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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SANTOS, O.M. A luta desarmada dos subalternos. In: A luta desarmada dos subalternos [online]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016, pp. 55-99. ISBN 978-85-423-0290-5. Available from: doi: 10.7476/9788542302905.0003. Also available in epub from: http://books.scielo.org/id/dty2b/epub/santos-9788542302905.epub. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Capítulo 2 A luta desarmada dos subalternos Osmar Moreira dos Santos
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Aug 07, 2020

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SANTOS, O.M. A luta desarmada dos subalternos. In: A luta desarmada dos subalternos [online]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016, pp. 55-99. ISBN 978-85-423-0290-5. Available from: doi: 10.7476/9788542302905.0003. Also available in epub from: http://books.scielo.org/id/dty2b/epub/santos-9788542302905.epub.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

Capítulo 2 A luta desarmada dos subalternos

Osmar Moreira dos Santos

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C a p í t u l o 2

A LUTA DESARMADA DOS SUBALTERNOS

Segundo Einstein, uma quarta guerra mundial, se hou-ver, será feita de pau e pedra, dada a devastação de uma provável terceira guerra, em que entre os vivos apenas ratos e baratas terão chances de sobreviver. Roland Barthes, por sua vez, já nos disse que, se por uma espécie de barbárie, alguma coisa da humanidade devesse ser salva, essa seria a seu ver um livro de literatura, ou o monumento literário, pois, além de ajudar os sobreviventes a recomporem os saberes e a imagem do real, ainda restituiria ao ser humano a sua potência de simbolizar.

Essa estranha instituição chamada literatura,1 além de salvar o acontecimento, vislumbra, na mesma relação de força, o que poderia ter acontecido se não houvesse o que aconteceu, e propõe que, entre a filosofia, a literatura e a história, deva haver, como um direito à vida, a possibili-dade da autobiografia e sua potência bioficcional.

Se os pobres salvarão o mundo, conforme Jean-Luc Godard, aqui neste livro estamos mostrando que isso só será possível se suas armas consistirem num ativismo

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situado entre a luta armada e o conformismo. Ou seja, nem luta armada nem conformismo lambe-botas, pois, se a luta armada investe, necessariamente, na destruição da vida, o conformismo anula o ser e sua potência de resistir e de criar.

Uma conexão ativa dos pobres do mundo não tem forma, faz-se como signos que se distribuem como se-mentes. Defendemos, aqui, todavia, que há instituições as quais, embora frágeis (como a literatura), articulam alguma forma de sintaxe – a exemplo da Comuna de Paris, cujos rastros e restos nos permitem não apenas pensar e mobilizar uma crítica de toda e qualquer forma de domi-nação, mas construir, no espaço público e com assembleias populares, outras instituições, com e contra as leis, que tornem o funcionamento do Estado como uma instituição de direito público e, por isso mesmo, condenado a perecer juntamente com o capital.

Neste capítulo, confrontado com o primeiro, devemos prestar atenção ao menos em dois movimentos: o funcio-namento da literatura e suas instituições no Brasil, país que ainda não passou sequer por uma reforma agrária rigorosa, e o lugar da literatura em países que já fizeram não só uma reforma agrária, mas uma revolução. No pri-meiro caso, embora possamos ostentar uma verdadeira revolução formal acompanhada de uma forte liberdade de expressão, ainda não fizemos a literatura chegar às comunidades e periferias, como uma política pública e de direitos linguísticos e literários, em que não só sejam

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acessados os clássicos e universais, mas, igualmente, haja acesso aos modos de produção e gestão das representações locais, abrindo e disseminando daí um outro mercado cul-tural e simbólico. No segundo caso, por sua vez, surge uma imagem muito clara da repressão aos processos criativos e artísticos por parte do Estado, mas, por isso mesmo, uma outra maturidade literária por parte dos escritores que, resistindo aos dispositivos e violências, têm investido mais numa literatura de testemunho e na autobiografia como condição não só de pesquisa do real e do sentimento hu-mano, como ainda de um deslocamento da literatura e seu engajamento com a política de Estado.

Assim, como toda e qualquer forma de Estado é uma construção cultural – bem como suas relações com a religião e o capital –, cabe, então, à literatura, em sua fragilidade institucional, continuar devassando tais rela-ções como seu objeto de pesquisa, cujos resultados, sem finalidade, apontem para o direito de cada vivente a dar forma ao seu tempo e espaço, além de empenhar sua vida como um estilo e afirmação de sua existência. É disso que trataremos nos tópicos deste capítulo.

MODOS DE fALAR, MODOS DE LUTAR

Ao posicionar-se como marxista, derridiana e crí-tica pós-colonial num contexto, considerado por ela, democrático-burguês (os Estados Unidos dos anos de 1980), Gayatri Spivak2 defende o argumento de que os

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subalternos não falam por três motivos: 1) quanto mais baixa a sua condição social, mais submetidos e enredados numa violência epistemológica e quase metafísica; 2) estão desprovidos de representação política e legal que os faça ser ouvidos; 3) estão aprisionados à lógica da mercadoria e seu consumo, por isso sem condições de reverter seu sinal e superá-los.

Combatendo e confrontando intelectuais franceses, a exemplo de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guatta-ri, além de, indiretamente, intelectuais ingleses da chamada New Left, Thompson, Raymond Williams, entre outros, por esses intelectuais ainda persistirem na manutenção do “sujeito do Ocidente ou do Ocidente como sujeito”, a autora vai sugerir, na linha de um stalinismo crepuscular do início dos anos de 1980, que o Outro do Ocidente não é apenas aquele significante que “delira” nos processos de investigação intelectual, mas, concretamente, aqueles países que implantaram um socialismo real e que foram capazes de confrontar o imperialismo.

No lugar da proposição “o subalterno não fala”, apre-sentamos uma proposição paralela: ele falaria se fosse um proletário (pois defende que nem todo marginal é subalterno), iluminado por uma minoria revolucionária portadora de uma teoria da luta de classes (os detentores de uma teoria da ideologia: hegelianos e marxistas), e que, através de suas organizações de classe (sindicatos, partidos, Estados e suas correias de transmissão), não só

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interpretasse os simulacros que envolvem a mercantili-zação da vida e das coisas, mas também transformasse essa falsa realidade, ou realidade fetichizada, a favor de uma socialização da riqueza para aqueles que, de fato, a produzem: a classe trabalhadora. Apenas a partir de uma politizada interpretação das leis, implicadas nos embates envolvendo a “divisão internacional do trabalho”, é pos-sível fazer os detentores dos meios de produção ouvirem sua voz e reivindicações.

Se essa proposição paralela, que se insinua e se esconde na ambivalência e urdidura de seu texto, faz sentido, então já estamos em condições não apenas de suplementar a pro-posição (o Oriente revolucionário pode esvaziar o trono do Ocidente), mas de demonstrar que tanto a micropolítica (severamente refutada pela autora) quanto o trabalho revo-lucionário originário do Oriente (ardilosamente escondido, talvez por pudor democrático-burguês) nos permitem dizer: nem Ocidente nem Oriente, mas uma multiplicidade de articulações e lutas rizomáticas pós-luta de classes.

É nesse sentido que a conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, em “Os intelectuais e o poder”,3 distingue a noção de luta contra a exploração capitalista de outra noção de luta contra o poder, sem que, enquanto tais, percam suas conexões rizomáticas. No primeiro caso, articula o proletariado e sua história, seus métodos, seus alvos, suas posições e ideologias; no segundo, alude àquilo que escapa à luta de classes, mas que implica uma luta contra o poder:

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em casa, nas prisões, nos quartéis, nos hospitais, nas escolas, nas igrejas, onde quer que haja dispositivos de vigilância, controle ou opressão.

Essa “descontinuidade geográfica” – ampliando e complexificando o espaço da luta de classes –, além de nos ajudar a repensar a noção marxista de totalização, nos ajuda a abrir caminhos tanto para pensarmos na existência e construção de outros dispositivos emergentes com a cada vez mais complexa “divisão internacional do trabalho” quanto para estudarmos, pesquisarmos, atualizarmos nossas teorias da revolução que, ao fim e ao cabo, devem funcionar nem como palavras de ordem, nem como dogma impondo a conceitualização dos acontecimentos antes de estudá-los e conhecê-los. Se o imperialismo estende os seus tentáculos a todo o planeta, explorando, oprimindo, assu-jeitando, cabe, onde quer que isso ocorra, reunir os signos dessa exploração e organizar a passagem de assujeitados para a condição de sujeitos dessa e daquela história local.

