rio: foi uma françaque passou em nossa vida
EsqU
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do Ah! As voltas que dá a história dos povos, das gentes – e de cidades comoo Rio... Fala-se agora, mais do que nunca, de um importante personagem: Ni-colas Durand de Villegagnon. O almirante – é sabido – fundou na Baía de Gua-nabara a França Antártica, cujos 450 anos deveriam ser celebrados, com pom-pa e circunstância, no ano que vem. Aliás, em 2005, a França estará homenage-ando o Brasil com dezenas de eventos.
Mas por que Villegagnon passa agora a ser tratado como benfeitor do Rio,ele, que foi considerado pela História oficial, por séculos, um aventureiro e inva-sor? Porque só agora estão sendo levantados os véus do preconceito religiosoimposto pelos (inegavelmente) sedutores adversários de Villegagnon, os tam-bém franceses, mas calvinistas, Jean de Léry e Jean Couvin, o próprio Calvino, oprimeiro seu comandado quando a instalação da França Antártica, e o segundo,seu amigo de bancos escolares.
A verdadeira história de Villegagnon lança um novo olhar sobre sua aventurana Guanabara, nome indígena que os franceses adotaram. E com o acento oxí-tono dos índios: Guana-bará. Ele foi um dos personagens mais interessantesda França no século XVI. Cavaleiro da Ordem de Malta (1523), Villegagnon temuma biografia épica. Seqüestrou a rainha católica Maria Stuart na Escócia e le-vou-a para a França, livrando-a das garras do rei anglicano Henrique VIII. Tor-nou-se um personagem quase mítico: foi o galante guerreiro que humilhou osingleses e ajudou a redefinir o mapa político do seu tempo. Este era o perfil dopersonagem que fundaria, em 1555, o primeiro núcleo civilizatório europeu naGuanabara: Henriville, a cidade de Henrique II, rei católico de França.
Villegagnon lançou os fundamentos da vila entre os morros do Castelo e daGlória, local onde os portugueses confirmariam o nascimento de sua cidade, oRio, alguns anos depois. A França Antártica não prosperou, apesar de os fran-ceses terem conquistado a simpatia de tamoios e tupinambás.
Há três anos, o Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,Arno Wehling, forneceu, a meu aviso, um argumento definitivo sobre a polêmica,ao lembrar que Buenos Aires teve dois fundadores: Pedro de Mendoza, em1536, e Juan de Garay, em 1580, que fez a instalação definitiva da cidade.
Logo, o Rio pode ter dois fundadores, o português Estácio de Sá e o francêsNicolas Durand de Villegagnon. E que se comece, desde já, a recuperação damemória do segundo.
Carioquice4
Se o ideal não caminhasse paralelamente aoreal, o Estácio não estaria órfão de políticas pú-blicas, suas residências remanescentes de tem-pos áureos estariam tombadas e o bairro se cha-maria “Luiz Melodia”. Nosso príncipe nasceu efoi criado na divisa entre os morros do Estácio ede São Carlos, um dos pontos principais na ge-ografia do samba. “Minha brincadeira preferidaera soltar pipa e jogar bola. Qual a criança quenão gosta de bola? Rodei muito pião, pulei car-niça, andei de patinete, joguei bola de gude, sol-tei muito balão, fiz e soltei pipas. O morro eraum parque de diversões. Posso dizer que tive omaior privilégio do mundo como criança. E fa-zíamos os nossos brinquedos: eu fazia minhaspipas. E sem falar das festas maravilhosas, asjuninas, por exemplo, em que dancei muita qua-drilha. Era uma diversidade maravilhosa. Dá umasaudade...”
Mas festa, mesmo, era com o Carnaval, des-creve Melodia. “Como os participantes moravamno morro, dava para ver da janela, da rua. Aliás,morro não tem rua, tem beco, viam-se váriasalas passarem. Era genial, divertidíssimo. Eu eramenino e via essas coisas todas. Lembro dissojá a partir dos oito anos.”
A escola, porém, era um doce proibido. “Nun-ca desfilei, porque meu pai era da Igreja Batista.
Luiz Melodia é um binômio
perfeito, e a ordem dos fatores
não altera o produto. Luiz é
Melodia e ponto final. A mais
perfeita tradução do Estácio, um
recanto carioquíssimo,
depositário das maiores tradições
do samba. Sua majestade, o
“Negro Gato” (apud Roberto
Carlos) bebeu na fonte de nomes
como Ismael Silva, abraçou o rock
e explodiu pela voz de Gal Costa
com “Pérola Negra”. Ele brinda
Carioquice, falando de
reminiscências e revela o seu
próximo passo: um disco só de
sambas.
sua maJestade,o negro gato do Estácio
minha alma canta
p o r vera de souza f o t o s adriana lorete
Carioquice6
minha alma canta
Foi muito radical na maior parte da minha infân-cia e adolescência, e só depois ficou mais ma-leável. Nas pregações, ele dizia que as folias,batucada, e toda aquela festa eram coisas dodiabo, do maligno. Então, acabamos ficandomeio intimidados. Nem eu, nem meu irmão, nemminhas três irmãs, principalmente elas, chega-mos a desfilar.”
E, por incrível que pareça, a inspiração paraa carreira veio justamente do pai, que era músi-co. “Seu” Oswaldo, funcionário público, queriaque o único filho vivo – o outro filho homemmorreu havia alguns anos – se formasse e fos-se “doutor”. Mas também era um vir tuose naviola de quatro cordas, muito usada por repen-tistas no Nordeste. “Ele era um compositor fan-
tástico, que também cantava bonito. Era conhe-cido como Oswaldo Melodia. Foi a minha grandeinfluência, e muito cedo eu comecei a tocar vio-lão por ter aprendido os primeiros acordes comele.” Detalhe: neste meio tempo, o aprendiz demúsico acabou quebrando a viola do pai... Lem-branças de um tempo de traquinas.
Com 13, 14 anos o jovem Luiz Carlos dosSantos já era chamado de Luiz Melodia pela ga-rotada do morro, compunha algumas letras eformava grupos. “No fim, meu pai acabou tor-cendo muito por mim. Foi o maior fã de LuizMelodia. Ele era um tiete que guardava tudo quesaía sobre mim na imprensa, isso quando eu játinha gravado um disco. Ele andava com umapasta, já até se desmantelando, debaixo do bra-
7out/nov/Dez 2004
Foi em 1908 que um menino de 3 anos de
idade, Ismael Silva, filho de um operário e de
uma lavadeira, mudou-se de Niterói para o
Morro do Estácio. Aos 17 anos, dois anos depois
de compor seu primeiro samba, passou a fre-
qüentar o Café e Bar Apolo, ponto de encontro
da nata do samba do Rio nos anos 20.
Em 1928, já conhecido nas rodas e com sam-
bas gravados até por Francisco Alves, Ismael
reúne os integrantes dos blocos de sujo do bair-
ro do Estácio e funda a Deixa Falar, a primeira
escola de samba.
O primeiro desfile foi um ano depois, na Pra-
ça Onze, na cadência dos sambas do pessoal
do Estácio. Na verdade, um novo tipo de sam-
ba, cuja batida marcada por instrumentos de
percussão era mais apropriada para os desfiles
das escolas que surgiam, em vez das seme-
lhanças com o maxixe que tanto marcavam o
gênero na época.
Em 1931, amargurado com a morte de dois
grandes parceiros, Nilton Bastos (de tuberculo-
se) e Mano Edgar (assassinado depois de uma
discussão em uma roda de jogo), Ismael deixa
o Estácio. No mesmo ano, encontrou um outro
grande parceiro, Noel Rosa, com quem assinou
vários sucessos como “Adeus”. Depois da mor-
te de Noel, em 1937, Ismael Silva passou por
longos períodos fora dos palcos. Morreu em
1978, cinco anos depois de gravar seu último
disco, “Se você jurar”.
ço, e não tinha outro assunto com as pessoasa não ser a minha trajetória, sucessos e outrascorujices.”
Além do pai, a grande influência na carreiraveio, claro, do Morro do Estácio. Melodia fre-qüentava a escola de samba às escondidas, co-nhecendo compositores do quilate de Ismael Silvae Cartola. “Quando eu tinha oportunidade ia àsserestas, porque o morro era musicalmente muitorico. Sempre que eu tinha uma grana saía com-prando variados LPs. Meus tios foram meusgrandes incentivadores, compravam para mimdiscos de Elza Soares, Jamelão, Dolores Duran,Ângela Maria, Anísio Silva, João Gilberto. Eu sóouvia a nata. E no rádio eu escutava até trio nor-destino, em um programa que minha mãe nunca
perdia, às seis da manhã, a ‘Hora Sertaneja’. Porisso a minha música é diversa. Essas influênciasmusicais estão muito presentes, até hoje, nasminhas composições.”
Com 15 anos, pelas mãos do pai, Luiz es-treou como calouro na Rádio Nacional. E, em vezde sambas, preferia interpretar Roberto Carlos.“E ficava o morro todo colado no rádio quandoera o meu dia de cantar.” Divertido, diz que nuncalevou o “gongo”, o sinal que despachava os ca-louros e calouras que desafinavam. “Passei portodos esses apertos”, ri.
Depois foi a vez da TV, nos anos 60. Maisprecisamente no programa “Hoje é Dia de Rock”,de Jair de Taumaturgo, palco da Jovem Guarda ede conjuntos como The Fevers. “Passei a fazer
A bênção, São Ismael Silva
Carioquice8
minha alma canta
programas de rádios, festinhas de debutantes.Isso tudo em prol da música”, se diverte, galho-feiro, o ébano travesso. Já com seus 19 anosparticipou da formação de um grupo chamado“Os Instantâneos”, que acabou também instan-taneamente. A seguir, “Os Filhos do Sol”, ondeMelodia também era o “crooner”.
Pausa para uma temporada no serviço mi-litar. “Hard days” para alguém que se chamade Melodia. Mas, depois da tempestade, sem-pre vem a bonança, e no início dos anos 70,Mister Estácio, Holly Estácio, é descoberto pelopoeta e compositor Wally Salomão, assíduofreqüentador do São Carlos e que na época di-rigia um show de Gal Gosta chamado “Gal a TodoVapor”. Wally, junto com o também compositorTorquato Neto, escuta pela primeira vez umapérola negra cantar. A música se chamava de“My Black, Meu Negro”. A dupla se empolga
O cinema sempre foi outra paixão de Melo-
dia. E não apenas como espectador, mas como
candidato a ator. “De vez em quando eu dava
entrevistas e dizia: ‘Pô, ninguém me chama. Aqui
mora um ator fantástico”, comenta, rindo. Ga-
nhou um pequeno papel no filme “Dois Irmãos”,
dirigido por Lucia Murat, onde fazia um compo-
sitor e também cantava. Agora, em breve vai para
as telas em grande estilo, dirigido por Andrucha
Waddington em “A Casa de Areia” e fazendo
parte de um elenco que, como ele mesmo diz,
o deixou “embasbacado”.
“Eu brincava muito com o Cacá Diegues di-
zendo que ele precisava me chamar. Até que o
Cacá deu um toque no Andrucha, que me cha-
mou para fazer este filme. Atuar com Fernanda
Montenegro é um luxo, não é? Stênio Garcia, mais
luxo ainda (se é que é possível essa heresia) e
Fernanda Torres, Emiliano Queiroz, Ruy Guerra.
Eu acho que sou um cara que nasceu pra lua
(risos )”. Melodia faz um pescador, Massur, aos
60 anos, casado com Áurea, interpretada por
Fernanda Montenegro. A história é passada em
1940, nos Lençóis Maranhenses.
“Se me convidarem, quero fazer mais coisas
em cinema. E quem sabe não acontece de um
dia eu fazer uma trilha sonora?”. Com certeza
seria ótimo, Melodia.
com a música, que se transforma, por suges-tão de Wally, em “Pérola Negra”. Eis o milagreda transmutação. Incluída no show de Gal em1972, que teve direito a LP, vira um sucessoimediato.
“Como tinha um travesti no morro chamadoPérola Negra e era uma pessoa muito bacana,acabou sendo uma homenagem a ele. Mas amúsica mesmo foi resultado de um namoro queeu tinha com uma menina que morava em Jacare-paguá”, recorda Melodia.
“Pérola Negra” acaba se transformando namúsica-título do primeiro LP, lançado em 1973.Entre as dez faixas, uma verdadeira declaraçãode amor ao morro, “Estácio, Holly Estácio”, quetambém já tinha sido gravada por outra diva daMPB, Maria Bethânia. De lá para cá, em 31 anosde carreira, foram 13 discos. Para o próximo,uma proposta: apenas samba.
Cine Estácio apresenta “Melodia na Tela”
9out/nov/Dez 2004
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11out/nov/Dez 2004
“Eu sou carioca e queria me ver cantandovários sambas, meus e da rapaziada do SãoCarlos. Têm muitos compositores bons e quenunca tiveram a oportunidade de ver suas mú-sicas gravadas. E eu sendo de lá é o maior pre-sente que posso dar a eles. Já recebi 50 músi-cas através de um primo, Eduardo, que reco-lheu todo o material. Agora, quero parar paraouvir essas músicas, terminar coisas do meu paie quero incluir duas ou três músicas de compo-sitores de que eu gosto. Talvez Zé Kéti e IsmaelSilva. O problema é que vou ter que dar uma pa-rada porque estou fazendo muitos shows, gra-ças a Deus!”
O garoto que assistia embevecido a rodasde samba com Ismael Silva e Cartola dá uma pistados verdadeiros responsáveis pela redescober-ta do samba (e também do chorinho) nos diasde hoje. “Não foi a mídia que ajudou nisso. Foi
um lance dos sambistas, mesmo, dos remanes-centes, dos filhos de grandes nomes. O pagodementiroso que aconteceu, até certo ponto, aju-dou a garotada a procurar a coisa boa, a fazer osamba autêntico, de raiz. A renovação da Lapamostra isso. Você vê lá muita garotada tocandosamba, chorinho. E com isso muita gente can-tando bem e acontecendo. Isso é legal.”
Mas o samba também deixa suas dores deamor. Uma delas, a de nunca ter sido convidadopara compor um samba-enredo para a Estáciode Sá. “ É uma reclamação, sim. Sou cria de lá,sempre torci pela minha escola. Eu é que tive ainiciativa de fazer vários lançamentos de discosna quadra.” O Negro gatíssimo começa a canta-rolar um samba ainda incompleto: “Mais um car-naval que passou e a minha escola não ganhou”.Quem sabe, agora, a Marques de Sapucaí venhaa cantar Luiz Melodia.
Carioquice12
E o tio sam se casoucom a nossa batucada
lira cariocaSérgio Mendes (piano), Otávio Baily (baixo), Durval Ferreira (guitarra),
Pedro Paulo (trumpete) e Paulo Moura (sax), no Carnegie Hall
Carioquice12
p o r kelly nascimento
13out/nov/Dez 2004
Uma batida diferente ecoa no cenário musical brasileiro. Prova disso é
que “Batida Diferente” é o título escolhido por músicos de gerações
distintas – o “Gato” Durval Ferreira e o trio Bossacucanova – para seus
mais recentes CDs, ambos lançados no segundo semestre deste ano.
