas duras e não cortaria tecidos como a pele. Pareciam

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entender até a serra entrar em acção, abrindo facilmente caminhoatravés do gesso. Acabei de cortar e o caso do fémur fracturadosuspirou de alívio, movendo-se, agradecido.- Sinto-me melhor, Doutor. Muito obrigado.São coisas simples como esta que nos deixam bem-dispostos.Claro que qualquer pessoa poderia ter cortado o gesso, mas issonão importava. Saber que o homem agora poderia descansarfacilmente justificou ali a minha presença e fez-me sentir de algummodo útil. Estava a aprender que não era permitido muitas vezes aum interno tornar os pacientes mais confortáveis. O que um interno39

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faz na maior parte das vezes é magoá-los, introduzir-lhes agulhas,pôr-lhes tubos no nariz, exigindo uma tosse depois de uma operaçãopara os forçar a expandir os pulmões. Essa tosse é geralmentedolorosa e dura para os casos de doenças pulmonares. Nesse tipode cirurgia à caixa torácica, é prática comum o cirurgião dividir oesterno, e ligá-lo outra vez no final da operação. Quatro ou cincohoras mais tarde, era minha tarefa forçar um pequeno tubo pelatraqueia, irritando a membrana, para fazer o doente tossir. Estemétodo dava óptimos resultados. Como qualquer pesssoa com algo

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na sua traqueia, o paciente tossia invariavelmente, sentindo queessa convulsão o iria sufocar, tentando parar mas sem o conseguir, efinalmente conformando-se, ensopado em suor e exausto, até quelhe retirava o tubo. Com essa tortura, havia evitado que o doente sehabilitasse a uma pneumonia ou algo pior, mas nesse momentohavia-o feito sofrer muito. Por isso, ter ajudado o homem com ogesso não era uma tarefa para desprezar.Contudo, a minha euforia não durou muito tempo porque teriaagora de ir ver o quadriplégico. Estava completamente paralisadodo pescoço para baixo, deitado numa estrutura, sobre o estômago.

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Emanava dele uma angústia profana. O tubo que saía de debaixodo seu corpo estava ligado a um saco de plástico meio cheio deurina. A urina era sempre um problema nestes casos. Uma vez queum paciente paralisado perde o controlo da sua bexiga, necessitade um catéter: com o catéter vem a infecção. A maior parte doscasos de septicemia Gram-negativa deriva de infecções do sistemaurinário. Mas os abortos criminosos também não eram excepção. Jáno fim do meu serviço de ginecologia no terceiro ano da escolamédica, tivemos tantos abortos criminosos sépticos, que maisparecia haver uma epidemia em Nova Iorque. Eram, na maior parte,

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raparigas que esperavam que a infecção aumentasse antes de nosprocurarem, sem nos darem qualquer informação de diagnóstico.Nunca. Algumas morreram negando até ao fim terem feito um aborto.Com a legalização do aborto, suponho que as coisas tenhammudado, mas naquela altura vi muitas vezes o sintoma, com airreversível combinação de pressão a zero, falha dos rins e um40fígado moribundo. Essas bactérias Gram-positivas gostam da urina,especialmente depois de o paciente ter tomado os antibióticoshabituais.Pensava nisso tudo ao observar o indivíduo ali deitado a chorar

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e a blasfemar. Tinha, figurativamente, as mãos nos bolsos, semsaber o que fazer ou o que dizer. Que mais desejaria eu, se tivesse20 anos e estivesse ali deitado ligado à máquina, com toda a gentea dizer para ter calma, vais ficar bom, e sabendo que era tudo umamentira? Pensei que preferiria uma pessoa que encarasse averdade, que fosse forte e a aceitasse. Por isso, num esforço paraser firme, disse-lhe que tinha de tomar o antibiótico, que sabíamosque era duro, mas que mesmo assim teria de o tomar. Tinha quetomar a responsabilidade de ser humano.às vezes surpreendemo-nos a nós próprios, ao falar de lugares

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desconhecidos dentro de nós. Não tinha bem a certeza de acreditarno que estava a dizer, mas saiu assim mesmo. Enquanto alipermaneci, o rapaz deixou de chorar o tempo suficiente para aenfermeira lhe poder dar a injecção. Tornou-se subitamenteimportante para mim saber se o rapaz estava aliviado ou furioso,mas não conseguia ver o seu rosto, e ele não disse nada. Tambémnão falei mais. A enfermeira quebrou o silêncio, dizendo-lhe quetentasse dormir. Uma vez que nada me ocorria para lhe dizer, pussuavemente a mão no seu ombro, perguntando a mim mesmo se elea sentiria e perceberia como lamentava.Sabia que tinha de sair da enfermaria naquele momento ou

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desfaleceria. Em qualquer hospital, em qualquer altura, há centenasde pequenas tarefas quotidianas para fazer, como verificar as fezesde alguém, observar uma incisão, tratar de uma queixa de torcicolo,mudar uma intravenosa. Na verdade, as enfermeiras aqui no Havaieram muito destras na aplicação da IV. Já na escola médica, era umatarefa de primeira posição para um estudante. Nem a chuva, nem aneve nos poupavam se tivéssemos uma chamada às três e meia damanhã para ir mudar uma IV, atravessando metade da cidadedeserta de Nova Iorque. Lutei contra o mau tempo numa noite de41

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inverno, certa vez, para ser derrotado por um homem sem veias.Apalpei-o e blasfemei, e finalmente usei uma veia tão fina como ade um crânio de um bebé, na parte de trás da mão. Voltei depoispara casa, no meio da chuva, deitei-me eventualmente na cama,antes de ter que recomeçar o serviço, cerca de uma hora depois,quando o telefone tocou novamente. Era mais uma vez a mesmaenfermeira, meio apologética, e meio agressiva na sua defesa.Tinha cortado o tubo acidentalmente quando ia pôr mais adesivo noIV para o reforçar.De qualquer modo, havia sempre muito a fazer numa enfermaria.

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Embora as enfermeiras conseguissem na maior parte das vezesresolver os problemas, se há algum médico por perto é mais quecerto manterem-no ocupado, e eu estava a ficar arrasado. Queriaapenas fazer mais uma coisa antes de voltar para o meu quarto: irver Mrs. Takura, que estava nos cuidados intensivos. Esperava queJan se tivesse metido dentro da cama antes de adormecer. Jápassava muito da meia-noite.Nunca chamávamos aos cuidados intensivos pelo seu nomecompleto, só por C.I. De todos esses nomes, iniciais, abreviaturas, ea linguagem profissional que um interno ouve, não há outra que nos

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faça logo saltar como C.I., porque é aqui que se encontra a acção,uma unidade em crise perpétua. As hipóteses de se ser chamado ànoite para lá ir são bastantes, pelo menos duas por noite, e ashipóteses de se saber o que fazer são muito menores. O facto de asenfermeiras serem eficientes e perceberem do assunto aindapiorava as coisas. Começávamos a perguntar-nos afinal que é quetínhamos aprendido durante aqueles dispendiosos quatro anos naescola médica. A reacção de Schwartzman, era o que tínhamosaprendido. Duas aulas sobre esse assunto e já ninguém tinha acerteza sequer da sua existência. Há sempre algo estranho quando

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um médico sabe tudo sobre uma doença que pode não existir, mas éainda pior com uma enfermeira numa situação de cuidadosintensivos. Claro que se o paciente tivesse de facto uma reacção deSchwartzman, seria um sucesso na altura: podia discursar lentamente42sobre o aspecto que o tábulo distal convoluto do rim teria,observado num microscópio iluminado, entre outras coisas. Emrelação às medidas práticas, não tínhamos, contudo, tido tempo,nem o patologista se tinha preocupado com isso, um facto que meintrigava. As enfermeiras praticamente só se tinham treinado parafazer os pensos durante os três anos de treino. Sei que isto não é

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justo, mas contudo o seu treino era trivial comparado com os montesde mecanismos, enzimas e reacções de Schwartzman que nóstínhamos que decorar. No entanto, nos cuidados intensivos bempoderia ser eu a mudar os pensos. Senti muitas vezes que seriamelhor desaparecer dali antes que acontecesse algo quenecessitasse de uma reacção inteligente.Presume-se que um interno vá aprendendo os aspectos práticosà medida que evolui, mas se tivéssemos tido mais aulas práticas naescola médica estaríamos melhor, e os pacientes também. Numhospital ninguém se importa se conhecemos ou não a reacção de

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Schwartzman. O cirurgião observa os meus nós: "Fracos, muitofracos", diz ele. A enfermeira quer saber que quantidade de Isupreldeve pôr em 500 cc de dextrose e água.- Vejamos, que quantidade tem estado a dar ao paciente?- Cerca de 0,5 mg.- Hum, isso deve chegar.Nunca temos a coragem de perguntar se Isuprel é o mesmo queisoproterenol. Será que ela gostaria de saber tudo sobre asradiações talâmicas do núcleo ventral do cerebelo? Com certeza quenão, uma vez que isso não ajudaria ninguém nos C.I. Que maneiraesta de viver.Era no que ia a pensar enquanto me dirigia pelo guarda-vento

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dos C.I., hesitando como de costume em entrar naquela estranhamistura de ficção científica e de dura realidade. Objectos estranhosestavam pendurados nas paredes e no tecto, adornados com assuas centenas de botões e interruptores, e ecrãs móveis. Os sonsdos bips que pareciam de sonar misturavam-se sinfonicamente como clíque-claque ritmado dos respiradores e os soluços abafados deuma mãe ajoelhada junto a uma cama a uma esquina. Estas43máquinas, que se moviam e piscavam enquanto guardavam umavida, pareciam mais vivas que os pacientes, que jaziam imóveis,

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cobertos com adesivos e ligaduras, como múmias, e ligados comtubos de plástico a variados frascos que pendiam dos suportes.Essa mistura dava ao local, ao soar, um aspecto misterioso eextraterrestre.As pessoas normais reagem fortemente aos C.I. É a reencarnaçãofísica do seu medo da morte e do hospital como lugar da morte. Ocancro, por exemplo, é certamente a doença mais temida do nossotempo, mas excepto para as vítimas, os familiares ou amigos, ocancro quase não existe fora dos hospitais. Nos C. I, o cancro existecomo uma névoa tóxica e primitiva. Quem trabalhe muito lá, pode

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também esquecer-se que o hospital é também um sítio onde a vidacomeça. Mas não há partos nesta sala, e a maior parte das pessoasassocia-lhe, com razão, o desconhecido, a ameaça, o mau presságioe o fim, onde a morte vem nas pontas dos pés.Embora o ser humano normal não aprecie visitas ao hospital,uma vez nos C.I., fica preso pela fascinação magnética, apesar demórbida, ou talvez por isso mesmo. Os seus olhos circulam em voltaabsorvendo a fantasia, erguendo imaginários monumentos ao poderabstracto da Medicina. A Medicina deve ser realmente poderosa,com todas aquelas máquinas. Senão, por que as teriam ali?

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Contudo, um observador pressente sempre a corrente de medo quese mistura com o seu respeitoso receio, sentindo-se dividido entre odesejo de ficar e o desejo de partir.Sentia a mesma ambivalência, mas por uma razão diferente.Sabia que a maior parte do equipamento não tinha a mínimautilidade. Alguns dos aparelhos mais pequenos, embora nãocausassem grande efeito, eram os que mais resultavam. Porexemplo, os respiradores verdes pequenos, fazendo clique-claque aorespirarem pelas pessoas que deles precisavam, valiam mais quetodos os outros juntos. Os mais complicados, com os monitores e osbips electrónicos, nada faziam a não ser quando as pessoas

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estavam a ser observadas. A escola médica havia-me ensinado a ler44esses osciloscópios. Sabia que quando a curva descrita subia nomonitor, isso significava que milhões de iões de sódiobombardeavam as células musculares do coração. Depois apareciauma espécie de ponto no monitor, quando as células se contraíam eas organelas citoplásmicas trabalhavam como loucas para mandarnovamente os iões para o fluido extracelular. Parecia fantástico; masesta magia científica era apenas metade da tarefa. Baseando-senas curvas e na projecção, o médico tinha ainda que pronunciar o

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diagnóstico, e passar depois a receita. Era isso que me dividia, oquerer lá estar para aprender mais em menos tempo, mas sentia-meapavorado, com medo de não saber o que fazer quando fossenecessário assumir uma responsabilidade e eu fosse o único médicopor perto.De facto, o meu receio já se havia justificado várias vezes; porexemplo, na minha primeira noite de serviço como interno, quandome mandaram verificar uma hemorragia nos C.I. Enquanto subiaapressadamente pelas escadas, tentei acalmar-me lembrando-me dofacto de a pressão localizada parar qualquer hemorragia. Parei

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assim que entrei no quarto e vi o paciente. O sangue saía-lhe emgolfadas dos dois lados da boca, afogando-o num rio vermelho. Nãoera um vómito; era sangue puro. Fiquei ali imóvel, aterrorizado,estupidificado, enquanto os seus olhos imploravam ajuda. Maistarde soube que não havia mais nada a fazer. O cancro haviadestruído a veia pulmonar. Mas o que me preocupava era que eu meperdera, completamente vazio e imobilizado. Revi a cena durantemuitas das noites seguintes, e agora sofro desta obsessão de mesentir capaz de fazer alguma coisa, mesmo que não ajude opaciente.Mrs. Takura estava amparada numa cama de canto. Tinha quase

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80 anos e o seu bonito cabelo branco estava finamente entrançado.Saía-lhe um tubo de Sengstaken da narina esquerda, firmementeapoiado por uma esponja de borracha que lhe enrugava e distorciao nariz. Tinha algumas gotas de sangue seco num dos cantos daboca. O tubo de Sengstaken tinha cerca de quatro milímetros de45diâmetro e era dos fortes. Dentro deste tubo existiam três tubosmais pequenos, chamados lúmenes. Dois dos lúmenes têm unsbalões presos, um dentro do tubo mais pequeno e outro no maior.Para que o tubo de Sengstaken possa funcionar, o paciente tem de

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engolir este aparelho, o que nunca é fácil, e é particularmente difícilquando o paciente vomita sangue, como acontecia geralmente. Umavez colocado o tubo, o balão do fundo, dentro do estômago, éinsuflado até atingir mais ou menos o tamanho de uma laranjagrande; e assim prende tudo aos lugares certos. Um pouco maisacima está localizado o segundo balão: quando insuflado, adquire aforma de um cachorro quente aconchegando-se na parte inferior doesófago. O terceiro lúmen, fino mas longo, apenas faz uma limpezados líquidos indesejados, como o sangue. A finalidade disto tudo éparar a hemorragia do esófago com a pressão aplicada às paredes

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do esófago pelo balão em forma de salsicha.Só tratei uma vez um doente que necessitou do tubo deSengstaken, na escola médica. O seu problema era o alcoolismo,que lhe havia causado uma cirrose grave e, eventualmente, umafalha do fígado. Claro que Mrs. Takura não era alcoólica; o seuproblema viera de uma crise de hepatite, anos atrás, mas essescasos têm um aspecto comum. Um fígado danificado impede apassagem do sangue, de tal modo que a pressão aumentagradualmente nos vasos sanguíneos que se dirijam a ele, voltandodepois para baixo, causando uma dilatação do esófago, e mesmo,em casos extremos, uma rotura. Nesta altura o paciente vomita

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sangue copiosamente. Muito embora tivesse tratado o alcoólicodurante apenas um dia ou dois, lembro-me nitidamente de o terajudado a engolir os balões. Não tendo sido possível, haviam-nolevado para a cirurgia, e já não chegou a voltar para a enfermaria.Uma hipertensão da veia porta com varizes esofageais era umacoisa séria, mas até agora tínhamos conseguido estabilizá-la emMrs. Takura introduzindo-lhe o tubo. E ela tinha operação marcadapara dentro de oito horas.Não parecia oriental, apesar do seu nome e da sua resignação ecalma interior, traços que eu começava a notar em todos os46orientais. Estava sempre lúcida e alerta, cada vez que falávamos,

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sabendo o que se passava e falando calmamente. Acho que elaseria capaz de falar calmamemte dos seus gerânios no meio de umfuracão. Quando me perguntou como estava, como sempre fazia, aresposta parecia ser importante para ela. Dávamo-nos bem. Alémdisso, pensava que ela não iria recuperar. às vezes tinha essaintuição irracional em relação a alguns pacientes. Por vezesacertava.Certa vez, algumas horas antes da sua admissão, os médicoshaviam tentado remover o tubo de Sengstaken, mas o resultado foimais uma hemorragia que a levou ao estado de choque antes de otubo ser reposto. Uma vez que havia estado de folga nessa noite,

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não assisti ao drama e ao sangue; mas assustei-me com ela namanhã seguinte, quando a sua tensão baixou para 80/50 e o seupulso acelerou para 130 por minuto. De algum modo, recompus-mesuficientemente para lhe administrar mais sangue, compreendendopor fim que a hemorragia afectara a sua tensão. Quando a tensãoestabilizou novamente, o meu espírito acompanhou-a. Causa, efeito,cura. Isto deveria ter-me dado um pouco mais de confiança, mas,curiosamente, acreditar que uma decisão certa se esconde pordetrás de cada situação, apenas me fez ficar mais nervoso. Dar-lhe

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sangue havia sido a decisão certa, mas era também algo simples;para a próxima talvez fosse diferente.Mrs. Takura encontrava-se nessa noite agradável e calma, comode costume. Verifiquei-lhe a tensão e a pressão dos balões, fiz umaobservação geral, tentando justificar a minha presença, apesar dequerer apenas conversar com ela.- Então, está preparada para uma pequena operação?- Claro, Doutor, se o senhor estiver, eu estou.Aquilo chocou-me. Tive a certeza de que quando se referia "aosenhor", se referia, no sentido colectivo, a todo o serviço cirúrgico.Não podia referir-se a mim. Eu não estava nem perto de estar

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preparado, apesar de saber alguma coisa sobre a operação, pelomenos a parte teórica. Podia falar durante vinte minutos dos47declives dos gradientes da pressão da veia porta, das vantagens emaleficios da cirurgia realizada, fazendo uma anastomose da veiaporta para a veia cava inferior, de lado a lado, ou do lado aoextremo. Ainda me lembrava dos diagramas da união esplenorenal -essa era do fim para o lado. A ideia geral era aliviar a pressão dosangue no esófago, passando o sistema venoso do fígado, onde apressão havia aumentado e causado a hemorragia, para uma veia

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onde a pressão era mais regular, como o interior da veia cava, ou aveia renal esquerda. Tinha também na memória os númeroscomparativos destes procedimentos, mas não queria pensar neles.Como é que se pode olhar para um paciente e pensar que tem vintepor cento de hipóteses?- Estamos preparados, Mrs. Takura.Insisti no estamos, quando deveria de facto ter dito "eles", poisnunca observara sequer uma dessas operações, chamadas desvio daveia cava/veia porta. Era fantástica, teoricamente. Nadaentusiasmava mais os professores que falar dessas diferenças depressão, tratando-as com este método.

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Quando começavam, gostavam particularmente de discutir certosartigos obscuros escritos por Harry Byplane da Universidade deAcolá (Harry era sempre um bom amigo, é claro), que demonstravamque um artigo de George Littlechump na de Além se havia enganadoao pressupor que o declive da pressão venosa hepática interlobularjuntamente com o plexo portal interlobular não tinha importância -aquilo não tinha importância lá, é o que se ouve muitas vezes nasrondas da escola médica. Para se sair vencedor, teria de se citar umdos mais obscuros artigos sobre o declive da pressão (elesgostavam especialmente dos gradientes de pressão ou pH),

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afirmando que Bobble Jones tinha provado de forma conclusiva(qualquer dúvida seria desastrosa) que, numa série de setenta esete pacientes (era necessário um número exacto, mesmo quefictício), todos eles morriam se fossem para o hospital. No final, nãotinha muita importância o que se havia dito, desde que tivessebastantes números e declives e referências pessoais ao autor; eraseentão aclamado, e o primeiro da classe. Era assim nas grandes48ligas.- Bem, Peters, agora é que a arranjou a bonita.- Mas, e Mrs. Takura?- Esquece o paciente, estamos a falar de iões de hidrogénio nosangue, e isso é o pH, com um p pequeno e um H grande.

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Lembrei-me de uma noite em que estávamos todos reunidos àvolta de uma cama, durante uma das aulas na escola médica.Qualquer pessoa podia ver que os estudantes eram aqueles debata branca curta. As batas e as calças brancas definiam os internose os residentes. E havia depois, no auge da hierarquia, as longasbatas brancas engomadas; uma maravilha, tão brancas que faziamos lençóis das camas parecer cinzentos. Preciso de explicar quem asusava?Alguém mencionou o nome da doença do paciente e lárecomeçámos nós numa intrincada questão sobre o pH, os iões desódio, as sondagens sobre a glucose, citando artigos de Houston,

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na Califórnia, e alguns suecos. Os nomes eram atirados de um ladopara o outro, numa espécie de pingue-pongue académico. Quemacabaria o jogo, dizendo o último nome, a última novidade?Estávamos quase sem fôlego, cheios de ansiedade, quando alguémnotou que estávamos reunidos à volta da cama errada. O pacienteali deitado não sofria da doença que estivéramos a debater. Issofinalizou o jogo sem haver um vencedor, e afastámo-nossilenciosamente em direcção à outra cama. Não consegui perceberque raio de diferença fazia, uma vez que nem sequer tivéramostempo de observar o paciente. Talvez se sentissem envergonhadosde discutir uma doença em frente de outro paciente.

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- Tente dormir, Mrs. Takura. Vai correr tudo bem.Dei uma olhada por cima do ombro para verificar se a costaestava livre. As enfermeiras não me haviam prestado muita atenção,em parte porque estavam ocupadas com um homem no sítio oposto.O homem estava ligado a um monitor de um ECG que mostrava umbatimento muito irregular do coração. A mulher chorava aindasilenciosamente na cama do seu filho adolescente, coberto de49ligaduras. Tinha um ferimento na cabeça, resultante de um acidentede automóvel; nunca chegou a ficar consciente.Dirigi-me para a porta, abri-a e saí. O dia mudou para a noite.As luzes brilhantes, o som das máquinas, a azáfama das

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enfermeiras, tudo isso se desligou assim que a porta se fechou.Estava de volta àquele corredor escuro e apressado do hospital.à minha esquerda, encontrava-se uma enfermeira no seu posto, coma silhueta evidenciada pela luz brilhante por detrás dela. Tudo oresto se confundia na obscuridade. Entrei no corredorcompletamente às escuras. Tudo o que tinha a fazer era voltar parao lado da luz, descer as escadas e atravessar o átrio em direcçãoaos meus aposentos. Ainda tinha tempo de dormir. Subitamente,uma luz acendeu-se por detrás de mim e uma voz gritou.- Houve uma paragem, Doutor. Uma paragem. Venha depressa! -

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Ao voltar-me, a luz desaparecera, deixando apenas pontosluminosos no meu campo visual. O bloqueio de Berlim, uma crise demísseis cubanos, o Golfo de Tonkin. Crises, sem dúvida, mas não tãopróximas, nem tão perto de casa. Para mim, isto significava umalerta máximo, o tipo de catástrofe que eu mais receava. A minhaprimeira ideia foi que não seria o único médico a aparecer, masdevido à hora seria talvez o único. Se tivesse tido oportunidade deescolher, teria partido na direcção oposta, sem me preocupar se eracobarde ou realista. Mas ali estava, a dirigir-me para o paciente,

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quase a imagem do jovem interno a correr pelo corredor com oestetoscópio agarrado nos dedos tensos.Já o devem ter observado na televisão e nos filmes, e é de factoemocionante, não é? Assim como o som do clarim e o ataque dacavalaria no último momento. Mas no que pensa este interno?Depende para onde ele está a correr. Se estiver às escuras, está atentar lá chegar inteiro. Para além disso, depende do tempo queesteve como interno. Se não for há muito tempo, há apenas umassemanas, então corre assustado; aterrorizado, para ser mais exacto.Não quer ser a primeira pessoa a chegar.

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Já lá está agora, sem fôlego, mas intacto fisicamente. Mas a sua50mente devaneava em outro lado. A pouca informação que tinhasobre a situação havia sido subitamente varrida do seu cérebro pelochoque da responsabilidade. Não se preocupem em aprender osnomes de drogas ou de dosagens, insistiam os professores defarmacologia, aprendam apenas os conceitos. Como se diz a umaenfermeira para preparar 10 cc de conceitos para um doente queestá a morrer?O estranho mundo voltou a envolver-me assim que abri as portasdos C.I., e é claro que era o único médico, acompanhado pelas duas

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enfermeiras que estavam à cabeceira do homem com o ECGirregular. Enquanto a minha boca formava uma obscenidadeinaudível, os meus dedos apertaram involuntariamente a armaçãoda cama, como para se apoiarem. Já não era o interno da televisão,mas sim um médico verdadeiro, cheio de inexperiência e terror.Quem me apoiaria se esse homem morresse? As enfermeiras? Osprofessores da escola médica? Os médicos de serviço? O hospital?O que era mais importante é que ainda não aprendera a perdoar osmeus próprios erros.Olhei de novo para a porta, desejando que algum residenteaparecesse, embora fosse improvável; veio-me à ideia a razão por

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que tantos estudantes brilhantes e dedicados passam pela escolamédica e depois, ao lidar com o internato, mudam para a pesquisaou outro tipo de campo paramédico. Qualquer coisa deve ser melhorque o internato. Há algo errado aqui. Por que é que um interno nãosabe aplicar nada útil quando é chamado aos C.I. nas primeirassemanas de internato? E por que é que os assistentes não lhe dãoapoio? Mesmo os mais atenciosos não conseguem ser mais quecalmamente agressivos. Parecem dizer:- Nós já estamos fartos desta merda. Agora, que diabo, é avossa vez.Bem, estava a fazê-lo, aqui e agora nos C.I, sem hipótese de

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aparecer ajuda, mas desta vez tive sorte. O monitor do osciloscópiomostrava o ECG com um impulso eléctrico errático, como osgatafunhos de uma criança irritada. Quando o som do bip começou asoar cada vez mais alto, até atingir um staccato extremamente51rápido, compreendi que o paciente tinha entrado em fibrilaçãomuscular; o seu coração era apenas uma massa incoordenada etrepidante. Agora, sabia o que fazer. Ia dar-lhe um "choque".Na realidade, a decisão foi tanto minha quanto das enfermeiras.Sempre um passo à frente, tinham já o desfibrilador carregado euma delas entregava-me placas oleadas.

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- Qual é a carga? - perguntei, sem realmente me importar, mas anecessitar do controlo que a pergunta me dava.- Carga total - respondeu a enfermeira das placas. Apliquei umadelas ao peito do homem, mesmo por cima do esterno, e a outra aolongo do lado esquerdo do tórax. O que era estranho era ele nãoter deixado completamente de respirar. Nem estava inconsciente.O único sinal de sofrimento que apresentava, para além darespiração entrecortada, era uma espécie de olhar surpreendido,como se lhe tivessem roubado a respiração. Carreguei no botão daplaca. O seu corpo inteiriçou-se violentamente e os braços agitaramse

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em várias direcções. O blip do ECG desapareceu subitamente doecrã, com a tremenda descarga elétrica, mas apareceu logo a seguir,parecendo normal. Fiquei mais descansado quando o bip reapareceutambém, sugerindo uma média de pulso normal, e o homem respiroufundo. As coisas aparentaram ir bem apenas durante dez segundos,quando ele deixou de respirar e a pulsação desceu a zero, enquantoo ECG continuava com o blip, numa média normal. Era muitoestranho. Os blips do ECG com um paciente sem pulso era coisa quenão vinha nos compêndios. A minha mente jogou um enorme match

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de ténis interior, com conceitos a voarem de um lado para o outro;havia actividade eléctrica, mas não havia batimento, nem pulsação.- Tragam-me um laringoscópio e um tubo endotraqueal.Uma das enfermeiras já os tinha. Ele tinha que receber oxigénio.O Oxigénio e o dióxido decarbono, tinham de o fazer mover, e paraisso tínhamos que introduzir o tubo endotraqueal e respirar por ele.Este tubo é colocado através de um aparelho longo, fino ebrilhante chamado um larigoscópio. Este aparelho tem uma lâminano extremo, de cerca de quinze centímetros mais ou menos, que é52utilizada para levantar a base da língua e abrir a entrada para a

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traqueia, por onde o tubo deve entrar. Assim que a lâmina entra nagarganta, tentamos localizar o opérculo que cobre a traqueiadurante a deglutição - a epiglote. Estamos sentados atrás dopaciente, nesta fase, puxando a sua cabeça para trás, lutandocontra matérias estranhas como o sangue, o muco, ou vómito. Umavez que se veja a epiglote, faz-se deslizar o instrumento lá paradentro, desce-se um pouco e comprime-se. Com alguma sorte,estaremos a ver então, para além da traqueia, as cordas vocais, quesão de um branco-creme, em contraste com a mucosa vermelha dafaringe.

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Esta é a situação ideal. Na prática, tem-se muitas vezes quetactear na garganta com a mão livre, à procura da traqueia, e muitasvezes não a encontramos. E mesmo quando isso acontece, osproblemas não acabam mais, porque introduzir o tubo pode ser umacoisa muito complicada. O orifício precioso entre as cordas vocaisserá tapado pelo tubo de borracha no último momento. Não há maisnada a fazer senão empurrá-lo às cegas. às vezes também podeacontecer estarmos a introduzir o tubo no esófago, de modo quequando se tenta dar ventilação ao paciente - forçar a entrada do ar- é o estômago que se enche em vez dos pulmões. E há geralmente

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sempre alguém a fazer massagem cardíaca no peito do paciente, eo laringoscópio bate contra os dentes ou sai da boca, e essa áreapode estar a encher-se rapidamente com líquidos de qualquer fonte.Para mim, introduzir o tubo endotraqueal era um pesadelo.Mas não havia outra pessoa para o fazer, por isso empurrei acama para trás e pus-me atrás dele com o laringoscópio.- Qual é basicamente o problema? - perguntei rapidamente,puxando a sua cabeça para trás.- Nem sempre segue o ritmo do pacemaker - respondeu uma dasenfermeiras. Subitamente, tudo fazia mais sentido.- Que é que lhe estão a dar? Que contém aquele frasco?perguntei, apontando para o frasco da IV.

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- Isuprel - respondeu uma delas, e mandei-as acelerarem-no.53Sabia que o Isuprel ajudava as contracções do coração, e eraparticularmente útil em casos em que o coração se contraía sozinho.- A que velocidade? A que velocidade? - Não fazia a mínimaideia.- Deixe correr. - Não me ocorria nada melhor para dizer. Tinha,agora a cabeça para trás, o laringoscópio introduzido nagarganta,mas não conseguia ver as cordas vocais. - Traga-me uma ampola debicarbonato. - Assim que uma das enfermeiras saiu do meu campode visão periférico, compreendi que tinha pensado em alguma coisaque elas não tinham previsto. Consegui então ver as cordas vocais.

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Os seus contornos brancos contrastavam com o vermelho, como osportões de uma câmara subterrânea. Pela primeira vez conseguiintroduzir o tubo na traqueia sem muito esforço.Mas assim que havia acabado de o introduzir, o pacienteagarrou-o e tirou-o para fora. Senti-me indignado, por um segundo,até que me apercebi de que ele estava novamente a respirar. Tinhaagora uma pulsação forte. A enfermeira apareceu com o bicarbonato.Estupidamente, queria dar-lho agora, porque era uma coisa em quetinha pensado, e elas não, e especialmente porque sabia muitosobre electrólitos, pH e iões. Mas ocorreu-me o efeito que aquilo

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poderia provocar no nível de cálcio. O cálcio e o potássiocombinavam-se com o pH de uma forma traiçoeira. Corria o risco depensar demasiado e estragar tudo, por isso decidi guardar obicarbonato; não valia a pena continuar.Ouviu-se subitamente abrir a porta e entrou outro interno,seguido por dois residentes. Estavam todos estremunhados. Umdeles não trazia meias e mostrava vincos no rosto provocados pelasrugas da almofada. A multidão continuou a chegar. Teria sido nestaaltura que eu gostaria de ter chegado, quando já se encontravatudo sob controlo e as decisões seriam gerais. Na realidade,comecei a acalmar-me, embora tivesse ainda a pulsação acelerada.

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O pessoal recém-chegado instalou-se nas cadeiras e no balcão. Umdeles folheou a ficha do doente, enquanto outro chamava o médicoprivado. Mantive-me ao lado do paciente, que começara a falar.Chamava-se Smith.54- Obrigado, Doutor. Acho que estou melhor agora.- Sim, tem todos os sinais disso. Ainda bem que pudemos ajudálo.- Os nossos olhos cruzaram-se, os dele mostrando mais confiançado que a que achava que merecia, e os meus tentando nãodenunciar a minha insegurança interior. O Isuprel continuava a corrercomo louco, e não sabia se havia de o abrandar ou não. Deixemosos outros continuarem por um pouco. Mr. Smith queria falar.

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- É a terceira vez que isto me acontece, quer dizer, a terceira emque o meu coração decide não seguir o pacemaker. Quando issoacontece, nem tenho tempo para pensar, mas depois, como agora,tudo se torna uma rotina. Primeiro, sinto a garganta apertar-se, edepois, subitamente, não consigo respirar, mesmo nada, e depoistudo se torna cinzento e com sombras. - Ouvia-o com atenção, massó compreendi metade. Era incrível estar a falar com um homem queainda há alguns minutos atrás não estava ali.- Uma sombra, é essa a melhor palavra que consigo achar, umasombra que não desaparece. Torna-se mais profunda e negra, até

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que não existe mais luz, nenhuma luz no mundo. - Parouabruptamente.- Mas sabe qual é a parte pior, Doutor? - Abanei a cabeçanegativamente, sem o querer interromper. - A parte pior é sair dali,por isso acontece muito lentamente, não como se estivesse adescer, que é rápido. Primeiro, tenho sonhos caóticos e selvagens.Não lhes encontro nenhum sentido, até que, finalmente... e parecedemorar tanto... quarto e as pessoas aparecem. O que não consigoexplicar é que a última coisa a vir é o tomar consciência de mim,quem sou, onde estou, e a dor. Sinto o peito dorido, como sesofresse de falta de ar, especialmente se tenho um tubo na

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garganta.- Deve ter sido por isso que tirou o tubo. Já fez muitasoperações?- As suficientes para encher um livro. Ao apêndice, à vesículabiliar...Interrompi-o.55- Lembra-se de como era quando foi anestesiado? Já alguma vezo foi com éter? - Essa era uma experiência de que me recordavabem, embora tivesse ocorrido há muito tempo, quando tinha 4 ou 5anos. Nessa altura, toda a gente fazia operação às amígdalas, elembrei-me do terror que sentira quando a máscara com éter foiposta no meu rosto e a sala começou a desvanecer-se, e escutaraum ruído insuportável nos meus ouvidos. Depois apareceram círculos

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concêntricos que se moviam cada vez mais depressa, até seencontrarem num centro vermelho e brilhante; depois, nada, até queacordei a vomitar.- A minha apendicectomia foi em 1944 - disse Mr. Smith,recordando-se -, quando estava na marinha, e creio que foi cométer.- Também foi assim que se sentiu quando o coração parou? Equando recuperou a consciência?-Não, não foi nada assim. A anestesia é algo agradável, nadacomo lutar com o meu coração; parece literalmente uma luta paraconsegui evitar que salte do meu peito, mantê-lo sob controlo. Nãome consigo lembrar como acordei das operações, mas quando o

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coração começa bater novamente é como se tivesse milhares depesadelos.Ergueu-se e tocou na minha mão, que estava na armação dacama.- Meu Deus, espero que não aconteça mais. Está a ver, é quenão posso ter a certeza de que esteja aqui alguém para me ajudar.Sabe, Doutor, houve mais uma coisa estranha, desta vez, pareciaque estava a ver o meu próprio corpo de fora dele, como seestivesse aos pés da cama.- Já tinha tido essa sensação antes? - perguntei, agora comcuriosidade. - Sentir-se fora de si próprio é um sintoma deesquizofrenia.- Nunca. Foi uma sensação única. Uma sensação única. - Este

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homem falava-me de morrer, mas a maneira com que o fazia tornavaa morte num processo vivo, algo que se poderia estudar num livro.56Sem o desfibrilador podia evidentemente estar morto, e com eleaqueles pensamentos. Esta noite, a linha entre a vida e a mortequase não existira para três pessoas, para este homem, MarshaPotts e o velho com cancro. Estava com dificuldades em pensar navida e na morte ao mesmo tempo, mas estava satisfeito por estehomem não estar morto, porque era simpático. Mas que ideiaestúpida. De qualquer modo, não o podia imaginar morto.

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Independentemente do que tinha acontecido, ele não teria morrido,porque estava vivo neste momento.Isto faz algum sentido? Para mim fazia. Quem era eu para pensarque podia mudar o destino? Estar vivo, falar e pensar é tãodiferente de estar morto e imóvel que essa transição parece agoraimpossível. Havia sido tão simples, apenas uma faísca nodesfibrilador, como se batesse nas costas de alguém para parar umatosse, ou ir a correr buscar um copo de água. Talvez ele nãoestivesse em fibrilação, talvez se tivesse safado sozinho. Já tinhaacontecido. Nunca saberemos.Os médicos residentes e os internos ainda ali estavam, aconversar e a ajustar os tubos de plástico, coçando a cabeça e

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verificando o traçado do EGG. Tinham um ar satisfeito einteressado. Dei uma olhada a Mrs. Takura ao sair, que me sorriu eacenou com o braço livre.o estranho mundo interior dos C. I. desapareceu assim que vireipara o corredor e desci as escadas. A vida parecia adormecida.Pensei nas noites no continente, quando estava na escola médica etinha de lutar do apartamento até ao hospital, com tudo o que oInverno tinha para oferecer. Ironicamente, as noites calmas e cheiascomo estas pareciam ainda mais difíceis, tão solitárias queapetecia praguejar. Todas as noites no Havai eram como esta, clara,

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incrustrada de milhares de estrelas e refrescadas por um ventosuave.Só a ideia de Jan no meu quarto me fazia continuar. Em alturascomo esta, em que as tensÕes médicas se começavam a evaporar,tudo o que conseguia pensar era em fugir àquela solidão, estarperto de alguém vivo e com saúde, falando com ela e amando-a. Na57escola médica, acontecera algumas vezes ter uma rapariga à minhaespera no quarto, depois de ser chamado para fazer algo. Erasempre agradável voltar por isso. Mas acontecera também diversasvezes ela resmungar e voltar a dormir assim que me metia na cama.

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Aquele algo que os meus colegas na escola médica e eu nosencontrávamos a fazer a altas horas da noite era quase sempre amesma rotina de laboratório. A necessidade de análises de sangue,de proteínas de Bence-Jones parecia ocorrer principalmente antesda meia noite, para os residentes. Por isso, havíamos acabadocentenas de vezes por usar o nosso restinho de tempo no que sepode chamar as entranhas do navio médico, contando pequenascélulas sanguíneas, que se tornam ainda mais pequenas com opassar do tempo. Entretanto, o residente da ponte dirigia o

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paciente, reclamando várias vezes da lentidão dos seus contadoresprisioneiros. A verdade sobre as contagens sanguíneas é que,fazendo uma, fazem-se praticamente todas. O ponto de diminuiçãodo rendimento na curva de aprendizagem 4, atingido rapidamente,particularmente às três da manhã, quando o cérebro tem tendênciaa querer voltar para o quarto, e talvez para a jovem que aguardava.Havia feito vinte sete contagens de sangue, um record pessoal,embora longe do record do hospital. As últimas, nessas alturas,eram, naturalmente, não mais que palpites meio calculados. Assimsucedia nas grandes ligas, onde recebíamos treino pelo preço de

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4000 dólares por ano, para técnicos de laboratório. Todos nósimaginávamos uma situação fantástica onde atirávamos a urina àcara dos residentes e lhes dizíamos que enfiassem a garrafa no cu,ou íamos para o café fazer greve. Nada disto acontecia fora dasnossas mentes, porque, para dizer a verdade, estávamos bastanteintimidados. Como os professores não se cansavam nunca deapontar, havia outros à espera para usar as nossas batas brancas. oque de facto acontecia era que, mais para a noite, quando nossentíamos chateados e explorados, cortava-se aqui e ali um bocado,e inventava-se um resultado plausível. Mas isso poucas vezes

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acontecia, e só à noite.58Mas o pior de tudo era depois, quando não tínhamos quem nosescutasse. Tudo parecia adormecido e indiferente às convicçÕes deque a preparação médica era fraca e irrelevante. Por isso,apressávamo-nos a ir para o quarto, para a rapariga adormecida,gratos finalmente pelo seu corpo quente.Alguns estudantes casaram-se no princípio da escola médica.Suponho que não se sentiam tão sós, tendo o tal corpo quenteomnipresente. E os primeiros dois anos foram óptimos - cursosdurante o dia e estudar os livros durante a noite. Devem ter-sedivertido imenso.Mas era diferente, quando as contagens do sangue apareceram

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nos últimos dois anos, e todas as outras coisas chatas a meio danoite. Penso que alguns desistiram de tentar comunicar a suafrustração. o corpo quente não era o suficiente. De qualquer modo,muitos deles já se haviam separado quando recebemos o pedaço depapel a dizer que éramos Doutores em Medicina. Éramos, narealidade, campeÕes em contagens de sangue, doutores emConceitos e no trivial do Laboratório. Nenhum de nós sabia quedose de Isuprel poderia salvar uma vida.Quando abri a porta, não sabia se havia de fazer barulho ouandar silenciosamente. Ganharam os instintos mais bondosos, e

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assim que a luz do corredor penetrou no quarto, fechei rapidamentea porta e descalcei os sapatos. o quarto estava mergulhado numsilêncio profundo, e tão escuro que não me poderia ter movido senão conhecesse a localização da mobília. E que mobília!Claro que o leito de hospital onde eu dormia tinha umascaracterísticas interessantes. Podia subir de modo a ter uma posiçãotão confortável para ler os livros que nunca conseguia ler mais quedois parágrafos sem adormecer.o resto da mobília incluía um cadeirão mais duro que uma pedrae uma secretária feita para uma criança. Se lhe pusesse os cotovelosem cima, não tinha espaço para o livro, especialmente se fosse

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daqueles calhamaços enormes que são tão populares hoje em diaentre as editoras de livros de Medicina. Ao mover-me no escuro, oúnico obstáculo potencial seria a prancha de surf que havia59pendurado no tecto. Consegui ver gradualmente o contorno dajanelae a cama, e pus a mão dentro dos lençóis, correndo-os de um ladopara o outro, cadavez mais rápido, até ter a certeza de que ela sefora mesmo embora. Sentei-me na beira da cama, racionalizandoque estava exausto de qualquer modo, ela não teria provavelmentequerido conversar. Já passava das duas e estava exausto; realmenteestava.

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o telefone tocou mais três vezes nessa madrugada. As duasprimeiras não eram suficientemente importantes para ir, eramapenas enfermeiras com perguntas sobre ordens e sobre umpaciente que precisava de um laxante. Fiz um pequeno estudoindependente no que diz respeito aos laxantes. Os estudos provamconclusivamente que cinco entre seis enfermeiras pedem dez vezesmais os laxantes entre a meia-noite e as seis da manhã do que emoutra qualquer altura do dia. Em relação às razÕes, estas sãodifíceis de imaginar, indo desde a interpretação Freudiana dasressacas anais profissionais de enfermagem. De qualquer modo,

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sentia que era quase um acto criminoso acordarem-me por causa deum laxante.Cada vez que o telefone tocava, dava um salto na cama,enquanto a adrenalina me penetrava nas veias. Na altura em quepegava no auscultador, o meu coração batia fortemente. Mesmo quenão fosse coisa importante, levava cerca de meia hora para acalmardepois de cada telefonema, de modo a poder dormir. Numa dessasnoites, ao atender o telefone meio a dormir, só conseguia ouvirmurmúrios distantes. Gritei para falarem mais alto, fechando osolhos e concentrando-me, mal conseguindo ouvir as palavraslongínquas. Estavam a dizer-me que estava a falar para o ladoerrado do auscultador.

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A terceira chamada era o oposto do espectro do meu medo denão saber o que fazer. Claro que podia resolver; até uma criança de4 anos poderia. Mrs. Fulana tinha caído da cama. Os pacientesnormalmente não se magoam quando caem da cama - não estãopresos, e para além disso as enfermeiras sabem o que devem fazer.60Nada disso interessava à administração do hospital. Desde quetivessem caído da cama, o interno tinha de lhes ir dizer olá, fossequal fosse a hora.Levantei-me, e senti-me... - como explicar? - não era bemnauseado, embora estivesse mal do estômago, e não tivesse febre

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alta, mas sentia a testa tão quente que nela poderia fritar um ovo.A melhor nomenclatura seria uma descrição. Sentimo-nos como seriade esperar ao sermos acordados às quatro da manhã depois determos apenas dormido duas horas, durante as quais havíamos sidoacordados assim que adormecíamos. Tinha-me deitado finalmenteapós ter trabalhado cerca de vinte horas, exausto física eemocionalmente, para ter de me levantar para ajudar alguém quehavia "caído" da cama sem se magoar. Na realidade, a maior partedeles apenas caíam no chão a caminho da casa de banho. Mas,fosse qual fosse a forma como haviam caído, as enfermeiras davamlhesempre o nome de queda, mesmo que estivessem longe da

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cama, e lá íamos nós, na observância de uma legalidade absurda.Este formalismo era ainda mais absurdo quandocompreendíamos que o hospital depende destas mesmasenfermeiras para determinar o estado físico de um paciente echamar o médico, se necessário for. Mas, por alguma razãoinexplicável, não se pode contar com elas para verificarem se opaciente se magoou ou não ao dar uma queda. Há no entanto mais,muito mais que algo inútil e arbitrário que se tem que fazer. Cercade metade do tempo, desde o terceiro ano da escola médica, foidespendido na procura do inútil e do arbitrário, e é justificado pelaexplicação diáfana de que tudo isso é necessário para se ser um

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estudante de Medicina ou interno, e para nos tornarmos médicos.Tretas. Este tipo de coisa é apenas para nos atormentar e umaimposição de tarefas desnecessárias, uma espécie de rito deiniciação para a entrada na Associação Médica Americana. osistema funciona; meu Deus, como funciona! Eis a profissão médica,moldada em perfeição, cérebros lavados, estreitamenteprogramada, de direita nas suas tendências políticas e61completamente dedicada à aquisição de dinheiro.Remoía caoticamente estes pensamentos enquanto me dirigiapara o elevador e carregava no botão com força, com certa

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esperança de partir aquela engenhoca. Ao voltar para o hospital,tentei não acordar completamente ao passar por aqueles corredoressonolentos em direcção aos pontos de luz longínquos.Contei certa vez a um amigo, que não estava em Medicina, asvariadas razÕes por que era o meu sono interrompido às quatro emeia da manhã. Não acreditou. Era demasiado inquietante para ele.Destroçava a sua imagem colorida do interno subitamente acordado,ansioso, vestido de branco, a correr pelos corredores, a subir asescadas de três em três degraus, para salvar uma vida. E aquiestava eu, sentindo-me sujo e a cambalear pelo corredor

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praguejando baixo, a caminho de dizer, "Como está, paciente?...óptimo, Doutor... ainda bem... Descanse agora, e por favor não voltea cair da cama."Faltava já um quarto para as seis, já era dia, quando o telefonetocou mais uma vez. Pus os pés no chão, levantei-me lateralmente,usando os braços para me erguer. Senti novamente aquele malestar,e uma tontura momentânea até que o chão frio me despertou.Apoiei as mãos no lavatório e encostei-me a ele por um segundo.No espelho, os meus olhos eram como vistas aéreas de lavaquentea correr para um lago de lama. A única razão por que as olheiras não

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chegavam aos cantos da minha boca era porque não conseguiasorrir. Ah, mas um Pouco de água fria resolveria a situação.Segurando-me com apenas uma mão, molhei ligeiramente o rosto.Esta manhã nada havia de particularmente novo ou diferente.Era apenas uma manhã como as outras. Havia trabalhado em duassemanas de tal modo, sem quase dormir, que mesmo tendo dormidoseis horas seguidas me sentia da mesma forma. A lâmina debarbear, mais viva que eu, deixou diversos pontinhos de sangue naminha garganta. Ao misturar com a água, parecia ser muito sangue,e, em combinação com os meus olhos e as olheiras, faziam-meparecer um tipo da Mafia.

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Cerca de trinta segundos depois, senti-me suficientemente62recomposto para me vestir. o estetoscópio, a lanterna, uma série decanetas de cores diferentes, bloco de notas, pente, relógio, carteira,cinto, sapatos, seguindo a minha lista mental. Verificar se as meiaseram iguais. Não posso dar mau aspecto ao sítio. Dei uma últimaolhada em volta do quarto para me certificar de que nada faltava,algum papel, ou algum livro. Deixei o quarto, satisfeito, usei oelevador e saí para o ar da manhã.Fazia sempre questão de dar uma volta em frente do hospitalantes de me dirigir para a cafetaria. Conseguia pôr-me mais bemdisposto,

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de algum modo. O céu estava nessa manhã de um azulpálidoe longínquo, ponteado por pequenas nuvens, em partebanhadas a leste por tons vermelhos-dourados; para oeste, as coresesmoreciam mais para rosa e violeta. A relva brilhava e haviapássaros por todo o lado, com grande algazarra. Predominavam doistipos de pássaros, os mainás, que se pavoneavam por ali comestranhos comportamentos, e a guincharem de forma desafinada erabugenta, e os mais discretos pombos, movendo-se maislentamente, quase delicadamente, parecendo alguns delesbambolearem-se ao abrir as penas das caudas, arrulhandomelodiosamente. Gostava daquele pequeno passeio matinal. Eram

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só alguns metros, mas fazia-me feliz.Seis da manhã não é para mim a altura ideal para se ter umgrande pequeno-almoço, especialmente depois de uma noite embranco. Forcei-me contudo a comer, enchendo a boca com a comida epondo toda a minha confiança na água para a engolir. Sabia porexperiência que voltaria a ter fome dali a uma hora ou duas, quandome seria impossível voltar a comer. Além disso, por causa dosistema de horários, perdia muitas vezes a hora de almoço. Podianão ter oportunidade de comer durante mais oito ou dez horas.Depois do pequeno-almoço, tinha cerca de meia hora para ver

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os meus doentes antes de os turnos começarem, a um quarto paraas sete. Era importante ter tudo em ordem antes, para conhecer asúltimas alteraçÕes. Os dos C. I. eram os primeiros. Nunca meimportava de ir lá de manhã, ou em qualquer altura durante o dia.63Havia sempre outros médicos que colmatavam aquela sensação dese estar sozinho num fio de alta tensão. Mrs. Takura dormiacalmamente depois da medicação pré-operativa; ainda tinha o tuboenfiado na narina, e o nariz enrugado com a tensão. Pulso,resultados da urina, tensão arterial, respiração, temperatura,electrólitos, BUN, tempo de protrombinas, proteínas, bilirrubina...

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todos os testes recentes ali estavam registados, Fiz uma pausa paraanotar o seu estado na folha seguinte, desejando que ela estivessepronta.No outro canto, as máquinas de Mr. Smith continuavam o seubip, mostrando um ECG que parecia ser normal, embora eu não fosseum especialista em analisá-los, especialmente no osciloscópio.Estava a dormir. Dirigi-me às enfermarias.Numa delas, havia mais variedades e quantidade que crisespropriamente ditas. Tinha vários pacientes, representantes dediversos tipos de pessoas e de problemas. Na sua maior parte,estavam a recuperar de uma cirurgia e progrediam de vários estadosdo pós-operatório, desde o tirar dos pontos à exaustão. o

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comprimento dos seus drenos era geralmente uma boa indicaçãodos dias passados após a operação. Os drenos eram um poucoembaraçosos, mas eram uma parte importante na prática da cirurgia.Eram introduzidos profundamente na incisão no final da operação, eserviam como escoadouro de qualquer líquido, e para baixar ainfecção. A ideia era extrair o dreno para fora, centímetro acentímetro, começando no segundo dia após a operação, edeixando assim a ferida curar-se de dentro para fora.Os doentes não conseguem entender os drenos. Para eles, ospedaços oscilantes de borracha pálida eram uma fonte dereclamaçÕes e desconforto, principalmente psicológico. Mr. Sperry

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estava a dois dias de ter realizado a operação a uma úlceragástrica, e estava na altura de tirar o seu dreno. Prendi-o com umgancho e dei-lhe um bom puxão. Mas só saiu um bocado, de talmodo que parecia um macarrão chinês. Mr. Sperry olhava fascinado,da sua posição, sentado entre duas almofadas, com os olhos muitoabertos, e com as mãos a agarrarem fortemente o lençol. Ao puxar o64tubo mais uma vez, perguntei a mim próprio se não teria sido cosidoà carne, quando ele gradualmente se soltou e avançou algunscentímetros. Um pouco de fluido sero-sanguíneo saiu com o tubo e

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foi rapidamente absorvido com gaze.- Doutor, tinha mesmo que fazer isso?- Bem, não quer sair daqui com o tubo pendurado, ou quer?- Não.Pus um grampo de segurança no dreno, mesmo acima da pele,para evitar que o tubo recuasse para dentro da incisão, e depois,com uma tesoura esterilizada, cortei o excedente do tubo. Eraimportante fazer tudo na ordem certa, neste tratamento. Uma vez,antes de saber fazê-lo, cortei o tubo antes de prendê-lo. o pacientetinha estado a conter a respiração durante esse tempo e quandoinalou, por fim, o dreno desapareceu dentro do abdômen.Apareceram-me logo visÕes de uma nova operação, mas felizmente

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um residente conseguiu retirá-lo após ter tirado três suturas e terandado a pescar com um forceps.- Por que é que não me anestesia quando puxa? - perguntou Mr.Sperry, olhando para mim.- Mr. Sperry, anestesiá-lo não é uma coisa tão simples comopensa. Além disso, há sempre algum risco na anestesia, mas nãoexiste risco algum em puxar o dreno.- Sim, mas pelo menos não dava por isso.- Doeu-lhe realmente, quando o retirei?- Um pouco, e senti-me esquisito por dentro, como se meestivesse a separar.- Mas não se está a separar, Mr. Sperry. Está a ir muito bem,- Mas tem de puxar com tanta força? - continuou.

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- Olhe, Mr. Sperry, amanhã pÕe o senhor as luvas, dou-lhe apinça e pode tirá-lo o senhor. Que tal? - Sabia qual ia ser aresposta.- Não, não, não quis dizer que queria ser eu a fazê-lo. Narealidade, sabia ao que ele se referia. Depois de uma operação quefiz às pernas, achei que o médico havia sido muito bruto ao tirar os65pontos. Mas não queria ter sido eu a tirá-los. É bom para um médicoser paciente de vez em quando; torna-o mais receptivo aos medosirracionais dos pacientes. A solução é contar ao paciente tudo o quese está a fazer, mesmo as coisas mais simples, porque, na maiorparte das vezes, o que mais assusta o paciente é aquilo que ele

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imagina.- Mr. Sperry, pode andar por aí quando quiser; de facto, algummovimento até lhe irá fazer bem. Não vai abrir-se. Isto do dreno éum procedimento normal. Tira-lhe os líquidos prejudiciais enquanto aincisão sara. o grampo está lá apenas para impedir que o tuboentre para o seu abdómen.Estava tudo bem com Mr. Sperry, embora lhe tivesse dado quefalar para o resto do dia: como o médico cruel havia arrancado o seudreno e aberto as suturas, fazendo-o sangrar.Era esta a rotina da enfermaria: verificar os drenos, mudarpensos, responder a perguntas, verificando os gráficos detemperatura. Embora Marsha Potts não fosse minha paciente, parei

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em frente à sua porta quase instintivamente. Parecia ter pioraspecto, com a luz do dia que expunha a sua cor amarelada, e apele enrugada do seu rosto tão magro que parecia ter um sorrisoperpétuo. Estava muito mal; estávamos a fazer tudo o que podíamospor ela, mas não era o suficiente. Lá fora onde a relva fazia a suaentrada no edifício, os pássaros guinchavam e debicavam pedaçosde pão atirados pelos pacientes que passeavam.Eram já sete horas e a enfermaria fervilhava de vida,subitamente inundada pelos tabuleiros do pequeno-almoço e peloruído dos varÕes, das IV, quando os pacientes iam à casa de banho.

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As enfermeiras andavam apressadas, trazendo arrastadeiras,agulhas, pomadas e medicamentos. Já não me sentia cansado,inserido neste mundo, pelo menos enquanto estivesse de pé. Erauma rotina jovial; parecia dizer "Aqui ninguém morre, está tudo sobcontrolo". No meio de toda essa eficiência, Roso estava sem reacçãopor causa da Sparina. Tive de abaná-lo diversas vezes paraconseguir alguma reacção. Mas, já meio acordado, concordou que se66sentia mais forte, antes de adormecer novamente.Uma técnica do laboratório havia-me pedido para tirar o sanguede um paciente com veias más. Havia tentado três vezes sem

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sucesso. Claro que iria tentar, e com boa vontade, porque era paramim um grande conforto ter comigo estes técnicos para tiraremsangue de manhã. Pode parecer irrelevante para os leigos, mas osestudantes de medicina passavam todas as manhãs antes dosturnos a tentar tirar sangue dos pacientes; quando começavam osturnos, não tinham tido tempo de ver todos os seus pacientes e nãosabiam, portanto, da sua evolução. Quando começavam asperguntas - "Qual é o hematócrito do paciente, Peters?" - tínhamosque adivinhar, porque não havia sequer hipótese de verificar a

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ficha. Mas não devia parecer um palpite. Havia que responder semhesitaçÕes. "Trinta e sete!", como se se apostasse nisso a própriavida. Não era uma questão de honestidade. Era melhor tentar jogaro jogo do que provocar uma catástrofe, dizendo que não se sabia,fosse qual fosse a razão. Ninguém se interessa verdadeiramente sese fez ou não essas trinta e sete contagens, a não ser que nãotenham sido feitas. Por isso, era melhor dizer rapidamente trinta esete, de modo que na maior parte das vezes o professor nem tinhatempo para pensar. Mas se tiver, aí já há problemas, a não ser que

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se consiga distraí-lo referindo o artigo mais recente sobre a doença.Claro que, se ele verificar a ficha, vai verificar que não é verdade, anão ser que, numa hipótese remota, o hematócrito seja realmentetrinta e sete; de outro modo, o melhor é dizer humildemente que seestava a pensar em outro paciente. Isto iria dar a última pausafatal, enquanto o professor ia folheando a ficha, procurando outraquestão.- E em relação à bilirrubina, Peters?Agora estava realmente entre a espada e a parede,confrontando uma jogada de tudo ou nada. Se o palpite dabilirrubina também estivesse errado, o professor começaria a pensar

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que estava a ser desleixado com o paciente, e isso espalhar-se-iacomo um vírus no hospital. Mas se a resposta estivesse certa, era-sedevolvido ao estado de graça e o professor dirigia-se a outro aluno.67A bilirrubina é diferente do hematócrito no sentido em que esteúltimo varia bastante, em qualquer pessoa, enquanto que o valor dabilirrubina é praticamente Sempre o mesmo em qualquer pessoa,excepto em problemas de sangue ou fígado. Por isso, joga-se,dizendo: "Estava, em cerca de um, Doutor", A maior parte dos alunosaprendeu a jogar o jogo, na escola médica; se se jogasse bem,

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ganhava-se mais vezes do que se perdia.No Havai, tínhamos os técnicos para nos aliviarem desseencargo, e não me importava de os ajudar ocasionalmente. Alémdisso, era bastante bom a fazê-lo. Tinha de ser mesmo, depois deter tirado centenas de litros de sangue na escola médica.Começámos por tirar sangue uns aos outros, o que era rápido,embora alguns o fizessem parecer muito difícil. Nem mesmo esteexercício havia escapado a alguns momentos trágicos. Umavez, apóster apalpado vigorosamente a veia do braço de um estudante maisadiantado, deixei-a saliente como um cigarro barato. o torniquete

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tinha estado atado durante cerca de quatro minutos, enquanto euganhava coragem, e, quando finalmente introduzi a agulha, o meucolega desaparecera. Fora tudo muito rápido. Fui directamente daconcentração na agulha a entrar na pele para ficar a olhar para elasem braço. o meu "paciente" estava desmaiado no chão. Todostemíamos essas sessÕes de prática, mas era mais fácil que tirarmossangue a nós próprios.Nunca hei-de esquecer a primeira vez que tirei sangue a umpaciente. Passou-se no terceiro ano, quando começáramos com aMedicina de enfermaria. Por infelicidade, o meu primeiro dia

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coincidiu com a mudança de turno dos internos e residentes. Para osnovos residentes, era uma oportunidade irresistível. Decidiramverificar todos os diagnósticos dos pacientes, e para issonecessitavam de provas - factos claros, provas incontroversas delaboratório. Como resultado, todos nós estudantes tivemos que tirarum quarto de litro de sangue a cada paciente que nos estavadestinado. o meu primeiro, coitado, era um alcoólico crónico quesofria de uma cirrose do fígado bastante adiantada. As suas veias à68superfície haviam desaparecido há anos, e tive de o picar dozevezes, tacteando com a agulha pelo seu braço, sentindo a ponta de

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cada agulha entrar através de estruturas interiores com um som delibertação quase audível. Tive finalmente o bom senso de desistir ereceber a instrução do interno em como introduzir a agulha nagrande veia femoral nas virilhas, um sistema conhecido como junçãofemoral.A técnica de laboratório estava neste momento a ter mais oumenos o mesmo problema com um certo Mr. Schmidt, a quem apalpeias veias normais dos braços, enquanto ela me dava a seringa. Eraóbvia a razão por que ela não conseguia extrair uma gota sequer;não se conseguia sentir uma única veia decente no braço. Fiz, porisso, uma junção femoral, e foi rápido.

