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JURISDIO CONSTITUCIONAL:
A TNUE FRONTEIRA ENTRE O DIREITO E A POLTICA
Lus Roberto Barroso1
Sumrio: I Introduo. II - A Ascenso institucional do Judicirio.
1. A jurisdio constitucional. 2. A judicializao da poltica e das
relaes sociais. 3. O ativismo judicial. 4.
Crticas expanso da interveno judicial na vida brasileira. 4.1.
Crtica poltico-ideolgica.
4.2. Crtica quanto capacidade institucional. 4.3. Crtica quanto
limitao do debate. 5.
Importncia e limites da jurisdio constitucional nas democracias
contemporneas. III -
Direito e poltica: a concepo tradicional. 1. Notas sobre a
distino entre Direito e poltica.
2. Constituio e poderes constitudos. 3. A pretenso de autonomia
do Judicirio e do Direito
em relao poltica. 3.1. Independncia do Judicirio. 3.2. Vinculao
ao Direito posto e
dogmtica jurdica. 3.3. Limites da separao entre Direito e
poltica. IV - Direito e poltica: o
modelo real. 1. Os laos inevitveis: a lei e sua interpretao como
atos de vontade. 2. A
interpretao jurdica e suas complexidades: o encontro no marcado
entre o Direito e a
poltica. 2.1. A linguagem aberta dos textos jurdicos. 2.2. Os
desacordos morais razoveis.
2.3. As colises de normas constitucionais. 2.4. A interpretao
constitucional e seus
mtodos. 3. O juiz e suas circunstncias: influncias polticas em
um julgamento. 3.1. Valores
e ideologia do juiz. 3.2. Interao com outros atores polticos e
institucionais. 3.2.1.
Preservao ou expanso do poder da Corte. 3.2.2. Relaes com outros
Poderes, rgos e
entidades estatais. 3.3. Perspectiva de cumprimento efetivo da
deciso. 3.4. Circunstncias
internas dos rgos colegiados. 3.5. A opinio pblica. 4. A
autonomia relativa do Direito em
relao poltica e a fatores extrajudiciais. V O Supremo Tribunal
Federal: contramajoritrio e representativo. VI - Concluso: entre a
razo e a vontade.
I. INTRODUO
O presente captulo est dividido em trs partes principais. Na
primeira,
narra-se a ascenso institucional do Judicirio nos ltimos anos,
no Brasil e no mundo. So
apresentados, assim, os fenmenos da jurisdio constitucional, da
judicializao e do
ativismo judicial, bem como as crticas expanso do Judicirio na
vida brasileira. O tpico
se encerra com a demonstrao da importncia e dos limites da
jurisdio constitucional nas
democracias contemporneas. A segunda parte dedicada concepo
tradicional das
relaes entre Direito e poltica, fundada na separao plena entre
os dois domnios. A
Constituio faz a interface entre o universo poltico e o jurdico,
instituindo o Estado de
1 Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
Mestre pela Yale Law School. Doutor e Livre-Docente pela UERJ.
Pesquisador Visitante na Harvard Law School. Ministro do Supremo
Tribunal Federal.
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direito, os poderes constitudos e fazendo a distino entre
legislar, administrar e julgar. A
atuao de juzes e tribunais preservada do contgio poltico por
meio da independncia do
Judicirio em relao aos demais Poderes e por sua vinculao ao
Direito, que constitui um
mundo autnomo, tanto do ponto de vista normativo quanto
doutrinrio. Essa viso, inspirada
pelo formalismo jurdico, apresenta inmeras insuficincias tericas
e enfrenta boa quantidade
de objees, em uma era marcada pela complexidade da interpretao
jurdica e por forte
interao do Judicirio com outros atores polticos relevantes.
A terceira parte introduz uma questo relativamente nova no
debate
jurdico brasileiro: o modelo real das relaes entre Direito e
poltica. Uma anlise sobre o
que de fato ocorre no exerccio da prestao jurisdicional e na
interpretao das normas
jurdicas, e no um discurso convencional sobre como elas deveriam
ser. Trata-se de uma
especulao acerca dos elementos e circunstncias que motivam e
influenciam um juiz, para
alm da boa aplicao do Direito. Com isso, procura-se superar a
persistente negao com que
os juristas tradicionalmente lidam com o tema, proclamando uma
independncia que no
desse mundo. Na construo do argumento, examinam-se algumas
hipteses que produzem os
chamados casos difceis, que exigem a atuao criativa de juzes e
tribunais; e faz-se,
igualmente, uma reflexo acerca dos diferentes mtodos de
interpretao e sua utilizao em
funo do resultado a que se quer chegar. Por fim, so
identificados diversos fatores
extrajurdicos relevantes, capazes de repercutir em maior ou
menor medida sobre um
julgamento, como os valores pessoais do juiz, as relaes do
Judicirio com outros atores
polticos e a opinio pblica, dentre outros.
Entre o ceticismo do realismo jurdico e da teoria crtica, que
equiparam
o Direito ao voluntarismo e poltica, e a viso idealizada do
formalismo jurdico, com sua
crena na existncia de um muro divisrio entre ambos, o presente
estudo ir demonstrar o
que j se afigurava intuitivo: no mundo real, no vigora nem a
equiparao nem a separao
plena. Na concretizao das normas jurdicas, sobretudo as normas
constitucionais, Direito e
poltica convivem e se influenciam reciprocamente, numa interao
que tem complexidades,
sutilezas e variaes2. Em mltiplas hipteses, no poder o intrprete
fundar-se em
elementos de pura razo e objetividade, como a ambio do Direito.
Nem por isso, recair
2 O termo poltica utilizado nesse trabalho em uma acepo ampla,
que transcende uma
conotao partidria ou de luta pelo poder. Na acepo aqui
empregada, poltica" abrange qualquer influncia extrajurdica capaz
de afetar o resultado de um julgamento.
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na discricionariedade e na subjetividade, presentes nas decises
polticas. Entre os dois
extremos, existe um espao em que a vontade exercida dentro de
parmetros de
razoabilidade e de legitimidade, que podem ser controlados pela
comunidade jurdica e pela
sociedade. Vale dizer: o que se quer balizado pelo que se pode e
pelo que se deve fazer.
II. A ASCENSO INSTITUCIONAL DO JUDICIRIO3
1. A jurisdio constitucional
O Estado constitucional de direito se consolida, na Europa
continental,
a partir do final da II Guerra Mundial. At ento, vigorava um
modelo identificado, por vezes,
como Estado legislativo de direito4. Nele, a Constituio era
compreendida, essencialmente,
como um documento poltico, cujas normas no eram aplicveis
diretamente, ficando na
dependncia de desenvolvimento pelo legislador ou pelo
administrador. Tampouco existia o
controle de constitucionalidade das leis pelo Judicirio ou, onde
existia, era tmido e pouco
relevante. Nesse ambiente, vigorava a centralidade da lei e a
supremacia do parlamento. No
Estado constitucional de direito, a Constituio passa a valer
como norma jurdica. A partir
da, ela no apenas disciplina o modo de produo das leis e atos
normativos, como estabelece
determinados limites para o seu contedo, alm de impor deveres de
atuao ao Estado. Nesse
novo modelo, vigora a centralidade da Constituio e a supremacia
judicial, como tal
entendida a primazia de um tribunal constitucional ou suprema
corte na interpretao final e
vinculante das normas constitucionais.
A expresso jurisdio constitucional designa a interpretao e
aplicao da Constituio por rgos judiciais. No caso brasileiro,
essa competncia
exercida por todos os juzes e tribunais, situando-se o Supremo
Tribunal Federal no topo do
sistema. A jurisdio constitucional compreende duas atuaes
particulares. A primeira, de
aplicao direta da Constituio s situaes nela contempladas. Por
exemplo, o
3 A Parte I deste trabalho, especialmente os captulos II e III,
beneficia-se da pesquisa e de algumas
passagens de texto anterior de minha autoria, Judicializao,
ativismo judicial e legitimidade democrtica, publicado na Revista
de direito do Estado 13:71, 2009.
4 V. Luigi Ferrajoli, Pasado y futuro Del Estado de derecho. In:
Miguel Carbonell (org.),
Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 14-17; e Gustavo Zagrebelsky,
El derecho dctil: ley, derechos, justicia, 2005, p. 21-41.
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reconhecimento de que determinada competncia do Estado, no da
Unio; ou do direito do
contribuinte a uma imunidade tributria; ou do direito liberdade
de expresso, sem censura
ou licena prvia. A segunda atuao envolve a aplicao indireta da
Constituio, que se d
quando o intrprete a utiliza como parmetro para aferir a
validade de uma norma
infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para
atribuir a ela o melhor sentido,
em meio a diferentes possibilidades (interpretao conforme a
Constituio). Em suma: a
jurisdio constitucional compreende o poder exercido por juzes e
tribunais na aplicao
direta da Constituio, no desempenho do controle de
constitucionalidade das leis e dos atos
do Poder Pblico em geral e na interpretao do ordenamento
infraconstitucional conforme a
Constituio.
2. A judicializao da poltica e das relaes sociais 5
Judicializao significa que questes relevantes do ponto de
vista
poltico, social ou moral esto sendo decididas, em carter final,
pelo Poder Judicirio. Trata-
se, como intuitivo, de uma transferncia de poder para as
instituies judiciais, em detrimento
das instncias polticas tradicionais, que so o Legislativo e o
Executivo. Essa expanso da
jurisdio e do discurso jurdico constitui uma mudana drstica no
modo de se pensar e de se
praticar o Direito no mundo romano-germnico6. Fruto da conjugao
de circunstncias
5 Sobre o tema, v. o trabalho pioneiro de Luiz Werneck Vianna,
Maria Alice Resende de Carvalho,
Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, A
judicializao da poltica e das relaes sociais no Brasil, 1999. V.
tb., Giselle Cittadino, Judicializao da poltica, constitucionalismo
democrtico e separao de Poderes. In: Luiz Werneck Vianna (org.), A
democracia e os trs Poderes no Brasil, 2002. Vejam-se, ainda: Luiz
Werneck Vianna, Marcelo Baumann Burgos e Paula Martins Salles,
Dezessete anos de judicializao da poltica, Tempo Social 19:39,
2007; Ernani Carvalho, Judicializao da poltica no Brasil: controlo
de constitucionalidade e racionalidade poltica, Anlise Social
44:315, 2009, e Em busca da judicializao da poltica no Brasil:
apontamentos para uma nova abordagem, Revista de Sociologia Poltica
23:115, 2004; Rogrio Bastos Arantes, Judicirio: entre a justia e a
poltica, In:
http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/images/9/9d/Arantes.pdf, e
Constitutionalism, the expansion of justice and the judicialization
of politics in Brazil. In: Rachel Sieder, Line Schjolden e Alan
Angell, The judicialization of politics in Latin America, 2005, p.
