UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ FACULDADE DE …uece.br/mihl/dmdocuments/dissertacaoandersoncoelhodarocha.pdf · Sidney Chalhoub, historiador filiado à historiografia social da escravidão,
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL
MESTRADO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS
ANDERSON COELHO DA ROCHA
DE CATIVO A RÉU, DO JULGAMENTO A FORCA: ENFORCAMENTOS E
CONTROLE SOBRE ESCRAVOS NA PROVÍNCIA DO CEARÁ
QUIXADÁ – CEARÁ
2019
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ANDERSON COELHO DA ROCHA
DE CATIVO A RÉU, DO JULGAMENTO A FORCA: ENFORCAMENTOS E
CONTROLE SOBRE ESCRAVOS NA PROVÍNCIA DO CEARÁ
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado Interdisciplinar em História e Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em História e Letras. Área de concentração: Cultura, memorias, ensino e linguagens. Orientador: Prof. Dr. Tyrone Apollo Pontes Cândido.
QUIXADÁ – CEARÁ
2019
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ANDERSON COELHO DA ROCHA
DE CATIVO A RÉU, DO JULGAMENTO A FORCA: ENFORCAMENTOS E
CONTROLE SOBRE ESCRAVOS NA PROVÍNCIA DO CEARÁ
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado Interdisciplinar em História e Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em História e Letras. Área de concentração: Cultura, memorias, ensino e linguagens.
Aprovado em: 14 de fevereiro de 2019.
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À Família
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a minha família por todo o apoio e incentivo em todas as escolhas que fiz
até aqui, aos meus pais, Rosa e Amâncio o meu obrigado por tudo. As minhas irmãs
Solange, Janelane e Naele e meu irmão Amâncio. A vocês sou profundamente grato.
À minha companheira Tamires, por todo o carinho e, por sempre estar ao meu lado,
como uma das grandes incentivadoras das minhas escolhas. Obrigado por tudo.
Ao Prof. Dr. Tyrone Cândido pela orientação e confiança, obrigado por todo incentivo
e ensinamentos, sou profundamente grato por tudo.
Aos membros da banca, Dr. Eurípedes Antônio Funes e Dr. Manoel Carlos Fonseca
de Alencar por aceitarem fazer parte deste momento, pelas observações,
questionamentos e críticas.
À Luciana Reges pelos valiosos ensinamentos durante a escrita da monografia na
graduação e na construção do projeto que resultou nessa dissertação. Obrigado pela
amizade e por sempre torcer e vibrar em cada uma das minhas conquistas.
As colegas da segunda turma do MIHL, Fernanda Alanna, Lisiani e Laís.
À CAPES, pelo Financiamento da pesquisa.
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RESUMO
Durante a vigência do código criminal de 1830, a província brasileira do Ceará
registrou 24 casos de execuções públicas como forma de punição a delitos
considerados graves. Desse total, dezesseis dos condenados eram escravos. Ou
seja, 2/3 das penas de morte executadas recaíram contra o grupo dos cativos. Esta
pesquisa analisa a pena de morte enquanto mecanismo de controle social da
população cativa na província cearense no século XIX. Castigo exemplar, a pena
capital pública deveria servir de exemplo aos demais cativos, reprimindo a
participação em assassinatos contra senhores e seus familiares, além da participação
em insurreições. Para isso, as execuções ocorriam nas vilas onde habitavam os
condenados, mesmo que seu julgamento tivesse corrido por instâncias na capital da
província ou ainda por foros superiores, até chegar ao Conselho de Estado e a vista
do monarca, na capital do Império. Donos de escravos obrigavam seus cativos a
assistir às execuções, acompanhadas também por uma multidão de curiosos que a
tudo ficava atenta, registrando detalhes dos acontecimentos. A pesquisa utilizou
variados tipos de fontes, como processos crimes, a legislação penal, matérias de
jornais e documentos administrativos. O último caso de pena capital registrado no
Ceará deu-se em 1855, ainda que execuções tenham recaído sobre cativos de outras
regiões do Brasil até os últimos anos do regime escravista.
Palavras-chave: Enforcamentos. Controle sobre escravos. Província do Ceará.
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ABSTRACT
During the validity of the 1830’s criminal code, the Brazilian province of Ceará
registered 24 cases of public executions as a form of punishment for crimes considered
serious. Of these total, sixteen of those convicted were slaves. In other words, 2/3 of
the executed death sentences fell against the captive group. This research analyzes
the death penalty as a mechanism of social control of the captive population in the
province of Ceará in the 19th century. Exemplary punishment, the public capital
punishment should serve as an example to the other captives, repressing participation
in murders against masters and their families, as well as participation in insurrections.
To this end, executions took place in the towns where the condemned people lived,
even though their trial had run through the province capital or through superior forums
of the State Council and the monarch in the capital of the Empire. Slaves owners forced
their captives to watch the executions, accompanied by a curious crowd who kept an
eye on everything, recording details of the events. This research used several types of
sources, such as criminal processes, criminal law, newspaper articles and
administrative documents. The last case of capital punishment registered in Ceará
occurred in 1855, although executions fell on captives from other regions of Brazil until
the last years of the slave system.
Keywords: Hanging. Slave Control. Provence of Ceará.
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SUMÁRIO
1
2
2.1
2.2
2.3
2.4
3
3.1
3.2
3.3
3.4
4
4.1
4.2
5
INTRODUÇÃO ......................................................................................
ENFORCAMENTOS..............................................................................
O CASO DO ESCRAVO FUISSET .......................................................
FORCA PARA OS ESCRAVOS............................................................
PROCISSÕES PARA A MORTE: O TEATRO DAS EXECUÇÕES.....
O CONTRATEATRO ............................................................................
CRIMES.................................................................................................
REVOLTAS............................................................................................
COTIDIANO, CRIMINALIDADE E TENTATIVAS DE CONTROLE
SOCIAL..................................................................................................
A CRIMINALIDADE ESCRAVA.............................................................
OS CRIMES DOS ENFORCADOS........................................................
TRIBUNAIS .........................................................................................
LEGISLAÇÃO E CONTROLE SOCIAL..................................................
ESCRAVOS RÉUS NOS TRIBUNAIS DA PROVÍNCIA CEARENSE..
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................
REFERÊNCIAS ....................................................................................
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41
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81
90
90
105
120
128
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1 INTRODUÇÃO
Para aplicar a pena de morte, a sociedade deveria
ostentar a autoridade moral de não ter contribuído
em nada para fabricar esse criminoso.
Evaristo de Moraes Filho
Enfocada sob diversas perspectivas, a análise das relações escravistas é
um tema bastante recorrente nos estudos de história social. Os autores, de acordo
com seus referenciais teóricos e metodológicos, bem como dos diferentes contextos
históricos, estimularam a discussão de pontos fundamentais: demografia e famílias
escravas, economia da escravidão, revoltas cativas e quilombos, raça, nação,
abolição e pós abolição, para o entendimento do cativeiro em suas distintas formas
de ocorrência. As perspectivas de análise da história social da escravidão são vastas
e, permite avançar no conhecimento das estratégias de resistência e sobrevivência
dos cativos em seu cotidiano. Esta vertente percebe o escravo como sujeito ativo em
seu processo histórico. Tal entendimento veio se contrapor a uma visão que entendia
o escravo como um objeto destituído de vontade, incapaz de dar sentido as suas
ações.
No início do século XX, com a publicação de Casa Grande & Senzala de
Gilberto Freyre, surgiu o esforço de constituir a ideia de uma escravidão pacífica,
especialmente pela comparação que se fazia com outras sociedades escravistas:
“[d]esde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos
domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América”
(FREYRE, 1966, p. 393). Nesse sentido, a miscigenação racial, analisada por Freyre,
proporciona elementos que favorecem o surgimento do mito de uma certa harmonia
das raças, a ideia de uma democracia racial. No cerne destas questões, o estudo
sobre a escravidão proposto por Freyre alcançou maior vigor em virtude das
explicações em torno da formação social brasileira.
As proposições de Freyre não suscitaram contestação imediata. Pelo
contrário, exerceram influência em outros autores, sedimentando ainda mais os mitos
da docilidade do senhor e a submissão do escravo. A partir dos anos de 1950, porém,
uma nova concepção iria se opor de modo contundente a essas ideias, revitalizando
os estudos sobre a escravidão negra no Brasil. As décadas de 1960 e 1970 fizeram
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com que a temática da escravidão fosse retomada de forma mais incisiva, surgindo
estudos que contestavam o “cativeiro brando”. Em outras palavras, trabalhos de
pesquisadores da chamada “escola paulista” representada por Florestan Fernandes,
Emília Viotti, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni tiveram um papel
importante, ao se contraporem às ideias de Freyre sobre as relações paternalistas.
Tais autores empenharam-se na desconstrução da visão amistosa da escravidão
proposta por Gilberto Freyre. Para esses autores, a escravidão tinha um caráter
puramente violento; seus trabalhos se destacaram na denúncia da violência desse
sistema que é baseado no domínio senhorial e na desigualdade social.
A partir de então, o escravo apareceu como uma “coisa”, um ser incapaz
de criar um mundo de significados próprios (sentimentos, aspirações, vontades etc.).