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Um pouco mais à frente, encontrava-se Mr. Polski, que era paramim um problema porque falhara em conseguir manter-me emcontacto com ele. Sofria de diabetes, circulação periférica pobre euma infecção profunda no pé direito. Havia feito, uma semanaantes, uma simpatectomia lombar, tendo-lhe sido cortados os nervosque eram responsáveis pela contracção dos vasos sanguíneos naparte inferior das pernas. Mas não apresentava melhorassignificativas. Insistia em pôr a perna fora da cama, por causa dasdores, e isso apenas inibia a já fraca circulação. Experimentei, aoprincípio, aproximar-me amavelmente, tentando explicar-lhe

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cuidadosamente o que aconteceria se deixasse assim a perna.Mesmo assim, quando o ia ver todas as manhãs, lá estava ela,caída para fora da cama. Mudando de táctica, fingi-me zangado,gritando um pouco, mas nada disto alterou a situação, a não serque ele passou a gostar menos de mim. O pé, agora negro egangrenoso, já havia sido marcado para a amputação.Acenei com a cabeça a Mrs. Tang, uma idosa senhora chinesaque tinha um cancro a crescer-lhe na boca. Não podia falar, por issocumprimentávamo-nos assim. o cancro era de tal modo enorme quelhe havia dissolvido os dentes e parte do maxilar do lado esquerdo,

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acabando por se tornar finalmente uma massa incontrolável,69fungiforme, que lhe aparecia ocasionalmente na garganta. Ela eracomo muitos dos chineses idosos que imaginavam o hospital apenascomo um local para morrer, e só cá vinham quando estavam mesmono fim. Não podíamos fazer muito por ela, mas tentámos a terapiade raios-X. o cancro crescia de dia para dia e Mrs. Tang pareciacada vez menos real, talvez pelo facto de não poder falar, ou talvezporque estivesse resignada.Mas havia mais: uma biópsia a um nódulo de linfa, uma biópsiada mama e duas reparaçÕes de hérnias. Cumprimentei-os a todos,

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indo de cama em cama, chamando-os pelos nomes; agora já osconhecia a todos. Conhecia mesmo as famílias de muitos dospacientes que haviam estado connosco por algum tempo. Chegououtro interno, e uma série de residentes, incluindo o residentechefe,e começaram as rondas da manhã. Era uma coisa rápida;devíamos provavelmente parecer um bando de mainás, movendo-nospouco à-vontade e rapidamente, tropeçando quase sempre uns nosoutros com a pressa, enquanto percorríamos cama a cama. Estapressa era necessária uma vez que só tínhamos meia hora antes daprimeira operação marcada. Não houve discussão de artigos, não

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fizemos muito mais que contar cabeças para termos a certeza de queainda estavam todos lá. Gastrectomia, cinco dias de pós-operatório,indo devagar. Hérnia, três dias de pós-operatório, descargaprovável. Veias varicosas, três dias de pós-operatório, descargaprovável também. úlcera gástrica, tratamento completo raios-X,cirurgia marcada. Tínhamos a radiografia da úlcera? Sim. óptimo.Na outra enfermaria, deixámo-nos ficar no meio, rodando emvolta sobre os calcanhares. Lesão maciça, medíastino, aortogramapendente. Fiz uma descrição em staccato tipo cápsula de cada umdos meus pacientes. o outro interno fez o mesmo. Havia quatro

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enfermarias como aquela, e acabámos o último caso na quarta,dezassete minutos exactos depois de termos começado.- Peters, faça outra venostomia a Mrs. Potts enquanto nosdirigimos aos C.I. e à zona de pediatria.o pequeno grupo desapareceu na esquina do corredor e eudirigi-me ao quarto de Mrs. Potts, irritado e confuso, protestando em70silêncio. Ela nem sequer era minha doente. Sabia que havia sidoescolhido porque não tinha nenhuma cirurgia marcada antes dasoito, embora seja normalmente às sete e meia, mas mesmo assimnão me queria envolver com ela outra vez, depois de ter feito figura

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de parvo com a pressão venosa na noite anterior. E além disso, umavenostomia pode ser complicada. Não tinha feito muitas. Mas eraprincipalmente devido ao ambiente. Mesmo assim, Marsha Pottsnecessitava de uma venostomia porque precisava de líquidointravenoso e alimento; sem as veias superficiais que eramnecessárias para a IV, teríamos de cortar uma veia mais profunda.Ao entrar no quarto, a alegria da manhã esmoreceu. Mesmo osom dos pássaros se tornou para mim inaudível, embora estivessemlá, evidentemente. Havia no ar um odor quase insuportável, tãocáustico e repugnante que fazia o ar parecer pesado. Era o cheiroquente de tecidos apodrecidos misturado com o cheiro doce e

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meloso do talco perfumado utilizado para se contrapor ao maucheiro. o talco ainda me fez sentir pior. Tentando não olhar para orosto da pobre mulher, pus três máscaras cirúrgicas para fugir aocheiro, mas estava com dificuldades em respirar assim e o meudiafragma lutava para respirar o ar espesso. Não queria tocar nascoisas. A morte parecia estar em todas elas, como se fossecontagiosa.Levantei o lençol na parte inferior e destapei-lhe o pé esquerdo.Tinha úlceras abertas na parte de dentro da perna e na parte detrás do tornozelo. Na realidade, tinha úlceras por todo o corpo, onde

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quer que lhe tocasse. Após ter verificado com a lanterna o aspectomédio do tornozelo, calcei as luvas de borracha e abri o estojoesterilizado da venostomia.A lâmina deslizou pela pele sem oferecer resistência. Tinha umpequeno edema no pé, de modo que um líquido claro escorreu daferida, em vez de sangue. Tive sorte em encontrar logo a veia, eainda mais sorte em não a ter cortado acidentalmente. Depois deter feito um pequeno furo na veia, introduzi facilmente o catéter, àprimeira, enquanto o suor escorria da minha testa, com o calor da71luz forte. Atei o catéter com seda no lugar e fechei a pequena

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ferida, enquanto observava o líquido a correr livremente. Empurrei oestojo com o pé, tirei as luvas e dirigi-me rapidamente para a luz dosol e os pássaros.Ao lavar as mãos, senti-me enojado comigo próprio, e não sabiaexactamente porquê. Ela era um ser humano; eu devia ajudá-la. Masa situação e a sua condição revoltavam-me de tal modo que tinhadificuldades em aceitar a responsabilidade. Onde estava a minhasimpatia? Para onde me dirigia eu?Tinha a minha primeira lavagem às oito horas, umacolecistectomia, ou remoção da vesícula biliar, com um cirurgiãoparticular. A minha paciente, Mrs. Takura, estava marcada para outra

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sala de operaçÕes, a seguir a uma remoção de gânglios; a suaoperação deveria iniciar-se às nove horas, a não ser que houvessecomplicaçÕes com o caso dos gânglios. Estava obviamente atrasadopara Mrs. Takura, mas isso era típico. o interno é uma espécie depeão no jogo médico; é o primeiro na linha de defesa, sacrificadosem remorsos, dispensável no fim, mas necessário, ao que parecia,no meio.Entrei no vestiário dos cirurgiÕes e comecei a vestir a bataverde pálida. Estava tão cheio que nos incomodávamos uns aosoutros, na brincadeira. De facto, o sentimento de igualdade ereconhecimento de todos como pessoas fazia que a lavagem fosse

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um prazer. Na escola médica, os estudantes e o pessoal da casavestiam-se em áreas diferentes, separadas por portas e umaescadaria separada do sanctum sanetorum das áreas de vestiáriosdos médicos. Era como se a imagem de um cirurgião fosse abaladase o vissem no seu estado natural. Um dos médicos assistentes daescola era de tal modo temido que os estudantes tremiam aoapresentar os seus casos. Um amigo meu - um médico excelente,embora um pouco inclinado ao pavor do palco - teve certa vez umlapso total de memória perto de um doente quando começara arelatar os factos ao médico assistente. Eu sabia que ele estavapreparado, mas não conseguia falar.

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72- Esta mulher apresenta um... han... um... - Corou, e a suapulsação acelerou-se, martelando-lhe no pescoço. o médico poderiaTer aliviado esta situação sugerindo que voltaríamos ao caso maistarde, ou mesmo dando uma palavra-chave da lista para desenrolara cadeia na memória do aluno. De forma alguma. Enfureceu-se,começando a gritar que era realmente espantoso como uma pessoatão estúpida havia conseguido entrar na escola médica, emandando-o desaparecer da vista dele até conhecer suficientementebem os casos dos pacientes para os poder apresentar. Nem todosos médicos eram assim, mas pelo menos uma parte significativa era.

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Naturalmente, depois de um episódio destes, a relação entre opaciente e o aluno não era muito boa quando, na manhã seguinte,chegava a hora de tirar sangue. Com o passar do tempo, muitosdetalhes do que se passou na escola médica vão-se desvanecendoe integrando na generalidade. o mesmo não acontece, penso eu,com as cenas dos discursos retóricos e com a exaltação de algunscirurgiÕes insuportáveis. Alguns tinham reacçÕes tão violentas quequase pareciam odiar os estudantes de Medicina; e eram contudoos nossos mentores, os nossos professores e modelos a seguir.Depois da bata verde, calcei as botas de tela e arrastei-me ao

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longo do corredor da cirurgia. Algumas das portas da SO estavamfechadas, e ao passar ao longo das suas janelas pude ver os grupostipo Ku Klux Klan agrupados no centro da sala. Havia outras portasabertas, algumas operaçÕes a decorrer, e outras vazias à espera.Moviam-se aí dezenas de enfermeiras, muito organizadas eocupadas, muitas delas bastante bonitas - um grande melhoramentopara quem usava aqueles fatos sem formas, e o cabelo apanhadodebaixo da touca. Havia contudo outras que poderiam muito bemjogar à defesa pelos New York Giants, mesmo sem equipamento e

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submetendo o oponente só pelo susto. Todas deram os bons dias;era um sítio amigável.Quando voltei para os lavabos, para me lavar para a operação àbexiga, já lá estavam o cirurgião e o residente. Este último eraoriental, pequeno, silencioso e respeitável. Sorri para mim mesmo,ao lembrar-me da descrição do meu amigo Carno, que o descrevera73como sendo tão pequeno que tinha de correr debaixo do chuveiropara se conseguir molhar. Ao sorrir, fiquei com comichão debaixo damáscara. Era incrível como me acontecia sempre isso. Era sempredepois de me lavar que me surgia a comichão, geralmente no nariz

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ou na testa. Claro que não me cocei durante a operação e até meter lavado de novo. o que me dava algum alívio era ir fazendotrejeitos na face e franzir o sobrolho, mas ela lá continuava,flutuando no meu grau de concentração no que estava a fazer. Era,para mim, a parte mais aborrecida da operação, para além dosretractores.- o seu nome é Peters, não é? De onde é? Em que escola andou?Ah, é um dos rapazes do leste?Ali estava, preconceitos do outro lado. Parecia-me agora umaloucura o facto de uma das minhas motivaçÕes mais fortes para irpara a escola médica ter sido a ideia de me tornar um membro deuma fraternidade educada, um grupo cuja dedicação e treino

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deixava para trás as trivialidades e a mesquinharia da sociedadede todos os dias. Nem preciso de referir que já não creio mais nessailusão; já me tinha visto livre dela na escola médica. No entanto, acompetição para a entrada nas escolas médicas era tão intensaque, se se conseguisse entrar para uma das grandes escolas, issosignificava invariavelmente que se tinha sido brilhante nauniversidade, geralmente sempre com vinte valores. Daí que os quetinham sido escolhidos para ficar na quinta ou sexta escola médicasentiam-se geralmente vítimas do sistema, cuja performance haviasido avaliada pela realidade difícil e imutável do transcrito.

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Achavam que os que estavam no topo das torres de marfim osolhavam como cidadãos de segunda classe. Era um disparate. Vinhatoda a gente daquela enorme máquina médica e todos pareciamiguais e dotados dos mesmos pensamentos e com a mesma licençapara exercer medicina. Era a parecença entre eles que meassustava, não as suas diferenças, que eram superficiais. Comeceimais tarde a suspeitar de que a máquina estava a produzir umproduto desequilibrado.74Fazer a lavagem era uma rotina invariável e monótona de dezminutos. Primeiro as unhas, depois uma lavagem geral e por fim aescova. Cada pedaço abaixo dos cotovelos, e depois cada dedo

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individualmente. Recomeçar. Várias vezes.Quando acabei, escorreguei para o chão, primeiro com otraseiro; era o símbolo perfeito da posição do interno, com as mãoserguidas em sinal de rendição e submissão. Demasiado teatral. Narealidade, sentia-me agora resignado. Afinal, havia sido minha adecisão de entrar para Medicina; nenhum Romeu havia queridotanto assim a sua Julieta. Era uma pena ela se ter tornado numacabra. Estes devaneios pseudofilosóficos não levavam a partealguma, não modificavam coisa alguma, mas ajudavam a passaraquelas horas intermináveis na SO.

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Toalha, máscara, depois as luvas, dadas por uma enfermeirabastante negligente cujos olhos não conseguia ver, e estavacompleta rotina. Enfaixámos o paciente enquanto o cirurgião, queera meio avaiano, e o anestesista, oriental, mantinham umaconversa em inglês simplificado.- Eu vou a Vegas próxima semana. o senhor vem ir? - dizia oanestesista, olhando sem ver o outro monitor.- Quê, o senhor pensa que jogar, eu?- o Sr. Cirurgião, jogar.- Vai-te lixar, branco. Pelo menos não sou viajante de voosnocturnos.- Ah! Sem gás, não há trabalho para ti, kanaka.Eu estava do lado direito do paciente, entre o cirurgião e o

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anestesista, de modo que aquele encanto sem preço e aquelalinguística exótica tinham de passar por mim. o residentepermanecia do outro lado, inescrutável.Quando tudo estava já pronto, o cirurgião pegou no bisturi e fezuma incisão na pele, abaixo da última costela direita. A cerca demetade da incisão, demo-nos todos conta de que o paciente nãoestava suficientemente anestesiado. Estava, de facto, a mover-se etorcer-se como se tivesse uma terrível comichão generalizada.Ouviram-se pequenas gargalhadas nervosas, dadas pelo cirurgião e75pelo anestesista, as do primeiro um pouco cínicas, porque queria na

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realidade demonstrar ao anestesista que não sabia que raio estavaa fazer. Não sei qual a razão do riso do anestesista, a não ser quefosse para abrir uma brecha no record de sarcasmo do cirurgião. OscirurgiÕes não são famosos pelo seu tacto nem pelo seu amor aosanestesistas.- Ei, mano, que é que se passa contigo? Estás a guardar aanestesia para outro doente? Dá-lha, homem, dá-lha.o anestesista não respondeu, e o cirurgião prosseguiu.- Parece que vamos ter que tratar deste caso sem a ajuda daanestesia.Eu era um árbitro inevitável neste pugilismo verbal, literalmenteesmagado contra o monitor da anestesia pelo cirurgião. Só quando

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abriram finalmente a barriga é que me entregaram a pegademasiado conhecida do retractor, a alegria e raison d'être de uminterno. Há milhares de tipos de retractores diferentes, mas fazemtodos a mesma coisa: conter as paredes da ferida e os outrosórgãos de modo que o cirurgião possa trabalhar.o cirurgião posicionou um dos retractores à sua maneira, deumo,e disse-me para levantá-lo mais do que puxá-lo. Bem, mantê-loiaassim durante dois ou três minutos e depois baixaria. E onde meencontrava, a minha acção sobre a pega do retractor era negativa. omeu limite era de dois ou três minutos.- Levante isso, raios. Espere, eu mostro-lhe. o cirurgião retirou o

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retractor das minhas mãos. - Assim. - Entre outros comentários sobrea minha inépcia, levantou o retractor durante dois segundos antesde mo entregar, e eu levantei-o durante dois ou três minutos edepois recuei. Era inevitável. Se houver alguém que consiga levantaro retractor durante uma colecistectomia de cinco horas, sem baixar obraço, deve ser com certeza uma pessoa extraordinária.Colecistectomia é o nome médico dado à extracção simples davesícula biliar. Esta encontra-se situada muito acima dentro dofígado, e o interno tem como tarefa afastar o fígado e a partesuperior da carne da incisão, para que o cirurgião, com a ajuda do76

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residente, a possa extrair. A vesícula é um órgão precário, eportanto a sua remoção é uma das mais frequentes intervençÕescirúrgicas. De todas as ajudas de memória que aprendera na escolamédica, a que melhor me lembrava era o tipo de paciente sujeito aesta intervenção: as quatro indicaçÕes - gorda, mulher, 40 anos epresunçosa.Durante a operação, tinha os meus braços mais ou menos porbaixo do braço esquerdo do cirurgião. Havia-se virado de costaspara mim, o que me impedia de ver a incisão, a não ser por cima doseu ombro. Quando o anestesista ligou o seu rádio portátil e

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começou a folhear um jornal, e o cirurgião começou a cantarolar, forade tom, o ambiente tornou-se cada vez menos parecido com oambiente tenso da escola médica; excepto quanto às explosÕes demau humor do cirurgião. Eram todos iguais.- O.K., Peters, dê uma olhada. - Inclinei-me para observar aincisão, que era agora uma fenda vermelha e húmida com adesivosa segurar os órgãos abdominais. Ali estava a vesícula, o canalcístico, o anal comum, o...- O.K., já chega. Não queremos mimá-lo. - o cirurgião afastou-se,empurrando-me, enquanto cacarejava com o anestesista. A sala deoperaçÕes era um mundo feudal, com uma hierarquia absoluta e um

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sistema de valores, no qual o cirurgião é um rei todo poderoso edivino, o anestesista o príncipe parasita e o interno o servo, tendoque ser supostamente agradecido por alguma pequena forma dereconhecimento; uma olhadela no final, ou talvez a oportunidade dedar um nó ou dois. Aquela espreitadela na incisão havia sido aminha recompensa por ter estado ali a segurar os retractores e a veras costas do cirurgião ou os ponteiros do relógio a andaremvagarosamente.A atmosfera estava suficientemente agradável, até o cirurgiãoter pedido a colangiografia operatória, um estudo de raios-X, para

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se certificar de que o canal comum estava completamente limpo depedras. Isto podia ser verificado injectando uma tinta opaca noscanais e fazendo depois uma radiografia. As pedras que ainda láestivessem iriam sobressair.77Mas quando nenhum técnico radiologista apareceu magicamentecom o estalar dos seus dedos - estavam todos ocupados com outroscasos - praguejou e agitou o bisturi, ameaçando represálias. Asenfermeiras estavam imunes a estas demonstraçÕes, assim como oanestesista, cujo rádio continuava a emitir música e notícias. Estacena familiar acontecia sempre que era necessária uma radiografia.

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o técnico veio finalmente e tirou a radiografia, voltando minutosdepois com uma mancha indistinta, que o cirurgião considerou comoo maior atestado de incapacidade desde Roentgen. Queria quetirasse outra? Não! Havia com certeza muito para aprender sobre ocirurgião. Reflectindo, tinha a certeza de que queria a radiografiaporque havia lido alguma coisa sobre isso nalgum periódico, eachava que ficava bem no relatório da operação. o resultado práticoda radiografia era neutro, pelo menos da forma como era utilizado.No dia seguinte, o radiologista ver-se-ia aflito com ela,tentando perceber qual a parte de cima e porque razão o hemostato

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aparecia no meio do sistema de canais. o seu relatório iria ser feitoapenas com palpites. o final infeliz desta história viria mais tarde,quando o cirurgião dissesse algo sarcástico ao radiologista, quesorriria cinicamente e responderia que se os cirurgiÕes seorganizassem melhor, o serviço de radiologia poderia ser maiseficaz. Na realidade, os cirurgiÕes estão sempre em pé de guerracom toda a gente, com a radiologia, patologia, anestesia, o horáriode operaçÕes, os residentes, as enfermeiras, os internos, sentindosecompletamente rodeados de pessoal ingrato e incapaz. Numa sópalavra, muitos deles eram bastante paranóicos.

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Depois das desculpas apresentadas, arranjei um pretexto parasair, dando uma explicação breve sobre Mrs. Takura, e fuidispensado do resto da colecistectomia. Quando me afastei emdirecção ao corredor, ainda o cirurgião se estava a queixar daradiografia e o anestesista a ler o seu jornal.A intervenção de Mrs. Takura havia já começado quando iniciei aminha segunda lavagem. Podia ver dali o cirurgião residente chefe eo residente do primeiro ano, Carno, ocupados a introduzir ganchos78subcutâneos. Carno havia vindo para o Havai na mesma altura emque eu viera, e pela mesma razão; para se afastar da pressão e

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divertir-se um bocado. Tínhamo-nos divertido bastante nos primeirosdias, e chegámos mesmo a pensar em partilhar alojamentos. Masagora tínhamos horários diferentes que tornavam tudo mais difícil.A amizade entre o pessoal médico é difícil e ilusória, muito maisque na faculdade. Há tão pouco tempo para isso. As pessoas têmtendência para se introverterem cada vez mais, tornando-se quaseautistas, mesmo quando estão livres. Nos últimos anos da escolamédica, tínhamos horários tão diversificados que nem se podiaesperar que as pessoas aparecessem para jantar, ou para uma

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festa. Muitas vezes, nem comigo próprio podia contar. Acontecia-mefazer planos, e depois sentir-me tão cansado que não tinha forçaspara os realizar.Havia também uma competição inevitável. Havia começado nonosso primeiro dia, como as sementes de um fungo, evoluindo apartir de uma premissa de que a Medicina estava no zénite nocentro universitário orientado para as pesquisas. Era aí que iamparar todos os "bons". Para se lá chegar, era necessário primeiro teruma residência no centro da universidade, e para isso eraformalidade ter-se estado interno numa série de hospitaisprincipescos. Haviam-nos dito logo de início que os quatro ou cinco

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melhores alunos seriam convidados a ficar como internos, e isso erao bilhete dourado para se avançar mais um passo gigantesco. Apressão! Éramos cerca de cento e trinta e tínhamos sido todos bonsalunos na faculdade, e andávamos todos atarefados numa roda-viva,absorvendo os conhecimentos o mais rapidamente possível, eaceitando os valores do sistema que nos dizia para nos mantermosno topo. Como alternativa, e era demasiado terrível para pensarsequer, era a questão de sermos EXCLUíDOS e acabarmos comomédicos de clínica geral numa pequena cidade. Era algo querealmente soava mal, era como sair de uma suite de executivo paraa sala do correio.

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Não fazia a mínima diferença se nos tínhamos ou não saído79bem; todos no grupo o podiam fazer. Afinal de contas, éramoscavalos treinados para correr, e corríamos como o raio. A verdadeiraintenção era a de sermos sempre melhores que o próximo. Isso nãodava azo a que houvesse um ambiente propício ao florescimento deamizades, especialmente quando não havia sequer tempo, e opouco que tínhamos Passávamo-lo invariavelmente com umarapariga.o sistema conseguiu também afectar isso, especialmentedurante os últimos anos. A princípio, o estatuto de estudante deMedicina dava-nos um certo prestígio nas festas de sociedade -

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toda a gente pensava que iríamos um dia ganhar bastante dinheiro.Mas fomos gradualmente sendo pouco considerados comoconvidados, uma vez que o nosso esquema de horários era tãolixado que nunca se sabia se Poderíamos ou não comparecer. Todasaquelas raparigas de Smith e Wellesley a que estávamoshabituados se afastaram para terrenos mais férteis. Por isso,voltámo-nos para as que estavam connosco, que tinham os mesmoshorários malucos que nós. E elas voltaram-se para nós. o hospitalestava cheio de raparigas - técnicas, instrutoras, enfermeiras,estudantes de enfermagem - e muitas delas eram simpáticas, e, nasua maior parte, convenientemente disponíveis.

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Enquanto o treino nos moldava à forma, retirávamo-nos para onosso interior e para o mundo artificial da escola médica e dohospital, Era uma mudança imperceptível, quase inconsciente, maspesada. Já que estávamos na escada rolante que levava à torre demarfim, ficávamos lá intelectualmente. Mesmo tendo vindo para oHavai, não me havia afastado completamente. Nunca o faria. Aindatinha uma parte de mim no leste; esperava que sim, pelo menos.Não era um rebelde ou revolucionário, estava apenas um poucopreocupado Com a direcção que estava a tomar.Dirigia-me neste momento para a S. o. de Mrs. Takura, entrando

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com os braços levantados, pronto a ser vestido. Estavam nessemomento a abrir o abdómen e o residente chefe fez-me sinal para irpara o seu lado esquerdo. Depois de me ter espremido entre ele e omonitor da anestesía, entregou-me os lendários retractores e80começámos a cirurgia, que durou desta vez oito horas.Mrs. Takura estava irreconhecível, sangrando por todo o lado.Não parecia ser a mesma pessoa, sempre agradável e respeitável.Havia feito há alguns anos uma colícistectomia, e era difícil operarno tecido fibroso e aderente. Duas horas depois, ainda durante aoperação, fizemos uma pausa para fechar uma punctura nos

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intestinos e uma hemorragia forte que espirrava para o peito deCarno. Com a queda de pressão do sangue, substituíram-se frascosvazios por cheios. Era um processo longo e duro, mas o residentechefe parecia estar a fazer um bom trabalho. A leviandade quepoderia ter existido antes desapareceu ao sermos invadidos pelocansaço.Embora não o pudessem imaginar pela televisão, o humor é umapeça importante na sala de operaçÕes. Para ser mais exacto, émuitas vezes pavoroso, e muitas vezes à custa de um pacienteinofensivo e inocente. A maior parte dos cirurgiÕes pode entreter

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uma equipa de operação com histórias e piadas bizarras e coloridasdo seu passado. Embora tivesse uma experiência limitada, e,portanto, um repertório limitado, estava geralmente calado nessasocasiÕes, mas mesmo na altura em que se ia voltar a Mrs. Takura,quando todos ainda se sentiam bem, aventurei uma história que erauma das minhas favoritas na escola médica.Constava que uma enorme senhora muito obesa aparecera nohospital na altura em que só estavam nas S. o. dois internos e umresidente. Queixava-se de uma dor abdominal agonizante. Metidosaté aos cotovelos nos tecidos adiposos, examinaram-na os três,

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conferiram, reexaminaram-na, sem conseguir chegar a um acordo emrelação ao diagnóstico. Venceram por fim aqueles que achavam queera uma apendicite aguda, e lá foi ela para a S. o., onde ocupouliteralmente a mesa. Tendo ouvido falar do assunto, juntaram-selhesmais uns seis ou sete, na altura em que o residente começou acortar através das camadas de gordura até à cavidade peritoneal.Depois de ter reposto por várias vezes os retractores, à medida queele entrava cada vez mais, o residente parou subitamente e ajustou81a lâmpada. Pediu em seguida um par de tenases, enquanto todos

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observavam na expectativa, e retirou um pedaço de pano branco. Umsilêncio atónito caiu repentinamente, até compreendermos que oresidente havia cortado de tal modo que cortara também a mesaoperatória. o abdómen da paciente era de tal modo enorme quecaíra para o lado esquerdo, e o residente não havia conseguidochegar à cavidade abdominal.Mas a graça dessa história há muito que se desvanecera. Agoratrabalhávamos no interior de Mrs. Takura, e eu tinha os músculos dosbraços adormecidos por ter estado a manter a tensão nosretractores na posição desconfortável em que me encontrava havia

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cerca de uma hora. o meu estômago rugiu de protesto, quando ahora do almoço chegou e desapareceu, como contrapartida àcomichão que sentia no nariz. Tinha a minha bexiga tão cheia quenem me atrevia a encostar-me à mesa de operaçÕes. o tempocontinuava a rastejar. Raras vezes tinha oportunidade de olhar paraa incisão, embora soubesse o que estava a acontecer, uma vez queouvia os comentários do cirurgião. Os vasos foram cosidosfastidiosamente - era uma anastamose lado a lado - e a sutura finalfoi colocada e atada com dedos fatigados. Quando finalmentedeixou de ser necessário utilizar os retractores, não conseguia abrir

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o punho; os dedos mantiveram-se fechados até os ter dobrado um aum, e passado por água morna.Ainda não tínhamos terminado, apesar de serem quase quatrohoras. Tínhamos ainda que a fechar. Sentia-me cansado, com fome,e desconfortável em todos os sentidos, assim como os outros. Suturaatrás de sutura, agulha, seda, agulha, trabalhando lentamente aolongo da incisão, começando do princípio e dando pontos rápidos,enquanto a porção separada se juntava, lenta masprogressivamente, até à última sutura facial. Já estava. Agora apele. Já passava das cinco quando tirámos as luvas - começavaagora a minha gloriosa noite de folga.

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Urinei, apontei todas as ordens pós-operatórias, mudei deroupa, e jantei, por essa ordem. Ao atravessar a sala de jantar,82sentia-me como se tivesse sido atropelado por uma manada deelefantes selvagens com cio. Estava exausto, e, o que era pior,profundamente frustrado. Tinha estado a ajudar à operação durantenove horas seguidas. Oito dessas horas haviam sido as maisimportantes na vida de Mrs. Takura; e não me sentia contudorealizado. Eu tinha apenas lá estado, e era provavelmente a únicapessoa verdadeiramente dispensável. Precisavam de alguém com osretractores, claro, mas até um esquizofrénico catatónico poderia

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segurá-los. Os internos anseiam por trabalhar muito, até mesmo comsacrifícios - poder ser, acima de tudo, úteis, e utilizarem o seutalento - para aprenderem. Não sentia qualquer dessas satisfaçÕes,apenas uma amargura vazia e exaustão.Depois do jantar, tinha ainda o trabalho habitual na enfermaria,embora não estivesse de serviço. Por isso, dei superficialmente umaolhada por uma série de ligaduras, drenos e suturas. Reescrevinovas ordens de IV, observei relatórios do laboratório e fiz umaficha clínica como preparação pré-operatória de um paciente novo,que tinha uma hérnia. Os soluços de Roso recomeçaram assim que

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despertou da sua hibernação de Sparina. Consegui evitar tudo o quenão queria, apoiando-me no meu cansaço, racionalizando. Eviteimesmo olhar para a porta do quarto de Marsha Potts.Não conseguiria dormir, embora tivesse estado a pé durantevinte e quatro horas. Além disso, queria ir para qualquer sítio longedo hospital, conversar com alguém. Sentia-me demasiado revoltadoe confuso para estar sozinho, precisava de alguém. Não conseguiencontrar Carno em lado algum; estava provavelmente com a suanamorada japonesa. Mas Jan estava, graças a Deus. Quis ir dar umavolta, talvez um mergulho. Sentia vontade de fazer tudo o que me

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apetecia.Dirigimo-nos para leste, em direcção à prata violeta doentardecer. A estrada levava-nos a Pali, em direcção à parte ventosada ilha, e subia gradualmente, mostrando-nos as cores do sol quese punha no extenso panorama do oceano. Mantivemo-nos emsilêncio, sentindo a poesia do lugar, até termos atravessado o túnele voltado à sombra novamente, em Kailua. Encontrámos aí uma83praia onde pudemos ficar a sós. Sentia a mente libertar-se dospensamentos hostis, e a prisão do dia; o relógio deprimente e osseus ponteiros parecia estar longínquo, enquanto mergulhava naágua morna, deixando as ondas cansadas embalarem-me na

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ondulação. Mais tarde, deitámo-nos nas toalhas e observámos asestrelas.Como queria ouvir Jan a falar, fiz-lhe perguntas sobre si própria,sobre a família, os seus gostos e aversÕes, e os seus livrosfavoritos. De repente, apetecia-me saber tudo sobre ela, e ouvi-lacontar com a sua voz suave e baixa. Ela cansou-se disso, ao fim dealgum tempo, e perguntou-me que tal havia sido o meu dia.- Passei-o todo na cirurgia.- Passaste?- Nove horas.- Uau, isso é óptimo. E que fizeste?- Nada.- Nada?- Bem, praticamente nada. Quero dizer, segurava os retractores,

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para impedir a extremidade da incisão e do fígado de saírem dolugar, para que os verdadeiros médicos pudessem operar.- Estás a ser parvo - disse ela. - Isso é importante, e sabesdisso.- Sim, é importante. o problema é que qualquer pessoa opoderia ter feito.- Não acredito.- Sim, sei que não acreditas. Nem os outros. Ninguém acha que olugar de um interno possa ser preenchido por alguém a não ser ele.Deixa-me no entanto dizer-te uma coisa; na sala de operaçÕes,ninguém a não ser outra enfermeira, poderia ter feito o trabalhodela, assim como em relação ao anestesista e ao cirurgião. Mas o

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meu? Qualquer pessoa poderia! Um tipo qualquer da rua. Qualquerpessoa, mesmo.- Mas tens que aprender.- Aí é que está o problema. o interno está ali parado, apenas a84segurar os retractores. Chamam-lhe aprendizagem... é essa aracionalização... mas é um logro. Num só dia, aprende-se osuficiente sobre a retracção. Não se precisa de um ano. Há tantopara aprender, mas a este passo lento? Sentimo-nos tão explorados!Deviam contratar pessoal para segurar nos retractores e pôr ointerno a dar os nós e a observar o trabalho do cirurgião.- Já consegues dar nós como deve ser? - perguntou. Aquilo fezme

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parar. Lembrava-me de lhe ter contado que não era muito bom adar nós, mas mesmo assim o comentário pareceu-me muitodespropositado. Indicava que não estava a conseguir aproximar-medela, e que não havia mais sentido em tentar. Senti-me melhor,apesar disso, quase como se os meus próprios pensamentos setivessem organizado. Disse-lhe que não, não conseguia ainda darnós como deve ser, mas que aprenderia provavelmente, se medessem essa tarefa.Jan estava mais uma vez a aproximar-se e a excitar-me.Acabámos a correr na água morna. Estava tão bela, tão cheia devida, que me apetecia gritar de tanta felicidade. Beijámo-nos e

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abraçámo-nos, enrolados no cobertor. Estava louco por ela, e sabiaque íamos fazer amor, e que ela o queria tanto como eu. Mas sentiusena obrigação de falar mais um pouco primeiro, e falar-me deassuntos pessoais sobre ela própria. Por exemplo, que havia apenasfeito amor com um rapaz, mas que ele a tinha enganado e que nãotinha nunca gostado dela. Continuou durante cerca de cinco minutos,acalmando-me, e decidi finalmente que fazer amor não seria umaboa ideia, afinal. Ela não conseguiu acreditar no que ouvia, e quissaber porquê. A verdadeira razão era a minha frustração interior, e

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isso não a iria satisfazer. Por isso, disse-lhe que adorava o brilho doseu cabelo, e a sua maneira de ser, mas não sabia ainda se aamava.Isso deixou-a tão satisfeita que quase me fez mudar de ideiasnovamente. Ao dirigir-me mais tarde para o hospital, consegui queela cantasse Para onde foram todas as flores? várias vezes, e sentimedescansado.85- Pensas que não fizeste nada hoje, mas fizeste - disse Jansubitamente, voltando-se para mim.- o quê? - perguntei.- Bem, salvaste a vida a Mrs. Takura. Quero dizer, ajudaste,mesmo que penses que deverias ter feito qualquer outra coisa.Tive de admitir que tinha razão, e que não me lembrara disso,

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Era capaz de ficar a segurar num retractor durante semanas, se fossepreciso, por Mrs. Takura.Já de volta ao hospital, voltei a envergar os trajes brancos, eapressei-me até à U. C. I. para ver como ela estava. A cama estavavazia. Olhei para a enfermeira, intrigado, e afastando a ideia.- Morreu. Morreu há cerca de uma hora.- o quê? Mrs. Takura?- Morreu. Morreu há cerca de uma hora. - Ao voltar para o quarto,senti-me desfeito, chorei, não pensando em outra coisa que nãofosse aquele dia horrível, que nem mesmo o amor poderia redimir.Deitei-me e adormeci perturbado.Centésimo septogésimo segundo DiaAS URGêNCIAS

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Tinha os ouvidos treinados para aquele toque. Podia ouvir aqualquer distância o inconfundível som agudo, com as suasondulaçÕes a crescerem e a repetirem-se, tornando-seprogressivamente mais altas com a aproximação. o relógio marcava9 e 15 da manhã. Encontrava-me sentado por detrás do contador dasala de emergências, à espera.o som da sirene tornava-se inaudível para algumas pessoas,mais próximas da ambulância, devido aos sons de fundo. Outros,conscientes da sua saúde, ou ignorando-a, sentir-se-iam satisfeitoscom o diminuir do som, misturando-se no subconsciente com os sonsdos carros, rádios e vozes. Era para eles algo distante. Pertencia a

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outros.Para mim, tornava-se cada vez mais agudo, porque era o internode assistência às Urgências, o banco, para aqueles que o conheciam86e o adoravam. o meu dever nas Urgências podia ser classificadocomo sendo o de hospedeiro oficial do hospital, que dá as boasvindasa todos os que apareciam. E que realmente apareciam -novos e velhos, com insônias, deprimidos, nervosos, e mesmoocasionalmente os feridos e os doentes. Trabalhava aí, muitasvezes, fervorosamente; comia muitas vezes, e sentava-meocasionalmente. Mas quase nunca dormia, à espera de ouvir atemida ambulância.A sirene significava problemas, e eu não estava preparado para

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esses problemas, e creio que nunca virei a estar. Embora tivessesido destacado para as Urgências havia mais de um mês, e já fosseinterno havia cerca de seis meses, o meu estado emocional normalera o de medo. Medo que me fosse apresentado um caso que nãoconseguisse resolver, e piorasse tudo. Tinha sido colocado nesteambiente, ironicamente, que exigia de mim escolhas médicasradicalmente diferentes, mesmo na altura em que tinha começado adesenvolver um certo grau de confiança nas enfermarias e na salade operaçÕes. Estava completamente sozinho, sem contar com umgrupo de enfermeiras altamente capacitadas, e era o responsável

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pelo que acontecia. Não era mau durante o dia, quando lá seencontravam outros médicos - o pessoal nunca estava longe -, mas ànoite podiam passar cinco ou mesmo dez minutos antes de alguémaparecer. As coisas podiam por isso ser cruciais. Por vezes eraobrigado a mostrar o jogo.Até mesmo o horário no banco era diferente. Estava de serviçodurante vinte e quatro horas, assim como de folga. Não parecemuito cansativo, até se trabalhar assim durante uma semanaconsecutiva. Se se entra ao serviço às oito horas de domingo, àsoito da manhã de quarta feira já se trabalhou durante quarenta eoito horas seguidas, e faltam mais quarenta e oito. Como resultado,

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ao fim de duas semanas, o sistema encontra-se completamentealterado; temos dores de cabeça, deixamos cair frascos e surge umligeiro tremor. o corpo humano está preparado para trabalhardurante um certo limite de tempo, e depois necessita de descanso,87não para trabalhar durante vinte e quatro horas seguidas. A maiorparte dos órgãos necessita de descanso, especialmente asglândulas, porque as suas funçÕes são alteradas cada vinte equatro horas, quer o corpo durma quer não. Por isso, ao fim dedezasseis horas de trabalho, as glândulas adormecem, de certomodo, mas é ainda necessário que as decisÕes tenham de ser

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tomadas, com as mesmas consequências. A vida não deixa de sermodorrenta às quatro da manhã, ou ao meio-dia. De facto, háalguns estudos que sugerem que é mais débil nessa altura. opaciente quase não existe, tudo se torna difícil, o mais pequenoestorvo pode tornar-se numa grande irritação...A sirene aproximava-se cada vez mais. Escutei esperançado nofinal do som e no efeito Dopler que se experimentava geralmentequando a ambulância se afastava para um dos hospitais maispequenos que havia perto. Mas desta vez não. Não a podia ver,mas sabia que havia entrado no hospital. Levei apenas algunssegundos para me aproximar, e lá estava eu para lhe dar as boasvindas.

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Podia ver a equipa através das pequenas janelas daambulância, fazendo um esforço de ressuscitação caótica. Um dosassistentes estava a dar uma massagem cardíaca comprimindo oesterno do paciente; outro tentava em vão manter-lhe posta amáscara de oxigénio. Assim que a ambulância se aproximou,aproximei-me e abri a porta. Alguns transeuntes pararam e olharam.Para eles, era só aquilo. A ambulância tinha chegado e o médicoestava à espera com um conjunto de instrumentos estranhos emiraculosos, estava tudo resolvido. Mas para mim era apenas oinício. Ainda bem que não podiam ler na minha mente, enquanto me

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preparava para o que estava para vir.- Tragam-no para a sala A - gritei para a equipa, assim quepararam com os esforços de ressuscitação. Ajudei-os a levantar amaca e levámo-la rapidamente pelo pequeno corredor, perguntandolhesquando havia sido a última vez que tinham verificadorespiração ou algum sinal de vida.- Não tem, e só o encontrámos há cerca de dez minutos.88Era um homem de cerca de 50 anos, de barba, e tão grande quehavia sido necessário que todos o levantássemos para o colocar namesa de observaçÕes. Chegara o momento de tomar uma decisão, e

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os segundos pareceram-me anos; era o tipo de decisão que não émuito discutida fora dos hospitais. Devia declarar ser uma paragemcardíaca, ou um simples caso de morto à chegada? Era seguramenteinjusto exigir-me uma tal decisão apenas com base naquilo de quepodia lembrar-me dos livros de estudo! Mas tinha de ser tomada,fosse como fosse, e depressa.o que aconteceria se declarasse ser uma paragem cardíaca? Háseis semanas, conseguimos reanimar um homem apenas oitominutos depois da morte clínica. Encontrava-se agora na unidade decuidados intensivos, vegetativo, vivo num sentido legal, mas morto

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em qualquer dos outros. Ao vê-lo todos os dias, comecei a sentirque, tendo-lhe dado aquela meia-vida tecnológica, o havíamos dealgum modo privado da sua dignidade. o corpo havia funcionadodurante cerca de seis semanas - o coração batia, os pulmÕesrespiravam mecanicamente, e tinha os olhos dilatados e vazios; e osseus parentes haviam chegado ao limite das reservas emocionais efinanceiras. Mas qual era a mão que se atreveria a desligar amáquina que respirava por ele, quem se atreveria a cortar a sua IV,qual seria a mente que se esqueceria de manter a concentraçãoiónica certa, necessária para que o coração batesse para sempre

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sem o cérebro? Ninguém quer destruir aquele grãozinho deesperança que subsiste mesmo na mente mais objectiva.Mas aí entra o problema da cama. Precisamos dela para outros -pessoas que estão talvez mais vivas, mas que podem morrer seprivadas dos recursos dos C. I. Vem tudo dar a uma decisão baseadanuma gradação subtil e indefinida da morte contra a vida. Não éuma questão apreto e branco, mas de tons cinzentos. Que significarealmente estar vivo? É uma questão complexa, cuja resposta aminha mente entorpecida pela fadiga tentava resolver.Onde é que o interno exausto pode ir buscar auxílio nummomento como este? A faculdade, com os seus conceitos estéreis

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89para a verdade, a religião, a filosofia, que levavam invariavelmentea uma aceitação automática da vida como o oposto da morte? Nãohá aí ajuda alguma. A escola médica? Talvez, mas a torre de marfimdas complexidades da reacção de Schwartzman e a sequência dosciclos dos amino-ácidos afastaram as questÕes fundamentais. Nemsequer se pode esperar ajuda de um médico assistente. Mantém-sesempre silencioso, talvez perplexo, mas endurecido pela repetição. Eo amigo ou parente? Que diria ele se soubesse que talvez haja umponto intermédio entre a vida e a morte? Infelizmente, não pode ir

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mais longe que pensar na pobre alma do que é, ou era, o tioCharlie. Sem assistência, o interno fecha-se em si mesmo e tomadecisÕes arbitrárias, que são influenciadas pelo seu cansaço, sejade dia ou de noite, quer esteja apaixonado ou solitário. Tentaentão esquecer-se, o que é fácil, estando cansado; e, uma vez queestá sempre exausto, esquece-se sempre - mas sabendo que maistarde as recordaçÕes podem vir à superficie do inconsciente,Inseguro e irritado, foi mais uma vez posto à prova e descobriu quenão estava preparado...Paradoxalmente, encontrava-me sozinho, mesmo com as seispessoas que me rodeavam, perto da massa corpulenta do homem

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barbudo. As extremidades estavam frias, mas tinha o peito quente;não tinha pulso, não respirava, nem tinha as pupilas fixas edilatadas. Um dos assistentes da ambulância não parava de falar,dizendo-me o que havia sabido pelo vizinho que tinha vindo comele. o homem havia chamado o seu médico após um ataque de asmaque havia tido naquela manhã, mas tinha piorado - de tal modo,que tinha saído com o vizinho em direcção às urgências. A meio daviagem, teve um ataque agudo de dispeneia, uma incapacidade derespirar. Parou o automóvel, saiu, avançou alguns passos edesfaleceu. o vizinho pedira auxilio e chamaram a ambulância.

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- Morto à chegada- disse eu firmemente, tentando não aparentardúvidas. De facto, a minha mente era um caos de pensamentosrelacionados que percorriam um círculo à volta de um exemplo. Asmanhãs nas Urgências são, estranhamente, a altura mais vulnerável90de um interno. Apesar do descanso aparente da noite anterior, asua capacidade de tomar decisÕes é cortada pela exaustãoprofunda de um serviço de vinte e quatro horas. A sua experiência éinsuficiente para que possa tomar decisÕes críticas com a certezade ter não uma ideia racional, mas puro reflexo. Toma-se como certo

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o velho aforismo de que a familiaridade necessita de aceitaçãocega. E é mesmo assim. No início de carreira, acontece muitas vezeso interno ser posto perante uma situação em que tem a mente limpapara pensar, mas não consegue, no entanto, encontrar respostas.Como o esquizofrénico que não consegue aguentar uma demasiadaabertura sensorial, a informação permanece díssociada na suamente. o interno absorve por isso essas experiências que sobre elese precipitam; permanecem na sua mente como um aglomerado soltoaté estar suficientemente cansado para relegá-las para o seu

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inconsciente, e chega eventualmente a um ponto em que aexperiência lhe trás algum conhecimento familiar, e este traz-lhe aaceitação sem o pensamento. Mas, nessa altura, uma grande parteda sua humanidade é desprezada...Esta actividade mental aconteceu em milésimos de segundos.Não fiquei ali a interrogar-me e na dúvida, com o homem barbudoali deitado. Tinham-se passado apenas alguns segundos desde quehavia aberto a porta da ambulância e dissera Morto à Chegada. Masparecia ter sido havia muito mais tempo, e isso afectou-me durante

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horas. o meu treino havia avançado bastante, de modo que nãoprecisava de lhe ver o pulso.A questão central e incisiva mantinha-se: por que razão tinhasido permitido que eu tomasse tal decisão? Senti-me, de algummodo, um cúmplice do demónio, um agente na morte do homem. Eraverdade que se eu não o fizesse, outra pessoa o teria declaradomorto; eu não era imprescindível ao drama. Isso é fácil de dizer, sese não estiver envolvido, mas não podia resolver o assunto assimtão depressa. Tomara uma decisão sem a qual o homem de barbanão estaria morto neste momento. Tê-lo-íamos e teríamos estado a

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estimular-lhe o coração, respirando por ele, mantendo-o legalmentevivo. Senti, por isso, porque havia cortado essa possibilidade, que91era o único responsável pela sua morte.Teria sido demasiado apressado em declará-lo Morto àChegada, seguindo o caminho mais fácil? Assim que o pronunciei,todos os recursos médicos se esgotaram. Se tivesse tido outradecisão, a favor de uma tentativa de ressuscitação, o meu primeiropasso teria sido o de inserir um tubo endotraqueal que respirassepor ele. Sempre achei isso uma tarefa muito difícil. Talvez eu otivesse pronunciado Morto, em parte para me livrar da tarefa. Ou

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talvez fosse porque sabia que as camas nas U.C.I. estavamocupadas e tivesse chegado à conclusão de que, mesmo que otivéssemos conseguido reanimar, se tornaria em mais um servegetativo, de qualquer modo. Penso agora que estas sãoquestÕes sem resposta, mas naquela altura deixaram-me louco.Naquele estado, dirigi-me para o corredor para enfrentar a mulher ea filha. Era uma mulher alta e magra, quase macilenta, que tinha unsolhos negros e penetrantes. Usava um vestido longo e antiquado esandálias. Enrolada na ampla saia, estava uma rapariguinha decerca de 7 anos.A situação parecia-se realmente com os principais programas de

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televisão: o Interno ou Os Jovens Médicos - ingredientes para umaconfrontação dramática ou terrivelmente sentimental. A realidadenão era nada do que Ben Casey teria encontrado. Enfrentar a mulhere a criança, preocupadas e assustadas, não era dramático ousentimental, era apenas mais um obstáculo a saltar. Talvez umaterceira pessoa omnisciente pudesse ver o assunto de outro modo.Não era o meu caso. Sabia o que havia acontecido na sala atrás dascortinas, mas não fazia a mínima ideia do que elas pensavam, e doque necessitavam ouvir. o pior de tudo era que estava afundado

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sem esperança nos meus próprios pensamentos sobre a morte eresponsabilidade, no que poderia ter sido. Queria implorar-lhes queouvissem as minhas prelecçÕes sobre o ciclo de Krebs ou qualqueroutra elegância médica. A escola médica preparou-me realmente malpara isto. "Fixe apenas os conceitos, Peters. o resto logo vem." oresto - a morte - aprende-se com julgamentos e erros, e acabamos92por cair nas frases da televisão.- Lamento muito. Fizemos tudo o que nos foi possível, mas o seumarido faleceu - disse, suavemente. As palavras banais saíram-me, epareceram-me adequadas, de facto bastante satisfatórias, nas

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circunstâncias. Talvez tivesse futuro na televisão. A única coisa queme incomodava era aquela parte do "fizemos tudo o que nos foipossível"; não tínhamos feito nada. Contudo, o que havia dito eraapenas uma hipocrisia estúpida e conveniente para mim. Passava. Amulher e a criança ficaram simplesmente ali, paralisadas, quandovoltei as costas e me afastei.Graças a Deus, não havia mais pacientes para observar. Assineia folha de papel para tornar oficial a minha culpa na morte dohomem e dirigi-me rapidamente para a sala dos médicos, atirandocom a porta. Fiz cair da parede um pequeno quadro que uma firma

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de medicamentos nos havia dado, que representava um grupo deincas a abrir o crânio de um pobre coitado; mas o calendário daPlayboy que se encontrava do outro lado só estremeceu um poucoem sinal de protesto, e Miss Dezembro não se modificou. Afundeimenum enorme cadeirão de cabedal. Era uma sala grande, quetinha as paredes vazias, com excepção do quadro inca e de MissDezembro. Num dos cantos, havia uma estante baixa repleta delivros, e no outro uma cama pequena o um candeeiro. o cadeirãoonde me sentei estava mesmo em frente à parede verde-pálida

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onde se encontrava Miss Dezembro. Desejei que a minha mente setornasse tão vazia e plácida como a sala.Miss Dezembro ajudou-me; de facto, havia-me hipnotizado. Queé que a Playboy tem contra os pêlos? A não ser pela abundância decabelos na cabeça, Miss Dezembro era tão lisa como uma peça demármore - não tinha pêlos no peito, debaixo dos braços, nem naspernas, e não tinha nenhum entre as pernas, aparentemente,embora fosse difícil de ver por causa da meia enorme de Natal.Talvez a Playboy estivesse a substimar grande parte do seumercado. Não achava os pêlos púbicos assim tão horríveis. Na

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realidade, ao lembrar-me da noite anterior, descobri que os pêlospúbicos de Joyce Kanishiro eram uma das suas mais atraentes93características. Sem ofensa - é que ela tem realmente uns pêlospúbicos bonitos e fartos. Quando estava nua viam-se, fosse qualfosse a posição em que se encontrava. Pensei que seria difícil pôrJoyce num calendário da Playboy.Nem Miss Dezembro, nem Joyce, e nem as estéticas dos pêlosdo corpo conseguiram tirar o homem barbudo completamente daminha mente. Não era certamente a primeira vez que a morte mehavia confrontado nas Urgências. De facto, no meu primeiro dia ali,

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quando tremia só de ver um doente com um ligeiro ataque de asma,havia aparecido uma ambulância com a sirene ligada, e delaretiraram um rapaz de cerca de 20 anos a quem os assistenteshaviam estado a fazer respiração artificial e compressão cardíaca.Tinha ficado na entrada, apertando literalmente as mãos e naesperança de que alguém chamasse um médico. Era ridículo. Era eua pessoa que esperavam encontrar quando avançavam com as luzesvermelhas acesas, arriscando a vida e os membros.Olhei para o corpo e verifiquei que tinha o olho esquerdoarrancado. A sua pupila distorcida olhava para um lado incerto. Quepodia eu fazer àquele olho? Não tive, na realidade, muito mais

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tempo para pensar nisso. o rapaz já não respirava e o coração haviaparado. A equipa informou-me rapidamente de que o paciente nãose havia movido mais desde que o tinham ido buscar, quando umvizinho os chamara. Ao colocarem-no na mesa de observaçÕes,vislumbrei uma ferida na parte de trás da cabeça. Tentei observá-lamelhor, mas fiquei bloqueado ao ver pequenos pedaços de cérebroque escorriam de um pequeno orificio de cerca de dois centímetros emeio de diâmetro, e compreendi então que havia levado um tiro eque a bala havia atravessado o olho esquerdo e saído pela partede trás do crânio. A equipa e as enfermeiras ficaram lá, ofegantes

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depois dos esforços, enquanto eu prosseguia com a minha rotina.Seria um disparate puro tentar verificar com o estetoscópio - já nadapoderia ser feito - mas, à falta de outra estratégia, escutei o seupeito. Apenas ouvi os meus pensamentos, interrogando-me sobre oque deveria fazer a seguir. Espera-se sempre que o interno faça94várias coisas, contudo o corpo estava de tal modo morto que seencontrava praticamente frio.- Está morto - disse finalmente, depois de ter verificado o pulso.- Quer dizer, Morto à Chegada, Doutor? Sem paragem cardíaca, éassim?

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Era isso mesmo, morto à chegada. o rapaz com o orifício nacabeça era muito diferente do homem de barba. Claro que o orifíciome havia assustado, e sentira-me aliviado por me ver livre daresponsabilidade de descobrir o que fazer com o olho. Mas o pontoprincipal era, contudo, que ele trouxera um orifício na cabeça quetivera a sua acção antes de mim; sentia por isso menosresponsabilidade. Por outro lado, agora sem o lençol que o cobria, ohomem de barba parecia normal, como se estivesse a dormir. É oproblema da morte causada pela asma. Não se encontram muitossinais, mesmo depois de uma autópsia, a não ser que a vítimatenha tido um ataque cardíaco muito grave.

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Enquanto me encontrava sentado no quarto, tentei imaginarJoyce Kanishiro nas páginas centrais da Playboy. Isso é que eraalguma coisa. Ela tinha mesmo alguns pêlos negros à volta dosmamilos. Teriam de retocar um pouco a foto.Joyce era uma técnica de laboratório com um horário tãoestranho como o meu. Isso não era problema, mas tinha no entantoum grande inconveniente: a sua colega de quarto estava sempre lá.Sempre que levava Joyce ao apartamento, das primeiras vezes quesaímos, lá estava ela a ver televisão e a comer maçãs. Havia oquarto, mas nunca parecia haver oportunidade de irmos para lá. De

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qualquer modo, a colega, uma pessoa noctívaga, haveria ainda deestar na sala olhando para o protótipo do teste quando nóssaíssemos, às cinco da manhã. Depois de umas noites passadas aver comédias seguidas das notícias e o filme da última sessão,compreendi que tínhamos que mudar de local.o meu devaneio com Joyce foi interrompido por outrarecordação, um episódio que acontecera cerca de duas semanasantes, numa das noites em que havia começado com o turno das95Urgências. A mesma rotina de sempre: a sirene, luzes vermelhas apiscarem e um tipo que parecia estar normal, também. Assim que os

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assistentes o tiraram da ambulância e o levaram para dentro,disseram-me que havia caído de um décimo quinto andar, em cimade um carro estacionado. Havia-se movido? Não. Respirava? Não.Parecia no entanto estar normal, bastante descontraído, um poucocomo o homem de barba, mas mais jovem. Há quanto tempo oencontraram? Há cerca de quinze minutos., Exageravam sempre paramenos, para evitar críticas. Observei os olhos dele, com umoftalmoscópio, focando até ver os vasos sanguíneos. Ao concentrarmemelhor nas veias, pude verificar que havia uma espécie detorrÕes que só podiam ser coágulos de sangue.Morto à Chegada - disse. - Não houve paragem cardíaca. Tinha

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ficado bastante aborrecido também com este caso, embora umaqueda de quinze andares seja geralmente conclusiva.Começaram a aparecer elementos da família, repentinamente.primeiro chegaram os primos e os tios, e alguns vizinhos. Depois éque apareceram os parentes mais chegados. Parece que o homem -chamava-se Romero - se havia desequilibrado enquanto pintava oexterior de um edificio. Depois, as enfermeiras telefonaram para amulher a dizer que o marido se encontrava em estado grave e oboato do acidente espalhou-se rapidamente. Na altura em que Mrs.Romero chegou haviajá imensa gente a querer saber como ele

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estava e à espera para o poder ver. Quando a informei da morte domarido, usando o meu melhor tom calmo e confidencial, Mrs. Romeroergueu os braços para o céu e começou a lamentar-se. Ouvindo-a, oresto do grupo começou também a chorar. Fui testemunha durantecerca de uma hora da incrível e assustadora representação dosRomero e dos amigos, que continuavam a aparecere a encher asUrgências. Batiam nas paredes, arrancavam os cabelos, gritavam,lutavam uns com os outros, e começaram por fim a partir a mobíliada sala de espera. Não tinha tempo para tecer consideraçÕesacerca das implicaçÕes metafisicas deste caso, estava demasiado

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ocupado a proteger-me e ao resto do pessoal médico. Já mataramalguns internos nas Urgências. Isto é verdade.96Vi mais tarde, no relatório da autópsia do patologista, que aaorta de Romero se havia rompido. Isso fez-me sentir um poucomelhor. Mas sabia que o patologista nada iria encontrar naautópsia do homem de barba.Estava meio adormecido no velho cadeirão de cabedal, ebrincava com esses pensamentos e recordaçÕes, enquanto os seiosgigantescos e quase ridículos de Miss Dezembro pareciam tornar-secada vez maiores. Os seios de Joyce não eram assim. Mudámo-nos

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para o meu quarto para fugirmos à viciada em TV, e lembrava-mevagamente de ter acordado às quatro e meia quando ela saía pelaporta de trás, quando ainda não havia gente a pé naquela ala. Aideiahavia sido dela; a mim tanto se me dava. E foi assim que nosvimos livres da Miss Maçãs e da TV. Era realmente um horárioóptimo. Nas minhas vinte e quatro horas de folga, fazia surf à tarde,lia à noite, e cerca das onze horas, depois do seu turno, Joycechegava e íamos para a cama. Era uma rapariga atlética, musculada.Era muito resistente, realmente insaciável. Quando estava com ela,não pensava em outra coisa.Mas a cama de hospital do meu quarto fazia imenso barulho e

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era muito pequena. Quando Joyce se levantava às quatro e meia,era óptimo poder expandir-me nela, gozando o seu espaço.Durantealgum tempo, levantava-me com ela e despedia-meacenando - parecía-me ser isso que deveria fazer - mas agoraacenava-lhe só da cama, enquanto a observava a vestir-se. Joyceparecia não se importar. Nessa manhã voltara, toda vestida debranco resplandecente, e beijara-me suavemente. Disse-lhe que nosveríamos mais tarde. Era uma colega fixe.Três horas mais tarde, fui acordado pelo telefone. Havia-sepassado tão pouco tempo que fiquei quase à espera de queestivesse ainda ali. Devo ter adormecido antes de ela ter saído.