Se a luta contra o poder (em suas mais diversas ma-nifestações) e não apenas contra a exploração capitalista (própria da luta proletária) implica desvelar, descrever e anular outros dispositivos de controle, classificação, opres-são, reificação, fetichização, apagamento e silenciamento, com sua rede de funcionários e burocratas aplicando a lei e/ou se posicionando como soberanos no lugar da lei, então não se trata de dizer que há, em Foucault e Deleuze, um deslize quanto às noções de representação, seja ela como Vertretung (ato de assumir o lugar do outro numa acepção

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política da palavra) ou Darstellung (visão estética que prefi-gura o ato de performance ou encenação), mas, a exemplo da Comuna de Paris, de interpelar os sujeitos implicados no ato de representar se o seu papel é o de prescrever o que o Estado – em seu conluio com o capital – impõe ou o de representar um conjunto de coletivos (e não somente a classe trabalhadora) em busca de sociabilidades libertárias.

Um exemplo, entre inumeráveis, é o filme A história de Qiu Ju, de Zhang Yimou.4 Nele, uma camponesa grávida na China comunista, lutando para que o chefe local, agressor de seu marido, peça desculpas ou faça uma retratação pú-blica, esbarra em quase todas as instâncias da burocracia estatal chinesa até conseguir, na mais alta corte – e, em certa medida, contra a sua vontade –, que o chefe local fosse preso, embora ela quisesse apenas que ele se retratasse.

Nesse sentido, sua forma de luta e seus modos de enunciação são singulares e respondem a uma dobra do poder, como acontecimento: confronta o chefe local, expõe representantes do sistema de poder (a cada instância que interpela e supera em sua vontade de justiça), mobiliza seus parcos recursos de camponeses pobres para despesas e honorários com os administradores da justiça, ativa sua sensibilidade e inteligência, à medida que os desafios vão se colocando durante seu processo de luta e enfrentamento.

Assim, ao contrário do que a teoria de Spivak exige, Qiu Ju não só fala e se faz ouvir – dobrando, esvaziando e jogando as estruturas de poder contra si mesmas –, mas

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faz o sistema de poder (reativo) também falar. O filme A história de Qiu Ju teoriza de forma mais radical a relação entre luta proletária contra a exploração capitalista e luta minoritária contra o poder da teoria pós-colonial que atravessa o texto Pode o subalterno falar?

De um lado, coloca-se a representação (Darstellung) de uma camponesa em sua atividade communard, abrindo mão da sua representação (Vertretung) pelos possíveis representantes (que sairiam dos coletivos da aldeia, mas que são silenciados) e funcionários do poder (que apenas prescreveriam ou estariam acima da lei). De outro, a repre-sentação (Darstellung) de uma teórica pós-colonial em sua atividade democrático-burguesa, forçando a execução, a priori, de uma teoria da ideologia que, em vez de prometer e praticar a desmontagem completa do Estado capitalista, apenas prolifera sua mistificação e fetichismo.

Se Spivak posiciona-se teoricamente como uma revo-lucionária ao afirmar, por linhas tortas, que a diferença radical do Ocidente é o Oriente revolucionário, no en-tanto, como democrata burguesa, inviabiliza o tempo e o espaço da revolução – em sua anacronia, multiplicidade, coexistência de temporalidades – pela repetição do mesmo etapismo que fundamenta o materialismo histórico que, além de estranho à obra de Marx, revelou-se insustentável com o desvio stalinista.

É certo que, em relação às teses de uma autora do Primeiro Mundo, apegada ainda a alguns valores do

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Segundo (aquele stalinismo crepuscular) para iluminar o Terceiro Mundo, no início dos anos de 1980, muita coisa mudou nesses últimos 30 anos. Em Multidão, Toni Negri e Michael Hardt5 não só veem e tematizam, além do povo e do proletário, a legião communard de pobres, esvazian-do e reinventado os dispositivos em novos contextos do Império, mas também propõem outro roteiro que inclui outros atores deixados de fora pelo marxismo oficial e abrem novas formas de operar com a noção de comum e de riqueza.

Primeiramente, argumentam que a teoria do trabalho não inclui o lumpemproletário (o desempregado, o men-digo, a sobra ou “exército” de reserva do capitalismo), que também cria, produz, organiza-se em bandos e coletivos transvaloradores. Em seguida, afirmam que, se há uma homogeneização reativa por parte do Império e seus asseclas, a resposta dos pobres – sobre os quais incidem os simulacros e falsos valores – é inverter a política e suas exigências burocráticas por uma biopolítica, em que tomam, à sua maneira e com seus recursos semióticos, o seu próprio corpo marcado, faminto, excluído dos pa-drões do corpo dócil e útil do mundo do trabalho, como uma linha de fuga ou lugar de produção de resistências, fazendo derivar daí a noção de comum, comunal, como uma prática de vida. Por fim, dizem que há nessa pobreza criativa, transvaloradora e comunal, uma inesgotável fonte de riqueza não expropriável.

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Se há no Império um sistema de controle e vigilância que tende a tornar todo e qualquer ser humano numa espécie de centro de documentação, capturando seus desejos e imunizando os corpos, a legião de pobres, criativos, transvaloradores e em atividade comunal, se (des)anarquivam, permanentemente, à medida que tomam seus próprios corpos como um significante do resto, do anacrônico, do despejado de uma língua, cultura, território e morada do ser.

Num gesto de pura profanação ao American way of life, Giorgio Agamben, em Altíssima pobreza,6 investiga e de-monstra como dos séculos IV ao XIII foram estabelecidas, nos monastérios da Idade Média, as regras e liturgização de vida, bem como sua desconstrução através dos franciscanos e sua forma de vida. Os dispositivos de poder que formam, conformam e permitem operar esse conjunto de regras e normas não só expõem a religião como cultura humana, demasiadamente humana, mas a religa ao Estado e ao ca-pital, daí as razões de seu vigor nas chamadas democracias e/ou autocracias contemporâneas.

A vida no monastério pressupunha que, além da doação de todos os bens à Igreja, como uma primeira condição, o monge devia seguir as regras estabelecidas para o seu dia a dia: da hora de levantar, orar, fazer suas refeições, realizar a leitura das Escrituras, aos trabalhos de limpeza e orga-nização internas. Assim, da vida que seria solitária, nasce, conforme Agamben, “um modelo de vida comunitária

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integral”,7 em que se compartilhava um lugar, uma veste, um habitus, mas fundado na regra da obediência:

Aquele que pede para ser admitido no mosteiro é submetido durante 10 dias a humilhações e insultos para testar a seriedade e a constância de seu propósito: “jogando-se de joelhos diante de todos os irmãos que passam, é por todos expressamente re-jeitado e desprezado, como se não quisesse entrar no mosteiro por religião, mas por alguma necessidade prática”. Uma vez que ele tiver suportado tais provas com paciência e humildade, dá-se atenção especial à deposição das velhas vestimentas e à assunção do hábito monacal; mas também esta não basta para que ele seja admitido a pleno título entre os irmãos e durante um ano inteiro deverá ficar na entrada do mosteiro sob a orientação de um an-cião. A admissão à condição de monge depende da tenacidade do noviço e de sua capacidade de observar a regula oboedientiae.8

Tais regras, normatizações e processos, além de criados e administrados pela Igreja, tinham por base as Sagradas Escrituras que deviam, cotidianamente, ser lidas (memo-rizadas), para fundamentar a meditação, prescrever as orações e encerrar a contemplação.