Qualquer semelhança seria mera coincidência? À procura do segredo da
levada à moda tupiniquim, Carioquice seguiu a trilha percorrida pelos
músicos que, no casamento do sincopado brasileiro com a harmonia do
jazz norte-americano, encontraram a mistura perfeita: o samba-jazz.
O samba-jazz é, assim como sua prima-irmãbossa nova, a arte do encontro. Nasceu, em me-ados dos anos 50, do contato de jovens atraí-dos por um som que vinha bem lá do norte, maisespecificamente dos Estados Unidos: o jazz. Oritmo mobilizava jovens ávidos para ouvir asnovidades, discutir música e tocar, é claro. Reu-niam-se em clubes, bares, boates e casas. Nãohavia lugar impróprio. De norte a sul do Rio, osjovens estavam na mesma onda.
O porão do número 45 da Rua ConselheiroZenha, na Tijuca, viu surgir muitas melodias “mo-dernas”. Era lá, na casa do flautista Bebeto Cas-tilho, que se reuniam Johnny Alf, João Donato eDurval Ferreira, entre outros. A escolha do localfoi simples. “Meu cunhado era comandante daPanair e trazia discos fresquíssimos de lá. A genteestava sempre atualizado, ouvindo o que haviade mais novo”, lembra Bebeto, que se encarre-gava de montar os equipamentos para as audi-ções. Tendo como suporte as revistas eletrôni-cas da época, como a “Antena”. Para eles, ouvirmúsica era um ritual: sentavam no vão e improvi-savam à vontade. “Já nessa época, Donato co-meçou a desenvolver os temas, que dariam nasmúsicas lançadas por ele mais tarde. Ouvi muitacanção em primeira mão”, gaba-se o músico,
Durval Ferreira
13out/nov/Dez 2004
Carioquice14
lira carioca
que, anos mais tarde, tocaria no Tamba Trio. Eratempo de improviso mesmo. “Não existia equa-lizador e Durval sempre passava um pano nacorda do violão, para não equalizar o som!”, re-corda.
Ainda na Tijuca, outros nomes também se reu-niam, como Dick Farney e Lúcio Alves, num clubede jazz do bairro. “Éramos todos do bairro efoi lá que eu comecei a aprender os primeirosacordes”, diz Durval, que lembra dos comentá-rios em torno de um rapaz que tocava um violãodiferente. “Eu ouvia nos saraus o pessoal falarde um cara que tocava violão muito bem, um talde João Gilberto”, diverte-se, lembrando que otemperamento reservado do músico já vinhadaquele tempo. A batida diferenciada era classi-
ficada pelo grupo de “música moderna”. A de-nominação bossa nova só viria depois.
Na Zona Sul, o movimento era o mesmo. Jo-vens ansiosos para saber das últimas do jazz.Em Copacabana, o ponto do jazz era a casa dofotógrafo Chico Pereira, responsável por noveentre dez imagens das capas dos álbuns dabossa nova. “Ele era mais velho, já tinha granapara estar sempre comprando os lançamen-tos”, conta Roberto Menescal. Outros “habi-tués” do local eram Carlos Lyra e Silvinha Tel-les. “Foi engraçado, em 62, quando fomos to-car no Carnegie Hall, ver que aquela nossa ba-tida já estava servindo de base para os músi-cos de lá, que ficavam loucos com nossa ca-dência”, lembra.
O Tamba Trio, formado por Luiz Eça,Hélcio Milito e Bebeto Castilho, foi oprimeiro trio instrumental e vocal damúsica brasileira moderna
15out/nov/Dez 2004
Às sextas-feiras, a turma se encon-trava na Faculdade de Arquitetura, naPraia Vermelha, para tocar jazz. “Ain-da tocava muito mal”, diz o modestoMenescal. “E, em 58, resolvi lançar umaonda: fazer ‘samba session’, em vezde ‘jam session’, diz o guitarrista quedepois formaria o trio Bossa Nova. Aidéia era tocar só música brasileira emjazz: unir composições brasileiras a im-provisos jazzísticos. Vários amigos,como Tom Jobim e Silvinha Telles, apa-receram para dar uma força. E, assim,a “samba session” virou mania.
Os jovens músicos de norte a suldo Rio estavam, sem saber, na mesmacadência. O encontro se daria quandoa turma da Zona Norte passou a darcanja em bares e boates da Zona Sul
da cidade. Uma das primeiras casas que dedica-vam alguns dias exclusivamente ao jazz era oPlaza, em Copacabana, por volta de 1954. Umdos drinks mais consumidos era a cubalibre, quecustava Cr$ 35, mas quem animava mesmo asnoites era a levada do trio formado por JohnnyAlf no piano, Ed Lincoln no contrabaixo e PauloNei no violão. Quem sempre acompanhava o trioera Luiz Eça, que mais tarde, formaria o TambaTrio. “Meu primeiro guru foi Nat King Cole”, apon-ta Alf, que incluía em seu repertório canções domestre, imprimindo um estilo moderno. Foi na-quele bar que Menescal ouviu pela primeira veza levada diferente do músico tijucano, que atraíapara o local gente como Tom Jobim, João Giber-to, Dick Farney, Dolores Duran e Carlos Lyra.
Sérgio Mendes, Hélcio Milito, Tião Neto e Leny Andrade, naentrega do Troféu Melhor Crooner da Noite Carioca, em 1961
Durval Ferreira e Leny Andrade
Carioquice16
lira carioca
Ainda no Plaza, em 1955, ao lado de JohnnyAlf, foi que o gaitista Maurício Einhorn deu suaprimeira canja. Nesse ano, ele era aluno de nin-guém menos que o maestro Moacir Santos ecompôs canções standards do samba-jazz,como ‘Batida Diferente’ e ‘Sambop’ (ambas comDurval Ferreira). O garoto surpreendia por con-seguir inimagináveis solos em temas jazzísticoscom uma simples harmônica de boca. “Lembroque, em 56, Roberto Carlos foi me ver tocar noCentro Israelita Brasileiro. Ele sempre gostou de
gaita e era meu fã”, conta o autor de cerca de300 composições. Naquele dia participaram da“jam session” João Donato (piano), Bebeto (saxalto) e Jô Soares (vocal e bongô).
Enquanto isso, no Méier, Leny Andrade seapresentava ao piano com pequenos e médiosconjuntos. Foi num desses bailes que Chuca-Chu-ca, sócio da Bacará – uma das boates no Becodas Garrafas –, se encantou com a voz da meni-na de 15 anos, que, no improviso, não deixavanada a desejar a Ella Fitzgerald. Impressionado,quis levá-la para se apresentar no Beco. “Nãosei não, senhor Chuca-Chuca”, respondeu o paida moça. As negociações acabaram dando cer-to – “Prometi a meu pai que não ia beber, sócantar”, lembra – e Leny estreou no históricobeco da Rua Duvivier, em Copacabana.
Não demorou muito para que Alberico Cam-pana a convidasse para cantar na casa ao lado –o Bottle’s –, onde o trio de Sérgio Mendes toca-va jazz. No começo, houve um impasse: Sérgiose recusava a tocar samba. “E eu não sabia can-tar jazz”, retrucava Leny. “Como não sabe? Já vivocê improvisando ‘Corcovado’. Isso é cantarjazz”, devolveria o pianista.
Acabaram chegando a um acordo: um poucode jazz, um pouco de samba. Sérgio levou para
Leny Andrade foi contratada pelo Bottle’s, onde tocava
Sérgio Mendes. No começo, houve um impasse: Sérgio se
recusava a tocar samba. “E eu não sabia cantar jazz”,
retrucava Leny. “Como não sabe? Já vi você improvisando
‘Corcovado’. Isso é cantar jazz”, devolveria o pianista.
Mauricio Einhorn, Jean “Toots” Thielemans eBob McFerrin, no Free Jazz Festival, Rio de Janeiro
17out/nov/Dez 2004
Leny discos de Sarah Vaughan e Ella Fitzgeraldpara que ela aprendesse o repertório. A inspira-ção para o improviso era nacional: Dolores Du-ran. “Ouvindo ‘Fim de caso’, vi que aquilo queDolores fazia eu conseguia fazer também”, re-corda Leny. A mistura deu certo e, àquela altura,o Beco das Garrafas já era um grande aconteci-mento. A casa vivia lotada.
Cer tamente não eram as instalações doBottle’s que atraíam o público. O bar do momentoera um pequeno quadrado com cerca de 40m2,onde se espremiam músicos e aficcionados porjazz. “Eram um pianista, um baixista colado numcanto, um balcão de bebidas e cerca de 50 pes-soas espremidas, joelhos colados”, descreveOrlan Divo, que também freqüentava a casa. Nãohavia “spotlight”. A iluminação era feita por gar-çons, munidos de lanternas possantes, que re-fletiam em bolas grandes de vidro. Para conse-guir um efeito visual, os clientes colaboravamcom os garçons e agitavam as bolas. Imensasbarras de gelo faziam as vezes de geladeira.“Miéle aproveitava a introdução de Sérgio Men-des para burlar a vigília de Campana, quebrar ogelo e beber uísque”, diverte-se com a lembrançaMenescal. Tudo no melhor estilo de improvisojazzístico.
A fila, às vezes, chegava à Nossa Senhora deCopacabana. Nem o preço da bebida era empe-cilho. “Eu e Roberto Jorge geralmente saíamosde lá e passávamos num boteco para tomar cer-veja, que custava três vezes mais barato que ouísque vendido no Bottle’s”, conta o garoto daschaves Orlan Divo.
Orlan não chegou a participar das reuniõesdomiciliares típicas da época. O motivo? Nãosabia tocar nenhum instrumento de harmonia.“Eu não podia mostrar minhas músicas. Atéaprendi gaita na infância mas, diante de um gai-tista como Einhorn, eu não me atrevia a me apre-sentar de jeito nenhum”, explica. O problema foiresolvido quando ele criou, em 59, a moda detirar samba de um chaveiro. A receita para umabatida perfeita, sete chaves. Às segundas, apa-recia nas boates que cediam espaço para osmúsicos escutarem jazz. “Eu ia porque gostavade ouvir o improviso de Victor Assis Brasil. Masmeu negócio sempre foi o balanço, o samba.”
Orlan Divo e Ed Lincoln
Carioquice18
lira carioca
Quando surgiu no Beco a Drink, boate com pistade dança, o rei do sambalanço se esbaldou. Nãoera o único. A Drink era a favorita dos políticosda capital federal. Era comum o presidente JoãoGoulart aparecer por lá, acompanhado de seusministros.
A essa altura, em 61, o Plaza organizavaeventos temáticos cinco vezes por semana.Numa quarta-feira, dia do “Clube do Disco”, umgaroto trouxe duas músicas para mostrar aoautor de “Samba Toff”, que se apresentaria
naquela noite. Começou a cantar “Por causa devoxê bate meu peito. Baixinho, quase calado.”A outra canção era “Mas que nada”. Não de-morou muito para o menino Jorge Ben conse-guir seu espaço na noite. “Foi Tom que memostrou Jorge Ben. Estávamos no Beco e Tomchamou minha atenção para a levada dizendo‘É legal. Vamos espalhar pra turma’”, recordaMenescal, que nunca foi da noite, mas fazia in-cursões pontuais ao local para assistir algunsshows.
Jorge Ben, Zé Maria, Amarildo, Oswaldo Elias (Rádio Gaivota) e Orlan Divo, em julho de 1963
Carioquice18
19out/nov/Dez 2004
No fim da década de 60, a 706, no Leblon,continuaria a tradição dançante iniciada com aDrink e a Arpeje. A apresentação era comanda-da pelo crooner Djavan. Osmar Milito tocava pia-no e José Boto, bateria. De lá, Boto iria parar emParis. Ele não esquece da experiência única quefoi tocar com o músico que foi um dos inspira-dores do movimento samba-jazz. “Chet era re-almente genial. Tocava sem olhar partituras, con-seguia sacar a melodia só pelo acorde”, revela.Foi com Boto que Chet gravou, em 1980, seuúnico disco de música brasileira – o “Chet Baker& Boto Brazilian Group” – nunca lançado aqui.
Também quem até há pouco não tinha suaobra disponível no mercado nacional era OrlanDivo. Em 2002, o selo inglês What’s Music re-lançou todos os seus álbuns, isso depois demuita pirataria. Os brasileiros que quiseremouvi-lo têm a opção de comprar os importa-dos, a R$ 80,00, ou a reedição pela EMI Brazilde um de seus álbuns, “Orlandivo”. Seus dis-cos tornaram-se verdadeiros objetos do dese-jo de uma legião de novos fãs que o descobri-
ram há poucos anos e que o transformaramem um cult.
O ex-crooner do conjuto Ed Lincoln continuacolocando a galera para balançar, conforme com-provam seus recentes shows com a OrquestraImperial, no Ballroom, e o Bossacucanova, noRival. “Onde anda meu amor”, gravada com aparticipação do rei do sambalanço, é a músicade trabalho do último disco do Bossacucanovaque mistura bossa, samba-jazz e música ele-trônica – o “Uma Batida Diferente”. “Conhece-mos Orlan Divo pelas mãos de Ed Motta, quenos colocou para ouvir o trabalho dele, enquantogravávamos nosso segundo disco, ‘Brasilida-de’, em 2000", conta Alexandre Moreira, um dosintegrantes do trio, formado ainda por MárcioMenescal, filho de Roberto, e pelo DJ Marceli-nho da Lua.
A proposta do grupo é fazer uma releitura dabossa nova, adicionando elementos modernosque levem a uma nova sonoridade. Trio que pro-move releitura em busca de um som moderno?É, a procura da batida diferente continua.
O Instituto Cultural Cravo Albin (ICCA) e a
El Paso lançam, em dezembro, seis catálogos
que retratam momentos significativos da
música brasileira. Cada um abordará um tema:
“Mulheres compositoras”, “Tons e Sons do Rio”,
“Clube do Jazz e Bossa”, “Novos Caminhos do
Choro”, “Trilha Sonora” e “Festivais da Canção”.
E, para melhor entender cada período, um CD
com documentos sonoros referentes a cada
Projeto do ICCA e da El Paso mostramomentos marcantes da música brasileira
assunto acompanhará os catálogos. Concebido
a partir do acervo do ICCA, o trabalho foi
desenvolvido pelos pesquisadores Frederico
Coelho, João Carlos Carino e Júlio Diniz,
coordenador do projeto. A caixa com catálogos
e o CD será distribuída como brinde de fim
de ano da El Paso, que patrocinou o projeto.
Em 2005, a obra será colocada à venda para
o público.