231-62; Martonio MontAlverne Barreto Lima, Judicializao da poltica
e comisses parlamentares de inqurito um problema da teoria
constitucional da democracia, Revista Jurdica da FIC 7:9, 2006;
Luciano da Ros, Tribunais como rbitros ou como instrumentos de
oposio: uma tipologia a partir dos estudos recentes sobre
judicializao da poltica com aplicao ao caso brasileiro
contemporneo, Direito, Estado e Sociedade 31:86, 2007; e Thais
Florencio de Aguiar, A judicializao da poltica ou o rearranjo da
democracia liberal, Ponto e Vrgula 2:142, 2007.
6 V. Alec Stone Sweet, Governing with judges: constitutional
poltics in Europe, 2000, p. 35-36 e 130.
A viso prevalecente nas democracias parlamentares tradicionais
de ser necessrio evitar um governo de juzes, reservando ao
Judicirio apenas uma atuao como legislador negativo, j no
corresponde prtica poltica atual. Tal compreenso da separao de
Poderes encontra-se em crise profunda na Europa continental.
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diversas7, o fenmeno mundial, alcanando at mesmo pases que
tradicionalmente
seguiram o modelo ingls a chamada democracia ao estilo de
Westminster , com soberania
parlamentar e ausncia de controle de constitucionalidade8.
Exemplos numerosos e
inequvocos de judicializao ilustram a fluidez da fronteira entre
poltica e justia no mundo
contemporneo, documentando que nem sempre ntida a linha que
divide a criao e a
interpretao do Direito. Os precedentes podem ser encontrados em
pases diversos e distantes
entre si, como Canad9, Estados Unidos
10, Israel
11, Turquia
12, Hungria
13 e Coreia
14, dentre
muitos outros. No incio de 2010, uma deciso do Conselho
Constitucional francs e outra da
Suprema Corte americana produziram controvrsia e a reao poltica
dos dois presidentes15
.
Na Amrica Latina16
, o caso da Colmbia um dos mais significativos17
.
7 Para uma anlise das condies para o surgimento e consolidao da
judicializao, v. C. Neal Tate
e Torbjrn Vallinder (eds.), The global expansion of judicial
power, 1995, p. 117.
8 V. Ran Hirschl, The new constitutionalism and the
judicialization of pure politics worldwide, Fordham
Law Review 75:721, 2006-2007, p. 721. A referncia envolve pases
como Canad, Israel, Nova Zelndia e o prprio Reino Unido.
9 Deciso da Suprema Corte sobre a constitucionalidade de os
Estados Unidos fazerem testes com
msseis em solo canadense. Este exemplo e os seguintes vm
descritos em maior detalhe em Ran Hirschl, The judicialization of
poltics. In: Whittington, Kelemen e Caldeira (eds.), The Oxford
handbook of law and politics, 2008, p. 124-5.
10 Deciso da Suprema Corte que definiu a eleio de 2000, em Bush
v. Gore.
11 Deciso da Suprema Corte sobre a compatibilidade, com a
Constituio e com os atos
internacionais, da construo de um muro na fronteira com o
territrio palestino.
12 Decises da Suprema Corte destinadas a preserver o Estado
laico contra o avano do
fundamentalismo islmico.
13 Deciso da Corte Constitucional sobre a validade de plano
econmico de grande repercusso
sobre a sociedade.
14 Deciso da Corte Constitucional restituindo o mandato de
presidente destitudo por impeachment.
15 Na Frana, foi anulado o imposto do carbono, que incidiria
sobre o consumo e a emisso de gases
poluentes, com forte reao do governo. V. Le Monde, 12 jan. 2010,
http://www.lemonde.fr/politique/article/2010/01/12/m-devedjian-je-souhaite-que-le-conseil-constitutionnel-soit-a-l-abri-des-soupcons_1290457_823448.html.
Nos Estados Unidos, a deciso em Citizens United v. Federal Election
Commission, invalidando os limites participao financeira das
empresas em campanhas eleitorais, foi duramente criticada pelo
Presidente Barak Obama. V. New York Times, 24 jan. 2010, p.
A-20.
16 Sobre o fenmeno na Amrica Latina, v. Rachel Sieder, Line
Schjolden e Alan Angell, The
judicialization of politics in Latin America, 2005.
17 De acordo com Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of
politics in Colombia, International Journal
on Human Rights 6:49, 2007, p. 50, algumas das mais importantes
hipteses de judicializao da poltica na Colmbia envolveram: a) luta
contra a corrupo e para mudana das prticas polticas; b) conteno do
abuso das autoridades governamentais, especialmente em relao
declarao do estado de emergncia ou estado de exceo; c) proteo das
minoriais, assim como a autonomia individual; d) proteo das
populaes estigmatizadas ou aqueles em situao de fraqueza poltica; e
e) interferncia com polticas econmicas, em virtude da proteo
judicial de direitos sociais.
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H causas de naturezas diversas para o fenmeno. A primeira delas
o
reconhecimento da importncia de um Judicirio forte e
independente, como elemento
essencial para as democracias modernas. Como consequncia,
operou-se uma vertiginosa
ascenso institucional de juzes e tribunais, assim na Europa como
em pases da Amrica
Latina, particularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa
desiluso com a poltica
majoritria, em razo da crise de representatividade e de
funcionalidade dos parlamentos em
geral. H uma terceira: atores polticos, muitas vezes, preferem
que o Judicirio seja a
instncia decisria de certas questes polmicas, em relao s quais
exista desacordo moral
razovel na sociedade. Com isso, evitam o prprio desgaste na
deliberao de temas divisivos,
como unies homoafotetivas, interrupo de gestao ou demarcao de
terras indgenas18
.
No Brasil, o fenmeno assumiu proporo ainda maior, em razo da
constitucionalizao
abrangente e analtica constitucionalizar , em ltima anlise,
retirar um tema do debate
poltico e traz-lo para o universo das pretenses judicializveis e
do sistema de controle de
constitucionalidade vigente entre ns, em que amplo o acesso ao
Supremo Tribunal Federal
por via de aes diretas.
Como consequncia, quase todas as questes de relevncia
poltica,
social ou moral foram discutidas ou j esto postas em sede
judicial, especialmente perante o
Supremo Tribunal Federal. A enunciao que se segue, meramente
exemplificativa, serve
como boa ilustrao dos temas judicializados: (i) instituio de
contribuio dos inativos na
Reforma da Previdncia (ADI 3105/DF); (ii) criao do Conselho
Nacional de Justia na
Reforma do Judicirio (ADI 3367); (iii) pesquisas com
clulas-tronco embrionrias (ADI
3510/DF); (iv) liberdade de expresso e racismo (HC 82424/RS caso
Ellwanger); (v)
interrupo da gestao de fetos anenceflicos (ADPF 54/DF); (vi)
restrio ao uso de
algemas (HC 91952/SP e Smula Vinculante n 11); (vii) demarcao da
reserva indgena
Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR); (viii) legitimidade de aes
afirmativas e quotas sociais e
raciais (ADI 3330); (ix) vedao ao nepotismo (ADC 12/DF e Smula n
13); (x) no-
18 V. Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in
Colombia, International Journal on Human
Rights 6:49, mimeografado, 2007, p. 57. V. tb. Jos Ribas Vieira,
Margarida Maria Lacombe Camargo e Alexandre Garrido Silva, O
Supremo Tribunal Federal como arquiteto institucional: a
judicializao da poltica e o ativismo judicial. In: Anais do I Forum
de Grupos de Pesquisa em direito Constitucional e Teoria dos
direitos, 2009, p. 44: Em casos politicamente custosos, os poderes
Legislativo e Executivo podem, de um modo estratgico, por meio de
uma inrcia deliberada, abrir um espao para a atuao ativista dos
tribunais. Temas profundamente controvertidos, sem perspectiva de
consenso na sociedade, tais como a abertura dos arquivos da
ditadura militar, unies homoafetivas, aborto, entre outros, tm os
seus custos polticos estrategicamente repassados para os tribunais,
cujos integrantes no precisam passar pelo crivo do voto popular aps
suas decises.
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recepo da Lei de Imprensa (ADPF 130/DF). A lista poderia
prosseguir indefinidamente,
com a identificao de casos de grande visibilidade e repercusso,
como a extradio do
militante italiano Cesare Battisti (Ext 1085/Itlia e MS
27875/DF), a questo da importao
de pneus usados (ADPF 101/DF) ou da proibio do uso do amianto
(ADI 3937/SP). Merece
destaque a realizao de diversas audincias pblicas, perante o
STF, para debater a questo
da judicializao de prestaes de sade, notadamente o fornecimento
de medicamentos e de
tratamentos fora das listas e dos protocolos do Sistema nico de
Sade (SUS)19
.
Uma observao final relevante dentro deste tpico. No Brasil,
como
assinalado, a judicializao decorre, sobretudo, de dois fatores:
o modelo de
constitucionalizao abrangente e analtica adotado; e o sistema de
controle de
constitucionalidade vigente entre ns, que combina a matriz
americana em que todo juiz e
tribunal pode pronunciar a invalidade de uma norma no caso
concreto e a matriz europia,
que admite aes diretas ajuizveis perante a corte constitucional.
Nesse segundo caso, a
validade constitucional de leis e atos normativos discutida em
tese, perante o Supremo
Tribunal Federal, fora de uma situao concreta de litgio. Essa
frmula foi maximizada no
sistema brasileiro pela admisso de uma variedade de aes diretas
e pela previso
constitucional de amplo direito de propositura. Nesse contexto,
a judicializao constitui um
fato inelutvel, uma circunstncia decorrente do desenho
institucional vigente, e no uma
opo poltica do Judicirio. Juzes e tribunais, uma vez provocados
pela via processual
adequada, no tm a alternativa de se pronunciarem ou no sobre a
questo. Todavia, o modo
como venham a exercer essa competncia que vai determinar a
existncia ou no de
ativismo judicial.
3. O ativismo judicial
Ativismo judicial uma expresso cunhada nos Estados Unidos20
e que
foi empregada, sobretudo, como rtulo para qualificar a atuao da
Suprema Corte durante os
19 V.
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude.
20 A locuo ativismo judicial foi utilizada, pela primeira vez,
em artigo de um historiador sobre a
Suprema Corte americana no perodo do New Deal, publicado em
revista de circulao ampla. V. Arthur M. Schlesinger, Jr., The
Supreme Court: 1947, Fortune, jan. 1947, p. 208, apud Keenan D.