A teoria do escravo coisa foi explicitada por Fernando Henrique Cardoso:
[...] O reconhecimento social da condição de pessoa humana era negado aos escravos, objetiva e subjetivamente, pelos homens livres. Além disso, graças aos mecanismos socializadores da ordem escravocrata, às condições materiais de vida do escravo e às formas pelas quais os escravos se inseriam no processo de produção, as representações mantidas pelos senhores sobre a inferioridade objetiva dos escravos e sobre a impossibilidade natural de o escravo reagir à sua condição, eram aceitos, em condições normais de funcionamento do sistema, pelos próprios escravos (CARDOSO, 1977, p. 152).
A postulação desse sociólogo coisifica o escravo de tal modo que o coloca
como agente passivo do sistema, sob o qual o próprio escravo não poderia lutar
contra. A democracia racial, proposta por Gilberto Freyre é criticada tendo como base
a violência das relações de classe indicadas pelos representantes da “escola paulista”.
Essa representação enganosa só poderia ser quebrada quando o “escravo coisa” se
transformasse no “escravo-rebelde”, rompendo com o sistema, através da fuga, da
insurreição, do assassinato de senhores ou do quilombo. Sidney Chalhoub, historiador
filiado à historiografia social da escravidão, em uma crítica a Fernando Henrique
Cardoso aponta que:
A violência da escravidão não transformava os negros em seres “incapazes de ação autonômica”, nem em passivos receptores de valores senhoriais, e nem tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis. Acreditar nisso pode ser apenas uma opção mais cômoda: simplesmente desancar a barbárie social de um outro tempo traz implícita a sugestão de que somos menos bárbaros hoje em dia, de que fizemos realmente algum “progresso” dos tempos da escravidão até hoje. A ideia de que ela supõe ingenuidade e cegueira diante de tanta injustiça social, e parte também da estranha crença de que
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sofrimentos humanos intensos podem ser de alguma forma pesados ou medidos (CHALHOUB, 1990, p. 42, destaques do autor).
A superação da ideia de escravo coisa só foi sobrepujada com a escravo
rebelde, ou seja, aquele escravo que reage a condição de coisa por meio da revolta e
da violência. Jacob Gorender apontou que “o primeiro ato humano do escravo é o
crime, desde o atentado contra seu senhor à fuga do cativeiro” (1978, p. 65). Fernando
Henrique Cardoso explica ainda que ao escravo restava “apenas a negação subjetiva
da condição de coisa, que se exprimia através de gestos de desespero e revolta e
pela ânsia indefinida e genérica de liberdade” (1977, p. 152).
Abordagens historiográficas mais recentes, configuradas sobretudo a partir
da década de 1980, concentraram seus esforços na percepção dos cativos enquanto
sujeitos das transformações históricas ao longo dos períodos de escravidão. Autores
como Robert Slenes, João José Reis, Flávio dos Santos Gomes, Sidney Chalhoub,
Sílvia Hunold Lara, Célia Maria Marinho de Azevedo são nomes que se destacam
nestes novos enfoques adotados. Contrapondo-se às teses clássicas citadas acima,
esses pesquisadores enfatizam a relevância dos escravos como agentes históricos
manifestados no plano da resistência social e da cultura. Um dos objetivos desse
enfoque é compreender as relações de sociabilidade, mediações culturais, e
experiências dos sujeitos escravizados.
Na análise de Celia Maria Marinho de Azevedo, em Onda negra, medo
branco: o negro no imaginário das elites século XIX, cujo recorte espacial é São Paulo,
essa pesquisadora reforça a identificação do escravizado e do negro, especialmente
das classes dominadas de forma geral, como “atores de sua própria história”. A autora
enfatiza a constituição de um imaginário sustentado pelo temor e pela insegurança
criada pelos conflitos reais ou apenas potenciais, entre uma pequeníssima elite
formada por grandes proprietários e pelas classes de profissionais liberais em
contraposição com um grande grupo de gente miserável – escravizados e livres – que
não era considerado pelas instituições políticas.
Desse modo, o medo branco de uma potencial onda negra ocupava o
imaginário de uma elite senhorial que temia que o Brasil fosse cenário de uma revolta
escrava aos moldes da revolução escrava de São Domingos no Haiti (1791-1804). As
ações de repressão as movimentações da população negra e escrava eram as formas
de causar uma espécie de paz social.
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João José Reis e Eduardo Silva esclarecem que os senhores não exerciam
“seu poder apenas na ponta do chicote, mas também através do convencimento de
que o mundo da escravidão oferecia ao escravo – e a uns mais que a outros –
segurança e mesmo um certo espaço de barganha” (2003, p. 323). Por outro lado, o
cativo que aparentava comportamentos acomodados e, até submissos em um dia,
podia tornar-se o rebelde do momento seguinte, permanecendo numa zona de
indefinição de acordo com as circunstâncias de suas vivências cotidianas. Em meio à
tensão da sociedade escravista, Negociação e Conflito configurar-se-iam como os
limites entre os quais senhores e escravos se relacionavam.
Lançando mão da análise dos autos criminais, Silvia Hunold Lara optou por
dialogar com a historiografia que lhe antecedeu a partir da análise do cotidiano dos
cativos que ali viveram e manifestaram-se por meio de comportamentos tidos como
transgressores. Silvia Hunold Lara também verifica que “A maior parte dos estudos
participantes do debate, nos anos 60, fundava suas análises em referências empíricas
relativas ao século XIX e suas conclusões chegaram a ser muitas vezes generalizadas
para todo o período em que vigorou a escravidão no Brasil” (1988, p. 102).
Maria Helena Machado utilizou-se de processos criminais das cidades de
Campinas e Taubaté referente ao período de 1830 a 1888, objetivando analisar a vida
dos escravos na óptica da resistência. Em Crime e Escravidão, Maria Helena Machado
considera como resistência o uso de estratégias de sobrevivência dos cativos nas
lavouras paulistas. Segundo a autora, uma destas estratégias pode ser detectada nas
justificativas relativas a furtos, apontadas pelos próprios cativos, além de “[g]êneros
alimentícios contra dinheiro, sobrevivência versus acumulação, assim cantavam os
escravos, justificando seus furtos como estratégias de apropriação de uma parcela da
produção realizada” (1987, p. 104).
Dialogando com outras pesquisas que tiveram como base processos
criminais e que buscaram discutir questões pertinentes ao tema do crime e da
criminalidade, compreendemos o crime a partir das considerações de Boris Fausto
que o define como a quebra da norma legal. Boris Fausto define ainda as diferenças
existentes nos termos crime e criminalidade:
As duas expressões têm sentido específico: ‘criminalidade’ se refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento de padrões através da constatação de regularidades e cortes; ‘crime’ diz respeito ao fenômeno em sua singularidade cuja riqueza em certos casos não
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se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas percepções (FAUSTO, 1984, p. 09).
Nesse sentido, perceber as ações de resistência individuais dentro de uma
lógica de resistências coletivas nos levam também a discussão sobre o fenômeno da
resistência individual dentro de uma dimensão mais ampla das ações de resistências
coletivas dos cativos em busca da liberdade.
Além dos já mencionados historiadores, Sidney Chalhoub em Visões da
Liberdade contesta a posição de Fernando Henrique Cardoso e de outros autores com
referência a ideia de coisificação do escravo; eles se empenharam em reconstruir as
atitudes dos escravos que evidenciavam também sua autonomia, muitas vezes,
posicionando-se e impondo condições ao destino que lhes era reservado em meio a
toda a crueldade existente na escravidão.
João José Reis e Flávio Santos Gomes, em Liberdade por um fio: história
dos quilombos no Brasil, informam que em cada lugar do país cuja presença do
escravizado era patente a resistência, assim como a acomodação, ocorria de várias
formas. Apesar de ser ameaçado com castigos físicos, o escravizado ajustava
“espaços de autonomia” com os escravizadores ou, então, trabalhava com lentidão,
estragava ferramentas, queimava plantações, investia contra o escravizador e o feitor,
muitas vezes chegando ao homicídio. Revoltavam-se individual e coletivamente.
Porém, a resistência utilizada com mais frequência na escravização era a fuga, com
a instauração de bandos de escravizados fugidos. No entanto, nem sempre o fujão
procurava um grupo.
Quando refletimos sobre a importância dos sujeitos, notamos que a
mudança de ponto de vista sobre as relações sociais nos traz esclarecimentos
referentes às vivências dos negros escravizados, livres e libertos. Inserida nesse
aspecto, Silvia Hunold Lara, na obra Campos da Violência apresenta bons
esclarecimentos ao analisar, de forma instigante, as relações sociais no Brasil, entre
o final do século XVIII e o início do século XIX, expondo que os antagonismos entre
senhores dominantes e escravizados submissos não condiziam com o rigor que
muitos pesquisadores afirmavam existir.
Silvia Hunold Lara faz um comentário geral sobre a violência retratada pela
historiografia que, a partir da década de 1940 até a década de 1970, estava dividida
em três grupos: o primeiro grupo defendia um sistema escravista de relações pacíficas
e cordiais; o segundo grupo defendia o negro sendo coisa e cujas relações entre
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escravizados e escravizadores eram de violência; e os autores da terceira abordagem
“definiam paternalismo como uma forma de clientelismo” (1988, p. 97). De modo geral,
evidenciamos essas etapas das quais Lara menciona como sendo três, juntamente
com a fase em que o escravo é visto como sujeito de sua própria história.