Carioquice20
Vilas de todo o sempre
Passarinho lembra Rubem Braga. Que lembra fio elétrico, árvore e
antena no telhado. Tudo lembra vila, casinhas de frente, menininha de
vermelho. E quem, se não nosso maior cronista para resgatar o
passarinho que existe nas vilas da nossa alma. Voa, Rubem Braga, voa.
oásis da cidade
d e l i c a d e z a s rubem Braga f o t o s marcelo carnaval
Carioquice20 Carioquice20
Vila Operária (Vila Isabel)
Carioquice22
Vila Olga (Laranjeiras)
oásis da cidade
“Assim vos direi que a
primeira coisa a respeito de
uma casa é que ela deve ter
um porão, um bom porão com
entrada pela frente e saída
pelos fundos. Esse porão
deverá ser habitável porém
inabitado; e ter alguns quartos
sem iluminação alguma, onde
se devem amontoar móveis
antigos, quebrados, objetos
desprezados e baús
esquecidos.”
Vila na Rua do Lavradio (Centro)
Carioquice24
oásis da cidade
“Ah, haveria menos
rumor na rua naquele
tempo; menos
automóveis estariam
passando lá fora; mas
certamente nas mesmas
duas horas da tarde de
domingo embora não
haja mais bondes, haveria
algum rádio ligado
esperando o começo de
algum jogo de futebol, e
o sol entraria no mesmo
ângulo pela mesma
janela.”
Vila Abrunhosa (Botafogo)
Vila
na R
ua B
ento
Lis
boa (
Cat
ete
)
25out/nov/Dez 2004
“Mas havia as Teixeiras.
Quantas eram, oito ou vinte
as irmãs Teixeiras? (...) As
Teixeiras tinham um pecado
fundamental: elas não
compreendiam que em uma
cidade estrangulada entre
morros, nós, a infância,
teríamos de andar muito para
arranjar um campo de futebol;
e, portanto, o nosso campo
natural para chutar uma bola
de borracha ou de meia era a
rua mesmo.”
Vila Apartamentos George (Botafogo)
Vila Operária (Vila Isabel)
Carioquice26
Esquina do mar
o rio domeu coração p o r nélida piñon
Ando pelas ruas distraída. Desatenta à pai-sagem, às esquinas povoadas por seres quese esfumam à minha passagem. Ajo como seesta cidade não merecesse ser a cada golpeinaugurada pelos meus olhos. Não fosse umadádiva que me chega junto com a vida que arfateimosa.
Meu coração recrimina tal conduta. Exige, acin-toso, que eu proclame a beleza desta cidade,centro da fantasia brasileira. Uma urbe na qualestão encravados os mitos engendrados pelo
inconsciente humano. E que eu exiba, com estofode heroína, meu amor por estas terras.
Afinal, nada justifica que eu pise suas calça-das com enfado, em desacordo com este mes-mo coração desabrido que anseia repartir gene-rosos polens no ar. Sobretudo quando, por prin-cípio natural, inclino-me a agradecer as excelên-cias da terra. A aceitar, perturbada, os enigmasdo mundo. A transigir com tantas realidades.
Mesmo porque que razões tenho para des-considerar os prazeres desta vila, consumir indi-
Carioquice26
27out/nov/Dez 2004
ferente as últimas moedas dos meus dias? Ouaguardar, conformada, a amargura da misériahumana? Em vez de celebrar ao som do “Te Deum”o cotidiano e os faustos secretos e visíveis des-te Rio de Janeiro. Em vez de exaltar o privilégiode viver-se a cada instante sob a imperativa res-plandecência deste céu que se abate azuladosobre as criaturas com a força do seu mistério.
E poder voltar de novo a cantarolar as mar-chinhas, as cantigas, as árias da mocidade. Aadotar o refrão dos peregrinos que, sob aguarda da doutrina da aventura, perambulampelas ruas sem qualquer medo do futuro. Poispara estes aventureiros sempre que a matériada vida lhes falta, eles entram na taberna, pe-dem o vinho rubro. Com a caneca na mão, ob-servam o fervilhar popular. Sabem divertir-secom esta espécie tão exótica que desde os tem-pos de Homero, levada pelo poderoso intuitode prorrogar o abrasador sentimento da vida,
narra histórias grosseiras, cruéis, risonhas.A partir de agora, portanto, não desejo mais
descuidar-me da magnitude das montanhas ca-riocas. Ou negligenciar o estético para aderir àface obscura do cotidiano. Pretendo simplesmen-te caminhar pelas manhãs, romper audaciosa obloqueio da neblina da Lagoa, realizar, enfim, aviagem dos meus sonhos. Visitar aqueles tem-plos em cujo interior brilham aquelas esmeral-das que embora falsas traduzem nossas ilusões.
Não é certo que o Rio, como cidade mágica,está povoada de duendes, de criaturas encanta-das? E que desperta da letargia diária tão logolhe beijamos a fronte e lhe confessamos que amarsua paisagem, seus caprichos arquitetônicos,suas praias que são sereias, suas cores cam-biantes, corresponde a querer com intensidadea história de nossa própria utopia?
27out/nov/Dez 2004
Nélida Piñon, jornalista e escritora, foi presidente da Aca-demia Brasileira de Letras, onde ocupa a cadeira de no 30
Carioquice28
madame Biscoito Fino
Ela é carioca
Um biscoito de madrepérola dentro de uma ostra talvez seja a melhor
definição da personalidade de Maria do Carmo de Almeida Braga ou,
simplesmente, Kati (pronuncia-se “ka-á-ti”, segundo amigos diletos,
mas há controvérsias). Onipresente na cena carioca, através de suas
múltiplas atividades empresariais e culturais, e com raízes fincadas em
uma árvore genealógica que se confunde com a história do Rio de
Janeiro, Kati parece estar espalhada por cada pedacinho da cidade.
Difícil é falar com ela. Avessa a estrelismos, cultiva um insustentável
estilo discreto de ser. Paciência. Kati vai além da nossa praia: é um
biscoito finíssimo para todos os brasileiros.
O “DNA” de Kati tem componentes do “cré-me de la créme” da sociedade carioca num perío-do que a cidade estava no auge. Como bisavós,Afrânio de Mello Franco e Sílvia. Ele, chancelerdo primeiro governo Getúlio Vargas, em 1930,além de um dos juristas mais respeitados da Re-pública Velha; ela, filha de Cesário Alvim, um dospolíticos mais influentes tanto no fim do Impé-rio, quando presidiu a província (estado) do Riode Janeiro, quanto no início da República, em quefoi empossado como presidente da Província deMinas Gerais.
Uma das filhas, Maria do Carmo Mello Fran-co, a Miminha, casou-se com José Thomaz Na-buco, filho do abolicionista Joaquim Nabuco. Aprimeira filha do casal, Sílvia Maria da Glória deMello Franco Nabuco, a Vivi, é a mãe de Kati.
Carioquice28
29out/nov/Dez 2004
“A união dos dois sobrenomes resultou emuma das famílias mais influentes do Rio, e jus-tamente quando a cidade era não só a capitalda República, como também representava opoder econômico e cultural”, resume um amigoda família.
A infância foi passada na Rua Sarapuí, noHumaitá. E que infância. Como representante le-gítima da elite carioca, a família recebia muito ebem. Gilberto Freyre e Manuel Bandeira eramdois dos amigos e freqüentadores mais assí-duos. Também circulou pelos salões, quem di-ria, Fidel Castro. Reza a lenda que ele caiu deamores por uma das tias de Kati, Nininha, quese casaria com José Luiz de Magalhães Lins,banqueiro e sobrinho de Magalhães Pinto, ex-governador de Minas.
“Desde muito cedo morei na Rua Sarapuí. Mi-nha avó materna morava aqui, minha mãe, osirmãos de meu pai e os irmãos de minha mãe.Eram 150 primos, sei lá quantos, todos na mes-ma rua, imagina. Era um loteamento que vinhadesde a Rua Alfredo Chaves. Aqui sempre tevemuitos macacos, é uma espécie de reserva eco-lógica. Quando era menina, também vi cobraembaixo do sofá”, relembra.
O pai de Kati, Antonio Carlos de Almeida Bra-ga, por sua vez, veio de uma família que fez for-tuna investindo no ramo de seguros, em mea-dos dos anos 30. Braguinha, como é conheci-do, é a quintessência do carioquismo. Tricolorde coração, desportista, risonho, brincalhão eirreverente, merecia até ser enredo de escola desamba. Era ele quem estava à frente dos negó-cios quando se formou uma sociedade com opoderoso Bradesco, em 1970.
Mas é muito mais fácil levantar a árvore ge-nealógica do que obter uma resumidíssima auto-biografia dos lábios da própria Kati Almeida Bra-ga. Estudou no extinto Colégio São Fernando,
que ficava na Rua Marquês de Olinda, em Bota-fogo, e por onde também passaram o cineastaIvan Cardoso e o ator Ney Latorraca. O colégiotambém foi um centro de agitação estudantil pós-64. Ainda adolescente, revelou-se uma apaixo-nada pelo teatro. Em 1972, com 18 anos, come-çou a trabalhar com Flávio Rangel. Um ano de-pois estava na produção de “Pippin”, encenadacom Marília Pêra e Marcos Nanini.
Não sem provocar alguma surpresa da famí-lia, casou-se com já veterano cenógrafo, diretorteatral, ator, iluminador e escritor italiano GianniRattto, um dos fundadores do famoso Teatro dosSete, ao lado de Fernando Torres, FernandaMontenegro, Sérgio Britto e Ítalo Rossi. O casalfoi morar em São Paulo, onde nasceram dois fi-lhos, Antônia e Bernardo (Kati casou-se umasegunda vez, com José Arnaldo Rossi, e teve maisdois filhos, Laura e Tereza). Em 1975 estava naprodução da histórica “Gota D’Água”, de ChicoBuarque e Paulo Pontes. Pronto, é o que se ob-tém de Kati por ela mesma. E olhe lá!
“Gosto de São Paulo, tenho tantos amigos lácomo aqui. Mas sou verdadeiramente apaixona-da pelo Rio. A vista da Lagoa é deslumbrante.
Bibi Ferreira e Kati
Carioquice30
Ela é carioca
A dupla Kati-Olívia lançou a
gravadora que sempre esteve
no ideal de todo mundo:
independente, sofisticada e
de alta qualidade, sem deixar
de ser popular
Todo dia, quando acordo, agradeço por estaraqui”, diz Kati.
A passagem por São Paulo foi carinhosa,porém meteórica. Em 1981, voltou correndo aosbraços da Cidade Maravilhosa. Pois bem, cincoanos depois, em 1986, seu o pai desfaria a so-ciedade com o Bradesco, montando o Banco Ica-tu. Era uma nova pedra na construção da sagados Almeida Braga. E um verdadeiro alicerce dasua saga particular. Para os amigos mais chega-dos, foi um momento de decisão na vida da filhamais velha de Braguinha. Com pouco mais de 30anos, e ao lado do irmão Luiz Antonio, virou aprópria mesa e passou a tocar o dia-a-dia daempresa. Enfim, uma mulher de negócios! O re-sultado foi um tapa de luva de pelica na misogi-nia do mercado financeiro. O Icatu se expandiupara áreas de seguros e construção imobiliária,transformando-se nesse tempo em um dos maio-res administradores de recursos (leia-se fortu-nas) do mercado financeiro brasileiro.
“Ela é extremamente reservada, mas istopode dar uma visão errada da pessoa. Tambémé extremamente amiga, carinhosa, quente comas pessoas próximas. E tem muito do pai, dacapacidade de dizer a verdade sem deixar dúvi-das na cabeça de ninguém quanto às suas boas
intenções”, resume um ex-auxiliar de AlmeidaBraga e um dos primeiros economistas a traba-lhar no banco, pedindo discrição até para elo-giá-la mais livremente.
“Kati é muito doce na vida pessoal, mas mui-to dura nos negócios. Ela realmente herdou acompetência empresarial do pai”, acrescenta ou-tro interlocutor.
O Icatu se transformou em um verdadeiroconglomerado financeiro, um dos maiores“players” do mercado nos anos 80 e 90. Masem 2000, depois de uma fase em que muitosgrandes bancos de investimento concorrentesforam à lona, o banco dos Almeida Braga deci-diu mudar a estratégia e reduzir sua exposição.A Kati, coube tocar a holding. Mas, claro, em umritmo muito menos acelerado do que antes. Erachegada a hora de fazer do sonho uma arga-massa. E o sonho eram dosagens maciças decultura, cultura e mais cultura.
Na época, Kati presidia a Associação de Ami-gos do Paço Imperial. Convidou uma amiga ain-da “verde”, Olívia Hime, para desenvolver um pro-jeto, “ComPasso, Samba e Choro”. Mal sabia queessa amizade frutificaria de maneira rara. O em-penho da dupla levou a shows com Guinga, Ya-mandú Costa, Miúcha, Cristina Buarque e mais
31out/nov/Dez 2004
Francis Hime, que tinha sido chamado para acuradoria musical do Paço. Sucesso, casa sem-pre cheia e veio a decisão de gravar os showspara lançamento em CDs. A mesa estava postapara o chá. Faltava só o biscoito fino. A duplaKati-Olívia pôs a mão na massa e com animaçãojuvenil lançou a gravadora que sempre esteve noideal de todo mundo: independente, sofisticadae de alta qualidade, sem deixar de ser popular.
“Começamos a procurar uma salinha paraorganizar nossas coisas. Aí Kati sugere o se-guinte: ‘Minha casa está à venda, minha filha estáensaiando teatro lá e nós podemos ocupar umquarto lá em cima, com nossa secretária no ou-tro quarto e vamos em frente’”, lembra Olívia,hoje diretora musical da gravadora.
“Não acho nada diferente da gestão de ne-gócios no mercado financeiro. No fim, é tudo li-dar com pessoas, tudo muito parecido. Antesde trabalhar em banco, fazia produção de tea-tro. Agora, estou tocando a Biscoito Fino. É tudoigual”, diz Kati, sempre econômica em conside-rações. “Vou ao banco pela manhã, mas bemmenos do que antes. Trabalho na holding, emum prédio onde ficavam antigamente todas asempresas. Mas elas foram crescendo e saindo.Hoje, faço mais reuniões aqui, na Biscoito, doque lá...”
“A Kati é muito pontual, cumpre as coisas, res-peita as regras de convivência. Ela teve essa boaformação. Além disso, faz as coisas com gosto,com arte. É uma de minhas melhores amigas, etenho poucas”, atesta a atriz Tessy Callado.
As duas, primas distantes, se conheceramtrabalhando na peça “Pippin”, em 1973. “Nãoposso imaginar alguém que goste tanto das ar-tes. De pintura, música, teatro, balé. Isso vemdo berço. Agora, é coisa rara”, descreve Tessy.
“As pessoas, em geral, têm dificuldade delidar com dinheiro. E a Kati percebeu como o
dinheiro pode ser útil ao ser humano e não aocontrário. E também não é por ser empresáriaque ela deixa as outras coisas de lado. É muitodedicada aos filhos, ao marido, à casa. E essacompetência também nunca a impediu de se di-vertir muito”, revela, travessa, com olhos brilhan-tes como se soubesse o efeito do comentáriosobre a tímida amiga.