Kmiec, The origin and current meanings of judicial activism,
California Law Review 92:1441, 2004, p. 1446. A descrio feita por
Schlesinger da diviso existente na Suprema Corte, poca, digna de
transcrio, por sua atualidade no debate contemporneo: Esse conflito
pode ser descrito de
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anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e
196921
. Ao longo desse perodo,
ocorreu uma revoluo profunda e silenciosa em relao a inmeras
prticas polticas nos
Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudncia progressista em
matria de direitos
fundamentais22
. Todas essas transformaes foram efetivadas sem qualquer ato do
Congresso
ou decreto presidencial23
. A partir da, por fora de uma intensa reao conservadora, a
expresso ativismo judicial assumiu, nos Estados Unidos, uma
conotao negativa,
depreciativa, equiparada ao exerccio imprprio do poder
judicial24
. Todavia, depurada dessa
crtica ideolgica at porque pode ser progressista ou
conservadora25 a ideia de ativismo
diferentes maneiras. O grupo de Black e de Douglas acredita que
a Suprema Corte pode desempenhar um papel afirmativo na promoo do
bem-estar social; o grupo de Frankfurter e Jackson defende uma
postura de auto-conteno judicial. Um grupo est mais preocupado com
a utilizao do poder judicial em favor de sua prpria concepo do bem
social; o outro, com a expanso da esfera de atuao do Legislativo,
mesmo que isso signifique a defesa de pontos de vista que eles
pessoalmente condenam. Um grupo v a Corte como instrumento para a
obteno de resultados socialmente desejveis; o segundo, como um
instrumento para permitir que os outros Poderes realizem a vontade
popular, seja ela melhor ou pior. Em suma, Black-Douglas e seus
seguidores parecem estar mais voltados para a soluo de casos
particulares de acordo com suas prprias concepes sociais;
Frankfurter-Jackson e seus seguidores, com a preservao do Judicirio
na sua posio relevante, mas limitada, dentro do sistema
americano.
21 Sobre o tema, em lngua portuguesa, v. Lus Roberto Barroso, A
americanizao do direito
constitucional e seus paradoxos. In: Temas de direito
constitucional, t. IV, p. 144 e s. (O legado de Warren: ativismo
judicial e proteo dos direitos fundamentais). Para uma interessante
biografia de Warren, bem como um denso relato do perodo, v. Jim
Newton, Justice for all: Earl Warren and the Nation he made,
2006.
22 Alguns exemplos representativos: considerou-se ilegtima a
segregao racial nas escolas (Brown
v. Board of Education, 1954); foram assegurados aos acusados em
processo criminal o direito de defesa por advogado (Gideon v.
Wainwright, 1963) e o direito no-auto-incriminao (Miranda v.
Arizona, 1966); e de privacidade, sendo vedado ao Poder Pblico a
invaso do quarto de um casal para reprimir o uso de contraceptivos
(Griswold v. Connecticut, 1965). Houve decises marcantes,
igualmente, no tocante liberdade de imprensa (New York Times v.
Sullivan, 1964) e a direitos polticos (Baker v. Carr, 1962). Em
1973, j sob a presidncia de Warren Burger, a Suprema Corte
reconheceu direitos de igualdade s mulheres (Richardson v.
Frontiero, 1973), assim como em favor dos seus direitos
reprodutivos, vedando a criminalizao do aborto at o terceiro ms de
gestao (Roe v. Wade).
23 Jim Newton, Justice for all: Earl Warren and the Nation he
made, 2006, p. 405.
24 V. Randy E. Barnett, Constitututional clichs, Capital
University Law Review 36:493, 2007, p. 495:
Normalmente, no entanto, ativismo judicial empregado para
criticar uma prtica judicial que deve ser evitada pelos juzes e que
merece a oposio do pblico. Keenan D. Kmiec, The origin and current
meanings of judicial activism, California Law Review 92:1441, 2004,
p. 1463 e s. afirma que no se trata de um conceito monoltico e
aponta cinco sentidos em que o termo tem sido empregado no debate
americano, no geral com uma conotao negativa: a) declarao de
inconstitucionalidade de atos de outros Poderes que no sejam
claramente inconstitucionais; b) ignorar precedentes aplicveis; c)
legislao pelo Judicirio; d) distanciamento das metodologias de
interpretao normalmente aplicadas e aceitas; e e) julgamentos em
funo dos resultados.
25 Como assinalado no texto, a expresso ativismo judicial foi
amplamente utilizada para estigmatizar
a jurisprudncia progressista da Corte Warren. bem de ver, no
entanto, que o ativismo judicial precedeu a criao do termo e, nas
suas origens, era essencialmente conservador. De fato, foi na atuao
proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionrios
encontraram amparo para a segregao racial (Dred Scott v. Sanford,
1857) e para a invalidao das leis sociais em geral (Era
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judicial est associada a uma participao mais ampla e intensa do
Judicirio na concretizao
dos valores e fins constitucionais, com maior interferncia no
espao de atuao dos outros
dois Poderes. Em muitas situaes, sequer h confronto, mas mera
ocupao de espaos
vazios.
No Brasil, h diversos precedentes de postura ativista do
STF,
manifestada por diferentes linhas de deciso. Dentre elas se
incluem: a) a aplicao direta da
Constituio a situaes no expressamente contempladas em seu texto
e independentemente
de manifestao do legislador ordinrio, como se passou em casos
como o da imposio de
fidelidade partidria e o da vedao do nepotismo; b) a declarao de
inconstitucionalidade de
atos normativos emanados do legislador, com base em critrios
menos rgidos que os de
patente e ostensiva violao da Constituio, de que so exemplos as
decises referentes
verticalizao das coligaes partidrias e clusula de barreira; c) a
imposio de condutas
ou de abstenes ao Poder Pblico, tanto em caso de inrcia do
legislador como no
precedente sobre greve no servio pblico ou sobre criao de
municpio como no de
polticas pblicas insuficientes, de que tm sido exemplo as
decises sobre direito sade.
Todas essas hipteses distanciam juzes e tribunais de sua funo
tpica de aplicao do
Direito vigente e os aproximam de uma funo que mais se assemelha
de criao do prprio
Direito.
A judicializao, como demonstrado acima, um fato, uma
circunstncia do desenho institucional brasileiro. J o ativismo
uma atitude, a escolha de um
modo especfico e proativo de interpretar a Constituio,
expandindo o seu sentido e alcance.
Normalmente, ele se instala e este o caso do Brasil em situaes
de retrao do Poder
Legislativo, de um certo descolamento entre a classe poltica e a
sociedade civil, impedindo
que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira
efetiva. O oposto do ativismo
Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o Presidente
Roosevelt e a Corte, com a mudana da orientao jurisprudencial
contrria ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937).
A situao se inverteu no perodo que foi de meados da dcada de 50 a
meados da dcada de 70 do sculo passado. Todavia, depois da guinada
conservadora da Suprema Corte, notadamente no perodo da presidncia
de William Rehnquist (1986-2005), coube aos progressistas a crtica
severa ao ativismo judicial que passou a desempenhar. V. Frank B.
Cross e Stefanie A. Lindquistt, The scientific study of judicial
activism, Minnesota Law Review 91:1752, 2006-2007, p. 1753 e
1757-8; Cass Sunstein, Tilting the scales rightward, New York
Times, 26 abr. 2001 (um notvel perodo de ativismo judicial
direitista) e Erwin Chemerinsky, Perspective on Justice: and
federal law got narrower, narrower, Los Angeles Times, 18 mai. 2000
(ativismo judicial agressivo e conservador).
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10
a auto-conteno judicial, conduta pela qual o Judicirio procura
reduzir sua interferncia
nas aes dos outros Poderes26
. A principal diferena metodolgica entre as duas posies
est em que, em princpio, o ativismo judicial legitimamente
exercido procura extrair o
mximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e
especialmente construindo
regras especficas de conduta a partir de enunciados vagos
(princpios, conceitos jurdicos
indeterminados). Por sua vez, a autoconteno se caracteriza
justamente por abrir mais espao
atuao dos Poderes polticos, tendo por nota fundamental a forte
deferncia em relao s
aes e omisses desses ltimos.
4. Crticas expanso da interveno judicial na vida brasileira
Diversas objees tm sido opostas, ao longo do tempo, expanso
do
Poder Judicirio nos Estados constitucionais contemporneos.
Identificam-se aqui trs delas.
Tais crticas no infirmam a importncia do papel desempenhado por
juzes e tribunais nas
democracias modernas, mas merecem considerao sria. O modo de
investidura dos juzes e
membros de tribunais, sua formao especfica e o tipo de discurso
que utilizam so aspectos
que exigem reflexo. Ningum deseja o Judicirio como instncia
hegemnica e a
interpretao constitucional no pode se transformar em usurpao da
funo legislativa.
Aqui, como em quase tudo mais, impem-se as virtudes da prudncia
e da moderao27
.
4.1. Crtica poltico-ideolgica
Juzes e membros dos tribunais no so agentes pblicos eleitos.
Sua
investidura no tem o batismo da vontade popular. Nada obstante
isso, quando invalida atos
do Legislativo ou do Executivo ou impe-lhes deveres de atuao, o
Judicirio desempenha
um papel que inequivocamente poltico. Essa possibilidade de as
instncias judiciais
sobreporem suas decises s dos agentes polticos eleitos gera
aquilo que em teoria
26 Por essa linha, juzes e tribunais (i) evitam aplicar
diretamente a Constituio a situaes que no
estejam no seu mbito de incidncia expressa, aguardando o
pronunciamento do legislador ordinrio; (ii) utilizam critrios
rgidos e conservadores para a declarao de inconstitucionalidade de
leis e atos normativos; e (iii) abstm-se de interferir na definio
das polticas pblicas.
27 V. Aristteles, tica a Nicmaco, 2007, p. 70 e 77: Em primeiro
lugar, temos que observar que as
qualidades morais so de tal modo constitudas que so destrudas
pelo excesso e pela deficincia. (...) [O] excesso e a deficincia so
uma marca do vcio e a observncia da mediania uma marca da
virtude....
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11
constitucional foi denominado de dificuldade
contramajoritria28
. A jurisdio constitucional
e a atuao expansiva do Judicirio tm recebido, historicamente,
crticas de natureza poltica,
que questionam sua legitimidade democrtica e sua suposta maior
eficincia na proteo dos
direitos fundamentais29
. Ao lado dessas, h, igualmente, crticas de cunho ideolgico,
que
veem no Judicirio uma instncia tradicionalmente conservadora das
distribuies de poder e
de riqueza na sociedade. Nessa perspectiva, a judicializao
funcionaria como uma reao das
elites tradicionais contra a democratizao, um antdoto contra a
participao popular e a
poltica majoritria30
.
4.2. Crtica quanto capacidade institucional
Cabe aos trs Poderes interpretar a Constituio e pautar sua
atuao
com base nela. Mas, em caso de divergncia, a palavra final do
Judicirio. Essa primazia
no significa, porm, que toda e qualquer matria deva ser decidida
em um tribunal. Para
evitar que o Judicirio se transforme em uma indesejvel instncia
hegemnica31
, a doutrina
constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a
ingerncia judicial: a de
28 Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16-23:
A questo mais profunda que o
controle de constitucionalidade (judicial review) uma fora
contramajoritria em nosso sistema. (...) [Q]uando a Suprema Corte
declara inconstitucional um ato legislativo ou um ato de um membro
eleito do Executivo, ela se ope vontade de representantes do povo,
o povo que est aqui e agora; ela exerce um controle, no em nome da
maioria dominante, mas contra ela. (...) O controle de
constitucionalidade, no entanto, o poder de aplicar e interpretar a
Constituio, em matrias de grande relevncia, contra a vontade da
maioria legislativa, que, por sua vez, impotente para se opor
deciso judicial.