Essa ambivalência do sistema religioso, que combina regras e normas de construção da pobreza dos monges, de um lado, e da riqueza e de todo o poder da Igreja, de outro, vai sofrer profundas alterações ao longo dos séculos XI e XII, a partir dos “movimentos religiosos” desencadeados na França, Itália, Flandres e Alemanha, com destaque

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para os franciscanos que, em vez de obedecerem às re-gras e normas de vida estabelecidas há séculos para os monges, optam por um estilo de vida fundado não mais através das prescrições dos mosteiros, mas conforme o Novo Testamento e as orientações de Jesus de Nazaré. Os franciscanos, conforme Agamben, vão abrir mão da propriedade e afirmar a existência ou forma de vida fora do direito canônico: portanto, o direito natural de uso das coisas, sem possuí-las, a favor da emergência de uma forma de vida não aprisionada a regras e normas.

Nesse sentido, as lições dos franciscanos são bem radicais: primeiro, não fazem questão de ser pobres, ao contrário, afirmam a pobreza em seu extremo, sem pro-priedades de qualquer natureza, apenas o direito natural de uso das coisas; segundo, esvaziam o direito em seu poder de legitimar a propriedade e o consumo, bem como a forma de vida; terceiro, organizam uma fala ou enuncia-ção que implode tanto o discurso das regras e das normas quanto o do religioso dogmático, afastado da experiência e afirmação de uma forma de vida segundo a doutrina de Jesus de Nazaré; quarto, desmontam o Estado (pela via do direito canônico) e a Igreja (pela via das regras monásticas e do dogmático), bem como afirmam a vida como uma espécie de poiética, fazendo emergir uma interpretação do Evangelho articulada à experiência e engajando a forma de vida num estilo. Temos aqui, então, uma espécie de paradigma do terrorismo9 em seu sentido mais afirmativo e inquietante.

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Se o direito é a forma de naturalização da razão e poder do Estado sobre a vida das pessoas em sociedade, fazendo avançar a forma de naturalização da razão da Igreja sobre o sentido metafísico da vida das pessoas em sua existência e não existência (a sua morte), então questionar o direito (no caso dos franciscanos, o canônico) e suas prerrogativas de legitimação do que seja a forma de vida, para os homens em sociedade, é abrir um campo de lutas além de originário, extremamente necessário.

O que aconteceria, hoje, sob a égide do Império, se a legião de pobres (cerca de dois terços da humanidade) procedesse como os franciscanos, questionando o direito de propriedade e de herança, afirmando sua condição de despejados e reivindicando o direito natural de uso das coisas materiais existentes? Qual escritura ou livro sagra-do deveria ser lido não para ser memorizado, decorado e transformado em palavras de ordem, mas para funcionar como uma teoria da bioficcionalização e um modo de desmontagem de um si forjado nos laboratórios da bru-talidade e da violência epistemológica?

Nas sociedades de controle10 não há mais necessidade de mosteiros, prisões, hospícios, campos de concentração para se impor uma regra de vida ou de morte, pois a confu-são entre a realidade das formas de vida e as formas de vida como simulacro e fetichização ameaça permanentemente destituir os critérios para a criação e a invenção de modos de vida como obras de arte por cada ser humano, onde quer que habite. Contudo, a contraposição a esse direito

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de vida e de morte parece implicar sempre a emergência de um enunciado subalterno situado entre a naturaliza-ção de uma fala (a do mundo das seduções fetichistas) e a memorização vigiada dos textos sagrados. Nem Obama, nem Osama, o que seria, pois?

DOSTOiEvSki E SEUS DUpLOS: ANTíDOTOS à cOMéDiA STALiNiSTA

Nos personagens de Dostoievski, produz-se muitas vezes algo bastante curioso, que pode dizer respeito a um pequeno detalhe. Geralmente, eles são muito agitados. Um personagem sai de casa, desce até a rua e diz: “Tânia, a mulher que amo, me pede ajuda. Vou correndo, ela morrerá se eu não for.” Ele desce a escada e encontra um amigo, ou vê um cão atropelado, e esquece, esquece completamente que Tânia o espera, à beira da morte. Ele se põe a falar, cruza com outro camarada, vai até sua casa tomar chá e, de súbito, diz novamente: “Tânia me espera, é preciso que eu vá.”

O que significa tudo isso? Em Dostoievski, os personagens são perpetuamente vítimas da urgência e, ao mesmo tempo em que eles são vítimas dessas urgências, que são questões de vida ou morte, eles sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual. E é isso que os paralisa. Tudo se passa como se, na maior urgência – “É um incêndio, é preciso que eu vá” –, eles se dissessem: “Não, existe algo ainda mais urgente. Não moverei um dedo até saber do que se trata.” É O idiota (romance de Dostoievski filmado por Kurosawa). É a fórmula de O idiota: “Veja, há um problema mais profundo. Qual problema, não saberia dizer ao certo. Mas me deixe. Tudo pode arder… É preciso encontrar esse problema mais urgente.”

Gilles Deleuze, “O ato de criação”.

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Químico

…Agora podemos constatar com segurança que Dostoievski em estado puro é mortal.

VendedorE o que fazer?

QuímicoPrecisamos diluir.

VendedorCom o quê?

Químico (refletindo)Bem, vamos tentar com Stephen King. E então veremos.

Vladímir Sorókin, Dostoiévski-Trip.

O excerto, acima, de “O ato de criação”,11 é sobre o que é ter uma ideia num dado domínio do conhecimento – literatura, cinema, teatro, filosofia, ciências em geral – e expressá-la conforme a especificidade semiótica desses do-mínios, tendo por ponto de articulação, entre eles, o espaço e o tempo. Esse texto ganha outras dobras e redobras se o conectarmos com o romance The Master of Petersburg, de Coetzee,12 e com o texto dramático Dostoiévski-Trip, de Sorókin,13 e propusermos uma ideia, nesse sentido deleu-ziano, no âmbito da crítica cultural.

Se os personagens de Dostoievski implicam a drama-tização de problemas urgentes, sempre mais urgentes, a ponto de se paralisarem, em busca de saber e estabelecer um problema ainda mais urgente, o que dizer sobre o estado de espírito daqueles sujeitos que, por força da ocidentali-zação do mundo, perderam sua língua, cultura, território

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e própria identidade? Qual a urgência de outra língua, cultura e território para a legião dos pobres em suas ativi-dades e lutas comuns? Ou, de outra perspectiva, se o texto de Dostoievski é a duplicação e encenação de um limite, a que letargia, constitutiva das estruturas de subjetivação, esse texto se opõe?

Em Coetzee, o ser sem morada, que perambula de rua em rua, de cidade em cidade, de um extremo a outro das linhas constitutivas do humano, é o escritor. Em busca de saber o que teria acontecido com seu enteado de 20 e poucos anos, se teria suicidado ou sido assassinado por conta das lutas estudantis lideradas pelo anarquista Sergey Netchaiev (1847-1882), o escritor Dostoievski, em outubro de 1869, pouco mais de um ano antes da eclosão da Comuna de Paris, deixa sua (enésima) mulher na Alemanha em direção a São Petersburgo.

Recolhendo sinais, pistas, gestos, documentos que o le-vassem, de fato, a saber o que acontecera com seu enteado, o escritor-personagem se envolve com a dramatização e o questionamento do sentido de ser pai – pelo enteado ao longo dos mais de 10 anos de adoção; pela jovem esposa, que tinha quase a mesma idade de seu filho/enteado; pelos amigos e amigas do filho; pelo seu ferrenho adversário político, o líder anarquista mencionado; pela polícia, em suas investigações; e pelo próprio pai (personagem-escri-tor) com seus fantasmas patriarcais. Mas expõe também as fraturas ocidentais quanto ao lugar da criança na vida

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e no espírito do adulto, bem como em relação ao lugar do adulto na vida e no espírito de crianças e jovens.