O lado divertido e risonho de Kati Almeida Bra-ga é um privilégio para poucos. No time titular, éclaro, os amigos de sempre e os colaboradoresque estão no dia-a-dia das produções da Biscoi-to Fino. Mas ela mesma conta, rindo, levementeenrubescida, um diálogo entre Chico César e Ma-ria Bethânia, durante um encontro na gravadora.“Nós somos meio louquinhos, não é, Beta?”.Bethânia respondeu: “Não, louquinhas são elas(apontando para Kati e Olívia). No lançamentodo Brasileirinho (em 2003 ), um jantar lindo, osjornalistas mais importantes do país esperandolá fora, e as duas aqui fazendo as unhas...”
Carioquice32
Ela é carioca
O nome veio de um comentário do amigo epoeta Geraldinho Carneiro. ParafraseandoOswald de Andrade – “a massa ainda comerádo biscoito fino que eu fabrico” –, Geraldinho,ao saber da proposta de uma gravadora com-prometida exclusivamente com o melhor da MPB,disparou: “mas o que vocês vão fazer é biscoitofino.” Pegou.
A Biscoito Fino, com quatro anos de existên-cia, lança em média dois CDs por mês. “Há tantacoisa que a gente quer lançar e não pode, porfalta de tempo, de concentração, de dinheiro...Quando lançamos três CDs em um mês, senti-mos que um foi jogado fora. Não tem espaço naimprensa, nem de dedicação nossa. É o ladofrustrante”, confessa Kati, que, como boa es-trategista empresarial, tratou de levar o selo paraa Europa e a Ásia – para os Estados Unidosainda não, porque a primeira tentativa aconteceuna véspera de um certo 11 de setembro.
“Em 2005, ano do Brasil na França, já te-mos artistas confirmados: os sanfoneiros Sivu-
ca, Oswaldinho e Dominguinhos e o conjunto ‘TiraPoeira’”, diz Kati.
Mas, no início, como conta Olívia, foi difícil: “Eununca tinha montado uma empresa, a Kati já”. Aoque Kati rebate dizendo: “Ela tem muita intuiçãoempresarial.” Os resultados demonstram isso.2004, por exemplo, foi muito bom. A Biscoito Finoarrematou cinco prêmios Rival BR de Música, cria-do para promover a música brasileira indepen-dente, e seis premiações no TIM de Música.
Para fechar o ano, a Biscoito Fino vai lançar,em parceria com o Instituto Antônio Carlos Jo-bim, o Selo Jobim, marcando os dez anos damorte de Tom. “A partir de um belo trabalho depesquisa com os registros que o Paulinho (Jo-bim) e Aninha (Lontra) têm, será relançada todaa obra, com muitas músicas inéditas, que foramsó gravadas e nunca lançadas”, informa Kati.
O primeiro resultado dessa parceria será umálbum ao vivo, com a inédita gravação de umrecital feito por Tom em 1981, no Palácio dasAr tes, em Belo Horizonte. Ao piano, “stan-dards” de “Chega de Saudade”, “Desafinado”e “Por Causa de Você”, entre outros. A criaçãodo Selo Jobim marca o início da restauração daobra do maestro, com apoio do Ministério daCultura e que contará também com documentá-rios de Nélson Pereira dos Santos e Marco Alt-berg. Tom merece.
A receita de Oswaldvirou o fino da MPB
Francis Hime e Paulinho da Viola
Olívia Hime: parceria na Biscoito Fino
Carioquice34
O Show tem que continuar
Bravo! Bravo!
A história do Tablado é um caso de amor. E a paixão pela arte de
representar é o combustível que move a escola de teatro. Ela faz parte
do imaginário de diversas gerações, há mais de cinco décadas. Amador,
sim, como muito bem definiu sua idealizadora: “Amador de quem,
acima de tudo, ama a arte.” Maria Clara Machado se foi. Mas o
espetáculo jamais chegará ao fim. Sinal de que Dionisio continua
abençoando a arte dramática. Sorte nossa.
Cacá Mourthé, sobrinha de Maria Clara Machado, assumiu o Tablado no ano passado
Carioquice34
35out/nov/Dez 2004
O brilho no olhar de Cacá Mourthé não deixadúvidas: sim, ela conseguiu vencer o desafio dedar continuidade a um espaço que mudou a his-tória e a maneira de fazer teatro no Brasil – oTablado. Hoje, ela é só alegria e projetos. O medoque tomou conta da sobrinha do mito Maria Cla-ra Machado há quase dois anos, quando teveque enfrentar a missão de substituir o insubsti-tuível, é coisa do passado. “Quando eu assumio Tablado, em março de 2003, fiquei mesmo commuito medo! Não bastasse a responsabilidade,eu estava praticamente com o caixa zerado”, con-fessa Cacá.
Pudera. A relação afetiva com o lugar é forte.E não podia ser diferente. Seu nome de batis-
mo, homônimo da tia idolatrada, foi uma home-nagem da mãe, Aracy Mourthé, à irmã que lan-çou um olhar diferenciado sobre a dramaturgiainfantil. Cacá freqüenta o Tablado desde bebê,quando acompanhava os ensaios nos braços damãe ou da sua mentora. Fez a refeição comple-ta: foi aluna do curso, professora, diretora, as-sistente e ainda teve o orgulho de compartilhara autoria de algumas peças.
Quando Maria Clara morreu, em 2001, os tra-dicionais espetáculos para o público foram pra-ticamente interrompidos. Os cursos continuaram,apesar da dor por tamanha perda. Mas o showtem que continuar. Era hora de repensar as es-colhas. A retomada começou com a nomeação
A autora, diretora e
atriz Maria Clara
Machado fez do palco
sua maternidade,
tornando-se um
dos nomes mais
importantes do teatro
infantil brasileiro
Ace
rvo T
abla
do
Carioquice36
Bravo! Bravo!
de Cacá à direção artística. Ela nunca teve dúvi-das quanto à necessidade de manter viva a filo-sofia de Maria Clara. Os cursos sempre foramauto-suficientes. Na hora do sufoco, como nãorecorrer a uma das muitas lições de sua mes-tra? “Toda vez que o caixa está baixo, monta-mos o ‘Pluft’ e pronto”, dizia.
A remontagem de “Pluft, o Fantasminha” se-ria o sinal de uma nova fase do Tablado. Porisso mesmo, a peça teve uma característica es-pecial: reuniria pela primeira vez as várias gera-ções de atores lá formados. Todos respeitandoa tradição: trabalhar de graça. Louise Cardoso,que já vivera o fantasminha, seria agora a mãe;Cláudia Abreu, no papel-título, enquanto LúcioMauro Filho e José Lavigne se revezariam no papel
de Tio Gerúndio. A produção excedia as anterio-res em recursos técnicos: o fantasminha chegouaté a voar no palco. Cacá dirigiu o espetáculo,que teve figurino de Kalma Murtinho, que, na pri-meira montagem, em 1955, interpretara a mãede Pluft. “Foi muita emoção voltar àquele espa-ço repleto de boas memórias. Foi como voltarno tempo”, emociona-se a figurinista.
Mas era preciso modernizar. Ousada, ela searriscou num caminho até então inédito para ogrupo e decidiu buscar patrocínios para os es-petáculos. Com apoio financeiro dos Correios, apeça mostrava, de fato, que o espaço entraraem novos tempos. E com o pé direito: foi suces-so total de público e de crítica.
Mas o patrocínio de peças não seria a única
Maria Clara Machado (de branco) na primeira montagem da peça “A Bruxinha que Era Boa”, em 1958
37out/nov/Dez 2004
inovação lançada por Cacá. Ela alternaria peçasmontadas por professores e alunos com espe-táculos profissionais. E ainda adotaria um reper-tório adolescente em paralelo ao infantil. “O es-pírito continua o mesmo. O que mudou foi a in-fra-estrutura e a maneira de lidar com algumasquestões”, explica. A diretriz principal estabele-cida por Maria Clara – o amadorismo – continuasendo seguida à risca por Cacá. E todos os 20professores foram alunos da dramaturga, tendodirigido as peças dela. Em suma, o método per-manece. Mas existe um “Método Maria Clara”?
“O método do Tablado é um apanhado devários outros – Stanislavski, Artaud, Brecht. Ins-tintivamente, Maria Clara criou sua própria filo-sofia de arte”, define Raquel Gorayeb, autora
da tese “O Tablado – Mais de Meio Século deTeatro e Educação”, defendida no doutoradoem Educação da Unicamp em fevereiro desteano e que vai virar livro. Para fazer o estudo –o primeiro analisar o Tablado através do pris-ma da educação no teatro –, Raquel passoutrês meses imersa no universo “tabladiano” ese encantou com a relação de fascínio que osalunos têm com o local. Prova de que, se há ummétodo, ele passa pelo desenvolvimento doamor não só à arte, mas ao próprio ambiente ea tudo que faz par te dele: o teatro, o palco, acadeira, o figurino, a bilheteria. “Vi um amorpor estar no palco e por estar ali naquele am-biente. Definitivamente, o Tablado é uma escoladiferente”, conta.
“Vi um amor por estar no
palco e por estar ali
naquele ambiente.
Definitivamente, o Tablado
é uma escola diferente”
Raquel Gorayeb, autora da tese“O Tablado – mais de meio séculode Teatro e Educação”
37out/nov/Dez 2004
Carioquice38
“A Bruxinha que Era Boa”, montagem de 1999
Bravo! Bravo!
Não é à toa que quem passou pelo prédio darua Lineu de Paula Machado jamais se esque-ceu. “Quando era criança, levada por meus pais,eu ia ao Tablado assistir a peças infantis. Aos 12anos, em 77, fui para lá aprender teatro e, aísim, descobri o mundo. Durante dois anos, iadiariamente. Não sei o que seria de mim, se nãotivesse encontrado o Tablado”, recorda a atrizFernanda Torres.
Marieta Severo, Miguel Falabella, Malu Ma-der, Luiz Fernando Guimarães e Wolf Maia sãoapenas alguns dos ex-alunos contratados pelaRede Globo. A lista é longa e acabou construin-do uma mítica, muito forte nos anos 80, de quea escola seria um vestibular para se tornar ator
Carioquice38
“Arlequim”, 1965
39out/nov/Dez 2004
da Vênus Platinada. Até os dias de hoje é co-mum alguns desavisados chegarem lá pergun-tando: “Tem convênio com a Globo?”. De fato,produtores de elenco da emissora costumam,volta e meia, aparecer para assistir aos espe-táculos. “Mesmo quem vem procurando umtrampolim para o sucesso acaba se apaixonan-do pela arte. É só fazê-lo entender a magia doteatro”, ensina Cacá.
A magia a que se refere Cacá é aquela desco-berta por um grupo de jovens que fazia showsde marionetes para divertir as crianças da anti-ga Favela da Praia do Pinto no Patronato da Gá-vea e, mais tarde criariam o Tablado, a mais an-tiga companhia de teatro do Brasil. A inspiraçãopara o nome veio de um grupo de teatro itine-rante da Espanha, que só se apresentava emtablados. “Quando começou, tudo era novidadepara todos nós. Era um aprendizado diário”, dizAnna Letycia, que, em 58, fez o cenário da mon-tagem original da peça “A Bruxinha que Era Boa”.
Para Cacá, o espírito do Tablado começou asurgir na infância da tia. “Acho que a idéia estáligada às domingueiras que Aníbal, pai de MariaClara, organizava na Visconde de Pirajá. Isso fi-cou na mente de Clara, que trouxe aquele climade união de gente de todo tipo para o Tablado”,aponta a sobrinha. Os famosos saraus de domin-go da casa da família Machado, em Ipanema, reu-niam de Jean-Paul Sartre a Tom Jobim, passandopor Pablo Neruda, Portinari e Albert Camus.
O clima de confraternização é mais uma dastradições mantidas até hoje, assim como o espí-rito de improviso. Afinal, o Tablado continua sen-do aquela casa generosa, portas sempre aber-tas, pronta para acolher os amadores – de Vi-gário Geral ao Alto Leblon. Seria esse o segredoda eternidade da escola-teatro do Jardim Botâ-nico? Pode ser, já que, para Maria Clara, tudonunca passou do mais puro amor à arte.
“A Bruxinha que Era Boa”, montagem de 1958
Primeira montagem de “Pluft, o Fantasminha, em 1955
Carioquice42
Braços abertos sobre a
Guanabara, o Cristo Redentor,
que lindo, se recusa, silente, a
colocar ponto final em um antigo
enigma carioca: será a obra-prima
um presente francês ou um
engenho da arte nativa morena?
Carioquice mata a charada.
Na verdade, ele é brasileiríssimo
e, mais precisamente, um
carioca da gema.
pai nosso, que estásno corcovado...
samba do avião
Heitor da Silva Costa, primeiro à esquerda, duranteas obras de construção do Cristo Redentor
Qual é, afinal, a verdadeira história do CristoRedentor? A cineasta Maria Izabel Noronha – emfase de finalização de dois filmes que desvendamtoda essa polêmica – conta que muitos ainda pro-curam negar a paternidade do monumento aoengenheiro-arquiteto carioca Heitor da Silva Cos-ta. Ela relata: “Desde menina, sempre soube quemeu bisavô tinha sido o autor do projeto. Fora decasa, só ouvia que tinha sido feito por um francêse que tinha sido um presente da França.”
Há dois anos, ainda trabalhando na Videofil-mes, Izabel decidiu descobrir o que fez o seubisavô. Selecionada pela Riofilme, ela pôde co-meçar um curta e, logo em seguida, um docu-mentário longo para televisão. Além de fazermuitas pesquisas, Izabel encontrou contempo-râneos de Heitor que deram preciosos depoi-mentos no filme a ser lançado em janeiro de2005. Um deles é o de Maria Amélia Buarque deHollanda. Ela conta que um dia, na estação detrem de Petrópolis, estava com o pai, e Heitorchegou. Memélia, como é conhecida, revelou, es-fuziante, que ele tinha vencido a concorrência parafazer o Cristo.
Izabel diz que as descobertas foram muitas,mas, junto com o encantamento, brotou uma cer-ta tristeza, pela falta de reconhecimento ao tra-balho de Heitor. “É curioso que, até o fim dos
p o r vera de souza
Carioquice42
Carioquice44
samba do avião
anos 40, quando Heitor morreu, a história eracontada corretamente. A partir dos anos 60,começam a ser publicadas reportagens que in-formavam que o autor do monumento era umfrancês”, comenta Izabel. Ela atribui toda essaconfusão a uma conjunção de fatores: a Estátuada Liberdade foi um presente dos franceses, oRio daquela época era muito francófilo e a incon-testável baixa estima brasileira. E exemplifica: “Umdia, num elevador, estava contando a um amigotoda essa história. Havia um ouvinte que, no fimdo percurso, me disse, em tom de decepção‘Pôxa, foi feita por brasileiro mesmo?’”.