29 Um dos principais representantes dessa corrente Jeremy
Waldron, autor de Law and
disagreement, 1999, e The core of the case against judicial
review, Yale Law Journal 115:1346, 2006. Sua tese central a de que
nas sociedades democrticas nas quais o Legislativo no seja
disfuncional, as divergncias acerca dos direitos devem ser
resolvidas no mbito do processo legislativo e no do processo
judicial.
30 V. Ran Hirschl, Towrds juristocracy: the origins and
consequences of the new constitutionalism,
2004. Aps analisar as experincias de Canad, Nova Zelndia, Israel
e frica do Sul, o autor conclui que o aumento do poder judicial por
via da constitucionalizao , no geral, um pacto estratgico entre trs
partes: as elites polticas hegemnicas (e crescentemente ameaadas)
que pretendem proteger suas preferncias polticas contra as
vicissitudes da poltica democrtica; as elites econmicas que
comungam da crena no livre mercado e da antipatia em relao ao
governo; e cortes supremas que buscar fortalecer seu poder simblico
e sua posio institucional (p. 214). Nos Estados Unidos, em linha
anloga, uma corrente de pensamento referida como constitucionalismo
popular tambm critica a ideia de supremacia judicial. V., dentre
muitos, Mark Tushnet, Taking the constitution away from the courts,
1999, p. 177, onde escreveu: Os liberais (progressistas) de hoje
parecem ter um profundo medo do processo eleitoral. Cultivam um
entusiasmo no controle judicial que no se justifica, diante das
experincias recentes. Tudo porque tm medo do que o povo pode
fazer.
31 A expresso do Ministro Celso de Mello. V. STF, DJ, 12
mai.2000, MS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso
de Mello.
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capacidade institucional e a de efeitos sistmicos32
. Capacidade institucional envolve a
determinao de qual Poder est mais habilitado a produzir a melhor
deciso em determinada
matria. Temas envolvendo aspectos tcnicos ou cientficos de
grande complexidade podem
no ter no juiz de direito o rbitro mais qualificado, por falta
de informao ou de
conhecimento especfico33
. Tambm o risco de efeitos sistmicos imprevisveis e
indesejveis
podem recomendar uma posio de cautela e de deferncia por parte
do Judicirio. O juiz, por
vocao e treinamento, normalmente estar preparado para realizar a
justia do caso concreto,
a microjustia34
, sem condies, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas
decises sobre um
segmento econmico ou sobre a prestao de um servio pblico35
.
4.3. Crtica quanto limitao do debate
O mundo do Direito tem categorias, discurso e mtodos prprios
de
argumentao. O domnio desse instrumental exige conhecimento
tcnico e treinamento
especfico, no acessveis generalidade das pessoas. A primeira
consequncia drstica da
judicializao a elitizao do debate e a excluso dos que no dominam
a linguagem nem
tm acesso aos locus de discusso jurdica36
. Institutos como audincias pblicas, amicus
32 V. Cass Sunstein e Adrian Vermeulle, Intepretation and
institutions, Public Law and Legal Theory
Working Paper No. 28, 2002: Ao chamarmos ateno para as
capacidades institucionais e para os efeitos sistmicos, estamos
sugerindo a necessidade de um tipo de virada institucional no
estudo das questes de interpretao jurdicas (p. 2). Sobre o tema, v.
tb. Adrian Vermeule, Foreword: system effects and the constitution,
Harvard Law Review 123:4, 2009.
33 Por exemplo: em questes como demarcao de terras indgenas ou
transposio de rios, em que
tenha havido estudos tcnicos e cientficos adequados, a questo da
capacidade institucional deve ser sopesada de maneira criteriosa.
34
Ana Paula de Barcellos, Constitucionalizao das polticas pblicas
em matria de direitos fundamentais: o controle poltico-social e o
controle jurdico no espao democrtico, Revista de Direito do Estado
3:17, 2006, p. 34. Tambm sobre o tema, v. Daniel Sarmento,
Interpretao constitucional, pr-compreenso e capacidades
institucionais do intrprete. In: Cludio Pereira de Souza Neto,
Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm (coords.), Vinte anos da
Constituio Federal de 1988, 2008, p. 317: [U]ma teoria hermenutica
construda a partir de uma imagem romntica do juiz pode produzir
resultados desastrosos quando manejada por magistrados de carne e
osso que no correspondam quela idealizao....
35 Exemplo emblemtico nessa matria tem sido o setor de sade. Ao
lado de intervenes
necessrias e meritrias, tem havido uma profuso de decises
extravagantes ou emocionais em matria de medicamentos e terapias,
que pem em risco a prpria continuidade das polticas pblicas de
sade, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a
alocao dos escassos recursos pblicos. Sobre o tema, v. Lus Roberto
Barroso, Da falta de efetividade constitucionalizao excessiva:
direito sade, fornecimento gratuito de medicamentos e parmetros
para a atuao judicial. In: Temas de direito constitucional, tomo
IV, 2009.
36 V. Jeremy Waldron, The core case against judicial review, The
Yale Law Journal 115:1346, p. 133:
A judicializao tende a mudar o foco da discusso pblica, que
passa de um ambiente onde as
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curiae e direito de propositura de aes diretas por entidades da
sociedade civil atenuam mas
no eliminam esse problema. Surge, assim, o perigo de se produzir
uma apatia nas foras
sociais, que passariam a ficar espera de juzes
providenciais37
. Na outra face da moeda, a
transferncia do debate pblico para o Judicirio traz uma dose
excessiva de politizao dos
tribunais, dando lugar a paixes em um ambiente que deve ser
presidido pela razo38
. No
movimento seguinte, processos passam a tramitar nas manchetes de
jornais e no na
imprensa oficial e juzes trocam a racionalidade plcida da
argumentao jurdica por
embates prprios da discusso parlamentar, movida por vises
polticas contrapostas e
concorrentes39
.
5. Importncia e limites da jurisdio constitucional nas
democracias
contemporneas
A jurisdio constitucional pode no ser um componente
indispensvel
do constitucionalismo democrtico, mas tem servido bem causa, de
uma maneira geral40
.
Ela um espao de legitimao discursiva ou argumentativa das
decises polticas, que
coexiste com a legitimao majoritria, servindo-lhe de contraponto
e complemento41. Isso
razes podem ser postas de maneira aberta e abrangente para um
outro altamente tcnico e formal, tendo por objeto textos e ideias
acerca de interpretao (traduo livre e ligeiramente editada).
37 Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in
Colombia, International Journal on Human
Rights 6:49, 2007, p. 63: O uso de argumentos jurdicos para
resolver problemas sociais complexos pode dar a impresso de que a
soluo para muitos problemas polticos no exige engajamento
democrtico, mas em vez disso juzes e agentes pblicos
providenciais.
38 Exemplo emblemtico de debate apaixonado foi o que envolveu o
processo de extradio do ex-
militante da esquerda italiana Cesare Battisti. Na ocasio,
assinalou o Ministro Eros Grau: "Parece que no h condies no
tribunal de um ouvir o outro, dada a paixo que tem presidido o
julgamento deste caso". Sobre o ponto, v. Felipe Recondo e
Maringela Galluci, Caso Battisti expe crise no STF. In: Estado de
So Paulo, 22.11.2009.
39 Em 22 abr.2009, diferentes vises sobre a relao Judicirio,
mdia e sociedade levaram a uma
rspida discusso entre os Ministros Gilmar Mendes e Joaquim
Barbosa. V.
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2009/04/22/na-integra-bate-boca-entre-joaquim-barbosa-mendes-179585.asp.
40 V. Dieter Grimm, Jurisdio constitucional e democracia,
Revista de Direito do Estado 4:3, 2006, p.
9: A jurisdio constitucional no nem incompatvel nem indispensvel
democracia. (...) [H] suficientes provas histricas de que um estado
democrtico pode dispensar o controle de constitucionalidade. (...)
Ningum duvidaria do carter democrtico de Estados como o Reino Unido
e a Holanda, que no adotam o controle de constitucionalidade. Sobre
o tema, inclusive com uma reflexo acerca da posio de Dieter Grimm
aplicada ao Brasil, v. Thiago Magalhes Pires, Crnicas do
subdesenvolvimento: jurisdio constitucional e democracia no Brasil,
Revista de direito do Estado 12:181, 2009, p. 194 e s.
41 Eduardo Bastos de Mendona, A constitucionalizao da poltica:
entre o inevitvel e o excessivo,
p. 10. Artigo indito, gentilmente cedido pelo autor. Para uma
defesa do ponto de vista de que as
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se torna especialmente verdadeiro em pases de redemocratizao
mais recente, como o
Brasil, onde o amadurecimento institucional ainda se encontra em
curso, enfrentando uma
tradio de hegemonia do Executivo e uma persistente fragilidade
do sistema representativo42
.
As constituies contemporneas, como j se assinalou, desempenham
dois grandes papis:
(i) o de condensar os valores polticos nucleares da sociedade,
os consensos mnimos quanto a
suas instituies e quanto aos direitos fundamentais nela
consagrados; e (ii) o de disciplinar o
processo poltico democrtico, propiciando o governo da maioria, a
participao da minoria e
a alternncia no poder43
. Pois este o grande papel de um tribunal constitucional, do
Supremo
Tribunal Federal, no caso brasileiro: proteger e promover os
direitos fundamentais, bem como
resguardar as regras do jogo democrtico. Eventual atuao
contramajoritria do Judicirio
em defesa dos elementos essenciais da Constituio se dar a favor
e no contra a
democracia44
.
Nas demais situaes isto , quando no estejam em jogo os
direitos
fundamentais ou os procedimentos democrticos , juzes e tribunais
devem acatar as escolhas
legtimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o
exerccio razovel de
discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de
sobrepor-lhes sua prpria valorao
poltica45
. Isso deve ser feito no s por razes ligadas legitimidade
democrtica, como
cortes constitucionais deve servir como instncias de
fortalecimento da representao poltica, v. Thamy Pogrebinschi, Entre
judicializao e representao. O papel poltico do Supremo Tribunal
Federal e o experimentalismo democrtico brasileiro, mimeografado,
2009.