Assim emerge uma primeira série de duplos: o fantas-ma do enteado-morto que assombra o padrasto em suas elucubrações metafísicas e o sujeito soberano que assalta o espírito do jovem Netchaiev em sua prática política, cuja regra nº 1 de seu catecismo revolucionário é: “O revolucionário é um homem que sacrificou sua vida. Não tem vínculos empregatícios, laços pessoais, sentimentos, cabrestos ou propriedades, nem mesmo um nome… Um único pensamento, uma única paixão: a revolução.”14

Essas duas séries de duplos se multiplicam e se com-plexificam: das tensões fantasmáticas, o filho/enteado que se torna poeta e que escreve inspirado no pai/padrasto; a polícia que censura a escrita do filho/enteado como se fossem escritos de agitação do pai; o pai que escreve sob pressão de guerrilheiros para falsificar/encenar uma sentença de morte; um diário escrito pelo filho/enteado que perlabora a criança que teria sido entre a convivência com o pai biológico e o pai adotivo; a polícia que teria as-sassinado o filho revolucionário com suspeita do pai, um agitador por suas obras; um escritor que interroga a Deus como se fosse o seu duplo, o outro da escrita e condição da criação; do sujeito soberano que assalta o espírito do adolescente, o ataque aos pais pelo seu desprezo aos filhos ou a negação da criança que os habitaria; o desprezo aos in-telectuais pelo apagamento da imagem do homem do povo

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que o encarnaria; a figuração do discurso revolucionário e materialista como se fosse a de um profeta e espiritualista; os apetrechos e performances para o rosto revolucionário entre a vida pública e a clandestina; a língua da revolução e a da física, química, mecânica e um pouco de medicina, pois um dos principais dispositivos dos revolucionários são os explosivos.

O ser sem morada, aqui, então, tem dois sentidos, um negativo, outro positivo. O negativo implica a morte do pai pelo filho rebelado ou a busca da criança, em si, por parte do adulto para que o sujeito ultrapasse a lógica de confi-namento do patriarcado e se afirme como um ser humano, demasiadamente humano. O sentido positivo do ser sem morada implica a condição necessária do revolucionário.

Assim, uma primeira consequência dessa dramatização da primeira ordem de despejo (a do ser e sua morada) é responder ou criar as condições para a superação do es-tágio letárgico que envolve os processos de subjetivação do homem como imagem de Deus, bem como do homem como originário do macaco. Nem Deus nem macaco, mas um ser que, ainda por construir, deve estabelecer outros fundamentos a partir da encenação linguística e da cultura política.

Outra série de duplos mobilizada pelo Dostoievski, escritor-personagem de Coetzee, é a que envolve a nação como lugar geográfico e linguístico de um povo. Como lugar geográfico, a primeira resposta devastadora é: nem

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sob o crivo monárquico nem sob o republicano (a exemplo dos países europeus ou os até então existentes), mas um sentido de nação que se aproxime daquele defendido pe-los anarquistas: uma miríade de comunas, associações de homens, mulheres e crianças articulados por uma cultura política como prática da liberdade, respeito e solidariedade.

Ao longo de toda a discussão entre o escritor-persona-gem Fyodor Mikhailovich e Nechaiev, em The Master of Petersburg, vislumbra-se uma nação russa, mas sem seu território dominado pela burguesia ou pelo Estado, inde-pendentemente de quais fossem suas formas de governo. Com esse perfil, o povo constitutivo desse Estado-nação não seriam nem os súditos do rei nem a massa de mano-bra para o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, mas um conjunto de coletivos organizados em comunas, associações, com autonomias para sua autogestão.

A língua ou o conjunto de línguas que dariam forma e que seriam os dispositivos de enunciação desses coletivos são uma espécie de língua menor que opera entre o discur-so da burguesia e o da monarquia e articula associações e organizações internacionais do trabalho autogestionário.

O sentido jurídico-político desse Estado-nação resul-taria na construção pública e politizada da lei e de suas implicações, de modo que o direito sempre fosse questio-nado e não apenas aplicado.

Assim, a segunda consequência dessa dramatização da segunda ordem de despejo (a do despejo cultural) é

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responder ou criar as condições para a superação do es-tágio letárgico que envolve o espírito político do homem, ainda perdido entre a lei religiosa que forma e conforma o discurso jurídico-político do Estado e a execução dessa lei que, contraditoriamente em nome do povo, pelo povo e para o povo, distribui os soberanos em toda rede de re-presentação, além de conferir-lhes espaço para estarem, quando convier, acima da lei.

Por fim, a criação de um duplo mais radical e inquie-tante: “Eu escrevo perversões da verdade. Eu escolho o caminho torto e levar as crianças a locais escuros. Eu sigo a dança da caneta.”15 Se uma precondição para o estabele-cimento do espaço público da comuna é o agenciamento das marcas nos corpos e processos de subjetivação dos communards, pois sem isso não seria possível identificar e historicizar os instrumentos de tortura e seus autores e suas instituições, então o funcionamento da comuna como espaço de debate e desmontagem dos discursos de opressão e de poder reativos, com os encaminhamentos de seus decretos, formas de execução e estabelecimento do sentido e lugar da representação política (Vertretung), teria que ter uma dupla função: o poder de representação ser um espaço vazio, preenchível de acordo com as necessidades e os consensos locais, assim como o texto de “perversão da verdade” seria uma forma alternativa de esvaziamento da lei, da força de lei, a favor de que, através do torto, se organizem outras linhas retas diferenciais, paralelas,

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cruzadas como expressões do espaço e temporalidades das culturas políticas libertárias.

Assim, a terceira consequência dessa dramatização da terceira ordem de despejo (a do despejo linguístico articu-lado a um território da enunciação política) é responder ou criar as condições para a superação do estágio letárgico que envolve a indiferença relativa à perda do espaço público e sua língua revolucionária (e não apenas burocrática) de articulação.

Daí o espaço escuro – oferecido ou construído com os jovens ou como devir criança do adulto (não é à toa que os encontros do escritor-personagem com o fantasma de seu filho/enteado rebelado ou com o líder dos jovens russos se deem sempre em espaços clandestinos ou à meia-luz) – se constituir, em Dostoievski, como devir histórico do homem e seus processos revolucionários.

Contemporâneo do Coetzee sul-africano, o russo Vladímir Sorókin se apropria da matéria-prima, das má-quinas e da fábrica de produção de duplos de Dostoievski, situando-os no “escuro” ou em trevas pós-soviéticas, para tratar de outra desterritorialização linguística, cultural, territorial e ontológica, bem como para responder a outras letargias.

Fazendo parte de um movimento pós-modernista dife-rencial russo aberto a partir de 1990, com a desagregação das repúblicas socialistas soviéticas, Sorókin, assim como Viktor Ierofiéiev, Mikhail Epstein, entre outros, vai reler

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a obra de escritores russos do quilate de Dostoievski como uma espécie de lugar arqueológico para se repensarem as ordens de despejo russo advindas com a “comédia stali-nista” “encenada pelo regime soviético sobre um imenso palco da Eurásia e que teria despertado em seus especta-dores sobreviventes (…) as impressões mais pessimistas e desesperançadas com relação à natureza humana”.16

Em três atos, a peça Dostoiévski-Trip apresenta-nos sete personagens (cinco homens e duas mulheres) sem nomes (apenas numerados) no primeiro ato; como se fossem personagens do romance O idiota, no segundo ato; e de novo sem nomes, mas com breves biografias, no terceiro ato. Contracenam entre si, no primeiro ato, tratando da leitura de clássicos ocidentais como se fossem alguma espécie de narcótico com seus efeitos diversos, enquanto aguardam a chegada de um traficante – os livros (tornados pílulas) é como, disse, uma espécie de droga – que depois de muita demora, chega, e apresenta-lhes uma droga mais forte: o romance O idiota.

Sob efeito dessa nova droga, subitamente todos os sete personagens se transformam em personagens do romance (Nastácia Filíppovna, Príncipe Mychkin, Ippolit, Liébedev, Gânia Ívolguin, Vária Ívolguina, Rogógin) e cada um co-meça uma série de delírios levada ao seu limite: um, com a queima deliberada de milhões de rublos numa lareira; outro, com a vontade de fecundação de todas as mulheres de países e continentes; outro, com os nervos de príncipe

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transformados em cordas de violinos tocadas pelo povo; outra, com mulheres lésbicas sendo arrastadas para uma espécie de cidade das mulheres; um outro, como devorador de esgotos. Isso até passar o efeito da droga e todos mor-rerem, no terceiro ato, com suas identidades numéricas, e depois dos relatos (entre eles) de suas biografias em formato minimalista – um perito em matar ratos que goza ao ser masturbado por um desconhecido numa viagem em trem lotado; outro que falha ao adestrar cachorro de caças, por isso é ameaçado de morte pelo avô; um que tinha o cu frouxo, relativo a um pinto pequeno; outro que tinha a perna azul; outro que fornicava com a própria mãe; outro que, durante o segundo ano de cerco dos nazistas, vivia no porão de uma casa em ruínas e que saía à cata de lixo para se alimentar, até terem (com seu irmão e outros entocados) a ideia de coletar bundas de cadáveres, transformá-las em almôndegas (alimento dos membros do comitê do Parti-do) que tinham a função de fazê-los vomitar e que eram trocadas por pão, cigarros etc. A peça é encerrada com um diálogo entre o vendedor e o químico: conteúdo da segunda epígrafe com que iniciamos este tópico.