Como tudo começou
Em 1921, o Círculo Católico teve a idéia deerguer um monumento religioso em algum mor-ro do Rio de Janeiro, para comemorar o Cente-nário da Independência, no ano seguinte. Umconcurso selecionou o projeto de Heitor da SilvaCosta. Além do Corcovado, o Pão de Açúcar e oMorro de Santo Antônio foram lembrados comopossíveis pontos para a localização do monu-
Primeiroanteprojeto da
estátua do CristoRedentor, depoissubstituído pela
imagem de Cristode braços abertos,
ele própriodesenhando a cruz
Preparação das placas de revestimento de mosaico da estátua do Cristo Redentor
45out/nov/Dez 2004
mento. A vontade de integrar a obra à naturezafavoreceu a primeira montanha. No projeto ini-cial, o Cristo, com 23 metros de altura, segura-ria um globo terrestre em uma das mãos e acruz na outra. Eram os atributos religiosos maisimportantes, segundo Heitor.
Durante o processo para a feitura do monu-mento, foi criada uma comissão, presidida pelocardeal Sebastião Leme, que sugeriu o Heitor quefizesse uma obra que permitisse que os símbo-los religiosos pudessem ser vistos de longe. Noano de 1922, o que acabou por ocupar o lugardestinado ao Cristo foi a antena de radiotelefo-nia que fez a primeira transmissão de rádio doBrasil. A antena – instalada de forma ilegal –acabou retirada pelo governo federal, mas deuuma idéia a Heitor: transformar a cruz que o Cris-to segurava no próprio Cristo de braços aber-tos, ele próprio desenhando a cruz. O mundoficaria sendo a cidade do Rio de Janeiro, abraça-da pela estátua. Imagem perfeita da simplicida-de, da simetria e da espiritualidade.
Presente do governo francês? Não, o Cristo
foi feito 100% com doações do povo brasileiro.Em setembro de 1923, foi lançada, pelo cardealSebastião Leme, a Semana do Monumento. Hou-ve uma grande adesão em todo o país e 50%dos recursos foram provenientes do Rio de Ja-neiro e o restante dos outros estados. O enga-jamento da população foi enorme. Os escotei-ros, entre eles João Havelange, percorriam ascasas em busca de doações.
Já com os cálculos definidos para o monu-mento – 30 metros de altura e 8 metros de pe-destal, medidas que o tornariam visível de vá-rios pontos da cidade –, tomou-se a decisão deusar um material então novo, o concreto arma-do. Os desenhos eram do artista plástico CarlosOswald. Em 1924, Heitor foi buscar na Europaum artesão que moldasse o rosto e as mãos. Láconheceu o escultor francês Paul Landowski.Sobre ele, Heitor escreveria mais tarde: “Fazeruma imagem de Cristo é alta aspiração e umagrande responsabilidade. Fazê-la em propor-ções descomunais seria, sem dúvida, a aspira-ção e a responsabilidade máxima de uma vida.
“É curioso que, até o fim dos anos 40,
quando Heitor morreu, a história era
contada corretamente. A partir dos
anos 60, começam a ser publicadas
reportagens que informavam que o
autor do monumento era um francês”
Maria Izabel Noronha
Carioquice46
samba do avião
O meu assunto despertou o interesse, como éfácil de compreender, junto aos mestres de es-tatuária com que tratei em Paris, Munique, Flo-rença e Roma... Tenho razões de regozijo pelapreferência dada ao estatuário parisiense PaulLandowski. Sem o exagerado modelismo que nãocomportava o problema, mas marchando na van-guarda dos grandes mestres de estatuária mo-derna, Paul Landowski trabalhou com o maiorcarinho e espírito de colaboração. Pode agora oexímio artista orgulhar-se de seu talento na con-templação da maravilhosa cabeça que já vai sur-gir por entre os andaimes.”
Heitor praticamente se mudou para Paris, paraacompanhar toda a execução da obra. E foi láque ele teve a inspiração do revestimento, comoconta Izabel: “Ele não imaginava o Cristo finali-zado em concreto e pensou em várias coisas,como o pó de bronze, mas tudo soava falso. Atéencontrar uma fonte, na Avenida Champs Elysées,cuja base era revestida de mosaico prateado. Apartir daí, ele decidiu revesti-lo de mosaico depedra-sabão, por causa do trabalho do Aleijadi-
nho e por ser um material brasileiro de alta re-sistência.”
Para fazer os mosaicos, senhoras – ricas epobres – passavam as tardes numa sala da casado bispo Gonzaga, no Largo do Machado, ondehoje funciona o Colégio Franco-Brasileiro. Numdos depoimentos que estão no filme, Dona Ly-gia conta que elas colavam pedacinhos de pe-dra-sabão em um tipo de tecido de um metropor um metro. Conhecendo-se as dimensões domonumento, é fácil imaginar quantos milhares deplacas foram feitos.
Maior escultura do mundo em estilo Art Déco,o Cristo Redentor, inaugurado em 1931, é, comopreconizou Heitor, em 1927, uma obra de arteque deu notoriedade à nossa cidade. E suaspalavras, na época, já davam a dimensão do queviria a se tornar uma efetiva realidade: “Assimcomo não se pode ir à Paris sem se subir à Tor-re Eiffel, nem entrar no porto de Nova York semse avistar a Estátua da Liberdade, muito em bre-ve não se poderá falar do Rio de Janeiro sem secitar o nome do Cristo”.
Heitor da Silva Costa em seu escritório técnico de Paris, em companhia de seus auxiliares desenhistas e escultores, 1926
Carioquice48
roteiro de delíciasdas feiras modernas
acepipe do cotidiano
Já diria o síndico Tim Maia, se estivesse ainda aqui entre nós:
“da Cadeg à Cobaaaal, não há nada iguaaaal”. E tome guaraná,
suco de caju, goiabada para a sobremesa. Você vai encontrar de
tudo, mas tudo mesmo, nessas carioquíssimas feiras modernas.
Segue um guia básico. Esbalde-se.
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Cobal do Humaitá: do sushi à cozinha mexicana
49out/nov/Dez 2004
O carioca não resiste a um bom e velho mer-cado. Não há viagem perdida: é tanta diversida-de que você pode até não achar o que estavaprocurando, mas acaba se deparando com algoque precisa. Mesmo que necessite só espaire-cer. Pão, tulipas, água e chocolate... Perder-seentre flores, frutas, peixes, doces e especiariasé trilhar o caminho do paraíso. E o Rio oferecerotas diversas: Leblon, Madureira, Humaitá ouBenfica. É só escolher o destino. Diversão ga-rantida, adaptada ao gosto do freguês.
A Cobal do Humaitá é uma sinfonia de tons esabores. Combina fado com chorinho, sushi commarguerita. E é também referência para quemnão dispensa um bom filme. Mais “cult”, impos-sível. Condomínio de delícias, o espaço é demo-craticamente divido por intelectuais, estudantes,executivos e artistas. Motivo é o que não faltapara aparecer por lá. Orquídeas, lírios e marga-
ridas disputam a atenção do freguês com ramosde louro, alecrim, salsa e cerefólio. Nas lojas deespeciarias, receitas são reveladas por especia-listas em meio a bate-papos triviais com a clien-tela. Não falta também uma peixaria – pretextode maridos, noivos e namorados para uma boaesticada no espaço.
Aqueles que preferem encontrar o prato jápronto também se esbaldam. A gastronomiavariada agrada a todos os gostos. O bacalhauestá presente tanto em petiscos como em refei-ções completas. Quem curte o tempero apimen-tado dos “hermanos”, tem como opção a cozi-nha mexicana e seus burritos, tortillas e tacos.Para beber, drinks – a Frozen Marguerita da Co-bal é apontada como uma das melhores da ci-dade –, cerveja e uma variedade de lojas espe-cializadas em vinhos que fazem a festa de enó-logos e enófilos.
Cadeg, em Benfica: a “baixa gastronomia”
Carioquice50
acepipe do cotidiano
E quem resiste a um bom chope gelado ou-vindo chorinho? O trombonista Zé da Velha, “ha-bitué” do Espírito do Chopp, não consegue. “Látem o melhor chope do Rio”, sentencia o músi-co, que é fã da roda de choro comandada pelogrupo Sarau. Quer mais? O Espírito, além da pi-canha na pedra, ainda serve crepe para a fre-guesia beliscar entre um gole e outro. Para osmais chegados a um clima de boate, o mercadooferece DJs, drinks e azaração. Mas há aquelesque juram que a principal atração do mercado éa abençoada vista para o Cristo Redentor.
Já para os amantes da sétima arte, privilé-gio é poder avistar a Cavídeo, locadora que re-úne cinéfilos, moderninhos e outros grupos ur-banos. O aluguel de vídeos e DVDs de anima-ções underground e clássicos do cinema não éo único atrativo do local, que promove, ainda,mostras na área externa da Cobal. Os domíniosda Cavídeo extrapolam a esfera cinematográfi-ca. Inspirou bares da vizinhança a batizar al-guns drinks com nomes de películas: o “lyn-chiano” Veludo Azul se transpôs para a misturade blue curaçao, vodca, limão e soda. Laranja
Mecânica, clássico de Stanley Kubrick, tambémfoi homenageado.
O Leblon também se orgulha de seu merca-do. A Cobal de lá não deixa nada a desejar à suairmã do Humaitá. A galera jovem curte a duplapizza-e-chope. O tradicional galeto também estáigualmente presente e faz sucesso na moda àcarioca – que tem como acompanhamento ar-roz branco, batata ou polenta frita, farofa debanana e molho à campanha.
Vinhos da Cobal do Humaitá: candidatos a uma boa adega
Bifão, a “pièce de résistance” de um dosrestaurantes da Cadeg
51out/nov/Dez 2004
Para delícias açucaradas, recomenda-se o Tor-ta & Cia, onde as funcionárias sabem de cor osabor preferido das clientes famosas que se der-retem pelos doces de lá: “Julia Lemmertz gostada torta de banana. Carolina Ferraz sempre pedeo ‘cheescake’ de amora”, revela Mércia Adriana.O público feminino também bate ponto na flori-cultura do mercado, que ostenta belíssimos ar-ranjos. Mas há quem diga que as flores maisbonitas do Rio são encontradas em Benfica, pre-cisamente entre as 17 ruas do Centro de Abas-tecimento Guanabara – a Cadeg.
Da alta à baixa gastronomia
O colorido de copos-de-leite, orquídeas, gar-dênias e tulipas emprestam charme aos mais de500 boxes do mercado de Benfica. A diversida-de do cenário se evidencia, ainda, com másca-ras nigerianas, conchas filipinas, miçangas, le-gumes e verduras levados pelos próprios pro-dutores ou comprados diretamente na Ceasa.Detentora de uma das maiores variedades deprodutos da cidade, a Cadeg abastece grandeparte dos centros gastronômicos cariocas. E se
a Cobal se destaca pelo requinte de seus res-taurantes, a “baixa gastronomia” de Benfica nãofaz feio, conforme comprova o Poleiro do Galeto.
A casa, que tem horário de funcionamentodigno de notívagos da melhor estirpe – de 22hàs 16h –, é popular pelo saboroso e bem servi-do filé com fritas. O auge da noite no mercado épor volta das quatro da manhã, quando os clien-tes dividem o perfumado espaço com caminhõesque chegam para descarregar hortifrutigranjei-ros e flores. Programa singular, quer seja pelascenas inusitadas que proporciona, quer seja peladiferença aos roteiros usuais.
Em Madureira, o Mercadão que leva o nomedo bairro impera absoluto. Inaugurado em 1914,dois anos depois seria transferido para o atualendereço – a Avenida Ministro Edgard Romero.Juscelino Kubistchek pode ser considerado pa-drinho do carinhoso apelido que consagrou ocentro comercial: ele foi responsável pelos in-vestimentos de ampliação que transformaram omercado em “Mercadão”. Quando Irajá ganhoua Ceasa, o centro comercial teve de se adaptarpara sobreviver à concorrência. Apostou na di-
Mercadão de Madureira: de tudo um pouco
Carioquice52
acepipe do cotidiano
versidade para frear a queda nas vendas. A táti-ca deu certo. Em 2000, o mercado teria de sereinventar mais uma vez, para se reerguer a par-tir das cinzas que sobraram de um incêndio quedestruiu sua estrutura.
A fórmula preços populares e diversidadecontinua fazendo sucesso até hoje. Maior que afreguesia que o batizou, o tradicional centro co-mercial suburbano atrai, de domingo a domin-go, gente que procura por todo tipo de merca-doria – de artigos de culto afro-brasileiros amaterial escolar, passando por floriculturas e ba-res, é claro, porque ninguém é de ferro.
No almoço, lojistas e clientes se encontramno restaurante Mineirinho para degustar o tem-pero de uma boa comida mineira. Produtos di-versos para um público bem variado. “O Merca-dão é freqüentado por todo tipo de gente. Esseé o segredo de nosso sucesso: a mistura”, en-sina Maria Celeste Rodrigues, administradora deum dos mercados que têm lugar garantido nocoração do carioca.
Frutas e flores disputam a atenção dos freqüentadores da Cobal do Humaitá
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uma vez flamenGO...
parque lota macedo soares
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Lota com Affonso Reidy
(vulgo aterro do flamengo)
57out/nov/Dez 2004
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A menina coçou a cabeça. A madre superioraacabara de comunicar às alunas que iria promo-ver uma festa, para a qual convidaria o cônsul decada nação ali representada. Era um internatocatólico belga, lotado de meninas chiques detodos os cantos do mundo. Cada aluna faria umasaudação, cantando, em sua língua, o hino deseu país. A menina era filha de brasileiros, massó estudara em colégios europeus, já que o pai,jornalista beligerante, volta e meia tinha que seexilar do Brasil. Ninguém se preocupara em lheensinar seu hino nacional.
A menina matutou. Não ia ficar no ora, veja.No dia da grande festa, não teve dúvidas – per-filou-se e entoou, em tom patriótico e cadênciamarcial: “Ai seu Mé / Ai, seu Mé / Lá no Paláciodas Águias / Olé / Não hás de pôr o pé.”
Era uma marchinha do carnaval de 22, proi-bida, por fazer alusão desairosa ao candidatoArtur Bernardes. A menina foi efusivamente cum-primentada: “Que beleza de hino!” Pena que ocônsul brasileiro não tivesse comparecido.
O atrevimento e a irreverência sempre foramcaracterísticas dessa mulher. Nascida Maria Car-lota Costallat de Macedo Soares, em Paris, em1910, descendia de um visconde. As maneirasaristocráticas e a sólida formação européia, com-binadas à sagacidade petulante e à brejeirice tro-pical, resultaram numa figura inconfundível nahistória do Rio: Lota.