Em suas análises sobre os crimes de escravos no município de Franca em
São Paulo, Ricardo Alexandre Ferreira (2011), identifica que no âmbito da
historiografia dedicada ao estudo do cotidiano e da resistência escrava no Brasil a
conjugação do trinômio “escravidão-crime-liberdade” propiciou, em conjunto com
outras abordagens e fontes, instigantes debates e até polêmicas interpretativas. Uma
delas desencadeou-se há quase duas décadas, quando alguns historiadores
comentaram que a historiografia precedente, especialmente nas décadas de 1960 e
1970, apesar de contribuir com o avanço na compreensão do papel do cativo na luta
contra a escravidão, centrava-se excessivamente na violência como principal arma
usada tanto para a dominação senhorial quanto para a resistência empreendida pelos
escravos, consoante Ferreira:
Embora não sejam uníssonos, de maneira geral, esses estudos concluíram que o crime, sobretudo o de morte, era um ato limite antecedido por uma série de outras manifestações cotidianas de desagrado dos cativos em sua relação com os senhores. Cientes dessas demandas, muitos senhores realizavam concessões aos seus escravos – interpretadas por alguns pesquisadores como estratégias de dominação fundadas em critérios paternalistas. (2011, p. 26).
Ao explorarem fontes de natureza criminal, alguns desses historiadores se
lançaram à tentativa de interpretar os significados e sentidos conferidos pelos próprios
cativos aos planejamentos de ataques individuais e coletivos contra senhores, feitores
e administradores. À resistência às autoridades senhoriais, os pequenos furtos, os
ataques individuais ou os produzidos coletivamente contra membros diretos da
administração escravista eram percebidos como ataques diretos contra a instituição
do cativeiro no Império. De um lado, os senhores realizavam concessões aos
escravos como estratégia de dominação. Do outro, os cativos eram capazes de
compreender essas concessões como conquistas de suas ações. No campo
historiográfico, essa interpretação esteve fortemente vinculada ao debate
historiográfico das décadas de 1980 e 1990.
Embora não se possa atribuir a todos os escravos a compreensão da
escravidão em sua amplitude institucional, os ataques individuais e coletivos a
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senhores, feitores e autoridades estatais ocorreram em diversas regiões do Império
brasileiro, permeou a literatura, estavam presentes nas matérias divulgadas pela
imprensa periódica e nos debates parlamentares, consequentemente contribuindo de
forma incisiva para extinção da escravidão no Brasil.
Neste ponto da Introdução é o momento de apontar e justificar os recortes
empíricos, temporais e geográficos que balizam e fundamentam o estudo que se vai
dar a ler. Tendo em conta as posições acima definidas e o conjunto da historiografia
a respeito da escravidão, o presente trabalho procurou trazer reflexões semelhantes
à província do Ceará entre 1830 e 1855, visando analisar as relações sociais dos
escravos no século XIX.
Diversamente a uma proverbial escravidão menos violenta que teria
supostamente existido na província cearense, a presente pesquisa deparou-se com
uma série de enforcamentos de cativos que se deram sob um clima de forte tensão.
Evidência do recurso ao que era considerado pelas autoridades como atitudes
criminosas, as ações dos escravos no Ceará em relações a seus senhores, feitores e
outros indivíduos do mundo dos brancos não parecia ser nada amistosas em diversos
episódios. A presente dissertação tem como objetivo: Compreender a pena de morte
enquanto mecanismo de controle social da população cativa na província
cearense no século XIX. Ao mesmo tempo: Compreender como os escravos
envolvidos nos tribunais e condenados à forca agiram diante desse mesmo
controle. O recorte espacial é a província cearense e o recorte temporal é de 1830 a
1855. O primeiro justifica-se em decorrência da mudança da legislação penal do
Império brasileiro com a criação do Código Criminal de 1830, que constituiu uma
importante mudança na compreensão do crime e da punição. O segundo refere-se ao
último registro de execução de pena de morte na província cearense.
Durante os primeiros passos no processo de investigação histórica deparei-
me com duas publicações de 1894 da Revista do Instituto Histórico do Ceará- RIC de
autoria do pesquisar Paulino Nogueira: Execuções de pena de morte no Ceará. O
artigo foi divido em duas partes, vindo a público em dois números sucessivos da
Revista. O autor preocupou-se com uma recuperação da memória local, ou seja, em
reunir e salvaguardar da seletividade da memória humana os fatos históricos
considerados importantes. De posse de registros da época, Paulino Nogueira realizou
levantamentos das execuções de pena de morte e registrou 33 execuções, sendo elas
duas execuções durante a vigência das Ordenações Filipinas, quatro pela Comissão
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Matuta, cinco pela Comissão Militar e 24 pelo Código Criminal de 1830. A partir daí
iniciamos nossas analises trabalhando com as execuções capitais sob a vigência do
Código Criminal de 1830 e um dado logo despertou nossa atenção: 24 execuções
foram registradas em diferentes vilas da província cearense até o ano de 1855, sendo
que, desse número, 16 dos sujeitos que padeceram na forca pertenciam ao grupo dos
cativos, um número bastante expressivo que chegou a representar 2/3 dos sujeitos
executados na forca eram escravos.
Partindo das informações registradas por Paulino Nogueira realizei um
trabalho de investigação de fontes oficiais que tratassem dos enforcamentos dos
escravos, os quais o autor havia enfocado. A tarefa não foi nada fácil, os processos
criminais referentes aos crimes dos escravos enforcados não foram localizados nos
arquivos do Ceará. Somente alguns deles foram encontrados sob a tutela do Arquivo
Nacional-AN, dos quais tive acesso a partir do contato com Jofre Vieira, historiador
cearense que durante a realização de sua dissertação deslocou-se até o Rio de
Janeiro e conseguiu encontrar os processos criminais dos escravos Luís de Aracati,
da escrava Bonifácia de Fortaleza, da escrava Raymunda do Icó (apesar de ter sido
condenada à morte, conseguiu fugir da cadeia e não foi executa), e um processo
incompleto do escravo José de Fortaleza.
Por conta da escassez de documentações oficiais que dessem conta dos
cativos executados no Ceará, o artigo de Paulino Nogueira representou uma fonte
muito importante para realização da pesquisa, à medida que trazia diversos elementos
que preenchiam as lacunas da ausência de fontes oficiais. Os processos criminais dos
quatro escravos executados permitiram vislumbrar e discutir aspectos importantes das
experiências desses cativos. Apesar de apresentar, de forma geral, os sujeitos como
transgressores das normas, a análise dos autos dos processos de investigação de
homicídio permitiu uma leitura das experiências desses sujeitos, das sociabilidades
com companheiros, da mesma condição ou não, assim como relevou as tensões
decorrentes das relações entre senhores e escravos. Os processos criminais
revelaram importantes leituras sobre aspectos dos conflitos decorrentes das
condições do cativeiro na província do Ceará, porém apenas os processos analisados
não eram o suficiente para uma leitura minuciosa das ações criminosas envolvendo
escravos. A saída encontrada para tanto surgiu na ocasião de pesquisar os processos
criminais guardados no Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC; tratava-se de
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uma documentação mais volumosa, com materiais que cobriam praticamente todo o
século XIX.
O procedimento inicial foi, digamos, ambicioso. Eu estava decidido a
analisar todos os processos criminais referentes as décadas de 1830 à 1855, mas
logo essa tarefa se mostrou bastante complicada, pois eram processos que davam
conta de várias vilas da província. Logo nos deparamos com maços enormes de
processos criminais e, fotografar e analisar todos demandaria um tempo que o curto
período de mestrado não possibilitava, além do que revelou-se ser uma tarefa
desnecessária, já que os processos que eu já havia identificado e copiado mostraram-
se suficientemente ricos para o tipo de análise que eu esperava fazer.
Surgira então um norte para a pesquisa. Decidi trabalhar com os processos
que comprovadamente envolvesse escravos na condição de vítimas ou de réus. O
trabalho se direcionava cada vez mais, como veremos adiante, para a tentativa de
compreensão das tentativas de controle social sobre os escravos, e era obvio que a
consecução de tal objetivo dependia da recuperação mais sistemática das
experiências históricas dos cativos ditos criminosos da província do Ceará.
A pesquisa no Arquivo Público demandou alguns meses entre o processo
de busca e seleção dos processos que seriam fotografados para a análise posterior,
que demandou mais alguns meses de leitura e fichamento dos processos que seriam
analisados na pesquisa. Os documentos apresentavam uma representação filtrada a
partir dos olhares de juízes e escrivães acerca do que entendiam como importante a
ser registrado nos autos. Ao se trabalhar com processos crimes, o pesquisador deve
ter consciência de que a fonte documental que maneja é oriunda, na realidade, de
depoimentos orais, e que há notáveis diferenças entre língua falada e língua escrita.
Na transposição do oral para o escrito, as palavras podem ter variado de forma e de
conteúdo. Assim, na passagem do oral para o escrito “não se opera uma simples
transcrição” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 134). Os escrivães, influenciados pelos
valores da época, deixam o registro carregado de subjetividade. O filtro do juiz e/ou
do escrivão pode ter contaminado parcialmente o relato. Assim, parafraseando Carlo
Ginzburg, podemos afirmar que essa fonte documental é duplamente indireta: por ser
escrita “e, em geral, de autoria de indivíduos, uns mais outros menos, abertamente
ligados à cultura dominante” (2006, p. 13).
Arlete Farge (1999), ao comentar sobre a pesquisa com manuscritos
existentes em arquivos policiais do século XVIII – onde se encontram processos,
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inquéritos, interrogatórios, testemunhos, acareações e outros –, comenta o quão
importante essa tipologia de fonte se mostra para permitir o acesso à palavra dos
desfavorecidos que não deixaram escritos em outras tipologias de fontes.