Por que Dostoievski “em estado puro seria mortal” para a cultura política pós-soviética? Talvez uma respos-ta possível e plausível fosse: se antes da perseguição aos anarquistas, com a Segunda Internacional comunista e depois do fracasso da Comuna de Paris, os seus duplos, em perspectiva libertária, constituíam um lugar de exploração

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e pesquisa da alma russa, e, com a “engenharia das almas” proposta e posta em movimento pelo stalinismo, não só a literatura seria perseguida e perderia seu espaço de experi-mentação, mas o sentido de existência do ser humano bem como o próprio sentido de revolução e de revolucionário seriam anulados em nome da falsa emancipação que es-truturava a “comédia stalinista”.

Os duplos – dialéticos e paradoxais em perspectiva libertária – tornar-se-iam, em contextos pós-soviéticos, aprisionados pela (i)lógica do realismo socialista. Assim, em lugar do revolucionário sem nome, apaixonado pela revolução, ou do escritor sem morada, escrevendo epi-táfios sobre os túmulos dos deuses mortos, temos apenas corpos drogados, catalogados para morrer, destituídos da potência de imaginar e de bioficcionalizar suas histórias.

Ora, se em Dostoievski-Trip, de Sorókin, a literatu-ra é tratada como uma droga, fabricada por químicos, manipulada por traficantes e com a função, senão de matar, ao menos, de aliviar a fissura de seus usuários, a ordem de despejo ontológica, promovida pelo stalinismo, seria não apenas a do despejo do ser – a exemplo daquela promovida pelos colonizadores europeus ao ocuparem a América –, mas a da inviabilização da possibilidade de pensá-lo, representá-lo e dizê-lo.

Assim, a primeira consequência dessa dramatização da primeira ordem de despejo (a impossibilidade de bioficcionalizar o ser), em Sorókin, é responder ou criar as condições para a superação do estágio letárgico que

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envolve o espírito do materialista dialético, ou melhor, do stalinista tardio que, ao contrário de Lenin e Trotski, vetou a dialética ao criar uma literatura proletária em vez de explorar, de um ponto de vista socialista, a potência da literatura burguesa, além de inviabilizar a experimentação e a pesquisa acerca do fetichismo das mercadorias como condição para o estabelecimento de um horizonte de superação da luta de classes.

Se a exploração da potência da literatura, arte e cultura burguesas, por parte dos trabalhadores e oprimidos em seu processo de leitura e desmontagem dialética, foi inviabili-zada pela literatura proletária, ou pelo realismo socialista, que impõe um modelo de trabalhador e de proletário que o fixa e o perpetua na história, além de suprimir a experi-mentação e a pesquisa acerca do fetichismo pela facilidade das “palavras de ordem” ou da “conceitualização” dos acontecimentos sem investigar sua emergência ou pro-veniência, então é o próprio território da possibilidade permanente da revolução, com seu imaginário sempre em movimento, suas seduções, entre outros afetos, que se esvai, que se esvazia, que encontra seu limite.

Assim, a segunda consequência dessa dramatização da segunda ordem de despejo (o território da imaginação revolucionária), em Sorókin, é responder ou criar as con-dições para a superação do estágio letárgico que envolve o retorno desenfreado do fetichismo das mercadorias num contexto em que os duplos e suas possibilidades estão aprisionados.

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O que resta, então? Sorókin propõe que, além de uma arqueologia da literatura clássica e pré-stalinista, experi-mente-se uma bricolagem da obra de Dostoievski com a do escritor de literatura de terror Stephen King, posto que aquele “em estado puro é mortal”, e este, um produto para consumo da multidão. Aqui, por princípio, já teríamos um retorno em diferença da fabricação de duplos. Mas como perspectivar uma forma nesse sentido?

A terceira consequência dessa dramatização da ter-ceira ordem de despejo (a língua duplicada), em Sorókin, é responder ou criar as condições para a superação do estágio letárgico que envolve o apego humano à fixação parasitária de um sentido único produzido tanto pela lógica do fetichismo quanto pela sua negação esquemá-tica e mecanicista, apostando, assim, no gesto humano, demasiadamente humano, de dar forma e nomear aquilo que vem em relação a um estilo de vida comum fundado na multiplicidade dos encontros.

Se há uma lógica de constituição do duplo – fundada na perspectiva de um anarquismo libertário que dá forma a uma Rússia forte, ao contrário da lógica de aprisiona-mento desse duplo pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em sua versão stalinista que, além de inviabili-zar a literatura, desmonta e destrói a possibilidade do ser revolucionário –, então, não se trata mais de oporem-se anarquistas a marxistas (a menos que estes sejam stalinis-tas), mas de vislumbrarem-se as tarefas revolucionárias de uma comunidade que vem em suas formas duplicadas

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(se um tem por tradição incendiar as instituições, o outro ocupa parlamentos como espaços transitórios; se um in-veste todas as suas forças no perecimento do Estado e dos valores burgueses, o outro defende antes a ocupação do Es-tado e sua mudança de função como instituição de direito público, além de propor a incorporação e desapropriação da lógica burguesa por dentro de seus signos e fetiches) como condição de emergência de outros sujeitos políticos.

A pobreza absoluta, mais do que a condição humana submetida à ausência do básico para sobreviver, seria estar desprovido do exercício da linguagem para enunciar-se e abrir-se a historicidades. Daí o sentido da matéria-prima, das máquinas e das fábricas dostoievskianas.

LiçõES DA chiNA

Como não havia mais vaga no alojamento, tive de me acomodar num depósito de materiais, onde todas as noites um bando de ratos vinha me perturbar. Um deles até fez um ninho na minha mala e teve lá vários filhotes. Durante anos continuei achando que as minhas roupas e os meus lençóis ainda fediam a urina de rato. Achei no estoque uma dúzia de estátuas de gesso do presidente Mao e coloquei todas na porta de entrada e ao lado da minha cama, como vigias. Alguns amigos do círculo literário vinham me visitar. Quando, depois de contornar todas as barreiras de vigilância do Exército, chegavam em meu quarto e viam o que eu tinha feito, diziam que eu era o cara mais poderoso da China, porque tinha como vigias particulares uma dúzia de presidentes Mao.

Mo Yan, Mudança.

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Para o escritor que escolhe a literatura de testemu- nho, as coisas são, obviamente, bem claras: ele usa personagens e fatos reais ou usa sua própria experiência, e sua criação literária é, em última análise, limitada por esse contrato que ele estabele- ce consigo. E se aceita as regras e vai em busca do real, a presença ou não disto torna-se o juízo de valor que o coloca acima de tudo.

Em comparação com a história, o testemunho da literatura é sempre mais profundo. (…) Além disso, é passível de a realidade ser escondida pela história? Quando o escritor parte em busca da realidade oculta da história, restaura a memória perdida, mais do que exumar documentos históricos frios, é mais importante contar com a experiência de vida, a sua própria ou a de seus parentes, e então este tipo de testemunho naturalmente traz a marca da autobiografia e da biografia.

Digamos adeus à ideologia… digamos adeus ao historicismo rígido... digamos adeus à subversão da linguagem.

Gao Xingjian, Le témoignage de la littérature, tradução minha.

A partir de três livros seminais contemporâneos sobre a China – Zhou Enlai: o revolucionário perfeito, de Gao Wenqian,17 Mudança, de Mo Yan,18 e Le témoignage de la littérature, de Gao Xingjian19 –, podemos tematizar outras noções relevantes sobre a luta desarmada dos subalternos. No primeiro, a imagem do Estado como uma construção cultural levada ao limite; no segundo, como sobreviver à revolução cultural, num contexto autoritário, fazendo

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do silêncio uma forma de expressão; e, finalmente, no terceiro, como estabelecer o corte entre a literatura e a política (esta com suas prescrições e vontade de controlar) como condição para que aquela seja um modo radical de pesquisa do real e do sentimento humano.