Adulta, Lota tinha intensa vida social. Artistase intelectuais acorriam a seu apartamento, sedu-
zidos por sua argumentação impecável, seu char-me e seu humor afiado. Lota não tinha título uni-versitário. No entanto, sua biblioteca era, reputa-damente, o melhor acervo do Rio em artes, botâ-nica, arquitetura e urbanismo. Quando Le Corbu-sier veio ao Brasil, Lota foi incluída no seleto gru-po de arquitetos que recepcionaram o mestre.
No fim dos anos 40, Lota herdou uma vastaextensão de terra em Samambaia, Petrópolis.Dividiu o terreno e vendeu lotes a pessoas queescolhia a dedo, entre elas um aguerrido jorna-lista, Carlos Lacerda, com quem gostava de con-
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uma vez flamenGO...
versar sobre rosas. Para si, decidiu erguer umacontradição em termos: uma casa supermoder-na, no meio do mato. Essa casa tornou-se umícone da arquitetura moderna brasileira, e Lotadedicou a inteira década de 50 a construí-la.
Tudo mudou em 1960, quando Lacerda foieleito governador. Na festa de comemoração, noapartamento de Lacerda na Praia do Flamengo,ele a convidou a integrar sua equipe de governo.Lota apontou para um entulho em frente: “Dê-me esse aterro. Vou fazer ali um Central Park.”
O plano para o aterro não se parecia em nadacom um Central Park. Uma avenida com quatro
pistas de alta velocidade ligaria a Zona Sul aocentro: era uma obra para automóveis. Arranha-céus cresceriam ao longo da avenida. Engenhei-ros, arquitetos e administradores tomariam contado projeto.
Chega Lota, elegante e segura de si. Infor-ma à incrédula mesa de diretores que as qua-tro pistas para carros vão virar duas, que nãohaverá prédio na região aterrada, que, em vezdisso será plantado um jardim com cinco quilô-metros de extensão, para que pedestres pos-sam caminhar por entre as árvores, sentindo abrisa marinha no rosto, sim, porque a praia será
59out/nov/Dez 2004
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restaurada ar tificialmente, para preservar ocontorno da Baía de Guanabara. Haverá opor-tunidade para lazer, esporte e contemplação dobelo para todos.
Esse inesperado coquetel de estética, ecolo-gia, democracia e lazer não era palatável. Haviamuito dinheiro envolvido. E a nomeação de Lotafoi recebida com indignação e hostilidade pelosfuncionários diplomados, que teriam que se sub-meter ao comando daquela mulher. Em poucotempo, uma montanha de burocracia e jogadaspolíticas emperrava seu projeto de parque, soba alegação de que era visionário.
Chega Lota, elegante e
segura de si. Informa à
incrédula mesa de
diretores que as quatro
pistas para carros vão
virar duas, que não
haverá prédio na região
aterrada e que em vez
disso será plantado um
jardim com cinco
quilômetros de extensão
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Lota então convenceu Lacerda a constituir umgrupo de trabalho composto de excepcionaisprofissionais, todos amigos dela, como AffonsoReidy, Jorge Moreira, Sérgio Bernardes e Rober-to Burle Marx, sendo ela mesma nomeada pre-sidente do grupo. Agregou um número de arqui-tetos jovens, “Lota’s Boys”, que a admiravam. OParque do Flamengo começou a tomar forma.
Evidentemente, o parque não era a exclusivapreocupação de Lacerda. Lota se ressentia denão ter espaço para fazer suas reivindicações.Passionais, os dois discutiam furiosamente,quando ela conseguia acesso ao gabinete. Lotapassou a bombardeá-lo com cartas furibundas,reclamando contra o que considerava cretinicesdos auxiliares dele e conclamando-o a lutar pelapreservação do patrimônio natural da cidade.Escreveu cartas antológicas, instando-o a de-sautorizar a construção de um hotel no Morro
Lota escreveu cartas
antológicas para
Lacerda, instando-o a
desautorizar a
construção de um hotel
no Morro do Pasmado e
a não consentir que o
Parque Lage virasse
cemitério. Felizmente,
conseguiu. Graças a
Lota, escapamos de boa!
61out/nov/Dez 2004
Carmen L. Oliveira é autora de “Flores Raras e Bana-líssimas: a História de Lota de Macedo Soares e Eli-zabeth Bishop”
do Pasmado e a não consentir que o ParqueLage virasse cemitério.
Ao longo dos anos, em meio a percalços eengulhos, Lota foi-se consumindo e o parque foi-se erguendo. Árvores de pequeno porte, paranão impedir o fluxo da brisa. Um teatro de are-na, uma pista de dança, um teatro de marione-tes, uma pista de aeromodelismo, a Cidade dasCrianças. Quadras de peladas fora das medidasoficiais, para que não fossem confiscadas porclubes profissionais. Em disputa titânica, Lotaassegurou que o parque fosse iluminado por 112postes de 45 metros de altura, em vez do pali-teiro que seriam os 1 800 postes convencionais.
Em junho de 65, estava claro para ela que asobras não estariam concluídas ao fim do man-dato de Lacerda. E o homem não tinha sequerindicado um candidato para sucedê-lo em outu-bro. Lota pensou em escrever uma carta daque-
las, alertando-o para as conseqüênciascalamitosas da indefinição. Porém, nãoresistindo à vocação para o humor, es-creveu um ofício propondo sua candi-datura a governadora. Delineou um pla-no de governo, o qual incluía o seguin-te ato: “Mandarei trocar todas as es-culturas de mulheres magras coloca-das por V. Exa. por estátuas de mulhe-res gordas. Acho as musas magrasuma alusão pouco patriótica ao nossoestado de subdesenvolvidos; além doquê, todas as mulheres gordas se pa-recerão comigo.”
Lota pressionou Lacerda para quesubmetesse à Assembléia o projeto decriação da Fundação do Parque do Fla-mengo. Isso asseguraria a continuida-de das obras, independentemente dasvenetas da política. Lacerda não o fez,preferindo criar a fundação por decre-
to. O novo governo, seu adversário, anulou odecreto da fundação e deixou o parque ao léu. Aimprensa passou a estampar o abandono doAterro. Burle Marx decidiu espicaçá-la através decartas virulentas nos jornais, chamando-a de pre-potente e de ovo gorado. Após algumas lutasinfrutíferas na Justiça, Lota entendeu que tinhasido mandada embora.
Estilhaçada, ainda teve forças para conseguirque o Patrimônio tombasse o projeto do par-que, assegurando que nunca poderá ser desfi-gurado. Com sua obsessiva dedicação, Lota ar-ruinou a vida afetiva e a saúde. Após sua morte,seu nome foi banido da história, e muitos nãosabem que o Aterro, ilha de beleza no Rio, é umlegado de Lota aos cariocas.
Carioquice62
todo o amor que houver nessa vida
antonio, Bárbara eoutras orquídeas do rio
Carioca do Leblon, Antonio Bernardo co-meçou sua vida profissional, nos anos 70, comum ateliê no bairro do Jardim Botânico. O Rioo elevou a um panteão. A avenida seria de mãodupla. Sua retribuição veio a partir do nasci-mento da primeira filha, quando ele ganhou
No nascimento da primeira filha, Bárbara, há 19 anos, Antonio Bernardo
ganhou uma orquídea e duas paixões: a mimosa primogênita e uma
jóia em flor. Depois, viria outra orquídea, de nome Alexia. Mas aí já é
uma outra história. Levado pelo encantamento com essa ourivesaria da
natureza, o designer de jóias adotou o Orquidário do Jardim Botânico. A
cidade agradece o nascimento de Bárbara.
uma orquídea. “Depois que acabou a flora-ção não sabia direito o que ia fazer comaquela planta. Não podia jogar fora uma coi-sa viva. Vou cuidar? Achei que seria dificíli-mo, mas decidi que outras floradas viriam”,conta Antonio.
63out/nov/Dez 2004
A solução encontrada foi ligar para quem ha-via lhe dado o presente e saber o que fazer. Asdificuldades eram “tigres de papel”. Antoniocomeçou a cuidar de sua orquídea, observandotodas as recomendações. O resultado não po-deria ter sido melhor: um ano depois, ela voltoua florescer. Antonio compara esse momento aoda maternidade: “A mãe sempre se dedica maisao bebê do que o pai, o que é natural. E euacabei encontrando mais uma filha, a minha or-quídea.”
Animado com a boa experiência, resolveucomprar muitas outras, que preencheram seuapartamento e, mais tarde, parte da proprie-dade da família em Itaipava, onde ele tem umpequeno orquidário. No nascimento da segun-da filha, Alexia, também comprou uma orquí-dea para ela.
Freqüentador assíduo do Jardim Botânico,aonde levava as filhas para brincar, ele se sentiafrustrado por querer visitar algumas áreas es-pecíficas, como o Orquidário, que estavam fe-chadas ao público. Eureca! Veio aí a sublime ins-piração. Quando o Jardim Botânico passou a fa-zer parcerias com a iniciativa privada, Antonioestava lá na primeira fila. “Achei que esta seriauma maneira de retribuir tudo aquilo que estacidade me proporcionou. Além do que, o proje-to era interessante por possibilitar a recupera-ção de algumas espécies já quase em extinção.”
A reforma do Orquidário de 500 metros qua-drados manteve a estrutura metálica da estufae o telhado de vidro, originais de 1890. Inspi-rado em desenhos ingleses, o prédio abriga,hoje, na estufa e no ripado, mais de 3.580 exem-plares de 600 espécies de plantas, entre or-
Carioquice64
O ano da graça de 2004 está
sendo para Antonio Bernardo
um marco do reconhecimento
ao seu trabalho. Ele recebeu
três dos mais importantes
prêmios de design da Europa,
o IJL Jules Award, na
Inglaterra, o Red Dot Design
Award e o Silver If Design
Awards, ambos na Alemanha.
Isso, poucos meses depois de
inaugurar um espaço na
Collete, em Paris, a loja
conceitual de maior prestígio
na França. Só falta agora
receber mais uma orquídea.
quídeas ameaçadas de extinção, plantas raraspelo seu tamanho e outras pelo valor histórico,coletadas no início do século passado. Mas otrabalho continua, conforme explica AntonioBernardo: “a planta mais evoluída do reino ve-getal reúne mais de 35 mil espécies em todo omundo, sendo que o Brasil ocupa o quarto lu-gar na quantidade desta flora e pretendemosenriquecer ainda mais o acervo”.
Além da aber tura regular ao público, sãorealizadas duas grandes exposições anuais –em maio e setembro – com plantas da cole-ção permanente e de produtores de diversosestados.
A sensibilidade do designer também deu àcidade o Espaço AB, em Ipanema. Dedicado,principalmente, às artes plásticas, o espaço ofe-rece duas exposições anuais, intercaladas comeventos de música, poesia e palestras. Para lá,Antonio Bernardo já levou mostras de Lygia Cla-rk, Celeida Tostes, Ivan Serpa e de artistas queainda não estão com suas carreiras tão conso-lidadas, mas já são reconhecidos. “A propostado espaço é instigar as pessoas, provocar, paraque elas exercitem o seu olhar e a sua compre-ensão das diversas formas de arte”, explica. Apróxima mostra, que ficará até dezembro des-te ano, será a “If Design Award 2004”, em queserão mostrados os trabalhos premiados de18 designers brasileiros.
Sem ter concluído o curso de engenharia,Antonio Bernardo é autodidata, e diz: “Acho quepor isso estudei e continuo estudando muito,mais, talvez, do que se tivesse me formado”. Aentrada num mercado praticamente inexistenteno Brasil há 34 anos e o sucesso que o acom-panha desde então, ele atribui a uma boa estrelae à ajuda dos amigos. “Sempre procurei fazeruma coisa diferente, mostrar algo que as pes-soas ainda não tivessem visto”, explica.
Anel Expand
Anel Ciclos
Anel Celebration
todo o amor que houver nessa vida
Carioquice66
aquarela do Brasil
Gallé Também é coisa nossa
p o r márcio alves roiter
Reza a lenda que o francês Émile Gallé nunca esteve por estas praias.
Mentirinha. Pois que de outra maneira seria possível ao incomparável
mestre do vidro apreender a sinuosidade das montanhas e o vigor
da vegetação, gravando as deslumbrantes imagens em vasos de diversos
formatos? Se Gallé por aqui não esteve, sua alma com certeza visitou o Rio.
Carioquice66
67out/nov/Dez 2004
Os vasos de Gallé (1846-1904) –em vidro soprado e com vistas do Riogravadas com ácido fluorídrico – fo-ram feitos em 1900. Ainda hoje, sur-preendem os especialistas na obra dogenial mestre do Art Nouveau. Criadorda École de Nancy, o artista, cujo cen-tenário de morte se completa este ano,deixou uma obra multifacetada. Alémdas excepcionais peças de vidro, pro-duziu obras-primas em mobiliário ecerâmica. Deixou ainda um legado denumerosos estudos e experiênciasbotânicas. Sua paixão pelas plantas le-vou-o a instalar ao lado de sua manu-fatura uma estufa com milhares de es-pécies do mundo inteiro. Lá ia buscarinspiração para seus projetos.
Duas experiências recentes de-monstram como seus trabalhos sobreo Rio ainda causam surpresa. Em maiode 2002, inaugurando a exposiçãoParis 1900, no Centro Cultural Bancodo Brasil, com peças do museu quedirige – que incluem vasos Gallé – Gilles Chazal,do Museu do Petit Palais, arregalou os olhosquando lhe falei da existência da série Rio deJaneiro.
Outro profundo conhecedor da obra do ar-tista francês, François Le Tacon, é autor de várioslivros sobre Gallé. Há dois anos, publicou suamais recente obra, “L’Oeuvre de Verre d’ÉmileGallé”, e nela incluiu uma foto de um vaso, quelhe emprestei. Para ele, foi uma novidade.
Uma explicação para o desconhecimento quecerca a série reside na pequena quantidade depeças que saíram dos fornos da manufatura deNancy. Em todo o mundo, devem existir, hoje,cerca de cem vasos, se tanto. E eram peças deprodução primorosa, algumas acondicionadas
em estojos de veludo e seda, como autênticasjóias. Aliás, no Rio de Janeiro, eram vendidosnas melhores joalherias da cidade!
É também intrigante que, depois de mais de30 anos de buscas, a quase totalidade dos GalléRio tenha sido encontrada fora da cidade. Umdepoimento interessante é o de Adayr Eiras deAraújo, recentemente falecido, que me mostrouo presente de casamento recebido de seus pa-drinhos, em fins da década de 1920: um peque-no vaso, de 10 centímetros, ainda no estojo.
A peça incorpora uma técnica complexa eapresenta uma profusão de cores. Mostra doisdos maiores símbolos da cidade: de um lado, oCorcovado e, de outro, o Pão de Açúcar. Umapeça com essas características, mesmo peque-
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aquarela do Brasil
na, pode ser mais valiosa do que umacom o dobro do seu tamanho, mascom menor nível técnico.