Portanto, os processos crime se constituem em uma preciosa fonte
documental da qual o historiador pode se valer para travar contato com sujeitos sociais
menos favorecidos, ou até mesmo ignorados socialmente. Entre esses se incluem os
escravos africanos e seus descendentes, que constituem os sujeitos que buscamos
visualizar nessas fontes. Como destaca o historiador Sidney Chalhoub:
Apesar das mediações introduzidas pelos interrogatórios do delegado e do juiz e pelas anotações dos escrivães da delegacia e da pretoria, os personagens de carne e osso que protagonizaram efetivamente a trama em questão berram forte, e os ecos distantes de suas vozes fazem vibrar os nossos tímpanos (CHALHOUB, 1986, p. 20).
Por tratar de facetas da criminalidade, os autos dos processos criminais
são fontes riquíssimas para a compreensão das estratégias de resistência desses
sujeitos. Nessa documentação podemos perceber todo o processo que envolve a
composição de um processo crime. Desde a aquisição de provas para compor a
atuação dos suspeitos, o arrolamento de testemunhas, os depoimentos das
testemunhas de acusação e defesa, os laudos técnicos periciais, e as indicações das
leis e das penas. Como podemos perceber, os processos crimes são fontes que
trazem diversas informações acerca dos sujeitos envolvidos, porém era preciso
articular outras fontes.
Com o objetivo de abordar o problema da criminalidade em sua dimensão
mais ampla, decidimos recorrer aos relatórios produzidos pelas autoridades do
Executivo Imperial, especificamente os relatórios do Ministério da Justiça. Interessado
em saber como os crimes cometidos por escravos eram integrados ao problema geral
da segurança pública e individual, voltamo-nos para os discursos proferidos pelos
ministros da Justiça. Composto um quadro geral do problema da criminalidade no
Império e, nele compreendido o lugar conferido aos tipos de delito praticados por livres
e escravos, concentramos nossa atenção em analisar também os relatórios
produzidos pelo Executivo provincial afim de compreender como era tratado as ações
transgressoras a lei penal vigente. Os relatórios tanto do Executivo Imperial quanto do
Executivo provincial, apresentava um quadro geral da criminalidade e, como essa era
observada pelas autoridades do Estado imperial.
19
Desde o início do período imperial, coube aos ministros da Justiça elaborar
um detalhado relatório a respeito de suas atividades que incluía uma apreciação sobre
o problema da criminalidade no país. Anos mais tarde, tarefa semelhante, porém
restrita à sua circunscrição administrativa, também foi atribuída aos presidentes das
províncias. Conforme as prescrições legais, ministros e presidentes se dirigiam às
sessões de abertura das respectivas casas legislativas, na corte e nas sedes das
províncias, e apresentavam suas narrativas. Os relatórios do Ministério da Justiça e
os relatórios do Executivo provincial constituiu uma importante fonte para a análise da
criminalidade numa perspectiva governamental.
Além das fontes mencionadas, outra tipologia de documentos oficiais
ligados a administração provincial do Ceará que consultamos foram as
correspondências (expedida e recebida) dos presidentes da província com os
ministros da Justiça. As correspondências enfocaram assuntos referentes a tentativas
de controle por parte do executivo provincial dos assuntos relativos a criminalidade na
Província. A correspondência ministerial apresentou o governo imperial como grande
árbitro na resolução de contendas no cumprimento da lei. Encontramos nas
correspondências emitidas pelos presidentes da Província informações a respeito dos
tramites legais dos processos envolvendo escravos executados, na maioria das vezes
solicitando a resolução de empecilhos durante os procedimentos para a aplicação da
pena última.
A imprensa cearense também se revelou uma fonte importante, entre os
periódicos consultados: O Desesseis de Desembro (1839- 1840), O cearense (1846-
1891) e Pedro II (1840-1889) foram pesquisados na internet, por meio do site da
Biblioteca Nacional (BN). Da Revista Instituto Histórico do Ceará, foram analisados os
escritos de Paulino Nogueira com dois escritos, As execuções de Pena de morte no
Ceará (1894) e Os presidentes da província no período regencial (1899) e também o
de Benedicto Santos, a Pena de morte no Aracaty (1910).
Expomos de forma breve os vestígios analisados durante o processo de
investigação da presente pesquisa. Sabemos que as fontes históricas são constituídas
por uma série de registros da atividade humana das quais o pesquisador se vale para
estudar o passado. Durval Muniz de Albuquerque Jr. (2007) deixa claro que o
historiador reinventa o passado fundamentando suas interpretações nos vestígios
deixados pelos homens no decorrer do tempo. Para isto, é indispensável um “um
20
aparato teórico e metodológico mais sofisticado que tenta dar conta deste passado
com suas múltiplas significações” (ALBUQUERQUE JR, 2007, p. 205).
De posse dos “vestígios do passado” buscamos ajustar nosso aparato
metodológico para tentar dar conta a essas “múltiplas significações”, consideramos
convenientes as ferramentas metodológicas da micro-história que se baseia no
recorte temático de um objeto bastante específico para tentar compreender um
fenômeno dentro de um contexto amplo.
Para o manuseio correto das nossas fontes de pesquisa consultamos
historiadores como Jacques Revel, que nos ajudou na compreensão seguinte:
“podemos definir o projeto micro histórico como aquele que visa a reconstruir todas as
cadeias de casualidade, a partir das escolhas dos indivíduos” (1996, p. 153). Ao se
estudar um evento pequeno, circunscrito historicamente no tempo e no espaço, como
é o caso da província cearense, isso permite a compreensão, em escala, de uma
realidade mais ampla. Ao se eleger o (micro) como objeto de análise, como escala
própria de observação como propõe Revel “[a] escolha de uma escala particular de
observação produz efeitos de conhecimentos, e pode ser posta a serviço de
estratégias de conhecimentos” (1996, p. 20). Dessa maneira, utilizaremos essa
metodologia para melhor compreender as ações de nossos sujeitos, como suas ações
se inserem no contexto amplo.
A fim de dar conta das questões propostas na pesquisa, estruturamos esta
dissertação em três capítulos que discutem a pena de morte enquanto mecanismo de
controle social da população cativa na província cearense durante a primeira metade
do século XIX. No Primeiro capítulo, Enforcamentos, abordaremos as execuções de
pena de morte como uma espécie de teatro de poder, visualizando as execuções
como espetáculo pensado mais como um mecanismo de controle social do que como
um mecanismo punitivo do Império. O ponto de partida foi o enforcamento do escravo
Fuisset de Quixeramobim em 1837, o primeiro cativo executado pelo Estado imperial
na província do Ceará. O enforcamento de Fuisset abre as discussões no capítulo no
qual damos continuidade na tentativa de compreender o porquê 2/3 das execuções
capitais recaíram sobre o grupo dos sujeitos cativos, sendo que, representavam uma
pequena parcela da população da província do Ceará. Feito isso, analisaremos na
sequência a utilização de elementos simbólicos como forma de afirmação de poder
durante as execuções capitais, a fim de percebem a forma como objetos simbólicos
se inserem na dinâmica do poder com o intuito de exercer um controle que além de
21
teatralizado é realizado. De tal modo, partiremos das execuções individuais para
compreender os elementos simbólicos estruturados no momento do ritual de
execução e, como esses elementos eram pensados para atender as demandas do
Estado Imperial, já que as execuções eram pensadas como controle social sobre a
população cativa e sobre a população negra livre e liberta, como também para a
população branca e pobre que era vista como uma classe perigosa. Além de controle
social, podemos perceber as execuções de pena de morte como uma forma de se
obter certa estabilidade social, porque a elite imperial vivia sob um constante medo de
uma potencial revolta negra. Após observar como as execuções de escravos no
Ceará constituíram-se em uma teatralização do poder imperial (suscitando um
correspondente contrateatro, protagonizado pelos executados e outros sujeitos
históricos), para finalizar as discussões no presente capítulo, analisamos o que
identificamos como o contrateatro que consistia em ações desviantes do controle
pretendido por autoridades e senhores durante as execuções capitais. Durante a
própria encenação punitiva, punha-se em movimento a demonstração da resistência
ao poder dos agentes imperiais, chegando muitas vezes a comprometer o papel
disciplinador do enforcamento e suscitando exemplos de rebeldia.
No Segundo capítulo, Crimes, discutiremos a criminalidade escrava como
forma de resistência à condição de cativo, as lutas travadas entre senhores e
escravos, e os casos que levaram os escravos a sair da condição de cativo para a de
réu da justiça imperial. No primeiro tópico do capítulo buscamos inserir a província do
Ceará no ciclo de revoltas do período regencial brasileiro, a fim de compreender como
essas agitações políticas afetaram a província e quais foram as consequências
dessas ações para o Ceará no que diz respeito ao cotidiano e criminalidade. Na
segunda parte do capítulo, nos debruçamos sobre os crimes cometidos por escravos,
as tensões e conflitos decorrentes das condições do cativeiro. Finalizamos o capítulo,
analisando os crimes cometidos pelos escravos que foram condenados a forca na
província, buscando perceber as circunstâncias agravantes que resultaram na
punição com a forca.
22
No Terceiro capítulo, Tribunais, analisamos a legislação penal do Império
brasileiro, desde suas origens nos debates parlamentares até a criação de uma
legislação específica para punição dos escravos que cometessem homicídios contra
membros da camada senhorial. Na primeira parte do capítulo buscamos compreender
qual a realidade social a legislação brasileira buscava atender? A segunda parte do
texto buscou abordar a prática jurídica nos tribunais, analisando as estratégias dos
cativos para escapar a condenação à morte diante de juízes e outras autoridades.