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7 e 30 da manhã de sábado, o dia mais movimentado nasurgências. Apesar de ter dormido oito horas, sentia-me fisicamentecansado e desfasado. Era a treta das quarenta e oito horas detrabalho. Segui a minha rotina normal, que começou na altura em97que me inclinei sobre o lavatório e observei os meus olhosvermelhos e acabou com a minha chegada às urgências um minutodepois das oito, como sempre. Era estranho, apesar da minhatendência geral de chegar um pouco tarde, conseguia sempre chegara horas às urgências para substituir o meu colega, que quase seatirava aos meus pés, cheio de gratidão, com a roupa manchada desangue e olhos cansados.

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Havia sido uma manhã de sábado relativamente calma, semgrandes problemas, apenas a procissão habitual de pessoas quedeixaram cair o ferro de passar sobre os pés ou que caíram em cimade um vidro, e tudo se havia resolvido rapidamente, até à chegadado homem de barba.Já se havia passado meia hora desde o caso do homem debarba e nada mais havia acontecido fora da sala dos médicos, senão ter-me-iam chamado. o meu relógio indicava que eram dez damanhã. Sabia que era apenas uma questão de tempo.Uma enfermeira bateu negligentemente à porta e entrou para

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me avisar que tinha pacientes à espera. Sentindo-me quase aliviadopor ser arrancado do meu devaneio, mergulhei de novo na luz do diae peguei nos "esquemas" que a enfermeira havia preparado. Tenhode tirar o chapéu àquelas enfermeiras. Acompanhavam cadapaciente mecanicamente para a sala de exames, tratavam de todosos pormenores administrativos, a tensão, e mesmo a temperatura,quando achavam necessário. Por outras palavras, tratavam bem dospacientes. Faziam uma triagem de alguns pacientes, mas não eramelas que decidiam, porque tinha de os ver a todos, mas tentavam

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estabelecer prioridades, se estivesse muita gente, ou para medarem um pouco de paz, se não estivesse. Penso que sempre quechegava um interno novo, elas sentiam-se tentadas a dirigir tudosozinhas, porque a maior parte dos casos que apareciam não eramconsiderados emergências.Mas era eu o interno responsável, e ali estava, com a bata e ascalças, e os sapatos brancos, estetoscópio ao pescoço e enfiado nobolso direito de uma forma particular, equipado com canetas devárias cores, uma lanterna, um martelo de reflexos, um oftalmo-98otoscópio e quatro anos da escola médica. Aparentemente

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preparado em vão. Na realidade, só havia lidado e só tratara comdoenças. Tendo em consideração que a variedade de doenças équase infinita, não se podia dizer que estivesse bem preparado. Aminha incompetência era como uma sombra que desaparecia apenasquando havia muitos bebés a chorar e suturas a fazer.Cerca de dez horas depois, sentia-me geralmente tão cansadoque não conseguia pensar mesmo que não houvesse pacientes. Asmanhãs eram a parte mais dura, até à chegada da tarde; o restoparecia correr por si.o primeiro dos dois pacientes novos era um surfista que tinhalevado uma pancada com a prancha, originando um corte de cerca

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de cinco centímetros acima do olho esquerdo. Estava consciente edesperto, e tinha uma visão normal. Estava óptimo, de facto, comexcepção do corte. Liguei para o médico particular, que, comoesperava, concordou que o cosesse. Era assim que as coisasfuncionavam. Os pacientes vinham, observava-os e depoiscontactava o médico particular. Se não tivessem um,seleccionávamos um, se tivessem meios de lhe pagar,evidentemente. De outra forma, ficavam considerados pacientes dopessoal médico do hospital, e eu ou um dos residentes ficaríamosresponsáveis por eles. A resposta que ouvia invariavelmente dosmédicos particulares nestes casos era para os coser. Ainda fiquei a

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pensar, nos primeiros dias, se os médicos particulares cobravam asutura aos pacientes, embora não fôssemos incentivados ainvestigar o caso.Na realidade, agora já era bastante bom a dar os nós e a coser,tepois de ter tido que participar em várias operaçÕes, incluindo trêshérnias, algumas hemorróidas, uma apendicectomia e uma excisãoubcutânea de uma veia. Na maior parte delas, havia seguradoapenas os malditos retractores e cortado ocasionalmente algumasverrugas.Cortar verrugas é a recompensa do interno por se portar bem: émais ou menos como a remoção das hemorróidas, embora estas99

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sejam mais importantes. Extraímos dezenas delas na escola médica,na parte de dermatologia, uma vez que era um procedimentoessencialmente sem riscos e que estava muito abaixo da dignidadede um cirurgião. A minha primeira verruga havaiana havia sidotirada com o Supercaro, a alcunha de um cirurgião assim chamadopela sua incompetência sem igual. Fizemos a esterilização juntosnum caso de uma biópsia da mama, que é geralmente um trabalhoque leva cerca de trinta minutos, a não ser que se encontre umamalignidade. Mas não com o Supercaro. Manteve-se à volta do

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trabalho cerca de uma hora, antes de enviar o pedaço do tecidopara a patologia. A minha esperança era que o tecido fosse benigno- e era, felizmente - e o Supercaro fechou então a incisão. Ser umassistente numa biópsia da mama não é um processo assustador,sejam quais forem as circunstâncias; este caso tornara-se frustranteporque não havia feito coisa alguma, nem sequer segurar nosretractores. Assim que o Supercaro acabou de atar o último nó,afastou-se, tirou as luvas e declarou magnanimemente que eupoderia agora retirar a verruga do pulso, o que fiz diligentemente,

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acompanhado por uma série de maus conselhos do Supercaro, quenão compreendia porque não me mostrava eu mais agradecido.Tinha no entanto estado mais envolvido na operação seguinte;de facto, de tal modo que quase estraguei tudo. Tratava-se daexcisão subcutânea de uma veia, e o cirurgião era um médicoparticular com quem nunca antes me havia esterilizado. Disse-me,enquanto lavávamos as mãos, que esperava que eu fizesse umtrabalho meticuloso. Pestanejei um pouco, ao perceber que meestava a confundir com um dos residentes, mas deixei-o pensarassim. Quando lhe respondi que tentaria fazer um bom trabalho,disse-me que tentar não era o suficiente, e ou o fazia como deve

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ser, ou não valia a pena fazê-lo. Não tive coragem de lhe dizer quenunca tinha feito uma excisão subcutânea. Já tinha vísto algumasantes, mas só do ponto de vista dos retractores; além disso, queriaexperimentar.Esperei que ele saísse, e só depois me apressei, porque100precisava que ele começasse. A paciente era uma mulher de cercade 45 anos, que sofria de veias varicosas. Tendo sido destacadopara o caso há alguns minutos, não a havia visto antes, e só podiapor isso tentar imaginar como seriam as veias quando estava de pé.Embora soubesse a teoria, não estava muito a par da prática. Era

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como ler tudo sobre natação, saber os nomes das posiçÕes e dosmovimentos, ter observado pessoas a nadar, e ser depois atiradoem águas profundas. Tinha como função fazer uma incisão nasvirilhas, encontrara a veia superficial denominada veia safena ecortar todos os pequenos vasos tributários. Depois, dirigir-me aostornozelos e fazer outra incisão, isolar a mesma veia safena nesselocal e prepará-la para a excisão. o instrumento usado era umsimples pedaço de arame, que eu iria enfiar na veia até à virilha;assim que atasse o final do instrumento à veia, puxava ambos

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através da incisão da virilha. Era o que deveria fazer, e sabia-o decor; tinha estudado, tinha observado e tinha pensado nisso.Quase sem pressão, o bisturi bem afiado ia cortandosuavemente através da pele na virilha. Iniciei a dissecação com astesouras, mas não as conseguia controlar muito bem. Resolvi mudarde instrumento, e utilizei uma pinça hemostátíca, não para unir umvaso, mas para separar abruptamente os tecidos, abrindo a pinçaantes de puxar a gordura. Era um método que causava menoshemorragias, e começou a avançar, entrando profundamente nascamadas espessas de gordura. Nada vi que conseguisse reconhecer

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lá dentro, na virilha; era como estar às escuras - até que encontreicasualmente uma veia, Não fazia a mínima ideia de que veia setratava, mas, ao limpá-la cuidadosamente, pude segui-la emdirecção a uma maior, que esperava que fosse a veia femural. Seassim fosse, então a primeira veia seria a veia safena Lão ansiada,mas não tinha a certeza. Não conseguia controlar os dedos e deixeicair os instrumentos uma ou duas vezes, de tão nervoso que estavacom a minha participação. Afinal, que diria o cirurgião se eu lhedissesse que nunca havia operado antes, a não ser as incisÕes paraa IV e para retirar verrugas?

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Ainda pensei em perguntar-lhe se era aquela a veia certa, mas101uma confissão de uma ignorância dessas só iria fazer que meafastassem de qualquer outra futura participação.Decidi-me, arriscando tudo, e esperando encontrar a veia safenae não um nervo. A tarefa tornava-se progressivamente mais difícil.Estava uma confusão, para dizer a verdade. Empurrei e puxei a veia,tentando extraí-la, abrindo bruscamente o hemostato, ensopando osangue com uma esponja de gaze para manter a zona limpa. A veiapartiu-se por várias vezes e o sangue escorreu, mas conseguiestancá-la de algum modo com o hemostato ao fim de alguns cortes

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no escuro. Havia no entanto alguma consolação na hemorragia,porque provava que a estrutura que havia isolado era de facto umvaso sanguíneo.A parte mais difícil era talvez tentar atá-la à volta do hemostatoque havia colocado dentro da incisão para estancar a hemorragia.Pôr o fio de seda em volta da ponta do emostato era uma tarefafácil, mas tentar manter a tensão na primeira laçada parecia-meimpossível.Quando retirei o hemostato, o laço que havia feitosimplesmente saía e a hemorragia recomeçava novamente. Emconclusão, do ponto de vista técnico, poderia muito bem estar a

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retalhar um porco. Olhava conscienciosamente para o cirurgião devez em quando, mas este parecia alheio aos meus problemas eabsorto no seu trabalho, onde tudo estava sob controlo.Mas que forma de aprender, pensei para mim mesmo. Mas era aúnica maneira. Se ele imaginasse que eu era completamenteinexperiente em excisÕes de veias, não me teria deixado fazê-lo.Era tão simples como isso. Por isso, puxei, libertando finalmentetodos os vasos tributários da veia safena. Mesmo com os tributáriosisolados, sentia-me um pouco tenso ao cortar a veia em duas,porque era um acto irrevogável. Fiz então uma incisão no tornozelo,

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localizando facilmente a veia safena apenas porque era a mesmaque costumava cortar para as IV. Introduzi o instrumento de excisãopor dentro da veia e puxei-a para fora através da incisão inguinal.Após ter atado a veia ao instrumento no tornozelo, e com alguma102força, puxei-o através da perna, rasgando aveia. Houve um esguichode sangue, um ruído agudo de rasgo, e a veia saiu completamenteencarquilhada no fim do instrumento. o cirurgião havia muito quetinha terminado a sua parte e fora tomar um café, deixando otrabalho das suturas para mim. Nunca tive más notícias acerca dos

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operados do dia, por isso pensei que a senhora não devia terficado mal, depois da minha iniciação.Apesar de ter feito centenas de suturas nas emergências, asprimeiras laceraçÕes tinham-me dado bastante trabalho. Por umasimples razão: nas emergências, quase todos os pacientes estãoconscientes e são observadores atentos. No meu primeiro dia nasemergências, quando a enfermeira me perguntou que tipo de suturaqueria, bem me podia ter perguntado, com o mesmo resultado, qualera a população de Madagáscar. Nas emergências, o cirurgiãoestipula o tipo de material que quer para a pele antes da sutura;normalmente aceitamos o que a enfermeira nos dá, mesmo que o

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cirurgião já tenha saído. Mas havia nas emergências uma grandevariedade de escolha - nylon, seda, Mersilene, tripas - e tudo comespessuras diferentes. A enfermeira não estava a tentar deixar-meficar mal; só queria que lhe dissessem quais.- Quais são as suturas que vai utilizar, Doutor?Não fazia a mínima ideia.- As normais.- As normais, Doutor? - Não havia normais, pelos vistos.- Hum... nylon - disse eu.- Qual o tamanho?- Quatro - respondi, sem ter a certeza exactamente do queestava a pedir.Não será preciso dizer que rapidamente aprendi tudo sobresuturas, e como as fazer, mas sempre por tentativas e erros. No

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primeiro caso, dei pontos a mais, e no segundo cheguei ao fim compele de mais em cima. Aprendi lentamente alguns truques, comoexcisar os bordos chanfrados, e mesmo alguma coisa maissofisticada, como os plasties para modificar o eixo da laceração de103modo a reduzir as cicatrizes. Comecei a apreciar aquele trabalho,porque era na realidade um problema que tinha uma solução clara eindicada que aprendi depressa a resolver. Fazia-me sentir útil, eessa era uma sensação rara e apreciada.Essa experiência podia ser-me útil agora. o surfista estava àminha espera, com um lençol a tapar-lhe a cabeça. Comecei a limpar

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e a anestesiar a área com xilocaína, através do orificio do lençol.Depois de ter aparado bem os lados, mantive a agulha com a suturade nylon ao centro da laceração, e a apenas alguns milímetros deum dos lados. Guiada pelo movimento do meu pulso, a agulhaperfurou a pele, atravessou a laceração e emergiu do lado oposto.Retirei-a com o porta-agulha. Depois, quase não tocando nos ladosda incisão com a agulha, puxei novamente a sutura para o ladooriginal e atei-a, não muito apertada, deixando-a um pouco soltapara que o inchaço da ferida juntasse os lados. Precisei apenas demais quatro suturas para finalizar.

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o outro paciente era uma rapariga um tanto misteriosa de cercade 20 anos, que parecia ser uma doente crónica. Admitiu ter sidodiagnosticada e recebido tratamento para lupus critematososistémico. o próprio nome da doença era um tanto misterioso, e olupus é, na realidade, uma doença grave. Era uma das doenças quehavia discutido na escola médica, uma vez que, sendo de tal modorara e mal compreendida, se tornava adequada para a especulaçãoacadémica. Não me sentia por isso completamente desamparado, anão ser em relação à dor abdominal de que ela se queixava, e quenão era um sintoma habitual na doença. Tentando relacionar as

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duas coisas, apalpei-lhe o abdômen e fiz-lhe perguntas acerca doseu estado, enquanto a mãe ou ela respondiam. Depois, necessiteide pensar, dirigi-me para a secretária no centro das emergências,arrasei o cérebro à procura de uma relação entre a dor e a doença.Enquanto tentava encontrar um teste exótico para obter algum dado,resolveram ir-se embora, alegando que a dor havia desaparecido,agradeceram-me, e saíram. Lá se ia o meu diagnóstico misterioso eum dos casos de emergência que os quatro anos na escola médicame haviam preparado para lidar.104Nessa altura, o Quase apareceu precipitadamente e

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praticamente desfaleceu à minha frente, pondo a cabeça nasecretária. Chamava-se Fogarty, na realidade, mas nós chamávamoslheQuase porque só aparecia invariavelmente no último momentonas emergências para ser tratado da asma. Era como esperar que agasolina acabasse para só nesse momento parar no posto. Asenfermeiras levaram-no, azul e ofegante, para um dos quartos,enquanto eu preparava um pouco de aminofilina. Já havia tratadodele diversas vezes, a começar pelo meu segundo dia das urgências.Havia aprendido muito na escola médica sobre a asma em termosde gradientes de pressão pulmónica, as alteraçÕes do pH, as

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funçÕes dos músculos e o fenômeno alérgico. Sabia ainda osmedicamentos que poderiam ser úteis, como a epinefrina, aaminofilina, o bicarbonato, a teofilina e os esteróides. Mas nãosabia quais as doses. Por isso, da primeira vez, enquanto o Quasese encontrava ofegante em outro quarto, ligado à máquinarespiratória de pressão positiva, corri para os aposentos do pessoalmédico e procurei nos livros quais as doses a dar. Tudo, menosperguntar às enfermeiras. Na realidade, nos casos dos pacientesinternados, sabia as doses a dar a um paciente convalescente. Maseste tipo estava ali, não era convalescente, e havia uma grande

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diferença. Não se podem aplicar as mesmas doses. Teria sidodesmoralizador perguntar às enfermeiras. De qualquer modo, o velhoQuase e eu dávamo-nos bem, e uma IV de aminofilina davageralmente resultado.As emergências estão por vezes tão cheias de gente que ospacientes têm de se sentar no chão, ou encostar-se às paredes; onormal era ter uma grande quantidade de gente, cerca de cento evinte ou mais nos dias de semana, e duas vezes mais aos sábados.Eram agora 10 e 30 da manhã. As pessoas tinham começado aaparecer, e lá estava eu, andando rapidamente de quarto emquarto, telefonando aos médicos particulares, não pensandodemasiado, quase sem dar pelo medo omnipresente do próximo

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caso complicado.105Um dos relatórios dizia : "Queixa maior: depressão". Era umasenhora de 37 anos. Acendeu um cigarro, assim que entrei na sala,tapando o cigarro com a mão, como se houvesse vento. Atirou acabeça para trás, com o cigarro precariamente preso a um canto daboca, e olhou-me com uma expressão vazia.- Desculpe, minha senhora, mas não pode fumar aqui. Aquelasgarrafas verdes estão cheias de oxigénio.- Está bem, está bem. - Apagou o cigarro vagarosamente numpequeno prato de metal inoxidável que havia sido acidentalmenteesquecido na mesa de observaçÕes, obviamente irritada. Ficou

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calada. Assim que o cigarro ficou completamente destruído, olhoupara mim agressivamente, pronta a explodir, pensei.- Chama-se Carol Narkin, não é assim?- É isso mesmo. o senhor é o único médico daqui? - Estava aprovocar-me.- Sim, sou o único aqui, no momento. Mas podemos telefonar aoseu médico, se quiser. Chama-se Laine, segundo diz o relatório.- É isso mesmo, e é um médico óptimo - respondeu, nadefensiva. Tem tido consultas, ultimamente? - Tentava acalmá-la comperguntas de rotina, esforçando-me por perceber por que razão sehavia dirigido às Urgências.- Não se arme em esperto comigo, Doutor.- Desculpe, Miss Narkin, mas tenho de lhe fazer algumas

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perguntas.- Bem, mas eu não vou responder. Chame o meu médico. - Olhoupara outro lado, zangada.- E que devo dizer ao seu médico, Miss Narkin? - Não se moveu.- Miss Narkin?Não podia obviamente ajudá-la, e por isso saí, pensando em irver o próximo paciente. Afinal por que tinha ela vindo aqui? Nãofazia sentido telefonar ao seu médico sem ter relatório nenhum adar-lhe. Quando regressei para a ver alguns minutos depois, haviaseido embora. Era típico do trabalho das emergências, encontrosbreves e inconclusivos e uma quantidade de tempo perdido.A seguir, a enfermeira entregou-me cinco fichas e apontou um106

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pouco acanhada para os próximos pacientes no quarto seguinte,onde fui confrontado com uma família inteira: a mãe, o pai, e trêsmiúdos, que estavam à espera de tratamento.Foi a mãe que falou:- Sr. Doutor, viemos porque o Johnny está cheio de febre e temtosse.Olhei para a ficha.- Temperatura, 37,5 graus.- E já que aqui estamos, pensei que não se importasse de daruma olhada nestas manchas que a Naney tem na língua. Mostra alíngua ao Dutor, Nancy. E o Bill deu uma queda na escola a semanapassada. Está a ver o joelho, a arranhadela? Por causa disso nãotêm ido à escola, e precisa de ir. E o George, o meu marido, precisa

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que um médico lhe assine uma declaração para a Segurança Socialpor causa das costas, uma vez que não trabalha e que nósacabámos de chegar da Califórnia. E eu tenho tido problemas comos meus intestinos há cerca de três ou quatro semanas.Olhei para eles. o marido não olhou para mim, e os miúdosestavam muito ocupados a tentar subir para a mesa deobservaçÕes, mas a mãe estava a adorar, e olhava para mim,excitada. Afastei o meu primeiro impulso de os pôr dali para fora.Deviam ter ido à parte de clínica geral e não às urgências. Nãoestávamos preparados para a rotina desses pacientes. Mas sabiaque se o fizesse a mãe apresentaria queixa ao administrador do

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hospital, dizendo que eu não os atendera quando necessitavam. oadministrador iria participar o caso aos médicos do serviço deensino e eu acabaria por me lixar. Era esse o apoio com que podiacontar.Além disso, ainda era de manhã; o sol cintilante brilhava lá forae sentia-me bem. Para quê estragar tudo? Por isso, em vez de meirritar, observei cuidadosamente as manchas e o arranhão, e deilhesalguns comprimidos. Mas recusei assinar o papel da SegurançaSocial. Não podia analisar as costas com os recursos que havia nasurgências; e na maior parte das vezes tratava estes tipos e via-os107

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no dia seguinte a andarem por ali de moto.o paciente seguinte era um alcoólico de nome Morris, quetambém era uma visita frequente das urgências. A sua ficha dizia:"Embriagado, com escoriaçÕes várias"; a descrição condizia. ohomem tinha aparentemente caído de um lance de escadas, comode costume. Assim que entrei no quarto, levantou-se comdificuldade, com as pálpebras a cobrirem-lhe parte dos olhos, eberrou:- Não quero um interno, quero um médico! - É incrível comocomentários desse tipo me afectam na parte mais sensível docérebro causando tal devastação. Aquele bêbado estúpido ofendeumerealmente. Fez-me tomar novamente consciência de que tinha

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que recorrer aos livros muitas vezes para verificar uma dosagem, queestava assustado muitas vezes, que tinha passado quatro anos adecorar um milhão de factos e não parecia saber nada. Nãoconsegui conter-me com ele.- Cale-se, seu bêbado! - gritei.- Não sou bêbado!- Mais um comentário desses e ponho-o daqui para fora.- Não estou bêbado. Há anos que não bebo.- Está de tal modo bêbado que nem consegue manter os olhosabertos.- Não estou nada. - Quase caiu da mesa de observaçÕes sópara me apontar o dedo.- Está, sim. - o nosso nível de comunicação não era muitoelevado. Continuámos esta conversa infantil enquanto o examinavasumariamente e lhe batia com o martelo de borracha nos tendÕes

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de Aquiles, provando assim que ainda havia sentido do tacto nassuas extremidades inferiores. Acabei por o mandar para os raios-X,mais para me ver livre dele do que para observar os ossos, pordebaixo das escoriaçÕes.àquela hora da manhã já avançada, o número de pacientes quechegavam começou a ultrapassar os que saíam. Apareceu um grupode bebés a chorar, ao mesmo tempo, como por conspiração, e foram108distribuídos por diversos quartos. Não gostava muito de tratarbebés. Era um pouco como o meu conceito de medicina veterinária -não havia comunicação com o paciente. Era obrigado a ignorar a

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criança, na maior parte das vezes, e tentar compreender o que amãe dizia. Além disso, era praticamente impossível ouvir algumacoisa com o estetoscópio no peito de uma criança de 2 anos aberrar. Os problemas habituais restringiam-se a constipaçÕes,diarreia e vómitos, não era nada de grave. Os miúdos pareciamesperar a minha chegada para urinar ou defecar enquanto osexaminava.Aquela manhã de sábado não era excepção. Havia crianças portodo o lado, a brincarem como de costume. o primeiro bebé tinha umcorrimento no ouvido direito havia vários dias, e a mãe pensara quefosse da alimentação em boiÕes, mas tinha ficado desconfiada

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quando a descarga havia continuado depois de lhe ter mudado adieta. Pela higiene geral de ambos, pensei realmente que fosseesse o problema, mas verificou-se tratar-se de pus. o bebé tinhauma grande infecção em ambos os ouvidos médios, por detrás dostímpanos. Havia uma rotura no tímpano direito, o que havia causadoa descarga. o tímpano esquerdo estava ainda intacto, inchado pelapressão. Teria sido aconselhável fazer um pequeno orifício notímpano esquerdo para a saída do pus, mas não sabia como o fazer,e, ao falar com o médico particular, ele apenas me disse para otratar com medicamentos, penicilina, como de costume, e gantrisina,

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um medicamento com sulfanamida. Quando salientei que a rotura dotímpano era algo sério, ele afastou-me do caso, dizendo que veria acriança no domingo de manhã. Embora na dúvida, receitei penicilinae gantrisina.o bebé seguinte não tinha comido bem durante toda a semana.Era realmente uma emergência. o outro havia tido diarreia, masapenas uma vez. Parecia-me incrível que uma mãe se dirigisse aohospital depois de um pouco de diarréia, mas depressa aprendi quenas urgências nada é incrível. As outras crianças sofriam deconstipaçÕes, nariz entupido e temperaturas um pouco elevadas.109

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Para fazer o exame completo, tinha de verificar cada ouvido,cada garganta. Era uma tarefa mais parecida com luta livre que comMedicina. As crianças, mesmo as mais pequenas, sãosurpreendentemente fortes, e embora pedisse às mães que lhessegurassem os braços durante o exame, largavam-nosinvariavelmente e os miúdos agarravam no otoscópio, puxando-o etrazendo-o com umas gotas de sangue do canal auditivo. Issotornava toda a gente alegre e confiante, naturalmente, mas tinha defazer uma nova tentativa, enfiando-o no pequeno orifício do ouvidoda criança, que se contorcia e gritava. Se algum deles tinharealmente uma temperatura alta, como seja 38 graus ou mais,

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aconselhava as mães a darem-lhe banhos de água tépida com umaesponja. Haviam aparecido nessa manhã dois casos dessa natureza.As urgências tornavam-se muitas vezes uma clínica pediátrica, noconjunto. Havia, naturalmente, casos de urgência normais, mas nãotantos como o público imagina. A maior parte dos casos eramtriviais, problemas que poderiam facilmente ser resolvidos naclínica.Foi então que aconteceu algo estranho e horrível, e o pessoalficou sombrio e silencioso por diversas horas. Uma manhã, umasenhora morena e pequena entrou silenciosamente, transportando

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um bebé num cobertor cor-de-rosa. Na altura, não lhe prestei muitaatenção, uma vez que estava ocupado com outro paciente. Aenfermeira pegou numa ficha em branco e desapareceu com ela.Reapareceu alguns segundos depois a dizer que tinha de ver acriança imediatamente. Assim que entrei na sala, a criança estavaainda embrulhada no cobertor cor-de-rosa. Ao abri-lo, vi uma criançade um negro azulado, com o abdómen inchado e duro como umapedra. Não tinha a certeza da altura em que havia morrido, masimaginava que a morte teria ocorrido cerca de vinte e quatro horasantes. A mãe havia-se sentado a um canto, sem se mover. Não

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falámos; nada havia a dizer. Olhei para a criança, fiz umaobservação na ficha e saí.Cerca de uma vez por semana, aparecem pais histéricos com umacriança com convulsÕes. A criança é geralmente bastante nova, e da110primeira vez que vi uma nesse estado quase desmaiei deansiedade. Era uma miúda de cerca de 2 anos, Estava todaenrolada, com os braços fechados de encontro ao peito; escorria-lhesaliva e sangue da boca e o corpo estremecia todo com convulsÕesrítmicas e sincronizadas. Como era costume nestes casos, deixara deter controlo sobre a urina e as fezes. Sentindo-se ainda assustados,mas também um pouco aliviados pelo facto de o médico ali estar,

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colocaram a rapariguinha na mesa de observaçÕes. Uma vez queestavam demasiado histéricos para poderem ajudar, mandei-osesperar lá fora. Também queria evitar que julgassem as minhasacçÕes - ou inacçÕes - porque, na realidade, não sabia que fazer.Foi então que uma das enfermeiras me salvou, entregando-me umaseringa e oferecendo-se para segurar na criança enquanto tentavaencontrar uma veia. Lembrei-me subitamente: IV de amobarbital. oproblema agora era conseguir injectar a solução. Era difícil encontraruma veia, mesmo numa criança sossegada. Numa que está comconvulsÕes, é praticamente impossível. A quantidade a injectar era

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outro dilema, mas pensei em dar apenas um pouco e testar areacção. Consegui encontrar finalmente uma veia, depois de váriastentativas frustradas, e injectei-a, e as convulsÕes começaram aabrandar e depois desapareceram; continuou a respirar, graças aDeus. o meu terror em relação a crianças convulsivas decresceu umpouco depois desta experiência, especialmente depois de teraprendido a usar Valium, ou paraldeína e fenobarbital em IV. Masda primeira vez podia não ter resultado.Aconteceu-me também apanhar um susto ainda maior comcrianças num caso semelhante. Serviu apenas para aumentar a minhainsegurança, uma vez que foi uma situação que se deteriorou nas

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minhas mãos e me deixou completamente sem saber o que fazer. Eraum miúdo de cerca de 6 anos, engraçado, que havia sido trazidopara as urgências assustadoras pelos pais solícitos. Não estava asentir-se muito bem, o que era visível, pois já havia vomitado trêsvezes e tinha outros sintomas da gripe. Tanto para descanso dacriança como dos pais, tratei-o com um medicamento antiemético111chamado Compazine, que era algo queliavia utilizado centenas devezes com sucesso depois e uma operação. Tive, contudo, umadessas reacçÕes adversas que se podem ler na posologia - o tipo

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de episódio de que os vendedores dos medícamentos não gostammuito de falar, e que os médicos vêem raramente. A criança entrounum estado convulsivo cerca de dois minutos depois de levar ainjecção, os olhos reviraram-se, não conseguia estar sentado edesenvolvera um tremor rítmico óbvio. Os pais estavam horrorizados,especialmente depois de eu lhes ter explicado antes que o rapaznão estava seriamente doente. Resolvi aplicar um pouco defenobarbital para acalmar a criança, e já que estava a fazê-lo,deveria dar também um pouco aos pais e a mim próprio. Tive deacabar por internar a criança no hospital. Não será necessárioexplicar que nem os pais nem eu próprio ficámos muito satisfeitos

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com esta actuação.E assim passou a manhã de sábado, uma combinação de umaclínica pediátrica glorificada e uma fábrica de suturas, e uma crisereal, ocasionalmente. As tarefas de sutura haviam sido rápidas e derotina. o único que me havia perturbado havia sido o homem debarba, mas o tempo e o tédio afastaram-no suficientemente, demodo que o dia se tornou um dia típico de monotonia generalizada,apenas quebrada por alguns momentos de terror e incerteza.Na realidade, começava a apreciar a rotina rápida e diferentedas urgências. Os pacientes que requeriam mais atenção da minha

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parte eram aqueles com quem me havia envolvido emocionalmentede algum modo. Lembrava-me ainda de como tudo era diferente,seis meses atrás, no início do meu internato. Por exemplo, haviaficado bastante tocado em relação a Mrs. Takura. Tínhamo-nostornado amigos; a sua longa operação, durante a qual segurara osretractores, impedido de ver a sua incisão, havia sido um traumafísico e emocional. Quando finalmente terminara, havia ido com Janpara a praia, com a convicção de que ela se iria conseguir safar.Quando regressei e soube que havia falecido, foi como se metivessem dado um último golpe no desapontamento do meu trabalho

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como interno. Tinha-me fartado do sistema - dos trabalhos112insignificantes e aborrecidos de todos os dias, dos retractores, dafalta de ensino e do medo constante e torturante do fracasso. Leveibastante tempo a ultrapassar a morte de Mrs. Takura, e no final nãoaceitei o seu destino, mas tentei pôr tudo isso de lado, jurando nãome envolver emocionalmente outra vez. Assim, tornou-se mais fácil,sem me envolver com os pacientes. Comecei a pensar neles emtermos duros e cínicos, em relação a hernorróidas, apêndices ouúlceras gástricas.Roso também me tinha feito sofrer. Ao contrário de Mrs. Takura,

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a minha relação com ele desenvolvera-se durante vários meses.Cheguei mesmo a cortar-lhe o cabelo, pois ele estava já há tantotempo connosco que o cabelo lhe caía desordenado pelas costas.Ele não tinha dinheiro, por isso ofereci-me para lho cortar sequisesse. Ficou encantado; parecia estar orgulhoso por estar vivo,empoleirado na cadeira da alcova na enfermaria. Todos acharamque o seu cabelo estava horrível.Roso sorria sempre, mesmo quando se sentia muito mal, o queacontecia na maior parte das vezes. Na realidade, sofria de quasetodas as complicaçÕes imagínáveis, e mesmo de algumas que não

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estavam incluídas na literatura médica. Continuou com vómitos esoluços até que se tornou imperativo realizar outra operação.Encontrei-me novamente na minha posição familiar, agarrado àspeças de metal, e a olhar para as costas do residente chefe durantecerca de seis horas e meia, enquanto o Bilroth I de Roso eratransformado num Bilroth II; a bolsa do estômago estava agoraligada ao intestino delgado cerca de vinte e cinco centímetros maisabaixo do que era normal. Esperava-se que a operação acabassedeste modo com os problemas de Roso, porque , o que causava aobstrução do seu sistema digestivo era exactamente a primeira

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ligação feita entre o estômago e o intestino. Mas mesmo depoisdesta segunda operação, o seu relatório era crítico; o seu percursofazia lembrar uma onda sinoidal. Os seus soluços, vómitos, a perdade peso e vários episódios horrendos de hemorragias gastrointestinaismantiveram-me bastante ocupado - em especial as113hemorragias. Uma semana depois da operação do Bilroth II, Rosovomitou sangue puro e entrou rapidamente em choque. Permanecicom ele várias noites a fio, irrigando continuamente o seu estômagocom salina gelada e tirando o tubo naso-gástrico quando este ficava

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entupido e pondo-o de volta. Conseguiu aguentar-se, de algummodo, mesmo com os nossos erros e cálculos errados, durante a suainexorável e agitada rota.A seguir às hemorragias, nada lhe permanecia no estômago, atéque tive a sorte de lhe conseguir introduzir o tubo naso-gástricopela anastomose direito ao intestino delgado. Recomeçando por aí,alimentava-o directamente no intestino com uma alimentaçãoespecial. Consegui mantê-lo assim alguns dias, mas acabou por ficarcom diarreia. Até que um dia espirrou e o tubo naso-gástrico saiu.Tive de começar a alimentá-lo por intravenosa, durante cerca de

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quatro meses, equilibrando o sódio e o potássio, e os iÕes demagnésio. Começou a desenvolver uma infecção na ferida, umainflamação nas veias das pernas, um princípio de pneumonia e umainfecção urinária. Foi então que nos apercebemos do abcesso nodiafragma, que era a causa dos soluços; tivemos de voltar a fazeruma nova intervenção cirúrgica. Roso conseguiu sobreviver a tudoisto, de algum modo, e mesmo melhorar. Levou-me cerca de quatrohoras para completar o seu relatório; pesava cerca de dois quilos;dois quilos da minha própria escrita, frequentemente manchada comsangue, muco e vómito. Quando saiu finalmente do hospital, sentime

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contente de o ver vivo e imensamente aliviado por se ter idoembora. o seu caso e a minha ligação a ele havia sido demasiadopara aguentar, por cima de tudo o resto. Houve alturas, durante ashemorragias, quando lhe administrava as soluçÕes salinas, e aoverificar o tubo, em que me interrogava se havia aceitado tudo istoapenas como um desafio, porque toda a gente dizia que não iriaconsegui-lo. Talvez não me interessasse por ele, talvez o estivesse ausar para poder provar a mim mesmo que podia tratar de um casodifícil. Porém, acabei por deixar de examinar as minhas motivaçÕes

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e comecei a pensar nos pacientes apenas no respeitante aos seusproblemas, como sejam hérnias, ou fosse o que fosse que tivessem;114era muito menos cansativo desse modo. As urgências tornavam-semais fáceis deste modo. Estava-se sempre demasiado ocupado,cansado ou assustado para poder pensar...Eram já onze e quarenta e cinco da manhã. Ia almoçar, quandouma mulher bastante pálida, de cerca de 20 anos, entrou com maisduas amigas. Depois de uma consulta breve com a enfermeira, arapariga pálida seguiu-a para uma das salas de exames. As outrasduas sentaram-se bastante enervadas e acenderam cigarros. Podia

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ouvir o som da pronúncia nova-iorquina na sala de exames,enquanto escrevia a última frase na ficha de um bebé e o punha nocesto de "Terminado". Desejoso de ir almoçar, entrei na sala onde aenfermeira e a rapariga se haviam dirigido. A ficha mencionava umahemorragia vaginal que durava havia dois dias, e um coágulo,naquela manhã. A rapariga tirou um cigarro do maço.- Não fume aqui, por favor.- Desculpe. - Voltou a guardar cuidadosamente o cigarro, olhoupara mim e depois para outro lado. Era de estatura média e usavauma blusa de manga curta e uma minissaia. Com alguma cor norosto, poderia ser bonita. A sua conversação indicava que nãopassara além do liceu.

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- Há quantos dias dura a hemorragia?- Há três - respondeu. - Desde que fiz a D e C. - Estávamosambos nervosos. Tentei mostrar-me calmo e seguro.- Por que fez a D e C?- Não sei. o médico disse que eu teria de a fazer, e eu iriz, estábem?Parecia irritada.- Onde é que a fez, aqui ou em Nova Iorque?- Em Nova Iorque.- E depois veio logo para aqui?- Sim - respondeu. Tinha realmente pronúncia de Nova Iorque. Ofacto de ter vindo logo a seguir para o Havai era um poucoestranho. Uma viagem de cerca de seis mil milhas depois de terfeito uma D e C não era um procedimento médico muito comum.115- Foi feita por um profissional? - perguntei.

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- Claro que sim. Que quer dizer com um profissional? Quem maisfaria?Que fazer? Se tivesse abortado - e tinha praticamente a certezade que o havia feito - sabia que iria ter algumas dificuldades emencontrar um médico particular. E lembrava-me demasiado bem daquantidade de raparigas, na escola médica, que haviam sofrido umchoque endotóxico de infecçÕes causadas por más D e C. Podeacontecer tudo tão rapidamente: os rins param e a pressão dosangue vai a zero. Mas a pressão desta rapariga estava normal,nesta altura. Estava a funcionar perfeitamente, noutros aspectos, anão ser pelos nervos e a face pálida. Perguntei-me se estaria a

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tentar imaginar o que eu estava a pensar. Não precisava de sepreocupar. Não me interessava como havia ficado naquele estado, oque me interessava era tratá-la. As hipótese de descobrir a causaexacta da hemorragia eram mínimas. Teria provavelmente queefectuar outro D e C. Nesse caso, tentaria localizar um ginecologistaparticular, mas a maior parte deles tinha medo de se ver envolvidanum caso destes; tratar dos restos de outros, por assim dizer. Dequalquer modo, teria de fazer mais cedo ou mais tarde um examepélvico, e era a última coisa que desejaria fazer antes do almoço.Recordei o meu primeiro exame pélvico. Fizera-o durante o

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segundo ano da escola médica, nos diagnósticos físicos. Não tinhaquaisquer preconceitos, o que era óptimo, porque a paciente erauma senhora bastante pesada. Era uma paciente da clínica queviera para fazer um check-up regular. A princípio, pensei que o meubraço não fosse suficientemente longo para alcançar o útero, e otipo que me sucedeu afirmou ter perdido o relógio - embora otivesse encontrado mais tarde no sítio onde pusera as luvas.Naquela altura, ainda não havíamos tido qualquer experiência nocampo da obstetrícia ou da ginecologia, e aquela experiência eraestranhamente desgastante. Mas depois de ter feito mais de uma

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centena, tornou-se um exame de rotina como qualquer outro. o únicoproblema era encontrar o colo do útero - o que pode parecer116absurdo, porque está sempre lá. Mas o caso pode ser difícil, sehouver muito sangue e coágulos, especialmente se a paciente nãocooperar. Além disso, tentamos não magoar a paciente. Por issocompensa demorar um pouco mais de tempo e fazer um bomtrabalho. Mas não antes do almoço.- Estava grávida de quantos meses?-perguntei-lhe subitamente.- o quê? - Gaguejara de novo, surpreendida. Uma vez que eranecessário sabê-lo, não lhe respondi.- Seis semanas - respondeu finalmente.- Foi a um médico, ou a outra pessoa?

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- Um médico de Nova Iorque - respondeu, resignadamente.- Bem, vamos ver o que podemos fazer por si - respondi, e elaacenou com a cabeça com algum alívio.Ao sair da sala, preveni a enfermeira para estar pronta para umexame pélvico. Alguns minutos depois, a enfermeira reapareceu adizer que estava tudo pronto, e quando entrei de novo na sala apaciente estava deitada com os pés nos estribos, bastante nervosae com a saia enrolada à volta da cintura. Ao preparar-me parainserir o espéculo, não consegui evitar recordar-me de uma noite,havia cerca de seis semanas, quando fora acordado por umaenfermeira que afirmava não conseguir pôr um catéter numa

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paciente idosa que tinha a bexiga cheia, porque não conseguiaencontrar o orifício certo. Levantei-me e ia já a meio do caminhopara o hospital quando me dei conta do ridículo da situação. Se elanão o conseguia encontrar, como é que eu poderia? Mas consegui,ao fim de algum tempo; era apenas uma questão de persistência.Era o que acontecia com o colo do útero. o que era preciso erapersistência. Consegui finalmente encontrá-lo, rodeado de sangue ecoágulos, que limpei o melhor que pude. o orifício estava fechado, enão foi derramado sangue novo quando lhe toquei levemente com a

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esponja. Fiz pressão no abdômen, com grande desconforto darapariga, e nada. Foi então que reparei num pequeno rasgão, asangrar muito lentamente, no lado posterior do colo. Era esse oproblema, quase de certeza. Cauterizei-o com nitrato de prata,chamei um ginecologista, expliquei-lhe o caso e fui almoçar com um117sentimento único de realização. Ainda tinha fome, milagrosamente.Foi um almoço rápido, em que engoli rapidamente duas sandese um copo de leite, sem me preocupar com surf, cirurgia e sexo. Nãoera nada sério; apenas não tinha tempo para isso. Fiz mais uma

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tentativa de planear fazer surf com o Hastings mais tarde, às quatroe meia. Carno estava a almoçar numa mesa longínqua, e, exceptoquando nos encontrávamos por acaso no hospital, raramenteestávamos agora juntos. Consegui também falar com Jan Stevensdurante alguns minutos. Não a via muito, ultimamente, emboradurante os meses de Julho e Agosto, no início do meu internato,tivéssemos tido uma boa patuscada que terminara com um fim-desemanadiferente, numa viagem a Kauai.o primeiro dia, sábado, tinha sido óptimo. Enchemos o carro comcerveja, carnes frias e queijo, e dirigimo-nos para o grandedesfiladeiro de Kauai. Pelo caminho, a estrada elevava-se por entre

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as nuvens, movimentando-nos por entre as canas-de-açúcar que nosmolhavam enquanto as atravessávamos. o desfiladeiro era aindamaior e mais espectacular do que imagináramos. Encontrei um sítio,e Jan transformou as carnes frias e o resto em sandes. Pedi-lhe quenão falasse - uma precaução necessária, porque assim como a nossarelação crescia, também crescia o seu desejo de comunicar. A vistaera maravilhosa, com quedas de água, e arco-íris brilhantes aoslados dos vales das estepes que se ramificavam do desfiladeirocentral. Sentia-me completamente descansado.Já no fim da tarde, dirigimo-nos para o final da estrada na

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encosta situada a norte, mesmo no início da costa de Napali. Armeia pequena tenda emprestada num arvoredo isolado de árvoresverdes, enquanto o sol se preparava para se pôr entre as pequenasnuvens macias do horizonte, e mergulhámos nus nas águastranquilas protegidas pelo recife. Havia um acampamento no outrolado da praia, mas isso não importava, embora me interrogasseporque estavam tão próximos da água, muito mais do que nós, numgrupo maior de árvores.Corremos para o carro, um pouco envergonhados. Vesti um par118de jeans brancos e Jan refugiou-se num blusão de nylon. Nem mesmo

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outra refeição de carnes frias e cerveja podia destruir o ambiente. Anoite caiu rapidamente, com o som das ondas a baterem no recife,que se confundia também com o da suave brisa a passar peloarvoredo. As criaturas nocturnas iniciaram a sua tímida sinfonia, queia aumentando de intensidade até quase abafar o som do mar norecife. A leste, o céu era apenas um borrão vermelho. Jan estavamaravilhosa na meia luz, e a ideia de que nada trazia vestidodebaixo do blusão de nylon era fantasticamente sexy. Na realidade,estava delirante com a sensualidade do momento.Voltámos para a praia, mais uma vez nus. A lua cheia havaiana

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flutuava na água no meio do arvoredo reflectido, quando entrámosna água; era uma cena de tal modo perfeita que não parecia real.Não aguentei nem mais um segundo. De mãos dadas, corremosnovamente para a tenda e caímos nos cobertores. Queria devorá-la,manter aquele momento sempre presente na minha mente.Comecei a dar-me conta do zumbido dos mosquitos lenta erelutantemente. No nosso desejo de fazermos amor, tentámos deinício ignorá-los, mas começaram a picar-nos, para além do zumbidoque faziam. Nenhuma paixão poderia resistir a tal carnificina.Nesses horríveis sgundos, toda a atmosfera sensual havia

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desaparecido, terminando com a fuga de Jan para outro abrigo, nonosso Volkswagen. Tremendo de desejo, resolvi ficar na tenda emvez de dormirmos apertados num carro que fora feito para anÕes.Enrolei-me num dos cobertores de tal modo que fiquei apenas com onariz e a boca de fora. Mesmo assim, fui picado pelos mosquitos detal modo que a minha face principiou a inchar, até que me rendi, porfim, voltando para o carro acompanhado por uma série de mosquitosque pareciam sentir-se tão insatisfeitos como eu.Bati na janela e Jan levantou-se, de olhos abertos, abrindo-me aporta com alívio assim que me reconheceu. Entrei, cansado, e disselhe

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para voltar a dormir. Depois de ter morto os mosquitos queentraram comigo, consegui adormecer nem sei como, debaixo dovolante, enrolado numa bola. Acordei cerca de duas horas depois a119suar. A temperatura e a humidade eram de tal modo que me pareciaestar num banho turco; era uma humidade espessa que se haviacondensado nas janelas. Ao abrir uma delas, senti uma corrente dear fresco e entraram cerca de cinquenta mosquitos no carro. Era demais. Pus o motor a trabalhar, disse a Jan que acalmasse e dirigimonospara a estrada principal para Lihue, até encontrar uma zonamais alta e fresca, onde consegui dormitar um pouco até o sol

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nascer. o meu pequeno-almoço constou de pão com queijo, formigase areia, acompanhado de cerveja morna, tudo isto comido debaixoda capota do carro. Acordei Jan e voltámos para a cidade.Jan e eu afastámo-nos um pouco desde essa altura. Não que eua culpasse pelo fim-de-semana. Isso aconteceu porque começou aqueixar-se um pouco, especialmente depois de termos dormidojuntos, a querer saber se eu a amava, e porque não, e em quepensava eu. Amava-a algumas vezes, numa forma um pouco difícil deexplicar; em relação ao que eu pensava, na maior parte das vezesem que estávamos junto, devaneava. De qualquer modo, não podia

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aguentar as suas perguntas. Tinha-se simplesmente tornado maisconveniente deixar que a nossa relação se tornasse apenas numaamizade casual. Mas gostei de a ver no bar. Ela era realmentebonita.As urgências haviam-se modificado por completo naquelesquinze minutos em que fora almoçar. Havia um novo grupo depessoas à espera de serem atendidas e oito novas fichas no cesto.Não eram obviamente urgências, na realidade, ou as enfermeiraster-me-iam chamado antes. Eram apenas tratamentos de rotina. Umdos pacientes era um velho conhecido das urgências, que vinha para

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receber a sua injecção de xilocaína para tratamento de um alegadoproblema nas costas. As suas apariçÕes eram de tal modofrequentes e previsíveis que as enfermeiras tinham já a seringapronta e à minha espera no tabuleiro ao lado do paciente.Chamávamos-lhe KidXilocaína, e havia desenvolvido um certoconhecimento acerca do seu estado, enquanto me dava indicaçÕessobre o sítio onde inserir a agulha, como o fazer e a quantidade.Embora sentindo-me um pouco irritado com o ritual, fazia, contudo,120como ele dizia; suspirava de alívio e ia-se embora.Ao dirigir-me para a sala B, fui cumprim entado mais uma vezpelo meu amigo bêbado Morris, que voltara finalmente dos raios-X.

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Deitado na mesa de observaçÕes e preso por um cinto na cintura,segurava um sobrescrito cor de manilha onde se encontravam osraios-X. Saudou-me.-Tenho sempre que ser visto por um raio de um interno. Nem seipor que continuo a vir aqui. - o almoço havia-me deixado bemhumorado e consegui ignorar de algum modo a sua conversa fiadaenquanto verificava as radiografias, uma de cada vez, erguendo-asem frente àjanela. Não esperava encontrar uma situação grave, anão ser, talvez, no braço esquerdo, mas a radiografia não estavamuito visível. Lembrei-me de que Morris me havia bombardeado comuma série de obscenidades na altura em que lhe apalpei o braço e

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o fiz rodar. Talvez houvesse alguma coisa, de facto. Verifiqueinovamente as radiografias; o joelho esquerdo, o direito, pélvis, opulso direito, cotovelos, por aí fora, sem nada encontrar no braço ouombro esquerdo. Não havia outra coisa a fazer a não ser chamar aenfermeira para enviar Morris de novo aos raios-X.- Eles vão adorá-lo, Doutor, ele aterrorizou o departamentointeiro durante toda a manhã e fê-los usar duas caixas de filme -disse a enfermeira.- Isso não me surpreende - respondi, pegando num grupo defichas novas e dirigindo-me para a sala C.Os bebés da parte da tarde eram muito parecidos com os da

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manhã; sofriam quase todos de constipaçÕes e diarreia. Um delestivera de ser anhado com esponja, pois tinha uma febre alta, eoutro, de cerca de anos, precisava de uma sutura no queixo. Suturaruma criança é uma operação realmente difícil. o terror de terem devir para o hospital, por vezes a sangrar e com dores, é muitas vezesagravado pelo facto de terem de ser presos numa armaçãosemelhante aos sacos em que as índias transportam os filhos àscostas, para os conseguirmos imobilizar. Mas nem mesmo essemétodo conseguiu imobilizar esta criança; era como tentar atingir um121alvo móvel. A parte pior para ele era o facto de estar debaixo do

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lençol com o orifício. Depois da injecção de xilocaína, não sentiudores, apenas uma certa pressão e o repuxar da agulha. Mas issonão impediu que continuasse a gritar e a detestar o que estava apassar-se. Também eu.Na outra sala, encontrei um homem de 32 anos que trazia umcatálogo de queixas, que começavam com uma garganta irritada econtinuavam pelo resto do corpo. o seu verdadeiro objectivo era serinternado no hospital, e quando se apercebeu de que uma gargantairritada não me havia impressionado muito, passou a queixar-se deuma dor no lado direito do peito. Disse-lhe, finalmente, que o

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hospital estava superlotado, só para testar a sua reacção. Ficoufurioso, queixando-se de que sempre que se precisava do hospitaleste estava cheio.A tarde passou de uma forma despreocupada e ocupada. Nestaaltura, já havia examinado sessenta pacientes, o número normal,sem ter tido muitas preocupaçÕes. Mas a noite aproximava-se, e asnoites de sábado significavam sempre problemas. Entraram doishomens idosos que sofriam de asma e as enfermeiras puseram-nosem quartos separados ligados às máquinas de pressão positivapara respirarem. o homem da sala C respirava com dificuldade, o

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esterno estava quase a rebentar com a inspiração, tinha as costasdireitas e as mãos nos joelhos. Perguntei-lhe se fumava. Não,respondeu, há anos que deixara de fumar. Aproximei-me e tirei-lheum maço de Camel do bolso da camisa, enquanto os seus olhosseguiam os meus movimentos. Quando olhou para mim, depois dever os cigarros, não consegui evitar um sorriso ao ver a suaexpressão, tão cómica e contudo tão humana. Era como se tivesseapanhado um miúdo a fazer uma asneira. Parte do encanto dasurgências era constituído pela demonstração de humanidadegenerosa e pródiga nas suas variedades.Os velhos conhecidos continuavam a aparecer. Outro bêbado, já

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bastante conhecido, entrou cambaleante, a queixar-se de umaqueda de uma cadeira de baloiço que o deixara com uma úlcera122crónica na perna! Havia visto aquela úlcera antes, na altura em queestivera como paciente na enfermaria; e tinha sido uma época difícilde esquecer, essa, para todos nós. Apesar das medidas rigorosasde segurança, conseguira manter-se bêbado durante dias a fio, e asua alta fora apressada quando o residente chefe o encontrou atrásdo banco de sangue com duas garrafas de Old Crow e uma pacientefeminina. Tratei-o da ferida e disse-lhe para voltar para a clínica na

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Segunda-feira.Uma ambulância apareceu subitamente sem ser anunciada porentre o choro dos bebés constipados e dos bêbados, sem sirenenem luzes vermelhas. Isso significava que não se tratava de umaurgência grave. Assim que retiraram a maca, foi-me revelada umasenhora magra, de cerca de 50 anos, com a roupa suja e velha.Segui uma das enfermeiras, que dizia que não havia sido possívelconseguir reacção alguma da senhora. Também não consegui. Ficaraapenas a olhar para o tecto, com a respiração pesada.Tinha uma pequena laceração na testa, mas que não dava nempara fazer uma sutura. Parecia estar plenamente consciente, mas

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mantinha-se, contudo, completamente imóvel. Iniciei a tarefa de aexaminar fazendo um exame neurológico, testando primeiro aspupilas e os reflexos em seguida. Nada havia de errado. Mas assimque tentei fazer o teste de Babinski, que se resume a umaraspagem leve na planta do pé com uma espátula, ela praticamentesaltou, gritando que nada havia de errado no pé, que era na cabeçaque se tinha ferido, e por que razão estava eu a brincar com o seupé? Saltou da mesa de observaçÕes e desapareceu, com umaenfermeira a correr atrás dela. Por fim, contactámos a administraçãodo hospital e a polícia, que a levou, enquanto ela gritava que

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estava bem.Na sala F encontrava-se um homem idoso a quem se tinhamacabado os comprimidos diuréticos, ou eliminadores de líquidos, ecujas pernas estavam inchadas com fluido excessivo. Descobri queera uma dessas pessoas que têm o fantástico dom de falarininterruptamente sem aparentemente dizerem nada. Fui inundadopor uma torrente de palavras enquanto o examinava. Falou da sua123percepção extra-sensorial, de quantas vezes a havia utilizado,especialmente para comunicar com a mulher, que havia morridoalguns anos antes. Fiz uma pausa para o ouvir, contrariado,enquanto ele descrevia como podia destilar uma garrafa de água

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para o seu modelo de universo. Na realidade, ele imaginava que aTerra era apenas uma pequena porção de uma molécula gigantescade outro universo em outra dimensão. Dei-lhe um frasco decomprimidos, ainda um pouco fascinado, e disse-lhe que os tomassedurante uma semana, para se aguentar sem eles durante um tempoe depois peguei na ficha seguinte.Era importante ouvir esses pacientes, apesar da sua loucura etrivialidade. De vez em quando, as divagaçÕes eram significativas.Apareceu certa vez na escola médica um homem nas urgências aqueixar-se de ter ingerido vários copos sem o acompanhamento

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habitual de pão. o interno e o residente começaram a encaminhá-lopara a porta, sugerindo-lhe que voltasse de manhã, quando oserviço de psiquiatria se iniciasse. Ao ver a sua descrença, o homemenfiou a mão no bolso do interno, tirando um tubo de ensaio e umaespátula de madeira para ver a garganta, mastigou-os e engoliu-os,perante o ar incrédulo do pessoal médico. Trouxeram-no de novopara dentro e deitaram-no na sala de exames, sugerindo-lhedelicadamente que ficasse lá essa noite. Visto aos raios-X, o seuestômago parecia um saco com berlindes partidos.- Maldito hospital. Nunca mais cá volto. Para a próxima vou para

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St. Mary - disse o ubíquo Morris, enquanto o levavam na mesa deexame. Era evidente que me iria perseguir durante o resto do dia,embora me sentisse um pouco aliviado por ver que trazia consigo asradiografias do braço. Afinal, talvez me conseguisse ver livre dele.- Há uma chamada para si no 84, Doutor - disse uma dasenfermeiras.Estava a tentar ligar para um certo Dr. Wilson, médico particularde um dos pacientes que dera entrada e que sofria de uma infecçãodo tracto urinário, e já ia na minha terceira tentativa vã. Marquei o84, um pouco frustrado.124- Dr. Peters ao telefone.

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- Sr. Doutor, o meu filho está com uma dor de cabeça terrível, enão encontro o meu médico. Não sei que hei-de fazer. - Continuei aouvi-la, e aos bebés que choravam em fundo. Não tínhamosnecessidade de mais um paciente de aspirina, mas não lhe podiadizer que não. Respondi-lhe, um pouco relutantemente:- Se está realmente convencida de que o seu filho se encontradoente, então traga-o para as urgências.- Doutor, tem outra chamada na 83. - Pedi à enfermeira que nãodesligasse, enquanto tentava mais uma vez ligar para o Dr. Wilson,à espera do sinal de ocupado. Por acaso, o telefone tocou e o Dr.Wilson atendeu.

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- Dr. Wilson, tenho aqui uma paciente sua, uma Mrs. Kimora.- Mrs. Kimora? Não me recordo dela. Tem a certeza de que éminha doente?- Bem, pelo menos ela diz que é. - Acontecia frequentemente osmédicos não se lembrarem dos nomes dos seus pacientes. Talvezuma descrição do problema lhe avivasse a memória. - Sofre de umainfecção do tracto urinário, com sensaçÕes fortes de ardor ao urinar,e em relação à temperatura...- Dê-lhe um pouco de Gantrisina e mande-a ao meu consultóriona segunda-feira - disse, interrompendo-me.Fiz uma pausa, lutando com o impulso de desligar. Por que nãoqueria ele ouvir falar do caso - da febre, da análise de urina e da desangue?

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- E que me diz de uma cultura? - perguntei.- Claro, faça isso.o.K. Marquei o 83 para receber a outra chamada.- Doutor, acabei de evacuar e havia sangue nas fezes.- Era vermelho-vivo no papel higiénico?- Sim. - Chegámos à conclusão de que as suas hemorróidasveriam ser a causa do sangue, e que não necessitava de vir àsurgências, podia consultar o médico na segunda-feira. Desligou, comum suspiro de alívio e agradecendo-me profusamente. A enfermeiratinha outra chamada à espera na 84, mas como esse gênero de125coisas tem tendência a não mais acabar, ignorei-a. Dirigi-me entãoa Mrs. Kimora e expliquei-lhe cuidadosamente como deveria tomar a

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Gantrisina, que tinha de tomar dois comprimidos quatro vezes pordia. Uma enfermeira levou a urina para fazer a cultura.E agora, Morris. Estava deitado imóvel na mesa, e pareciamenos bêbado que antes, Dirigiu-me a saudação habitual.- Quero ir-me embora daqui. - Pelo menos, nisso estávamosambos de acordo. Peguei nas radiografias, pu-las contra a luz everifiquei imediatamente, com grande desapontamento, que tinhauma fractura nítida entre o cotovelo e o ombro, como se tivesselevado um golpe de karate. Iria ficar connosco durante mais algumtempo.- Mr. Morris, o senhor tem o braço partido. - Olhei severamentepara ele.