42 Um dos principais crticos da judicial review, isto ,
possibilidade de cortes de justia declararem
a inconstitucionalidade de atos normativos, Jeremy Waldron, no
entanto, reconhece que ela pode ser necessria para enfrentar
patologias especficas, em um ambiente em que certas caractersticas
polticas e institucionais das democracias liberais no estejam
totalmente presentes. V. Jeremy Waldron, The core case against
judicial review, The Yale Law Journal 115:1346, p. 1359 e s.
43 Lus Roberto Barroso, Curso de direito constitucional
contemporneo, 2009, p. 89-90.
44 Para uma crtica da viso do Judicirio como instncia de proteo
das minorias e de defesa das
regras democrticas, v. Luciano da Ros, Tribunais como rbitros ou
como instrumentos de oposio: uma tipologia a partir dos estudos
recentes sobre judicializao da poltica com aplicao ao caso
brasileiro contemporneo, Direito, Estado e Sociedade 31:86, 2007,
p. 100-1, onde averbou: Pode-se afirmar que tribunais so instituies
que operam rigorosamente dentro dos limites que a dinmica das
outras foras polticas e institucionais lhes impem, raramente
decidindo fora do crculo de preferncias dos atores polticos. A idia
de que tribunais salvaguardam a democracia e a Constituio contra
tudo e contra todos, como muitas vezes se veicula nos crculos
acadmicos, pode ser considerada ingnua.
45 Na jurisprudncia norte-americana, o caso Chevron o grande
precedente da teoria da deferncia
administrativa em relao interpretao razovel dada pela
Administrao. De fato, em Chevron USA Inc. vs. National Resources
Defense Council Inc. (467 U.S. 837 (1984) ficou estabelecido que,
havendo ambiguidade ou delegao legislativa para a agncia, o
Judicirio somente deve intervir se a Administrao (no caso, uma
agncia reguladora) tiver atuado contra legem ou de maneira
irrazovel.
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tambm em ateno s capacidades institucionais dos rgos judicirios
e sua impossibilidade
de prever e administrar os efeitos sistmicos das decises
proferidas em casos individuais. Os
membros do Judicirio no devem presumir demais de si prprios como
ningum deve,
alis, nessa vida , supondo-se experts em todas as matrias. Por
fim, o fato de a ltima
palavra acerca da interpretao da Constituio ser do Judicirio no
o transforma no nico
nem no principal foro de debate e de reconhecimento da vontade
constitucional a cada
tempo. A jurisdio constitucional no deve suprimir nem oprimir a
voz das ruas, o
movimento social, os canais de expresso da sociedade. Nunca
demais lembrar que o poder
emana do povo, no dos juzes.
III. DIREITO E POLTICA: A CONCEPO TRADICIONAL
1. Notas sobre a distino entre Direito e poltica
A separao entre Direito e poltica tem sido considerada como
essencial no Estado constitucional democrtico. Na poltica,
vigoram a soberania popular e o
princpio majoritrio. O domnio da vontade. No Direito, vigora o
primado da lei (the rule of
law) e do respeito aos direitos fundamentais. O domnio da razo.
A crena mitolgica nessa
distino tem resistido ao tempo e s evidncias. Ainda hoje, j
avanado o sculo XXI,
mantm-se a diviso tradicional entre o espao da poltica e o espao
do Direito46
. No plano
de sua criao, no h como o Direito ser separado da poltica, na
medida em que produto
do processo constituinte ou do processo legislativo, isto , da
vontade das maiorias. O Direito
, na verdade, um dos principais produtos da poltica, o trofu
pelo qual muitas batalhas so
disputadas47
. Em um Estado de direito, a Constituio e as leis, a um s tempo,
legitimam e
limitam o poder poltico.
J no plano da aplicao do Direito, sua separao da poltica
tida
como possvel e desejvel. Tal pretenso se realiza, sobretudo, por
mecanismos destinados a
evitar a ingerncia do poder poltico sobre a atuao judicial. Isso
inclui limitaes ao prprio
46 V. Larry Kramer, The people themselves: popular
constitutionalism and judicial review, 2004, p. 7.
47 V. Keith E. Whittington, R. Daniel Kelemen e Gregory A.
Caldeira (eds.), The Oxford handbook of
law and politics, 2008, p. 3.
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legislador, que no pode editar leis retroativas, destinadas a
atingir situaes concretas48
. Essa
separao potencializada por uma viso tradicional e formalista do
fenmeno jurdico. Nela
se cultivam crenas como a da neutralidade cientfica, da
completude do Direito e a da
interpretao judicial como um processo puramente mecnico de
concretizao das normas
jurdicas, em valoraes estritamente tcnicas49
. Tal perspectiva esteve sob fogo cerrado ao
longo de boa parte do sculo passado, tendo sido criticada por
tratar questes polticas como
se fossem lingusticas e por ocultar escolhas entre diferentes
possibilidades interpretativas por
trs do discurso da nica soluo possvel50
. Mais recentemente, autores diversos tm
procurado resgatar o formalismo jurdico, em uma verso
requalificada, cuja nfase a
valorizao das regras e a conteno da discricionariedade
judicial51
.
2. Constituio e poderes constitudos
A Constituio o primeiro e principal elemento na interface
entre
poltica e Direito. Cabe a ela transformar o poder constituinte
originrio energia poltica em
estado quase puro, emanada da soberania popular em poder
constitudo, que so as
instituies do Estado, sujeitas legalidade jurdica, rule of law.
a Constituio que
institui os Poderes do Estado, distribuindo-lhes competncias
diversas52
. Dois deles recebem
48
Dieter Grimm, Constituio e poltica, 2006, p. 13.
49 O termo formalismo empregado aqui para identificar posies que
exerceram grande influncia
em todo o mundo, como a da Escola da Exegese, na Frana, a
Jurisprudncia dos Conceitos, na Alemanha, e o Formalismo Jurdico,
nos Estados Unidos, cuja marca essencial era a da concepo
mecanicista do direito, com nfase na lgica formal e grande
desconfiana em relao interpretao judicial.
50 Para Brian Z. Tamahana, Beyond the formalist-realist divide:
the role of politics in judging, 2010, a
existncia do formalismo jurdico, com as caractersticas que lhe
so atribudas, no corresponde realidade histrica. Segundo ele, ao
menos nos Estados Unidos, essa foi uma inveno de alguns realistas
jurdicos, que se apresentaram para combater uma concepo que jamais
exisitiu, ao menos no com tais caractersticas: autonomia e
completude do direito, solues nicas e interpretao mecnica. A tese
refoge ao conhecimento convencional e certamente suscitar
polmica.
51 V. Frederick Schauer, Formalism: legal, constitutional,
judicial. In: Keith E. Whittington, R. Daniel
Kelemen e Gregory A. Caldeira (eds.), The Oxford handbook of law
and politics, 2008, p. 428-36; e Noel Struchiner, Posturas
interpretativas e modelagem institucional: a dignidade
(contingente) do formalismo jurdico. In: Daniel Sarmento (coord.),
Filosofia e teoria constitucional contempornea, 2009, p. 463-82.
Sobre as ambiguidades do termo formalismo, v. Martin Stone, verbete
formalismo. In: Jules Coleman e Scott Shapiro (Eds), The Oxford
handbook of jurisprudence and philosophy of law, 2002, p.
166-205.
52 O poder constituinte, titularizado pelo povo, elabora a
Constituio. A Constituio tem por
propsito submeter a poltica ao direito, impondo a ela regras
procedimentais e determinados valores substantivos. Isso no
significa, todavia, quer a judicializao plena quer a supresso da
poltica, mas a mera existncia de limites, de uma moldura, como
referido por Dieter Grimm, que acrescentou:
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17
atribuies essencialmente polticas: o Legislativo e o Executivo.
Ao Legislativo toca,
precipuamente, a criao do direito positivo53
. J o Executivo, no sistema presidencialista
brasileiro, concentra as funes de chefe de Estado e de chefe de
governo, conduzindo com
razovel proeminncia a poltica interna e externa. Legislativo e
Executivo so o espao por
excelncia do processo poltico majoritrio, feito de campanhas
eleitorais, debate pblico e
escolhas discricionrias. Um universo no qual o ttulo principal
de acesso o voto: o que
elege, reelege ou deixa de fora.
J ao Poder Judicirio so reservadas atribuies tidas como
fundamentalmente tcnicas. Ao contrrio do chefe do Executivo e
dos parlamentares, seus
membros no so eleitos. Como regra geral, juzes ingressam na
carreira no primeiro grau de
jurisdio, mediante concurso pblico. O acesso aos tribunais de
segundo grau se d por via
de promoo, conduzida pelo rgo de cpula do prprio tribunal54
. No tocante aos tribunais
superiores, a investidura de seus membros sofre maior influncia
poltica, mas, ainda assim,
est sujeita a parmetros constitucionais55
. A atribuio tpica do Poder Judicirio consiste na
aplicao do Direito a situaes em que tenha surgido uma disputa,
um litgio entre partes. Ao
decidir a controvrsia esse o entendimento tradicional , o juiz
faz prevalecer, no caso
concreto, a soluo abstratamente prevista na lei. Desempenharia,
assim, uma funo tcnica
de conhecimento, de mera declarao de um resultado j previsto, e
no uma atividade
criativa, suscetvel de influncia poltica56
. Mesmo nos casos de controle de
constitucionalidade em tese isto , de discusso acerca da
validade abstrata de uma lei , o
[U]ma poltica totalmente judicializada estaria no fundo despida
de seu carter poltico e por fim reduzida administrao (Constituio e
poltica, 2006, p. 10).
53 Note-se que no mbito da atuao poltica do Legislativo
inclui-se, com destaque, a fiscalizao do
governo e da administrao pblica. Importante ressaltar,
igualmente, que nos pases presidencialistas e no Brasil,
especialmente , o chefe do Executivo tem participao destacada no
processo legislativo, seja pela iniciativa seja pelo poder de sano
ou veto. Sobre o tema, v. Clmerson Merlin Clve, A atividade
legislativa do Poder Executivo, 2000, p. 99-118.
54 Salvo no tocante ao chamado quinto constitucional, em que h
participao do chefe do Executivo
na designao de advogados e membros do Ministrio Pblico para o
tribunal (CF, art. 94).
55 Nos tribunais superiores Superior Tribunal de Justia,
Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal
Superior do Trabalho e Superior Tribunal Militar , a indicao de
seus ministros feita pelo Presidente da Repblica, com aprovao do
Senado Federal (exceto no caso do TSE). Ainda assim, existem
balizamentos constitucionais, que incluem, conforme o caso,
exigncias de notrio saber jurdico e reputao ilibada, idade e origem
funcional. V. CF, arts. 101, 104, 119, 111-A e 123.
56 Sobre a interpretao jurdica como mera funo tcnica de
conhecimento, v. Michel Troper,
verbete Interprtation. In: Denis Alland e Stphane Rials
Dictionnaire de la culture juridique, 2003, p. 843.
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Judicirio estaria fazendo prevalecer a vontade superior da
Constituio sobre a deciso
poltica majoritria do Legislativo.