23
2 ENFORCAMENTOS
Atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas,
sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito
parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que
será atenazado se aplicara chumbo derretido, óleo fervente,
piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a
seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro
cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos
a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. (FOUCAULT, 1975,
p. 09).
Mesmo já passados vários anos, as primeiras páginas de Vigiar e punir,
escritas por Michel Foucault, ainda causam uma forte impressão nos que as leem pela
primeira vez. Foucault inicia sua narrativa com o ato de execução de Damiens, um
parricida que foi teatralmente executado em Paris no dia 2 de março de 1757. A sua
sentença antecipa o macabro espetáculo que o povo parisiense presenciou naquele
dia.
A espetacularização da pena de morte é um mecanismo de controle social
antigo. Alípio de Sousa Filho (1995), ao comentar sobre esta prática punitiva entre os
romanos, apontou para a função que a execução exercia entre todos que a
presenciavam. Para o autor, o sacrifício público para nada mais servia do que para a
difusão do medo, que
Serve para manter todos os indivíduos na normalidade da cultura instituída e muitos dos ritos coletivos, alimentados pelo medo, servem para aliviar as tensões psíquicas, funcionando como soluções para os desequilíbrios que ameacem a Ordem. (1995, p. 95).
O medo gerado pelo suplício e a pena de morte, sendo executada como
um grande espetáculo – que potencializava as dores e as sensações –, atuava como
um mecanismo de controle. A função social de um auto de execução era significativa,
pois, além de dar um entretenimento ao povo, aliviando suas tensões, era mais um
recurso pedagógico das elites dirigentes, ensinando e mostrando com um exemplo
dantesco qual era o castigo exemplar para os criminosos:
Essa relação da pena de morte com o espetáculo teatral público é importante que seja sublinhada porque exprime toda a intenção de força simbólica do
24
mito do castigo exemplar. A ostentação do suplício do condenado [...] e a execução do réu, numa cerimônia ritual pública, serviam de demonstração do triunfo do poder e da lei, mas, principalmente, pela riqueza do simbolismo da encenação servia de exemplo para todos os demais na sociedade. (SOUSA FILHO, 1995, p. 96).
Com realizações em locais públicos, as execuções capitais deveriam servir
como efeito moralizante sobre as consciências dos indivíduos para que não
seguissem o mesmo caminho do criminoso. Mas, para que todo esse teatro, se o
criminoso já estava julgado e seria, de uma maneira ou de outra, penalizado com a
morte? Na verdade, a morte era a pena para o criminoso, todavia o suplício, o “teatro”,
era uma mensagem dirigida para os circunstantes.
O Brasil Colônia também foi legatário desta macabra forma de punir os
criminosos. Um dos casos mais exemplares de pena de morte precedida por um
suplício foi o de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Condenado à “morte
natural para sempre” por conspirar contra a administração reinol, foi enforcado e logo
em seguida decapitado, sendo sua cabeça erguida no lugar mais público de Vila Rica
até que o tempo a consumisse; já seu corpo, foi esquartejado para fosse espalhado e
ficasse exposto pelos caminhos de Minas até que o tempo também às consumisse.
As execuções capitais serviam mais para o Estado mostrar-se ao povo do
que para punir o delinquente, que por sua vez poderia em vida pagar seus crimes, ou
ser morto sem tanto dispêndio. Segundo Foucault, as cerimônias de execução
europeias – assim como em outras partes do mundo – eram “um acontecimento que
não levava ao espetáculo apenas o réu, o oficiante e o carrasco”, mas muitos
“espectadores a se comprimirem em torno do cadafalso”. (FOUCAULT, 1975, p. 36).
Neste capítulo, principiamos pela delimitação do terreno sobre o qual
edificaram-se as relações estabelecidas entre as formas de punição do Estado
imperial brasileiro, que no caso da presente pesquisa, são as execuções capitais de
cativos condenados por crimes de homicídios na província cearense. O castigo de um
escravo – até mesmo de um livre – em praça pública não deve ser encarado como
uma simples aplicação da lei, como reparação de um crime. O auto de execução
servia, sobretudo, para mostrar a administração que se exerce sobre o povo. No nosso
caso, as punições ao escravos serviam para mostrar a força do poder público imperial.
Nesse sentido, analisaremos como as execuções de pena capital
funcionavam como mecanismos de controle social do Estado. Partindo das execuções
como estruturas de controle social, investigaremos a teatralização da execução com
25
todas as suas construções simbólicas e ritualísticas de afirmação de poder e terror,
como também, analisaremos o mesmo ritual a partir do seu contra teatro, ou seja, as
tentativas de manipulações do ritual que acabavam tomando outras formas de
interpretações na província cearense durante toda a primeira metade do século XIX.
2.1 O CASO DO ESCRAVO FUISSET
Chamavam-lhe José, mas ficou mais conhecido como Fuisset, apelido a
ele dado por João Bagatela, pois foi assim que interpretou o som que o condenado
fizera quando deu seu último suspiro1. Onde e quando nascera não sabemos, mas
Fuisset destaca-se em nosso estudo por ter sido o primeiro escravo levado à forca na
província do Ceará no século XIX.
Condenado por ter participado do assassinato de seu senhor, Fuisset
seguiu para a morte no dia 30 de março de 1837. Uma forca havia sido erguida no
Alto do Rosário, na Serra do Estevão, termo de Quixeramobim. Ali aguardava uma
multidão ansiosa para ver o espetáculo da execução. Fuisset mostrou-se abatido,
recusou a alimentação que lhe ofereceram e percorreu as ruas da vila “aos dobres
plangentes dos sinos” (NOGUEIRA, 1894, p. 175). Acompanhava o padre Inácio
Antonio Lobo, vigário interino que servia de confessor do condenado e liderava o
préstito, recitando em voz alta o salmo 50 de Davi. Ao chegar à frente do patíbulo, a
sentença foi proferida pelo porteiro Manoel Gomes da Silva, vulgo Manoel Grazina.
Em seguida, Fuisset foi estrangulado na frente de todos.
Tudo tinha sido previsto para que a execução do escravo Fuisset se
constituísse num ritual que levasse aqueles lá presentes a entender que crimes
graves, principalmente aqueles perpetrados por escravos contra seus senhores,
haveriam de ser punidos com a morte em público. Era bem o caso de Fuisset, preso,
julgado e condenado por ter participado do assassinato de seu senhor, o português
José de Azevedo, conhecido por todos em Quixeramobim, onde vivia, como José da
Fama. Numa trama idealizada pela esposa do senhor português, Fuisset fora
convencido a atrair José da Fama até um lugar isolado da mata, onde desferiu um
golpe de machado contra a nuca da vítima.
1 Segundo Paulino Nogueira, João Bagatela era a alcunha de João Antônio de Genova, “espírito pilhérico” presente
à execução do escravo Fuisset. Toda a narrativa que segue foi baseada nas informações trazidas em NOGUEIRA
(1894, p. 173-176).
26
Possivelmente, o crime contra José da Fama ocorreu em fins do ano de
1836 ou princípios do ano seguinte, pois logo no dia 29 de março de 1837 Fuisset era
interrogado, processado, pronunciado e condenado à morte na forca. A celeridade
com que tudo transcorreu explica-se pelo momento histórico em que ocorreu o caso.
Para Ricardo Figueiredo Pirola (2015), as agitações das revoltas do Período
Regencial, principalmente aquelas nas quais participavam mais ativamente os
escravos, fizeram com que os legisladores do Império aprovassem, em 10 de junho
de 1835, uma lei que previa a pena capital, sem brechas para recursos ou apelos,
para todo escravo que atentasse contra a vida de seu senhor, membros da sua família
ou feitores. Fuisset foi um desses, enquadrado na lei de 10 de junho de 1835.
Para que cumprisse com sua função intimidatória, o enforcamento haveria
de se constituir numa espécie de teatro do poder. Daí todo o ritual que acompanhava
a caminhada do condenado até a forca: a procissão pelas ruas da vila, o dobrar dos
sinos, as proclamações, a benção do vigário e, mais importante de tudo, a presença
da multidão que a tudo assistia. Como se tratava de uma medida que visava o grupo
dos cativos, em particular, a presença ali dos escravos da região era fundamental. Daí
porque, no dia da morte do escravo Fuisset, como relatou Paulino Nogueira, “todos os
senhores de escravo mandaram os seus para assistir ao ato como exemplo...”.
(NOGUEIRA, 1894, p. 175).
Mas nem tudo correu como esperado. Até às vésperas da execução de
Fuisset não havia quem quisesse servir de carrasco. O enforcamento teria sido
adiado, não fosse uma decisão tomada pelo juiz responsável pelo caso. Como relatou
Paulino Nogueira:
Ocorreu então ao juiz da execução, tenente-coronel Pedro Jayme de Alencar Araripe, ir a cadeia que estava cheia de recrutas para o exército e oferecer a soltura àquele que se quisesse prestar. Logo se apresentou um, recebendo em paga a soltura prometida, 5§000 réis, uma garrafa de vinho e uma galinha gorda. (NOGUEIRA, 1894, p. 175).