A biografia política de Zhou Enlai (1898-1976), pri-meiro-ministro chinês durante a era Mao Zedong (1949-1976), escrita por Wenqian, mais do que apresentar a trajetória política de um homem público (de sua formação política às organizações de eventos e atos, públicos e clan-destinos, próprios da vida revolucionária, passando pelas tarefas burocráticas aos modos de resistir e sobreviver aos golpes baixos do cotidiano da vida política), é um jogo de cartas sobre o teatro da vida política da China comunista, bem como sobre o movimento e o uso do Estado como instituição de direito privado (em nome do Estado como de direito público e popular).

As formas articuladas por Zhou Enlai e todo o conjunto de políticos filiados ao Partido Comunista Chinês, desde sua fundação em 1921, demonstram como a estrutura do Estado foi construída tanto para superar aquele modelo de Estado democrático-burguês, instituído uma década atrás (em 1911), quanto para superar, também, o modelo estatal existente na União Soviética stalinista. Entre o Estado democrático-burguês e o soviético stalinista ou mesmo krucheviniano, propõem-se as Comunas Rurais Popu-lares, inspiradas na Comuna de Paris20 ou nas soviéticas

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anteriores ao stalinismo, tendo os camponeses – não os operários e os militares – como atores principais.

Para chegar a esse ponto, vale relembrar algumas imagens do movimento político revolucionário na China. Primeiramente, destaca-se que sua revolução democrá-tico-burguesa, responsável por destituir do poder uma dinastia milenar, se deu em 1911, para daí, sob um viés mais libertário e anarquista, ir se formando uma cultura nacionalista. Em segundo lugar, a eclosão do Movimento de Quatro de Maio de 1919, em consequência da Confe-rência de Paz, em Paris, do início daquele ano, que passa os territórios chineses, ocupados pelos alemães na província de Shandong, para os japoneses.

Estudantes e trabalhadores de toda a China que, até então, eram simpáticos às democracias ocidentais passam não só a confrontarem e demolirem os valores da cultura japonesa, principalmente os comerciais, existentes na Chi-na, mas a aderirem, cada vez mais, à perspectiva socialista recém-instalada na União Soviética. Em terceiro lugar, com a criação do Partido Comunista Chinês, em 1921, e a disseminação dos estudos marxistas, entre os círculos intelectuais, os trabalhadores e, principalmente, as massas camponesas empreendem um conjunto de lutas, por toda a China, a ponto de, em 1927, quase derrubar a burguesia e implantar o socialismo chinês, não fosse o apoio de Stalin aos nacionalistas.

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O apoio de Stalin aos nacionalistas, gerando massacres de trabalhadores e camponeses em várias regiões impor-tantes da China, implicou um importante divisor de águas: Mao Tse-tung não só escapa, com seu exército de campo-neses, mas reinventa a teoria da revolução socialista, agora com ênfase nos camponeses, na luta de guerrilha, e com perspectiva econômica não economicista, mas fundada no desenvolvimento cultural e econômico-diferencial das Comunas Rurais Populares.

Assim, proprietários de terras, camponeses ricos, cam-poneses pobres e trabalhadores sem terra, sob a orientação do Partido Comunista Chinês, não apenas derrubaram os nacionalistas em 1949, mas, ao longo de mais ou menos 30 anos (1949-1979), constituíram a base da reforma agrária e a instalação das Comunas Rurais Populares, cuja imagem geral seria: 1) a geração de pequenas proprieda-des; 2) entre 1949 e 1957, um reagrupamento, em etapas sucessivas, passando das cooperativas semissocialistas, em 1953, para as cooperativas socialistas ou coletiviza-ção, em 1955, formando, assim, unidades coletivas cada vez mais importantes; 3) a constituição da comuna num organismo no qual estivessem reunidas as atividades da agricultura, indústria, comércio, crédito, milícia, escola. Eram as chamadas “fazendas do Estado”. Uma comuna era constituída por 30 cooperativas socialistas, agregando cerca de 5 mil famílias, 4 mil hectares de terras produtivas e 9 mil trabalhadores.

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Até 1964, havia, por toda a China, cerca de 70 mil comunas, cuja unidade econômica era constituída pelas brigadas. Estas consistiam em equipes de produção, à maneira das cooperativas semissocialistas, onde cada uma assumia mais ou menos 22 hectares de terras produtivas.

Supunha-se que viveram aí de 26 a 28 famílias e 50 traba-lhadores. As diferenças principais dessas Comunas Rurais Populares para a coletivização soviética eram: a) a primeira se deu sem muitos conflitos, ao contrário da segunda, que se deu em meio a uma guerra civil; b) desapropriadas as terras, em nome do Estado, na China, os interessados se organiza-vam e aderiam ao processo comunal, pagando alguma taxa por isso e com algum direito na produção, conforme sua necessidade, resultante desse trabalho coletivo – na União Soviética, tudo era financiado e controlado pelo Estado –; c) a autoridade político-administrativa da Comuna Rural Popular concentra o poder da ordem, da lei e do partido, por alguém que emerge das bases camponesas; na União Soviética, tudo passa por uma burocracia técnica, com seu controle e prescrições.

Se cada comuna (das 70 mil disseminadas pela China) podia concentrar e explorar as mais diferentes atividades de produção – estas sempre fomentadas, induzidas ou impostas pelo governo – e considerando, ainda, que em 1964 a China já possuía 700 milhões de habitantes, então não só se podia vislumbrar daí uma potência econômica no futuro – como muitos analistas já o faziam, apesar do

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desastre de alguns planos econômico-culturais, como o Grande Salto para Frente (1958-1962) –, mas também uma verdadeira virada cultural envolvendo a comunidade camponesa.

Sem entrar no mérito da noção de exploração do traba-lho de uma multidão camponesa, em parte essa riqueza da China deriva de uma lógica, aqui descrita em linhas gerais, que combina: um corte no latifúndio, pondo em seu lugar as pequenas propriedades; uma suspensão, consistente, da possibilidade de exploração de mão de obra camponesa barata pelas empresas burguesas e multinacionais; um estímulo estatal à produção da riqueza nacional a partir de seus próprios recursos e organizações de trabalho; a diversidade de produção implicando uma complexifica-ção das habilidades trabalhistas, bem como a abertura de inumeráveis perspectivas para o mundo do trabalho e o mercado de bens e consumos.

A virada cultural camponesa viria, então, no meu ponto de vista, não da Revolução Cultural Chinesa, que, segundo Gao Wenqian, foi um movimento criado por Mao, sua mulher (Jian Qing) e a chamada Camarilha dos Quatro (Jian Qing, Wang Hongwen, Zhang Chunqiao e Yao Wenyuan) para impedir o surgimento de um “Kruchev Chinês”: aquele(a) que usaria os dispositivos do Estado, da arte e da cultura para denunciar os seus crimes, bem como para mudar a orientação da política comunista chinesa,

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abrindo-a à lógica do desenvolvimentismo econômico e ao mercado capitalista.

Embora faça algum sentido a ideia – que atravessa a Revolução Cultural Chinesa – de que camponeses possam reeducar os intelectuais – e os alunos, os seus professores –, sobretudo no contexto ocidental e oriental de imposição e hierarquização do saber como forma reativa de poder, a primeira lição chinesa para o resto do mundo e, princi-palmente, para o Brasil é: se apropriar das linhas de força da Comuna de Paris para esvaziar a “comédia stalinista” e socializar aos camponeses os dispositivos para o enten-dimento e o funcionamento da máquina estatal, sem que tais camponeses devessem, necessariamente, ter e/ou fazer uso de uma teoria do Estado.

As cozinhas e lavanderias coletivas, creches comuni-tárias, entre outras dezenas de milhares de exemplos de espaços coletivos que implodiam os hábitos das famílias camponesas e as colocavam no limiar entre o espaço pú-blico e o privado, ou, ainda, a reeducação dos intelectuais em trabalhos no campo, teriam não só constituído um en-tre-lugar para experiências notáveis quando da passagem de pessoas-objetos a pessoas-sujeitos, mas, principalmen-te, um laboratório para outro tipo de expressão política fundada em espaços, nesses casos também autoritários e permanentemente vigiados.