3. A pretenso de autonomia do Judicirio e do Direito em relao
poltica
A maior parte dos Estados democrticos do mundo reserva uma
parcela
de poder poltico para ser exercido pelo Judicirio, isto , por
agentes pblicos que no so
eleitos. Quando os rgos judiciais resolvem disputas entre
particulares, determinando, por
exemplo, o pagamento de uma indenizao por quem causou um
acidente, decretando um
divrcio ou o despejo de um imvel, no h muita polmica sobre a
legitimidade do poder que
exerce. A Constituio confere a ele competncia para solucionar os
litgios em geral e disso
que se trata. A questo ganha em complexidade, todavia, quando o
Judicirio atua em disputas
que envolvem a validade de atos estatais ou nas quais o Estado
isto , outros rgos de
Poder seja parte. o que ocorre quando declara inconstitucional a
cobrana de um tributo,
suspende a execuo de uma obra pblica por questes ambientais ou
determina a um hospital
pblico que realize tratamento experimental em paciente que
solicitou tal providncia em
juzo. Nesses casos, juzes e tribunais sobrepem sua vontade de
agentes pblicos de outros
Poderes, eleitos ou nomeados para o fim especfico de fazerem
leis, construrem estradas ou
definirem as polticas de sade.
Para blindar a atuao judicial da influncia imprpria da poltica,
a
cultura jurdica tradicional sempre se utilizou de dois grandes
instrumentos: a independncia
do Judicirio em relao aos rgos propriamente polticos de governo;
e a vinculao ao
Direito, pela qual juzes e tribunais tm sua atuao determinada
pela Constituio e pelas
leis. rgos judiciais, ensina o conhecimento convencional, no
exercem vontade prpria,
mas concretizam a vontade poltica majoritria manifestada pelo
constituinte ou pelo
legislador. A atividade de interpretar e aplicar normas jurdicas
regida por um conjunto de
princpios, regras, convenes, conceitos e prticas que do
especificidade cincia do
Direito ou dogmtica jurdica. Este, portanto, o discurso padro:
juzes so independentes da
poltica e limitam-se a aplicar o direito vigente, de acordo com
critrios aceitos pela
comunidade jurdica.
3.1. Independncia do Judicirio
-
19
A independncia do Judicirio um dos dogmas das democracias
contemporneas. Em todos os pases que emergiram de regimes
autoritrios, um dos tpicos
essenciais do receiturio para a reconstruo do Estado de direito
a organizao de um
Judicirio que esteja protegido de presses polticas e que possa
interpretar e aplicar a lei com
iseno, baseado em tcnicas e princpios aceitos pela comunidade
jurdica. Independncia e
imparcialidade como condies para um governo de leis, e no de
homens. De leis, e no de
juzes, fique bem entendido57
. Para assegurar que assim seja, a Constituio brasileira,
por
exemplo, confere magistratura garantias institucionais que
incluem autonomia
administrativa e financeira e funcionais, como a vitaliciedade,
inamovibilidade e
irredutibilidade de remunerao58
. Naturalmente, para resguardar a harmonia com outros
Poderes, o Judicirio est sujeito a checks and balances e, desde
a Emenda Constitucional n
45, de 2004, ao controle administrativo, financeiro e
disciplinar do Conselho Nacional de
Justia. Em uma democracia, todo poder representativo, o que
significa que deve ser
transparente e prestar contas sociedade. Nenhum poder pode estar
fora do controle social,
sob pena de se tornar um fim em si mesmo, prestando-se ao abuso
e a distores diversas59
.
3.2. Vinculao ao direito posto e dogmtica jurdica
O mundo do Direito tem suas fronteiras demarcadas pela
Constituio e
seus caminhos determinados pelas leis. Alm disso, tem valores,
categorias e procedimentos
prprios, que pautam e limitam a atuao dos agentes jurdicos,
sejam juzes, advogados ou
membros do Ministrio Pblico. Pois bem: juzes no inventam o
Direito do nada. Seu papel
o de aplicar normas que foram positivadas pelo constituinte ou
pelo legislador. Ainda quando
57 Registre-se a aguda observao de Dieter Grimm, ex-juiz da
Corte Constitucional alem: A
garantia constitucional de independncia judicial protege os
juzes da poltica, mas no protege o sistema constitucional e a
sociedade de juzes que, por razes distintas da presso poltica
direta, esto dispostos a desobedecer ou distorcer a lei (Dieter
Grimm, Constitutions, constitutional courts and constitutional
interpretation at the interface of law and politics. In: Bogdan
Iancu (ed.), The law/politics distinction in contemporary public
law adjudication, 2009, p. 26).
58 V. Constituio Federal, arts. 95 e 99. Sobre o tema, v. Lus
Roberto Barroso, Constitucionalidade e
legitimidade da criao do Conselho Nacional de Justia, Interesse
Pblico 30:13, 2005.
59 Em texto escrito anteriormente criao do Conselho Nacional de
Justia, e tendo como pano de
fundo disputas politizadas ligadas privatizao e aos planos
econmicos, escreveu Carlos Santiso, Economic reform and judicial
governance in Brazil: balancing independence with accountability.
In: Siri Gloppen, Roberto Gargarella e Elin Skaar, Democratization
and the judiciary, 2004, p. 172 e 177: Excessiva independncia tende
a gerar incentivos perversos e insular o Judicirio do contexto
poltico e econmico mais amplo, convertendo-o em uma instituio
autrquica, incapaz de responder s demandas sociais. (...)
Independncia sem responsabilidade poltica (accountability) pode ser
parte do problema e no da soluo.
-
20
desempenhem uma funo criativa do Direito para o caso concreto,
devero faz-lo luz dos
valores compartilhados pela comunidade a cada tempo. Seu
trabalho, portanto, no inclui
escolhas livres, arbitrrias ou caprichosas. Seus limites so a
vontade majoritria e os valores
compartilhados. Na imagem recorrente, juzes de direito so como
rbitros desportivos: cabe-
lhes valorar fatos, assinalar faltas, validar gols ou pontos,
marcar o tempo regulamentar,
enfim, assegurar que todos cumpram as regras e que o jogo seja
justo. Mas no lhes cabe
formular as regras60
. A metfora j teve mais prestgio, mas possvel aceitar, para
no
antecipar a discusso do prximo tpico, que ela seja vlida para
qualificar a rotina da
atividade judicial, embora no as grandes questes
constitucionais.
No est em questo, portanto, que as escolhas polticas devem
ser
feitas, como regra geral, pelos rgos eleitos, isto , pelo
Congresso e pelo Presidente. Os
tribunais desempenham um papel importante na vida democrtica,
mas no o papel principal.
Dois autores contemporneos utilizaram expresses que se tornaram
emblemticas para
demarcar o papel das cortes constitucionais. Ronald Dworkin
referiu-se a frum de
princpios. Em uma sociedade democrtica, algumas questes
decisivas devem ser tratadas
como questes de princpios morais ou polticos e no como uma
questo de poder
poltico, de vontade majoritria. So elas as que envolvem direitos
fundamentais das pessoas,
e no escolhas gerais sobre como promover o bem-estar
social61
. J John Rawls explorou a
idia de razo pblica. Em uma democracia pluralista, a razo pblica
consiste na
justificao das decises polticas sobre questes constitucionais
essenciais e sobre questes
de justia bsica, como os direitos fundamentais. Ela expressa os
argumentos que pessoas
com formao poltica e moral diversa podem acatar, o que exclui,
portanto, o emprego de
60 Em uma das audincias que antecederam sua confirmao como
Presidente da Suprema Corte
americana, em setembro de 2005, John G. Roberts Jr. voltou a
empregar essa metfora frequente: Juzes so como rbitros desportivos
(umpires). Eles no fazem as regras; eles as aplicam. O papel de um
rbitro, assim como o de um juiz, muito importante. Eles asseguram
que todos joguem de acordo com as regras. Mas um papel limitado. A
passagem est reproduzida em Week in review, New York Times, 12 jul.
2009. V. a ntegra do depoimento em
http://www.gpoaccess.gov/congress/senate/judiciary/sh109-158/55-56.pdf.
61 V. Ronald Dworkin, A matter of principle, 1985, p. 69-71. A
fiscalizao judicial assegura que as
questes mais fundamentais de moralidade poltica sero
apresentadas e debatidas como questes de princpio, e no apenas de
poder poltico. Essa uma transformao que no poder jamais ser
integralmente bem-sucedida apenas no mbito do Legislativo. Por
exemplo: a igualdade racial, a igualdade de gnero, a orientao
sexual, os direitos reprodutivos, o direito do acusado ao devido
processo legal, dentre outras, so questes de princpio, e no de
poltica.
-
21
doutrinas abrangentes, como as de carter religioso ou
ideolgico62
. Em suma: questes de
princpio devem ser decididas, em ltima instncia, por cortes
constitucionais, bom base em
argumentos de razo pblica.
3.3. Limites da separao entre Direito e poltica
Direito , certamente, diferente da poltica. Mas no possvel
ignorar
que a linha divisria entre ambos, que existe
inquestionavelmente, nem sempre ntida, e
certamente no fixa63
. Do ponto de vista da teoria jurdica, tem escassa adeso, nos
dias que
correm, a crena de que as normas jurdicas tragam sempre em si um
sentido nico, objetivo,
vlido para todas as situaes sobre as quais incidem. E que,
assim, caberia ao intrprete uma
atividade de mera revelao do contedo preexistente na norma, sem
desempenhar qualquer
papel criativo na sua concretizao. H praticamente consenso, na
doutrina contempornea,
de que a interpretao e aplicao do Direito envolvem elementos
cognitivos e volitivos. Do
ponto de vista funcional, bem de ver que esse papel de intrprete
final e definitivo, em caso
de controvrsia, desempenhado por juzes e tribunais. De modo que
o Poder Judicirio e,
notadamente, o Supremo Tribunal Federal, desfruta de uma posio
de primazia na
determinao do sentido e do alcance da Constituio e das leis,
pois cabe-lhe dar a palavra
final, que vincular os demais Poderes. Essa supremacia judicial
quanto determinao do
que o Direito envolve, por evidente, o exerccio de um poder
poltico, com todas as suas
implicaes para a legitimidade democrtica64
.
IV. DIREITO E POLTICA: O MODELO REAL
1. Os laos inevitveis: a lei e sua interpretao como atos de
vontade
62
John Rawls, Political liberalism, 1996, p. 212 e s.,
especialmente p. 231-40. Nas suas prprias palavras: (A razo pblica)
se aplica tambm, e de forma especial, ao Judicirio e, acima de
tudo, suprema corte, onde haja uma democracia constitucional com
controle de constitucionalidade. Isso porque os Ministros tm que
explicar e justificar suas decises, baseadas na sua compreenso da
Constituio e das leis e precedentes relevantes. Como os atos do
Legislativo e do Executivo no precisam ser justificados dessa
forma, o papel especial da Corte a torna um caso exemplar de razo
pblica. Para uma crtica da viso de Rawls, v. Jeremy Waldron, Public
reason and justification in the courtroom, Journal of Law,
Philosophy and Culture 1:108, 2007.