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- Não tenho nada - contrariou. - o senhor não sabe o que está afazer.Querendo evitar cenas de teimosia, fiz a minha retirada eescrevi rapidamente uma ordem, dirigindo-o aos cuidados doortopedista residente. A enfermeira ligou para o PBX e mandouchamar o residente.Estávamos já a meio da tarde e eu não tinha mãos a medir.Cerca das quatro horas fomos inundados por um grupo de surfistas,com cabeças laceradas, dedos cortados e cortes profundos feitospelo coral. o surf é que estava a dar! Havia bebés a chorar em cadacanto, com febre, diarreia e vómitos. Eu não parava de fazer suturas,

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de mandar pessoas para os raios-X e de tentar desesperadamenteobservar o interior dos ouvidos de crianças que não cooperavam.Apareceu uma mãe muito agitada porque o seu filho tinha caído deum terceiro andar para dentro da conduta do lixo. Senti-me tentadoa perguntar-lhe como é que aquilo acontecera, mas, em vez de fazerperguntas, resolvi observar a criança, retirando-lhe pedaços decebola de dentro de um ouvido e algumas borras de café do cabelo.Surpreendentemente, a criança estava bem. Contudo, mandei fazerlheuma radiografia, Porque tinha um braço um pouco mole, e126

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confirmei as minhas suspeitas; havia fracturado o braço pelo húmerodireito, como seria de esperar, após uma queda de três andarespara dentro de um depósito de lixo.Entretanto, iam-se acumulando radiografias de todas asespécies, desde crânios a pés. Eu era o primeiro a admitir não sermuito bom a interpretá-las. Mas o sistema era assim mesmo. ointerno interpretava-as à noite e nos fins-de-semana. Nãointeressava minimamente se tínhamos sido ou não treinados paraisso; tínhamos de fazer o melhor que podíamos. Tendo consciênciada minha inexperiência, tinha sempre receio de não reparar emalgum pormenor importante, especialmente depois da experiência

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humilhante do dedo do pé. o incidente ocorrera num sábado à noite,quando aparecera uma rapariga a coxear, agarrada ao namorado.Havia partido um dedo do pé. Mandei fazer-lhe uma radiografia e onamorado foi com ela. Cerca de uma hora depois, no meio dopandemónio, observei a radiografia, especialmente os metatarsos,e disse-lhes que a radiografia apresentava resultados negativos...e, nessa altura, o namorado interrompeu-me para dizertranquilamente que, quando a observara, lhe parecera nitidamentehaver uma fractura. Fiz uma pausa, engoli em seco e disse:- Ali sim ? - Ele apontou para uma linha na falange média doterceiro dedo, queera suspeita, e que poderia ser... e era,

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narealidade... uma fractura. Era para isto que servia o nosso treino!Morris estava agora bem guardado na sala de ortopedia, forado meu alcance sonoro. o ortopedista residente havia aceitado ocaso, examinado Morris e as suas resmas de radiografias, edesaparecera, depois de ter tentado, sem sucesso, contactar com opessoal de ortopedia de serviço. Morris teria de ficar na sala deortopedia até o pessoal ser contactado. Era, por isso, mais umproblema, mas, pelo menos, já não era meu. Depressa me esquecidele.Cerca das cinco e meia começaram a aparecer os casos dehiperflexão do pescoço, o traumatismo de chicotada. Era

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matemático, mal o trânsito começava a aumentar havia mais127acidentes nas auto-estradas. As pessoas que se queixavam de tertido um acidente de automóvel necessitavam de uma verificaçãocuidadosa do pescoço, um exame neurológico completo e umaradiografia da medula cervical, antes de se poder chamar o médicoparticular. E todas essas radiografias me pareciam iguais, e quandoretirei uma delas e a coloquei no expositor gigante no centro dasala de urgências senti-me tão transparentemente vulnerável como opróprio negativo. Além disso, havia sempre muitos pacientes por ali,

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a espreitar ansiosamente por cima do meu ombro, enquanto asobservava. Só esperava que ficassem impressionados com as minhasartes mágicas de conseguir deduzir tanta coisa daquelasradiografias manchadas de negro, branco e cinzento, querepresentavam ossos e tecidos. Na maior parte das vezes, porconsideração para com os pacientes, demorava um certo tempo,fingindo observá-las por completo, levando um pouco mais de tempoque o necessário em determinada parte do negativo. Na realidade,nada do que poderia diagnosticar estava longe da verdade, ouclaramente fracturado, e isso demorava cerca de dez segundos a

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descobrir. o resto era um palpite à sorte. Mas não queriadesapontá-los e, por isso, observava atentamente os negativos,murmurando para mim mesmo e tomando notas, enquanto o doentese encolhia, à espera do pior.às seis horas, o movimento caiu muito, podendo então dar-meao luxo de um breve descanso. Comecei mesmo a adiantar serviço,e, depois de ter extraído um anzol a um homem de meia-idade,deixou de haver gente à espera. As urgências tornaram-sesubitamente calmas; lá fora, o sol dourado da tarde deixara umasombra violeta no parque de estacionamento. Havia sempre umaacalmia antes da tempestade, um armistício temporário entre

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batalhas. Sentindo-me só e cansado - surpreendentemente só, nomeio de tanta gente - resolvi ir jantar. Encontrei pelo caminhoalgumas pessoas que esperavam uma boleia para casa. Os quehaviam saído das urgências acenaram-me e sorriram-me; sorri-lhestambém, satisfeito por ter um novo contacto com eles e esperandoter trabalhado bem. Conversar com os doentes fora do hospital fazia128que todos nos sentíssemos mais reais e afastava o medo que nosenvolvia, quando esperávamos qualquer coisa mais grave a toda ahora.Era uma experiência agradável, poder finalmente sentar-me.

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Estiquei os pés até à outra cadeira por baixo da mesa. Joyceapareceu e veio sentar-se ao meu lado, e isso era agradável,embora pouco tivéssemos a dizer um ao outro. Ela começou arelatar-me os falatórios do laboratório, a falar das contagens desangue, e tudo isso era uma ameaça de indigestão; também nãoqueria falar sobre as urgências. Jantei rapidamente, consciente deque cada dentada podia ser a última dessa noite. Pelo menos essaparte da visão da Medicina que a televisão mostra está certa.Acabámos a conversar sobre surf com outro interno, Joe Burnett, deIdaho.Cada interno necessitava de um escape, de uma válvula de

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segurança; a minha era o surf. Dava-me uma sensação de fuga eescape perfeitos.o ambiente era completamente diferente em relação ao som, àvisão e aos sentidos. Quando me encontrava na crista de uma onda,a lutar, a concentrar-me em chegar a terra, não conseguia pensarnoutra coisa. à medida que os meses se foram passando, foiaumentando o meu vício pelo surf, e comecei a compreender por quemotivo a maior parte das pessoas que o pratica segue o sol embusca da onda perfeita. É muito mais saudável que as drogas e oálcool, mas vicia tanto como eles, e um mau passo pode matar-nos.o Havai não faz muita publicidade a esse facto.

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Mas mudemos de assunto. Mesmo que as ondas não fossemperfeitas, haveria sempre a beleza que nos rodeia. E quem sabe?Pode aparecer uma, a qualquer momento, a desafiar-nos. o surf é umdesporto muito especial, único mesmo, ao contrário de muitosdesportos, embora se pareça superficialmente com o esqui. A únicadiferença é que, quando se faz esqui, a montanha permaneceimóvel; numa onda, tudo se move - nós, a montanha, a prancha, o arque nos rodeia - e quando se cai da prancha, numa onda grande,129não se sabe onde se pode ir parar. Joe e eu falámos de surf,descrevendo entusiasticamente pequenos episódios, com os pés e

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os braços sempre em movimento, falando de ondas, de quandotínhamos sido enrolados ou atirados, de tudo, enfim. E esqueci-medas urgências.o surf não é um desporto muito sociável, curiosamente, exceptoquando se sai da água e se fala sobre ele. Na prancha, quase nãofalamos. Faz-se parte de um grupo de pessoas unidas apenas pelomar, mas esquecemo-nos dos outros, a não ser para amaldiçoarmosquem cai na nossa onda. Cada onda que conseguimos apanhar énossa, mesmo que não se vá sozinho. Vai-se sempre com alguém,mas não se conversa.Chamaram-me ao telefone e tive de terminar a conversa com Joe;

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começava a haver mais movimento nas urgências. Quando cheguei,já não era um lugar calmo. Durante o meu retiro de trinta minutostinham chegado mais bebés, a chorar e com as suas queixashabituais. Uma rapariga adolescente queixava-se de cãibras.Perguntei-lhe se se tinha sentido melhor depois de tomar aspirina.Ainda não tinha experimentado tomar coisa alguma. Mais uma curamilagrosa, digna dos quatro anos passados na escola médica. E asconstipaçÕes. Havia várias pessoas com as velhas variedades deconstipação: rinites, gargantas irritadas, tosse, o costume. A razãopor que se dirigiam às urgências ultrapassava a minha

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compreensão. Apesar de me ter distraído bastante depois do jantar,havia-me passado despercebido qualquer aspecto humorístico dasituação. Tinha gente à espera para ser suturada e tinha queobservar aqueles constipados.Um dos trabalhos de sutura foi um pouco invulgar. Tratava-se deuma senhora que havia cortado uma parte do dedo indicador comum canivete. Tinha sido suficientemente inteligente para guardar opedaço e, depois de o ter ensopado por alguns minutos, cosi-o comuma linha de seda muito fina. Fizera tudo isso enquanto o médicoparticular me dava instruçÕes explícitas pelo telefone. Quaseestava à espera de que ele aparecesse e fizesse o trabalho.130

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Numa das salas encontrava-se um homem que se queixava dedores nas costas e incapacidade de reter a urina. o último sintomaera bastante óbvio, a avaliar pelo cheiro da sala, que se tornouquase insuportável à medida que eu o ia examinando por partes,indo, de vez em quando, até ao corredor, para poder respirar umpouco de ar fresco. Continuava a não aguentar os maus cheiros.Pensei que talvez fosse boa ideia interná-lo no hospital, uma vezque tinha uma infecção no tracto urinário, e não podia, obviamente,cuidar de si próprio. Contudo, o médico que chamei já o conhecia enão o queria como paciente. Disse-me que procurasse outro médico.

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Ao que parece, o velhote era um péssimo doente, famoso pelas suasdesapariçÕes do hospital sem ter tido alta e aparecendo semprenos fins-de-semana ou a meio da noite. Falei com outro médico quetambém o recusou, e que sugeriu um outro. Finalmente, depois deter contactado cinco médicos, houve um que concordou em tratardele, mas, já depois de as enfermeiras o terem preparado para seradmitido, descobriu-se que era um veterano. Todos os meusesforços haviam sido em vão; agora teríamos de o mandar para umhospital militar.Quando ia entrar de novo no hospital paraver outro paciente,

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quase choquei com uma jovem de cerca de 20 anos, que agarravaum caniche, enquanto um homem não muito mais velho que ela apuxava. Gritava que não queria falar com médico algum. Não vianisso qualquer obstáculo; continuei a dirigir-me para a sala dopaciente, mas teria de acabar por aver, de qualquer modo, e,quando a observei, praticamente não falou. Teria sido mais fácilestabelecer comunicação com o cão, que ela ainda trazia ao colo.Decidi deixá-la, o que foi um erro, porque minutos depois saiu edesapareceu. Estava demasiado ocupado para dar por isso até queo psiquiatra da família apareceu com os pais dela. Parece que do

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hospital tinham chamado a polícia, porque a rapariga andava lá foraa arrancar flores. Fiquei um pouco surpreendido ao ver o psiquiatra -tinha sempre imensa dificuldade em conseguir que viessem aohospital nos sábados à tarde e a partir das quatro horas. Podiasempre contar com dois ou três pacientes do foro psiquiátrico ao131sábado à noite, na pior altura para eles. Uma vez que raramenteconseguia apanhar um psiquiatra, fazia o que podia por os pôr maisà vontade; mas um calmante leve e palavras amáveis não lhesresolviam os problemas.- Doutor, tem uma chamada no 84 - disse uma enfermeira.Atendi-a no telefone da Sala B, marcando o 84.

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- Peters, daqui fala Sterling. Consegui finalmente falar com o Dr.Andrews, que trata este mês da ortopedia, e ele acha que umaparelho de suspensão deve servir para Morris. - Sterling era oortopedísta residente.Houve uma pausa. Comecei a desenhar círculos interligados nobloco que estava ao lado do telefone. o raio do Sterling não tinha amínima intenção de vir cá abaixo aplicar o tal aparelho desuspensão, ou lá o que era.- Por que não tenta pô-lo, Peters? E se tiver algum problemaavise-me, está bem?- Tenho ainda oito doentes para ver.- Bom, se ele tiver que esperar muito, chame-me.- Sterling, pelo amor de Deus, ele está aqui desde as dez da

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manhã. Não acha que já é muito? Há nove horas?- Ah, está bem. Dá-lhe uma hipótese de ficar sóbrio.Discutir com Sterling exigia mais esforço mental do que eudesejava, e, além disso, ia contra a minha nova determinação denão me aborrecer, de manter uma certa distância.- Está bem. Vou tratar disso logo que puder. - Desliguei otelefone, analisando mentalmente a próxima meia hora.- Enfermeira, mande aquecer um pouco de água e arranje-megesso, e tenha tudo pronto na ortopedia.- Que tipo de gesso, Doutor?- De duas e três polegadas, quatro rolos de cada.Pus o meu ar mais descontraído e fui dar uma volta pela salados médicos, procurando nas estantes um livro sobre ortopedia.

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Encontrei um, graças a Deus, e folheei-o, à procura do índice. Láestava: gesso, suspensão, ver p. 138, o que fiz. Tratava132precisamente de fracturas do húmero, mesmo o que eu queria.Apesar da minha apreensão por ter que tratar de um caso estranhopara mim, fiquei impressionado com a simplicidade do trabalho, quefazia, de facto, uma espécie de tracção. Em vez de se pôr o gessoem volta do braço e do ombro do paciente, aplicava-se apenas naárea um pouco acima do cotovelo, e o peso puxaria o ossofracturado para baixo, facilitando o alinhamento. o braço era então

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preso ao corpo por uma atadura enrolada em volta do peito;mantinha, deste modo, o braço imóvel, mas deixava o ombro livrepara efectuar movimentos. Era extraordinário.Apareceu uma enfermeira.- Doutor, há nove pacientes à espera. - Sabia que seria avisadopelas enfermeiras se houvesse uma verdadeira emergência; era aaltura propícia para me livrar de Morris de uma vez por todas.Depois de colocar o livro no lugar, dirigi-me para a sala deortopedia, sentindo-me mais preparado para aplicar o gesso. Assimque entrei na sala, tornou-se óbvia a razão por que nosesquecêramos dele. Estava deitado na marquesa, adormecido,

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ressonando ligeiramente, e mantinha-se sobre ela graças a umacorreia de couro que o prendia. Nem sequer acordou, quando osentei, segurando-lhe na cabeça. Maldito Sterling; estava a fazer otrabalho dele. Enquanto falávamos ao telefone, podia ouvir o somda sua televisão. Depois de ter cortado a manga esquerda, arranjeium pouco de estoquinete para a parte de dentro do gesso eapliquei-a no braço, tentando não deslocar a fractura.- Doutor, tem uma chamada no 83. - Não respondi, esperandoque o caso se resolvesse por si.- Ohhhh... - Morris acordou, assim que lhe posicionei o braçopara a aplicação do gesso. - Que é que está a fazer?- Mr. Morris, o senhor partiu o braço quando caiu da escada, eeu estou a pôr-lhe gesso.

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- Mas eu não...- Ai isso é que partiu! E agora, cale-se. - Espero que Sterling mepeça um favor, um dia. Depois de ensopar os rolos de gesso naágua até as bolhas de ar pararem, enrolei-o à volta do braço de133Morris, fazendo camadas. Fi-lo bastante espesso, com cerca de cincocentímetros. Uma vez que a terapia se deveria ao peso, aquela iriaser óptima.- Fique quieto agora, Mr. Morris. Não se mexa. Deixe-o secar.Dirigindo-me à zona principal das urgências, atendi o 83, mas jáhaviam desligado. Era uma boa estratégia. Ainda eram sete e meiae já tinha onze pacientes em atraso, e sabia que as coisas iriam

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piorar. Peguei numa mão cheia de fichas e comecei pela primeira,cuja queixa era "Erupção cutânea".Os problemas cutâneos causam-me um vazio na mente, por maisque leia e releia as descriçÕes das erupçÕes vesiculares pruríticaspapulo-escamosas e eritematosas. As palavras perdiam todo osentido e retorciam-se na minha memória, de modo que, quando viaum paciente com algo para além de acne ou hera venenosa, estavaperdido. E ali estava, diante de mim, um homem com uma violentaerupção eritematosa eczematosa e prurítica. Eu sabia que era issoporque um dermatologista tinha usado essas palavras para

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descrever a minha queimadura solar depois de uma semana dePáscoa passada em Miami, quando andava na escola médica. Issoqueria dizer que fazia comichão, estava húmida e vermelha, mas oscientistas preferiam um complicado calão científico. De facto, adermatologia é o único ramo da Medicina que ainda usa o latim emgrande extensão - apropriado, de certo modo, visto que não meparecia que a ciência tivesse avançado muito desde os tempos daalquimia. Embora a terminologia e o diagnóstico das doenças depele fossem difíceis, o tratamento era a própria simplicidade. Se alesão estivesse húmida, usava-se um agente secante; se a lesão

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estivesse seca, era preciso conservá-la húmida. Se o pacientemelhorasse, continuava-se com o mesmo tratamento; caso contrário,tentava-se outra coisa, ad infinitum.o paciente que se encontrava diante de mim era um homemmagro, de rosto terroso, com cabelos escuros, fartos edespenteados. Ao olhar para as suas mãos e para os seus braços, aúnica coisa que via era que percebia muito pouco de dermatologia.134Ele não tinha um médico particular, o que queria dizer que eu teriade chamar um, e perguntava a mim mesmo o que iria dizer-lhe, semparecer um idiota chapado.Reparei que a erupção atingia também as palmas das mãos e

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alguns sinos distantes começaram a soar na minha mente. Apenasalgumas desordens dermatológicas aparecem nas palmas das mãos.A sífilis é uma delas. Hummm. Estava tão envolvido nos meuspensamentos que mal ouvi o paciente dizer que sofria deneurodermatite e precisava de mais tranquilizantes. Estava ainda atentar recordar-me da lista exacta das doenças que aparecem naspalmas das mãos, quando as palavras penetraram subitamente nomeu consciente. Neurodermatite. Com a prática, tinha desenvolvidouma certa habilidade para não mostrar surpresa ou gratidão quandome eram feitas estas súbitas dádivas de diagnóstico, e continuei a

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observar-lhe os braços, com o ar de quem percebe do assunto, atéter passado tempo suficiente. Tive a sensação de que os meusconhecimentos de dermatologia se igualavam aos dele quandoadivinhei, correctamente, que ele estava a tomar Librium. Ficou-megrato por lhe receitar mais.à medida que a tarde se ia estendendo para a noite, os meuspassos foram-se tornando mais difíceis e mais lentos, e os meusreceios aumentaram, fazendo surgir, na minha imaginação, umasérie de casos complicados que me esperavam. Não houve umapausa na torrente contínua de pacientes, deixando-me sempre comcinco ou seis pessoas em atraso. As minhas suturas tornaram-semais rápidas, por uma questão de necessidade e de redução do

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meu interesse. Sempre que eu estava a fazer suturas, as pessoasque esperavam iam-se amontoando, de modo que eu tinha que serrápido, desistindo de aparar os rebordos e outras coisas maiscomplicadas. Não trabalhava ao acaso, era apenas menoscuidadoso e talvez mais facilmente satisfeito com os resultados.Como sucedeu, por exemplo, com o homem que tinha uma laceraçãono braço com separação de um rebordo. Durante o dia, eu teriaprovavelmente extraído o rebordo e fechado a ferida como um cortelinear. Mas naquela altura limitei-me a cosê-lo, com o rebordo e135tudo, esperando que tudo corresse pelo melhor.

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Na sala de otorrinologia encontrava-se um rapazinho de 4 anossentado na marquesa, com um ar triste. Perto encontrava-se o avô.Quando entrei, a criança começou a choramingar, estendendo osbraços para o avô que lhe pegou enquanto eu lia a ficha. Dizia"Corpo estranho, ouvido direito". Depois de conversar calmamentecom o rapazinho durante alguns minutos, convenci-o a deixar-meobservar o ouvido. Ao fundo do canal, vi qualquer coisa preta;parecia-me uma uva ou uma pedrinha.Dado que o avô não conhecia otorrinolaringologista algum,escolhi um da lista de médicos, um Dr. Cushing, e telefonei-lhe.- Dr. Cushing, fala o Dr. Peters das Urgências. Tenho aqui umrapazinho de 4 anos com um corpo estranho no ouvido.

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- Qual é o apelido dele, Peters?- Williams. o pai chama-se Harold Williams.- Eles têm seguro de saúde?- Não faço a mínima ideia.- Então pergunte-lhes, meu rapaz.Que cena, pensei eu, dirigindo-me à sala de otorrinologia. Comuma dúzia de pessoas à espera, tinha de ir saber de um seguro desaúde. Não, disse o avô, não tinham seguro.- Não, não têm seguro, Dr. Cushing.- Então veja se algum dos adultos está empregado.Tive de voltar à sala de otorrinologia para interrogar o avô. Naverdade sabia que era mais fácil obter estas informaçÕes do quetelefonar a uma dúzia de médicos até encontrar um que nãoestivesse tão preocupado com a ideia de não lhe pagarem; mas

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aquilo parecia-me grosseiro e desumano, de qualquer forma.- Ambos os pais estão empregados, Dr. Cushing.- óptimo. E agora, qual é o problema?- O pequeno David Williams tem um corpo estranho no ouvido,uma coisa preta.- Pode extraí-la, Peters?- Penso que sim. Posso tentar.136- óptimo. Mande-os ao meu consultório na segunda-feira etelefone-me outra vez se tiver algum problema.- Oh, Dr. Cushing.- Diga.- Tive aqui esta manhã uma menina com infecçÕes em ambos osouvidos médios. - A criança da manhã tinha-me voltado à mente, desúbito. - Um dos tímpanos estava perfurado e o outro inchado.Deveria tê-la purgado?

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- Sim, provavelmente.- Como é que isso se faz?- Usa-se um instrumento especial chamado faca de miringotomia.Faz-se uma minúscula incisão na parte inferior posterior do tímpano.É muito simples e o paciente fica logo aliviado.- Obrigado, Dr. Cushing.- De nada, Peters.De nada, digo eu, Dr. Cushing. Depois de todas aquelas idas evindas, tinha de tentar retirar eu próprio o objecto preto. Quanto àincisão no tímpano, decidi considerar-me instruído sobre o processo.De regresso à sala de otorrinologia, imobilizei a criança e tenteiretirar o objecto preto. Partiu-se quando puxei o forceps e, quandoobservei o que saíra, nem queria acreditar no que os meus olhos

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viam. Era a pata traseira de uma barata. o rapazinho soluçavaenquanto eu ia retirando a barata, pedaço a pedaço, cheio de penada criança e ansioso por acabar com aquilo, quase a vomitar derepugnância. Os últimos pedaços saíram com uma boa irrigação. ochoro da criança foi diminuindo gradualmente e pincelei o ouvidocom desinfectante. Parecia estar tudo bem, mas eu sentia-me umpouco agoniado.Durante a parte final deste processo, uma enfermeira tinhaestado atrás de mim a fazer-me sinais. Informou-me então, num tomum pouco gélido, que Morris continuava à espera na sala deortopedia. Por vezes aquelas enfermeiras aborreciam-memortalmente, especialmente de noite. Senti-me, no entanto, um

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pouco culpado em relação a Morris, porque ele já estava entre nós137havia quase doze horas, e suponho que a sensação de culpaaumentou a minha animosidade para com a enfermeira.Profundamente adormecido, Morris estava-se nas tintas. o gessoestava completamente seco. Infelizmente tive de o acordar para lheligar o gesso ao corpo com uma ligadura Ace, e, ao fazê-lo, tive desujeitar-me a mais alguns insultos, que me pareceram não estar àaltura da média habitual de Morris. o que mais me preocupava eraverificar se Morris podia ou não mover o ombro, com o braço

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esquerdo assim ligado ao corpo. Mas estava a seguir as instruçÕesdo compêndio, e a clínica resolveria o problema na segunda-feira,se houvesse alguma coisa errada. Voltando à sala principal dasUrgências, disse à enfermeira nervosa que Morris podia ir para casa,;e ela arranjasse tempo, entre as pausas para o café, para lhe daruma njecção antitetânica.Por volta das dez horas, a casa estava a abarrotar, cheia detodas as doenças possíveis. Com o aumento da clientela, eu tinhameatrasado um pouco, talvez numa dúzia de fichas. Silenciosamentede pé no meio da sala de espera principal encontrava-se uma mulher

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que queria que eu examinasse uma pequena perfuração no nariz,provocada havia cerca de oito horas por uma tesoura de podar. oseu nome era Joseplis. Não sei por que motivo Mrs. Josephs estavahavia tanto tempo à espera, mas o seu médico tinha-a mandado àsUrgências para receber uma injecção contra o tétano. Era uma coisasegura. Todavia, o toxóide do tétano só ajuda o corpo a construirimunidade; além disso, actua lentamente. Pareceu-me sensatocomplementar a injecção antitétano com um anticorpo paraprotecção temporária, especialmente numa ferida já com oito horas.

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Tínhamos acabado de receber uma nova remessa de um soro deanticorpos humanos muito bom, chamado Hypertet, mas eu nãopodia dá-lo a Mrs. Josephs sem primeiro telefonar ao seu médico,um tal Dr. Sung, que era muito conhecido pela sua língua afiada emedicina antiquada. Marquei o número dele com preocupação.- Dr. Sung, fala o Dr. Peters das Urgências. Tenho aqui Mrs.Josephs, e vou dar-lhe a injecção antitetânica, mas acho que eladeveria tomar qualquer coisa que a aguentasse até a injecção fazer138efeito.- Sim, tem razão, Peters. Dê-lhe uma dose de antitoxina decavalo, faça isso depressa, se faz favor. Não quero que ela espere.

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- Temos aqui uma globulina humana de imunização contra otétano, muito boa, chamada Hypertet, Dr. Sung. Não seria melhorque soro de cavalo? É muito mais rápida e além disso...- Não discuta comigo, Peters. o senhor não sabe tudo. Se euquisesse o Hypertet, tinha-o pedido.- Mas, Dr, Sung, se eu usar soro de cavalo, há uma hipótese dealergia, e terei de lhe fazer um teste cutâneo. Tudo isso leva tempo.- Então, para que diabo lhe pagam? Despache-se com isso.Ouvi o som agudo do telefone ao desligar-se. Bom, que selixasse.O velho Dr. Sung praticava uma má medicina e um dia havia dese dar mal.Para que havia eu de afligir-me? Era uma pena o Hypertet, no

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entanto, tão bem embalado e pronto para a injecção. Apostava dezcontra um em como o desgraçado nunca tinha ouvido falar dele. Épara isso que nos pagam, pensei, elaborando sombriamente umalonga série de instruçÕes para testes de sensibilidade, na partelateral da garrafa de soro de cavalo, enquanto quinze pessoasaguardavam lá fora.Mas não fui muito longe com o soro de cavalo. Uma sirene, àdistância, trouxe-me de novo o antigo receio. Para meu horror eincredulidade, três ambulâncias pararam simultaneamente diante dohospital e os ajudantes saltaram e começaram a descarregarpedaços de pessoas, todas vítimas do mesmo acidente de viação,

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colocando-os nas salas onde outras pessoasjá estavam à espera.Um corpo esmagado já teria sido aterrorizador; cinco eram umespectáculo simplesmente esmagador. Enquanto as enfermeirasligavam para cima, a pedir ajuda ao pessoal da casa, tentei fazerqualquer coisa, fosse o que fosse, antes que a situação meimobilizasse. Um dos pacientes era um rapaz com um lado da cabeçaesmagado. A sua respiração era extremamente estertorosa; por139vezes cessava completamente, sendo retomada segundos depois.Comecei a preparar uma IV, de que o rapaz, provavelmente, nãonecessitaria de imediato. Mas havia de vir a precisar dela, e

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mantive-me ocupado a prepará-la e a extrair algum sangue para verqual era o tipo e fazer comparaçÕes. Seguiu-se a inserção de umtubo endotraqueal, uma decisão automática. Normalmente era umprocesso em que eu tinha dificuldades, mas desta vez foi fácil,porque o maxilar inferior estava tão partido que foi possível afastálo.Depois de lhe fazer a sucção da boca e da garganta, retirandopedaços de osso e bastante sangue, introduzi o tubo para que elepudesse respirar. Surpreendentemente, a pressão sanguínea estavanormal. Gostaria de ficar junto do rapaz, embora nada mais pudesse

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fazer por ele, de momento, mas os outros pacientes gritavam porajuda - e, de qualquer forma, já vinha a caminho um neurocirurgião.Mais tarde vim a saber que o rapaz tinha morrido cinco minutosdepois da operação. A ideia incomodou-me durante algum tempo,até que raciocinei que ele já se encontrava praticamente mortoquando chegara às minhas mãos.Agora, ao fim de todos estes meses, tinha-se tornado mais fácilnão me deixar prender emocionalmente por um determinado caso.Outros problemas me esperavam, exigindo a minha atenção. Asenhora do quarto do lado, - por exemplo - também estava em

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estado grave. Uma enorme área de pele e cabelo, que ia desde aorelha esquerda até ao cimo da cabeça, podia ser afastada,deixando ver uma rede de fracturas cranianas múltiplas, como umovo cozido rachado, pronto a ser descascado. A pupila do olhoesquerdo estava largamente dilatada. Por onde principiar? Enquantoeu olhava para o crânio, ela vomitou subitamente uns cinquentacentilitros de sangue, que saltou da mesa para cima das minhascalças e dos meus sapatos. Dei graças a Deus pela IV, que davacerta orientação aos meus pensamentos caóticos. Apressei-me aprepará-la, enviando ao mesmo tempo uma amostra de sangue paraverificação do tipo e comparação, a fim de se conseguir sangue para

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a transfusão. Como ela tinha vomitado sangue, pensei que iríamos140precisar de oito unidades, em vez das quatro habituais, embora asua pressão sanguínea fosse invulgarmente forte. A questão de umapressão sanguínea aceitável, mesmo normal, perante uma nítidafalha corporal tinha começado a preocupar-me. Todos os livroscitavam a pressão sanguínea como um primeiro e seguro indicativoda função sistémica geral, mas a maior parte das minhasexperiências pareciam contrariar essa regra. De qualquer forma,apalpei o abdómen da mulher, tentando descobrir de onde poderiater vindo todo aquele sangue.

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Nessa altura, uma enfermeira chamou-me urgentemente a outroquarto, onde um homem estava a respirar com dificuldade, e, achavaela, convulsivamente. Aparentemente atingido no estômago, era umdos condutores, imaginei eu. A enfermeira entregou-me amobarbitalpara deter as convulsÕes, mas, antes que lho desse, apercebi-mede que, em vez de convulsÕes, ele estava a sofrer das chamadasânsias, vómitos em seco. Conseguiu vomitar um pouco, não sangue,mas um álcool de cheiro azedo, que conseguiu ir também parar aosmeus sapatos. Quando o Dr. Sung me telefonou, no meio de toda

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esta aflição, para saber se eu já tinha dado o soro de cavalo, sentimetentado a descarregar sobre ele, mas limitei-me a dizer que não,que estávamos ocupados.No mesmo acidente tinha estado envolvido um motociclista.Encontrava-se praticamente esfolado vivo. Tinha abrasÕes por todoo corpo, excepto na cabeça. Era um dos poucos que usavamcapacete. Cada fim-de-semana tinha a sua quota de motociclistasmortos. o mais horrível era aparecerem em bocados - casos tãograves, na verdade, que já corria uma piada no hospital acerca domotociclista que tinha chegado ao hospital em várias ambulâncias.No caso deste, equimoses no corpo todo, fracturas e abrasÕes eram

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a melhor descrição. Se pudessem falar, aqueles fulanos insistiriamveementemente em que uma motocicleta não era muito perigosa,porque se ficava livre quando havia um acidente. Mas ser cuspido anoventa e tal quilómetros por hora, em cima de cimento, sobre acabeça, e depois ser atropelado, não nos deixava muito que fazer.Este não se encontrava apenas coberto de abrasÕes; a perna141esquerda estava também esmagada. Os dois ossos saíam, numângulo de quarenta e cinco graus, e o pé estava preso apenas poralguns fios de tendÕes. As calças, as meias, pedaços do ténis e

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asfalto haviam sido esmagados dentro da ferida.Surpreendentemente, estava consciente, embora um poucoconfuso.- Sente dores?- Não, não sinto dores. Mas tenho qualquer coisa no olhodireito.- Santo Deus, naquele estado e preocupado por causa de umpouco de cinza no olho. Limpei-o. A pressão sanguínea estavanormal, o pulso um pouco elevado, a 120. Comecei a preparar umaIV e enviei uma amostra de sangue para cima, pedindoarbitrariamente cinco unidades de sangue disponíveis.Aparentemente, ele não precisava de sangue de momento, mas eraóbvio que teria de ser sujeito a cirurgia óssea. Com um hemostático,

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tentei deter um pouco do sangue que escorria dos músculos daperna, que estavam à vista. Espantou-me vê-lo sangrar tão pouco.Voltei para junto da senhora que tinha vomitado sangue e fiqueialiviado por constatar que a sua pressão sanguínea se estava aaguentar. Talvez ela tivesse apenas engolido todo aquele sangue;afinal, estava a sangrar de ambas as narinas. Tinham-se passadovinte minutos desde a chegada das ambulâncias e já ali seencontravam outros membros do pessoal médico, ajudando aestabilizar os pacientes. Mandei vir o aparelho de raios-X e fizalgumas chapas de cabeças, tóraxes e alguns ossos. Não hápalavras que possam descrever a confusão que ali se verificava. Era

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o caos total, com gripes e diarreias e bebés e asmáticos misturadoscom ossos partidos e cabeças esmagadas. E as coisas nãomelhoraram muito quando os assistentes chegaram e começaram aditar ordens para todos os lados. o bloco operatório, já alertado,começou finalmente a absorver os pacientes do acidente de viação.o Dr. Sung voltou a telefonar, ameaçando apresentar queixa aohospital se eu não tratasse imediatamente do soro de cavalo.142Naquela altura estava-me nas tintas para o soro de cavalo, de modoque lhe desliguei o telefone. Isto fez que ele aparecesse por lá,furioso, cerca de vinte minutos depois, pronto a insultar-me,

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precisamente na altura em que transportávamos para a sala deoperaçÕes o último dos pacientes em estado grave. Fiquei ali, depé, coberto de uma mistura de sangue e de vómito, ouvindovagamente a sua peroração. Aquele tarado era capaz de me meterem sarilhos, de modo que nada mais disse, excepto para me referirnovamente ao Hypertet, explicando como teria sido muito maisrápido. Isto ainda o fez ficar mais furioso, e foi-se embora, levandoconsigo o seu paciente. É evidente que apareceu uma reprimendapor escrito na minha caixa, alguns dias depois. Vão-se lá escolher asprioridades!

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Por volta das onze horas, o ciclone já tinha passado, deixando ahabitual esteira de pacientes com queixas menores, num númerobastante maior que o habitual, por causa do que se tinha passadoantes. Havia-os por toda a parte - no interior, no exterior, sentadosna plataforma da ambulância, no chão, nas cadeiras. Comecei aandar de uma sala para outra, mal escutando o que me diziam,actuando como uma máquina fatigada. Um homem tinha caído juntoda piscina, durante uma festa, partindo o nariz na prancha, ao cair,e cortando o polegar num copo de gim com água tónica. o narizestava direito, de modo que o deixei ficar. Suturei rapidamente a

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laceração, depois de ter contado a triste história ao seu médicoparticular. Ele também parecia bêbado.Era, na verdade, a grande noite dos bêbados; na sua maiorparte sofriam de pequenos cortes e equimoses, ou de ressacasprematuras, com náuseas e vómitos. E as crianças aindacontinuavam a aparecer, muito depois da hora de deitar, com assuas diarreias e narizes a escorrer e as suas febres. Apareceu-me umcom uma temperatura de cerca de 40 graus, mas eu não conseguiaencontrar-lhe algo errado. Isto incomodou-me bastante. Como serhumano, sente-se uma vontade irresistível de tratar; é isso que seespera de nós. Os pais clamam quase invariavelmente por143

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penicilina, mas eu tinha o bom senso suficiente para não a receitar,na maior parte dos casos. Tratar um sintoma como a febre sem umdiagnóstico seguro é má medicina; e, no entanto, eu apenas faziauma observação bastante limitada dos ouvidos ou das gargantasdaqueles pequenos berradores. Algumas vezes tratava-os, outrasvezes não; actuava sempre com base em suposiçÕes malfundamentadas.Era um sábado à noite típico nas Urgências. A multidão começoua rarear por volta da 1 hora da manhã. A partir daquele momentocomeçaríamos a ver menos daquelas coisas que afastavam aspessoas ios seus aparelhos de televisão durante a noite, para

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procurar a santidade do banco do hospital - coisas como gripes,diarreia e ferimentos menores. Dentro de cerca de uma horacomeçariam a aparecer os problemas que as impediam de dormir.Os mesmos problemas que tinham ignorado durante todo o dia e noprincípio da noite impedi-los-iam, naturalmente, de dormir,obrigando-os a aparecer, a meio da noite, perante o astuto ecompreensivo interno. Como pruridos nas coxas. Numa outra noite deserviço, tinha adormecido por volta das 5 da manhã e sido acordadoporque um doente tinha pruridos nas coxas.Pouco depois da uma hora, parou à porta uma ambulância semsírene e os tripulantes descarregaram uma rapariga de aspecto

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tranquilo, com vinte e poucos anos, que estava mergulhada numsono profundo, próximo do coma. Ingestão de comprimidos. ohabitual, como constatei: doze aspirinas, dois Seconal, três Libriume uma mão cheia de comprimidos de vitaminas. Todos aquelesmedicamentos, com excepção, talvez, das vitaminas, podiam serperigosos - especialmente o Seconal, um soporífero - mas erapreciso tomar muitos para o caso ser realmente grave. Casocontrário, era apenas um gesto, um infantil pedido de atençãodentro do tecido social da vida do indivíduo; o caso habitual deingestão de comprimidos é o da jovem perdida no mundo irreal da

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revista Romances da Vida. Por vezes interessava-me e sentia umacerta simpatia, mas não no estado em que me encontrava; sentiametão cansado que qualquer sentimento de empatia se tinha144dissolvido, havia muito tempo, em irritação. Como é que aquelarapariga estúpida tinha podido fazer o seu número àquela hora damadrugada num sábado à noite? Por que não poderia dar o seupequeno espectáculo numa terça-feira de manhã?Como sempre acontece, vários membros da família e algunsamigos chegaram pouco depois da ambulância. Ficaram na sala deespera, a conversar e a fumar nervosamente. Olhei para a rapariga

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que dormia sobre a mesa. Depois, agarrei-a pelo queixo com umamão, sacudi-lhe a cabeça e chamei-a pelo seu primeiro nome, Carol.Os olhos abriram-se lentamente, de modo que se visse apenasmetade das pupilas, e choramingou "Tommy"."Tommy, uma merda." A irritação transformou-se em ira, quandoa minha exaustão e a minha hostilidade sentiram necessidade de seexpressar. Pedi um pouco de ipecacuanha à enfermeira e decidifazer-lhe uma lavagem ao estômago. Era um processo difícil tantopara mim como para ela, mas eu queria que ela não se esquecessemais das Urgências. Além disso, sabia que, quando telefonasse ao

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seu médico particular, ele me perguntaria o que eu tinha extraído doestômago da rapariga.Um tubo gástrico tem cerca de um centímetro e meio dediâmetro.Depois de subir a maca para ela ficar sentada, enfiei-lhe umpela garganta, através da narina esquerda. Os seus olhos abriramsesubitamente, por completo, enquanto vomitava e lutava para selibertar das enfermeiras que a agarravam. Vomitou um pouco emvolta do tubo, enquanto eu o introduzia até ao estômago, e, emseguida, todo o conteúdo do estômago foi expulso, incluindo umSeconal ainda não dissolvido e uma porção de uma das cápsulas

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deLibrium. Quando retirei o tubo, veio com ele o que ainda restava.Alguns minutos depois, a ipecacuanha começou a fazer efeito,obrigando-a a vomitar repetidas vezes, apesar dejá ter o estômagovazio. Por essa altura, já Tominy se tinha ido juntar aos outros nasala de espera. Talvez ele também quisesse um pouco deipecacuanha, de modo a poder desempenhar um papel completo145naquele acontecimento melodramático.Depois de mandar para cima uma amostra de sangue, para verse a aspirina tinha alterado a acidez do sangue, e de concluir quenão tinha, telefonei ao médico de Carol. Disse-lhe o que ela tinha

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tomado e que, à parte o facto de estar sonolenta, estava bemnaquele momento, devidamente tranquilizada.- Que é que lhe extraiu, quando fez a lavagem?- Um Seconal, pedaços de Librium e pouco mais.- óptimo, Peters, bom trabalho. Mande-a para casa e diga aopai que me telefone na segunda-feira.Pouco depois, Carol foi levada para casa, em toda a sua glória,coberta de vómito. Nunca pus em questão a minha dura atitude paracom ela, ao fim de dezoito horas nas Urgências, e, embora não mesinta orgulhoso dela, as coisas passaram-se assim mesmo.Por volta da meia-noite entrou um novo turno de enfermeiras.Quando chegaram as duas horas, eu, estava praticamente a cair,

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mas as novas enfermeiras eram um grupo enérgico e animado,revelando uma notável agilidade e alegria para aquela hora danoite. o contraste fez-me sentir ainda pior, como uma sombra. E apaciente seguinte não veio ajudar muito. A sua ficha dizia"Deprimida, dificuldades respiratórias".Quando entrei no quarto, o meu desalento foi imediatamenteconfirmado pela visão de uma senhora de quarenta e bastantesanos, que vestia um negligé azul-claro. Estava deitada na cama, comuma mão a comprimir dramaticamente o peito amplo. Duas outrassenhoras ergueram-se histericamente para nos dizer, a mim e àenfermeira, que a sua amiga não conseguia respirar. Eu conseguia

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ver à distância que a senhora estava a respirar perfeitamente.Oh, Doutor - gemeu a senhora, pronunciando a palavra com umprofundo sotaque sulista, - Mal consigo respirar. Tem de ajudar-me.Cheirava a martinis azedos. Uma das amigas histéricasapresentou-me um frasco de remédio. Olhei para ele. Seconal.- Oh, esses comprimidinhos encarnados. Tomei dois. Fiz mal? - Asenhora sulista fitou-me com as pálpebras a tremelicar; estava adivertir-se imenso às duas da madrugada. Senti um forte impulso de146a correr a pontapés no traseiro neurótico. Mas isso seriaumaautêntica bomba, talvez até um suicídio para a minha carreira.Apesar do meu desencanto perante o sistema, ainda não tinha

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chegado a esse ponto.- Ouve alguma coisa estranha, Doutor? - Eu estava a esforçar-mepor lhe auscultar o peito, que soava perfeitamente normal. - Oh, vaimedir-me a temperatura e a pressão - disse ela alegremente. -Sinto-me como se fosse desmaiar. Não consigo compreender o queestá a passar-se comigo. - Coloquei-lhe no braço a manga paramedir a tensão e enfiei-lhe o termómetro na boca, silenciando-a, porfim. Aproveitei a oportunidade para me afastar dela por algunsminutos e telefonei ao médico que cobria o hotel onde ela estavahospedada. Ele disse que lhe desse Librium.Regressando à presença dela, esforcei-me por ser delicado. -

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Minha senhora, o médico do hotel sugeriu que lhe desse Librium.- Librium, Doutor? São aqueles comprimidinhos verdes e pretos?Bom, sinto muito, mas sou alérgica a esses. Fazem-me gases e àsvezes - disse ela, sentando-se na cama, muito animada -, às vezessão tão fortes que as hemorróidas saem para fora, - Dizendo isto,lançou-se numa extensa conversa sobre os comprimidos que tomavae os seus terríveis efeitos sobre o seu tracto gastrointestinalinferior. A meio do recital, um desempenho digno de BlancheDuBois, interrompi-a dizendo que talvez a Thorazina cor de laranjalhe fizesse o mesmo efeito.- Thorazina cor de laranja! - Quase gritou de prazer. - Esses

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nunca tomei! Nem sei como agradecer-lhe, Doutor. Foi tão simpático.- E lá se foi, conversando alegremente com as amigas sobre asmaravilhas da Medicina.Apareceu-me então uma das enfermeiras de uma enfermariaparticular, coxeando ligeiramente. Tinha caído numa escada,aparentemente sem efeitos graves, mas gostaria que eu oconfirmasse. Concordei. Chamava-se Karen Christie e a sua ancaparecia perfeitamente normal, mas sugeri-lhe que fizesse umaradiografia pélvica, de qualquer forma, para ter a certeza absoluta.147Os hospitais são compreensivelmente sensíveis a qualquer ameaça

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de reclamaçÕes por danos pessoais por parte do pessoal. Quando aradiografia de Miss Christie apareceu, quinze minutos depois,coloquei-a sobre o visor iluminado, entre diversos crânios e ossospartidos. Os meus olhos estavam um pouco enevoados, enquantopercorria o fémur, o acetábulo, o ílio, o sacro, etc. Tudo estavanormal. Quase não reparei na espiral branca ao centro e, quandodei por ela, não consegui compreender como o técnico de raios-Xtinha conseguido introduzir aquele estranho artefacto na imagem.Depois fez-se luz na minha mente ensonada, ao compreender que

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estava a olhar para um dispositivo uterino anticonccepcional, queteve a dupla utilidade de tornar Miss Christie num caso muito maisinteressante e de animar por uns momentos a minha disposição.Infelizmente o mauhumor regressou com o doente seguinte.Estava sentado a soluçar baixinho por se ter ferido no nariz quandoo carro que guiava tinha batido numa boca de incêndio. Semqualquer encorajamento da minha parte, começou a contar-meloquazmente a história inteira. Ia a conduzir muito descansadoquando tinha sido engatado por uma lésbica, que afinal estava tãoaborrecida com a sua companheira que acabou por fazer que fossem

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bater na boca de incêndio. Não lhe perguntei o que tinhaacontecido à lésbica, dando-me por satisfeito por não a ter alitambém. Pensei sombriamente que aquele era mesmo o remateperfeito para a noite, sob vários aspectos. Aturá-lo era quasesuperior às minhas forças, no estado de nula compaixão em que meencontrava. Eu só estava preparado para tratar problemas médicossimples - diagnóstico e cura. Aquele tipo necessitava de algo mais.Recusou-se a qualquer coisa para além de ficar ali sentado, a chorare a chamar pelo Tio Henry. Quando o Tio Henry chegou, nem mesmoele conseguiu persuadi-lo de que uma radiografia não matavaninguém. Finalmente, depois de o Tio Henry ter prometido ficar

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sempre ao seu lado, lá foram os dois para a sala de raios-X. Achapa revelou um nariz partido, e o médico particular dele solicitou,por telefone, a sua admissão no hospital. Pouco depois chegou um148polícia com a história verdadeira. Tinha-se tratado de uma simplescena de pugilato num dos bares locais de homossexuais; a lésbicaera imaginária.Novamente à distância, captei o som fatal de uma sirene,esperando que não parasse ali. Mas a ambulância travou noestacionamento e recuou rapidamente para a plataforma. Eu já nãoestava em condiçÕes para o que se me deparou, os destroçoshumanos de mais um acidente rodoviário. As duas raparigas

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deitadas nas macas tinham obviamente atravessado o pára-brisas.Estavam cobertas de sangue da cintura para cima, com ligaduras deprimeiros-socorros na cabeça e na cara.Depois das raparigas, dois homens saíram da ambulância peloseu próprio pé, mostrando apenas ligeiras escoriaçÕes.Quando retirei as ligaduras da face de uma das raparigas,brotou um geyser de sangue que me atingiu no rosto e no peito. Umcaso evidente de hemorragia arterial, pensei, voltando a colocar aligadura. Enfiei umas luvas esterilizadas e uma máscara e depoisarranquei a ligadura de repente, comprimindo imediatamente aferida com um pedaço de gaze e passando com ela sobre uma

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laceração aberta que descia da testa, entre os olhos, quase até àboca. Saltavam pequenos jactos de sangue em várias direcçÕes.Com grande dificuldade, consegui colocar pequenos hemostáticossobre os golpes, mas, antes que conseguisse ligá-los, a raparigaarrancou-os. Estava embriagada. Durante um minuto, mais ou menos,travámos uma luta cruel e horrível, com ela a retirar os hemostáticostão depressa quanto eu os colocava. Consegui ganhar por umaquestão de persistência, ligando finalmente todos os vasos quesangravam, mas deixando, sem dúvida, trabalho suficiente paraenriquecer um cirurgião plástico. Entretanto, tinha chegado um

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residente que estava a tratar da outra rapariga. Depois descobrimosque as duas raparigas eram filhas de militares e, uma vez que a suasituação era estável - o que queria dizer que não morreriam nodecurso da hora seguinte - mandámo-las para um hospital militar.Isso deixou-me com os dois homens, que estavam relativamente emboa forma. Limpei-lhes as abrasÕes e suturei mecanicamente149algumas laceraçÕes na cabeça, sem pronunciar uma palavra.Por volta das três e meia só restava um paciente para observar,um bebé de dezasseis meses. Eu já me arrastava praticamente,

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nessa altura, e não me recordo bem do caso, exceptuando o factode os pais o terem levado ali porque a criança não andava a comerbem nas últimas semanas. Pensando não ter entendido bem, pedilhesdiversas vezes que repetissem.Entretanto, a criança olhava-nos, sorridente e alerta. Com umpouco de sarcasmo, perguntei-lhes se não achavam que se estavama comportar de uma maneira um pouco estranha. Estranha porquê?,perguntaram eles; estavam preocupados. Invadiu-me uma raiva lentaenquanto examinava silenciosamente o bebé perfeitamente normal,e depois dirigi-me ao telefone e telefonei para o médico particular

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deles, que ficou igualmente irritado por ter sido acordado. Issotambém era absurdo. o médico estava furioso porque o seu pacienteme tinha vindo incomodar às 3:30 da manhã. Acabei por os entregaràs enfermeiras, que os mandaram todos para casa. Não conseguivoltar a falar com eles.Depois da partida da criança, fui para a entrada das Urgências,olhar para a escuridão silenciosa. Sentía-me enjoado e exausto, esabia, por cruel experiência, que acordaria muito pior para atendero inevitável paciente seguinte, se dormisse uns quinze ou vinteminutos apenas. Todas as enfermeiras estavam ocupadas com

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pequenas tarefas, excepto uma, que estava a tomar café. Senti-meestranhamente irreal, como se os meus pés não estivessemfirmemente assentes no chão, e absolutamente solitário. Até omedo tinha desaparecido, banido pelo cansaço. Se, naquelemomento, surgisse algum caso grave, apenas me esforçaria por omanter vivo até chegar um médico. Bom, de qualquer modo, sempreseria útil. Evidentemente, continuaria a fazer milagres com osbêbados e os deprimidos e as crianças que não andavam a comermuito bem - a minha verdadeira clientela.Vinha de algures ali próximo, e sempre a aproximar-se, o som da150

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buzina de um Volkswagen, perturbando a enganadora tranquilidadedas Urgências. o som tornava-se cada vez mais alto e começou arecordar-me um personagem dos desenhos animados chamado Papa-Léguas - uma absurda associação, de certo modo adequada ao meuestado mental. Bip-bip só podia ser o Papa-Léguas. Trinta segundosdepois, a minha fantasia era substituída por um VW que encostou,ainda a apitar, junte à rampa. Um homem saltou de dentro dele,gritando que a mulher estava a ter um filho no banco de trás. Depoisde pedir a uma enfermeira que me trouxesse o estojo, corri para o

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VW e abri a porta lateral. Lá estava, realmente, no banco de trás,uma mulher deitada de lado, obviamente nas últimas fases doparto. A luz era fraca, obscurecendo a área do parto; tudo teria deser feito à base do tacto. Quando ela iniciou uma nova contracção,senti a cabeça do bebé mesmo no perineu. As cuecas da mulherestavam no caminho, de modo que as cortei com uma tesoura deligaduras, e, enquanto ela gemia devido à contracção, conservei amão na cabeça do bebé, para evitar que ele saltasse. Depois de aconvencer a deitar-se de costas, empurrei os bancos da frente econsegui fixar uma das pernas dela na janela de trás e a outra no

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assento do condutor. As minhas mãos moviam-se agora por reflexo,deixando a mente livre para pensament os absurdos, tais comorecordar uma velha piada - o que é mais dificil que meter umaelefanta grávida num Volkswagen? Engravidar a elefanta dentro doVolkswagen. Terminada a contracção, comecei a puxar lentamente acabeça do bebé, fi-la rodar, puxando-a para baixo para fazer sair umombro e depois o outro ombro e, de súbito, tinha nas mãos umamassa escorregadia. Quase a deixei cair, ao tentar sair do carro decostas. Graças a Deus, nessa altura o bebé começou a chorar. Nãosabendo o que fazer durante tudo isto, o pai estava a comportar-se

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de uma maneira estranha; interrompeu a sua audível angústia emrelação aos estofos, que, naquele momento, estavam uma autênticadesgraça, para perguntar se era menino ou menina. No escuro, nãosoube dizer-lho. Não deve ser o primeiro filho deste tipo, pensei.Queria fazer a sucção da boca do recém-nascido com a seringa depêra, mas o bebé estava demasiadamente escorregadio para o151segurar só com uma mão. Por isso entreguei-o a uma dasenfermeiras, com instruçÕes explícitas para o conservar sempre aonível da mãe, e, depois de aplicar algumas pinças, cortei o cordão,Nessa altura, toda a gente - ajudantes, enfermeiras e o pai -

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ajudaram a retirar a mãe do carro. A placenta saiu sem dificuldadenas Urgências. Fiquei admirado por não haver laceraçÕes. Toda agente desapareceu no interior da área da obstetrícia.O bebé tinha salvo a noite. Talvez lhe dessem o meu nome. omais provável era chamarem-lhe V. W.Quase já nem me importei de tratar do bêbado imundo quetinha aparecido durante a excitação do parto. Tinha uma laceraçãono couro cabeludo, que cosi sem anestesia, enquanto ele meinsultava. Na verdade começou a insultar-me e a querer bater-melogo que eu apareci. Estava tão bêbado que nada sentia. Após oúltimo ponto, fui para a sala dos médicos e deixei-me cair na cama,

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adormecendo imediatamente,Eram 4 e 45; às 5 e 10, uma enfermeira bateu à porta e veiodizer-me que havia uma doente para ver. A princípio fiqueidesorientado, literalmente incapaz de me recordar do local onde meencontrava e apenas consciente do martelar do meu coração.Durante os vinte e cinco minutos que tinham decorrido, o sono, agrande cura, tinha-me incapacitado, deixando-me atordoado eenfraquecido, com cintilaçÕes na periferia do meu campo visual.Estas passaram quando comecei a mexer-me. Mesmo assim, o meuolho esquerdo recusou-se a focar, e, quando abri a porta, a luz docorredor pareceu-me de mil volts. Sentia-me tão mal quanto era

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possível ainda em funcionamento.A paciente, onde estava a paciente? A ficha que eu tinha namão dizia "Dor abdominal, doze horas". Santo Deus! Isso queria dizerque eu precisaria de registar a história completa e provavelmenteesperar pelos resultados do laboratório. Entrei na sala e olhei paraela. Cerca de 14 anos, cabelo macio e sedoso à altura dos ombros,magra, com um nariz grande. A mãe estava sentada a um canto. Alista de perguntas para ocaso de uma possível apendicite éextensa, e comecei a percorrê-la. Quando começou a sentir a dor?152

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Quando a sentiu pela primeira vez? A dor deslocou-se? Parecia-secom as cólicas de indigestão? Ia e vinha ou mantinha-se?Entretanto, apalpei o abdômen, para ver se havia sensibilidade,através das bermudas, um trajo razoável para o clima do Havai -mas, por baixo delas, havia qualquer coisa estranha; o nítido recortede uma cinta? Que disparate. Já comeu hoje alguma coisa? Estanoite? Sentiu vómitos? o abdómen não se apresentava duro. Nãopodia estar mesmo mais macio, pois, ao apalpá-lo, não provoqueiqualquer desconforto. Esvaziou os intestinos? Tudo normal? Tirei oestetoscópio. A sua urina tem sido normal? Coloquei o estetoscópio

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nos ouvidos e pousei a campânula sobre o abdômen, filtrando aspalavras da paciente através dos tampÕes. Já teve doresabdominais antes? Teve alguma úlcera? Por qualquer motivo, deixeipara o fim as perguntas sobre o ciclo menstrual. Era uma hipóteseremota. Quando foi o seu último período? A resposta soou um poucoapologética:- Sou um rapaz.- Olhei para ela - para ele - por um momento, tentando fazerfuncionara minha mente aturdida. Cabelo longo e sedoso, camisasolta de veludo roxo. Não, era uma blusa. Cinta! Metendo a mão porbaixo da cinta, puxei tudo aquilo, quase o fazendo erguer da

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marquesa. Não havia dúvidas, era um pénis. A mãe limitou-se aafastar o olhar. Eu não estava preparado para estas inversÕessúbitas. Pareceu-me uma partida terrível e cruel. Estava eu ali aesforçar-me por chegar a um complicado diagnóstico intra-abdominale tinha-me enganado até no sexo. De qualquer forma, ele não sofriade apendicite ou de qualquer doença terrivelmente grave. Era,provavelmente, um simples caso de cólicas abdominais. Pensei paramim mesmo que, se lhe dissesse que se tratava de cólicasmenstruais, ele ficaria todo satisfeito.Como aprendo lentamente, voltei a adormecer de imediato. Zás!