Em Mudança, relato autobiográfico do escritor Mo Yan (seu nome verdadeiro é Guan Moye), premiado com o No-bel em 2012, temos uma imagem precisa dessa expressão

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política – entre o completo silêncio e a astúcia dos gestos – que emerge em contexto fora dos padrões da democracia burguesa na qual se pode falar de tudo, contanto que não se mude nada, segundo István Mészáros em Para além do capital: rumo a uma teoria da transição.21

Mo Yan, que significa “não fale” (advertências de sua mãe, quando o escritor tinha 10 anos de idade, quanto a dizer no espaço público o que acontecia em casa), começa seu livro de memórias relatando os motivos por que fora expulso da escola, em 1969, aos 14 anos: botou, segundo conversa de corredores, o apelido de Sapo Boca Grande no professor de Matemática, Liu Tianguang, que, além de filho de mártir, era vice-diretor do Comitê Revolucionário de sua Escola Rural.

Além de expulsão formal, ainda levou socos, pontapés, puxões de orelha e toda sorte de violência física e moral tanto por parte do professor quanto pelos colegas mais velhos, aliados daquele, pois o menino expulso insistia em frequentar a escola, senão para estudar, ao menos para as-sistir às partidas de pingue-pongue jogadas pelas meninas “donas de pele de porcelana”, filhas dos funcionários da fazenda do Estado e oriundas de famílias ricas.

Ao longo de todo o relato autobiográfico de Mo Yan, nota-se a construção de uma performance que envolve a figura de um camponês que não vivia no interior de uma Comuna Rural Popular – a qual, como já dissemos, não era estendida universalmente a todos os chineses, mas se dava por adesão dos interessados. Como sua família não

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fazia parte dessa estrutura, tudo parecia ainda mais difícil: 1) em 1969, a expulsão da escola; 2) entre 1969 e 1976, em vez do trabalho duro na lavoura, um trabalho temporário numa fábrica de processamento de algodão em sua aldeia (Gaomi); 3) entre 1973 e 1976, decide tentar sua sorte no Exército de Libertação Popular, em vez da universidade, uma vez que, para isso, havia demasiada concorrência nas comunas, com privilégios para os filhos dos dirigentes; 4) em 1976, uma vez no Exército e, depois de muitas ten-tativas, situado numa posição de último escalão (vigia e lavrador), se dedica à literatura por sua própria conta; 5) entre 1978 e 1982, observado por seus superiores, é cha-mado para concorrer a uma vaga no Instituto do Exército de Libertação Popular, de sua seção/estação, desafio que encara sozinho com estudos autodidáticos que, infelizmen-te, são frustrados por essa vaga mencionada ser retirada de pauta, embora, por esses aprendizados autodidáticos – de trigonometria, por exemplo –, tenha conseguido o cargo de professor no batalhão de treinamento de Boading e sido nomeado oficial comissionado de treinamento; 6) entre 1981 e 1984, publica seus primeiros textos em revistas de grande circulação e é admitido pelo Departamento de Literatura do Instituto de Artes do Exército de Libertação Popular; 7) entre 1987 e 2009, tem seu romance Sorgo ver-melho filmado/adaptado para o cinema pelo diretor Zhang Yimou, realiza mestrado na Universidade de Pedagogia de Pequim e no Instituto Lu Xun de Literatura e participa

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da política cultural chinesa, avaliando obras e projetos populares, a exemplo da criação da companhia juvenil de maoqiang, um desdobramento da ópera maoqiang, transformada em patrimônio cultural da China; 8) realiza o sonho de seu pai, que seria o de se tornar um membro do Partido Comunista Chinês.

Nota-se na construção de sua performance autobio-gráfica um périplo condizente com o que defendemos, aqui, como expressão política tramada entre o silêncio e a astúcia dos gestos: o menino de 14 anos que, através da linguagem de corredores (sem confronto direto), afronta o professor, representante do Estado na escola, e por isso é expulso. Durante parte da adolescência trabalha numa pequena fábrica de processamento de algodão, mas, nas horas vagas, dedica-se à leitura dos clássicos chineses e à prática de escrever cartas para colegas de trabalho anal-fabetos, a ponto de ser chamado de “intelectual” em seu ambiente. Graças a esse distanciamento que a literatura promove, consegue ler sua realidade imediata e enfrentar os dispositivos estatais (a comuna, o exército, a escola, o partido) sem confrontá-los e se apropriando do que eles dispunham à margem, e como restos.

Foi assim que, como vigia e pedreiro, na Unidade de Inteligência do Ministério da Defesa, na verdade “uma estação de radiogoniometria prestes a ser desativada”, começou a escrever seus primeiros contos, ampliar sua leitura dos clássicos, assinar algumas revistas importantes e

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dedicar-se a estudos autodidáticos, visando a sua ascensão profissional.

Sua admissão no Departamento de Literatura do Insti-tuto de Artes do Exército de Libertação Popular indica, ao menos, duas cenas estético-políticas relevantes: a primeira, sobre o papel da arte na constituição do sistema comu-nista chinês; a segunda, em vez de um lugar de controle, uma dobra e um ponto de conexão libertária. Assim, o estilo autobiográfico de Mo Yan presente em Mudança, mas também em seus contos iniciais, a exemplo de “Uma corrida trinta anos atrás”, “Mamãe”, “O divórcio”, “Noite de chuva na primavera”, “O soldado feio”, entre outros, é uma estratégia discursiva que lhe permite ver a si mesmo e se constituir como sujeito num contexto de exacerbação coletivista e, ao mesmo tempo, oferecer-lhe um antídoto contra uma espécie de escrita fundada na imaginação esquizofrênica.

Assim, uma segunda lição da China seria: nem realis-mo socialista, em que a arte seria controlada pelo Partido Comunista e pelo Estado para servir-lhes de propaganda, nem experimentalismo descabelado, em que a arte, além de levada ao limite em seus significantes, seria o lugar da dilaceração do ser e, por consequência, a impossibilidade de se afirmar como sujeito da experiência, mas através de um controle dos processos de imaginação criadora, por parte do sujeito communard, reciclar os restos, as ruínas, que transbordam dos/nos ambientes e situações

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autoritárias, num arranjo favorável a uma experiência de vida que, deliberadamente, escolhe não cutucar o cão com vara curta.

Em Le témoignage de la littérature, Gao Xingjian cutuca o cão, mas com outros recursos, abrindo mão dos “ismos” que atravessam a literatura e o pensamento ocidental, fazendo de sua “reeducação no campo” um modo radical de liberar a literatura da política e operando na literatura um laboratório de pesquisa do real e do sentimento hu-mano. Com isso estabelece condições indispensáveis tanto para se ocupar e deslocar o latifúndio estético de artistas e escritores, ocidentais ou orientais, quanto para afirmar a precariedade do escritor como um sujeito que deve fazer da experiência da/na linguagem um modo de afrontar a sociedade e suas representações.

Bem mais velho que Mo Yan (este de 1955, aquele de 1940), e com origem social diferente, Gao Xingjian era filho de banqueiro e de atriz amadora. Nasceu em Ganzhou, província sul oriental de Jiangxi, e estudou francês no Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim, diplomando-se aos 22 anos e tendo concentrado seus estudos de formação a partir da obra de Antonin Artaud, Samuel Beckett, Bertold Brecht e Eugène Ionesco. Além de escritor, também é dramaturgo, pintor, desenhista, crítico literário e o primeiro chinês a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 2000, mas morando em Paris, onde se exilou

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em 1989, quando do massacre dos estudantes na Praça da Paz Celestial.

Com esse perfil, qual a sua condição subalterna e qual o sentido de sua luta desarmada? Um olhar não burguês ocidental, nem stalinista tardio, mas fundado numa pers-pectiva crítico-cultural anarquista, define sua condição subalterna a partir do lugar e posição que a cultura e o modo de vida burguês ou de classe média alta assumem ou são submetidos num contexto comunista de apropriação das matérias-primas, das máquinas e das fábricas e/ou no caso chinês de proliferação de Comunas Rurais Populares.