Resolvido o problema do carrasco, pode-se dar curso à execução de
Fuisset. Mas, tão logo o último sopro de vida abandonara o corpo do infeliz cativo, um
fenômeno desviaria a atenção dos presentes. Como é habitual no Ceará, a ausência
de chuvas após o dia do padroeiro São José (19 de março) deixava os habitantes do
sertão apreensivos, temerosos pela ocorrência de mais um ano de seca, e naquele
ano de 1837 não havia ainda caído uma só gota do céu. Mas, “de repente e como por
27
encanto”, escureceu o tempo e caiu uma chuva torrencial que fez toda a multidão se
retirar do Alto do Rosário, deixando para trás o cadáver de Fuisset pendurado sob o
temporal, onde permaneceu até o dia seguinte, quando foi enfim retirado e sepultado.
Em seguida, os que assistiam à execução de Fuisset entenderam que
aquilo havia sido um sinal, dando ao fato “o caráter de castigo de Deus, e como certa
a salvação do réu, a quem começou a fazer promessas...” (NOGUEIRA, 1894, p. 176).
Conta Paulino Nogueira que inclusive os jurados e o juiz, diante das evidências,
“juraram nunca mais condenar ninguém à morte” ou “presidir mais a nenhuma
execução”. Uma procissão de penitência foi organizada na mesma noite, percorrendo
as ruas da pequena vila, “suplicando aos céus a revogação do castigo que se reputava
iminente. (NOGUEIRA, 1894, p. 176).
A relutância de pessoas de Quixeramobim a se apresentarem como
carrascos, assim como o entendimento difundido de que a chuva forte que caiu sobre
os que assistiam ao enforcamento de Fuisset seria um castigo divino, são aspectos
que fazem crer que o espetáculo da morte pela forca não cumpriu plenamente sua
função de punição exemplar. Para tanto, deveria prevalecer o sentimento de medo
diante do poder punitivo do Estado imperial que se mostrava implacável diante
daqueles que ousassem descumprir suas leis. No entanto, diante da execução do
escravo Fuisset em 1837, o que se viu foi o sentimento de culpa prevalecer sobre o
temor, mostrando por meio do imaginário religioso que a população local estava
principalmente preocupada em não descumprir com os desígnios de uma lei que se
entendia ser superior, a lei divina.
O caso do enforcamento do escravo Fuisset, de Quixeramobim, apresenta,
como visto, diversos elementos relativos ao uso da pena de morte como punição de
escravos na província cearense oitocentista. Sendo um importante mecanismo de
controle social, abordaremos nas próximas páginas as execuções públicas de
escravos como uma porta de entrada para o tenso universo da escravidão na
província. Analisando as estratégias do uso dos enforcamentos no controle dos
escravos, observando os rituais de execução como uma teatralização do poder e
abordando a atitude popular diante da punição pela morte, iniciaremos nosso estudo
sobre a pena capital na província cearense durante o século XIX, para a qual esse
assunto revela uma face ainda pouco conhecida da história social.
28
2.2 FORCA PARA OS ESCRAVOS
O caso do enforcamento do escravo Fuisset, de Quixeramobim, abre o
cortejo de procissões para a morte que marcaram a província cearense nos anos entre
as décadas de 1830 e 1850, período que, em algumas vilas do sertão e do litoral,
incluindo a capital, Fortaleza, escravos incriminados por se voltarem violentamente
contra membros das camadas livres e brancas, foram condenados com a pena capital
e enforcados em praça pública. De um total de 24 condenados à pena de morte
durante o século XIX, dezesseis eram escravos, o que demonstra a tendência das
instituições jurídicas locais em racializar o enforcamento enquanto método punitivo
que recaía preferencialmente sobre os negros cativos (ver Tabela 1). É um dado
expressivo de uma província não pertencente aos principais centros escravistas do
Império, onde a população livre era numericamente bastante superior à dos reduzidos
ao cativeiro, e na qual supostamente existiria certa brandura permeando as relações
escravistas locais, segundo o mito sustentado por uma parcela das elites intelectuais
desde as décadas finais do século XIX.
Tabela 1 – Enforcados no Ceará, 1830-1855
Vila N° de Enforcados Status
Livre Escravo
Capital 11 02 09
Sobral 01 - 01
Quixeramobim 01 - 01
Crato 03 03 -
Aracati 02 01 01
Viçosa 01 - 01
Granja 01 - 01
Ipú 02 01 01
S. Matheus 01 01 -
S. Bernardo 01 - 01
Total 24 08 16
Fonte: NOGUEIRA, Paulino. Execuções por pena de morte no Ceará. Revista Trimestral do Instituto do
Ceará, ano VIII, tomo VII, 1º e 2º semestre de 1894, Fortaleza, Typographia Economica, 1894, p. 324.
Havia no Ceará, em 1840, uma população total de 210.087 indivíduos,
segundo o levantamento ordenado pelo presidente da província, Francisco de Souza
29
Martins. Desse montante, somente 14.881 pessoas eram registradas como escravos2.
Mas, apesar de serem menos de 10% da população provincial em meados do século
XIX, os escravos foram as vítimas preferenciais das condenações por enforcamento,
representando 2/3 dos condenados. Isso, que por si mesmo aponta para o caráter
escravista do estado imperial, indica ainda a forte tensão nas relações entre livres e
escravos na própria província cearense. A pena de morte, punição máxima contra os
crimes mais graves cometidos na proverbialmente violenta província do Ceará, atingia
preferencialmente os escravos porque, como em qualquer sociedade escravista, eles
eram ali o grupo social considerado mais perigoso para as camadas brancas
privilegiadas.
O próprio crime perpetrado pelo escravo Fuisset pode ser encarado sob
essa ótica, pois, tendo sido planejado pela esposa da vítima, apenas o cativo, executor
do atentado, terminou na forca. Quanto a mandante, Joaquina Maria de Jesus, mulher
de condição livre e esposa do português assassinado, conseguiu fugir após o
atentado, escondeu-se em propriedades em pontos distantes da província (em Barra
dos Inhamuns, Vila Nova do Ipú e Acaraú), vindo a se apresentar à justiça somente
após dez anos de transcorrido o crime.3
Durante muito tempo, o discurso sobre um cativeiro de reduzido
contingente, foi utilizado pelos agentes do poder para tentar amenizar a existência da
escravatura na província cearense, como também para tentar negar a existência da
população negra na província. Segundo o historiador Eurípedes Antônio Funes: “A
ideia postulada é de que no Ceará não há negro porque a escravidão foi pouco
expressiva. Isto leva a uma lógica perversa: associar o negro à escravidão” (FUNES,
2007, p. 103).
Associar o negro a escravidão é uma lógica que não leva em conta a
existência de negros livres e libertos na província cearense, já que em algumas vilas
da província, o número de negros e pardos livres, somado com os dos cativos, chegou
a ultrapassar o número da população branca, como é apresentado por Eurípedes
Funes: “Chama atenção, nos dados de 1804, a vila do Crato com uma população de
2 Relatorio com que apresentou o Exm. Senhor Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província,
na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa provincial no dia 1° de agosto de 1840. Ceará, Typ.
Constitucional. Anno de 1840, p. 10. 3 Pedro II, Fortaleza, 6/10/1853, p. 4, Acervo da Biblioteca Nacional. Petição da ré Joaquina Maria de Jesus,
despachada pelo meritíssimo juiz de direito da comarca de Quixeramobim, o doutor Antonio Leopoldino de Araújo
Chaves. Quixeramobim, 1853.
30
20.681, onde 67,5% era de ‘pretos e pardos’ livres e cativos e em Sobral chegavam a
72,0 %” (FUNES, 2007, p. 105).
Esses dados são importantes indicadores da existência de uma população
preta e parda que não era cativa, e que algumas vezes chegou a ultrapassar a
população branca, e por outro lado temos também uma população cativa que,
segundo o censo de 1840, não passava dos 7,1% da população total da província4.
Os enforcamentos públicos de cativos eram a demonstração mais
agressiva do poder punitivo do estado imperial, visando conter as atitudes de
resistência e de revolta dos escravos. O Código Criminal de 1830 foi a primeira
regulação do regime monárquico, após a Independência, a prever a pena capital para
os crimes de morte com agravantes, como expresso em seu artigo 192. Também
prescrevia a pena capital para os que incorressem em crime de insurreição, “reunindo-
se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força”, como
registrado no artigo 113.5
Não demorou, porém, como mostrou o historiador Ricardo Figueiredo
Pirola, para que as penas ditadas pelo Código Criminal de 1830, bem como as do
Código do Processo Criminal, aprovado em novembro de 1832, fossem apontadas
como frágeis para fazer face à crescente agitação dos cativos. Parlamentares, em
1833, objetaram que escravos pronunciados por assassinatos, agressões,
insurreições ou envenenamentos poderiam escapar da pena de morte quando se
alegava atenuantes que poderiam livrar o incriminado da forca, podendo as penas ser
comutadas para galés perpétuas, prisão com trabalhos forçados ou açoites. (PIROLA,
2015).
Com a abdicação de Pedro I, em 1831, uma fase de fortes agitações sociais
teve início em diversas regiões do Brasil. Os escravos, cujas lutas pela liberdade
vinham crescendo desde os anos da Independência, tomariam parte ativa em várias
revoltas que abalaram o Período Regencial (REIS, 2000). As revoltas de Carrancas,
em Minas Gerais, e dos Malês, na Bahia (respectivamente em 1833 e 1835), fizeram
soar o sinal de alarme para as elites políticas do Império, que redobraram forças no
controle sobre os escravos desde então (ANDRADE, 2017; REIS, 2003). A aprovação
4 Relatorio com que apresentou o Exm. Senhor Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província,
na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa provincial no dia 1° de agosto de 1840. Ceará, Typ.
Constitucional. Anno de 1840, p. 10. 5 Código Criminal do Império do Brasil, 1830, art. 193.