Projetados dentro do estilo deno-minado “cameo” (inspirado nos ca-mafeus, muito em moda em fins doséculo 19), os vasos tinham entre seise 60 centímetros e de três a seis tonse semitons. Na maioria, além da assi-natura “Gallé”, encontramos gravado:“Rio de Janeiro”.
Nenhuma outra localidade mereceuesta homenagem na obra do artistafrancês. São numerosas as vistas daregião de Nancy, com seus pinheiros,plátanos, lagos e rios, todas essen-
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Apresenta o Pão de Açúcar, mais palmeiras
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69out/nov/Dez 2004
cialmente européias. O Lago de Como, na Itália,também foi retratado, assim como a Catedral deSaint Nicolas-de-Port, situada em uma cidadepróxima a Nancy.
Todavia, o Rio de Émile Gallé é estudado emprofundidade. Três das muitas montanhas do Rioaparecem nos vasos: uma é o Corcovado, com aEnseada de Botafogo e imagens detalhadas docasario – pode-se observar a Igreja de NossaSenhora da Imaculada Conceição e sua torre gó-tica, além da rocha com sua formação original,que foi aplainada em 1931 para a instalação doCristo Redentor. O Pão de Açúcar é retratado emvárias obras, ainda sem o bondinho, que come-çaria a ser construído em 1910. E a Pedra daGávea pode ser vista ora com um trecho do ca-minho que se tornaria a Avenida Niemeyer, oracom a visão total da Praia da Gávea (nome ofi-cial da Praia de São Conrado).
As formas dos vasos eram escolhidas a par-tir da paisagem a ser retratada, numa harmo-nia bem típica do Art Nouveau. Um rochedo emforma de ponta, como o Corcovado, sempreaparece em vasos que se afinam na borda. Al-guns têm até uma espécie de bico. A forma acha-tada da Pedra da Gávea se casa com um vasode corpo e boca que lembram bastante a mon-tanha.
Uma pergunta que sempre escuto é se Émi-le Gallé esteve no Rio. Por incrível que pareça,não se tem resposta. As biografias oficiais nãoregistram a presença do artista na cidade. Masé intrigante o fato de que, além de termos pa-norâmicas corretas quanto a perspectiva, ca-sario, vegetação, pássaros etc. ainda se notemas diferenças entre as horas do dia, indicadaspela maior ou menor insolação que o coloridodos vasos mostra. Em alguns, até a névoa en-tre os morros cariocas se faz notar. Tudo muitoromântico...
Lugares distantes e desabitados na época,aos quais só se chegava por trilhas, como a re-gião da Pedra da Gávea, estão descritos comperfeição. Não teria ele feito uma viagem discre-ta, quem sabe apaixonado por alguma rara es-pécie vegetal, ausente da sua coleção de plantastropicais?
Um dos mais conhecidos registros da sérieRio de Janeiro é da Exposição do Centenário daIndependência do Brasil, em 1922, que ocupouimensa área à beira-mar. Os vasos estavam ex-postos com destaque no Pavilhão Francês, cons-truído por Alberto Monteiro de Carvalho e OlavoEgydio de Souza Aranha, uma réplica do PetitTrianon, em Versailles. Depois de doado à cida-de pelo governo francês, transformou-se nasede da Academia Brasileira de Letras.
Márcio Alves Roiter é pesquisador
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samba do crioulo doido
Na árvore genealógica do humor carioca, Mendes Fradique –
pseudônimo do médico José Madeira de Freitas – deveria ser o
antepassado de Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Através de seus
vários livros, que foram sucesso editoral nos anos 1920, Fradique
apresentou um Rio de Janeiro carnavalizado e irreverente, assestando
as baterias de sua sátira mordaz contra os arquitetos e escultores dos
monumentos que ornavam a cidade.
o rio pelo “método confuso”
Questionando as possibilidades de o humo-rismo de qualidade vir a manifestar-se no Bra-sil, Mendes Fradique afirmava que o humor erao resultado do contraste entre a realidade regi-da pelo bom senso e as situações absurdas.Para ele, no Brasil, a própria realidade era ab-surda. E citava três exemplos: o prédio do Clu-be de Engenharia, erguido na recém-aber taAvenida Central (hoje Rio Branco), ter sido oúnico a desabar, a construção do pomposoedifício da Biblioteca Nacional, no qual, depoisde pronto, notou-se faltar-lhe um detalhe – asala de leitura – e o fato de que num país demilhões de quilômetros quadrados de exten-são se aterrasse uma linda baía, a da Guana-bara, para ganhar terreno ao mar.
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Mendes Fradique foi um atento observadordos monumentos e prédios do Rio. Para ele, aestátua do escritor de “Iracema”, situada napraça que tem o seu nome, ali no Catete, eraobra de um escultor guarani, “talvez Pery”, quenos apresentava um “pacatíssimo José de Alen-car cochilando no banco da frente”. O obeliscoda Avenida Rio Branco seria a estátua do ex-ministro das Relações Exteriores Lauro Müllere lembraria vivamente o original: “Muita altura epouca base”. O marechal Floriano, encarapita-do naquela torre que fica ali em plena Cinelân-dia, junto ao metrô, não teria a valer-lhe contraas manifestações e comícios a não ser um pe-daço de caminhão. Em torno dele, “vitimadospelo mesmo executor”, estaria um grupo de
heróis republicanos prontos para segurar asquatro pontas de uma rede, caso o marechalperca o equilíbrio. Ali está também Caramuru,“filho do Trovão, do Lopes Trovão, com umbacamarte e um frango de bronze que preten-de oferecer a Floriano, perto de um índio, comcara de quem quer avançar no frango”.
As crônicas de Mendes Fradique não só sa-tirizavam os monumentos, mas também em-prestavam-lhes vida. A estátua de José Boni-fácio, no Largo de São Francisco, por exem-plo, de vez em quando sai para um cafezinhona Rua dos Andradas. A de Floriano concedeentrevista onde confessa morrer de desgostopela sua localização, pois ali na Cinelândia,onde se encontra, tornou-se o “Padroeiro dos
Isabel Lustosa é escritora, cientista política e historiadora da Casa de Rui Barbosa
Carioquice72
samba do crioulo doido
Comícios” em que se discute o preço do feijãoou alguma candidatura plebéia. Revela aindasaudades do tempo em que fora sino, suspi-rando: “Eu, bronze heráldico a bancar um Ma-rechal de Ferro.”
Mas foi na crônica intitulada “O Palácio daCâmara é o Mausoléu do Bom Gosto?” que ohumorista se superou. Nela o autor descreve emdetalhes, ressaltando as desproporções, as es-tátuas que encimam o atual prédio da Câmarados Deputados do Rio (aquele situado pelo daPraça 15 com uma enorme estátua de Tiraden-tes à frente). Valendo-se de seus privilegiadossensos de humor e de crítica, o jornalista de-sanca os arquitetos que conceberam o edifício,erguido em 1922.
A crônica, quase contemporânea do palácio(publicada no livro “A Lógica do Absurdo”, LeiteRibeiro, 1925), satiriza não só a arquitetura ne-oclássica, tão em gosto no Rio daqueles tem-
pos, como a maneira de incorporar os símbo-los de nossa história.
O carro-chefe das críticas é o grupo de repu-blicanos históricos situados a um dos cantos doprédio. No grupo, Mendes Fradique destaca oenormíssimo cavalo em que está montado o ma-rechal Deodoro da Fonseca. O desventuradoquadrúpede, no dizer de Mendes Fradique (“Nãomenos republicano, um quase nada histórico,mas perfeitamente paradoxal”), pela conforma-ção teratológica, teria valido uns cobres ao em-presário Pascoal Segreto, especializado na pro-moção de espetáculos do tipo “aberrações danatureza”. De pernas curtas e calçudas, o cava-lo, terrificado pela vertigem da altura, só nãofala porque, sendo republicano histórico, “a co-moção embarga-lhe a voz”. Em volta de Deodo-ro, vestido de túnica romana, estaria um magotede republicanos “mais ou menos históricos eabsolutamente inverossímeis”, todos de saioteao vento, agarrando-se aos estribos da estátuaeqüestre, como que tentando conter o ímpetodo marechal. Destaque para Benjamin Constant,que, sob a túnica romana, ostentaria uns cane-lões de jogador de futebol. Ele que, segundoMendes Fradique, “em sua vida de magro e dé-bil pensador, jamais deu um pontapé, deu quan-do muito uma cabeçada, a de 15 de novembro”.
Para coroar a desproporção que caracterizao conjunto, os arquitetos teriam distribuído aolongo da fachada “todo um Olímpio liliputiano,uma fileira de deuses pigmeus, de gasparinhosde deuses” e indaga Mendes Fradique: “Comopoderão valer os auspícios daquela Minerva,daquela Tenis, ambas nanicas, ambas franzinas,contra o furor daqueles latagões ciclópicos?”.
Os arquitetos teriam alegado em defesa pró-pria que os tipos estavam à romana porque oestilo da casa é romano. O argumento não pro-cede, pois, segundo o humorista, tudo ali seria
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Mendes Fradique também expressava seu
humor em caricaturas, como as que faziam a
graça das capas de “O Rio Ilustrado”, uma
das famosas revistas da época
grego, como seriam gregos os autores do pro-jeto em coisas de arquitetura. A esperança deMendes Fradique reside numa desconfiança queele diz compartilhar com Deodoro: a de que ocavalo também seja grego, uma espécie de ca-valo de Tróia, e que, quando menos se esperar,saia-lhe de dentro o bom senso e destrua tudoa marretadas.
Os contrastes que a Mendes Fradique emmil novecentos e vinte e poucos pareciam gri-tantes parecem graciosos aos nossos olhosacostumados ao fenômeno das paredes deedifícios altíssimos emparelhados em Copaca-bana. Talvez o bom senso, que parece nuncater se libertado do cavalo de Tróia do Palácioda Câmara, pudesse ter impedido tantas coi-sas absurdas que o Rio viu serem cometidascontra a sua paisagem humana e natural. Olhara cidade com olho vivo, com olho atento, críticoque seja, é exercício a que todo cidadão deviase obrigar invocando sempre, como Mendes Fra-dique, o bom senso ao ver o Rio atravessar umedifício sob as camas e mesas de famílias, emturbulência constante rumo à Barra; ao assistirà destruição do Monroe para nada, à desfigu-ração do Catumbi e ao abandono a que foramrelegados bairros como o Santo Cristo, a Saú-de e a Gamboa.
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p o r antônio houaiss
riomaniaRiomania s.f. (1990) paixão, obsessão, amor
por cursos d’água, por quaisquer modalida-
des de rios (córregos, regatos, riachos, ribei-
ros, ribeirões, ribeirinhos, olhos d’água flu-
entes etc.) mais suas margens e seus, pro-
priamente ditos, marginais, esp. esses mes-
mos sentimentos ou pendores, deliberada-
mente cultivados, acrescidos do vício fecun-
do e sadio de dar e dar-se ao Rio, dito Rio de
Janeiro, redito Cidade do Rio de Janeiro, an-
tedito São Sebastião do Rio de Janeiro, pre-
dito e multidito e mundidito Gloriosa Cida-
de de São Sebastião do Rio de Janeiro, trans-
Carioquice74
pitaco
75out/nov/Dez 2004
dito Cidade Maravilhosa enc. isso inclui a
busca e doação de bens, espontâneas, em
favor de seus nativos, cariocas ou adotivos,
cariocados, ou metecos vinculados e radi-
cados, carioquizados, todos irmanados por
um senso comum de identidade feliz, orgu-
lhosa, carinhosa, generosa com a fisicidade
natural da sua baía, mais a periferia dela,
com colinas, morros, montanhas, pães e gá-
veas e corcovos e corcovados e lagoas e la-
gunas e lagos, mais a fisicidade edílica ou
edificada e a non-aedificandi, com o Paço,
os Montignys, os Reidys, os Niemeyers, os Bur-
les, os Casés, as favelas, os becos, os par-
ques, os jardins, as árvores, a luta pela sua
preservação, recuperação, manutenção – mais
o amor dos concidadãos –, a que faltam cre-
ches, escolas, merendas, benfans, benefíci-
os, beneplácitos, benedicências, benemerên-
cias, benefratências sint. m.q. amor do (pelo,
em favor do, em pró do, em prol do) Rio de
Janeiro etim. rio lat. rívus + gr. manía ‘loucu-
ra, demência, loucura de amor, profecia,
transporte, inspiração’.
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Antônio Houaiss (1915-1999), filólogo, escritor e tradutor,presidiu a Academia Brasileira de Letras
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como uma onda no mar
nada do que foi será...
p o r cláudia Braga Gaspar
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Praia do Flamengo, 1917
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Durante todo o século 19, o banho de mar nacidade do Rio de Janeiro concentrava-se princi-palmente na orla presente entre o Passeio Pú-blico e a Praça 15, banhada pela águas calmasda Baía de Guanabara. As mais freqüentadaseram as praias de Santa Luzia, do Boqueirão doPasseio e a de D. Manoel. Um verdadeiro palcopara os modismos da época.
Já a região hoje denominada de Praça Mauá,localizada na direção do limite do município doRio de Janeiro com Duque de Caxias e São Joãode Meriti, era formada por enseadas e peque-nas baías, muitas delas, utilizadas como anco-radouros e trapiches, servindo a uma popula-ção que vivia das atividades ligadas ao trans-porte marítimo e da pesca. As embarcações,de vários tipos e tamanhos, chamavam a aten-
ção, tendo sido a área, muitas vezes descritapor viajantes que aqui aportavam, como um ver-dadeiro mar de velas e mastros, tal qual umacidade flutuante.
Parte deste trecho é área que hoje integra aregião do Cais do Porto, que começou a desa-parecer em 1904, quando tiveram início asobras de construção do novo porto da cidadedo Rio de Janeiro. Ali, praias como São Cristó-vão, Caju, Gamboa, Saúde, Formosa e outrasbanhavam um Rio de Janeiro que não existe mais.Mais adiante, já quase no limite do municípiodo Rio de Janeiro, as praias de Ramos, Apicu(Maria Angu) e finalmente Inhaúma, atendiamaos moradores do local e serviam como anco-radores para o transporte de mercadorias pro-venientes das fazendas da região.
Não há lugar que melhor traduza o espírito carioca do que a praia.
Espaço onde se cultuam a camaradagem, o corpo saudável e a mente
sã, para o carioca, o banho de mar é uma verdadeira devoção, venerada
desde a infância. Mas toda essa exuberância que deslumbra os daqui e
os de fora já ocupou um espaço muito maior na cidade. O Rio já teve
118 praias, em lugar das 62 que contamos hoje.
Carioquice78
como uma onda no mar
Nesse período, ia-se à praia como receita mé-dica. O hábito do banho de mar foi pegando aospoucos e, somente no despertar do século 20,quando o prefeito Pereira Passos, dando inícioà modernização da cidade, rasga as grandesavenidas, levando o crescimento às áreas aindadesertas e distantes da cidade, como eram a ZonaSul e as praias oceânicas, é que o banho de marganha popularidade, transformando a cidade doRio de Janeiro em verdadeira cidade balneário.