Mudam-se, nesse processo de transição revolucionária, não só o lugar do jogo político e o estabelecimento de suas regras, normas e leis, mas os espaços de enunciação dos sujeitos que compunham a classe dominante.

O sentido de sua luta desarmada, e como subalterno, emerge nos vários espaços de “reeducação no campo” ou nas comunas rurais camponesas, a que várias vezes foi for-çado a frequentar, entre 1966 e 1976. Acrescenta-se, ainda, que Gao Xingjian só rompe com o Partido Comunista Chinês por conta do massacre dos estudantes na Praça da Paz Celestial, no final da década de 1980.

Dito isso, sua crítica aos “ismos” do Ocidente, bem como ao confucionismo chinês, se deve, no primeiro caso, à vontade demiúrgica dos escritores e seu espírito latifundiário (a posse de uma língua e sua experimentação pela experimentação, a prescrição de um gosto, a função

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de propaganda política do Estado, o ser porta-voz de um humanismo suspeito) e, no segundo, à simplificação ou fa-cilitação redutora dos complexos processos de construção da subjetividade humana. Para combater isso, elege como seus precursores os autores de sua formação, a exemplo de Franz Kafka e Fernando Pessoa, além de escritores chineses clássicos, tais como Cao Xueqin, Li Qingzhao, Li Bai, Han Yu, Jin Shengtan, Shi Nai’an, entre outros.

O “ismo”, para Gao Xingjian, necessariamente, está associado a um “ter” que implica o engajamento do escritor na política do Estado, portanto, uma desapropriação da literatura como recurso individual de cada escritor para es-crever-se nas tramas de desvelamento/reconstrução do ser.

Apropriar-se da língua para se reinventar, se refazer, se reconstruir das violências físicas e simbólicas é tarefa do escritor comprometido com uma espécie de reforma/revolução agrária desse imenso latifúndio que é a literatura.

Uma oposição possível, portanto, a esse “ismo”, avoir [ter], seria uma espécie de ne pas avoir de -isme [não ter -ismo], o que, segundo o autor, “isso não consiste senão em falar sem um ponto de partida e sem ponto de chega-da, em falar sem chegar a qualquer conclusão”.22 Assim, nem ne pas avoir de -isme, como um agregado da língua, da linguagem e do Estado, nem pensamento filosófico acerca do être [ser], mas um laboratório da língua a que cada escritor tem direito, como um homem comum, para pesquisar os sentimentos humanos.

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Partir de sua própria experiência ou de personagens e fatos reais, implicando com isso uma “não finalidade”, que seria a pesquisa dos sentimentos humanos, antes expõe o tratamento que os sistemas de dominação vêm dando à vida na terra e, ainda, estabelece um contrassenso de alta voltagem: investigar os sentimentos humanos provocados por cada um de seus órgãos de sentidos (o olhar, o cheirar, o degustar, o ouvir, o tocar) que tanto podem ter sido mascarados pela história e suas formas de representação quanto terem tido por fundamento a lógica do fetichismo da mercadoria. Em seu laboratório, e em sua solidão neces-sária, o escritor, como um homem comum, sem nenhum poder extraordinário, reencena seus sentimentos, bem como de outros seres humanos, adotando uma lógica do absurdo, como condição de emergência de outra noção de política.

Por todo o livro, antes mencionado, há uma ênfase na recuperação da potência da literatura, a seu ver destruída ou em via de destruição tanto pela prescrição do gosto estabelecida pela crítica e teoria literária, quanto pelo en-gajamento dos escritores como funcionários do Estado e do capital. Quando foi obrigado a trabalhos forçados ou à “reeducação” em Comunas Rurais Populares, entre 1966 e 1976, não só teve que incinerar sua biblioteca, mas todos os seus inéditos – daí, provavelmente, uma imagem-limite da recusa do vínculo da literatura como propaganda de um Estado ou de um partido.

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Outro paradigma para se produzir literatura, nessas condições, só poderia emergir como exercício do silêncio, crítica radical às formas de controle da expressão e antí-doto para se pacificar as dores e sofrimentos. É por isso que Gao Xingjian tem razão ao criticar as estratégias de subjetivação de grande parte da literatura ocidental, bem como da literatura oriental, fundada nas linhas gerais do confucionismo, por tais estratégias não apenas estarem muito distantes da vivência humana num regime ou numa situação de exceção, mas, de tão comprometidas com os aparelhos de Estado, não oferecerem alternativas – como a tematização do absurdo, por exemplo – a escritores e leitores quanto à reinvenção de si mesmos a partir de outra língua, dobrável, perscrutável, exercitável em laboratório, e que, além de feridas e histórias de vida, possam encontrar suas tocas contra esses aparelhos de captura.

Eis, aqui, uma terceira lição da China: o escritor, o professor ou o intelectual, forçados a abrir mão de sua subjetividade em nome de um coletivo como dispositivo de Estado, não só usarem diferencialmente a literatura e sua força de resistência, mas, ao separarem a literatura de seu compromisso com políticas do Estado, fazer dela uma forma de pesquisa do real e do sentido humano, em tempos de exceção e barbárie.

Com a Revolução Soviética, sobretudo com o stalinis-mo, tivemos, no início dos anos de 1930, o estabelecimento de um sistema de controle para a arte, desmontando, com

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isso, as experiências formais e seus impulsos libertários no plano da experiência social. Tivemos também o estabeleci-mento de um paradigma utópico para os artistas que, então, aderem ao stalinismo como promessa de emancipação da humanidade. Com a Revolução Chinesa, demonstramos, aqui, não apenas que ela implicou um desvio do stalinismo, ao adotar um modo de governo constituído por Comunas Rurais Camponesas e Populares – mais próximo dos pri-meiros anos da Revolução Soviética, sob o comando de Lenin e Trotski – e ao mobilizar elementos teóricos da Co-muna de Paris, mas também, no plano literário e cultural, através de seus escritores mais representativos, que soube conjugar elementos fundamentais da vanguarda estética ocidental, criticar e deslocar o realismo socialista e propor novas exigências para os escritores, em suas tarefas de reler e reescrever o Estado de exceção que impregnou a expe-riência revolucionária no Oriente e constituiu o modo de ser das chamadas democracias ocidentais contemporâneas.

Em suma, é possível flagrar, a partir dos tópicos deste capítulo, que a literatura, a língua, a obra de arte em geral, embora possam ser desviadas a favor das forças de domi-nação – e apenas por seu intermédio –, são capazes de desarmar o mundo por um instante, dramatizar suas dores e convocar a todos para um debate, ou mais radicalmente: estimular, paciente e solitariamente, o trabalho clandestino de exploração e expressão dos sentimentos humanos, em busca de vida, de realização de sonhos e de afirmação da existência como uma poética.

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Se é através do campo linguístico-literário e da obra de arte que podemos reter, por um instante, a barbárie do mundo e perguntar por que não outra experiência em lugar dessa barbárie, não seria o caso de revermos o sentido de nossa transcendência pautada, até agora, na teologia, que ainda perdura nos modos de composição e funcionamento do Estado, e na matemática e biologia, como critérios quase absolutos de se fazer ciência?

E se fizermos uma arqueologia da descoberta do signo, pela linguística, e sua abertura do significante, pela litera-tura, em fins de 1870, e acompanharmos sua repercussão nas ciências humanas e suas viradas linguístico-literárias, ao longo do século XX, como pensar a teologia e a mate-mática apenas como formas discursivas? E, sendo formas discursivas, quais têm sido o seu lugar nas práticas insti-tucionais e na corrida armamentista?

Seria possível, ao gênero humano e seu espírito beli-coso, discernir em meio à guerra os ruídos sutis de seu próprio canto ou do canto de um outro homem por vir? Pois é assim que Benveniste anuncia:

Três anos após a morte de Saussure aparecia o Cours de linguistique générale, redigido por Bally e Séchehaye segundo notas dos estudantes. Em 1916, no meio do retinir das armas, quem poderia preocupar-se com um trabalho de linguística? Nunca foi mais verdadeira a palavra de Nietzsche de que os grandes acontecimentos chegam sobre patas de pombos.23

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