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A porta abriu-se e uma enfermeira, encantada, informou-me de quetinha um doente. Ocorreu o mesmo processo, de novo, a mesmaagonizante punição de me levantar, piscar os olhos e começar153gradualmente a desanuviar o cérebro, depois de sair do quarto. Eraum petisco, uma senhora de Samoa que arrastava consigo a mãedoente, que não sabia uma palavra de inglês. Com tantas línguasem uso nas ilhas, estávamos habituados a trabalhar através deintérpretes, mas, neste caso, o inglês da filha nem sequer erainteligível. Além disso, as suas queixas eram tão numerosas que

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parecia sofrer de todos os órgãos. Doía-lhe aqui, doía-lhe ali, tinhadores de cabeça, sentia-se fraca, não conseguia dormir, em suma,sentia-se muito em baixo. Tal e qual como eu.Muito cuidadosamente, perguntei à filha se a mãe sentiaqualquer ardor quando urinava e fui recompensado por umaexpressão de total incompreensão. Dando uma volta à frase,perguntei-lhe se a mãe sentia dores quando fazia chi-chi, pi-pi,ummm... acabaram-se-me os sinónimos... quando mijava. Nessaaltura ela pareceu entender. A resposta foi fantástica, fez-me sentirvontade de desistir imediatamente da medicina. Não sabia. Não

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existe na língua inglesa uma palavra que possa descrever a minhafrustração. Disse-lhe que, pelo amor de Deus, lho perguntasse,então. E ela perguntou-lhe. Sim. E deste modo foram sendo feitas asperguntas. Lentamente, e a resposta era sempre sim. Ela sentiaardor ao urinar, urinava frequentemente, tinha náuseas, vómitos,corrimento vaginal, diarreia, obstipação, dores no peito, tosse,dores de cabeça... Dado que a mãe insistia especialmente na dor nopeito, tentei fazer-lhe um electrocardiograma, mas o aparelhoavariou-se. Quando as aves começaram a cantar lá fora, pareceu-meque me queriam atacar com o seu canto; mas, evidentemente,

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estavam a apenas a anunciar a chegada do dia. Eu estava tãocansado que já nem me interessava pela velha ou fosse pelo quefosse. Na firme convicção de que ela não morreria dentro daspróximas horas, dei-lhe Gelusil, de que gostou imenso, e marqueilheuma consulta na clínica.Uma gloriosa manhã já tinha nascidoquando ela se foi embora.Antes que eu pudesse voltar a desaparecer na sala dos médicos,chegaram simultaneamente um bebé e um velho. A mãe tinha154deixado cair a criança sobre um braço, que estava um poucoinchado, e o homem tinha feito uma distensão nas costas algunsdias antes. Com o bebé e o velho nos raios-X, adormeci numa

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cadeirajunto do balcão, mesmo no centro das Urgências. Quando omeu substituto chegou, deixou-me continuar a dormir. Acordeiquarenta e cinco minutos depois, sentindo-me tão mal comoanteriormente, mas sabendo que, desta vez, poderia ir para a minhacama, Onde estão agora as câmaras de televisão?, perguntei a mimmesmo, arrastando-me para o quarto, como uma pintura móvel deJackson Pollock, feita de muco, vómito e sangue secos. Foi umasensação estranha e maravilhosa, despir as roupas e deslizar entreos lençóis frescos e levemente ásperos.Começou assim a minha folga de vinte e quatro horas. Ao fim de

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mais de um mês no banco do hospital, sentia-me um farrapo, mentale fisicamente. Voltei a ficar lúcido por volta da hora do almoço,altura em que fui acordado por uma combinação do canto das aves,sol e fome.Fazer a barba e tomar um duche fizeram-me sentir quase humanoe, enquanto me dirigia ao almoço, sob o quente sol do meio-dia,regressei ao mundo real. Após o almoço, sucumbi a algo imperioso,dentro de mim, que me levava a afastar-me do hospital. Dormir umpouco mais teria sido a decisão mais prudente, mas tinhadescoberto, por experiência própria, que, por mais cansado que

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estivesse, o ruído geral da tarde em volta das minhas instalaçÕesme mantinha acordado. Por isso enfiei os calçÕes de banho, meti aprancha de surf no carro, atirei alguns livros de Medicina para obanco de trás e parti para a praia.Foi um alívio afastar-me dali e deixar que o tumulto de cores emovimento me invadisse a mente. Parecia haver gente por toda aparte, todos estranhamen te inteiros e saudáveis. No hospital,começa a ganhar-se a sensação de que toda agente do mundo sofrede diarreia ou de dores no peito. Mas eles ali estavam, ocupados efelizes, caminhando e misturando o riso com a actividade física, osbronzeadores e os biquinis de cores garridas. Aquelas pessoas

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pareciam tão normais. Com os meus sombrios pensamentos, eu era,155de certo modo, um estranho, não pertencia ali. Demasiado fatigadopara nadar ou jogar volley, encostei-me à prancha de surf e deixeique a cena se desenrolasse diante de mim.Não tentei falar com pessoa alguma e ninguém se aproximou demim, o que foi bom. Estava tão dominado pelo banco que teriaafastado rapidamente qualquer pessoa, no seu juízo perfeito, comas minhas conversas sobre sangue e ossos partidos. Mas não seriaesse o meu verdadeiro tema; o meu verdadeiro tema seria eu - aminha raiva, a minha exaustão e o meu medo. Deixa-te disso,

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pensei, são palavras terríveis e dramáticas; pára de te embalar naautocompaixão. É a única coisa que tens feito ultimamente, sentirpena de ti mesmo. É uma coisa muito chata, ser-se interno, não é?Altera-a, se puderes, mas pára de ter pena de ti mesmo. Isso nãoajuda seja quem for, e muito menos a ti. Só gostaria, no entanto,que a nossa civilização nos aliviasse de uma parte do peso,reconhecendo que uma bata branca e um estetoscópio não conferemsabedoria. E muito menos nobreza instantânea.Bom, que se lixasse tudo. Ia dormir um pouco.Adormeci ali, ao sol, sozinho, no meio de toda aquela alegria edaqueles risos. Na verdade, isto acontecia todas as tardes que

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tinha de folga durante o período de serviço ao banco. Dormir demanhã, comer, dormir à tarde, comer. Nada fazer durante um bocadoe depois dormir, ao acordar, constatar que o ciclo de vinte e quatrohoras recomeçava, e perguntar a mim mesmo para onde tinha ido otempo. Quando acordei, a tarde chegava ao fim; havia muito menosgente e o sol estava menos forte. Ninguém me incomodou econtinuei ali sentado a olhar para o sol e para a água. Era comoolhar para uma fogueira. A sua actividade parecia-me uma desculpapara a minha imobilidade e pensamentos dispersos. Não estavapropriamente inconsciente; tudo o que se passava à minha volta

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penetrava na minha mente - todos os movimentos, os sons e ascores. Simplesmente eu não os relacionava.Hastings teve de passar com a mão diversas vezes diante daminha cara até que eu o visse. Surf? Claro, por que não, desde que156eu conseguisse levar-me a mim mesmo e à minha prancha até àágua. Sentia-me imóvel, como se o sol me tivesse sugado todas asforças que me restavam. Isso também fazia parte da rotina da tarde.Hastings ia ter comigo à praia, bastante tarde, e praticávamos surf,sem falarmos, dizendo apenas palavras como "por fora" quandovinha uma onda grande. Não conseguia compreender por que

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fazíamos tantos planos para nos encontrarmos e depois nosignorávamos um ao outro. Mas ambos gostávamos que assim fosse.Remar foi o ponto alto do dia, uma espécie de catarse. Senti ocorpo e a mente unirem-se de novo. Servia-me dos braços e dos péspara remar, sentindo a força que havia neles e o toque da água porbaixo de mim, fresca, num movimento suave. A extensão do oceano,estendendo-se aparentemente até ao infinito, diante de mim, faziamesentir pequeno mas real, mesmo no centro. As pessoasdesapareceram; as suas vozes mudaram, ficaram abafadas edistantes, levadas pelas ondas. o sol no poente transformava todo

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o céu ocidental em quentes e suaves tons de laranja e vermelho,reflectindo-se milhÕes de vezes na superfície da água, como umquadro de Claude Monet. A oriente, começavam a aparecer azuisprateados e violeta, entre os rosas e verdes distantes. o mar estavapontilhado por barcos à vela, espalhados ao acaso, como manchasde cor contra a água e o céu. A ilha erguia-se abruptamente daágua e a luz do sol produzia sombras contrastantes entre asgargantas, criando uma textura suave como o veludo e dando aoselevados penhascos asas como os arcosbotantes de uma catedralgótica. Sobre a ilha pairavam nuvens de um violeta-escuro,

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ocultando os picos, criando reflexos prismáticos de arco-íris nassombras dos vales. Não sei qual era o efeito que toda esta belezacausava nos outros, mas a mim embalou-me, esvaziou-e de todos osoutros pensamentos e fez-me sentir vivo de novo.As ondas contribuíam para aquela atmosfera, com a suaimpetuosidade e ritmo; num momento, uma vibração organizada demovimento harmónico, no seguinte, uma massa rodopiante deinsensata confusão. Apanhei uma das ondas. Senti o seu poder, ovento e o som. Torcendo o corpo, num movimento a que a prancha157reagiu, fi-lo trabalhar contra a forçada queda; velocidade e

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milissegundos cruciais. Desci com a onda e, depois, uma torção dotronco, passando a mão pela barreira de água, e a queda e oredemoinho, ainda de pé, com os pés sobre a prancha perdida sobum torvelinho de espuma branca. Finalmente, o coice súbito, comuma torção violenta mas controlada para trás, deu-me vontade degritar de alegria por estar vivo.A escuridão apagou o cenário por completo e trouxe-nos deregresso à praia. Hastings seguiu o seu caminho e eu o meu, para ohospital e para um duche. De novo no mundo geométrico e assépticodos soalhos limpos, dos chuveiros utilitários e das luzesfluorescentes, vesti-me e saí de novo. Dirigindo-me, no carro, para o

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Monte Tantalus, comecei a antever a noite que se aproximava.Ela chamava-se Naney Shepard e eu tinha-a conhecido - comopoderia ser de outra maneira? - através do hospital. o pai delasofria da vesícula biliar e eu tinha acompanhado de perto os seusprogressos, depois de ter assistido o seu médico particular durantea operação. De cada vez que eu lhe mudava o penso, dizia-me quegostaria que eu conhecesse a sua filha, repetindo-me que ela tinhaandado na Smith e passado um ano na Universidade de Bóston alicenciar-se em história africana. A falar verdade, estava um poucofarto de ouvir as suas histórias, embora continuasse interessado em

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a conhecer. Finalmente, na véspera da alta do pai, ela tinhaaparecido, e era simpática - mesmo muito. Na realidade, parecia-secom uma outra rapariga da Smith com quem eu tinha saído, quandoandava na faculdade. De qualquer forma, fomos algumas vezes àpraia e divertimo-nos ambos. Ela era capaz de falar praticamente detudo; era agradável estar com uma mulher culta e inteligente. Comum curso de ciências políticas, gostava de discutir acaloradamentepequenas questÕes governamentais, especialmente relacionadascom áfrica. Apesar de os nossos encontros terem sido sempre bem

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sucedidos e da minha admiração por ela, deixei de a convidar comfrequência, por uma questão de letargia e de falta de tempo. Naverdade, o convite daquela noite para jantarmos juntos tinha sido158bastante inesperado. Não que eu não quisesse ver Naney.Simplesmente quase nunca podia fazê-lo - e, por essa altura, Joycetinha-se tornado muito conveniente.o jantar foi óptimo. Também estavam presentes os pais deNancy e dois irmãos dela, todos eles grandes conversadores. Depoisdo café, Naney e eu fomos até ao pátio, grande e cheio de verdura,e começámos a discutir Jomo Kenyatta e a Tanzânia. Por que não

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teria a áfrica produzido mais Kenyattas? Ela falava emocionalmentedo assunto; era agradável vê-la ficar mais corada à medida que seentusiasmava, pois isso tornava-a mais bonita ainda.Mas depois ela começou a fazer-me perguntas sobre a Medicina.Porque estava realmente interessada, não apenas a tentar fazerconversa, como tanta gente, esforcei-me por a fazer compreender,respondendo-lhe tão bem quanto conseguia. Inevitavelmente,perguntou-me porque tinha querido ser médico. Um interno temmuitas respostas para esta pergunta. Na sua maior parte são meiasverdades evasivas. Mas, com ela, decidi tentar a verdade total.

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- Bom, Naney, acho que nunca o saberei exactamente. Noprincípio, suponho que sentia um vago desejo de ajudar as pessoase de seguir uma profissão nobre. Mas agora que já percorri um bomcaminho, penso que fui atraído, como muitos outros, pela ideia deque ser médico me dava uma espécie de poder que as outraspessoas não têm - um poder sobre as pessoas e sobre as doenças.Poucas coisas representam mais para os americanos que a boasaúde, e aqueles que a podem dar, ou afirmam poder fazê-lo, sãoautomaticamente figuras de autoridade na nossa sociedade.- Que queres dizer com poder e autoridade?- Isso mesmo, suponho eu. É algo como o poder que o feiticeiro

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detém sobre uma sociedade tribal primitiva. Tem uma posiçãoelevada só porque é capaz de jogar com os temores dos outroshomens da tribo e fazê-los acreditar que controla a natureza. É umaespécie de mistificação legítima - legítima porque ele desempenhauma função mais ou menos útil, e mistificação porque, na verdade,ele controla apenas a psicologia tribal. Penso que a Medicina159moderna é a herdeira afortunada desse tipo de conceito psicológicoerrado. Os meus pacientes não se prostram diante do raio ou dotrovão, mas ficam terrivelmente aterrorizados pelo cancro e pormuitas outras doenças que não conseguem entender. Quando vêm

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ao hospital, procuram, de certo modo, um feiticeiro. Antes de tirar ocurso, eu era como qualquer outra pessoa. Quero dizer, acreditavano poder da Medicina para fazer quase tudo, e queria ter essepoder, queria ser olhado como o agente desse poder.- Mas referes-te, com certeza, ao poder de ajudar as pessoas? -Ela ainda não tinha compreendido.- Claro, eu posso ajudar as pessoas. Não tanto como gostaria, enada que se pareça com aquilo que elas esperam, mas um pouco.Mas esse tipo de poder é terrivelmente limitado. A Medicina éainda relativamente primitiva. Não sabemos ainda o bastante.Estou a falar de outro tipo de poder, de carácter mais abstracto.

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Esse é praticamente ilimitado. Por exemplo, joguei um pouco derugby quando andava no liceu, e, um dia, um tipo partiu uma pernadurante o treino. Eu estava mesmo ao lado dele, no meio daconfusão, e dei comigo a olhar para ele, querendo fazer qualquercoisa mas sentindo-me absolutamente inútil. Quando pensei nisso,mais tarde, só me recordo da inveja que senti do médico. Sei agoraque ele pouco mais fez que dizer algumas palavras de conforto,administrar um analgésico e mandar levar o rapaz para o hospital.Mas, para mim, para todos nós, ele era uma espécie de deus.Quanto mais pensava nisso, mais desejava uma parte desse poder.

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- Mas, e a ideia com que começaste, de que a Medicina é umaprofissão nobre, o desejo de ajudar o rapaz com a perna partida.Que sucedeu a isso?-Tudo isso se misturou. De qualquer forma, entrei para auniversidade com a ideia de ser médico. Embora se me tivessemaberto muitos outros caminhos depois disso, não surgiu qualqueralternativa que me entusiasmasse. Por isso, acabei por passar paraa escola médica, não tendo qualquer outra ideia em vista,pretendendo ambos os tipos de poder e apercebendo-me de que ospoderia ter se seguisse a profissão de médico, para além da160

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posição social e de um salário razoável. Agora que consegui mais oumenos ser médico, todas essas noçÕes abstractas se desfizeram.Não tenho uma grande posição social, não tenho dinheiro, o talpoder divino parece-me vazio, e, quanto ao poder sobre a doença...só peço a Deus que nunca tenha de ser operado. Conheçodemasiadamente bem as limitaçÕes da Medicina.Deveria ter sido suficientemente astuto para me aperceber dodesapontamento que Nancy estava a sofrer, mas não fui. Ela aindaestava à espera da história do "desde criança", tão cara à televisãoe outras histórias de ficção sobre a Medicina. Mas ela tinha-me feito

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pesquisar dentro de mim mesmo, em busca de respostas, e a talcriança não estava lá.- Então não sentes que tenhas qualquer qualidade especial quete tenha feito tirar o curso de Medicina? Uma vocação, por assimdizer?- Ela ainda estava à procura de Ben Casey.- Não, decididamente isto não é um sacerdócio para mim. omáximo que consigo aproximar-me da ideia da vocação é ter sidobom aluno em ciências e humanidades na faculdade, e a Medicinaser uma combinação lógica de ambas as coisas.- Bom, não me parece que tenhas as mesmas motivaçÕes que osmédicos que eu conheço. - Ela estava a começar a irritar-se. E eu

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também.- Quantos médicos conheces, Naney? Todo o meu mundo éconstituído por médicos. Vivo com eles... internos, residentes,assistentes, toda a malta da escola médica... e posso dizer-te umacoisa: de maneira geral, o que sucedeu comigo também sucedeucom eles, e o que eu sinto é o mesmo que eles sentem, seconseguires levá-los a confessá-lo.- Bom, eu acho isso horrível.- Que é que achas horrível?- Que a nossa sociedade te tenha deixado chegar tão longe. Tués a pessoa errada para tirar um curso de Medicina porque não teinteressas suficientemente por ajudar os outros.161- Mas eu já te disse que quero ajudar as pessoas, e faço-o, mas

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é tudo muito mais complicado que isso. Que diabo, eu sou comotodos os outros. Não tenho um objectivo que me consome e quepÕe de parte tudo o resto. Quero viver, também. Além disso, umagrande parte do idealismo que eu tinha foi asfixiado na escolamédica. Não está orientada nesse sentido.- Não gostas de ser interno? - interrompeu ela.- Nem por isso.Ficou de novo surpreendida:- Porquê?- Basicamente, sinto-me fatigado, verdadeiramente exausto,durante a maior parte do tempo. E falta-me a sensação de serrealmente útil. Tenho a impressão de que a maior parte das coisasque faço poderiam ser feitas por qualquer outra pessoa que não

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tivesse tido o treino que eu tive. Além disso, sinto-meconstantemente assustado, com medo de fazer qualquer coisa mal epassar por idiota. Bem vês, creio que a escola médica não mepreparou assim tão bem. - Naquela altura, a resolução tomadanessa tarde de manter a boca calada tinha-se dissolvido naintensidade do momento.- Bom, acho que isso é compreensível. A escola médica não podefazer tudo - disse ela.-Talvez possa ser compreensível à distância, mas, quando seestá no meio das coisas, não se consegue compreender o que estáa acontecer-nos. E quando paro para pensar e me apercebo de queos quatro anos da escola médica foram desperdiçados, na sua maior

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parte, no que se refere a tomar conta dos doentes, e que estou aser explorado, sob o disfarce de estar a aprender, a cargapsicológica é muito pesada. Sinto-me furioso com o sistema... omodo como a escola médica e o internato e a prática da Medicinaestão interligados... e com a sociedade que aceita isto.- Enfureceres-te não é propriamente a atitude mais adequadapara um médico - disse ela com frieza.- Estou inteiramente de acordo contigo, e gostaria que a162sociedade também pensasse assim. Com o tempo, chega-se a umponto em que nos estamos nas tintas para tudo. Por vezes, quando

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sou chamado a meio da noite por causa de uma paragem cardíaca,dou comigo a desejar que o tipo morra, para eu poder voltar para acama. Isto é só para veres a que ponto me sinto cansado e farto. Emcerto sentido, deixei de pensar nos pacientes como pessoas, e,naturalmente, isso faz-me sentir ainda mais culpado.Ao olhar para ela, quase podia ver a sua ética a estalar sob atensão das minhas palavras. Prossegui cegamente.- Suponho que este aspecto de não pensar nos doentes comopessoas é o mais difícil de explicar. Talvez alguns médicos consigammanter indefinidamente a empatia. Mas eu não. Não posso. Parasobreviver, neste momento, quero conhecer os meus pacientes

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apenas como vesículas, ou hérnias, ou úlceras. Evidentemente,incluo nisso tudo o que eles têm que afecte directamente o seuprocesso patológico básico, e creio que estou a tornar-me um bommédico, tecnicamente, mas, para além disso, não quero sentir-meenvolvido. o meu sistema não está engrenado para isso. Tive umdoente chamado Roso e interessei-me de tal modo por ele que,quando ele teve alta, fiquei mais aliviado por ele se ter ido emborado que satisfeito por ele ter sobrevivido.o silêncio foi gelado. Olhei para o céu, afastandopropositadamente o olhar dela. Depois, prossegui.- Outra coisa. Muito importante. Como interno, sou explorado da

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mesma forma que qualquer país subdesenvolvido a actuar sobrelaçÕes mercantis com uma potência colonial. Por exemplo, tudo oque eu faço na sala de operaçÕes, durante noventa por cento dotempo, é segurar os retractores, muitas vezes para o maisdesleixado dos médicos de clínica geral, que nem sequer deveriaoperar. Estou ali para ser usado. Tudo o que aprendo é apesar dosistema, não graças a ele. E se não fizer o que me mandam, ou fizerqueixas de mais acerca do sistema médico... puf!... lá se vão asminhas hipóteses de me especializar num bom hospital. Por isso,quando eu digo que tenho medo de fazer asneira, não estou só

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preocupado por causa do doente... embora também o esteja, em163parte... mas porque posso ser corrido e acabar em qualquer cidadeda província a dar injecçÕes contra a febre tifóide. Isso, emMedicina, é o equivalente aos mortos-vivos."E, além disso, há uma série de problemas muito reais e muitograves, sobre os quais ninguém nos fala, nem nos aconselha. Comoa questão das urgências sobre quando deveremos tentar reanimarum doente ou deixá-lo em paz. Como internos inexperientes, somostotalmente vulneráveis a essas coisas. E não se trata inteiramentede um problema médico. E a ética que ele implica? Se a pessoa é

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reanimada e fica transformada num vegetal, o que significa que vaificar a ocupar uma das tão necessárias camas dos C.I., privamos umaoutra pessoa dessa cama dos C.I., alguém que poderia ter melhoreshipóteses. E uma decisão que cabe aos deuses. A escola médicanunca me ensinou a fazer de Deus. E depois todos...Eu tinha continuado a falar, olhando para as árvores escuras,coligindo todos estes pensamentos pela primeira vez. De certomodo, estava a falar para mim mesmo apenas, e quando me voltei efitei Nancy, ela explodiu, detendo-me a meio da frase:- És uma pessoa incrivelmente egoísta! - disse.

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- Não me parece. Apenas vivo no mundo real.- Para mim, és um egoísta... frio, desumano, sem qualquer ética,imoral e destituído de simpatia. E não são essas as característicasque procuro num médico. - Ela era capaz de ferir, quando queria.- Escuta, Naney, o que eu te disse é a verdade, e não apenas aminha. É uma mistura do que sente a maior parte dos internos queconheço.- Então deviam ser todos expulsos.- Isso mesmo, querida! Se estás tão convicta do que dizes, porque não organizas uma manifestação em frente do banco dohospital? A compaixão é fácil quando se dorme oito horas pornoite.

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Na maior parte das noites, durmo menos de metade. Passo o restodo tempo a observar os pruridos das hemorróidas da Sra. Fulana.Não armes em moralista comigo, sentada no teu cadeirão.E assim prosseguiu a conversa, acabando com ambos a ferver de164raiva. Parti, depois de uma promessa pouco convicta de voltar atelefonar-lhe proximamente.De regresso ao meu quarto geométrico, todo branco, fiqueiestendido na cama, furioso, todo contraído, com menos de novehoras antes que recomeçasse oholocausto das Urgências. Dormirestava claramente fora de questão. Telefonei para o laboratório e

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Joyce atendeu. Perguntei-lhe se poderia vir às onze. Ela disse quesim e senti-me melhor.307.o DiaCIRURGIA GERAL: SERVIÇO DE ENSINO PARTICULARPara um interno, na prática da Medicina, durante a segundametade do século XX, Alexander Graham Bell é o maior vilão detodos os tempos. As culpas, naturalmente, deverão ser alargadas,de modo a incluírem não só o homem que inventou o telefone, mastambém o sádico que criou o toque da campainha. E também todosaqueles tipos que trabalhavam para a Mãe Bell e que perpetuaramo toque - esses também deverão ser incluídos. Como funcionariam os

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hospitais antes da invenção do telefone? Naquela época, eu própriojá me considerava como uma mera extensão daquela peça deplástico negro. Era tão aterrorizador como uma ambulância, ebastante mais súbito- sempre esperado, de certo modo, no fundo domeu cérebro, mas, de qualquer forma, apanhando-me sempredesprevenido. Em todo o mundo, não existe outro som como aquelepara perturbar a paz das pessoas.Naquele momento, a minha paz consistia em adormecersuavemente ao lado de Karen Christie no apartamento dela, apósuma união mutuamente satisfatória, penso eu. Quando o telefone

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tocou às duas horas da madrugada, estendemos ambos a mão paraele. Deixei-a atender - não por ser provavelmente para ela. Como euestava de serviço, o mais provável era ser a telefonista da noite aconvidar-me a regressar aos seus corredores. Mas é que tambémpodia ser o chamado namorado de Karen.Na realidade, era a telefonista do hospital, que me passou uma165enfermeira.- Doutor, pode vir já? Um dos doentes particulares do Dr. Jarvisestá com problemas respiratórios e o Dr. Jarvis quer que se ocupedele.Rolando para ficar de costas, olhei para o tecto e praguejei

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interiorrnente, afastando o telefone do ouvido. Conhecia bem o Dr.Jarvis. Era nada menos que o nosso velho amigo Supercaro, famosopelas suas chacinas na sala de operaçÕes, especialmente embiópsias da mama. - Está aí, doutor? - perguntou a enfermeira.- Estou sim, Enfermeira, ainda estou aqui. O Dr. Jarvis tencionavir cá?- Não sei, Doutor. Típico. Não só do Supercaro, mas da maiorparte dos médicos particulares ligados ao hospital. o interno iria vero paciente, faria uma recomendação e telefonaria ao médicoparticular que, evidentemente, diria ao interno que fizesse o que lheparecesse melhor. Na maior parte destes casos, os tipos nem sequer

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se davam ao trabalho de ser delicados. Certa vez, tinha passadocerca de uma hora a tratar de um dos casos do Supercaro. Quandotelefonei a fazer o meu relatório, o Supercaro já tinha saído doconsultório e tive que deixar uma mensagem à secretária dele, paraque ele me telefonasse à chegada, Telefonou, efectivamente, maspara a enfermeira de serviço, não para mim. Quando ela lhe disseque eu queria falar urgentemente com ele, disse que não tinhatempo para falar com todos os internos do hospital. Corre, corre,para apanhar mais uns dólares - era esse o jogo do Supercaro.

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o Supercaro tinha um outro hábito interessante. Internava todosos seus doentes ao abrigo do chamado programa de ensino. Seriade pensar, naturalmente, que um programa de ensino nos ensinaria,pelo menos, alguma coisa. Sabe Deus que os internos bemprecisavam disso. Na prática, o programa de ensino não passava deuma piada. Significava apenas que eu, ou qualquer dos outrosinternos, fazia toda a história do internamento do paciente e oexame físico - o trabalho "básico". Como recompensa, tínhamosdireito a preencher também a alta. Mas, entretanto, não tínhamos166direito a discutir as ordens, e, na sala de operaçÕes, a nossa

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contribuição consistia em segurar nos retractores, remover verrugase, talvez, dar alguns nós, se o médico estivesse num dos seus diascondescendentes.o desplante máximo do Supercaro tinha ocorrido pouco antes, nocaso da biópsia da mama, que ele tinha feito pessimamente. Naficha de internamento, com os detalhes do caso, tinha escrito umanota dizendo que o pessoal - ou seja, o interno - que trabalhasse nocaso não deveria examinar as mamas. Ora, como poderia eu fazeruma história adequada e um exame da paciente, num caso debiópsia da mama, sem examinar as mamas? Ridículo. E agora queria

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que eufosse a correr, às duas da manhã, para reparar outro dos seuserros.A enfermeira continuava à espera.- o doente foi operado? - perguntei.- Foi, sim. Esta manhã. A uma hérnia - respondeu ela. - E nãoestá muito bem. As dificuldades respiratórias já duram há algumashoras.- Está bem, estou aí dentro de alguns minutos. Entretanto, queroque levem para o quarto um aparelho de raios-X portátil e lhe façamuma radiografia ao tórax. E tirem sangue para se fazer umacontagem completa; e verifiquem se há um aparelho de respiraçãode pressão iositiva e um aparelho para ECG no andar.

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Não queria ficar o resto da noite à espera do material. Talveznão viesse a precisar dele, mas era melhor tê-lo à mão. Quando saída cama, Karen não se mexeu. Não tinha importância. Enquanto mevestia, voltei a pensar como ela era conveniente. o seu apartamentoficava mesmo em frente do hospital, até mais perto que o meupróprio quarto. E tinha todos os confortos... aparelho de televisão,gira-discos, um frigorífico bem abastecido com cerveja e carnes frias.Karen e eu tínhamos começado a andar juntos quatro mesesantes, pouco depois de eu ter observado a sua invulgar radiografia,na noite em que ela tinha caído na escada. Depois disso, ela

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passara para o turno de dia, onde voltámos a encontrar-nos ecomeçámos a passar juntos as pausas para o café. Uma coisa levou167à outra, e ir ao apartamento dela tornou-se um hábito - mais oumenos na altura em que Joyce deixou de andar comigo.Joyce, que também tinha passado para o turno de dia, começoua querer armar-se em turista, e visitar todos os locais nocturnos.Depois disso surgiu uma certa pressão para eu conhecer os paisdela e um crescente aborrecimento perante certas saídas subreptíciasa meio da noite. Tentei continuar a nossa relação, mas a

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companheira de quarto dela, viciada em TV, estava sempre lá, e onosso relacionamento, que nunca tinha sido muito saudável, acaboupor azedar por completo. Dadas as circunstâncias, Joyce e eudecidimos afastar-nos por um tempo, para termos oportunidade depensar.Karen tinha outro namorado, o que sempre me intrigou bastante.Encontrava-se com ele de vez em quando, talvez duas ou três vezespor semana, quando iam ao cinema ou mesmo a um clube nocturno.Ela dizia que o rapaz queria casar-se, mas ela não conseguiadecidir-se; eu não o conhecia, nem sabia muito a seu respeito,embora tenhamos falado uma vez, rapidamente e por acaso, quando

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ele telefonou para casa de Karen. No fundo, eu não pretendiaarriscar uma coisa boa com investigaçÕes mais profundas.Quando ia a caminho de ver o paciente do Supercaro, repareique a noite estava invulgarmente silenciosa, quase sem vento,embora um banco de nuvens baixo pairasse sobre a ilha,obscurecendo o céu. Tinha chovido fortemente durante toda asemana. Enquanto me dirigia para a ala oeste do hospital, olheipara as Urgências e veio-me logo à mente a recordação da minhaluta cega e exaustiva. Via os habituais aglomerados de actividade,com pessoas à espera e enfermeiras passando, numa mistura

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aparentemente confusa. Parecia um pouco mais animado do que erahabitual numa noite de terça-feira, e tive esperanças de que semantivesse suficientemente calmo para que a minha presença nãofosse necessária. Sempre que recebia uma chamada nocturna dasUrgências, tratava-se geralmente de um internamento - talvez umaintervenção cirúrgica, e isso podia ser mau.168O corredor da enfermaria estava mortalmente silencioso eescuro, com excepção das pequenas luzes nocturnas queespreitavam dos quartos, enquanto eu passava rapidamente poreles a caminho do posto das enfermeiras. Este situava-se no

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extremo da enfermaria e, à medida que dele me aproximava, a luzia-se tornando gradualmente mais brilhante. Naquela altura, já erauma sensação familiar, para mim, percorrer aqueles corredoresescuros, cujo silêncio era apenas quebrado por uma subcorrente desons hospitalares - o leve tilintar dos suportes das IV, um sonolentogemido ocasional -, sons que sempre me davam a sensação de estarsozinho no mundo. Outros médicos já me têm falado de sensaçÕessemelhantes. Na verdade, já tinha deixado de analisar o hospital eos seus efeitos sobre mim, como fazia dantes, tendo-me tornado,

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em certo sentido, cego para o que me rodeava. Como um invísual,tomava por certos os pontos de referência, as diversas portas ecurvas, e era frequente chegar ao meu destino sem dar pelo caminhonem pelos meus pensamentos durante o percurso.Alguns meses antes, a telefonista tinha-me chamado por causade uma paragem cardíaca, Eu tinha-me levantado, vestido e corridoaté ao hospital, antes de me aperceber de que ela se tinhaesquecido de me dizer onde se encontrava o paciente, nem qual aenfermaria. Felizmente eu tinha tido um palpite certo - graças a umsexto sentido, chegava-se ao ponto de, ao ser acordado, se obter

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precisamente a informação certa antes de ela nos ser dada.Isto tinha as suas desvantagens ocasionais - como, por exemplo,no caso de uma das frequentes chamadas nocturnas para ir ver umpaciente que tinha caído da cama. Fiz uma corrida automática einsensata até àenfermaria e lá o encontrei, emboaforma,naturalmente. Depois de telefonar ao seu médico, deixei ordem paralhe darem uma injecção de Seconal, para ter a certeza de que eleiria dormir, e depoisrastejei de novo para a cama. Tudo sem terchegado praticamente a acordar. A mesma enfermeira telefonou-mepouco depois para me dizer que o doente tinha voltado a cair,desta vez num lanço de escada. Levantei-me outra vez, perguntei

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169qual era a enfermaria, e parti a correr. A meio do caminho, enquantosubia umas escadas, tropecei numa massa inerte estendida nopatamar. Fiquei parado, aturdido, e levei uns dez segundos para mereprogramar para o facto de que o que estava diante de mim era opaciente que eu tinha ido ver. Mas ele deveria ter estado no andarde cima! Naturalmente, estava ali porque tinha caído pelas escadas.Encontrando-se totalmente flácido durante a queda, não se tinhamagoado. Tinha sucedido simplesmente que todas as injecçÕes - oanalgésico, o anti-histamínico, o relaxante muscular e o meu Seconal

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- tinham sido dadas simultaneamente pela enfermeira e tinham feitoefeito ao mesmo tempo, precisamente quando ele descia o primeirodegrau.Eu nem sempre andava envolto em nevoeiro. Simplesmente,desenvolvi uma espantosa habilidade para continuar a dormirdurante o caminho para ir fazer qualquer tarefa estúpida a meio danoite. Era diferente quando era chamado por causa de alguma coisagrave, ou quando estava irritado. Mas dado que o nosso hospitalsofria de uma epidemia de pessoas que caíam da cama, aprendi adesempenhar essa função sem acordar completamente.o posto das enfermeiras parecia tão iluminado como um estúdio

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de televisão, após aquele longo percurso no escuro. A enfermeiraficou efusivamente satisfeita por me ver e informou-me logo doquejá tinha feito. o sangue tinha sido enviado para o laboratório ea radiografia tinha sido feita, e os aparelhos de ECG e derespiração estavam a postos no quarto do paciente. Tirei-lhe a fichada mão e observei os resultados que, evidentemente, tinham sidoobtidos por outro interno. Uma caixa de bombons tentava-me dasecretária próxima, e meti alguns na boca. A temperatura estavanormal. A pressão tinha subido e o pulso estava muito elevado. Acontagem estava perfeita. Nada conseguia encontrar que

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justificasse os problemas respiratórios. Tudo me parecia mais oumenos normal para uma operação recente a uma hérnia.Saí para o corredor e voltei quase ao seu início. Ao entrar noquarto, acendi a luz, iluminando um homem pálido recostado nacama que inalava com dificuldade a cada expiração. Aproximando-170me, pude ver que estava diaforético, com gotas de suor abrilharnatesta. Olhou-me, Por um segundo, e depois afastou o olhar, como seprecisasse de concentrar-se na respiração. Olhando pelajanela,apercebi-me de que conseguia ver o prédio e a janela de Karen, asegunda da direita, no terceiro andar. Perguntei a mim mesmo seela teria dado pela minha saída.

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Com o estetoscópio nos ouvidos, inclinei o paciente para afrente e escutei os campos pulmonares. Os sons respiratórios eramnítidos - nada de estalidos, nem roncos nem assobios. Nada. Talvezos campos pulmonares soassem um pouco alto; mas isso pareciacoadunar-se com o facto de ele ter o abdômen inchado e um poucorígido. Mas não estava sensível. Auscultando o abdómen, escutei ostranquilizadores gorgolejos habituais. Os sons cardíacos eramnormais; não havia sinais de falha cardíaca. Só me restava ver se oestômago esbaria cheio de ar. A dilatação gástrica era um problemafrequente depois da anestesia geral. Disse à enfermeira que fosse

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buscar um tubo nasogástrico e, entretanto, preparei o ECG. Aquelasmaquinetas eram sempre uma fonte de irritação para mim, quandotentava usá-las de noite, sem técnicos para me dar uma ajuda. Comonunca parecia conseguir um bom campo eléctrico, o traçadovagueava pela página toda. Mas consegui pôr este a funcionar bem,ligando o cabo de terra ao cano do lavatório, e obtive um traçadoenquanto o paciente continuava a respirar com dificuldade. Aenfermeira tinha regressado com o tubo nasogástrico antes de euterminar o ECG. Enquanto untava o tubo, não conseguia deixar depensar no médico que dormia na sua casa, enquanto eu estava ali a

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aplicar o seu tubo nasogástrico.Uma coisa não me abandonara, tornara-se mesmo mais forte,durante os últimos dez meses - a satisfação de conseguir umresultado rápido e conveniente -, e senti-me aliviado quandoevacuei uma grande quantidade de fluido e ar do estômago dopaciente. o meu alívio foi insignificante, porém, em comparação como dele. Ainda sentia dificuldade mas a sua respiração era muitomais fácil agora. Quando me expressou o seu profundo171agradecimento, precisou de recuperar o fôlego antes de dizer afrase completa. Escutei-lhe novamente os pulmÕes, para mecertificar de que não havia fluido dentro deles. Estavam limpos. Aspernas também estavam normais, não apresentando qualquer

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edema nem sugestÕes de trombofiebite. Espreitando por baixo dopenso, achei que a incisão estava com óptimo aspecto, semexcessiva drenagem. Disse à enfermeira que fosse buscar umaparelho de sucção para o tubo nasogástrico e a ligasse, enquantoeu voltava ao posto das enfermeiras com o ECG.Ainda tinha pouca prática da leitura dos ECG, mas aqueleparecia-me bom. Pelo menos, não havia arritmias. Possivelmentehaveria uma leve sugestão de tensão cardíaca do lado direito, naonda S, mas nada drástico. Como medida de precaução, deciditelefonar para o residente médico para me ajudar na leitura. Após

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um minuto ou dois de contracção, enquanto eu explicava a situaçãoe o residente me escutava, ele acabou por dizer que não podiadescer para ver o ECG porque se tratava de um doente particular.Podia compreender a sua relutância. Assemelhava-se à minhaquando um interno de serviço me telefonava à noite a pedir-meajuda para fazer uma incisão para introdução de um catéter, ouqualquer outra coisa no género, num doente particular. Se osassistentes nos tivessem feito sentir que era uma questão decooperação recíproca, cada um segurando na sua ponta, essaspequenas tarefas desagradáveis teriam sido mais fáceis deexecutar. Mas na medicina americana grande parte da diferença

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entre um interno e um médico já pronto é literalmente a diferençaentre a noite e o dia. Deixavam-nos fazer praticamente tudo depoisde o Sol se pôr, quando o ensino era inexistente, mas nada duranteo dia, quando poderíamos aprender qualquer coisa. Como sempre,havia algumas simpáticas excepçÕes que confirmavam a regra - masmuito poucas.No início do meu internato, tinha sido bastante ingénuo emrelação a este relacionamento senhor-escravo, não conhecendo osmeus direitos. Até me sentir esgotado, tentei ver todos os172pacientes, particulares ou indigentes, dentro ou fora do serviço de

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ensino, por insignificante que fosse a sua queixa. Finalmente, noentanto, foi uma questão de sobrevivência. Actualmente, noentanto, sempre que era chamado de noite para qualquer tarefa derotina respeitante a um doente particular - uma subida detemperatura, por exemplo - perguntava sempre o nome do médico.Se não fosse dos que me agradavam - e na maior parte não eram -dizia à enfermeira que lhe telefonasse e lhe dissesse que osinternos não são obrigados a tratar de casos particulares, exceptoem emergências. Isso não se aplicava, naturalmente, aos casosprivados do serviço de ensino. Nesses casos, tinha de ir,independentemente do médico.

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Os médicos de meia-idade ou mais velhos gostam de fazerinvejosas comparaçÕes entre a nossa vida supostamente fácil e osseus velhos tempos espartanos. Ao ouvi-los falar, dir-se-ia que,trinta anos antes, um interno vivia abaixo do nível de pobreza. Osnossos sumptuosos salários, que eu calculava atingirem cerca demetade do que se pagava a um canalizador, enfureciam-nos. Paraonde ia este mundo?, costumavam dizer. Nós tínhamos que tratar detodos os doentes, fosse qual fosse a sua posição, e nuncadormíamos, e não tínhamos todas estas maquinetas, e assim pordiante. A atitude deles em relação a nós era simplesmente

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venenosa: eles tinham sofrido, nós deveríamos sofrer também. Assima educação médica, nestes tempos iluminados, passa de geraçãoem geração; cada uma tem a sua vingança.E onde ficava o paciente, em tudo isto? Era apanhado no meio -um sítio bastante desconfortável, com as bombas e as granadas daguerra médica a caírem à sua volta.Curiosamente, a maior parte da legislação que saía deWashington só servia para piorar a situação. Era forte a tendênciapara se prestarem cada vez mais cuidados particulares à custa dogoverno, mas sem qualquer esforço no sentido de controlar a

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qualidade dos cuidados médicos ou de educar o doente potencial.Subitamente armados com o poder dos dólares, os pacientesanteriormente indigentes eram lançados para o mercado médico sem173qualquer noção de como escolher um médico, e, de certo modo,como que através de um grande desígnio enganador, pareciamdirigir-se aos médicos marginalmente competentes, cuja clienteladependia do volume e não da qualidade. o resultado imediato eraque os tipos de pacientes que os internos e residentes costumavamtratar apareciam agora nas enfermarías particulares sob os ternos

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cuidados de médicos que, como o Supercaro, não sabiam tratá-los,quanto mais ensinar. Mesmo o velho Roso tinha voltado a aparecer,com um pequeno problema, sob os cuidados de um médico particularque não queria que o pessoal do hospital mexesse na ficha. Tendoficado encalhados pela maré do dinheiro, os internos eram forçadosa usar as muletas desses médicos arcaicos para ganhar experiênciaa tratar certos tipos de casos. Todos ficavam prejudicados. Nosvelhos tempos, quando esses pacientes eram internados no serviçogeral, eram tratados com a ajuda dos melhores especialistas do

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hospital. Sucedia, logicamente, que os assistentes mais capazes edotados de maiores conh ecimen tos faziam também parte dopessoal docente de serviço, porque o comité de ensino do hospitale o serviço de pessoal seleccionavam os melhores que conseguiamarranjar. E os assistentes que estavam mais interessados em ensinareram, quase invariavelmente, os que sabiam mais. Se alguma vezera chamado, de noite, para ver um doente deles, ia sempre, fossequal fosse o motivo.Mas agora, em vez de serem admitidos no serviço de pessoal,onde eram preciosos para fins de aprendizagem, e, ao mesmotempo, recebiam melhor atendimento médico que quaisquer outros,

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os antigos pacientes desse serviço estavam a passar-se para oshomens de Neanderthal. Como era possível que uma coisa tão vitalcomo a educação e os cuidados médicos fossem lixados destemodo? A situação parecia-me particularmente assustadora emrelação à cirurgia, e fazia, sem dúvida, que os ingleses, os suecos eos alemães parecessem muito esclarecidos. Eles só permitem que,nos hospitais, as operaçÕes sejam feitas por especialistas. NosEstados Unidos, qualquer cretino com um diploma médico pode174efectuar qualquer tipo de operação que queira, desde que o

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hospital o permita. Eu sabia como o meu treino da escola médicatinha sido insuficiente em relação aos cuidados a prestar aospacientes; mas também sabia que poderia obter uma licença parapraticar medicina e cirurgia em qualquer dos cinquenta estados. Quehaverá na psique americana que nos permite gastar milhÕes apoliciar o mundo, e, no entanto, nos leva a aceitar um sistemamédico criminosamente atrasado? Como todas as outras questÕesimportantes durante o meu internato, esta também acabou por serposta de parte, graças à exaustão. Comecei a aceitar a questãocomo se não houvesse alternativa. Na realidade, de momento não

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há alternativa. o problema, naquele momento, tinha-me vindo àcabeça porque havia problemas, e eu sabia que ia ter muitosaborrecimentos com o Supercaro por causa da radiografia e dosoutros testes que tinha mandado fazer ao homem da hérnia. Voltei aperguntar a mim mesmo por que não me teria dedicado àinvestigação.Antes de telefonar ao Supercaro e o acordar, quis observar aradiografia que tinha sido feita no aparelho portátil. Ele iria, porcerto, explodir quando a descobrisse, de manhã, mas eu estava-meabsolutamente nas tintas para isso.o corredor começou a ficar cada vez mais escuro enquantovoltava para trás, percorrendo o labirinto do hospital até aos raios-

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X. o local estava tão escuro e silencioso que, quando lá cheguei,não consegui encontrar o técnico. Finalmente, desesperado, peguei,no telefone e marquei um dos números do departamento de raios-X.à minha volta, uma dúzia de telefones voltou à vida. Algures,alguém atendeu um deles, silenciando os outros. Disse à voz que mefalava que estava no seu departamento e pretendia ver um portátilque ele tinha feito mais ou menos uma hora antes, após o que ohomem saiu de uma porta a cerca de três metros de distância, apiscar os olhos e a enfiar a camisa dentro das calças. Segui-o até

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um monte de caixas e esperei, enquanto ele folheava uma pilha denegativos.o departamento de raios-X tinha uma característica- pareciam175nunca saber onde as coisas se encontravam. Aquela radiografiatinha menos de uma hora e elejá não sabia onde ela se encontrava.o homem disse que não conseguia perceber porquê. Diziam sempreisso, e eu estava de acordo com eles. Durante o dia, as secretáriasconseguiam encontrar o raio das chapas, mas eram as únicas.Enquanto o técnico percorria uma pilha de chapas após outra,encostei-me ao balcão e esperei. Era como ver um replay infindável

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de uma passagem incompleta. Finalmente ele puxou uma chapa deum monte que se pensava já ter sido visto. Colocando-o no visor deradiografias, acendeu a luz, que piscou algumas vezes e depoisficou acesa. Estava ao contrário e ele teve de a virar.Estava uma desgraça-a radiografia, não o paciente. Osaparelhos portáteis não eram, na realidade, muito bons, e euestava certo de que o radiologista me teria dito que era ridículopedir uma portátil quando o paciente poderia ter sido levado aoandar de cima para fazer uma boa radiografia. Nunca tentei explicarque a portátil se justificava porque eu podia solicitá-la do meu

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quarto, pelo telefone, e recebê-la - desde que não se perdesse - naaltura em que chegasse junto do paciente. Caso contrário, teria deficar sentado durante uma hora, a meio da noite, à espera quefizessem uma boa radiografia do paciente. Este tipo de raciocínionão fazia sentido para uma pessoa -um radiologista, por exemplo -que dormisse a noite inteira.A radiografia parecia normal para uma portátil, o que quer dizerque era uma mancha confusa, com excepção do gás no estômago e ofacto de o diafragma aparecer elevado. Mesmo isso era enganador,porque, com o homem deitado na cama, nunca se poderia saber aocerto de que ângulo o técnico de raios-X tinha feito a radiografia.

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De qualquer forma, tudo parecia bem.Em seguida, falei pelo telefone com o técnico do laboratório epedi-lhe os resultados da contagem sanguínea. o laboratório desangue era muito bom; normalmente davam logo os resultados dostestes. Mas naquela noite a técnica pediu-me que me identificasse,porque o hospital não podia prestar essas informaçÕes a pessoas176não autorizadas. Que questão ridícula! Quem mais poderia telefonara pedir uma contagem de sangue às três horas da madrugada?Identifiquei-me com o nome de Ringo Starr, o que pareceu satisfazera rapariga. A contagem também estava normal.

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Armado destas informaçÕes, liguei para casa do Supercaro. osom do telefone a tocar no outro extremo era uma delícia para osmeus ouvidos. Tocou quatro, cinco, seis vezes. o Supercaro, fiel àsua reputação, tinha o sono pesado. Finalmente respondeu.- Fala o Dr. Peters, do hospital. Estive a ver o seu doente, o casode hérnia com complicaçÕes respiratórias.- Bom, como está ele?- Muito melhor, Doutor. Tinha o estômago muito dilatado eevacuei quase um quarto de litro de líquido e bastante gás, atravésde um tubo nasogástrico.Sim, já calculava que fosse esse o problema. Mentiroso, pensei,convicto de que o Supercaro não tinha feito a mínima ideia doproblema. Prossegui.- Achei aconselhável verificar os outros sistemas, por isso tenho

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aqui os resultados de uma contagem de glóbulos, uma radiografiado tórax e um ECG. Parecem aceitáveis. Tudo, excepto o diafragma,que...Soou um rugido pelo telefone.- Meu Deus, rapaz, não precisava de todas essas muletas. o meudoente não é milionário, nem estamos na Clínica Mayo. Que diaboanda a fazer? Eu podia ter-lhe dito onde estava o problema apenascom um estetoscópio e um pouco de percussão. Vocês, os jovens,pensam que o mundo foi feito para as máquinas. No tempo em queeu fazia esse trabalho, nós não... - Podia imaginar o seu rosto aganhar um tom avermelhado, as veias do pescoço a ficarem

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salientes. Esperava sinceramente que ele ficasse com insôniasdurante o resto da noite.- E que é que fez com o tubo nasogástrico, Peters?- Pu-lo em sucção, Doutor, e deixei-o ficar assim.- Não sabe mesmo nada? o tipo vai ficar com uma pneumonia,177com aquela coisa enfiada. Vá tirá-lo imediatamente.-Mas, Doutor, o doente está com falta de ar e receio que oestômago comece a dilatar-se outra vez.- Não discuta comigo. Vá tirá-lo. Nenhum dos meus doentes dehérnias deverá ter tubos nasogástricos. Essa é uma das minhasregras básicas, Peter, básicas. - Clique. Eu tinha na mão um telefonedesligado.Voltei à enfermaria e retirei o tubo. o doente continuava a

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esforçar-se por respirar, mas não tanto como antes. Quando ia asair, entrou uma enfermeira, que ficou obviamente um poucosurpreendida e nervosa por me ver ali. Trazia uma agulha na mão.Num tom um pouco culpado, disse-me que o Supercaro tinhatelefonado e mandado dar mais sedativo. Fiquei tão furioso quenem lhe perguntei qual; limitei-me a sair.Agora tinha que decidir para onde iria, para o meu quarto oupara o apartamento de Karen. Este último não fazia sentido, porqueKaren estava, por certo, a dormir profundamente. Além disso, osmeus utensílios de barbear não estavam lá - uma política queseguíamos para evitar explicaçÕes ao outro tipo. Se eu voltasse

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para o meu quarto, poderia barbear-me quando me levantasse demanhã, daí a algumas horas. Já passava das três. Por isso, volteipara o meu quarto e liguei para a telefonista para lhe dizer quejánão estava no outro número. Ela disse que compreendia. Perguntei amim mesmo até que ponto compreenderia.Mal tinha pousado a cabeça na almofada quando o telefonetocou de novo. Valha-me Deus, pensei, provavelmente é um novointernamento nas Urgências. Que raio de noite de terça-feira! Masera a mesma enfermeira, a dizer-me que o paciente da hérniaestava outra vez pior, e o médico particular queria que eu o fosse

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ver imediatamente. Começava a ficar farto daquilo - para cima epara baixo, a ver pacientes em relação aos quais a minharesponsabilidade era tão confusa e indeterminada que eu nuncasabia em que posição colocar-me. Era considerável a ironia dasituação. Neste caso, o Supercaro mal tinha acabado de me ralharpor ter pedido testes laboratoriais e porter deixado ficar o tubo178nasogástrico, tinha telefonado à enfermeira - não a mim - para lhedar um medicamento; e agora queria que eu fosse ver o paciente denovo. Não fazia muito sentido, a menos que se pensasse que euapenas servia para que o bom doutor pudesse dormir. Era óbvio que

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o paciente não estava a receber aquilo que tinha pago. E eu? Euestava a receber um ensinamento menor que zero. Talvez um dia, setivesse sorte, eu pudesse aspirar a ser um médico como ele, e aestar-me nas tintas para os internos, os pacientes e os cuidadosmédicos em geral.Por agora, estava a descer de novo no elevador, a percorrer olongo corredor, a penetrar na luz azulada e escura que envolvia ohospital adormecido, fazendo soar nitidamente os meus passos,como se caminhasse no vácuo. Tudo estava calmo, agora, mas, porvolta das sete e meia eu estaria em más condiçÕes para umaoperação. Apeteceu-me internar-me no hospital, para descansar um

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pouco. Tinha perdido quase dez quilos desde o primeiro dia dointernato.Subitamente, atrás de mim, o mundo foi estilhaçado porfrenéticos sons de vidro e metal que embatíam um no outro.Voltando-me, vi o interno das Urgências que vinha a correr na minhadirecção, à luz azul do corredor, agarrado ao laringoscópio e umtubo endotraqueal. Atrás dele, uma enfermeira empurrava o ruidosocarro.- Paragem cardíaca - arquejou ele, fazendo-me sinal para oseguir. Começámos ambos a correr, enquanto eu perguntava a mimmesmo se seria o doente da hérnia.- Que andar ? - perguntei.- Na enfermaria cirúrgica dos particulares, neste andar. - Passou

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rapidamente pelo guarda-vento. Brilhava uma luz no quarto onde eutinha estado, e todos entrámos, enchendo o quarto. o pacienteestava no chão, perto do lavatório. Tinha arrancado a IV do braço esaído da cama. Estavam lá duas enfermeiras, uma delas a fazer umamassagem cardíaca. Agarrei no tabuleiro trazido pela enfermeira ecoloquei-o sobre a cama, para obter uma superficie firme para a179massagem.- Ponham-no aqui - berrei, e nós os quatro levantámo-lo epusemo-lo sobre a tábua. Não havia pulso, nem qualquer esforçopara respirar. Tinha os olhos abertos, com as pupilas amplamente

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dilatadas e a boca grotescamente aberta. o interno das Urgênciasdeu uma forte pancada no peito; não obteve reacção. Apertei-lhe onariz, coloquei a boca sobre a dele e soprei. Não houve resistênciae o peito elevou-se levemente. Continuei a respirar para dentro delee depois fiz sinal para trazerem o laringoscópio, enquanto o internodas Urgências começava afazer uma massagem cardíaca, subindopara a cama e ajoelhando-se ao lado do paciente para o fazer. Decada vez que ele empurrava o peito, a cabeça do paciente saltavaviolentamente.- Pode segurar-lhe na cabeça? - perguntei a uma das

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enfermeiras. Ela tentou, mas não conseguiu. Entre os saltos, enfiei olaringoscópio na boca do homem e pela garganta abaixo. A epigloteora se via ora deixava de se ver. Avançando um pouco mais, fixei-oe o laringoscópio bateu-lhe contra os dentes. Nada. Não conseguiaorientar-me nas pregas vermelhas da membrana mucosa. Retirandorapidamente o laringoscópio, soprei algumas vezes mais, entre ascompressÕes. o interno das Urgências estava a fazer umas boasexcursÕes do esterno; o esterno subia e descia cerca de cincocentímetros, forçando indubitavelmente o sangue a penetrar no

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coração. Tentei enfiar de novo o laringoscópio, até à epiglote, coma ponta para cima, depois um pouco mais para baixo. Aí vi, por umsegundo, as cordas vocais.- o tubo endotraqueal. - Uma enfermeira entregou-mo. Eu nãotirava os olhos da garganta do homem. - Empurre-o contra a laringe -fiz sinal para o pescoço. A enfermeira empurrou. - Mais. - Nessaaltura, vi de novo as cordas vocais e empurrei o tubo. - o saco Ambu.- Fixei o saco respiratório Ambu e observei o peito enquanto ocomprimia. Em vez de o peito subir, o estômago inchou um pouco. -Raios! Falhei. - Puxei o tubo para fora, coloquei de novo a boca por

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cima da do paciente e soprei duas vezes mais. Depois, novamente o180laringoscópio. Desta vez, tinha que o colocar. - Empurre outra vez alaringe. - Empurrei com força e consegui ver as cordas vocais entrecada compressão. - Aguente assim. OK. Pare de comprimir.- o internodas Urgências interrompeu o ritmo por um segundo, enquanto euenfiava o tubo; depois recomeçou imediatamente a massagem. Como saco Ambu fixado e comprimido, o peito subiu um bom bocado. Aenfermeira das Urgências já tinha aplicado os contactos para o ECGe ouvimos o blip do osciloscópio. Não estava bem ligado à terra.

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- Ponha o ECG no dois - disse o interno das Urgências. Ficoumelhor. Eu estava a comprimir o Ambu quando chegou a enfermeiraanestesista. Tomou conta do Ambu.- Medicut. - A enfermeira passou-me um catétereeuapertei-lherapidamente o braço com um tubo de borracha. Os medicuts podemser complicados, especialmente quando se está com pressa, massão muito mais rápidos que as venostomias, porque se introduz omedicut mesmo na veia, fazendo-o passar através da pele, em vezde se fazer uma incisão, como na venostomia. Fiz penetrar o medicutno braço do doente e depois empurrei-o até achar que se

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encontrava na veia; felizmente penetrou sangue na seringa - masera apenas metade da batalha. Enpurrei o catéter de plástico umpouco mais pela agulha, esperando que ele se conservasse dentrodo lúmen da veia. Depois, retorcendo a agulha para trás e paradiante, tentei fazer avançar um pouco mais o catéter na veia.Quando retirei a agulha, um pouco de sangue escuro, vermelhoacastanhado, subiu pelo catéter e foi cair na cama. A enfermeiraainda estava a lutar com o tubo de plástico do frasco da IV. Deixei osangue correr; não tinha grande importância. Depois de fixar aextremidade do tubo ao catéter, vi o sangue desaparecer docatéter, voltando de novo para a veia, quando a IV começou a

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correr. Desatando o torniquete de borracha, observei a passagem eabri por completo a válvula até começar a correr bem. -Adesivo. -Prendi o catéter ao braço. o ECG continuava a mostrar uma fibrilaçãorápida mas grosseira. - Epinefrina - berrei. Pensava que umestimulante cardíaco pudesse acalmar a fibrilação, antes detentarmos alterá-la electricamente para um batimento regular.181- Por que não directamente no coração? - sugeriu o interno dasUrgências.- Vamos tentar a IV primeiro. - Eu não tinha grande confiança nométodo intracardíaco. A enfermeira deu-me uma seringa e disse que

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continha 11000 diluído em 10 cc. Injectei-a rapidamente no local daIV, através de um pequeno tubo de borracha, tendo o cuidado decomprimir o tubo de plástico distal para impedir a epinefrina depassar para o frasco da IV. - Bicarbonato - disse à enfermeira,estendendo-lhe a mão livre. A enfermeira deu-me uma seringa,dizendo que continha 44 miliequivalentes. - Como vai obombeamento? - perguntei ao interno das Urgências.- Muito bem - respondeu ele. Injectei o bicarbonato no mesmolocal da IV - e piquei um dedo ao fazê-lo -, enfiando a agulhaatravés do pequeno tubo de borracha. Chupando o indicador,observei o ECG. Começou lentamente a apresentar fibrilaçÕes maisfortes.

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- Que tal se desfibrilássemos agora? - sugeriu o interno dasUrgências. o desfibrilador estava carregado. A enfermeira seguravaas placas, untadas com um pouco de condutor. Parando de bombear,o interno das Urgências segurou nas placas, colocando uma sobre ocoração e a outra na parte lateral do peito. - Afastem-se da cama! -A enfermeira anestesista largou o Ambu. Zás! o paciente deu umsalto, agitou os braços, e o blip do ECG desapareceu. Quandovoltou, estava na mesma. Nessa altura chegou um residente médico,arquejante, e foi rapidamente posto ao corrente da situação.- Suspendam 5 por cento de bicarbonato na IV e dêem-mexilocaína. - A enfermeira deu ao residente médico 50 mg de

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xilocaína. Ele passou-mos e eu injectei-os. Desfibrilámos o pacientede novo. Efectivamente, tentámo-lo quatro vezes antes que afibrilação desaparecesse. Mas, em vez de se seguir um ritmocardíaco normal, todos os sinais de actividade cardíacadesapareceram e o blip electrónico do ECG ficou perfeitamente liso.- Raios! Assístole - disse o residente, observando o blip.- Epinefrina, isuprel, atropina, pacemaker: tentámos tudo o que182tínhamos. Entretanto, as pupilas do homem regressaram ao tamanhonormal, deixando de estar dilatadas como a princípio. Pelo menos,isso significava que o oxigénio estava a chegar ao cérebro e que a

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nossa massagem cardíaca era eficaz.Chegou outro interno, que se ocupou da massagem cardíaca,para que o interno das Urgências pudesse regressar às suasfunçÕes, pobre diabo. Depois foi a minha vez de fazer a massagem.- Que tal darmos-lhe cálcio? - sugeriu o outro interno. o residente injectou um pouco de cálcio. Pedi outro tubo nasogástrico, mas sóo pude aplicar depois de o interno me substituir na massagem. Nãohavia grande coisa no estômago do homem excepto um pouco de ar,provavelmente o que eu lá tinha introduzido por engano, através dotubo endogástrico mal colocado. Disse ao residente que este

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paciente era o do ECG que eu tinha pedido antes. Disse-lhe tambémque a radiografia do aparelho portátil se apresentava limpa, demaneira geral.Olhando para trás de mim, fiquei surpreendido ao ver oSupercaro ali, de pé, a observar a nossa febril actividade. Suponhoque as enfermeiras lhe tivessem telefonado. Não disse uma palavra.o residente injectou o coração diversas vezes com epinefrinaintracardíaca.Mas não conseguiu interromper a assístole, e estavam aesgotar-se as hipóteses. Bombeando e fazendo respiração boca aboca, conservámo-nos durante mais quinze minutos, enquanto o

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aparelho continuava a desenhar um traço contínuo no osciloscópio.- Pronto, já chega. Podem parar. - Era a voz do Supercaro, quefalava finalmente, depois de ter permanecido em silêncio durantequase trinta minutos. As suas palavras surpreenderam-nos e nãoconseguiram penetrar na nossa rotina, de modo que não parámosimediatamente, continuando a bombear e a soprar como se elenada tivesse dito.-Já basta - repetiu ele. A enfermeira anestesista que comprimiao saco Ambu foi a primeira a parar. Depois, o interno que estava afazer massagens naquela altura. Todos nós estávamos exaustos,ansiosos por poder voltar para a cama, e conscientes do facto de183

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que teríamos podido parar mais cedo se as pupilas do homem nãose tivessem reduzido tão bem. A constrição das pupilas é um dossinais de reanimação; isso é que nos tinha feito continuar. Mas eraevidente que, desta vez, tinha sido um sinal falso. Por isso parámose o homem morreu. o Supercaro saiu e desapareceu, corredor fora,em direcção ao posto das enfermeiras, onde preencheu a papeladae telefonou aos parentes. As enfermeiras desligaram o aparelho deECG, enquanto eu retirava uma grande agulha intracardíaca.Que tal és a atingir o coração? - perguntei ao outro interno. -Atingi-o a cem por cento, mas só em duas tentativas - respondeuele.

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- Eu só consigo cinquenta por cento - confessei. - Depois de fixaruma seringa de 10 cc à agulha, dirigi-me ao paciente e procurei aestria transversal, chamada ângulo de Louis, mais ou menos a meiodo esterno. Isto orientou-me em relação à caixa torácica. A agulhaentrou facilmente e, quando puxei o êmbolo, a seringa encheu-se desangue. Em cheio.- Acho que o meu problema tem sido estar a usar o terceirointerespaço - arrisquei. Tentei de novo, desta vez no terceirointerespaço, e, quando puxei o êmbolo, não veio sangue. - É issomesmo. OK é a tua vez. - Entreguei-lhe a seringa, e ele atingiu ocoração à primeira tentativa.