31
da lei de 10 de junho de 1835, que afastou qualquer atenuante que pudesse beneficiar
escravos que matassem, envenenassem, ferissem gravemente ou tomassem parte de
insurreições contra senhores, parentes e feitores, foi uma das principais medidas
adotadas nesse sentido.
Também na província do Ceará a população negra escrava promovia
protestos e revoltas. Desde as lutas da Independência, senhores armavam seus
cativos para tomar parte nas disputas locais. A circulação de notícias sobre os
sucessos dos escravos em São Domingos, que ficou conhecido por toda parte como
o haitianismo, motivou a gente de cor, entre livres, libertos e escravos, a sustentar
ações coletivas contra as opressões das minorias brancas (CÂNDIDO, 2017). Talvez
a mais temerária das atitudes de escravos nessa época tenha sido o motim dos pretos
da escuna Laura 2ª, em 1839, uma embarcação proveniente de São Luiz, Maranhão,
na qual cativos, tripulantes e passageiros negros mataram o capitão, o contramestre,
o prático e dois marinheiros brancos para escaparem do cativeiro. Fundeando próximo
à costa cearense, na altura de Cascavel, diversos escravos procuraram fugir, mas
foram capturados em seguida (VIEIRA, 2009). Como veremos adiante, os presos do
motim da escuna Laura 2ª protagonizariam o maior espetáculo de enforcamento que
a capital do Ceará já testemunhou.
Para as elites proprietárias, a Revolução do Haiti (1791-1804) unificou
todas as ameaças em uma só cor, a negra. Enquanto, para os escravos, a revolução
propagou uma onda de liberdade, para as elites propagou o medo. O “medo negro”
foi uma das características marcantes, logo após a Revolução do Haiti, como explica
Célia Maria Azevedo no livro Onda negra e medo branco: o negro no imaginário das
elites do século XIX:
Ora, perguntavam-se alguns assustados “grandes” homens que viviam no Brasil de então, se em São Domingos os negros finalmente conseguiram o que sempre estiveram tentando fazer, isto e, subverter a ordem e acabar de vez com a tranquilidade, dos ricos proprietários, por que não se repetiria o mesmo aqui? Garantias de que o Brasil seria diferente de outros países escravistas, uma espécie de pais abençoado por Deus, não havia nenhuma, pois aqui, assim como em toda a América, os quilombos, os assaltos as fazendas, as pequenas revoltas individuais ou coletivas e as tentativas de grandes insurreições se sucederam desde o desembarque dos primeiros negros em meados de 1500. (AZEVEDO, 1987, p. 35).
32
A onda negra e o medo branco, que nomeia o livro de Célia Azevedo,
podiam ser sentidos pelas elites senhoriais ao passo que as insurreições escravas
das primeiras décadas do século XIX assolavam o Império, a cada homicídio que um
escravo praticava contra seu senhor ou outra pessoa livre, era a chama de temor que
se acendia no imaginário da elite senhorial. De acordo com João José Reis e Eduardo
Silva, reportando-se para uma das regiões mais convulsionadas pelas revoltas
escravas no período imperial, “Ao longo da primeira metade do século XIX a Bahia se
constituiu em ambiente favorável a resistência escrava” (REIS; SILVA, 1989, p.33).
Buscando criar um ambiente de maior tranquilidade, a classe senhorial
buscou agir com violência contra as várias formas de resistência escrava, desde os
pequenos furtos, as agressões físicas e, em últimos casos, os atentados contra vida
dos senhores proprietários. A pena de morte passou então a ser utilizada com um
propósito pedagógico disciplinador da população cativa e pobre, que para a elite
senhorial, não deveriam aproveitar das instabilidades políticas internas – como foram
os casos das revoltas do período regencial – ou externas – o caso da Revolução de
São Domingos no Haiti – para incitar o clima de efervescência de disputas políticas
por parte dos grupos dos escravos.
Entre 1837 e 1855, dezesseis escravos foram enforcados no Ceará. Nove,
desse total, foram executados em Fortaleza, capital da província. Chama atenção, por
outro lado, as outras vilas onde ocorreram enforcamentos públicos de cativos. Foram
oito diferentes localidades, situadas em pontos diversos do território provincial. Para
que viesse a cumprir com sua função intimidatória, era fundamental que a punição
ocorresse na mesma região em que havia se dado o crime, para que outros escravos
viessem a testemunhar o sofrimento do condenado, virtualmente um membro de sua
própria comunidade. A tabela abaixo indica as datas e as localidades em que
ocorreram enforcamentos:
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Tabela 2 – Escravos enforcados no Ceará
Escravo Ano Localidade
José (Fuisset) 1837 Quixeramobim
João Mina 1839 Fortaleza
Hilário 1839 Fortaleza
Benedito 1839 Fortaleza
Bento 1839 Fortaleza
Constantino 1839 Fortaleza
Antônio Angola 1839 Fortaleza
José 1840 Fortaleza
Luís 1840 Aracati
Sebastião 1841 Sobral
Antonio 1842 Viçosa
Bonifácia 1842 Fortaleza
Luiz 1842 Granja
Estevão 1845 Ipú
Capitão Cebola 1855 Fortaleza
Joaquim 1855 São Bernardo
Fonte: NOGUEIRA, Paulino. Execuções por pena de morte no Ceará. Revista Trimestral do
Instituto do Ceará, ano VIII, tomo VII, 1º e 2º semestre de 1894, Fortaleza, Typographia
Economica, 1894, p. 324.
As execuções de escravos serviam, dessa maneira, mais como exemplos,
uma espécie de controle social, do que como punição voltada para atingir o indivíduo
praticante do crime. Seguindo essa linha de raciocínio, poderemos perceber porque
foram os cativos as vítimas privilegiadas da punição por enforcamento público no
Ceará provincial, apesar de serem apenas uma pequena minoria da população e dos
que incorriam em crimes de morte, envenenamento ou insurreição. Demonstrando
uma menor tolerância para com os crimes cometidos por escravos, os agentes da
justiça usavam a dramatização da morte na forca como instrumento de afirmação do
poder imperial diante dos movimentos protagonizados pelos escravos. Mas para
alcançar sua função de teatro do poder, os enforcamentos deveriam seguir certa
lógica simbólica, dando sentido preciso ao ritual de execução pública. Como
experiência social, porém, os cortejos de execução nem sempre cumpriam com aquilo
previsto pelos agentes do poder.
34
2.3 PROCISSÕES PARA A MORTE: O TEATRO DAS EXECUÇÕES
Um enforcamento público de um escravo condenado poderia assumir as
dimensões de um ritual bastante complexo. Foi o que se constatou em Fortaleza, em
28 de fevereiro de 1840, por ocasião da execução do escravo José, condenado à
morte pelo tribunal do júri de Fortaleza de 16 de novembro de 1839, por ter matado
com um tiro o seu senhor, o sobralense Luiz Ferreira Gomes:
Às 7 e meia horas da manhã, saiu o préstito com as prescrições e formalidades já conhecidas. Desfilou pela Rua da Boa Vista, entrou na praça conselheiro José de Alencar, atravessou a rua Senador José de Alencar (antiga rua das Hortas), saiu na rua do Major Facundo e seguiu até o largo do Paiol da Pólvora (Passeio Público), onde estava armada a forca. O juiz José Maria Eustáquio Vieira trajava preto, montava um cavalo preto, com arreios cobertos de preto. O carrasco Pareça seguia no seu costumado posto, em cumprimento do seu desgraçado ofício. (NOGUEIRA, 1894, p. 61).
O horário marcado, as ruas por onde passaria o préstito, a presença do juiz
trajando terno preto, montado em cavalo preto, “com arreios cobertos de preto”, o
carrasco em seu “costumado posto”... Tudo tinha sua forma, seu tempo e lugar, tudo
tinha sido planejado para gerar o máximo efeito nos que assistiam àquele espetáculo
da morte. O próprio Código Criminal, em seu artigo 40, prescrevia certas providências
a serem adotadas durante a procissão para o enforcamento:
Art. 40. O réu com seu vestido ordinário, e preso, será conduzido pelas ruas mais públicas até à forca, acompanhado do juiz criminal do lugar, aonde estiver, com o seu escrivão, e da força militar que se requisitar. Ao acompanhamento precederá o porteiro, lendo em voz alta a sentença, que se for executar.6
De acordo com Lilia Moritz Schwarcz, a procissão pública era o ritual por
excelência pelo qual o regime monárquico brasileiro ordenava o teatro da política
imperial. O tempo do coroamento de Pedro II, em 1841, parece ter marcado o
momento auge no qual o regime imperial valeu-se da função agregadora de rituais e
símbolos para promover uma almejada centralização política no país. Segundo a
autora:
Se não há governo que deixe de usar esse tipo de recurso, pode-se dizer que é somente na monarquia que rituais e símbolos ganham um lugar oficial, fazendo parte do corpo da lei. É nesse regime que a etiqueta adquire uma
6 Código Criminal do Império, 1830 art. 40.
35
posição central, que a festa se realiza como uma extensão do sistema, que as insígnias representam a sobrevivência e a vigência do modelo e que o rei se transforma em ícone maior, símbolo dileto do Estado. (SCHWARCZ, 2001, p. 8)
Assim como nas peças teatrais, em que tudo era encenado segundo um
roteiro que determinava as falas e os gestos dos atores, os cortejos de execuções
capitais também seguiam uma lógica preestabelecida. Os rituais de enforcamento
começavam quando o réu era levado até o oratório para que fosse realizada a
confissão, sempre um dia antes da data marcada para a execução. No caso do
escravo Luís, executado em Aracati no ano de 1840: “No dia 24, subiu para o oratório,
assistido pelo vigário da freguesia Joaquim de Paula Galvão e pelo padre Antônio
Francisco Sampaio” (NOGUEIRA, 1894, p. 61). A confissão dos réus fazia parte das
prerrogativas legais estabelecidas no Código Criminal de 1830 para a realização da
execução, e durante todo o cortejo o réu deveria ser acompanhado por representantes
da justiça e da igreja, irmanando poder temporal e divino num mesmo desfile.