Antes o banho restringia-se a uma pequenapermanência na água do mar, resultado da fre-
qüência quase que diária do paciente em curadurante uma temporada, tempo necessário parao seu restabelecimento. Assim, surgia na regiãodo Passeio Público, na praia de Santa Luzia e noBoqueirão do Passeio, as mais populares, ascasas de banho, onde pequenos quartos eramdisponibilizados aos banhistas, para a troca dovestuário praiano.
A moral e os bons costumes não permitiam aexposição dos corpos, exigindo discrição no ves-tuário praiano. João do Rio, grande cronista doRio de Janeiro do início do século 20, descrevia
Praia de Santa Luzia e desmonte do Morro do Castelo, 1920
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em seus vários artigos para os jornais “O País”e “Gazeta de Notícias”, como era o banho demar naquela época:
“Os banhos de mar! A princípio eram nasbarcas da Ferry, banhos com cordas, em pe-quenas cabines, uma verdadeira complicação,porque na história da nossa civilização deve-mos notar que partimos sempre do mais difícilsem conforto para o simples e claro. Depoisum francês de boa idéia, francês meio judeu,construiu a famosa casa de banhos do Boquei-rão do Passeio, mesmo junto à praia, com umagrande parte de madeira que ia ter alguns me-tros dentro.
“Desde as quatro horas da manhã, abria acasa. Aos poucos, naquele estabelecimento defranceses, os banhistas, o pessoal interno foise tornando todo de italianos. E foram os itali-anos que fazendo economias com aquela vidasem gastos e as gorjetas foram montando ou-tras casas, a princípio na mesma rua, depoisnas vielas estreitas, entre o mar e a Rua da Mi-
“O banho restringia-se a uma pequena
permanência na água do mar,
resultado da freqüência quase que
diária do paciente em cura durante
uma temporada, tempo necessário
para o seu restabelecimento. Assim,
surgiam as casas de banho, onde
pequenos quartos eram
disponibilizados aos banhistas, para a
troca do vestuário praiano”
“O hábito do banho de mar foi
pegando aos poucos e somente
no despertar do século 20 é
que ganha popularidade,
transformando a cidade do Rio
de Janeiro em verdadeira
cidade balneário”
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sericórdia, e afinal, na ponta da praia de SantaLuzia, a casa que em 1888 era de banho, paragente barata.
“Das cinco em diante: senhoras pálidas, decapas e cesta, com as roupas, famílias inteirasdesde os petizes até as negrinhas mucamas, ca-valheiros que não tinham dormido, mulheres devida irregular, sofredores reumáticos, macilen-
tos, magros. Entravam pelo corredor de ladri-lho vermelho, davam no escritório, em forma derotunda, onde se muniam das chaves dos quar-tos e das roupas, iam despir-se. Com o subir dosol vinha chegando a gente de mais dinheiro nainvasão dos empregados do comércio.
“E eram funcionários públicos, eram famíliasde nome, eram titulares. Algumas vinham de Bo-
Praia de Ipanema, em 1904, com o Arpoador ao fundo
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tafogo, de carro e paravam à porta do PasseioPúblico fazendo por dentro do jardim o percur-so a pé, tanto na ida como na volta. O Passeiotinha mesmo uma porta de comunicação para aRua dos Banhos.
“Das 8 às 9 era positivamente a apoteose,no mar, nos estabelecimentos, nos cafés.
“Nos estabelecimentos era a entrada e a sa-
ída, o vai e vem febril, corridas de gente molha-da, corridas de gente já vestida, cumprimentos,risos, apertos de mão, a cordialidade dos ajun-tamentos, que leva as ligações duradouras, aoamor, ao devaneio sentimental...”
Essas praias de banho existiram até aproxi-madamente anos 20, com bastante popularida-de, até que o prefeito Carlos Sampaio, dando
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como uma onda no mar
“Os anos 30 e 40 marcam o
esplendor de Copacabana. Sua praia
é reverenciada pelas estrelas de
Hollywood e seu reino permanece
até os anos 60, quando Ipanema
desponta ao som de ‘Garota de
Ipanema’ e passa a ser a grande
estrela praiana”
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Cláudia Braga Gaspar é historiadora e autora do livro “OrlaCarioca História e Cultura”
início ao desmonte do Morro do Castelo, aterrae modifica a orla da cidade situada nas suas ime-diações. O Morro do Castelo, baluarte da cidadedo Rio de Janeiro, local onde a cidade crescera,é arrasado, transformando-se em Esplanada doCastelo, como se houvesse castelos chatos. Res-tou como única testemunha viva desse passadoa Igreja de Santa Luzia, que deu nome à praiaoutrora ali presente. E o banho de mar do cario-ca muda-se para as praias do Flamengo e daUrca e para as praias oceânicas.
Copacabana, Ipanema e Leblon, ainda comum pequeno crescimento, vão ganhando popu-laridade ao longo dos anos 20, principalmenteapós a criação do serviço de “Sauvatage”, ousalvamento. Quando são instalados estes pos-tos ao longo da orla de Copacabana, dandomaior segurança aos banhistas, as praias pas-sam a ser mais freqüentadas.
Os anos 30 e 40 marcam o esplendor deCopacabana. Sua praia é reverenciada pelas es-trelas de Hollywood e seu reinado permaneceaté os anos 60, quando Ipanema desponta aosom de “Garota de Ipanema” e passa a ser agrande estrela praiana. Permanece reinando atéos anos 80, quando o acesso à Barra da Tijucaé facilitado, graças à construção dos túneis deacesso nos anos 70. Sua praia, principalmentea área denominada Pepê, passa a ser o novolocal de preferência da juventude carioca. Ali tudoacontece.
Se nos anos 20/30/40/50 eram as praiasfreqüentadas basicamente por moradores lo-cais, os anos que sucedem à abertura do TúnelRebouças e, mais intensamente após os anos80, quando a cidade se interliga através dosvários túneis e de uma infra-estrutura de trans-porte mais adequada, mostra um maior afluxode banhistas às praias. O baixo custo de umdia na praia, aliado ao prazer de um bom ba-
nho de mar e lazer, caem cada vez mais no gostopopular. Todos freqüentam: dos mais jovens,que a ela se dirigem nos primeiros raios de sol,aos mais velhos, que, já não podendo desfru-tá-la como gostariam, vão para um belo pas-seio em sua orla ou apenas para um bate papoe algumas horas de relaxamento. O conceito deque saúde e praia são elos interligados faz comque os esportes ao ar livre, uma vida com me-lhor qualidade, sejam objetivados por todos. Apraia transforma-se em balneário permanentee faz nascer o jeito carioca de ser: descontraí-do, informal e alegre.
Posto de observação na praia de Copacabana, erguidoem cimento armado em substituição ao de madeira (àdireita), que seria retirado. Foto de 1929
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Carioquice84
alGodão doce
luzes da cidade
“Gosto muito de bater pernas nas calçadasdo Centro do Rio, onde trabalho há 25 anos. Pararelaxar, olhar vitrines também, me inspirar, reco-lhendo assuntos para notas, crônicas”, confes-sa o jornalista e escritor.
Talvez seja a candura, ou quem sabe a biotipia, ou ainda uma certa
tristeza no olhar, mas há algo de Chaplin em Joaquim Ferreira dos
Santos. Pode ser que o estilo cosmopolita e bem-humorado do cronista
estimule a lembrança. Pode ser... Mas, não é difícil imaginar Joaquim
caminhando pelo Centro do Rio, com chapéu-coco e rodopiando uma
bengala. Vai Joaquim, vai ser Chaplin na Av. Rio Branco das nossas vidas.
“Também gosto dos restaurantes do Centro,aonde vou em busca da chamada cozinha cario-ca. É uma mistura da herança de antepassadoslusitanas e negros. E essa cozinha você tinha emcasa, e com suas origens em Portugal. Eu, por
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“É nos restaurantes mais
tradicionais do Centro que
mato a saudade de minha
infância, de minhas origens
portuguesas. Também da
própria cidade, daquelas
casas que fecharam, como
na Praça 15”
exemplo, comia sarrabulho e miolos de boi. Sãopratos que desapareceram da casa das pesso-as e ainda mais dos restaurantes, como os exe-cutivos, por não terem mais charme”, acrescen-ta o jornalista e escritor.
E os restaurantes do Centro são tão típicosque não existem em outro local da cidade, diz Joa-quim, que enumera alguns: Penafiel, Escondidi-nho, Ficha, Bar Luiz, Bar Brasil, Cosmopolita, Ca-pela, Sentaí... “E o Beco das Sardinhas?”, lembraele. Ao ar livre, bem no espírito do Centro, o becosurgiu naturalmente. “Se fosse em Roma, estarianos cartões-postais”, comenta Joaquim.
Os restaurantes mais tradicionais do Centrosão lugares em que não se dá muita importânciaà decoração, ao luxo, às paredes ou a outros
Carioquice86
alGodão doce
detalhes. Apostam em uma comida tradicional.“É neles que mato a saudade de minha infância,de minhas origens portuguesas. Também daprópria cidade, daquelas casas que fecharam,como na Praça 15”, diz o cronista.
A esses restaurantes, que têm muitas histó-rias, Joaquim leva visitantes que precisam conhe-cer o Rio durante uma rápida passagem. Assim,eles têm um flash da cidade, da comida, da cor-dialidade, das tradições seculares.
“Esta cidade estava desaparecendo, e de re-pente contou com uma série de homens ligadosà sua história, cuidadosos com a nossa memó-ria, que nos permitiram ter hoje um Centro bempreservado. Há quinze, vinte anos, a perspecti-va é que tudo estivesse demolido no mês se-guinte. E hoje há uma série de leis impedindo adestruição. O Corredor Cultural representa umtrabalho notável de preservação. A cidade sem-pre associou a modernidade, a evolução, comdemolição. Mas, hoje, o Rio tem um grande cui-dado com a sua memória”, comenta um conten-te Joaquim.
Ele conta que há lugares que ele visita e quesuas duas filhas incorporaram a seus própriosroteiros. Uma tem 20 anos e a outra, 24. Orgu-lhoso, Joaquim diz que “conhecem o Centro doRio como poucos da geração delas: o CentroCultural Banco do Brasil, os Correios, a GaleriaPaulino Fernandes. É um flash rápido, cultural,
de memória arquitetônica e de histórias. É sóapresentar isto às pessoas que elas gostam. Hojeo jovem da Zona Sul não sai de lá. E o Centrotem muita coisa. O Mosteiro de São Bento, oCampo de Santana, de onde eu saía para almo-çar com minhas filhas na Lisboeta.”
Joaquim gosta de ir a lojas de CDs baratosno Centro, na Rua da Alfândega, que trabalhamcom um tipo de música que as lojas do Zona Sulnão oferecem. Também freqüenta as bancas deLPs e revistas antigos naquele pequeno trechoda Rua Pedro Lessa que vai da Avenida Rio Bran-co à Rua México. Sem falar nos sebos da Rua daCarioca, ali por perto da Praça Tiradentes.
“O Baixo Lavradio é outro exemplo da sorteque o Rio teve com pessoas sensíveis, como oPlínio Fróes, do Rio Scenarium, que se dedica-ram a parar com o bota-abaixo, essa doençaque acometia a cidade. Surgiu a consciência deque precisamos conservar, manter, e não pordiletantismo ou curtição, mas porque essas re-ferências do passado fazem parte da vida daspessoas, do equilíbrio emocional. A área daLapa realmente ressurgiu, e sem perder o es-pírito da coisa. Manteve a ligação com o iníciodo século passado”, diz Joaquim, que joga suasfichas num futuro cheio de recordações: “A pre-servação arquitetônica e de paladares do Cen-tro é uma boa notícia. O Centro está mantido,seguro. Não se perde mais.”
Joaquim freqüenta as bancas de LPs e
revistas antigos naquele pequeno
trecho da Rua Pedro Lessa que vai da
Avenida Rio Branco à Rua México. Sem
falar nos sebos da Rua da Carioca, ali
por perto da Praça Tiradentes.
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EmBaIXadOr do rio
Augusto MarzagãoJornalista
Um lugar-comum, para começar: a carioquiceé um estado de espírito! É a mais que perfeitamistura de coisas disparatadas, aparentementeantagônicas – quadradas, redondas, agudas,rombudas. É tudo de bom que Deus criou para aalegria das gentes e do melhor que o diabo pro-duziu para a nossa perdição. É sal e açúcar. Noitee dia, com uma boa madrugada de permeio. Égalhofa e sisudez. Um coquetel bem temperadode Macunaíma, com fartas doses de Primo Alta-mirando e dos heróis faceciosos das gestas pi-carescas. É Antônio Houaiss (Que Deus o tenha!)e Zeca Pagodinho, D. Quixote e Sancho Pança. Émocinho e vilão, mas um vilão com rasgos de
carioquice,sim senhor,por que não?
generosidade, que no fim da história ganha anamorada do mocinho. (Há vilões-bandidos, éverdade, mas esses não têm nenhum espírito...)
A carioquice está nas curvas douradas dasgarotas de Ipanema, na manemolência dos últi-mos malandros, nos falsos cabelos de fogo davelha senhora, no insuperável canto nasal de Aracide Almeida, na minissaia que mal cobre o es-sencial. Carioquice é sanduíche de mortadela nabandeja dos canapés de caviar e todos os sa-bores que democraticamente se misturam nosbalcões de comida a quilo. Taí, acabo de desco-brir a pólvora: carioquice é comida a quilo! Umaespécie de salada de frutas salgadas, geralmen-te gostosa e fácil de se engolir no curto interva-lo entre dois expedientes do dia.
O pior, minto, o melhor é que carioquice pega.Venha alguém de onde vier – da Europa, dosStates, da China, da Cochinchina, ou daqui mes-mo, dos vizinhos de norte a sul, até mesmo deSão Paulo, que é de onde vim, em pouco tempoé inoculado pelo vírus da carioquice. Basta unspoucos mergulhos no mar de Copacabana ouIpanema, ou umas andanças “pelai” (como diriao carioquíssimo Stanislaw Ponte Preta), sorven-do uma cachacinha esperta nos balcões ense-bados dos esplêndidos pé-sujos que a cidadeostenta. Basta a visão luminosa, resplandecen-te, encantadora e encantatória da paisagem à suavolta. Vira carioca de nascença, detentor da maisautêntica e deslavada carioquice.
Evoé, Rio! – exclamaria o poeta diante de tantoestapafúrdio. Repitamos todos, em alto e bomsom, rebrilhando de carioquice: Evoé, Rio!
Em tempo: quando eu morrer, plantem meucoração nos jardins de Burle Marx, no Aterro doFlamengo. Minha esperança – e a eternidade al-mejada – é que dele brote um desses arbustosque enfeitam, com máxima carioquice, a prima-vera do Rio!