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Retirei o tubo endotraqueal do morto, limpando o muco espessoda ponta ao lençol, onde deixou um rasto cinzento.- Este tipo era realmente difícil para se introduzir o tuboendotraqueal. Queres experimentar? - Segurando cuidadosamente otubo entre o polegar e o indicador, apresentei-o ao outro interno.Eu já era bastante bom a entubar, naquela altura, porque tinhadecidido, nos últimos meses, praticar sempre que tínhamos um casode reanimação falhada como aquele, o que acontecia com bastantefrequência. Ele pegou no laringoscópio e introduziu-o. Disse que nãoconseguia ver coisa alguma. Espreitei por cima do seu ombro e

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percebi que ele não estava a comprimir suficientemente com a pontada lâmina.184- Levanta até teres a impressão de que vais deslocar o maxilar.o braço dele estremeceu, ao esforçar-se. Ainda havia qualquer coisaerrada. - Deixa-me tentar. - Retirei o aparelho e depois, com a mãodireita, empurrei-o pela laringe. As cordas vocais ficaram à vista. -Ele tem um ângulo bastante oblíquo, aqui. Experimenta outra vez,mas comprime um pouco mais a laringe. - A enfermeira veioespreitar, dizendo que precisava do laringoscópio para poderdevolver o carrinho às urgências. Com um gesto da mão, fi-la

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aguardar mais uns segundos, enquanto espreitava por cima doombro do outro interno. Ouvi-o emitir um som de satisfação, ao verfinalmente as cordas vocais. Depois, afastando-se, entregou olaringoscópio à enfermeira, que produziu um som de desaprovação.Subitamente, encontrei-me só, enquanto toda a actividade seafastava, como numa sombria procissão, para outros pontos dehospital. Voltei a perguntar a mim mesmo se deveria ir para casa deKaren ou para o meu quarto. Sentía-me solitário, especialmenteporque o homem tinha morrido. Eu fora uma das últimas pessoas a

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vê-lo vivo. Mas eu tinha feito tudo o que podia - todos nós tínhamos- e achava que nos tínhamos esforçado bastante. Além disso, oSupercaro obrigara-me a retirar o tubo nasogástrico e a dar-lhe ummedicamento qualquer. Portanto, a culpa não era miinha, embora,provavelmente, ele pensasse que era. Sem dúvida poria a culpa emtodos aqueles testes dispendiosos. Esse era um dos problemas comos doentes particulares. Eu estava disponível para observar opaciente, mas não tinha verdadeira responsabilidade, ao passo queo médico assistente tinha a responsabilidade final, mas não se

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encontrava presente. Isso tornava a minha posição ambígua, paranão dizer mais. Era tudo complicado de mais para as 4 horas damadrugada. Mas eu ainda sentia curiosidade quanto à últimainjecção do Supercaro. A enfermeira tinha dito que era um sedativo.Se voltasse atrás para consultar a ficha, iria ver o cretino outra vez,e provavelmente ainda teria que ouvir comentários sobre ascontagens sanguíneas dispendiosas. Mas, enquanto seguia pelocorredor, decidi correr o risco.185o Supercaro já se tinha ido embora. Foi um alívio; e era tambémuma indicação do seu interesse pelo ensino. Seconal, era o quedizia a ficha. Nada acrescentava ao que eu já sabia. Relendo a

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história, constatei que o homem nunca tinha tido problemascardíacos. o estômago e os rins também estavam normais. Depois lique a hérnia era enorme, do tipo de bola de basquetebol; mas issotambém não explicava o que sucedera. Algo lhe tinha provocadofalha respiratória que acabara por levar à falha cardíaca. Adistenção gástrica que eu tinha aliviado deveria ter contribuídopara o problema, mas não o tinha causado. Seria da anestesia?,pensei. Voltando-me para o relatório da anestesia, verifiquei quetinha sido feita indução de pentotal, e óxido nitroso paramanutenção, sem complicaçÕes. Esforcei-me em vão para unir todas

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as peças soltas, mas não consegui orientar-me no labirinto. Estavaexcessivamente extenuado. o melhor era voltar depressa para acama, pensei cinicamente, de modo a estar lá quando a telefonistaligasse para me acordar e recomeçar a trabalhar. Muito engraçado.Mas foi mesmo uma péssima noite de terça-feira. As noites deterça-feira eram geralmente activas, como as noites de segundafeira,visto que tanto a segunda-feira como a terça-feira tinhamsempre programas operatórios, e isso significava muitos problemasnocturnos de mudanças de pensos, dores e drenos; no entanto, eucostumava conseguir dormir um pouco. Desta vez, não; mal tinha

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encostado a cabeça à almofada, o telefone soou de novo. Era daCirurgia; estava a chegar um caso para amputação e precisavam demim como assistente.Havia, para mim, algo especialmente deprimente numaamputação, especialmente de uma perna. Uma apendicectomia ouuma colecistectomia ou qualquer outra operação interna deixavam apessoa exteriormente intacta. Mas levantar um pé e uma perna damesa de operaçÕes e separá-los da pessoa a quem tinhampertencido era um acto de alteração irreversível. Por muito estafadoque me sentisse, nunca consegui olhar para a extracção de ummembro humano como para os outros processos médicos.

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Mas tinha de ser feito. Por isso levantei-me de novo, com a mais186total falta de motivação, e arrastei-me para a Cirurgia. Toca a enfiaro fato esterilizado e a pôr a touca e a máscara. Depois de estaúltima estar colocada, puxei-a para baixo, deixando osfios atados, eobservei-me no espelho. Quase nem reconheci o rosto devastadoque me fitava.Felizmente, quando cheguei à sala de operaçÕes, soube quenão se tratava de uma amputação, mas de uma tentativa de salvaruma perna, cujo joelho tinha sido esmagado por um camião. Apenaso nervo e a veia estavam intactos, atravessando o intervalo onde se

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tinha situado o joelho. A artéria, os ossos - tudo tinhadesaparecido. Com surpresa minha, encontrei lá dois cirurgiÕesparticulares, ambos excelentes em casos vasculares. Perguntei seseria necessário, uma vez que eles eram dois, e eles responderam"Talvez". Isso não me deixou outra alternativa além de me esterilizare vestir a bata e calçar as luvas esterilizadas.A minha tarefa consistia em colocar-me ao fundo da mesa,voltado para o anestesista, e segurar o pé, de modo a ficar rígido,segurando-o com as duas mãos. Ambos os cirurgiÕes,evidentemente, tinham de estar perto do meu extremo da mesa para

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trabalhar no joelho. Mas estavam de costas para mim, comohabitualmente - em especial o que se encontrava à minha esquerda,inclinado sobre a mesa. Eu não via absolutamente nada. o relógio àminha direita marcava 5 horas, na altura em que a operaçãocomeçou a desenrolar-se, Pela conversa deles, deduzi que estavama fazer um enxerto da artéria principal que passa por detrás dojoelho em direcção ao pé. Uma hora passou-se tão lentamentequanto uma hora pode passar-se, enquanto o ponteiro dos minutosse arrastava pelo mostrador do relógio. Eles aplicaram o enxerto esurgiu uma pulsação no pé, que desapareceu de novo ao fim de

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alguns minutos. Isso queria dizer que os cirurgiÕes tinham que abriro enxerto e retirar um coágulo que acabara de se formar. Obtiveramoutra pulsação, que também desapareceu. Outro coágulo. Abriroutra vez. Coágulo. E o processo foi-se arrastando indefinidamente.Eu estava absolutamente espantado com a calma persistência e187paciência deles.Sem ter que fazer, além de olhar para o relógio e ficar aliparado, com as mãos sempre na mesma posição, comecei a ficarincontrolavelmente sonolento. o som das vozes dos cirurgiÕescomeçou a entrar e a sair da minha cabeça, juntamente com a

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imagem da sala. Apenas semiconsciente, esforcei-me ao máximopara me manter acordado, mas perdi; adormeci a segurar no pé. Nãocaí para o chão. A minha cabeça foi descaindo lentamente, até quea testa foi embater levemente no ombro do cirurgião à minhaesquerda. Isso fez-me acordar, tão próximo do tecido da bata, quepodia ver o cruzamento de cada fio. o cirurgião olhou para trás eendireitou-me com a ponta do cotovelo. Por cima da máscara, unsfrios olhos azuis fitaram-me com nítida desaprovação. Eu já não meralava, mas o incidente serviu para me manter acordado, porquetinha reavivado a minha fúria latente.

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Eram oito da manhã e lá estava eu, depois de uma noite semdormir, com um horário completo de operaçÕes à minha frente,ainda de pé e a segurar aquele pé como um peso morto. Era umatarefa para sacos de areia. Na verdade, os sacos de areia teriamfeito um trabalho melhor; não adormecem nem se enfurecem. Nãoera a primeira vez que eu adormecia na sala de operaçÕes. Certavez, ao prestar assistência a um caso de tiróide, depois de umanoite em claro, tinha adormecido a segurar os retractores. Apenaspor um instante, penso eu, porque subitamente tinha tido umdaqueles esticÕes que se experimentam ao adormecer, o que

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assustou o cirurgião. Ele perguntara-me, em parte por brincadeira,se eu ia ter um ataque epiléptico. Mas não creio que tivessepercebido que eu tinha adormecido. Mas este tinha, e estavairritado, embora ele e o seu colaborador continuassem a ignorar-me.Finalmente, depois de terminada a intervenção e quando eu mopreparava para sair, o cirurgião chamou-me.- Bom, Peters, se adormecer durante uma operação indica o seuinteresse pela cirurgia, acho que o caso deveria ser levado àatenção da direcção. - Em vez de lhe dizer que fosse para o diabo,188recuei e aleguei falta de sono e não ter conseguido ver o campo

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operacional. Não ficou impressionado. - Acho conveniente que istonão volte a repetir-se.- Não senhor. - Saí, abrigando pensamentos assassinos e poucopráticos.o horário regular das intervençÕes cirúrgicas tinha principiadomais de uma hora antes. Na realidade, eu tinha perdido o meuprimeiro caso, o que não me incomodou muito. Era o trabalho de umsegundo assistente numa colicistectomía, um caso de rotina total.Além disso, tinha mais dois casos iguais nessa tarde, Saindosubrepticiamente da sala dos cirurgiÕes, fui comer umas fatias depão, o meu primeiro alimento em cerca de quinze horas. Quanto a

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sono, não estava melhor - uma hora nas últimas vinte e seis. Sentiameum pouco fraco. A ideia de outro dia inteiro na sala deoperaçÕes não era animadora.Na sala, fui abordado por um residente chefe irritado que exigiusaber onde eu tinha estado durante as rondas. Logo desde o início,um interno aprende a impossibilidade de agradar a toda a gente.Ultimamente, porém, eu perdia todas e não conseguia agradar apessoa alguma, e muito menos a mim próprio. Fiz ao residente chefeum relatório dos poucos pacientes que tinha. Dado que estava noserviço de ensino privado, não tinha muitos pacientes exteriores -

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apenas aqueles em cujas operaçÕes tinha colaborado. Ambas ashérnias estavam a progredir bem; as gastrectomia já principiara acomer; as varizes estavam bem e já andavam; e nenhuma dashemorróidas tinha movimentado os intestinos. As doençasdesfilaram verbalmente diante de mim, sem as ligar a nomes oupensamentos pessoais.Quase me esqueci de mencionar o doente do aneurisma, paraquem tínhamos marcado uma a ortografia para esse dia. Tinha-nossido aviado de uma das ilhas exteriores, porque a sua radiografiaapresentava uma sombra suspeita no campo do pulmão esquerdo.Era provavelmente um aneurisma, uma protuberância na artéria

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principal. Sem uma intervenção cirúrgica, um aneurisma destescostuma rebentar ao fim de seis meses, mais ou menos, e o doente189sofre uma hemorragia fatal. Por isso, era importante actuarrapidamente, e ter a certeza do diagnóstico, o que poderíamosfazer por meio de um aortograma. Este procedimento relativamentesimples tinha lugar nos raios-X, onde um corante opaco seriainjectado na artéria do homem, mesmo acima do coração. Por algunsmomentos, antes que o sangue o varresse, o corante delinearia aforma da artéria, e as radiografias feitas em rápida sequênciacaptariam a imperfeição. Só então poderíamos saber se a operação

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seria ou não necessária. Dado que eu tinha elaborado a história efeito o exame físico do homem, queria estar presente, e pedi-o aoresidente chefe.- Claro - disse ele -, se o horário das operaçÕes permitir. Essaparte do sistema não se tinha modificado durante os últimos novemeses. Nós, os internos, continuávamos a ser atirados para trás epara diante entre os casos, abandonados aos caprichos do horáriocirúrgico; era frequente não podermos ver os nossos doentes.Quando se começa a trabalhar com um doente, dever-se-iaacompanhá-lo durante todos os processos de diagnóstico e durante

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a operação. Ninguém poderia argumentar contra isso, quer do pontode vista académico, quer do ponto de vista do bem do própriopaciente. Não obstante, sempre que alguém precisava de mais umpar de mãos numa extracção da vesícula (os nossos cérebros, aoque parecia, nunca eram necessários), éramos sacrificados, sem terem consideração o aspecto educativo ou o efeito psicológico sobreos nossos pacientes. Era mais uma maneira de nos fazerem ver comoéramos dispensáveis.o residente chefe desapareceu e, alguns minutos depois, recebium telefonema da cirurgia, dizendo-me que ele me tinha marcadopara fazer uma gastrectomia que já estava a realizar-se.

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Aparentemente, eram precisas as tais mãos extra. Terminei o meupão duro e arrastei-me uma vez mais para a área da cirurgia,fazendo mentalmente um mapa do resto do dia na sala deoperaçÕes. Depois daquela gastrectomia, estava marcado para umanefrectomia - uma extracção de um rim - na Sala 10, e depois para190duas colecistectomias. Quando passei pela Sala 10, constatei que anefrectomia já estava em curso e eu iria perdê-la. Nakano, um outrointerno, estava a esterilizar-se. Um rapaz de sorte. Aquelanefrectomia era muito mais interessante para mim que todos osoutros casos juntos. o doente tinha um tumor no rim e o tumor tinha

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de ser extraído, embora não fosse maligno. Até há pouco tempo, umcirurgião com um caso desses teria sido forçado a extrair o riminteiro; actualmente, com o progresso da radiologia, esses tumorespodiam ser "mapeados" com grande exactidão, de modo que apenasse extraía a parte afectada. Ali, bom, ficava para outra vez.Continuei a avançar pelo corredor, em direcção à gastrectomia.Normalmente ficaria desanimado com a ideia de duascolecistectomias seguidas. Mas, naquele dia, estava com um poucode sorte, porque estavam ambas marcadas com um cirurgião quesabia ensinar. Aquele homem era como um oásis num deserto de

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conservadorismo. Evidentemente, havia sempre a hipótese de agastrectomia a que eu ia estar presente ultrapassar a primeiracolecistectomia com o cirurgião docente. Tinha esperanças de queisso não sucedesse.Mal reparando na actividade que me circundava, dirigi-melentamente para a Sala 4, sem pressas, forçando-me a avançar. Umaolhadela para a lista de operaçÕes colocada no quadro de afixaçãoaumentou o meu desânimo. Como o Supercaro, aquele médico declínica geral era um homem de avançada idade, pouca habilidade edestituído de modéstia. Era também dado a contar históriasintermináveis e egocentristas sobre os seus feitos nos velhos

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tempos. Ao que parecia, tinha, durante anos, transportado sobre osombros o fardo de todo o serviço médico americano,desempenhando feitos de capacidade e resistência que faziamperder a cabeça a quem o ouvia. Pelo menos a dele já tinham feito.Um residente brincalhão tinha-lhe dado a alcunha de Hércules, e onome pegara. Hércules era um dos tais que internava sempre osseus pacientes no serviço de aprendizagem, para que os internoselaborassem as histórias dos pacientes e fizessem os exames físicos191por ele. Se algum solicitasse uma radiografia ou mesmo uma

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contagem de sangue extra, trepava pelas paredes, censurando-opela extravagante utilização de dispendiosos testes laboratoriais.Aparentemente, 99 por cento dos testes laboratoriais tinham sidodesenvolvidos depois de ele se ter licenciado em Medicina, mais oumenos na época em que os Curie começavam a brincar com auraninite. Além disso, tinha o hábito de receitar penicilina outetraciclina para cada constipação que aparecia nas Urgências - umprocesso que praticamente todas as autoridades médicasconsideram pior que nada fazer. o facto de ele dever serconsiderado como um professor era uma piada de mau gosto.

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Já tinha prestado assistência a Hércules, alguns meses antes, naextracção de um cálculo renal. Nessa altura, ele tinha acabado deler, pelo menos era o que afirmava, um artigo recente querecomendava üma nova maneira de extrair cálculos dos rins. Euduvidava muito de que Hércules fizesse leituras profundas oufrequentes, mas aquele artigo tinha-o intrigado - embora nãoconseguisse recordar-se dos nomes nem da revista nem do autor doartigo, nem sequer do local onde a experiência tinha sido feita.Enquanto trabalhava no rim, alimentando as noçÕes do tal processonovo, ia mantendo o seu hábito de cortar artériasindiscriminadamente e depois recuar e dizer "Trata, dessa

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hemorragia, meu rapaz", sem interromper, praticamente, o queestava a contar. o residente tratava da incisão, aplicando a esponjade gaze e os hemostáticos, enquanto o cirurgião pontificava.Aquele novo método de Hércules para o rim implicava aaplicação de uma sutura crómica 2-0 - um fio bastante grosso -através do rim e depois, segurando a sutura de ambos os lados emanipulando-a um pouco como se fosse umafaca mal afiada, irserrando o rim. Isto deveria reduzir a hemorragia. o processopareceu-me um pouco estranho e excessivamente simplista.Constatei que o meu cepticismo era saudável. Hércules tinha-seesquecido de um ponto vital, que o artigo repetidamente

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sublinhava: antes de "serrar" com a sutura, o cirurgião deveriaadquirir o controlo do pedículo renal - a fonte de sangue do rim - de192modo que a passagem de sangue através daquele órgão fosseinterrompida. Pois bem, o nosso temerário inovador mergulhou decabeça, nada fazendo para controlar o afluxo sanguíneo, serrandodescontraidamente o rim, "para reduzir ahemorragia". o resultado foia pior hemorragia descontrolada que já vi numa sala de operaçÕes -excepto numa ocasião em que o catéter auricular direito de umaparelho cardíaco-pulmonar se desprendeu do doente. Mas isso foi

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um acidente legítimo. o desastre do rim não. o sangue dos vasos dorim encheu imediatamente a incisão, transbordando e encharcando amesa de operaçÕes e a equipa operatória. Começámos a introduzirsangue no operado através de uma IV, como num poço sem fundo.Ao fim de quatro litros, tínhamos finalmente aplicado pinças no rim,feito uma sucção suficiente para permitir a extracção do cálculo efeito enormes suturas no córtex renal. Dado que o corpo humanocontém apenas cerca de seis litros de sangue, tínhamospraticamente esvaziado o homem, para o voltar a encher. Estávamostodos bastante assustados. Até o anestesista - normalmente num

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outro mundo, por detrás da cortina de éter, com um olho norespirador automático e ambas as mãos no jornal - estavaperturbado.Naturalmente, eu não estava muito entusiasmado com a ideiadaquela gastrectomia com Hércules, que já via lá dentro a trabalharenquanto me esterilizava. Tinha esperanças de que ele não tivesseandado a ler mais artigos. Estava lá um residente chamado O'Toole,mas não se viam internos. Quando entrei, rendendo-me, constateique a atmosfera não era muito boa.- Quero uma pinça decente - berrou Hércules à enfermeira,enquanto atirava um por cima do ombro contra a parede de azulejos

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brancos. -Peters, venhajá para aqui. Como é que se há-de operarsem ajuda? - Alguns dos cirurgiÕes estavam habituados a isso. Namaior parte do tempo, portavam-se como crianças petulantes,especialmente no que se referia aos instrumentos, que gostavam deatirar fora indiscriminadamente e utilizar de formas inesperadas -como, por exemplo, cortar arame com a tesoura de dissecção.193Todavia, quando lhes entregavam um desses instrumentos, que elespróprios poderiam ter estragado, tinham ataques de fúria,atribuindo a culpa de todos os fracassos recentes à falta de

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equipamento adequado. Ninguém falava destas explosÕes. Ao fimde algum tempo, habituávamo-nos a elas.Quando me aproximei de Hércules, ele fixou-me as mãos emvolta de dois retractores e disse-me que levantasse, não puxassepara trás. Uma frase que já era habitual. Na verdade foi possívelfazê-lo, porque nada havia para retrair naquele momento. oestômago, em que Hércules estava a trabalhar, encontrava-semesmo ao cimo da incisão, bem à vista. Ele necessitaria deretracção mais tarde, quando fizesse a ligação da bolsa doestômago com o início do intestino, chamado duodeno. Esperava

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fervorosamente que elejá tivesse cortado os nervos do estômagoque são parcialmente responsáveis pela secreção dos ácidos. Essesnervos do vago envolvem o esófago e, para que o cirurgião ospossa cortar, o interno tem de segurar a caixa torácica; eu detestavaessa retracção.Lá estava eu de novo no meu posto da sala de operaçÕes, aolhar para um ponteiro dos minutos que parecia colado ao relógio.Enquanto lutava para me manter acordado, ficava com os olhosdesfocados depois de cada bocejo, e sentia uma incontrolávelcomichão no nariz, do lado esquerdo, um pouco abaixo do olho,

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como se estivesse a ser atacado por um subtil e sádico insecto.A posição da minha máscara era outra tortura subtil. De cada vezque eu bocejava, descia um pouco, talvez um centímetro. Ao fim decinco bocejos, caiu por completo do nariz e ficou apenas a cobrir-mea boca. Isto fez entrar em acção a enfermeira circulante. Colocou-seao meu lado e levantou a máscara, tocando-lhe com muito cuidado,de modo a evitar tocar na minha pele, como se toda a minha carafosse infecciosa. Desejando aliviar a comichão, tentei diversas vezestocar com o nariz na mão dela, enquanto ajustava a máscara. Masela era mais rápida que eu, e afastava a mão sempre que estavaquase a tocar no meu nariz.

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Hércules estava mais nervoso e confuso do que habitualmente.194Em volta da mesa, ninguém conseguia imaginar qual seria o seumovimento seguinte. Felizmente eu estava imobilizado pelosretractores, pelo que não se esperava de mim qualquer contribuição,mas o pobre O'Toole parecia um rato num labirinto, chamado adesempenhar impossíveis feitos de antecipação.- O'Toole, está a trabalhar comigo ou contra mim? Segure-menesse estômago! - Enquanto fazia esta pergunta retórica, Hérculesaplicou na mão esquerda de O'Toole uma forte pancada com atesoura Mayo. O'Toole rangeu os dentes e ajustou a posição doestômago.

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- Pelo amor de Deus, Peters, nunca aprendeu a fazer retracção? -Agarrou-me no pulso pela sexta vez, para reajustar os retractores,embora isso nada tivesse a ver com o que ele estava a fazernaquele momento. Na verdade, eu não era necessário; mas elequeria que eu estivesse ali. Era como muitos cirurgiÕes, que sesentem diminuídos quando não são assistidos por um residente eum interno, independentemente de serem ou não necessários. Euera um símbolo da sua posição.Hércules tinha dado a volta, de modo que estava a olhar para assuas costas quando começou a aplicar a segunda camada de suturasna bolsa do estômago. Não via nem o campo operatório nem asminhas mãos.o anestesista disse subitamente.

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- Peters, por favor não se incline sobre o peito do paciente. Estáa comprometer a ventilação. - Empurrou-me para trás para que nãoimpedisse a linha intravenosa. Mas eu não tinha para onde ir, poisjá estava quase encostado a Hércules.Nessa altura O'Toole recuou abruptamente com uma expressãoassustada no rosto, erguendo a mão direita. Vi algumas gotas desangue que escorriam de um corte feito na luva de borracha, naparte lateral do dedo indicador.- Se tivesse o dedo onde devia estar, isso não tinha acontecido,O'Toole. Vamos a acordar - berrou Hércules.O'Toole ficou em silêncio, voltando-se para a enfermeira, que195

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lhe enfiou outra luva. Penso que se sentia grato por ainda ter odedo.Apesar de tudo o cirurgião conseguiu terminar, e começámos afechar. Uma das minhas tarefas consistia em irrigar com uma seringade pêra depois de a forte camada fascial fibrosa da paredeabdominal ter sido fechada com suturas de seda a cerca de meiocentímetro de intervalo. O'Toole e eu, nessa altura,já começávamosa divertir-nos e, enquanto Hércules lavava a mão, levantei a seringadaferida, porcima do paciente, e projectei um jacto da quentesolução salina para o outro lado da mesa, atingindo O'Toole noestômago. Os nossos olhos fitaram-se, compreendendo-se; éramosparceiros numa situação infeliz.

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Voltando para junto de nós, Hércules mostrou-se subitamentejovial. Era óbvio que pensava ter novamente realizado o impossível.- É uma pena que a minha arte fique oculta por debaixo da pele,em vez de o doente a poder ver. Ele só tem para mostrar umapequena incisão. - O'Toole revirou os olhos, fingindo-se aflito.Dado que O'Toole e Hércules estavam a acabar, chamei a mimtoda a minha coragem, para poder sair.- Tenho várias operaçÕes a seguir, Doutor. Poderia dispensar-meagora? - Isto irritou um pouco o velhote, mas libertou-me com umgesto de noblesse oblige.Para começar, cocei o nariz, durante longo tempo e com força,

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numa experiência sensual. Depois urinei, o que foi igualmentesatisfatório. Eram onze e vinte cinco, e, dado que o paciente danefrectomia estava a sair da Sala 10, tinha alguns minutos enquantoa sala era preparada para a primeira das minhas colecistectomias.Ali perto, à porta da sala de recuperação, vi Karen, o meu anjo demisericórdia e sexo, imaculada no seu uniforme branco. Tinha vindobuscar um paciente para a enfermaria e, quando me viu, dirigiu-meum amplo sorriso, perguntando-me, com um toque de sarcasmo, seeu tinha dormido bem nessa noite. Disse-lhe que fosse simpática, se

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não, numa destas noites, a atiraria para fora da cama. Olhando emvolta, mandou-me calar, acrescentando que tinha dito ao namorado196que não queria sair nessa noite; estaria em casa, provavelmente apartir das onze, caso eu estivesse livre. Arquivei a informação, masnão me parecia que fosse possível fazer alguma coisa.o meu aneurisma tinha sido marcado para o aortograma às onzee quinze, e desci para ver o que estava a suceder. Entrando na salade fluoroscopia, vi que o residente chefe estava nos preparativosfinais para iniciar o estudo.- Chegou dez minutos atrasado, Peters. Poderia ter-me ajudado

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a meter o catéter no bolbo aórtico.- E eu teria vindo, se não fosse uma operação. - Eviteiconscientemente dizer "graças a si".- Bom, cá está a posição do catéter. Ponha um avental forradode chumbo. Esta fluoroscopia emite uma data de radiaçÕes. Tem deproteger as suas gónadas.Seguindo o conselho, peguei num dos pesados aventais ecoloquei-o. Pondo-me atrás do residente chefe, podia ver o ecrã.Quando as luzes se apagaram, o fluoroscópio entrouautomaticamente em fUncionamento com um estalido sonoro. Aimagem era extremamente fraca, como habitualmente. Para se ver

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bem uma fluoroscopia, é preciso adaptar os olhos, usando óculos delentes vermelhas durante cerca de trinta minutos antes. Nãoconseguia ver muito bem o aneurisma do meu paciente no ecrã,porque não tinha tido possibilidade de preparar a visão, masconseguia distinguir a pesada tira rádio-opaca do catéter.- Cá está a ponta do catéter. - O dedo apontado do residentechefe recortou-se contra a luz do ecrã. - Está na aorta, mesmo acimado coração. Não a vê saltar a cada contracção? - Isso conseguia euver sem dificuldade. - Agora vamos injectar o corante opaco naartéria, para obtermos uma imagem e, para o fazer, teremos de usar

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o injector de pressão. - Indicou-me um pequeno aparelho queparecia uma bomba de bicicleta deitada de lado.Tinha três ou quatro válvulas de fecho na extremidade - euachava que uma ou duas teriam bastado para prevenir um acidente.- Basta-nos empurrar esta alavanca, que projecta o coranterapidamente para o coração, a cerca de 400 psi. Ao mesmo tempo,197a câmara Schonander dispara à média de uma radiografia em cadameio segundo, durante dez segundos. Nós vamos observando noecrã de flúor.o residente chefe passou para os preparativos finais, falandopelo telefone com os técnicos de raios-X, para se certificar de que

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eles estavam a postos, e foi colocar-se por detrás do braço doinjector de pressão. Desejando toda a protecção que fosse possívelobter, meti-me por detrás da protecção de chumbo com o técnico deraios-X, que era bastante robusto. Observámos através da janela dequartzo.A um grito do residente chefe, o técnico de raios-X pôs em acçãoa câmara Schonander, que engrenou imediatamente, tirandoradiografias sucessivas, enquanto o residente chefe comprimia oinjector de pressão até ao fim. o corante correu do injector para asválvulas e aí, em vez de ser projectado para o coração do paciente,

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ergueu-se num geyser gracioso até ao tecto, onde foi embater,correndo um pouco ao longo dele antes de começar a pingar sobre oresidente chefe, o paciente e toda a maquinaria. o residente chefetinha-se esquecido de abrir a última válvula. Quanto ao paciente,ficou a pestanejar, olhando em volta, tentando perceber queestranho teste seria aquele. o residente chefe ficou num estado dechoque que começou a transformar-se rapidamente em exasperação.Dado que seria necessário recomeçar todo o processo e eu já estavaum pouco atrasado para a colecistectomia, aproveitei aoportunidade para fazer uma saída inconspícua e corri para o blocooperatório.

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Trabalhar com um verdadeiro profissional é muito diferente, sobtodos os aspectos, de prestar assistência a um Hércules ou a umSupercaro, e o Dr. Simpson era o melhor que o hospital tinha. Com oresidente de um lado e eu do outro, esterilizámo-nos os três, aconversar e a brincar. Simpson contou-nos a história de um professorda Colúmbia que tinha descoberto uma maneira de criar vida nolaboratório. Corria tudo bem até a mulher o apanhar.Uma piada simples - talvez, pensando bem, nem sequer muito198boa. Mas, no contexto das horas passadas com Hércules, da imagem

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do corante a espalhar-se pelo tecto da sala de flúor, e do meucansaço, aquela piada fez-me rir quase histericamente. Aindaestávamos os três a rir quando entrámos na sala de operaçÕes,onde o ambiente se modificou imediatamente, passando parasimpática concentração. Prontos para trabalhar, conservávamosainda num tom ligeiro, mas, não obstante, intensamenteinteressado na tarefa que nos aguardava.A enfermeira entregou um bisturi a Simpson. Foi interessante amaneira como ele iniciou a operação. Não houve pausa. o bisturi foiempunhado e produziu imediatamente um corte perfeito noabdômen. Não houve paragens para deter as hemorragias comhemostáticos.

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- Para quê andar por aí a esgravatar como uma galinha? - diriaele, ao terminar rapidamente a incisão, com o mesmo gestodecidido e seguro, enquanto os tecidos se abriam. Depois, oresidente segurou os tecidos do seu lado e o cirurgião do outro,usando ambos forceps dentados, e, com mais um rápido golpe dobisturi, chegaram ao abdômen. Só então algumas hemorragias foramtratadas. Não mais de três minutos da pele à cavidade peritoneal.Perfeito.Desta vez, porém, Simpson não fez o primeiro corte.Surpreendeu-nos, entregando o bisturi ao residente.-A vesicula é sua - disse.-Um movimento em falso e ponho-o adar clisteres durante um mês. - Sob seu olhar experiente, foi feito o

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mesmo tipo de incisão, mais ou menos à mesma velocidade. ocirurgião explorou rapidamente o interior, depois o residente e euem seguida.Estômago, duodeno, fígado, vesícula biliar (pude sentir oscálculos), baço, intestinos. o exame foi cauteloso mas completo;quando se tem o braço mergulhado até ao cotovelo no abdômen dealguém, há tendência para se ser cauteloso. Disse a Simpson queestava a ter dificuldade em encontrar o pâncreas. Ele explicou-meum ponto de referência e um volume. Encontrei-o logo.199Utilizando a técnica de Simpson, o residente colocoucuidadosamente as toalhas brancas ensopadas em solução salina

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que são usadas para separar a vesícula biliar da massa intestinal.Eu recebi os habituais retractores. Por sugestão de Simpson, oresidente deslocou-se um pouco, para eu poder ver a incisão. Tudodecorreu normalmente com encorajamentos mas sem a assistênciamanual de Simpson. A vesícula biliar saiu perfeitamente, a base foifechada, e em seguida a pele, tudo em trinta minutos. Sentindo-mebem agora, felicitei o residente, a caminho da sala de recuperação.Ele tinha feito um trabalho de profissional.Com trinta minutos entre casos, Simpson e eu descemos para veralguns dos nossos doentes, um dos quais, uma gastrectomia, eu

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estava a seguir de perto, depois de ter ajudado à operação. Tinhamesido atribuída a responsabilidade total de prescrever paraaquele caso, embora eu tentasse seguir as preferências de Simpsonque, sabía-o já, eram seguras e sensatas. Quando alterava uma dasminhas ordens, como sucedeu uma vez por outra, escreviainvariavelmente uma pequena explicação, uma opinião sobre umdeterminado medicamento ou processo. Era um professor nato.Depois da nossa visita à enfermaria, vestimos novos fatosesterilizados e começámos a esterilizar-nos de novo, da mesma

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maneira alegre, desta vez sem histeria da minha parte. Depois dereflectir, resolvi, desta vez, desinfectar-me com Betadine; o seu tomamarelo pálido sempre era uma variação, depois do pHisoHexincolor que geralmente utilizávamos. Ao entrar na sala deobservaçÕes, apercebemo-nos da habitual rotina hierárquica. Aprimeira toalha foi entregue a Simpson, a segunda ao residente e aterceira a mim. o mesmo se passou com as luvas.Enquanto rodeávamos o paciente, a enfermeira entregou umbisturi a Simpson e, para meu grande espanto, ele entregou-mo.- OK, Peters. Extraía aquela vesícula, e extraia-a à primeira,

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senão tiro-lhe a sua sem anestesia. - Obviamente, eu nunca tinhafeito uma colecistectomia antes, embora tivesse visto fazer uma boacentena, e esta situação não fazia, decididamente, parte das quepoderia imaginar. Estava interessado numa nova sessão como200espectador interessado, vendo dois profissionais (o residente jánão era novo) a trabalhar em conjunto. Agora, no entanto, já nãoseria um espectador, mas um participante - na realidade, o actorprincipal, Subitamente, o homem deitado sobre a mesa e o bisturina minha mão adquiriram uma nova realidade. Interiormenteinvadido pela incerteza, sabia que, se agora hesitasse, poderia

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nunca mais sentir coragem para experimentar. Consegui dominar astremuras que ameaçavam estender-se à minha mão direita, agarreifirmemente no bisturi e tentei copiar a primeira incisão de Simpsonna parte superior do abdómen, introduzindo-o até ao cabo e depoisdescendo diagonalmente mesmo abaixo das costelas, do ladodireito, tentando sempre conservar o bisturi num ângulo de noventagraus com a pele. Queria agradar a Simpson como um filho desejaagradar ao pai.- Por Deus, ainda há esperanças para si - disse ele, porbrincadeira, sem saber como as suas palavras soavam docemente

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aos meus ouvidos. Quando repeti a manobra, os músculos e agordura separaram-se e retraíram-se. Houve alguma hemorragia, masnão muita.- Forceps. - A enfermeira entregou-mos e deu um par aocirurgião. Levantei um dos lados da incisão e ele a outra. Nessaaltura estávamos muito perto da fina membrana peritoneal quereveste a cavidade abdominal. Estávamos a fazer a elevação paraproteger os órgãos subjacentes, quando empurrei a lâmina dobisturi. Pop! Surgiu um orificio no abdómen e eu larguei o forceps.- Segure no forceps - sugeriu Simpson - e corte enquantoconsegue ver. - Tentei fazê-lo, avançando cuidadosamente porque o

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fígado e os intestinos estavam claramente visíveis na incisão quealargava. Correu tudo bem. Depois, para fazer a extremidade inferiorda incisão, eu teria que mudar de técnica. Largando o forceps,introduzi a mão na incisão e abri o resto do peritoneu, cortando porentre os dedos. o meu coração batia violentamente. Já não mesentia cansado, nem reparava no relógio, no rádio ou noanestesista. Estava assustado mas determinado. Simpson apalpou e201depois eu apalpei, e o residente também, e depois o residentepegou nos retractores, enquanto eu me afastava um pouco para odeixar ver, se desejasse. Tentei seguir a técnica de Símpson com as

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toalhas abdominais. Ele ajudou-me a colocar a última e depois, coma mão, enrolou o duodeno, afastando-o para que eu pudesse veruma curva lisa de tecido que se estendia desde a parte superior doduodeno até à vesícula biliar. Depois de aplicar clamps na vesículae a puxar, utilizei a tesoura de Metzenbaum para empurrar parabaixo o tecido delicado. Havia por ali, algures, uma artéria, aartéria cística, que transportava o sangue para a vesícula. Não apodia cortar.Sentia os músculos do pescoço rijos como pedras, quando meinclinei para diante, tentando ver claramente. Simpson disse-me queme endireitasse, ou não aguentaria mais de quinze minutos. A

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artéria apareceu - com as dimensÕes habituais, de uma artériacística - e isolei-a com um clamp. Depois atei-a e peguei naspontas. Primeira laçada. Passei o fio com o indicador direito.óptimo. Segunda. Para baixo. Que tensão deveria dar ao fio? Assimbastava; não convinha que se partisse. Mais uma laçada, para ter acerteza. Com a ajuda da pinça, uma outra sutura rodeou a artériacística. Desta vez tinha que dar um nó mais abaixo, junto da artériahepática que penetrava no fígado. A artéria cística derivava daartéria hepática, e, puxando levemente a sutura já feita em volta da

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artéria cística, pude ver a parede da artéria hepática. Na realidade,até conseguia ver a ramificação que se dirigia ao lado direito dofígado. Isso fez que me sentisse melhor, porque havia sempre operigo de confundir aquela malvada com a artéria cística e atá-la emvez dela.Estava muito preocupado com aquele segundo nó na artériacística. Era o nó mais importante de toda a operação. Se sedesmanchasse, alguns dias depois, o paciente morreria de umahemorragia interna. Tendo isto em mente, passei a primeira laçadae espreitei para o orifício. Parecia estar bem. Involuntaríamente,olhei para Simpson, que não fez comentários. Por isso terminei a

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sutura e depois cortei a artéria entre as duas ataduras, começando202a isolar a vesícula.Veio em seguida o canal cístico, através do qual normalmentecorre a bilis. Tratei-o da mesma maneira, atando-o com duas suturase cortando entre os nós. Uma vez isolada a vesícula, passei tensa elevemente o bisturi em volta do seu leito, de modo a separar acamada exterior de tecidos brilhantes. Com a tesoura, comecei alevantar a vesícula e a afastá-la do fígado.- Ele faz que isto pareça difícil - brincou Simpson. - Se demoramuito mais tempo, aquilo acaba por gangrenar. - Mal o ouvi. Aoperação ainda só durava havia vinte e cinco minutos.Com mais um corte suave e um puxão, a vesícula libertou-se.

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Deitei-a no recipiente que a enfermeira me estendeu. Com a outramão, ela entregou-me um porta-agulha com sutura crómica 3-0.Pegando no tecido do rebordo do leito da vesícula e puxando-opara cima do canal hepático e da artéria hepática direita expostos,dei um Ponto e prendi-o firmemente abaixo. Com demasiada firmeza.A sutura rebentou. Outro, no mesmo lugar, desta vez com maiscuidado e menor tensão. Depois, com pontos seguidos, fechei oleito da vesícula.Depois de retirar as toalhas utilizadas para separar a área davesícula dos outros órgãos internos, comecei a fechar. Asenfermeiras começaram a fazer a contagem das esponjas e

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instrumentos, para se certificarem de que eu nada tinha deixado nointerior do paciente. Estava tudo em ordem. Cuidadosamente,identifiquei todos os níveis da parede abdominal, especialmente adura camada fascial, que se tinha retraído e desaparecido da minhavista. Ponto após ponto, fui fechando a incisão, com o cirurgião e oresidente a ajudarem-me. Mergulhei a agulha curva no lado inferior,retirei-a do outro lado da incisão, voltei a posicioná-la com a mãoesquerda e depois atravessei o lado superior. Fechei a incisãocamada por camada, como se estivesse a baralhar cartas, vendo-as

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unirem-se e sobreporem-se. Finalmente a pele. Quando terminei,invadiu-me uma tremenda sensação de confiança, semelhante àsensação que se experimenta quando a prancha atravessa a água203branca. Quando retirei as luvas, o residente retribuiu-me ocumprimento anterior. o mundo era meu. Enquanto acompanhava opaciente pelo corredor até à sala de recuperação, continuava asentir-me excitado. Duas enfermeiras tomaram o paciente a seucargo, enquanto eu escrevia ordens pós-operatórias e ditava a notaoperatória. Depois a fadiga regressou, pesada. Sentia fome,

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também, e decidi ir comer, porque apenas tinha no estômago duasfatias de pão desde ojantar da noite anterior, dezanove horasantes: eram 2 horas da tarde.Chovia lá fora; tinha chovido durante todo o dia, concluí, vistoque havia poças de água nos locais mais baixos. No céuredemoinhavam nuvens cinzentas, perseguidas, ao longo da ilha,pelos fortes ventos. A chuva era tão violenta que eu mal conseguiaver a cafetaria, a cerca de cem metros. Enquanto corria, o ventofazia ondular as poças de água por baixo das abas do telhado.Senti que a minha sorte se tinha ido parcialmente embora quando viJoyce do outro lado da sala e, como seria de esperar, ela veio

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imediatamente ter comigo. Com imensa gente à nossa volta a falarda chuva, da Taça Hula e de muitas outras coisas, Joyce pouco falou,a princípio, o que me deixou satisfeito. Depois, como queobedecendo a um sinal, toda a gente se foi embora e Joyceprincipiou.- Já pensaste bastante? - perguntou.- Em quê? - inquiri, com curiosidade.- Tu sabes, sobre nós, como disseste que ias fazer.- Oh, acerca de nós. Sim, tenho pensado bastante nisso - disseeu.- Bom, eu também - acrescentou ela, endireitando-se na cadeira.- E acho que devíamos ser mais abertos um para o outro.- Achas que sim? - o meu tom foi levemente sarcástico, mas nãosuficientemente para ela perceber.

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- Nunca falámos um com o outro dos nossos sentimentos e dosnossos pensamentos - acrescentou ela.Estava enganada, nesse ponto. Ela já me tinha dito demasiado,204especialmente como achava horrível esgueirar-se pelas escadas dastraseiras. Pouco à vontade, apercebi-me de que ela estava a umpasso de propor a cura instantânea para essas fugas - o casamento.Estava levemente descontrolada.- Tu sempre me disseste o que se passava na tua cabeça - disseeu. - Nunca deixavas de falar daquelas escadas e de como achavastudo aquilo horrível.- Bom, as coisas estavam a tornar-se muito desagradáveis -disse ela, com o ar de quem está cheia de razão.

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- Desagradáveis, Bom, isso é verdade. Por que não fazesqualquer coisa em relação à Miss Maçãse-TV, para podermos ir aoteu apartamento como duas pessoas normais?- A minha companheira de quarto não tem nada a ver com isto.- A tua companheira de quarto tem muito a ver com isto. Se nãofosse a tua companheira de quarto, ficaríamos no teu apartamento ejá não terias que te esgueirar pelas escadas.- Tu não queres saber de mim - disse ela, num tom petulante.- É claro que quero, mas não é isso que está em causa. Se tu...- Está em causa, sim - interrompeu ela.- Estás a mudar de assunto - protestei eu.- É o único assunto que me interessa - disse ela seriamente,

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pondo-se de pé e arrastando a cadeira para trás. - De qualquerforma, decidi que podes deixar de pensar em nós e cair morto ondequiseres. - E saiu, indignada.Cair morto. Uma excelente sugestão. Na verdade, havia um certoencanto mórbido na ideia. Estava morto de cansaço. Depois deJoyce sair, a sala afastou-se subitamente de mim. Ainda lá seencontravam bastantes pessoas, sentadas às mesas, mas nem umaúnica estava comigo. Os sons de cem vozes misturavam-se, todasdistantes e incompreensíveis. Olhando através da janela para achuva e para as nuvens cinzentas acumuladas, continuei a comer,distraidamente, vencido pela solidão. Já nada restava da sensação

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agradável causada pela extracção da vesícula; depois dela, eu tinhaficado simplesmente esvaziado detodas as emoçÕes. Olhando parao relógio, apercebi-me de que estava em movimento há trinta horas.205Pensei na clínica e que devia lá ir. Os internos devem dar uma ajudano atendimento dos pacientes externos, nos seus "tempos livres".Mas, no estado em que me encontrava, de pouco serviria. A clínicaque fosse para o inferno.As gotas de chuva dançavam em volta do telheiro, quando ovento as fustigava, atirando-as para as áreas abrigadas. Estavasurpreendentemente frio. Quando se encontra fatigado, o corpo não

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consegue tolerar muito, quanto a variaçÕes de temperatura. Porisso, os arrepios que me percorriam eram, provavelmente, mais umproduto das minhas condiçÕes físicas do que do tempo. Apresseime,concentrando-me totalmente na minha cama, antevendo o prazerque iria sentir. Todos os internos desenvolvem um extraordinárioapreço por coisas simples de que os outros nem se apercebem - omovimento muscular livre, o direito de aliviar uma comichão, deesvaziar a bexiga ou os intestinos, refeiçÕes mais ou menosregulares, um período decente de sono. Na cama, senti o meu corpoafundar-se, crescer terrivelmente e invadir todo o quarto, até que o

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meu corpo enorme e o quarto se fundiram gradualmente,transformando-se num só, e adormeci.o abcesso era pequeno, quando comecei, pouco mais que umaborbulha. Agora era enorme, cobrindo a maior parte do braçoesquerdo e sempre em crescimento. Por mais que eu cortasse,aparecia sempre mais; agora subia para o ombro. Por detrás demim, Hércules sussurrava ao Supercaro: "Ele não vai conseguir safarse.E o doente também não." Para obter um pouco deencorajamento, olhei para Simpson, que disse: "Faz isso bem logo àprimeira, Peters, ou estás destinado a Hicksville." Num esforço finale desesperado, cortei até ao osso, atravessando os tecidos e, cheio

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de horror, vi que tinha cortado o nervo uInar, imobilizando a mãopara sempre. o tempo acabou, pensei, quando a campainha tocou;fracasso! Era, naturalmente, o telefone. Ergui-me de um salto, para oatender, ainda meio mergulhado no sonho e confundido pela luz.Teria esquecido as rondas? Não, não eram ainda cinco horas, e omeu relógio marcava três. Era do bloco operatório. Tinha sido206escalado para uma operação que começava dentro de quinzeminutos.Desligando o telefone, recuperei a orientação. Por que teriaacordado naquele estado de terror? Depois, relacionei o sonho coma incisão e a drenagem que tinha feito no dia anterior a um enorme

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abcesso num cotovelo. Depois de abrir o abcesso com um bisturiafiado, provocando uma saída espontânea de pus, tinha introduzidoa ponta de uma Pinça hemostática para assegurar uma boadrenagem. Mas o abcesso era muito mais fundo do que eu tinhaimaginado; parecia estender-se até à região do nervo uInar. Por issotive de ir cortando, cada vez mais abaixo, nunca chegando ao fundodo abcesso e parando, finalmente, com receio de cortar o nervouInar, se não o tivesse feito já. De qualquer forma, decidi parar porali e levar o caso à cirurgia.o reflexo do medo tinha-me apanhado na cama, mas, depois, o

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meu estado de desintegração física começou a revelar-se. Tendoestado tanto tempo a pé, dormir menos de uma hora só piorara ascoisas. Nada à minha volta parecia funcionar bem; senti-me tonto elevemente enjoado, quando me pus de pé, depois de ter calçado ossapatos. Infelizmente olhei para o espelho - um erro grave, porqueme apercebi de que teria de me barbear, para entrar no mundo dosvivos. As minhas mãos tremiam e, como habitualmente, cortei-mealgumas vezes: nada de grave, apenas o suficiente para que osangue continuasse a correr, apesar dos lenços de papel, da águafria e uma forte e ardente aplicação do lápis hemostático.

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Corri para a enfermaria. Tinha parado de chover, embora asnuvens grossas e pesadas ainda estivessem baixas, sobre ascolinas. o meu paciente do abcesso ficou, provavelmente, um poucoespantado quando entrei no quarto e lhe pedi que erguesse asmãos e afastasse os dedos. Quando ele o fez, tentei unir os dedose obtive uma boa resistência; isso indicava que o nervo uInar estavaintacto. Não tive tempo de ver os outros, excepto o meu paciente doedema cheio de água, cuja cama ficava ao lado da do doente doabcesso. Ele queria fazer-me uma pergunta acerca dos comprimidosdiuréticos e senti que tinha que responder-lhe.207

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Eu tinha adquirido um grande respeito por casos de edemasgraves daquele tipo que exigem uma diminuição dos fluidoscorporais através do emprego de diuréticos. Isso sucedera súbita ebrutalmente - uma paciente com um carcinoma, transferida de umaenfermaria médica, sofria de um edema total do corpo, uma situaçãochamada anasarca. Concluí que ela se encontrava naquele estadoporque o departamento médico tinhafeito asneira; havia sempreuma pequena fricção entre os que abriam - os cirurgiÕes - e os quelidavam com os medicamentos - os médicos. Aquela paciente sofriade cancro, diagnosticado a partir da biópsia de um nódulo linfático.

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Embora o local primário nunca tivesse sido encontrado, nemdeterminado o tipo exacto de cancro, alguém tinha decidido atacarcom radioterapia, que nada tinha feito ao cancro, e depois comquimioterapia, que tinha sido igualmente inútil. Entretanto, adoente estava a IVs e os médicos tinham-na deixado ganhar tantolíquido que os níveis de sódio e cloreto desceram ao ponto de elaentrar praticamente em delírio. E esqueceram as suas proteínas deplasma, que também desceram. Quando recebi a paciente, decidilivrá-la de toda aquela água. Dando-lhe alguma albumina e umdiurético, consegui alguma diurese e, assim, uma leve melhoria do

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edema. Mas eu queria mais. Quando tentei obter alguns conselhos,ninguém se mostrou muito interessado, incluindo o assistente. Dadoque a sua urina era alcalina, decidi dar-lhe uma boa dose de cloretode amónio com o diurético, e, desta vez, os resultados foramespectaculares. Que diurese! A água abandonava-a, à medida que aurina corria. Era terrível, espantoso - só que nunca mais parava, e,durante a noite, ela secou como uma ameixa. A broncopneumoniainstalou-se imediatamente e a mulher morreu dentro de um dia emeio. Eu nun ca mais disse nada sobre o caso aos rapazes damedicina, mas tinha ganho respeito aos agentes diuréticos. Estava

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a tomar muito cuidado com o homem ao lado do do abcesso. Eletomava apenas comprimidos.E tinha também ganho respeito pelos abcessos. Tinha havido um208paciente - não meu, embora eu o visse todos os dias durante asrondas - que tinha sido internado por causa de celulite invasora naperna direita, a partir da área de um abcesso. Quando veio terconnosco, a maior parte dos músculos da barriga da perna jáestavam liquefeitos. Fizemos a cultura de diversos organismosdiferentes daquele abcesso; todos eles pareciam trabalhar emconjunto contra o paciente. Um dia, quando o interno que tratavadele esteve doente, tive de o drenar. o cheiro era indescritível; mais

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uma vez tive de recorrer ao uso de três máscaras, para não vomitar.Quando tentei abrir a cavidade do abcesso, verifiquei que eleseguia em todas as direcçÕes, até onde o hemostato conseguiachegar. Tinha havido uma grande discussão, durante as rondas,sobre se a perna deveria ser amputada, mas os defensores de umnovo método de perfusão contínua de antibióticos ganharam - pelomenos a discussão - e introduziram litros de antibiótico na perna,parecendo estabilizá-lo durante um dia ou dois. Mas, subitamente,um dia, enquanto estávamos a olhar para ele, durante as rondasmatinais, o homem morreu. Tínhamo-nos aproximado do leito, e um

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outro interno tinha começado a dizer que o paciente se encontrava"essencialmente estacionário". Era curioso constatar quantas vezes apalavra "essencialmente" era usada durante as rondas. Aquelehomem tinha tido falha hepática, falha cardíaca, falha renal - narealidade, falha corporal total. Mas, enquanto o interno fazia o seurelatório de um estado neutro, o homem arquejou e morreu. Pareceunosum acto de terrível mau gosto. Ficámos a olhá-lo, estupefactos.Ninguém tentou reanimá-lo, porque todos nos tínhamos habituado àideia de que era um caso perdido. Os nossos medicamentosinsignificantes apenas o tinham conservado em estado precário

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durante algum tempo, até tudo se desmoronar, como tinha sucedidonaqueles casos de sépsis Gram-negativa, na escola médica. Assimcomecei a respeitar os abcessos. Na realidade, à medida que otempo ia passando, eu aprendia a respeitar todas as doenças, pormuito inócuas que parecessem ser.Agora corria para o bloco operatório, já atrasado. Havia grandeactividade no andar. Passei por internos, residentes e médicos, de209pé, junto das camas, a conversar, como sucedia sempre - exceptoquando estavam sentados a conversar na sala. A maior parte dessas

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conversas centrava-se no tratamento e nos medicamentos a utilizar.Quando estavam quase a chegar a um consenso, um dosparticipantes recordava um efeito secundário, e, nessa altura,sugeria-se um medicamento para contrariar esse efeito secundário,medicamento esse que, por sua vez, tinha os seus próprios efeitossecundários. A questão passava então a ser: o que seria pior, osegundo efeito secundário, ou a situação original? o segundomedicamento tornaria os sintomas originais piores do que eram,antes de o primeiro medicamento os ter melhorado? E a conversacontinuava sempre às voltas, até que a discussão parecia tornar-se

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tão complicada que parecia melhor recomeçar com o pacienteseguinte. Era isso que as enfermarias me pareciam. Conversa,conversa, conversa. Pelo menos, na cirurgia, fazíamos qualquercoisa. Mas os médicos declaravam, com certa razão, que sócortávamos porque não podiamos curar. Nós argumentávamos quecortar era, muitas vezes, a cura. A discussão andava para a frente epara trás, sem conclusÕes definitivas, sempre mantida num tomamistoso, mesmo jovial, mas as suas raízes mergulhavam fundo.Enfiar um outro fato esterilizado deu-me uma sensação de déjàvu. Estava a começar a viver com eles vestidos. Como já não havia

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fatos de tamanho médio, tive de usar um de tamanho grande e osatilhos das calças davam-me duas vezes a volta à cintura. Atravesseio guarda-vento para a área do bloco operatório. Enquanto calçavaos sapatos de lona, olhei para o quadro, para ver quem era ooperador. Zás! Nada menos que El Poderoso Cirurgião Cardíaco. Masque estava ele a fazer ali?A operação tinha a indicação "AbcessoAbdominal, Infectado" e era óbvio que El Poderoso trabalhavageralmente com o tórax. Todavia, as coisas estranhas tinhamdeixado de me surpreender. Quando afastei o olhar, elecumprimentou-me, chamando-me pelo meu nome, de maneira muito

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amistosa, mas eu sabia que não podia baixar a guarda, era apenaso primeiro movimento, um acto condescendente no início doespectáculo - especialmente porque tinha que gritar para me210cumprimentar do meio do corredor, para que toda agente reparassena sua boa disposição e espírito de camaradagem.Recordei-me amargamente do dia em que eu e um residentetínhamos sido destacados para um caso cardíaco, não com um, mascom dois cirurgiÕes daquele género. Os dois homens, de maneirasabsolutamente semelhantes e ocultos por detrás das máscaras só sedistinguiam pela medida da cintura, pois um era muito mais gordo

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que o outro. o caso tinha começado muito bem, com muitaafabilidade e palmadas nas costas. De súbito, sem qualquer aviso,um dos cirurgiÕes começou a desancar o residente por dar sangue aum paciente a morrer de cancro dos pulmÕes. Na verdade, a decisãoera discutível, mas não suficientemente grave parajustificar aquelatirada diante de todos os presentes. Estava apenas a vangloriar-se,para melhorar a sua auto-imagem. Assim foi durante toda aoperação, louvores e depois ataques, todos eles exagerados, atéque chegámos a uma espécie de crescendo frenético de invectivas

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que foi diminuindo gradualmente, regressando ao bom humor. Tinhameparecido estar no manicómio.Há algo deste género em muitos cirurgiÕes - uma espécie deabordagem da vida passivo-agressiva absolutamente imprevisível.Num momento, somos amigos chegados e apreciados; no momentoseguinte, quem sabe? Era quase como se estivessem emboscados, àespera que atravessássemos uma linha invisível e, quando ofazíamos - zás! - avançar, um interno tem de aprender a manter aboca fechada. Mais tarde, quando residente, aprendeu a lição tãobem que fica interiorizado. Por baixo, porém, andapermanentemente irritado. Embora pudesse ter sido muito agradável

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dizer a um tipo que se fosse lixar, eu nunca o fiz, e ninguém mais ofez. Estando situados no fundo do totem, aspirávamos,naturalmente, a subir, e isso significava entrar no jogo.Nesse jogo, o medo entrava em simbiose com a ira. E a parte domedo era a mais complicada. Como internos, passávamos a maiorparte do tempo cheios de medo; pelo menos eu passava. Aprincípio, como qualquer humanista, sentíamos medo de cometer um211erro, porque ele poderia prejudicar um paciente, até mesmo custarlhea vida. Cerca de seis meses mais tarde, porém, o pacientecomeçava a recuar, tornando-se menos importante, à medida que anossa carreira progredia. Nessa altura já se tinha concluído que

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nenhum interno sofreria um revés por causa da desaprovação oficialda sua prática de Medicina, por muito desleixado ou incompetenteque fosse. A única coisa que não era tolerada era a crítica aosistema. Não importava que estivéssemos fatigados, ouaprendêssemos a passo de caracol, se é que aprendíamos algumacoisa, enquanto estávamos a ser explorados. Se queríamos serresidentes num bom hospital - e eu desejava-o desesperadamente -aceitava-se tudo sem um murmúrio. Havia muita gente cheia deesperanças, na bicha, à espera do nosso lugar nas grandes ligas.Por isso eu segurava pés e retractores e ocupava-me de todas as

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outras insignificâncias. E a raiva estava sempre dentro de mim.Não acreditávamos, na nossa maior parte, na teoria daexistência do diabo na história, ou numa noção extrema do pecadooriginal, e, por isso, sabíamos que aqueles homens mais velhos quetanto odiávamos já tinham sido como nós. Aprincípio idealistas,depois furiosos e depois resignados, tinham acabado por se tornarmaus como tudo. Finalmente, a ira e a frustração, retidas durantetanto tempo, estavam a extravazar-se numa brilhante manifestaçãode auto-indulgência. E à custa de quem? De quem havia de ser? Ospecados dos pais e dos avós recaíam sobre nós, os filhos do

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sistema. Iria acontecer-me o mesmo? Pensava que sim. Na verdade,já tinha começado, porque eu já tinha ultrapassado o meu períodode idealismo da escola médica. Já não me surpreendia quehouvesse tão poucos cavalheiros entre os cirurgiÕes; na realidade,o que me espantava era que alguns médicos ainda conseguissememergir como seres humanos. Aparentemente, poucos conseguiam. Eentre eles não estava o El Poderoso que eu ia ter de defrontar.o homem deu-me uma palmada nas costas, querendo saber detodos os pormenores. Era como se fosse dar-me rebuçados ou beijaros meus filhos, como qualquer político corrupto da grande cidade a

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212recolher votos. Na verdade estava a recolher autovotos. Eu estavatão cansado que não prestava atenção ao que ele dizia ou fazia.Conservei a cabeça baixa, enquanto me esfregava, um passo decada vez. Vesti a bata e depois enfiei as luvas. o cenário à minhavolta era irreal. A voz do cirurgião ecoava, falando de tudo e denada, alguns decibéis acima das outras todas. o anestesista pareciater uma imunidade especial ou usar tampÕes nos ouvidos; sem sepreocupar com o cirurgião, tratava calmamente dos seus assuntos.Até a enfermeira ignorava El Poderoso. Quer ele lhe pedisse uma

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pinça delicadamente ou aos gritos, ela entregava-lha da mesmamaneira reservada e eficiente, e continuava a ajeitar osequipamentos. Esperava que ele se escutasse atentamente a sipróprio, porque, aparentemente, era a sua única audiência.o caso era uma reoperação da inflamação das pequenas bolsasque as pessoas idosas têm, por vezes, na parte inferior da coluna.Aquele infeliz doente tinha sido operado à sua diverticulite, comose chamava aquela situação, cerca de um mês antes. Normalmenterecomenda-se uma operação em três estágios, mas o primeirocirurgião a operá-lo tinha tentado fazer tudo de uma vez. o

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resultado era um grande abcesso, que nós íamos drenar, e umafistula fecal, que ia desde a incisão anterior até ao cólon, queestava a drenar pus e fezes.Felizmente, o processo foi curto. Dei alguns nós, todos elesinsatisfatórios para o cirurgião. De resto, conservei-me silencioso eimóvel, enquanto ele discursava sobre as vicissitudes da sua vidaquando era interno.- Era realmente duro naqueles tempos... que fazer as histórias eos exames físicos... todos os doentes... pela porta... e, além disso...um quarto do salário... e vocês, meus malandros, recebem... - Eu malo ouvia. A minha exaustão tornava-me realmente imune, projectando

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para o exterior todos os comentários que penetravam no meucérebro.No final, saí dali e troquei de roupa, envergando os meus trajosnormais. Eram quase quatro horas. Um pouco de sol da tarde tinhaaberto caminho entre as nuvens espessas e espreitava pelajanela.213Os raios refractavam-se e brilhavam nas gotas de chuva agarradasaos vidros. Isto fez-me pensar em fazer surf. Mas ainda faltavam asrondas da tarde; ainda não estava livre.Descendo às enfermarias cirúrgicas particulares, fui ver o meupaciente da vesícula, que estava bem. Pressão, pulso, urina - tudo

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normal. Fiz a anotação na ficha e dirigi-me à outra paciente davesícula, embora estivesse certo de que o residente a tinha visto. Etinha.Parando nos raios-X, pedi a uma secretária que localizasse oaortograma feito nessa manhã ao meu aneurisma, para o poder verrapidamente. Aparentemente, o residente chefe tinha realizado otrabalho, após os seus titânicos esforços. A secretária encontroulogo as chapas e eu comecei a colocá-las no visor. Eram tantas quenão cabiam todas. Felizmente os números permitiram-me colocá-lasem sequência. Agora era preciso encontrar o problema - o que erageralmente um cálculo, para mim. Mas, desta vez, até eu conseguia

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ver um volume considerável na aorta, mesmo abaixo da artériasubelávica esquerda. Vendo-me diante das radiografias, oradiologista chamou-me para me fazer a habitual preleção sobre asradiografias portáteis, com especial referência ao caso da hérnia danoite anterior. Mas desta vez eu tive a última palavra. oradiologista ficou abatido ao saber que o paciente tinha morrido.Talvez acreditasse agora que eu não poderia ter mandado fazer umaradiografia normal. Gozei a vitória embora, evidentemente, achasseque a radiografia, boa ou má, não teria feito a mínima diferença.Toda a gente no serviço da enfermaria se encontrava sob

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controlo. Ambas as hérnias estavam em boas condiçÕes e já podiamandar; a gastrectomia tinha tido uma refeição completa; as varizesestavam prontas para ter alta de manhã; uma das hemorróidas tinhatido um movimento intestinal. o meu paciente do abcesso, com certarazão, queria saber por que lhe tinha apertado os dedos, e ohomem do edema fez-me novas perguntas acerca dos comprimidos,querendo saber como eles o poderiam fazer perder líquidos. Satisfizambos os pacientes com respostas simplistas.214Apenas um problema - um novo paciente, ou antes, um pacienteantigo, para me dar trabalho. Este homem, com uma grande úlcera

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de decúbito, tinha uma história de pelo menos vinte e cincointernamentos anteriores. Um deles tinha sido por engolir lâminasde barbear, outros por tentativas de suicídio por métodos maisconvencionais, e por reacçÕes de conversão psiconeurótica,convulsÕes, alcoolismo, dores abdominais, úlcera gástrica,apendicite, incompetência hepática - a sua ficha era uma lista dedoenças primárias e secundárias. Também tinha entrado e saídodiversas vezes do hospital estatal de doenças mentais no decursode dez anos. Precisamente o tipo de doente que estava a fazer-mefalta, no estado de frescura e bom humor em que me encontrava.