63 V. Eduardo Mendona, A insero da jurisdio constitucional na
democracia: algum lugar entre o
direito e a poltica, Revista de direito do Estado 13:211, 2009,
p. 212.
64 Sobre o conceito de legitimidade e sua evoluo, v. Diogo de
Figueiredo Moreira Neto, 2008,
Quatro paradigmas do direito administrativo ps-moderno, p.
33-47.
-
22
No mundo romano-germnico, comum fazer-se referncia ao
Direito
como uma cincia. A afirmao pode ser aceita, ainda que com
reserva, se o termo cincia for
tomado no sentido de um conjunto organizado de conhecimentos,
que guarda uma lgica
interna e tem princpios, conceitos e categorias especficos,
unificados em uma terminologia
prpria. Mas intuitiva a distino a ser feita em relao s cincias
da natureza. Essas
ltimas so domnios que lidam com fenmenos que se ordenam
independentemente da
vontade humana, seja o legislador, o pblico em geral ou o
intrprete. So cincias que se
destinam a explicar o que l j est. Sem pretender subestimar
complexidades
epistemolgicas, so domnios em que o anseio cientfico por
objetividade e comprovao
imparcial se realiza mais intensamente. J o Direito se insere no
campo das cincias sociais e
tem, sobretudo, uma pretenso prescritiva: ele procura moldar a
vida de acordo com suas
normas. E normas jurdicas no so reveladas, mas, sim, criadas por
decises e escolhas
polticas, tendo em vista determinadas circunstncias e visando
determinados fins. E, por
terem carter prospectivo, precisaro ser interpretadas no futuro,
tendo em conta fatos e casos
concretos.
Como consequncia, tanto a criao quanto a aplicao do Direito
dependem da atuao de um sujeito, seja o legislador ou o
intrprete. A legislao, como ato
de vontade humana, expressar os interesses dominantes ou, se se
preferir, o interesse
pblico, tal como compreendido pela maioria, em um dado momento e
lugar. E a jurisdio,
que a interpretao final do Direito aplicvel, expressar, em maior
ou menor intensidade, a
compreenso particular do juiz ou do tribunal acerca do sentido
das normas. Diante de tais
premissas, possvel extrair uma concluso parcial bastante bvia,
ainda que frequentemente
encoberta: o mantra repetido pela comunidade jurdica mais
tradicional de que o Direito
diverso da poltica exige um complemento. distinto, sim, e por
certo; mas no isolado
dela. Suas rbitas se cruzam e, nos momentos mais dramticos, se
chocam, produzindo
vtimas de um ou dos dois lados: a justia e a segurana jurdica,
que movem o Direito; ou a
soberania popular e a legitimidade democrtica, que devem
conduzir a poltica. A seguir se
exploram diferentes aspectos dessa relao. Alguns deles so
ligados teoria do Direito e da
interpretao, e outros s circunstncias dos juzes e rgos
julgadores.
2. A interpretao jurdica e suas complexidades: o encontro no
marcado entre
o Direito e a poltica
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23
2.1. A linguagem aberta dos textos jurdicos
A linguagem jurdica, como a linguagem em geral, utiliza-se de
signos
que precisam ser interpretados. Tais signos, muitas vezes,
possuem determinados sentidos
consensuais ou de baixo grau de controvrsia. Embora nem sempre
as coisas sejam simples
como parecem, h pouca dvida do que signifique municpio, oramento
ou previdncia
complementar. Mas a Constituio se utiliza, igualmente, de
inmeras clusulas abertas, que
incluem conceitos jurdicos indeterminados e princpios.
Calamidade pblica, relevncia e
urgncia ou crime poltico so conceitos que transmitem uma ideia
inicial de sentido, mas que
precisam ser integrados luz dos elementos do caso concreto. E,
em relao a eles, embora
possam existir certezas positivas e negativas sobre o que
significam ou deixam de significar,
indiscutvel que h uma ampla rea de penumbra que se presta a
valoraes que no podero
refugir a algum grau de subjetividade. O fenmeno se repete com
maior intensidade quando
se trate de princpios constitucionais, com sua intensa carga
axiolgica, como dignidade da
pessoa humana, moralidade administrativa ou solidariedade
social. Tambm aqui ser
impossvel falar em sentidos claros e unvocos. Na interpretao de
normas cuja linguagem
aberta e elstica, o Direito perde muito da sua objetividade e
abre espao para valoraes do
intrprete. O fato de existir consenso de que ao atribuir sentido
a conceitos indeterminados e a
princpios no deve o juiz utilizar-se dos seus prprios valores
morais e polticos no elimina
riscos e complexidades, funcionando como uma bssola de
papel.
2.2. Os desacordos morais razoveis
Alm dos problemas de ambiguidade da linguagem, que envolvem
a
determinao semntica de sentido da norma, existem, tambm, em uma
sociedade pluralista
e diversificada, o que se tem denominado de desacordo moral
razovel65
. Pessoas bem
intencionadas e esclarecidas, em relao a mltiplas matrias,
pensam de maneira
radicalmente contrria, sem conciliao possvel. Clusulas
constitucionais como direito
vida, dignidade da pessoa humana ou igualdade do margem a
construes hermenuticas
distintas, por vezes contrapostas, de acordo com a pr-compreenso
do intrprete. Esse
65 Sobre o tema, na literatura mais recente, v. Christopher
McMahon, Reasonable disagreement: a
theory of political morality, 2009; e Folke Tersman, Moral
disagreement, 2006.
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24
fenmeno se revela em questes que so controvertidas em todo o
mundo, inclusive no Brasil,
como, por exemplo, interrupo de gestao, pesquisas com
clulas-tronco embrionrias,
eutansia/ortotansia, unies homoafetivas, em meio a inmeras
outras. Nessas matrias,
como regra geral, o papel do Direito e do Estado deve ser o de
assegurar que cada pessoa
possa viver sua autonomia da vontade e suas crenas. Ainda assim,
inmeras complexidades
surgem, motivadas por vises filosficas e religiosas
diversas.
2.3. As colises de normas constitucionais
Constituies so documentos dialticos e compromissrios, que
consagram valores e interesses diversos, que eventualmente
entram em rota de coliso. Essas
colises podem se dar, em primeiro lugar, entre princpios ou
interesses constitucionalmente
protegidos. o caso, por exemplo, da tenso entre desenvolvimento
nacional e proteo do
meio-ambiente ou entre livre-iniciativa e represso ao abuso do
poder econmico. Tambm
possvel a coliso entre direitos fundamentais, como a liberdade
de expresso e o direito de
privacidade, ou entre a liberdade de reunio e o direito de ir e
vir (no caso, imagine-se, de
uma passeata que bloqueie integralmente uma via de trnsito
essencial). Por fim, possvel
cogitar de coliso de direitos fundamentais com certos princpios
ou interesses
constitucionalmente protegidos, como o caso da liberdade
individual, de um lado, e a
segurana pblica e a persecuo penal, de outro. Em todos esses
exemplos, vista do
princpio da unidade da Constituio, o intrprete no pode escolher
arbitrariamente um dos
lados, j que no h hierarquia entre normas constitucionais. De
modo que ele precisar
demonstrar, argumentativamente, luz dos elementos do caso
concreto, mediante ponderao
e uso da proporcionalidade, que determinada soluo realiza mais
adequadamente a vontade
da Constituio, naquela situao especfica.
Todas essas hipteses referidas acima ambiguidade da
linguagem,
desacordo moral e colises de normas recaem em uma categoria
geral que tem sido referida
como casos difceis (hard cases)66
. Nos casos fceis, a identificao do efeito jurdico
decorrente da incidncia da norma sobre os fatos relevantes
envolve uma operao simples,
de mera subsuno. O proprietrio de um imvel urbano deve pagar
imposto predial. A
66 Sobre o tema, v. Ronald Dworkin, Taking rights seriiusly,
1997, p. 81 e s.; e Aharon Barak, The
judge in a democracy, 2006, p. xiii e s.
-
25
Constituio no permite ao Chefe do Executivo um terceiro mandato.
J os casos difceis
envolvem situaes para as quais no existe uma soluo acabada no
ordenamento jurdico.
Ela precisa ser construda argumentativamente, por no resultar do
mero enquadramento do
fato norma. Pode um artista, em nome do direito de privacidade,
impedir a divulgao de
sua biografia, escrita por um pesquisador? Pode o autor de uma
ao de investigao de
paternidade exigir que o indigitado pai se submeta coativamente
a exame de DNA? Em
ambos os casos, que envolvem questes constitucionais
privacidade, liberdade de expresso,
direitos da personalidade, liberdade individual a soluo para a
disputa no encontrvel
pr-pronta no sistema jurdico: ela precisa ser desenvolvida
justificadamente pelo intrprete.
2.4. A interpretao constitucional e seus mtodos
Em todas as hipteses referidas acima, envolvendo casos difceis,
o
sentido da norma precisar ser fixado pelo juiz. Como se
registrou, so situaes em que a
soluo no estar pronta em uma prateleira jurdica e, portanto,
exigir uma atuao criativa
do intrprete, que dever argumentativamente justificar seu
itinerrio lgico e suas escolhas.
Se a soluo no est integralmente na norma, o juiz ter de recorrer
a elementos externos ao
direito posto, em busca do justo, do bem, do legtimo. Ou seja,
sua atuao ter de se valer da
filosofia moral e da filosofia poltica. Mesmo admitida esta
premissa a de que o juiz, ao
menos em certos casos, precisa recorrer a elementos
extrajurdicos , ainda assim se vai
verificar que diferentes juzes adotam diferentes mtodos de
interpretao. H juzes que
pretendem extrair da Constituio suas melhores potencialidades,
realizando na maior
extenso possvel os princpios e direitos fundamentais. H outros
que entendem mais
adequado no ler na Constituio o que nela no est de modo claro ou
expresso, prestando
maior deferncia ao legislador ordinrio67
. Uma pesquisa emprica revelar, sem surpresa, que
67 Cass Sunstein, Radicals in robes, 2005, identifica quatro
abordagens no debate constitucional:
perfeccionismo, majoritarianismo, minimialismo e
fundamentalismo. O perfeccionismo, adotado por muitos juristas
progressistas, quer fazer da Constituio o melhor que ela possa ser.
O majoritarianismo pretende diminuir o papel da Suprema Corte e
favorecer o processo poltico democrtico, cujo centro de gravidade
estaria no Legislativo. O minimalismo ctico acerca de teorias
interpretativas e acredita em decises menos abrangentes, focadas no
caso concreto e no em proposies amplas. O fundamentalismo procura
interpretar a Constituio dando-lhe o sentido que tinha quando foi
ratificada. Para uma dura crtica ao minimalismo defendido por
Sunstein, v. Ronald Dworkin, Looking for Cass Sunstein, The New
York Review of Books 56, 30 abr. 2009 (tambm disponvel em
http://www.nybooks.com/articles/22636).