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Falar com ele era impossível, porque estava tão embriagado que sóse recordava de pequenos detalhes meio loucos das últimas horas.Tentar examiná-lo e estudar a ficha levou-me cerca de uma hora.Depois, tive de limpar a úlcera, um processo conhecido pelo nomefrancês de débridement, que tinha um som algo romântico.Inclinado sobre as suas nádegas, a olhar para a úlcera negra enecrótica, a supurar, que ele tinha contraído por estar deitadodurante muito tempo na mesma posição, senti pena de não terestudado Direito. Com uma licenciatura em Direito, já estaria aganhar a vida há dois anos. Um guarda-roupa completo, um

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escritório impressionante, papel liso e limpo, uma secretária, longasnoites completas de sono - tudo isso teria sido meu. Naquelemomento não tinha uma única dessas coisas. Pelo contrário, estavaali inclinado sobre o posterior malcheiroso de um alcoólico, a cortartecidos mortos, tentando evitar o fedor e afastar as náuseas. Tinhasido excitante a primeira vez, na escola médica, vestir aquela batabranca e fazer de conta que fazia parte do misterioso e fervilhantemundo do hospital. E como eu tinha invejado os estudantes maisvelhos e os internos, com os seus estetoscópios e agendas pretas, e

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maneiras decididas e experientes. Tinha conseguido subir a escadada Medicina e saltar os obstáculos específicos - até a realidade seabrir diante dos meus olhos. Aquelas nádegas eram a realidade, o215outro extremo da vida, onde eu vivia.Enquanto eu cortava, a úlcera começou a sangrar um pouco nosrebordos. Quando os nós dos dedos do paciente se tornarambrancos nos pontos onde se agarrava ao lençol, e quando elecomeçou a praguejar e a bater na almofada, concluí que tinhaalcançado tecidos viáveis. Polvilhei com um pouco de Elase, quedeveria continuar a limpar a ferida, decompondo enzimaticamente o

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tecido morto; depois cobri tudo com gaze de iodo. Aquela gaze nãocheirava propriamente a Chanel Nº 5, mas, pelo menos, dominava osoutros cheiros, que passavam dos da porcaria nojenta aos de umproduto químico desagradável. Preferia o cheiro químico. o Elase?Não sabia se ele actuaria, mas tinha-o aplicado por causa de umartigo que tinha lido recentemente; dava-me a sensação de estar afazer qualquer coisa científica.Abria-se agora diante de mim o prazer das rondas da tarde.Ninguém gostava dessas rondas, e poucos achavam que houvessenecessidade de estarmos presentes, porque todas as disposiçÕes

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essenciais eram tomadas por comité, por assim dizer. Não obstante,fazíamos as rondas da tarde como se elas fossem um dos DezMandamentos. Ficando durante longos e terríveis minutos, ora sobreum pé, ora sobre o outro, conversávamos e fazíamos gestos,indicando aqui uma hemorróida, além uma gastrectomia. Olhávamospara as incisÕes e certificávamo-nos de que estavam fechadas enão se encontravam avermelhadas. Os pensos eram rapidamentesubstituídos, a esmo, enquanto os pacientes se submetiam comosilenciosos animais sacrificados no altar. Quando um deles arriscavauma pergunta, era geralmente ignorada, perdia-se na conversa

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"Quantos dias desde a operação?"; "Deveríamos mudar para umadieta suave ou continuar só com líquidos?". Como os outros, euapresentava os meus casos num tom monótono. "Hemorróidas, doisdias pós-operatórios, dreno r tirado, sem hemorragia, ainda semmovimento intestinal, alimentação normal."Arrastávamos os pés até à cama seguinte; alguns dos médicospareciam interessados numa fenda do estuque do tecto, perto deuma das lâmpadas. "Gastrectomia, seis dias pós-operatórios, dieta216suave, tem libertado gases mas nãohouve movimento dosintestinos, a incisão está a sarar bem, suturas retiradas amanhã,

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prevê-se alta." Alguém perguntava se a operação tinha sido umaBillroth I ou II. Evidentemente, estava-se nas tintas para isso; erauma daquelas perguntas que sempre se faziam acerca de umagastrectomia. "Bilroth II."Alguém mais perguntou se tinha havido uma vagotomia. "Sim,houve uma vagotomia, e o relatório final foi positivo quanto aotecido neural." o paciente mostrou-se subitamente interessado eperguntou o que era uma vagotomia, mas ninguém lhe prestouatenção. Em vez disso, um dos residentes perguntou se a vagotomiatinha sido selectiva. - Outra pergunta oportuna que conduzia a um

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labirinto. "Não, não foi selectiva. o relatório de percurso sobre aúlcera consubstanciou um diagnóstico pré-operatório de doençapéptica." Injectando subitamente uma informação concreta nãodirectamente associada à tendência da conversa, tinha conseguidoefectivamente mudar de assunto, e arrastámos os pés para a camaseguinte.Continuámos a avançar, sonolentos, ficando cada vez maisfatigados e irritáveis, aplicando mal todos os pensos. o assistentedisse que tudo parecia sob controlo e que nos veria à mesma horano dia seguinte. Como no sexto ano, num jogo de futebol, todos se

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afastaram em todas as direcçÕes, menos eu. Aparentemente era euquem tinha a bola, porque fiquei ali parado, sem pensar em coisaalguma, a olhar para a esquina de uma mesa que estava inclinada efazia que toda a perspectiva parecesse um pouco estranha.Quando saí do meu semitranse, estava indeciso quanto ao quedeveria fazer. Poderia voltar a ver os doentes particulares, oupoderia sentar-me na enfermaria e aguardar novos internamentos,ou poderia voltar ao quarto e dormir um pouco. A última opção foiimediatamente posta de parte por uma questão de superstição. Seeu fosse dormir, era mais que certo ser chamado para novosinternamentos, ao passo que, se ficasse na enfermaria, talvez não

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houvesse novos internamentos. Um ponto de vista altamente217científico. Instalei-me no posto das enfermeiras e comecei a folhearalguns números atrasados da revista Glamour, que uma dasraparigas ali tinha deixado. Não estava a registar o que via.Enquanto voltava as páginas e olhava os padrÕes de cores, com asfiguras misturadas na minha mente, encontrava-me perdido no meupróprio mundo interior, registando os sons e os movimentos à minhavolta, mas indiferente a eles. Um facto exterior conseguiu penetrar aminha muralha: tinha recomeçado a chover. Curiosamente, o som dachuva deu-me vontade de fazer surf; uma boa onda ou duas poderia

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lavar os meus pensamentos depressivos. Estava excessivamentefatigado e sabia que me sentiria inquieto se fosse directamentepara a cama. Além disso, ainda restava uma boa hora de luz do dia.A chuva caía, gelada, sobre as minhas costas nuas, enquantoatava a prancha ao tejadilho do meu VW. Uma vez dentro do carro,liguei o aquecedor e esforcei-me para ver para o exterior. Choviacom força e os limpa pára-brisas estavam,como habitualmente, comdificuldades para enfrentar toda aquela água. Tinha grande fé nosVW, excepto quanto a limpa pára-brisas. Nunca conseguiam mantero pára-brisas limpo e sem distorção - uma técnica curiosamente má

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num carro que era absolutamente seguro em tudo o resto.Enquanto me dirigia para a praia, a chuva aumentou,fragmentando a minha imagem da estrada em manchas de cinzentoe preto. De vez em quando tinha de enfiar a cabeça pela janelalateral para recuperar a perspectiva. o limpa pára-brisas do lado dopassageiro estava a trabalhar um pouco melhor agora, e descobrique conseguia ver a estrada se me inclinasse para o lado. De certomodo, a chuva começou a reconfortar-me, fechando um pouco omundo e dominando fortemente a minha consciência.Sentia a chuva ainda mais fria nas minhas costas, enquanto me

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esforçava por retirar a prancha do tejadilho. o aquecedor dentro docarro não tinha sido muito boa ideia. Depois de ter libertado aprancha e a ter colocado sobre a cabeça, fiquei protegido das gotasgeladas. Ansioso por ver as ondas, atravessei rapidamente a rua epenetrei na praia, mas, evidentemente, só conseguia ver alguns218metros à minha frente. Pela primeira vez desde que a conhecia, apraia estava completamente deserta. Lançando a prancha à água,saltei sobre ela, ficando ajoelhado, e comecei a remar furiosamentecom as mãos, tentando gerar um pouco de calor nos meus ossos

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gelados. A chuva caía com força suficiente para me magoar o nariz,forçando-me a baixar a cabeça e a espreitar por baixo dassobrancelhas. o mar estava picado e desorganizado. Quanto maisavançava, mais difícil se tornava manter a velocidade e a direcção,em face do forte vento kona que soprava para a praia. Fui remando,remando, a olhar para baixo durante a maior parte do tempo,fitando a tábua à frente dos meus joelhos. A água envolvia-me emredemoínhos. Quando a parte da frente da prancha saía da água,parecia seca por causa da cera, mas depois voltava a ficar molhadaquando eu me inclinava para apanhar outra vaga.Sobre a rebentação, a praia e toda a ilha desapareceram por

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detrás de uma nebulosa muralha de chuva. Era uma rebentação detempestade, picada, ventosa e absolutamente imprevisível. Quandoapanhava uma onda, não podia prever para onde ela iria, se sequebraria ou simplesmente desapareceria. Tinham desaparecido oshabituais movimentos harmónicos e os pontos de referênciaconhecidos. Podia encontrar-me a mais de mil milhas, no alto mar.Os únicos sons eram os do vento, da chuva e das ondas. A minhamente começou a ver formas fantásticas nas vagas e na cortinainvariavelmente cinzenta que pendia sobre mim. ImaginandotubarÕes a patrulhar a costa, sob a superfície perturbada do mar,

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coloquei os braços e as pernas sobre a prancha e fiquei estendidosobre ela. Uma onda empinou-se subitamente, quebrou-se e voltoume.Em pânico, consegui trepar de novo para a prancha, como umgato com as orelhas achatadas, com medo de olhar para trás. Deixeique a acção das ondas e do vento me empurrassem para a praia,enquanto procurava sinais da ilha, uma segurança de que não meencontrava, à deriva num mar solitário. Senti-me inundado de alívioquando o recorte esfumado de um prédio tomou forma. A minhaquilha raspou por coral. Depois a praia deserta apareceu, com aareia batida pela chuva transformada em milhÕes de crateras

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219miniaturais. Vi algumas pessoas a correr, manchas grotescas edesprovidas de rosto, tentando proteger-se da chuva e do vento.Quando entrei no carro, voltei a ligar o aquecedor, com osdedos enrugados, e senti o seu bem-vindo calor a escapar-se doventilador. Estava roxo e a tremer enquanto me dirigia ao hospital,novamente inclinado para o banco do passageiro, paraver ocaminho. Continuava a chover violentamente e as luzes dos outroscarros abriam no pavimento molhado passagens quebradas econfusas.A felicidade é um duche quente. Ondas de vapor quenteenchiam a cabina, lavando o sal e o frio e os pequenos medosestúpidos que a minha mente tinha convocado, Deixei-me ficar

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quase vinte minutos no duche, com a água quente a cair sobre acabeça e a escorrer por todas as fendas e elevaçÕes do meu corpo.Quando comecei a relaxar, pus-me a pensar como deveria passar anoite. Dormir. Devia dormir. Sabia disso. Mas também sentia anecessidade de me afastar do hospital, de ver alguém. Karen tinhamedito que, afinal, não ia sair. Karen. Era isso mesmo: iria postarmediante do televisor dela, beber cerveja e deixar a mentevegetar. Noite sim noite não eu não estava de serviço e o telefonepermanecia silencioso. Era um prazer saber que ele nãoiria tocar.Aquela seria uma dessas noites tranquilas. Ahhh.

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Enxuguei-me, lenta e lascivamente, e depois regressei ao meuquarto, a patinhar, com uma toalha enrolada em volta da cintura. Acama parecia-me tentadora, mas estava com receio de, se dormissemais ou menos seis horas e depois me levantasse, não ser capaz devoltar a adormecer. Era preferível ficar a pé e adormecer mais tarde.Nessa altura, o telefone tocou. Com toda a inocência, atendi-o. Nãoo devia ter feito, porque era o interno que estava de serviço. Estavacom um problema e tinha que ir a casa durante uma hora, talvezduas no máximo. Era um problema que não podia esperar.- Sinto muito, Peters, mas tenho mesmo que ir. Importas-te de

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ficar por mim?- Há alguma operação marcada?220- Não, nenhuma. Está tudo calmo.Embora a ideia de fazer o lugar dele me tirasse as forças, nãopodia recusar. Faz parte do código de entreajuda e, quem podiasaber?, talvez eu viesse a precisar que ele me retribuísse o favor.- OK, eu fico por ti.- Obrigadíssimo, Peters. Vou dizer à telefonista que ficas no meulugar e volto o mais depressa possível. Mais uma vez, obrigado.Quando desliguei, pensei fatigadamente que, se tivesse queassistir a alguma operação, desmaiaria. Estava certo de que me iria

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abaixo, mental ou fisicamente, se tivesse que enfrentar uma longasessão de qualquer tipo, especialmente uma operação com alguémcomo o Supercaro ou Hércules ou El Poderoso Cirurgião Cardíaco.Vesti antecipadamente as roupas brancas, novamente naesperança de afastar o mal com preparativos excessivos. Quandotelefonei a Karen não obtive resposta e recordei-me vagamente deela ter dito qualquer coisa sobre onze horas, mas não me recordavaexactamente de quê. Não tendo que fazer, estendí-me e abri umlivro de cirurgia, apoiando-o sobre o peito. o seu peso tornava-me arespiração um pouco difícil. Sem me concentrar efectivamente no

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livro, a minha mente vagueou até Karen. Que estaria ela a fazer àssete horas, se não tinha saído com o namorado? Não podia dizerque tivesse muitos motivos para confiar nela. Mas que queria eudizer com confiança? Por que deveria essa palavra entrar na nossarelação, afinal? Era uma reacção de adolescente falar de confiançaquando não passávamos de uma conveniência um para o outro.Estava a começar a ser conduzido para o sono por estesdevaneios quando o telefone me acordou. o maldito livro cirúrgicoainda estava em cima do meu peito e eu estava a respirar com osmúsculos abdominais. Era das urgências.- Dr. Peters, fala a enfermeira Shippen. A telefonista diz que

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está a fazer o lugar do Dr. Greer.- Exactamente - concordei com relutância.- o interno de serviço aqui está atrasado. Importa-se de virajudar?- Quantas fichas estão à espera no cesto?221- Nove. Não, dez - respondeu ela.- o interno pediu realmente ajuda? - Que diabo, eujá tinha tidodez fichas de atraso nas noites de sexta-feira e sábado, durante osmeus meses nas urgências.- Não, mas ele é muito lento e...- Se ele se atrasar numas quinze, mais ou menos, e se o própriointerno pedir a minha ajuda, chame-me.Desliguei, farto até aos cabelos daquelas enfermeiras das

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Urgências, sempre a querer dirigir o espectáculo e tomar decisÕes.As Urgências eram o território do interno; talvez ele ficasse irritadose eu aparecesse de súbito. Havia um grão de verdade e um quilode racionalização nisto, penso eu. Contudo, durante os meus doismeses nas Urgências, eu nunca tinha pedido a ajuda de um internode serviço. Não podia imaginar que as coisas estivessem incontrolavelmente complicadas e o trabalho fosse assim tanto numanoite de quarta-feira. Tentei ler um pouco mais, sem conseguiravançar e ficando cada vez mais nervoso e deprimido. As minhasmãos tremiam levemente - uma coisa nova - quando equilibrei o livro

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sobre o peito. Os meus pensamentos passavamdesencontradamente da cirurgia para Karen e para o tempo horrívelem que estivera a fazer surf, regressando depois à cirurgia. Pondomede pé, fui à casa de banho, sofrendo de uma leve diarreia - quenão era, ultimamente, invulgar em mim.Quando o telefone tocou de novo, era a mesma enfermeiraoficiosa das Urgências, a dizer, com satisfação, que o interno tinhapedido ajuda. Fiquei tão furioso que nem falei, limitei-me a desligaro telefone. Antes que conseguisse sair do quarto, o telefone tocounovamente. Era a enfermeira a perguntar, num tom ofendido, se eu

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ia ou não. Reuni todo o ácido que conseguia e respondi que iria,desde que eles conseguissem aguentar as coisas durante o temposuficiente para calçar os sapatos. Não teve qualquer efeito. Elaestava imune aos insultos e eu ao interesse pelo assunto, sem meconseguir apressar; talvez quando eu lá chegasse as coisas jáestivessem calmas. Não me teria importado de fazer uma tranquila222sutura ou duas, ou coisa parecida. Mas estava certo de ter queenfrentar algum acidente na auto-estrada ou convulsÕes.A chuva tinha passado e uma ou duas estrelas cintilavam entreos cúmulos violeta-escuros das nuvens pesadas. o vento tinha

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mudado de novo, tendo regressado os ventos alísios que afastavamo mau tempo kona.Ao chegar ao banco, tive de aceitar que as coisas estavamlonge de estar calmas. Estavam lá a trabalhar um interno e doisresidentes. Além disso, também lá se encontravam quatro ou cincoassistentes a ver os seus doentes. Uma das enfermeiras entregoumeuma ficha e disse que o sujeito estava à espera havia algumtempo; não tinham conseguido contactar com o médico particulardele. Peguei na ficha e dirigi-me à sala de observaçÕes, enquantoalia. A principal queixa era "Nervosismo; acabaram-se-lhe oscomprimidos." Meu Deus! Parei e observei melhor a ficha. o médico

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particular era um psiquiatra; não era de admirar que nãoconseguissem localizá-lo. E o paciente, um homem de 31 anos,encontrava-se na sala de psiquiatria. Esta ficava, do outro lado,para a direita. Que sorte a minha, pensei, um paciente do foropsiquiátrico. Porque não havia de ser uma simples laceração docouro cabeludo - algo que eu pudesse consertar - em vez de umtrabalho no interior da cabeça?Ao entrar na sala de psiquiatria, sentei-me e deparei com umhomem de aspecto juvenil sentado na marquesa. A marquesa e acadeira de costas direitas onde eu estava sentado eram os únicosmóveis daquela sala simples, de paredes brancas. Tanto a marquesa

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como a cadeira estavam solidamente fixadas ao chão. Estava tudoimpecavelmente limpo ali dentro, e muito brilhante, graças a umasérie de lâmpadas fluorescentes montadas no tecto. Depois deconsultar de novo a ficha, olhei para o homem. Era um tiporazoavelmente bem parecido, com cabelos e olhos castanhos, muitobem penteado. Tinha as mãos apertadas à frente, única sugestãodo seu nervosismo; esfregava uma na outra como se estivesse amoldar barro entre as palmas.223- Não se sente bem? - perguntei.- Não. Ou antes, sim, não me estou a sentir bem - respondeuele, pousando as mãos nosjoelhos e afastando o olhar do meu. -

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Penso que seja um interno. o meu médico não vem?Fiquei a olhar para ele durante uns segundos. Tinha aprendidoque deixá-los falar era o melhor, mas tornava-se evidente que elepretendia que eu respondesse às suas perguntas.- Sim, sou um interno - disse eu, um pouco defensivamente. - Enão, não conseguimos contactar o seu médico. No entanto, pensoque podemos ajudá-lo, e poderá ir consultar o seu médico maistarde, talvez amanhã.- Mas eu preciso dele agora - insistiu ele, tirando um cigarro dobolso, que lhe permiti que acendesse. Os doentes psiquiátricospodiam fumar se quisessem; não havia oxigénio na sala.- Por que não me diz qualquer coisa sobre o que está aincomodá-lo, e talvez eu ou o residente psiquiátrico possamos

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ajudá-lo. - Estava certo de não conseguir que o residentepsiquiátrico lá fosse, mas talvez pudesse contactá-lo pelo telefone.- Estou nervoso - disse ele. - Sinto nervos pelo corpo todo e nãoconsigo estar quieto. Tenho medo de fazer qualquer coisa.Houve uma pausa. Ele estava a ollhar para mim, fixamente.Embora tivesse acendido o cigarro, não o levou aos lábios,segurando-o entre o segundo e o terceiro dedos, com um rasto defumo a serpentear-lhe diante do rosto. Os olhos, muito abertos,tinham as pupilas relativamente dilatadas. Brilhava-lhe um pouco dehumidade na testa.- Que coisa tem medo de fazer? - Queria dar-lhe toda a cordapossível. Além disso, não me importava de falar ali sentado por

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muito tempo. Os outros problemas das Urgências, no meio dopandemónio, seriam resolvidos sem mim. Era bem feito, para não medarem um doente do foro psiquiátrico.- Não sei o que posso fazer. Isso é metade do problema. Massei que, quando fico assim, não tenho grande controlo sobre o quepenso... sobre o que penso. Penso. - Estava a olhar em frente, paraa parede branca, sem pestanejar. Depois fez uma careta súbita e a224sua boca ficou transformada numa fenda apertada.- Há quanto tempo tem esse tipo de problema? - perguntei,tentando quebrar o transe, para o manter a falar. - Há quanto tempo

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está sob os cuidados de um psiquiatra?A princípio ele pareceu não me ouvir, e estava prestes a repetira pergunta quando se voltou para mim, mais uma vez.- Há cerca de oito anos. Diagnosticaram que eu era um tipoesquizofrénico, paranóico, e já estive duas vezes hospitalizado.Tenho estado sob cuidados psiquiátricos desde a primeirahospitalização, e tenho andado bem, especialmente no último ano.Mas esta noite sinto-me como me sentia há alguns anos. A únicadiferença é que agora sei o que está a suceder. É por isso que eupreciso de mais Librium, e é por isso que tenho de ver o meumédico. Tenho de parar com isto antes que perca o controlo.

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A sua visão da situação surpreendeu-me. Concluí que ele tinhaandado sob cuidados muito intensivos, talvez mesmo a fazerpsicanálise. Era inteligente, sem dúvida. Embora eu fosse novatonaquele tipo de coisas, sabia o suficiente para o manter a falar e acomunicar. Teria sido fácil limitar-me a dar-lhe Librium e esperar quefizesse efeito. Mas agora eu estava interessado, em parte nele eem parte na sua capacidade para me livrar do resto das Urgências.Em fundo, escutei o choro de uma criança.- o que exigiu a sua hospitalização? - perguntei.Ele respondeu avidamente.- Eu estava na faculdade, em Nova Iorque, e andava a ter certas

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dificuldades nos estudos. Vivia com a minha mãe. o meu pai morreuquando eu ainda era um bebé. Depois, durante o segundo ano dafaculdade, a minha mãe começou a ter um caso com um homem, oque me aborreceu, embora, a princípio, não soubesse porquê. Eleera um cavalheiro, muito elegante e simpático, e tudo isso. Suponhoque devia ter gostado dele. Mas não gostei. Agora sei disso.Odiava-o. A princípio dizia a mim mesmo que gostava dele. Querodizer, sentia-me atraído por ele. Agora sei disso, também.Eu começava a imaginar o quadro - o que a psiquiatria lhe dera,225

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uma moldura para as suas ansiedades. Agora que tinha começado,prosseguiu.- E a minha mãe, bem, comecei a odiá-la também, por diversasrazÕes. Era ódio a um nível inconsciente, claro. Uma das razÕes erapor ter começado a andar com aquele homem e me deixar de parte,e a outra era por o guardar para ela. Penso que tinha tendênciashomossexuais latentes. Mas eu gostava da minha mãe. Era a únicapessoa de quem me sentia próximo. Eu não tinha muitos amigos...nunca tive... nem sentia grande prazer em sair com raparigas. Bom,nessa altura o presidente Kennedy foi assassinado e eu soube que

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tinha sido um jovem. Ia de metro para casa e vi jornais por todo olado: PRESIDENTE KENNEDY ASSASSINADO POR UM JOVEM. Fiqueinervoso, já andava assim há alguns dias e, de repente, como eu eraum jovem, decidi, não me pergunte porquê, que tinha sido eu quemtinha assassinado oKennedy. Os dias seguintes foram um autênticoinferno, tanto quanto consigo recordar-me. Não fui para casa.Andava aterrorizado com a ideia de que toda a gente me perseguia.E o que tornava tudo pior era ver as pessoas a chorar por toda aparte. Preocupava-me que descobrissem que eu era o assassino, de

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modo que andei sempre a fugir, durante dois dias, ao que parece,com medo de todas as pessoas que encontrava, e acredite que édifícil fugir das pessoas em Nova iorque. Felizmente, acabei numhospital. Levei quase um ano para acalmar, e foi preciso outro anode cuidados intensivos para compreender o que me tinhaacontecido. Depois as coisas...Subitamente parou a meio da frase e pôs-se a olhar de novopara a parede. Depois olhou para mim e pediu:- Importa-se de medir a minha tensão? Estou preocupado,porque penso que está muito alta.Eu não me importava de lhe medir a tensão, mas na sala nãohavia equipamentos. Saí para ir buscar um esfigmomanómetro,

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levemente perturbado com a súbita, concisa e impressionantehistória de um esquizofrénico paranóico. No regresso, umaenfermeira tentou impingir-me outra ficha, mas afastei-a, dizendo226que ainda não tinha acabado de atender o meu paciente.De regresso à sala, o homemjá tinha arregaçado a manga.Mostrou-se muito interessado enquanto eu colocava a manga emvolta do seu braço e tentou ler o mostrador enquanto eu dava àbomba. A pressão era de 146/96. Disse-lhe que estava levementealta, mas em conformidade com a sua agitação. Na verdade, tinhaficado um pouco surpreendido por a achar alta de mais. Depois,perguntei-lhe o que acontecera depois de ele sair do hospital.

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- De qual das vezes? - perguntou ele.- Esteve hospitalizado mais que uma vez?- Duas. Eu já lhe disse.- Que sucedeu depois da primeira hospitalização?- Correu tudo bem. Ia regularmente ao meu psiquiatra. Depois,sem qualquer motivo, comecei a sentir-me nervoso, como agora, e ascoisas foram piorando cada vez mais, até que tive de voltar para ohospital durante mais quatro meses.- De quanto tempo foi o intervalo entre as hospitalizaçÕes? -perguntei.- Cerca de um ano e meio. o verdadeiro problema é que nuncaconseguimos descobrir o que sucedeu da segunda vez. Eu não

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estava paranóico, só nervoso. Tinha aquilo a que chamamansiedade impregnada. Depois, o meu psiquiatra começou a falarde esquizofrenia pseudoneurótica, mas não percebi isso muito bem,embora leia muita coisa sobre o assunto. É por isso que estasituação me preocupa tanto. Sinto-me nervoso agora,verdadeiramente nervoso. Sinto a mesma ansiedade que sentiaantes de ir parar ao hospital pela segunda vez, e não suporto isso.Não quero ficar louco outra vez. Não sei por que estou a sentir istoagora. Andava tudo a correr bem ultimamente. Até o meu negóciocorre bem.Apercebi-me de que ele tinha estado psicologicamente bemcompensado. Tinha conseguido ter um novo lar no Havai e tinha

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mesmo iniciado um negócio. Estranhamente, senti-me nervosotambém, mas, evidentemente, por motivos diferentes e num graudiferente. Estava exausto, mas o meu problema poderia ser curado227com um pouco de sono e de descontracção. o dele era a longo prazoe, além disso, ele sentia receio de subitamente perder o controlo.Uma enfermeira abriu a porta, começou a dizer qualquer coisa edepois fechou-a, vendo-nos a conversar.- Tem muitos amigos aqui? - perguntei.- Não, nem por isso. Nunca tive muitos amigos. Prefiro ficar emcasa a ler. Não gosto de sair e sentar-me nos bares a beber. Pareceme

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uma perda de tempo. Não tenho muita coisa em comum com asoutras pessoas. Gosto de fazer surf de vez em quando, e vou fazersurf com alguns tipos, mas nem sempre. Na maior parte das vezesfaço surf sozinho.Aquilo divertiu-me, por um momento. Um surfista esquizofrénico.Mas, de certo modo, o estilo de vida dele era um pouco como omeu.- E a sua mãe? Onde está ela agora?- Em Nova Iorque. Casou com o tipo com quem andava. o meupsiquiatra sugeriu-me que me afastasse por algum tempo. Por issovim para o Havai. Não há dúvida de que a minha vida mudou paramelhor.Levantei-me e caminhei até à porta. Uma das minhas pernas

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tinha ficado dormente e sentia um formigueiro no pé.- Qual é o seu negócio?- Fotografia - respondeu ele. - Sou fotógrafo, independente, mastambém faço algum trabalho industrial. É isso que me mantémocupado. - Levantou-se, para estender as pernas, e caminhou até aooutro extremo da sala, até à cadeira. Voltei-me, pus as mãos atrásdas costas e encostei-me à porta. Ele parecia um pouco mais calmo,aliviado da sua ansiedade.- E quanto a mulheres? - perguntei, um pouco hesitante,perguntando a mim mesmo o que teria sucedido àquelas tendênciashomossexuais latentes a que ele tinha feito referência.Olhou-me rapidamente, depois de ouvir as minhas palavras, e

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em seguida sentou-se na cadeira, a olhar para o chão.- Bem, muito bem. Nunca estive melhor. Na verdade, vou até228casar-me muito em breve com uma óptima rapariga. É por isso queeu quero ter a certeza de que tudo esteja bem a meu respeito. Nãoquero passar mais tempo naquele maldito hospital. Agora, não.Compreendia perfeitamente a sua preocupação. Ao dar-lhe voz,ele tinha subitamente levado a conversa para um plano maispessoal. Não porque não tivéssemos estado a falar de coisaspessoais, mas o facto de ele ligar as suas dificuldades mentais aodesejo de se casar tornava mais fácil, para mim, compreendê-lo e

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simpatizar com ele. Afinal, se ele conseguisse safar-se e estabelecerum relacionamento real com a sua noiva, ela poderia ser o meio deuma compensação permanente. Pelo menos era uma possibilidade.Diferentemente de muitas pessoas mentalmente perturbadas,aquele homem estava realmente a esforçar-se. Gostei disso. Senteimena marquesa, perto da cadeira onde ele se encontrava.- Isso é bom - disse eu. - Está a ultrapassar o seu problemabásico.- Pois é, é maravilhoso - repetiu ele, sem grande entusiasmo.o facto de os esquizofrénicos apresentarem afectos embotadosveio-me à mente, proveniente de uma vaga palestra psiquiátrica.

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Deu-me uma momentânea sensação de entendimento e prazeracadémico.- Quando é que se casa? - perguntei, para ver se conseguiaobter dele uma reacção emocional.- Bom, esse é um dos problemas - disse ele. - Ela ainda nãomarcou a data.Este comentário fez-me recuar um pouco.- Mas ela concordou em casar-se consigo, não é verdade?- Concordou, sem dúvida. Mas ainda não decidiu quando quercasar-se. Na verdade tencionava perguntar-lhe esta noite se elaquereria casar-se no Verão. Gostaria de me casar este Verão.- Então por que não pergunta? - inquiri. Começava a formularuma nítida impressão de hipersensibilidade esquizofrénica contra

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qualquer sinal de rejeição. Talvez aquela ansiedade tivesse surgidopor ele sentir medo de ser rejeitado pela rapariga. Tudo indicavaque fosse isso.229- Esta noite não posso - disse ele.- Por que não? - Era um ponto crucial. Se as coisas corressembem, ele poderia ficar óptimo; mas, se ela o rejeitasse, o efeitopoderia ser catastrófico. Ele também sabia disso.- Porque ela me telefonou esta manhã e me disse que esta noitenão podia estar comigo. Quando lhe perguntei por que não, disseque tinha uma coisa importante a fazer. Faz isso muitas vezes.Eu sabia que ele estava numa posição difícil. Quando maisavançava, mais dependente ficava da sua noiva para a sua própria

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estabilidade mental. Não sabia que dizer-lhe. Tínhamos chegado auma espécie de impasse, e pensei que talvez fosse a altura de lhedar o Librium ou qualquer outra coisa. Depois, ele recomeçou a falar.- Talvez a conheça - disse. - É enfermeira do hospital.- Como é que ela se chama? - Senti uma certa curiosidade.- Karen Christie - disse ele. -Vive aqui perto, do outro lado darua.As palavras dele embateram na minha mente, derrubandomuralhas de defesa cuidadosamente construídas e levando tudo àsua frente. Senti que abria a boca involuntariamente, e aminhavisão ficou nublada, reflectindo a confusão e a descrença interiores.

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Esforcei-me profundamente por recuperar a compostura exterior. Eleestava demasiadamente mergulhado nos seus problemas parareparar no meu desconforto. Continuou a descrever o seurelacionamento com Karen. Agora, vinte segundos depois da suarevelação, eu estava de novo exteriormente calmo, a escutá-lo, mas,por dentro, as minhas próprias mensagens urgentes retiravam todoo significado às suas palavras. Eramos como dois homens a falar domesmo assunto, mas em línguas diferentes.Então era aquele o "namorado", o "noivo". Eu partilhava Karencom um esquizofrénico que dependia totalmente dela para o seu

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equilíbrio mental, cujo mundo se desmoronava quando era privadodessa compensação, como tinha sucedido por causa da decisão depassar aquela noite comigo. De uma maneira grotesca, mas muitoreal, tínhamos trocado de lugar: agora era ele o terapeuta e eu o230paciente. Era perfeito que eu estivesse sentado na marquesa e elena cadeira. Cerca de meia hora antes, eu tínha-me sentido rejeitadoporque Karen só me poderia receber depois das onze. Ao mesmotempo, tinha ilogicamente abençoado a minha sorte por ela teroutro homem que a levasse a sair e a trouxesse a casa a tempo de

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uma cerveja e sexo comigo. o facto de ter estado a partilhar asituação com um esquizofrénico tentava-me a identificar-me com ele,a ver-me à mesma luz. Mas eu não era, sem dúvida, esquizofrénico;a minha visão da realidade era até boa de mais. Não podiaacreditar que tivesse tido delírios, porque eu era, por certo, muitorealista, especialmente quanto ao meu papel de interno. Alémdisso, nunca tinha alucinaçÕes. Eu teria dado por isso, pensei. Ounão teria?Subitamente, notei que ele estava a olhar para mim, à esperade uma resposta. Com os olhos, pedi-lhe que repetisse.- Conhece-a? - repetiu ele.- Conheço - respondi mecanicamente. - Está nos turnos de dia.

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Começámos a falar e a pensar de novo em línguas diferentes,enquanto ele descrevia a sua meia vida com Karen e eu me retiravapara as minhas especulaçÕes. Não, tinha a certeza de que não eraesquizofrénico, mas talvez tivesse tendências esquizóides. Tentandorecordar-me de palestras e páginas de compêndios, esforcei-me porrecordar as características da personalidade esquizóide. A maiorparte desses casos, recordei-me, evitava relacionamentos próximosou prolongados. Isso condizia comigo? Sim, muito decididamente,nos últimos tempos. Por certo ninguém poderia descrever as minhasassociaçÕes com Karen, Joyce ou mesmo Jan como íntimas, ou

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caracterizadas pelo respeito e pelo afecto. Cabiam mais no domíniodas conveniências recíprocas - não tinha sido investida grandeemoção genuína ou vinculação tanto da minha parte como da partedelas. Tinha que confessar que, para mim, elas eram mais vaginasambulantes que pessoas inteiras, servindo não de um meio deaproximação, mas de um método de escape e de fuga. Sucedia omesmo em relação aos meus pacientes. No decurso dos meses, a231minha atitude para com eles tinha-se modificado. Cada caso passaraa ser umórgão, uma doença específica, ou um tratamento. Desde

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Roso, tinha evitado todos os contactos próximos, intimidade eenvolvimento. Até isso me parecia esquizóide, agora. Subitamentepenetraram na minha mente pensamentos abjectos, doentios,envenenando-me, e apercebi-me de que teria de sair rapidamentedaquela sala e afastar-me do hospital, ir para um sítio ondepudesse respirar. Dominando os meus pensamentos, concentrei-mena realidade diante de mim.- Que tipo de tranquilizante tem estado a tomar? - apressei-mea perguntar.- Librium, 25 mg - respondeu ele, um pouco confuso. Era evidenteque eu o tinha interrompido.- óptimo - disse eu. - Vou dar-lhe algum, mas recomendo que

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entre em contacto com o seu médico esta noite ou amanhã.Entretanto, vou receitar-lhe uma injecção de Librium, para obter umefeito imediato.Antes que ele pudesse dizer alguma coisa mais, levantei-merapidamente da marquesa, abri a porta e saí para a luz fluorescentee para o movimento das Urgências. Mecanicamente, preenchi umareceita para "Librium, 25 mg., sig: etiqueta T, P. E., QID, disp. 10comp.", enquanto a minha mente revolvia a ideia absurda de opaciente se transformar em terapeuta. Isso, só por si, parecia-me umdelírio quase esquizofrénico. Uma enfermeira tentou entregar-meoutra ficha, mas afastei-a. Disse a outra enfermeira que desse ao

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paciente que se encontrava na sala de psiquiatria uma intramuscularde 50 mg de Librium, Encontrava-me apenas semiconsciente daactividade que me rodeava. Depois, antes de sair, achei que deviair ver uma vez o esquizofrénico, para ter a certeza de que ele nãoera uma alucinação. Abri a porta. Lá estava ele, a olhar para mim.Fechei a porta e comecei a percorrer o caminho que levava aomeu quarto. Eram bem verdadeiras todas aquelas coisas que tinhapensado a meu respeito, naqueles segundos depois de ele terpronunciado o nome de Karen. Eu era um filho da mãe frio e232

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indiferente, e estava cada vez pior. Tudo aquilo em que eu pensarao confirmava. o meu relacionamento inicial com Carno, por exemplo;tinha desaparecido sob o disfarce da inconveniência. Na realidade,eu tinha sido excessivamente egoísta e preguiçoso para lhe darcontinuidade. Fazer surf era provavelmente a maior de todas asdesculpas, especialmente porque, aparentemente, eu estava aservir-me do surf para cobrir e disfarçar a minha vida cada vez maisisolada. E a própria Karen - um relacionamento vazio e sem sentido,não havia dúvida. Os sentimentos que eu tinha vagamente

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experimentado, o vazio e um desejo de algo indefinido - tinhatentado em vão reprimi-los através dos encontros com Karen e comJoyce, e até mesmo com Jan. A maior parte de tudo isto tornou-sehorrivelmente clara nos momentos em que estive sentado numacadeira no meu quarto às escuras, procurando respostas.Eu nem sempre tinha sido assim. Na faculdade era diferente,fazia amigos com facilidade e conservava-os. E aquele anseio desolidão que agora fazia parte de mim? Talvez o tivesse sentido umpouco no primeiro ano da faculdade, mas depois disso não. Emseguida tinha vindo a escola médica. As sementes da mudança

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teriam sido aí plantadas? Sim. Afinal, tinha sido durante a escolamédica que os amigos se tinham afastado e as minhas atitudes epráticas para com as mulheres tinham mudado, por uma questão denecessidade, compelido pelas dificuldades económicas e pelotempo limitado. Mas as sementes da mudança só tinham germinadodurante o internato. Agora era sexual e socialmente pouco mais queum prostituto, embora actuasse mais no hospital que no mundo real.Que diferente tudo se tinha tornado. o telefone tocou, mas não lhedei atenção. Despindo o fato branco, enfiei umas calças de gangacor de areia e uma camisola preta de gola alta.

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Que me tinha sucedido? Seria apenas o horário? Ou seria isso,aliado ao medo e à raiva que estava sempre dentro de mim? Seriabasicamente o meu autodesprezo por não me manifestar quandoachava que o sistema estava corrompido, por me deixar levar, nãoobstante, aguentando tudo? Estaria o meu cérebro de tal mododeformado pela exaustão que deixara de funcionar logicamente?233Não sabia ao certo. Quanto mais pensava, mais confuso edeprimido me sentia. Confuso em relação às causas, não aosefeitos. Em perspectiva, os efeitos eram claros: tinha-me tornado umautêntico patife.Subitamente, pensei em Nancy Shepard, e como a tinha

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afastado da minha mente, rejeitado as suas perguntas e as suasacusaçÕes. Na noite em que tínhamos discutido, ela estava a tentardizer-me o que eu acabara por saber pelo meu terapeuta - o meuterapeuta, o esquizofrénico. Que triângulo, pensei: uma enfermeiradúplice, um esquizofrénico mal compensado e um interno chanfrado.Naney Shepard tinha-me chamado um comodista incrível, umapústula egoísta que avançava para um ponto em que o amor setornava impossível. E com razão. Que importância tinha quehouvesse motivos para isso? Que não se tratasse de uma qualidade

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inata da minha personalidade, mas adquirida? Que eu tivesse sidoencorajado, dia após dia, a evitar o genuíno envolvimentoemocional, porque proceder assim era a única defesa natural quepodia convocar para lidar com a raiva, a hostilidade e o cansaço?Que importância tinha que a vida de um interno fosseestupidamente monótona, ou que o sistema médico abusasse dele eo hostilizasse? Para uma Naney Shepard - para qualquer pessoa - sócontava o resultado final da personalidade. Ela tinha-me afloradocom algumas verdades e eu tinha-a corrido a pontapés da minhavida por causa disso.Estendido na cama, perguntei a mim mesmo o que deveria fazer

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agora. De momento, dormir. Quantas pontas teria ainda intactas? EKaren? Não sabia. Talvez voltasse a visitá-la, talvez não. Esperavaque não, mas provavelmente fá-lo-ia.365.o DiaA PARTIDAo apêndice encontrava-se dentro de um recipiente de aço, ondeeu o tinha colocado, um momento antes de voltar à mesa dasoperaçÕes. o cirurgião estava a acabar de coser no lugar onde234havia estado o apêndice. A nossa concentração era tão intensa quenenhum de nósviu a mão que penetrara no campo operatório ecomeçara a mover-se ao acaso, apalpando os intestinos carnudos e

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húmidos. A mão não tinha luva-estava absolutamente deslocada ali,no nosso campo operatório previamente esterilizado. Parecia umacoisa estranha, vinda de uma zona crepuscular, para além dascoberturas cirúrgicas. o cirurgião e eu entreolhámo-nos, alarmados, edepois olhámos para Straus, o interno que acabara de chegar, masStraus não conseguia afastar os olhos da mão. Os segundosseguintes passaram-se num remoinho de confusão mental, enquantonós os três tentávamos ligar a mão intrusa a um dos membros daequipa operatória. Quando eu larguei a agulha e a linha e estendia minha mão para retirar a outra da incisão, o cirurgião percebeu o

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que se passara.- Pelo amor de Deus, George, o tipo tem a mão dentro dabarriga! Acordado do seu sonho, George, o anestesista, espreitoupor cima da protecção do éter e comentou:- Essa é boa - de um modo absolutamente tranquilo, antes devoltar a sentar-se. Com uma destreza que negava o seu aparentetorpor, injectou uma potente droga paralisadora dos músculos, asuccinilcolina, no tubo da IV. Só então a mão do paciente sedescontraiu e voltou a cair entre os lençóis cirúrgicos.- Quando disse que ia manter o paciente com anestesialeve,nunca pensei que tivéssemos que lutar com ele - disse o médico.Em vez de responder, George extraiu a agulha da succinilcolina

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da IV com a mão direita, enquanto a esquerda abria um pouco maiso óxido nitroso. Depois de algumas compressÕes forçadas do sacode ventilação, para introduzir mais depressa o óxido nitroso nospulmÕes do paciente, George ergueu o olhar para se juntar àconversa.- Sabe, George, essa sua anestesia epidural é muito divertida.Faz que se sinta de novo o desafio da cirurgia. Efectivamente, émais ou menos como fazer uma apendicectomia no século XVI.-Oh, não sei - replicou George. -Naqueles tempos, os pacientesnão atacavam só com as mãos; também davam pontapés. Já235repararam como os pés dele têm estado quietos? Temos feito

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bastantes progressos na anestesia.Dentro deste tipo de investidas, tinha sido uma barragembastante pesada e o cirurgião decidiu parar de fazer fogo. Em vezdisso, dirigiu a sua atenção para salvar o que podia dentro docampo operatório. Enquanto ele segurava, por precaução, aincómoda mão do paciente, eu cobri a incisão com uma toalhaesterilizada embebida em solução salina. Straus, a enfermeira e eucontinuávamos ainda esterilizados, como determina a terminologiado bloco operatório.Quebrar a esterilização do bloco operatório era um problemagrave, porque aumentava grandemente a possibilidade de umainfecção pós-operatória, com uma sépsis estafilocócica. Há

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cirurgiÕes que são absolutamente maníacos quanto à esterilização -mas nunca, aparentemente, de uma maneira racional. Por exemplo,havia um professor da escola médica que exigia que os internos,residentes e estudantes se lavassem durante exactamente dezminutos. Quem tentasse entrar na sala de operaçÕes após umaesterilização de menos de dez minutos, tinha de recomeçar doprincípio. Essas exigências não se estendiam, todavia, à sua própriaesterilização que durava, num cálculo generoso, pouco mais de trêsou quatro minutos. Aparentemente, os outros estavam maiscontaminados, ou as bactérias dele eram menos tenazes.

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A sua mania da esterilização foi responsável por um episódiomemorável. o caso era interessante, envolvendo um ferimento debala no pulmão direito, e os residentes e internos estavam em trêsfilas em volta da mesa de operaçÕes. Um estudante de Medicina,cheio de recursos, que era bastante baixo, estava interessado emseguir todos os detalhes. Por isso empilhou alguns bancos, colocousesobre eles e, amparando-se ao candeeiro sobre a mesa, podiater uma visão directa do campo operatório. Este engenhoso métodoresultou perfeitamente até que os óculos lhe escorregaram do narize foram cair, com um inocente plop mesmo dentro da incisão. Isto

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enervou de tal forma o professor que mandou o residente levar por236diante a operação.Felizmente, Gallagher, o cirurgião da apendicectomia, dominavaas suas emoçÕes melhor que o professor da escola médica. Emboraobviamente incomodado, continuava a funcionar.- George, veja se consegue puxar esse braço para fora doslençóis e segurá-lo firmemente - disse Gallagher, olhando para mime revolvendo os olhos perante o absurdo de toda a cena, enquantoo anestesista se enfiava, de cabeça, por debaixo dos lençóis.- E você, Straus, afaste-se da mesa - disse eu. o pobre Strausestava obviamente confuso. Os seus olhos voltavam-se ora para o

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cirurgião, sempre sem largar a mão do paciente, ora para a massade lençóis que se moviam, revelando o avanço do anestesista ou afalta dele. - Junte as mãos, Straus, e conserve-as à altura do peito. -Straus recuou, grato pelas instruçÕes recebidas.Com certa dificuldade, o anestesista conseguiu voltar a colocar amão do paciente no local devido e tentou segurá-la contra a mesa.Depois, o cirurgião recuou e deixou que a enfermeira circulante lhedespisse a bata e retirasse as luvas, enquanto a enfermeira daesterilização saía da sua peanha com um conjunto novodevidamente esterilizado.Que maneira de terminar o internato, pensei eu. Era a minha

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última operação marcada como interno - talvez a minha últimaactuação no bloco operatório como interno, embora estivesse deserviço nessa noite e me pudessem ser dadas algumas horas extrade cirurgia. De qualquer forma, aquele caso tinha sido um perfeitocirco desde o início. Para começar, o paciente tomara o pequenoalmoçoporque eu me tinha esquecido de escrever "sem alimentaçãooral" na ficha, e as enfermeiras, que deviam ter pensado um pouco,ao ver todas as outras instruçÕes pré-operatórias, tinham-noalimentado.- Straus, ajude-me aqui com os lençóis esterilizados. - Inclinei-me

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sobre o paciente e estendi a ponta de um novo lençol esterilizadopara o novo interno. Tínhamos um dia de sobreposição - era oprimeiro dia dele e o meu último. Eu ainda era oficialmente um237interno, embora estivesse a agir mais como residente desde achegada de todos os internos. Pareciam um bom grupo, tão ávidos einexperientes como nós tínhamos sido. Straus e eu tínhamos sidocolocados juntos, para eu o ajudar a ambientar-se. Efectivamenteestávamos ambos de serviço nessa noite.- Segure-os bem alto - indiquei, erguendo a minha extremidadeà altura dos olhos e deixando o rebordo cobrir o lençol antigo. -

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óptimo. Agora deixe a parte superior cair por cima da protecção doéter. - Ele pareceu perceber rapidamente, e entreguei-lhe o lençolinferior. Mas o cirurgião, já de bata e luvas novas, estavaimpaciente e tirou o lençol a Straus, ajudando-me a colocá-lorapidamente e sem mais palavras.Eram duas e quinze no grande relógio com o seu quadranteinstitucional bem conhecido. Custava-me a crer que, dentro de vintee quatro horas, deixaria para trás o meu internato. Como o ano tinhapassado rapidamente. No entanto, havia recordaçÕes que pareciamter mais de um ano. Roso, por exemplo. Ele não tinha sido sempreuma parte de mim ? E...

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- Que tal uma ajudazinha, Peters? - Gallagher já brandia umporta-agulha, do qual pendia um fino filamento. Mas não podiacomeçar porque a toalha esterilizada que eu colocara sobre aincisão ainda estava no lugar.- Pinça grande e uma bacia. - Estendi a mão para a enfermeirada esterilização e ela colocou uma pinça, com toda a força, sobre apalma da minha mão. Era um demónio na sala de operaçÕes.Aparentemente via muita televisão, porque nos batia com osinstrumentos na mão ao ponto de fazer doer, e, quando enfiava asluvas, era como se estivesse a tentar fazê-las chegar às axilas. Coma juda da pinça, retirei a toalha esterilizada sem lhe tocar e deitei-a

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para a bacia. o conceito de esterilização na sala de operaçÕesconfundia-me tanto que errava sempre por excesso. Não sabia seGallagher achava que a toalha estava contaminada, por isso, pelosim pelo não, não lhe toquei. Evidentemente, com o doente a meterna incisão a sua mão nua, nada fazia sentido em todo aqueleprocesso.238Com a toalha fora do caminho, Gallagher voltou-se de novo parao apêndice. Por sorte, o doente escolhera uma boa altura para assuas pesquisas; o apêndice já tinha sido extraído. Gallagher tinhaestado prestes a fazer o fecho da segunda camada, na altura da

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aparição da mão misteriosa.George, o anestesista, conseguira uma fantástica recuperação.As coisas já tinham voltado à normalidade, do seu lado - o nível desom da sua Panasonic portátil competia com o do respiradorautomático que tinha sido trazido, depois da succinilcolina. Não setratava de uma mera precaução. A succinilcolina é tão potente que opaciente se encontrava totalmente paralisado naquele momento, ea máquina estava a respirar por ele. Quando Gallagher deu oprimeiro ponto, depois da luta, o ambiente geral regressou ao nívelde antes da crise. Até fez uma pausa para escutar o relatório sobreas condiçÕes de surf que saía do rádio de George, por cima da

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protecção do éter - "Ala Moana três-quatro e calma". Mas a minhaprancha já tinha sido vendida. Gallagher era um dos dois cirurgiÕesmaisjovens que de vez em quando faziam surf. Tinha-o visto algumasvezes no "número 3" ao largo de Waikiki, e era, sem dúvida, melhorcirurgião do que surfista, pois era uma pessoa muito requintada.Tinha o hábito de pegar nos instrumentos cirúrgicos com o dedomínimo espetado, como uma dama de um clube de floricultura pegana sua chávena de chá.Foi assim que deu o ponto seguinte - afastando o dedinho tantoquanto possível dos dedos restantes e puxando habilmente o fio do

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porta-agulha para a minha mão que aguardava. Como eu era oprimeiro assistente, competia-me atar. Straus segurava nosretractores. A primeira laçada foi formada e atada com extremarapidez, como sucede quando um acto se torna reflexo. As paredesopostas do intestino grosso uniram-se sobre o coto invertido doapêndice. Enquanto eu esticava a sutura, Gallagher fingia não olhar,mas estava certo de que não me perdia de vista. Como nada disse,parti do princípio de que aprovara o grau de aperto que eu dera àprimeira laçada. Depois tirou o porta-agulha carregado de novo das239mãos da enfermeira, quando eu iniciei a segunda laçada.

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- Ei, Straus, que tal levantar um pouco esses retractores para euver o meu nó ? - Aborreceu-me que Straus estivesse a olhar para o arprecisamente nessa altura. Esperei, passando a segunda laçada,enquanto ele olhava para a incisão e a levantava com a mãodireita, abrindo-a mais. Isso possibilitou que o meu indicadorfizesse descer o fio à altura da primeira laçada, onde a apertei comuma precisão que me pareceu perfeita. Outra laçada, com a outramão a conduzir, de modo a obter um nó direito, não um nóescorregadio.Cinco dessas suturas cobriram completamente a área do coto doapêndice e estávamos prontos para fechar.

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- Straus, fez um trabalho excelente - disse Gallagher, piscandomeo olho, enquanto retirava os retractores das mãos do interno. -Não teria podido passar sem a sua ajuda. - Não sabendo ao certose Gallagher estava ou não a gozar com ele, Straus decidiusensatamente permanecer em silêncio. - Onde aprendeu a fazerassim a retracção, Straus?- Ajudei a algumas operaçÕes na escola médica - disse ele,modestamente.-Tinha a certeza disso - replicou Gallagher, com um sorrisosubreptício a notar-se aos lados da máscara. -Peters, com ajuda donosso jovem cirurgião, poderá fechar a incisão?- Penso que sim, Dr. Gallagher.Gallagher hesitou, olhando para a incisão.

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- Pensando bem, é melhor eu ficar. Se o paciente sofrer umainfecção pós-operatória, quero que as culpas recaiam sobre ummínimo de pessoas... apenas sobre o George. George, está a ouvir?Que foi? - George ergueu o olhar do seu relatório de anestesia,mas Gallagher ignorou-o e recuou, para lavar as mãos na bacia.- Straus, como vai em atar nós?- Não muito bem.- Bom, está pronto para experimentar uns?- Penso que sim.- OK, quando chegarmos à pele, até.240As suturas faciais foram rapidamente feitas. Eu agora atava tãorapidamente quanto o cirurgião suturava, e a enfermeira tinha de

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apressar-se para nos acompanhar. A incisão sorridente foi-sefechando, à medida que eram feitas e atadas as suturassubcutâneas.- OK, Straus, vejamos o que sabe fazer - disse Gallagher, depoisde colocar a primeira sutura dérmica no centro da incisão e de terpuxado o fio de seda sobre o abdômen do paciente. A primeirasutura dérmica, no centro de uma incisão, é a mais difícil, porque,até serem feitas as outras, tem de suportar uma grande tensão eessa tensão dificulta a sua atadura com a tensão adequada.Gallagher piscou-me de novo o olho, quando Straus pegou nas duas

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pontas do fio. Straus nem sequer tinha as luvas bem esticadas ehavia protuberâncias de borracha enrugada nas pontas dos seusdedos. No entanto, não ergueu o olhar - o que foi bom, porque eusabia o que o esperava e o meu rosto estava contorcido num amplosorriso de antecipação.Pobre Straus. Quando fez a segunda laçada, estava a transpirar,e os rebordos da pele encontravam-se ainda a cerca de umcentímetro de distância. Além disso, tinha os dedos todosenfeixados na sutura, de uma maneira que dava a impressão deestar a fazer um número cómico. Mas continuava a não olhar paracima, o que era um bom sinal. Havia de ser dos bons.

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- Straus, conhece bem a teoria. As suturas dérmicas não devemficar muito esticadas. - Gallagher riu-se. - Mas um centímetro deseparação é levar as coisas longe de mais.- Podem demorar o tempo que quiserem. o paciente vai ficarparalisado durante bastante tempo, com aquela succinilcolina -acrescentou George.Cortei a sutura, arranquei-a e atirei-a para o chão. Gallagheraplicou outra, separando o fio da agulha com um movimento quaseimperceptível da mão. Em silêncio, Straus pegou nas duas pontas erecomeçou a tentar.- Não foi a primeira vez que vi uma mão nua numa incisão241abdominal - disse eu, olhando para Gallagher. - Certa vez, na escola

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médica, estávamos uns oito estudantes na sala de operaçÕes,tentando ver um caso, e o cirurgião disse: "Apalpem esta massa.Digam-me o que pensam." Todos os residentes apalparam,acenando com a cabeça, e, de repente, apareceu uma mão sem luva,entre dois residentes, e apalpou também.- Foi um dos estudantes? - perguntou o anestesista.- Provavelmente. Nunca chegámos a saber ao certo, porquefomos todos corridos pelo residente chefe, que estava a tentaracalmar o cirurgião.Straus continuava a lutar com a segunda sutura, largando aspontas, ficando com os dedos presos e inclinando-se para um lado e

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para o outro, contorcendo o corpo como um jogador que pretendeapanhar a bola. Não sei como é que ele esperava que aquelascontorçÕes o ajudassem, mas reconhecia em mim a mesmatendência.- o paciente teve uma infecção pós-operatória? - perguntouGallagher.- Ná. Safou-se sem complicaçÕes - disse eu.- Esperemos que este siga pelo mesmo caminho. Sem falar,desemaranhei o fio de seda das mãos de Gallagher e fizrapidamente um nó, puxando-o para o lado, para o afastar dasutura. Straus manteve obstinadamente a cabeça baixa enquantoGallagher fazia outra sutura.- Que tal esta, meu prometedor cirurgião? - disse Gallagher,esticando os braços com as mãos invertidas e os dedos

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entrelaçados. Uma ou duas articulaçÕes estalaram.Aquele Straus era realmente um tipo silencioso; nem um somprovinha dele enquanto se concentrava na sutura. Na verdade, eu jáestava a ficar cansado dojogo, de estar ali avê-lo às voltas. Eramquase três horas e tinha muito que fazer, últimas coisas a meter nasmalas e outros pormenores. Depois de um olhar tranquilizador paraGallagher, voltei a desatar a sutura de Straus e fiz um rápido nódireito, unindo os rebordos da pele sem qualquer tensão.242- Bom, penso que vocês os dois podem acabar isso. Não seesqueçam, só quero um pedaço de adesivo fino sobre o penso. -Dizendo isto, Gallagher dirigiu-se à porta, arrancou as luvas e

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desapareceu. Straus ergueu o olhar pela primeira vez desde quecomeçara a atar as suturas.- Prefere atar ou coser? - perguntei, fitando o seu rosto suado etenso. Na verdade, não conseguia decidir o que seria pior, se eleatar ou ele coser. Só queria ir-me embora dali.- Eu coso - disse ele, estendendo a mão para a enfermeira que,como habitualmente, lhe bateu com toda a força com o porta-agulhana palma da mão. o som agudo do metal sobre a borracha esticadaecoou em volta das paredes nuas da sala de operaçÕes. Straus deupraticamente um salto, assustado com o impacte. Depois,

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cambaleou e, recompondo-se, com outra olhadela rápida para mim,inclinou-se sobre a incisão e mergulhou a agulha na pele no ladosuperior da incisão.- Straus.- Que foi? - Inclinou o rosto para cima, conservando-se curvado.- Segure a agulha de modo que a ponta fique perpendicular àpele e depois mova o pulso... por outras palavras, siga a curva daagulha.Ele tentou mas, quando fez rolar o pulso, rodou o porta-agulhasem ter em conta a distância entre o suporte e a ponta da agulhacurva. o resultado foi um leve estalido metálico quando a agulha separtiu mesmo rente à pele. A mão dele ficou paralisada, enquanto

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os seus olhos, cheios de descrença e ansiedade, iam da pontapartida da agulha para mim."Estou lixado", pensei.- OK, Straus, não mexa em nada. - o "Big Ben" dizia quepassavam cinco minutos das três.As pontas de agulha - na verdade até as agulhas inteiras - eramquase impossíveis de encontrar quando se perdiam. Felizmente, euconseguia ver a parte superior desta mesmo ao nível da pele. -Pinça mosquito. - Sem tirar os olhos da ponta quase invisível,estendi a mão para a enfermeira. Zás! A força do delicado243instrumento enviou uma onda de choque pelo meu braço acima,

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fazendo vibrar o campo de visão. A agulha partida desapareceu.Olhei, furioso, para a enfermeira. Era uma mulher enorme,praticamente esférica, cujo peso era uns dez quilos superior ao meu,e o seu olhar, naquele momento, continha uma malícia tãoinesperada, que declinei a oportunidade de dizer qualquer coisa.Em vez disso, concentrei-me na delicada pinça mosquito, que dequalquer forma ainda estava inteira, na minha mão. Colocando oindicador esquerdo na incisão e empurrando levemente por baixo daagulha partida, encontrei alguma resistência antes de tentar agarraro pedaço de aço. No entanto, a primeira tentativa apenas

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conseguiu empurrar o raio da coisa um pouco mais para dentro.Nessa altura tomei a decisão de terminar eu a sutura e a atadura. Asegunda tentativa foi melhor sucedida; retirando a pinça, fiqueialiviado ao ver a ponta brilhante da agulha firmemente segura nasua extremidade, e, com o cuidado de um relojoeiro, depositei-anum canto do tabuleiro dos instrumentos, comparando o pedaço coma sua base, para ter a certeza absoluta de que não faltava qualquersegmento. Satisfeito, pedi uma sutura, evitando olhar para Straus.A pele curvou-se por baixo da agulha perpendicular, quandoaumentei a pressão, até que, com um estalido, a agulha penetrou

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na pele. Fazendo rodar o pulso num arco cujo centro se desviou paraeliminar a torção na ponta da agulha - a força que Straus não tinhatido em conta - trouxe a ponta da agulha até à superfície inferior dapele, do lado oposto da incisão. Contra a contrapressão exercidapelos meus dedos indicador e médio da mão esquerda, torci demaneira decisiva a mão direita, e a ponta da agulha irrompeu -Puxando a agulha com o suporte, completei o ponto. Desliguei o fio,levantando o porta-agulha de modo que o orifício da agulhaapontasse para cima; a tensão na extremidade do fio queatravessava a pele arrancou o fio do instrumento.Seguindo a rotina aceite, larguei o porta-agulha vazio na área

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coberta entre as pernas do paciente. A enfermeira recuperá-lo-iaautomaticamente e enfiá-lo-ia de novo. Entretanto, peguei na244extremidade do fio, fiz um nó com quatro laçadas e termiinei com asduas pontas esticadas. Só então olhei para Straus.- Que tal cortar, Straus? - perguntei. Ele moveu-se, semresponder, cortou o fio e continuou a olhar para a incisão. Apliqueimais dez suturas de forma semelhante, rapidamente e semconversas. Depois de cortar um pedaço de adesivo e o colocar sobrea incisão fechada, voltei-me para Straus.- Por que não escreve as ordens pós-operatórias? Tem decomeçar por alguma coisa. Eu depois vejo-as, quando me mudar. E

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depois vou apresentá-lo aos seus doentes, OK?- OK - disse ele finalmente, numa voz sem timbre.- Além disso - prossegui - vou mostrar-lhe o que sei quanto asuturar e atar, se quiser. - Straus não falou.Que chato, pensei. Se elejá está cansado, o ano vai ser muito,muito longo para ele. Mas o problema era dele, e a sua atitude nãome incomodou por muito tempo; tinha mais que fazer. Deitando asluvas no saco junto da porta, saí do bloco operatório pela última vezcomo interno, sem a mínima sensação de nostalgia. Na verdade,sentia-me eufórico. Sentia que tinha cumprido a minha pena eestava pronto para ser residente. Muito pronto, mesmo. A prática da

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Medicina estava finalmente à vista. Enquanto caminhava pelocorredor do bloco operatório, perguntava a mim mesmo se deveriacomprar um Mercedes ou um Porsche. Sempre desejara um Porsche,mas, vendo bem, era um carro pouco prático. Um Cadillac? Nuncateria um Cadillac. Que automóvel obsceno! - embora fosse um dosfavoritos dos cirurgiÕes. Hércules tinha um, e o Supercaro também.De qualquer forma, o Mercedes atraía-me mais.A ementa chamava-lhes croquetes de vitela, mas, para nós, eramuns montinhos misteriosos; o antídoto era o ketchup. Como na maiorparte das cafetarias dos hospitais, a comida exigia uma excelente

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imaginação e boa vontade da parte de quem a encomendava. Se aementa dizia vitela, convinha que nos agarrássemos tenazmente ànoção de vitela, apesar das provas em contrário, quanto a gosto,245textura e aspecto. Convinha também suprimir qualquer conhecimentodas práticas imperfeitas dos matadouros, estar com muita fome eser abençoado com uma boa conversa.Para ser justo, penso que a cozinha da cafetaria do Havai eracordon bleu, em comparação com as que tinha conhecido durante aescola médica em Nova Iorque. Todavia, mesmo no Havai, o serviço

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alimentar recorria ocasionalmente a misteriosos pastéis de carnemoída e, como se quisesse ajudar-me a festejar, escolheu essa noitepara servir a vitela, uma das minhas peças favoritas para conversar.Além disso, eu ainda estava de serviço. Mesmo assim, a refeição foicomo um banquete. Era a minha última noite como interno, e, noentanto, já estava praticamente afastado do campo de batalha.Straus estaria indubitavelmente na primeira linha de defesa se equando os sarilhos começassem.o clima da sala de jantar era agradável. Finos veios de luz solarpenetravam através das fendas e em volta dos estores das janelasvoltadas para sudoeste. Partículas de poeira dançavam nos raios

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dourados do sol, como bactérias sob um microscópio. Só um médicose podia lembrar desta comparação. Um dos inconvenientes dotreino técnico concentrado é que a nossa mente acaba por reduzirtudo a uma experiência técnica. A poeira poderia também lembrarpeixes num oceano ou aves no céu. Mas, a mim, lembrava bactériasnuma amostra de urina para análise.Estávamos reunidos, num grupo, em volta de uma das grandesmesas perto da janela. Straus encontrava-se à minha esquerda,depois de Jan, que estava sentada ao meu lado. Num contexto

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social, longe dos terrores do bloco operatório, Straus era tudomenos uma pessoa silenciosa e retraída, como eu o julgara. Naverdade, era uma pessoa extremamente animada, faladora e, poderse-ia dizer, litigiosa. Parecia discordar de todas as minhasafirmaçÕes, quer se tratasse de automóveis, de remédios ou demedicina.Como frequentemente sucedia, a conversa tinha-se desviadoinexoravelmente para os cuidados médicos nos Estados Unidos.Havia mais seis ou sete pessoas em volta da mesa, além de Straus,246de Jan e de mim, mas, por qualquer modo, tinham decidido, noinício da refeição, apenas escutar em vez de participar, e comiam a

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sua comida e bebiam o seu café em silêncio, deixando-nos falar. Asua única participação consistia numa ou noutra risada incrédula,acompanhada por um revirar de olhos e um abanar de cabeça, parademonstrar que o que havia sido dito era ridículo. Era óbvio que nãopretendiam acrescentar algo de concreto ou relevante. Comecei apô-los de parte, concentrando-me em Straus, que prosseguiaanimadamente.A única maneira por que os cuidados médicos podem serequitativamente distribuídos de modo que toda a gente goze osbenefícios é restruturar todo o sistema de aplicação - dizia Straus,alternadamente erguendo a palma da mão da mesa e deixando-a

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cair, para sublinhar o ponto que pretendia fazer valer.- Quer dizer, deitar para o lixo o actual sistema de médicos,hospitais, etc., e começar tudo de novo? - perguntei eu.- Isso mesmo. Acabar com tudo. Enfrentemos a situação. AMedicina está atrasada na maneira como organiza e distribui oscuidados médicos. Pense em quanto a tecnologia mudou durante osúltimos quinze ou vinte anos. E a Medicina mudou? Não. Claro,temos mais conhecimentos científicos, mas isso não ajuda o homemda rua. Os manda-chuvas ficam com os benefícios do teste de isoenzinasrecém-desenvolvido, apanhando sempre tudo o que surgede novo. E o pobre do ghetto? Esse não apanha nada. Sabia que

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quarenta milhÕes de americanos nunca foram ao médico?Straus não esperou que eu respondesse, continuando aoataque, aproximando-se mais da mesa. Era bom que ele não tivesseparado, porque quarenta milhÕes parecia-me gente de mais, e eu iainterrogá-lo a esse respeito. Mas que importância tinha o númeroem si, quando se sabia que muitos americanos estavampraticamente a passar fome? De que serviam os cuidados médicossofisticados, quando as pessoas não tinham alimentos suficientes?Mas o valor estatístico perdeu-se na conversa, enquanto Strausprosseguia.247

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- o que nós somos é um bando de médicos vendedores de rua, aempurrar carrinhos na era espacial. E a culpa é dos médicos!- Espere aí um pouco - disse eu. Não podia deixar passar aquelageneralização. - As coisas talvez não sejam as melhores possíveis,mas há muitas colheres metidas na sopa.- Certo, as colheres gananciosas dos ricos. Por certo, uma vezque os cuidados médicos levam sete por cento do produto nacionalbruto... ou seja, cerca de setenta biliÕes de dólares por ano... énatural que haja muita gente interessada. Mas não deixa de serverdade que, nos Estados Unidos, os médicos fizeram o sistema e o

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dirigem. Dirigem os hospitais, as escolas médicas e a maior parteda investigação. E, o que é mais importante, os médicos controlam oabastecimento de médicos.- Então e as companhias de seguros e os fabricantes deprodutos farmacêuticos?- As companhias de seguros? Bom, não têm as mãos muitolimpas, mas, de qualquer forma, não interferem no relacionamentomédico-paciente... suponho que por receio da AMA (AssociaçãoMédica Americana). Quero eu dizer, se uma companhia forçasse anota, a AMA poderia concebivelmente recusar-se a tratar ospacientes dessa companhia.- Oh, seja razoável, Straus. - Procurei apoio e não obtive

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qualquer compromisso, excepto de Jan, que abanou vigorosamente acabeça.- Então acha que a AMA não ia fazer uma coisa dessas? -perguntou Straus.- Não posso imaginá-lo sequer.- Ho-ho, meu amigo. Está ao corrente da gloriosa história daAMA?- A que se refere em especial? Sei algumas coisas acerca daorganização. - Na verdade estava longe de ser uma autoridadesobre o assunto, não só porque ele tinha sido ignorado na escolamédica, como também porque... não estava muito interessado nele.- Que quer dizer com algumas coisas acerca da AMA? É membro?- Bom, mais ou menos. Como sabe, os internos e os residentes

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248podem filiar-se, com uma taxa reduzida. Foi o que eu fiz. Mas não fiznada. Quero eu dizer que não fui a reuniÕes, nem votei, nemparticipei de alguma maneira.- Aí tem, esse é um dos problemas. É membro. Faz parte daestatística deles. Eles gostam de pensar que somos todos membros,sendo alguns mais activos que os outros. A AMA afirma querepresenta cerca de duzentos mil médicos do país, mas sabe umacoisa?- O quê? - Strauss dava nitidamente a impressão de saber doque estava a falar.- Os números deles são falseados. Em muitos estados, está

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determinado que, para conseguir privilégios hospitalares, o médicoterá de se inscrever na sociedade médica local, e, desse modo,torna-se automática e obrigatoriamente membro da AMA. E acha quealgum desses médicos se interessa ou pensa sequer no que sepassa com a AMA? Bom, pode ter a certeza de que não. Dizem parasi próprios, tenho mais que fazer; não tenho tempo para isso. Outalvez tenham a sensação, embora não a examinem muitocuidadosamente, de que a AMA é política suja. E nisso têm toda arazão. Mas, graças à sua apatia, a nossa doce e velha AMAapresenta-se em Washington e afirma que fala em nome de

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duzentos mil médicos, que nunca contradizem essa afirmação. Paratornar as coisas piores, não só fala por eles como usa o dinheirodeles. Sabia que o orçamento da AMA é superior a vinte e cincomilhÕes de dólares por ano, pagos em quotas pelos médicos quedizem não ter tempo para investigar o que está a passar-se?- OK, OK. - Tinha que o interromper; estava a ficarexcessivamente excitado. Dois dos residentes do outro lado damesa puseram-se de pé e saíram, largando os guardanapos nasbandejas. Já passava das seis e eu tinha que fazer as malas. Masnão podia mandar Straus embora. Naquele momento estava

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inclinado para mim, praticamente à frente de Jan, que teve de seendireitar na cadeira para lhe dar espaço. Podia ver os olhos dele.Era um tipo magro e intenso, e os seus olhos brilhavam.249- Straus, eu não vou defender a AMA, mas é do conhecimentocomum que ela tirou a arte da Medicina do caos em que seencontrava no século XIX. Antes do relatório Flexner, por volta de1910, o treino médico era uma anedota, e foi a AMA que se deu aotrabalho de alterar isso.- Sim, não há dúvida de que o fizeram. Mas, deixe que lhepergunte, com que fins?- Que quer dizer com isso? Para rectificar uma situaçãolamentável.- Talvez, mas também para os seus próprios fins.

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- Que quer dizer?- Que eles reduziram o número de escolas médicas e asmelhoraram... com isso concordo. Mas ao mesmo tempo passaram acontrolar a aprovação das escolas médicas. o que, traduzido,significa que eles controlam o abastecimento de médicos e o seucurriculum. Por outras palavras, eles determinaram o percurso socialque os médicos em potência têm de percorrer, e conseguiram fazerque os estudantes em potência se moldem perfeitamente aosistema.- Straus, você é um romântico. Tem a certeza de que quer iniciaro internato?- Quero ser médico, e, se houvesse outra maneira de o ser,

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utilizá-la-ia. Mas, para mudar de assunto, diga-me uma coisa,Peters, está consciente do peso da história que recai sobre si aoingressar na profissão médica na América?- Onde quer chegar? - Os dois últimos médicos que tinhamestado silenciosos à nossa frente, arrastaram as cadeiras e foram-seembora. Apenas ficámos eu, Straus e Jan, inclinados sobre umamesa cheia de pratos sujos e bandejas desarrumadas.Straus prosseguiu, impávido.- A AMA tem um record quase impecável de nunca apoiar, emuito menos iniciar, reformas sociais progressivas. Por exemplo, aAMA foi contra o Serviço de Saúde Pública dar injecçÕesantidiftéricas e criar clínicas para doenças venéreas. E foi contra a250

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Segurança Social, o seguro de saúde voluntário e a clínica degrupos. Efectivamente, na década de 30, a AMA classificou osgrupos médicos como bolchevistas!Tartamudeei, tentando dizer qualquer coisa, mas não consegui.- Mais alguns pontos. Sabia que a AMA lutou contra os chefeshospitalares assalariados a tempo inteiro, e, mais recentemente,até contra os empréstimos federais a juro baixo aos estudantesmédicos?- o quê? - Eu tinha começado a deixar de ouvir Straus quando eleiniciara a sua lista de queixas, até que as palavras "empréstimos" e"estudantes" se ligaram na minha cabeça. Ainda devia bastante

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dinheiro dos meus tempos da escola médica. - Eles foram contra osempréstimos aos estudantes de Medicina?- Pode crer que sim.- Porquê? - Aquilo realmente surpreendia-me.- Sabe Deus! Penso que isso abria a Medicina aos não ricos. Masum dos aspectos mais patéticos desta história é que, depois deessas reformas terem sido aceites pela sociedade e a AMA ter sidoobrigada a aceitá-las, a AMA tenta, posteriormente, que elas lhesejam creditadas. Faz-nos lembrar osjornais de Orwell no 1984. Todoeste cenário miserável tem de acabar. Penso que o governo terá deo fazer.- OK, Straus. Está a tentar dizer-me que, depois de ter passado

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por todos estes anos de estudo, e todos os anos que ainda lhefaltam, estará disposto a trabalhar para o governo federal? Pareceser isso que está a sugerir.- Não necessariamente. Só estou a dizer que os médicosconseguiram o controlo e lixaram tudo. A sua responsabilidade émuito mais ampla do que os seus consultórios solitários, tratandouma sucessão de pacientes individuais. Têm de ter em consideraçãoa totalidade dos cuidados de saúde, incluindo o tratamento dohomem do Harlem e da famílía nos Apalaches... é tão importantetratá-los como tratar um presidente do Conselho de Administração

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do Harkness Pavilion. Se os médicos falharem de novo, o governoterá de tomar o controlo e ordenar à profissão médica que faça o251que é necessário. Afinal, todos os cidadãos têm direito a cuidadosde saúde adequados.- Isso é fácil de dizer, mas não estou assim tão seguro. Afinal,quando alguém se sente incomodado por uma dor de cabeça às4:30 da manhã, e faz sair um médico da cama porque tem direitoaos cuidados de saúde, o que se passa quanto aos direitos dessemédico? Até que ponto uma pessoa se pode sobrepor aos direitosde outra? Não há dúvida de que o médico também tem os seusdireitos.

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"E, além disso, se os rins de uma pessoa deixam de funcionar,mas todos os rins artificiais estão ocupados, quem é que o pacienteprocessa? A sociedade não pode ter um rim artificial à esquina, àespera de cada cidadão. A questão é que os cuidados de saúde sãouma indústria de serviços prestados por pessoas altamentetreinadas e equipamento sofisticado, e ambas essas coisas estãosempre em falta. Não se podem prometer cuidados de saúde atodos quando os recursos são limitados.- Não vou discutir esse ponto, Peters. o governo federal definiuclaramente os cuidados de saúde como um direito dos seuscidadÕes, ao aprovar as leis do Medicare e do Medicaid.

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- Bom, Straus, gostaria de voltar a falar consigo quando terminaro seu internato. Mas, até agora, foi apenas um estudante e,concordemos num ponto, se as coisas corressem mal, podia pôr-sede parte e deixar a responsabilidade aos outros. Gostaria de saberse sentirá o mesmo quando este ano tiver terminado.Jan tinha estado a escutar em silêncio, mais ou menos do meulado, pensava eu, Nessa altura interveio.- Poderá haver problemas com a distribuição dos cuidados desaúde, mas não há dúvida de que temos a melhor Medicina domundo, Straus. Toda a gente sabe disso.- Ridículo - retorquiu Straus. - Repare na mortalidade infantil. OsEstados Unidos estão em décimo quarto lugar na prevenção da

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mortalidade infantil, em décimo oitavo na duração prevista da vidados indivíduos do sexo masculino, e em décimo segundo...252- Espere aí, Straus - disse eu, recusando-me a escutar maisestatísticas.Só em décimo quarto na mortalidade infantil? - perguntou Jan.Straus tinha-a impressionado.- Jan, minha querida, não te deixes enganar pelas estatísticas.Pode-se provar quase tudo com estatísticas, se tratarmos comamostras diferentes da população. Pode ser uma espécie de divisãomatemática arbitrária. Straus, o facto de sermos décimos quartos ouseja o que for em mortalidade infantil tem provavelmente a ver com

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o facto de termos registos tão exactos no nosso país. Muitos paísesregistam os nascimentos nos hospitais. Todos os outros ficam porregistar.- São muito bons a fazer registos na Suécia - replicou Straus comum sorriso.- Bom, então há diferentes maneiras de fazer o registoconsoante a altura da gravidez em que a criança nasce... se setratou de um nado morto, de um morto in utero ou de um caso emque a criança morreu quando era viável. Faz uma grande diferença oponto onde um determinado país traça uma linha na recolha deestatísticas sobre a mortalidade infantil.Straus ergueu as mãos, com as palmas voltadas para mim, e

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baixou-as lentamente, enquanto prosseguia.- Também não vou discutir os detalhes técnicos das estatísticas.Mas subsiste o facto de os Estados Unidos não estarem no topo dalista, E décimo quarto é uma posição bastante baixa quando sepensa no lugar onde estamos na maior parte dos outros serviçostécnicos. Francamente, a Suécia faz que nos sintamos bastante mal.- A Suécia não tem os nossos problemas - disse eu vivamente. -Têm uma população relativamente pequena e homogénea, ao passoque os Estados Unidos são uma sociedade pluralista. Quer dizer queum estado com uma Previdência Social socialista como a Suécia é a

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resposta para todos os males sociais e a solução para nós?- Parece ser a melhor para a mortalidade infantil, e os cuidadosodontológicos das crianças e a longevidade. Mas não estou a dizer253que os Estados Unidos devessem adoptar o sistema sueco degoverno ou de cuidados de saúde. Só estou a tentar dizer que hálugares onde os cuidados de saúde em geral são melhores que aqui.o que, traduzido, significa que é possível ter melhores cuidados desaúde, e nós temos de fazer que isso suceda.- Bom, não se cria uma indústria de serviços como a Medicina apartir do vácuo, nem se pode legislar abruptamente. As mudanças

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na estrutura social só ocorrem através de mudanças nas atitudes daspessoas. Estas mudanças são lentas e estão relacionadas com asforças educacionais que delas se ocupam. As pessoas estãohabituadas à actual relação médico-paciente. Não creio que queirammodificá-la.- Pelo amor de Deus, Peters, há quarenta milhÕes de pessoasque nunca viram um médico! Como podem ter uma atitude? Homem,isso é uma desculpa vazia. Mas é típica. Você e os seus camaradasconseguem sempre arranjar um milhão de pequenas razÕesirrelevantes segundo as quais o sistema presente não deverá sermudado. É por isso que toda a estrutura tem de ser destruída. Caso

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contrário, vamos pondo paninhos quentes, com compromissos comoo Medicare ou o Medicaid.- Então, até mesmo o Medicare e o Medicaid são maus. Straus,você é um autêntico terrorista. Vê tudo negro do seu ponto de vista.Eu acho que a Medicare e a Medicaid são boas leis. o únicoproblema que consigo ver nelas é que lixaram o sistema de ensinopermitindo que muitos dos pacientes que nós tratávamos tivessem oseu médico particular, que não deixa os internos e os residentesocuparem-se do caso. o resultado foi termos perdido uma largapopulação de pacientes com quem podíamos aprender.- Bom, isso é bastante importante - disse Straus. - E é um

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indicativo da solução do Penso Rápido para os gigantescosproblemas sociais. Todavia, o maior problema do Medicare e doMedicaid é que puseram mais dinheiro em jogo, criando maiorprocura. Se a procura aumentar e o fornecimento se mantiver igual,os preços sobem.- Claro, claro. - Eu começava a ficar um pouco irritado. - o que254pretende é outra burocracia monolítica do governo, com milhÕes dearmários de arquivo e máquinas de escrever. Mas isso custa muitodinheiro. o custo dos cuidados de saúde talvez subisse, e nãodescesse, com essa burocracia. E suponho que está a ver todos osmédicos a receber um salário do governo. Isso havia de ser

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interessante! A sociedade iria sentir um belo choque quandodescobrisse de quanto dinheiro precisaria para pagar a essesmédicos. o retorno financeiro iria subir, quando o médicoaprendesse rapidamente a comparar-se comum piloto aéreosindicalizado, que pode ganhar cerca de cinquenta mil dólares porano num mês de sessenta e cinco horas. Quantos médicos seriamprecisos para manter o sistema de cuidados de saúde se cada undeles trabalhasse sessenta e cinco horas por mês? Além de todos osbenefícios da reforma...- Isso é uma...- Deixe-me acabar, Straus. Pôr todos os médicos a recebersalário teria outros efeitos mais subtis. Quanto se recebe um salário

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independentemente do que se faça, isso tem um efeito sobre anossa motivação, em situaçÕes marginais. Quando nos arrastamospara fora da cama às 4 horas da madrugada, queremos receberqualquer coisa por isso, algo mais que a satisfação que sentimos.Na maior parte dos casos, não nos dá satisfação nenhuna. Pelocontrário."Afinal, o homem do lixo, o piloto, toda a gente recebe horasextraordinárias. Pois bem, o médico também as vai querer, se não,não se arrasta para fora da cama. Deixe-me que ponha as coisas deoutra forma. Quando se trabalha por um salário, tem-se um horárioespecífico. Chegam as cinco horas e o médico assalariado lava as

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mãos e vai para casa. Por acaso até sei que, despido de toda amitologia, um médico é um ser humano bastante vulgar.- Posso falar agora? - perguntou Straus.- Faça o favor.- Várias coisas. Número um: um serviço nacional de saúde não éa única resposta. Está a tirar conclusÕes precipitadas. Os planos de255saúde pré-pagos, por exemplo, funcionam bem, aumentando ainda aprodutividade dos médicos individuais por diversas razÕes. o papeldo governo poderia ser simplesmente garantir que toda a genteestá coberta, de uma maneira ou de outra, com, pelo menos, umpacote de cuidados de saúde básicos de boa qualidade. E número

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dois: não concordo com as suas opiniÕes acerca do médico que estáa dormir. Ao mesmo tempo, acredito que o médico terá de ser pagoem relação a uma escala racional que o compare favoravelmentecom os pilotos das linhas aéreas, ou com os canalizadores, ou sejacom quem for, tendo em atenção a duração e investimento do seutreino, bem como as longas horas do seu trabalho. Mas, acima detudo, acredito que o prazer profissional de praticar medicina faráque o médico ultrapasse os incómodos do seu dia - especialmentese for aliviado do fardo da papelada e de outras tarefas fúteis que

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ocupam vinte e cinco por cento do tempo do médico que trabalha asolo. Além disso...- Dr. Peters, Dr. Peters. - o meu nome soou subitamente nosaltifalantes perto do tecto e ecoou por toda a sala. Straus continuoua falar enquanto eu me dirigia ao telefone a um canto.- Além disso, na clínica de grupo - prosseguiu Straus - há maispossibilidades de revisão. Os médicos podem vigiar-se entre si eprestar conselhos e críticas quando for necessário. E fichas. As fichasdos pacientes seriam muito melhores, porque seriam organizadas ecompletas, quer o doente fosse visto por um médico de clínica geralou por um especialista. - Straus estava praticamente a gritar quando

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cheguei junto do telefone e liguei para a telefonista. Depois, graçasa Deus, calou-se.A telefonista pôs-me em comunicação com o andar da cirurgiaparticular e depois tive de esperar enquanto procuravam umaenfermeira.- Dr. Peters.- Diga.- Temos uma doente do Dr. Moda que está com dificuldadesrespiratórias. Ele quer que o interno a veja. Além disso, preciso deuma receita para um laxante para uma das doentes do Dr. Henry.256- Qual é a situação do problema respiratório?- Não muito má. Ela sente-se bem e está sentada.- o Dr. Straus vai já para lá.- Obrigada.

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Voltando para trás, reparei que toda a cafetaria estava vazia,só restando nós três. o sol tinha desaparecido e a iluminação dasala passara de uma luz viva que contrastava fortemente com asombra para um brilho suave e difuso. Era um cenário pacífico, quese tornava ainda mais calmo graças à alegria que eu sentia depoder mandar Straus ver a senhora com o problema respiratório eocupar-me eu do caso de obstipação.- Peters.- Diga. - A voz do outro lado do fio parecia-me conhecida. - FalaStraus. Era de calcular. Parece estar muito ocupado. Não consigoevitar. Toda a gente está a ficar irritada - disse ele. - Olhei para orelógio. Dez e meia.

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- Bom, qual é a última crise? - perguntei.- Morreu uma velhota. Com uns 85 anos. Uma doente particularda Enfermaria F, no segundo andar.Houve uma pausa. Eu não falei, aguardando que ele me dessemais pormenores do problema. Ouvia-se a respiração de Straus dooutro lado da linha, mas, aparentemente, ele nada mais tinha aacrescentar. Acabei por falar eu.- OK, portanto morreu uma velhota. E qual é o problema?- Não há propriamente um problema. Mas importa-se de vir cáver?- Oiça lá, Straus, ela está morta, certo?- Certo.- Bom, e que é que espera que eu faça? Um milagre? Houveoutro silêncio breve.- Pensei que quisesse vê-la.

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- Muitíssimo obrigado, meu amigo. Mas acho que não.- Peters.- Ainda cá estou.257- Que é que se faz com a família e a papelada?- Pergunte às enfermeiras. Elas já estão batidas nisso. Só teráque assinar uns papéis, avisar a família e tratar da autópsia.- Uma autópsia? - Mostrou-se genuinamente surpreendido.- Claro, uma autópsia.- Pensa que o médico particular quer uma autópsia?- Bom, tem de querer, de certeza. Se não quiser, terá que odizer. Mas devem fazer-se autópsias de todas as pessoas quemorrem aqui. Talvez não seja fácil, mas veja se convence a família.- Está bem, vou tentar, mas não garanto nada. Não sei se serei

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capaz de transmitir grande entusiasmo por uma autópsia.- Tenho a certeza de que consegue resolver isso. Ciao.- Ciao.Ele desligou e eu também, pensando uma vez mais na mulheramarela na sala das autópsias da escola médica. Jan interrompeume.- Alguma coisa errada? - perguntou.- Não. Morreu uma pessoa e o Straus quer saber o que há-defazer.- Vais até ao hospital?- Estás a gozar comigo? Jan estava a ajudar-me a fazer as malas.Na verdade, estava apenas a fazer-me companhia. Nãoprecisávamos de uma desculpa para estar juntos; tínhamos passadobastante tempo juntos, ultimamente. Tanto, na verdade, que a

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minha partida iminente lançava uma sombra sobre a noite, emborativéssemos deixado de falar desse assunto.O ponto em questão era saber se eu a amava suficientemente -palavras dela - para lhe pedir que me seguisse para o hospital ondeseria residente. Eu tinha-o implicado diversas vezes, mas algo meimpedia de lho pedir directamente. o que eu tentara dizer-lhe eraque queria que fosse ela a tomar a decisão, sem a minhainterferência directa. Não queria ter a responsabilidade de a forçara vir comigo. Era assim que eu via a situação. E se não nosentendêssemos depois de eu terminar o período como residente? Eu258

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forçara-a a deixar o Havai, e sentir-me-ia indubitavelmente presopela responsabilidade, e não queria que isso sucedesse. Queriaque ela fosse, isso sim, mas por vontade própria.Jan e eu dávamo-nos bem. Fora um alívio construir umrelacionamento importante com ela, após a desgraça de KarenChristie e o seu noivo chanfrado. Embora eu ainda tivesse ido acasa de Karen algumas vezes depois da minha confrontação com onamorado dela, acabei por me aperceber de que não podiacontinuar a andar com ela. Por isso parei.O telefone tocou de novo.- Fala da Morgue - respondi, numa voz alta e animada.- Peters, é você?- Ao seu "cervix", meu amigo.

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- Por momentos assustou-me. Não me faça isso - disse Straus.- Está bem, vou tentar ser mais educado. Que se passa?- Recebi uma chamada da U. C. I. e há lá um doente comdificuldades respiratórias. A enfermeira disse que provavelmente eraum edema pulmonar. Parece que o médico particular está com receiode uma falha cardíaca.- Há lá umas enfermeiras bestiais, hein, Straus? Até fazemdiagnósticos. Isso é que é serviço de primeira. Concorda com elas?- Ainda não vi o doente. Vou agora para lá. Resolvi telefonar-lhepara o caso de querer seguir a acção desde o princípio.- Straus, a sua amabilidade aquece-me o coração. Mas por que

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não vai até lá, vê o que se passa, e me telefona depois? OK?- OK. Telefono-lhe logo.- óptimo. - Jan estava absorvida a tentar meter os meus livros deMedicina em diversas malas. Era obviamente um problema decomplexidade, que exigia uma solução igualmente drástica. Tinhaque decidir quais os livros que ia deixar - uma tragédia terrível paraum médico. Há muito quem aprecie os livros, mas os médicosadoram-nos e comunicam com eles de uma maneira quase sensual.Se um médico for realista, apercebe-se rapidamente do facto de quenunca estará à altura da sua biblioteca. Consequentemente, rodeiase

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de livros, procurando avidamente motivos para comprar um novo259compêndio, quer venha a lê-lo ou não. Os livros são o colchão desegurança de um médico, e era o que sucedia comigo.A simples ideia de me separar de alguns dos meus livrosparecia-me sacrílega - até mesmo aquele compêndio de psiquiatria,ou aquele outro de urologia. A urologia não era, de modo algum, aminha especialidade preferida. Perguntava a mim mesmo, muitasvezes, como poderia alguém passar o resto da sua vida a tratar dosistema hidráulico- embora a especialidade não parecesse ser assim

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tão má, visto os urologistas parecerem pessoas felizes, em geral.Tinham, indiscutivelmente, o melhor repertório de piadas obscenas.- Não vais conseguir meter aí todos esses livros - disse Jan. -Vamos tirá-los todos para fora e recomeçar. Vamos tentar pô-los unsem cima dos outros, em vez de os deitarmos sobre a roupa. -Mostrei-lhe o que pretendia, equilibrando aproximadamente vintequilos do Manual Completo de Psiquiatria a um canto da mala.Nessa altura, o telefone tocou outra vez. Era Straus; a sua voztransmitia uma sensação de urgência.- Peters?- Que foi agora, Straus?- Lembra-se do doente de que lhe falei há pouco, o que asenfermeiras diziam que tinha um edema pulmonar?

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- O que sucedeu ?- Bom, acho que tem mesmo um edema pulmonar. Estou a ouvirralos borbulhantes com o estetoscópio em ambos os pulmÕes,quase até aos vértices.- OK, Straus. Acalme-se. Já telefonou ao residente de serviço?- Já.- Que é que ele disse?- Disse que lhe telefonasse a si.- Oh, bestial. - Hesitei, coligindo os pensamentos. - É um doenteparticular?É. Do Dr. Narru, ou qualquer coisa parecida. É um caso deaprendizagem? Não sei. Então informe-se, Straus. - Brinquei com acampânula do estetoscópio enquanto Straus desapareceu da linha.260Jan estava a fazer progressos com os livros; começava a parecer que

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iria conseguir guardá-los todos.- Sim, é um caso de aprendizagem, Peters - disse Straus.- Telefonou ao Dr. Narru?- Claro. Foi a primeira coisa que fiz.- Que é que ele disse?- Disse que fosse fazendo o necessário, que ele vinha cá depoispara ver o que se passava, quando acabasse as visitas da noite.Com o indicador, puxei o relógio de forma a poder ver omostrador. Onze e cinco. Ou Narru estava a gozar com Straus, oufazia rondas muito tardias - mesmo muito tardias. De certo modo,achava isso impossível.- Jan, por que não metes o manual cirúrgico do Christopher antes

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desses livros pequenos? Só um minuto, Straus. O Christopher é esseencarnado grande. Esse mesmo. - Ia dar mesmo à justa. - Muito bem,Straus, que tipo de cirurgia sofreu o tipo?- Não tenho acerteza. Uma cirurgia abdominal qualquer. Tem umpenso no abdómen.- Ele tem febre?- Febre? Não sei.- Está a tomar digitalina?- Não sei. Escute, eu só o auscultei.- Escutou o coração?- Mais ou menos.-Tem um ritmo tipo galope?- Não tenho a certeza - respondeu ele, evasivamente. SantoDeus, aquele tipo interessava-se mesmo, pensei eusarcasticamente.

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- Straus - disse. - Quero que examine o paciente, tendo em vistatrês diagnósticos possíveis: edema pulmonar, que eleprovavelmente tem, embolia pulmonar e pneumonia. Leia a ficha edescubra a história cardíaca dele. Entretanto, faça uma radiografiaao tórax, uma contagem de sangue completa, uma análise à urina,um ECG e tudo o mais que lhe apetecer. Ele está prostrado?- Não, está muito alerta.261- OK, então dê-lhe 10 mg de morfina e ponha-o a oxigénio comuma máscara. Vigie-o cuidadosamente quando lhe der o oxigénio.Depois de ter tudo organizado, telefone-me outra vez.Ia desligar, quando me lembrei de outra coisa.

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- Só outra coisa. Se ele nunca tomou digitalina... pelo menosdurante as duas últimas semanas... dê-lhe 1 mg de digitoxina IV.Mas lentamente. Ainda aí está, Straus?- Estou - disse ele.- Provavelmente devíamos dar-lhe também um diurético, para olivrar desse excesso de fluido. Experimente cerca de 25 mg de ácidoetacrínico. - Sabia que aquilo era suficientemente poderoso parafazer urinar uma pedra. Poderoso - o meu medo interior dosdiuréticos fez-me pensar duas vezes e mudei de ideias.- Pensando melhor, aguente o diurético até termos a certeza doedema pulmonar. Se ele tiver pneumonia, não vai adiantar muito. - A

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senhora idosa com o cancro, que eu tinha morto com o diurético,perseguiu-me por um momento; ela tinha morrido de pneumonia.Finalmente, desliguei.- Hei. Jan, formidável. - Ela conseguira introduzir todos os livrosexcepto um pequeno. O volume que restava era um daqueles quecostumamos deitar fora, um daqueles livros oferecidos por umacompanhia de produtos farmacêuticos, na esperança de convenceralguém de que um dos seus medicamentos é a resposta para todosos males patológicos. Nunca o tinha lido, nem tencionava fazê-lo. Noentanto, enfiei-o numa das minhas malas já cheias.Com excepção dos utensílios para a barba e outros artigos de

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toillete, as roupas que iria usar no dia seguinte e a bata e as calçasbrancas sujas que usava naquele momento, todas as minhas tralhasestavam emaladas. Os transportadores viriam buscar as malasgrandes na manhã seguinte; as malas de nião iriam comigo,juntamente com alguma bagagem de mão que incluía um grandepedaço de coral. Finalmente, estava pronto. Podia descontrair-me egozar o que restava do meu ano no Havai.Jan escolheu esse momento para largar a sua bomba e informar-262me abruptamente que ia para casa. Precisamente quandopoderíamos esquecer tudo e ficar juntos, ela decidiu que tinha de irse

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embora. Foi, obviamente, uma grande surpresa, visto que eutinha partido do princípio de que dormiríamos juntos, comohabitualmente.- Jan, pelo amor de Deus, por que tens de ir-te embora? Fica, porfavor. É a minha última noite.- Precisas de uma boa noite de sono antes da viagem - disseela, de modo evasivo.- Essa agora! - Olhei para o seu rosto bronzeado. Ela fitou-me,com a cabeça levemente inclinada para a frente e para um lado, numjeito coquete e sabido, sugerindo que a sua súbita reserva sebaseava em complicadas razÕes femininas. Mas eu não estavamuito certo disso. Podia compreender o seu desejo de se ir embora,se ele derivasse de um certo desdém pela rotina artificial da última

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noite, de não querer reduzir o acto de fazermos amor a uma espéciede ritual para celebrar uma era passada. A proximidade de quenormalmente gozávamos não teria provavelmente existido, dequalquer forma, visto que estávamos ambos preocupados com outrospensamentos.Deu-me um beijo leve, disse que nos veríamos na manhãseguinte e flutuou sem ruído para a porta. Aconteceu tudo comexcessiva rapidez para me permitir uma digestão mental.Pensei fugazmente em ir até à U. C. I, embora não o quisesseverdadeiramente fazer, mas acabei por encolher os ombros perantea ideia, pensando na racionalização que Straus teria de fazersozinho.

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Por isso, decidi tomar um duche - e mal tinha começado a tomáloquando a campainha do telefone soou. A única maneira que eutinha de afogar o som era colocando a cabeça mesmo por baixo dochuveiro. Não devia ter deixado a porta da casa de banho aberta.Mas o hábito ganhou. Ao quarto toque, corri para o meu quarto epeguei no auscultador, enquanto um charco aos meus pés começavarapidamente a aumentar em periferia.263- Peters, é o Straus.- Que surpresa!- Sabe uma coisa? Boas notícias!- Não me importava nada de receber algumas.- O paciente do edema pulmonar de que lhe falei pertence aoserviço médico, não ao cirúrgico, e o interno do serviço médico

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assumiu o controlo.- Então e a operação dele? - perguntei, muito surpreendido.- Não tinha sido operado. Pelo menos recentemente. O pensoestava a cobrir uma colostomia que ele tinha feito há uns anos.- Parabéns, Straus. O seu primeiro êxito clínico como interno.Mas por que não fica por lá na mesma? A menos que, naturalmente,tenha qualquer outra coisa.- Sinto muito, não posso ficar. Fui chamado para uma cirurgia. Éa extracção de uma rótula. Um acidente de automóvel, julgo eu. Amenos que queira ir você. Nesse caso, fico por aqui.Uma patelectomia, um caso ortopédico! Estava a tornar-se bemclaro para mim quanto iria apreciar ser um residente em vez de um

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interno. Imagine-se, poder mandar alguém fazer uma patelectomia àmeia-noite! Era a felicidade pura.- Não o privo desse prazer, Straus. Vá lá esterilizar-se. - Acirurgia ortopédica apavorava-me. Antes da escola médica, eu tinhaa ilusão de que a cirurgia era uma ciência exacta e delicada. Depoistinha vindo o holocausto da minha primeira operação ortopédica,onde assisti aos mais crus processos de pregar pregos, brocar epartir ossos que eu poderia imaginar. Não só isso - a violência tinhasido acompanhada de comentários no género de "Faça aqui umaradiografia para eu ver para onde foi o raio do prego"; e, depois de

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observar a radiografia "Diabo, falhei por completo o fragmento daanca. Vamos meter outro, mas desta vez vou apontar ao umbigo".Tais experiências tinham rapidamente eliminado a cirurgiaortopédica como especialidade para mim. A neurocirurgia tinha sidoposta de parte pouco depois, quando vi o melhor neurocirurgião deNova Iorque parar durante um caso e espreitar para o buraco quetinha feito no cérebro do paciente, perguntando "Que será aquela264coisa cinzenta-clara?". Ninguém respondeu - afinal ele estava a falarconsigo mesmo - mas foi o fim da neurocirurgia para mim. Se ele não

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sabia onde estava ao fim de vinte anos, não havia esperanças deeu chegar alguma vez a saber.Com todos os livros médicos emalados, não tinha que ler antesde adormecer. Depois lembrei-me dovolume dafirma de produtosfarmacêuticos que tinha metido na mala de mão. Fui buscá-lo erecostei-me na fresca almofada branca. Muito apropriadamente,tratava-se de A Anatomia do Sono. Voltando-o, fiquei a saber quepretendia vender um comprimido para dormir. Abri o volume aoacaso e comecei a ler. Com tanta coisa na cabeça, consegui acabaruma página inteira antes que os meus olhos começassem a fecharse.O toque agudo do telefone soou antes mesmo que eu tivesse

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tempo de iniciar um sonho decente. Com o pânico habitual, agarreino auscultador como se a minha vida dependesse disso. Quando atelefonista me pôs em contacto com a enfermeira que me tinhachamado, já estava bem orientado quanto à hora, local e pessoa.- Dr. Peters, fala a Enfermeira Cranston da F-2. Desculpe acordálo,mas Mrs. Kimble caiu da cama. Importa-se de vir cá vê-la, se fazfavor?O mostrador luminoso do meu despertador revelou-me que tinhadormido cerca de uma hora.- Mrs. Cranston, esta noite temos um novo interno. Chama-seStraus. Que tal telefonar-lhe para ele resolver esse problema?

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- A telefonista já tentou - disse ela. - Mas o Dr. Straus está numacirurgia.- Merda.- Como disse, Doutor?- A paciente está bem? - eu estava a demorar a situação.- Está, parece estar bem. Vem, Doutor? - Resmunguei qualquercoisa que implicava a afirmativa e desliguei. Era nítido que aindanão tinha deixado o internato. Até conseguir tirar o meu corpo doalcance deles, haveria sempre mais pacientes a cair da cama. Ficar265ali a pensar no assunto foi um erro. Voltei a adormecer.Quando o telefone tocou de novo, reagi com o pânico habitual,perguntando a mim mesmo quanto tempo tinha estado a dormir. A

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telefonista esclareceu-me - vinte minutos, disse ela - e, experientecomo era, poupou-me o esforço de me desculpar, sugerindo que eutivesse adormecido. Afinal, acontecia a muita gente, mesmo emcasos de emergência. Se eu não pusesse imediatamente os pés nochão frio, as possibilidades de me levantar decaíam rapidamente.Durante algum tempo, o meu truque tinha consistido em colocar otelefone a alguns metros da cama, fora do alcance da mão, para terque sair do ninho quente antes de o atender. Todavia, com tantospedidos de laxantes que eu podia resolver na horizontal, acabei por

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abolir esse recurso e voltei a colocar o telefone perto da cama.Depois da segunda chamada, levantei-me logo e vesti-merapidamente. Com um pouco de sorte, poderia regressar à camadentro de vinte minutos. O meu record estava ainda em dezasseteminutos.As luzes fluorescentes do corredor, as portas do elevador, asestrelas no céu - na realidade, toda a viagem até à Enfermaria Fescapou ao registo no meu cérebro. Só comecei a funcionar comouma pessoa consciente quando me vi frente a frente com Mrs.Kimble.- Como está, Mrs. Kimble? - perguntei, tentando avaliar a sua

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idade à fraca luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira. Calculei quetivesse 55 anos aproximadamente. Estava bem arranjada epenteada e deu-me a impressão de ser uma pessoa especialmentemeticulosa. O seu cabelo estava puxado para trás num roloapertado, com fios grisalhos.- Sinto-me muito mal, Doutor, muito mal mesmo - disse ela.- Onde é que se magoou? Bateu com a cabeça quando caiu?- Santo Deus, não. Nem sequer me magoei. Nem cheguei a cair,a falar verdade. Sentei-me.- Não caiu da cama?- Não, de maneira nenhuma. Tinha voltado da casa de banho e266estava acocorada ali. - Apontou para o chão, aos meus pés. - Estava

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a tentar tirar a minha agenda da mesa-de-cabeceira quando perdi oequilíbrio.- Bom, então agora tente dormir, Mrs. Kimble.- Sr. Doutor.- Diga. - Olhei por cima do ombro, pois já me tinha voltado emdirecção à porta.- Importa-se de me dar qualquer coisa para os meus intestinos?Há cinco dias que não faço nada decente. Olhe, veja.Com grande esforço, estendeu a mão e abriu a gaveta da mesade-cabeceira, retirando um livro de notas preto de dez centímetros.Teve de se estender tanto para retirar o livro, que receei queacabasse por cair, afinal. Aproximei-me da cama e estendi os braçospor debaixo do corpo dela.- Veja aqui, Sr. Doutor. - Abriu o livrinho e percorreu com o dedo

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uma lista de dias cuidadosamente anotada. A cada dia seguia-seum gráfico e a descrição completa da sua actividade intestinal:forma, cor e esforço despendido. Abruptamente, o seu dedo detevesenum dos dias.- Veja, há cinco dias foi a última evacuação normal que tive. Emesmo essa não foi completamente normal, porque não eracastanha. Era verde-azeitona e deste tamanho. - Ergueu a mãoesquerda, definindo com o polegar e o indicador um círculo de umcentímetro de diâmetro.Que poderia eu dizer-lhe que revelasse competência einteresse, e, o que era mais importante, me libertasseimediatamente? Olhei da agenda para a cara dela, procurando uma

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resposta sem a encontrar. Passei a bola.- Tenho a certeza de que o seu médico particular saberá muitomelhor que eu o que lhe convém, Mrs. Kimble. E agora, tente dormirum pouco.De regresso ao posto das enfermeiras, escrevi qualquer coisa nasua ficha sobre a alegada queda; era preciso escrever semprequalquer coisa depois de tais "quedas". Depois iniciei a viagem deregresso para o leito que me aguardava.267- Bom, Straus - ruminei. - Que valeria este pequeno episódiosegundo o teu novo sistema? Prazer profissional, uma treta!A minha fé nos aviÕes não é ilimitada. Na verdade, não acredito

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verdadeiramente no princípio da aeronáutica. Mas tenho deconfessar que os motores Pratt and Whitney pareciam robustos edignos de confiança. Ouvia-os ronronar suavemente enquanto faziamo seu trabalho, e o enorme bojo do 747 elevou-se do solo, deixandopara trás o Havai e o meu internato. Estava sentado junto da janela,do lado esquerdo do aparelho, junto de um casal de meia-idade quevestia camisas havaianas floridas iguais. A minha bagagem de mãotinha constituído um problema - onde metê-la toda - e eu levava nocolo o meu pedaço de coral, que não tinha um feitio natural que lhepermitisse caber facilmente num moderno transporte público.

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As despedidas finais tinham sido bastante moderadas, afinal.No aeroporto, Jan tinha-me "leiado" quatro vezes, como se diz emterminologia havaiana. Dois dos leis (Colar de flores havaiano) eramfeitos de pekaki e o seu aroma delicado flutuava no ar à minhavolta. Não se falara mais de Jan nem eu do futuro. Escrever-nosíamos.Sentia emoçÕes mistas em relação à minha partida do Havai,mas nenhuma ambivalência quanto ao facto de o meu internato terterminado. Mas já estava a notar em mim uma curiosa tendênciapara recordar e realçar os bons momentos, o que tinha havido dedivertido, e para me esquecer do sofrimento e do esforço que me

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dominara durante esse tempo. O corpo tem uma memória curta.Quando o avião se inclinou para a esquerda, olhei pela janelapara a ilha de Oahu pela última vez. A sua beleza era inegável. Asmontanhas escarpadas projectavam-se para o céu, cobertas por umavegetação aveludada e rodeadas por um brilhante mar azul-escuro.Comprimindo o nariz contra o vidro, consegui ver, lá em baixo, o sítioonde as ondas se quebravam contra o recife exterior de Waikiki,formando longas repercussÕes de espuma branca. Iria sentir a suafalta.268Pensei em Straus, que iniciava o internato, com o ano inteiro àsua frente. Naquele momento, estava a passar por uma das

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experiências por que eu passara. A vida repetia-se. Straus eHércules - poderia ser uma grande confrontação. Imagine que asarestas vivas do idealismo de Straus em breve estariam embotadas,depois de quatro ou cinco colecistectomias com Hércules.Como uma grande ave em movimento lento, o avião colocou-senuma posição estável, a caminho da Califórnia. A única prova de quese encontrava em movimento era uma vibração quase imperceptível.A ilha já tinha desaparecido, tendo sido substituída por umhorizonte indistinto, onde a ampla extensão do oceano se misturavacom o céu. Pensei em Mrs. Takura, no bebé nascido dentro do VW,

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em Roso, e de novo em Straus. Não concordava com tudo o queStraus tinha dito, mas ele tinha-me feito aperceber-me do pouco quesabia, do pouco que eu me interessava pelo sistema, excepto,naturalmente, quando me afectava directamente. Imagine-se, a AMAa tentar bloquear o meu empréstimo federal de baixo juro paraentrar na escola médica! Impulsivamente, inclinei-me um pouco paraa direita, agarrado ao coral, e tirei a carteira do bolso. Recostandomede novo, procurei entre os meus cartÕes e licenças até que oencontrei. "O médico cujo nome e assinatura figuram neste cartão émembro efectivo da Associação Médica Americana." As palavras

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eram impressionantes. Sugeriam uma adesão e um compromissopara com uma instituição poderosa. Tinha trabalhado durante cincolongos anos e conseguira lá chegar.Nessa altura senti a primeira sacudidela, e depois outra, maisforte, mais nítida, e o letreiro acendeu-se "Senhores passageiros, éfavor porem os cintos. Esperamos alguma turbulência local", dissetranquilizadoramente a hospedeira.Continuei ali sentado,junto do casal das camisas floridas,agarrado ao meu pedaço de coral e dobrando nervosamente o meucartão da AMA para trás e para diante, para trás e para diante, atéque ele se partiu pela dobra e ficou dividido em dois.

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A ÚLTIMA PALAVRA269O Dr. Peters fez a sua acidentada viagem da escola médica,passando pelo internato, até ao ponto em que a sociedade oreconheceu como um médico completo. Poderá solicitar, e receber,sem dúvida, uma licença para praticar Medicina e Cirurgia emqualquer estado da União. Isso assinalará que se encontra prontopara assumir todas as responsabilidades que uma tal licençaconfere.Graças ao seu treino rigoroso, pode-se partir do princípio deque se encontra academicamente preparado. Mas estará o Dr.Peters psicologicamente equipado para praticar a Medicina que uma

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moderna sociedade humana tem o direito de esperar?Os médicos da "velha guarda" dirão que sim. Para um grandenúmero deles, as aberraçÕes da personalidade são apenas agarantia de que as "partidas" a que foi sujeito durante o internato oiniciaram numa fraternidade. o internato foi duro para eles, e, porisso, deveria ser igualmente duro para a geração seguinte.Endurece-os - aqueles jovens são moles de mais. Esta lógica nãopoderá sugerir que os médicos mais velhos estarão provavelmente asofrer dos mesmos problemas psicológicos que o Dr. Peters, e pelosmesmos motivos? E que sucede ao paciente durante estes exercíciosjuvenis?

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A posição superior tradicional - ou antes, antiquada - do médicona escala mundial de valores sociais e, nos Estados Unidos, orespeito corrente pelas realizaçÕes tecnológicas, levou a umaatitude de crescente veneração pelo médico. Como corolário directodesta adoração por tudo o que diz respeito à Medicina, tornou-seimpensável pôr em questão o controlo da profissão médica sobre aeducação do médico em embrião. As escolas médicas e osprogramas de treino médico têm estado relativamente livres parafazer o que querem. Ninguém pergunta porquê.Todavia, nem sempre foi assim. o treino dos médicos nosEstados Unidos foi, certa vez, seriamente posto em causa, no início

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do século, por um grupo extramédico que foi nomeado para estudara preparação médica americana. Esse grupo, cujo ponto de270referência é o relatório Flexner, expôs impiedosamente asabomináveis condiçÕes em que ela então se verificava. A maiorparte das escolas médicas, dizia, eram simples fábricas dediplomas, a que faltavam por completo os controlos académicos.Indirectamente, o relatório acusava a própria profissão médica defazer mau uso da carta branca que lhe era dada por um público emadoração.Este documento teve grande alcance. Iniciou uma melhoriagradual e implacável dos padrÕes académicos das escolas médicas.

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Mas os seus efeitos não foram totalmente benéficos. Por um lado, orelatório possibilitou que a profissão médica - na pessoa daAssociação Médica Americana - apertasse mais o seu jugo sobre aeducação médica, reduzindo o número de escolas médicas einstalaçÕes de treino - uma medida que se tornava necessária,alegou, para elevar a qualidade da instrução.E a melhoria e padronização do curriculum que o relatórioinstigou fez que o pêndulo recaísse sobre a inclusão de mais cursoscientíficos e laboratoriais no estudo da Medicina. Mas o pêndulonão parou de girar até chegar ao ponto de invadir a medicinaclínica. (Alguém se deteve para pensar no paciente?) Um dos

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resultados é que os actuais licenciados em Medicina estãoamplamente equipados com as mais recentes hipóteses sobre asmais bizarras doenças e raros processos metabólicos, mas, muitasvezes, não conhecem os simples factos clínicos necessários paratratar uma constipação vulgar ou para lidar humanamente com ummoribundo que se encontra para além da simples ajuda médica.Cresce na América a sensação de que poderá ser necessáriooutro "relatório Flexner" para trazer reformas ao treino médico. Nuncahouve um exame objectivo da educação psicológica dos médicos.Qualquer análise madura, honesta e directa teria que a considerar

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com a mesma seriedade que a prestada à excelência académica.O público mal se apercebe de que alguns médicos são dados acertos comportamentos peculiares - as birras infantis dos cirurgiÕes,por exemplo. É mais provável que a maior parte das pessoas se271aperceba de que, quando um estudante de Medicina entra na escolamédica, a sua cabeça está geralmente cheia de visÕes idealistassobre o alívio do sofrimento, a ajuda aos pobres, o fazer bem pelasociedade. Todavia, poucos repararam na discrepância entre onúmero de idealistas que entra e a minúscula percentagem dos que

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saem do outro lado com os seus ideais ainda intactos. E quaseninguém relaciona os ideais perdidos e as extravagâncias absurdasdos cirurgiÕes. Ou os ideais perdidos e a preocupação de muitosmédicos recém-formados, no final do seu longo treino, com "areclamação do seu direito" a ter um grupo financeira e socialmentecompensador de doentes, e de comprar casas e carros luxuosos,para se compensar das privaçÕes dos seus anos de preparação.Obviamente, a possibilidade de os ideais de um médicopoderem mudar entre a escola médica e a prática médica édiametralmente oposta àquilo em que as pessoas querem acreditar -

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e que lhes é apresentado pelos meios de comunicação. Os filmes, atelevisão e os romances de médicos têm tendência para reforçar omito da inerente saúde psicológica e bondade dos médicos -especialmente dos médicos jovens.Voltamos, assim, à credibilidade do Dr. Peters comorepresentante dos internos em geral. Mais uma vez declaro a minhacrença em que ele é representativo. Não é um dos poucos indivíduosaberrantes. É o típico jovem que começou com objectivosrelativamente idealistas. É o típico estudante e interno, cujapersonalidade sofre gradualmente certas modificaçÕes que o

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transformam na pessoa lamurienta, queixosa e egoísta que viemos aconhecer - compreensível, mas não admirável.A noção de que o mundo médico está cheio de Dr. Peters custa aengolir. Se, além disso, se puder aceitar que quase toda a genteque passa pela escola médica sofre semelhantes lesÕes na suapersonalidade, poderá surgir a suspeita de que o defeito é dosistema, não das pessoas que a ele se sujeitam. E isso, por sua vez,não sugerirá que o sistema precisa de ser estudado pelos seusefeitos psicológicos e alterado num sentido capaz de alimentar, emvez de extinguir, o idealismo e a sensibilidade dos estudantes?272A mudança é inevitável, e é uma esperança dos homens e

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mulheres de boa vontade que ela se faça para melhor - melhor paraa sociedade e para cada indivíduo. A reforma voluntária é umaforma mais segura e mais saudável de mudança que as medidasexplosivas tomadas em consequência dos abusos. É tempo deanalisar e reformar as nossas escolas médicas e os centros médicosonde os internos e os residentes são treinados, se a Medicina -como ciência e como arte - quiser ir ao encontro das necessidadesdos nossos tempos. Mesmo a análise mais interessada e profundaserá imperfeita. Mesmo os remédios mais honestamente utilizados

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não serão inteiramente bem sucedidos. Mas, se não conseguirmosatingir a perfeição, podemos, pelo menos, aproximar-nos dela. Nomínimo, teremos tido o bom senso e a coragem de tentar.FIM273