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26
os mesmos juzes nem sempre adotam os mesmos mtodos de
interpretao68
. Seu mtodo ou
filosofia judicial mera racionalizao da deciso que tomou por
outras razes69
. E a surge
uma nova varivel: o resultado baseado no no princpio, mas no
fim, no resultado70
.
Nesse ponto, impossvel no registrar a tentao de se abrir espao
para
o debate acerca de uma das principais correntes filosficas do
Direito contemporneo: o
pragmatismo jurdico, com seu elemento constitutivo essencial,
que o consequencialismo.
Para essa concepo, as consequncias e resultados prticos das
decises judiciais, assim em
relao ao caso concreto como ao sistema como um todo, devem ser o
fator decisivo na
atuao dos juzes e tribunais71
. O pragmatismo jurdico afasta-se do debate filosfico em
geral, seja moral ou poltico inclusive o que mobilizou
jusnaturalistas e positivistas em torno
da resposta pergunta o que o direito? e se alinha a um
empreendimento terico
distinto, cuja indagao central : como os juzes devem decidir?72.
No o caso, aqui, de
68 Sobre o ponto, v. Alexandre Garrido da Silva, Minimalismo,
democracia e expertise: o Supremo
Tribunal Federal diante de questes polticas e cientficas
complexas, Revista de direito do Estado 12:107, p. 139: importante
destacar que no h um magistrado que em sua prtica jurisdicional
seja sempre minimalista ou perfeccionista. Nos casos da fidelidade
partidria, da clusula de barreira e da inelegibilidade, por
exemplo, o Min. Eros Grau assumiu um posicionamento nitidamente
minimalista e formalista, ao passo que no caso do amianto
aproximou-se, conforme foi visto, do modelo perfeccionista.
69 Para essa viso ctica, v. Richard A. Posner, How judges think,
2008, p. 13, onde registrou que as
filosofias judiciais so ou racionalizaes para decises tomadas
por outros fundamentos ou armas retricas.
70 V., ainda uma vez, Alexandre Garrido da Silva, Minimalismo,
democracia e expertise: o Supremo
Tribunal Federal diante de questes polticas e cientficas
complexas, Revista de Direito do Estado 12:107, p. 139:
Frequentemente, os juzes tendem a fazer um uso estratgico dos
modelos anteriormente descritos tendo em vista fins previamente
escolhidos, ou seja, optam pragmaticamente pelo modelo mais
adequado para a resoluo do problema enfrentado no caso concreto.
Sobre o consequencialismo isto , o processo decisrio fundado no
resultado , v. Diego Werneck Arguelles, Deuses pragmticos, mortais
formalistas: a justificao consequencialista das decises judiciais,
dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
direito Pblico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ,
mimeografado, 2006.
71 Sobre o pragmatismo filosfico, v. Richard Rorty, Consequences
of pragmatism, 1982. Sobre o
pragmatismo jurdico, no debate norte-americano, vejam-se, dentre
muitos: Richard Posner, Law, pragmatism and democracy, 2003; e
Jules Coleman, The practice of principle: in defence of a pragmatic
approach to legal theory, 2001. Em lngua portuguesa, v. Diego
Werneck Arguelhes e Fernando Leal, Pragmatismo como [meta] teoria
normativa da deciso judicial: caracterizao, estratgia e implicaes.
In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional
contempornea, 2009; Thamy Pogrebinschi, Pragmatismo: teoria social
e poltica, 2005; e Cludio Pereira de Souza Neto, A interpretao
constitucional contempornea entre o construtivismo e o pragmatismo.
In: Maia, Melo, Cittadino e Pogrebinschi (orgs.), Perspectivas
atuais da filosofia do direito, 2005.
72 Sobre esse ponto especfico, v. Diego Werneck Arguelhes e
Fernando Leal, Pragmatismo como
[meta] teoria normativa da deciso judicial: caracterizao,
estratgia e implicaes. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e
teoria constitucional contempornea, 2009, p. 175 e 187.
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27
se objetar que uma coisa no exclui a outra. A realidade
incontornvel, na circunstncia
presente, que o desvio que conduz ao debate sobre o pragmatismo
jurdico no poder ser
feito no mbito desse trabalho. E isso no apenas por afast-lo do
seu eixo central, como
tambm pela complexidade da tarefa de qualificar o que seja
pragmatismo jurdico e de
sistematizar as diferentes correntes que reivindicam o
rtulo.
3. O juiz e suas circunstncias: influncias polticas em um
julgamento73
No modelo idealizado, o Direito imune s influncias da poltica,
por
fora de diferentes institutos e mecanismos. Basicamente, eles
consistiriam: na independncia
do Judicirio e na vinculao do juiz ao sistema jurdico. A
independncia se manifesta, como
assinalado, em garantias institucionais como a autonomia
administrativa e financeira e
garantias funcionais dos juzes, como a vitaliciedade, a
inamovibilidade e a irredutibilidade de
subsdios. Como regra geral, a investidura e a ascenso na
carreira da magistratura se d por
critrios tcnicos ou por valoraes interna corporis. Nos casos em
que h participao
poltica na nomeao de magistrados para tribunais, ela se esgota
aps a posse, pois a
permanncia vitalcia do magistrado no cargo j no depender de
qualquer novo juzo
poltico. A autonomia e especificidade do universo jurdico, por
sua vez, consistem em um
conjunto de doutrinas, categorias e princpios prprios, manejados
por juristas em geral a
includos juzes, advogados, membros do Ministrio Pblico e demais
participantes do
processo jurdico e judicial que no se confundem com os da
poltica. Trata-se de um
discurso e de um cdigo de relao diferenciados. Julgar distinto
de legislar e de
administrar. Juzes no criam o Direito nem definem as aes
administrativas. Seu papel
aplicar a Constituio e as leis, valendo-se de um conjunto de
institutos consolidados de longa
data, sendo que a jurisprudncia desempenha, crescentemente, um
papel limitador dessa
atuao, pela vinculao aos precedentes. Direito e poltica, nessa
viso, constituem mundos
apartados.
H um modelo oposto a esse, que se poderia denominar de
modelo
ctico, que descr da autonomia do Direito em relao poltica e aos
fenmenos sociais em
geral. Esse o ponto de vista professado por movimentos tericos
de expresso, como o
73 As ideias que se seguem beneficiaram-se, intensamente, das
formulaes contidas em Barry
Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review
84:257, 2005.
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28
realismo jurdico, a teoria crtica e boa parte das cincias
sociais contemporneas. Todos eles
procuram descrever o mundo jurdico e as decises judiciais como
so, e no como deveriam
ser. Afirmam, assim, que a crena na objetividade do Direito e a
existncia de solues
prontas no ordenamento jurdico no passam de mitos. No verdade
que o Direito seja um
sistema de regras e de princpios harmnicos, de onde um juiz
imparcial e apoltico colhe as
solues adequadas para os problemas, livre de influncias
externas. Essa uma fantasia do
formalismo jurdico. Decises judiciais refletem as preferncias
pessoais dos juzes, proclama
o realismo jurdico; so essencialmente polticas, verbera a teoria
crtica; so influenciadas
por inmeros fatores extrajurdicos, registram os cientistas
sociais. Todo caso difcil pode ter
mais de uma soluo razovel construda pelo intrprete, e a soluo
que ele produzir ser,
em ltima anlise, aquela que melhor atenda a suas preferncias
pessoais, sua ideologia ou
outros fatores externos, como os de natureza institucional. Ele
sempre agir assim, tenha ou
no conscincia do que est fazendo.
O modelo real, como no difcil de intuir, ter uma dose razovel
de
cada uma das vises extremas descritas acima. O Direito pode e
deve ter uma vigorosa
pretenso de autonomia em relao poltica. Isso essencial para a
subsistncia do conceito
de Estado de direito e para a confiana da sociedade nas
instituies judiciais. A realidade,
contudo, revela que essa autonomia ser sempre relativa. Existem
razes institucionais,
funcionais e humanas para que seja assim. Decises judiciais, com
frequncia, refletiro
fatores extrajurdicos. Dentre eles incluem-se os valores
pessoais e ideolgicos do juiz, assim
como outros elementos de natureza poltica e institucional. Por
longo tempo, a teoria do
Direito procurou negar esse fato, a despeito das muitas
evidncias. Pois bem: a energia
despendida na construo de um muro de separao entre o Direito e a
poltica deve voltar-se
agora para outra empreitada74
. Cuida-se de entender melhor os mecanismos dessa relao
intensa e inevitvel, com o propsito relevante de preservar, no
que essencial, a
especificidade e, sobretudo, a integridade do Direito75
. Pois justamente este o objetivo do
presente tpico: analisar alguns desses elementos metajurdicos
que influenciam ou podem
influenciar as decises judiciais. Confira-se a sistematizao a
seguir.
74 V. Barry Friedman, The politics of judicial review, Texas Law
Review 84:257, 2005, p. 267 e p. 269,
onde averbou: Se, como os juristas vm crescentemente
reconhecendo, direito e poltica no podem ser mantidos separados,
ainda precisamos de uma teoria que possa integr-los, sem abrir mo
dos compromissos com o Estado de direito que esta sociedade tanto
preza.
75 Sobre a ideia de direito como integridade, v. Ronald Dworkin,
O imprio do direito, 1999, p. 271-
331.
-
29
3.1. Valores e ideologia do juiz
Como assinalado, o realismo jurdico, um dos mais importantes
movimentos tericos do Direito no sculo XX, contribuiu
decisivamente para a superao do
formalismo jurdico e da crena de que a atividade judicial seria
mecnica, acrtica e unvoca.
Enfatizando que o Direito tem ambiguidades e contradies, o
realismo sustentava que a lei
no o nico e, em muitos casos, sequer o mais importante fator a
influenciar uma
deciso judicial. Em uma multiplicidade de hipteses, o juiz que
faz a escolha do resultado,
luz de suas intuies, personalidade, preferncias e
preconceitos76
. Em linha anloga, mas
dando proeminncia absoluta ao elemento poltico, a teoria
crtica77
, no mundo romano-
germnico, e os critical legal studies, nos Estados Unidos,
sustentaram que decises judiciais
no passam de escolhas polticas, encobertas por um discurso que
procura exibir
neutralidade78
. Tanto o realismo quanto a teoria crtica refluram drasticamente
nas ltimas
dcadas, mas deixaram uma marca indelvel no pensamento jurdico
contemporneo79
. Mais
recentemente, um conjunto de estudos empricos, oriundos,
sobretudo, da cincia poltica,
recolocaram no centro do debate