O escravo Luís havia matado um homem branco em Aracati, amante de
sua senhora, com sete facadas. O crime ocorrera em 1836, porém Luiz teve de
aguardar a decisão da justiça preso na cadeia pública de Fortaleza. Após quase quatro
anos de penosa espera, o resultado foi a da condenação à morte por enforcamento.
Dos relatos disponíveis sobre procissões em rituais de execução de escravos, o
préstito que acompanhou os últimos momentos do escravo Luís pareceu ter tido uma
especialmente forte atmosfera sagrada, a se levar em conta os detalhes expostos a
seguir:
O préstito, acompanhado pelo juiz municipal Alexandre Ferreira dos Santos Caminha, que ia a cavalo, pelo escrivão, o carrasco vindo da capital e a força pública, partiu da cadeia pela manhã. Dobrando, afinados, os sinos dos quatro templos, tendo a sua frente o porteiro José dos Santos, conhecido por José Mãozinha, que apregoava a sentença, e subiu pela rua do Comércio, voltou para o local da forca pela rua do Piolho, hoje do Rosário. O condenado ia algemado, sem chapéu, de baraço de barbante ao pescoço. Vestido de camisa branca e calça de riscados de listas encarnadas, ladeado pelo padre Antônio Francisco Sampaio e o seminarista José Bento Barbosa, que conduzia na mão a imagem de Cristo. (SANTOS, 1910, p. 66)
Segundo o estatuto do padroado, a Igreja Católica no Brasil estava
submetida ao poder temporal do Império, mas isso não significava que os serviços
religiosos fossem desvalorizados. Bem pelo contrário, no que tange aos rituais de
enforcamento a presença do sagrado, expressa pelo acompanhamento de clérigos,
36
badalos de sinos, imagens sacras, bênçãos e confissões, oferecia um precioso
reconforto aos que estavam ali reunidos para assistir a uma morte provocada.
Mas aquele era um rito, sobretudo, jurídico. Isso ficava claro pela presença
destacada do juiz que, em geral, seguia à frente do cortejo, montado a cavalo, de um
escrivão e de um porteiro, este último encarregado de proclamar a sentença do
condenado por todo o percurso da procissão e também à frente do patíbulo, antes da
execução do enforcamento.
A atenção do público, porém, voltava-se preferencialmente para a figura do
condenado. Este deveria, como regra, trajar “vestido ordinário”, de cor clara, porém
não branca, e caminhava com mãos amarradas, ao redor do pescoço o baraço. Pelos
relatos disponíveis, os seis condenados pelo motim da escuna Laura 2ª estavam
“vestidos todos de camisas e ceroulas de ganga amarela”. Bonifácia, que seguiu para
a forca em 1842, vestia “calça de homem, com saia e cabeção”. Sobre o escravo
Benedito, vulgo Capitão Cebola, marchou ao patíbulo “com passo firme, vestido de
alva, descalço” (NOGUEIRA, 1894, p. 79).
Na outra ponta da corda, atrás do condenado, ia o carrasco, responsável
por garantir a morte do enforcado. Desse importante protagonista dos enforcamentos
esperava-se muito sangue frio, indiferença, coragem. Geralmente, era um condenado
pela justiça que negociava vantagens em sua pena em troca do serviço desgraçado.
Sua função não se restringia em armar a forca e arremessar o condenado; devia
completar o enforcamento subindo nos ombros do executado, estrangulando-o, gesto
designado como “cavalgar sobre o condenado”.
Mas nem sempre os carrascos no Ceará tiveram atuação regular. Por
ocasião da execução do escravo Sebastião, em Sobral, 1841, conta-se que o
condenado “mostrava coragem e presença de espírito, que contrastavam com a
covardia do carrasco.” (NOGUEIRA, 1894, p. 87).
Este, ao chegar o préstito ao patíbulo, chorava tanto, distanciando-se da forca, que o réu, sem aguardar providências do juiz, tratou de por si mesmo executar a sentença! Pôs o baraço no pescoço, subiu sozinho os degraus da forca, amarrou a corda, ouviu o sacerdote rezar o Credo; e às últimas palavras – Vida eterna! – atirou-se desembaraçadamente ao espaço, contorcendo-se pouco a pouco em agonias, por algumas horas, até expirar! A morte se deu não por estrangulação, como de costume, mas por asfixia muito demorada. (1894, p. 87).
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Ao se conduzir o cadáver de Sebastião para o enterro, uma dúvida surgiu:
tratava-se, afinal de contas, de um “justiçado” ou de um “suicida”? Seu sepultamento
somente poderia ser acompanhado pelos ritos sagrados caso se afastasse a
caracterização de suicídio. As autoridades, piedosas, permitiram enfim que o enterro
ocorresse de fato no cemitério, situado à poente da cidade de Sobral, onde jaziam os
corpos dos numerosos desvalidos que, durante a epidemia de varíola de 1825, haviam
sido ali enterrados.
Na província cearense, uma figura que ficou bastante conhecida por
exercer a função de carrasco foi o homem de nome Francisco Correia Pareça. Pareça
era um condenado a galés perpétuas por ter cometido um assassinato em Fortaleza.
Segundo Paulino Nogueira, era “caboclo baixo, de cor escura, um tanto taciturno”
(NOGUEIRA, 1894, p. 72). Pareça era uma figura problemática; enquanto esteve
preso, sempre arrumava confusão. A primeira vez em que serviu como carrasco foi
em 1835, na execução de Maximiano da Silva Carvalho, a primeira execução por
enforcamento tida na capital. Realizou em vida onze execuções, no total, dez em
Fortaleza e uma em Aracati, até abandonar a função, em 1845, após lançar João
Gregório para a eternidade. Enviado para a prisão de Fernando de Noronha, faleceu
no hospital no dia 16 de julho de 1882, com aproximadamente 86 anos de idade.
(NOGUEIRA, 1894, p. 72)
Pareça foi o carrasco responsável pelas seis execuções realizadas contra
dos escravos da Laura 2ª no ano de 1839 na capital Fortaleza.
Marchava na frente ainda, o porteiro dos auditórios Agostinho José da Silva, fazendo o pregão da sentença, seguiam atraz a cavallo, o juiz coronel Fidelis, o cirurgião José Antônio Figueiras Portugal, a direita, e o escrivão Manoel Lopes de Souza, a esquerda. Iam em seguida os seis pacientes vestidos de camisas e ceroulas de ganga amarella, algemados, com baraço ao pescoço, ladeados pelos confessores d’agonia. O carrasco, Pareça, acompanhava-os sem pegar nas pontas das cordas, tantas eram dessa vez. (NOGUEIRA, 1894, p. 52).
De tal modo, foi realizado o cortejo do maior ato de execução de escravos
na província do Ceará, tanto que o carrasco Pareça nem mesmo conseguia pegar nas
pontas das cordas, já que eram muitas. Até mesmo no momento das execuções, a
organização dos que iam primeiro foi feita com um caráter simbólico punitivo:
João Mina foi o primeiro, tinha sido o assassino do Capitão; mas chorava copiosamente; maldizia-se da sorte; pedia socorro em voz alta ao juiz, a todo mundo! Mostrava um terror e temor invencíveis a morte. Contrastava com
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suas lamentações o cynismo selvagem de Hilário, que devia seguir-se: este comia pão de ló, bebia vinho com outros dous e dizia com ar de repressão, Morre, homem, mas não dá gosto aos teos inimigos! Não obstante, o carrasco lutou por longos minutos para fazer o réo subir a forca, mas enfim consumou a tragédia legal. Seguiu-se Hilário, sua coragem foi maior que seo crime, que consistiu apenas em lançar ao mar os cadáveres do marujo Maia e do prático Felippe. Quando viu que era chegado sua vez, não foi preciso chama-lo, marchou com passo firme e ar triumphante, subiu com sobranceira de quem ia se vingar. Benedicto o terceiro. Era um cabra que ia ser vendido ao Recife. Foi o assassino de Feliciano Prates. Antonio, natural da Angola matou o Marujo, foi o quarto. Constantino o quinto na ordem das execuções. Bento foi com rasão o ultimo, porque foi o primeiro na perversidade. Quando o Capitão já esfaqueado, refugiava-se no logar do leme, foi ele quem gritou Venha a Fisga! E o lançou ao mar. Foi ele também quem matou o marujo Maia, instigou Constantino a matar o preto velho Antonio, e distribuiu pelos parceiros bebidas para encoraja-los na infernal emprezal; (NOGUEIRA, 1894, p. 52).
As execuções dos pretos do Laura 2ª seguiu-se do grau de participação na
ação do motim, sendo a última execução reservada ao escravo Bento, pois, segundo
o que havia sido apurado durante o processo, foi o que agiu com maior violência,
sendo considerado pela justiça como o cabeça do motim. Sua execução só foi
realizada quando o mesmo terminou de assistir todos os seus companheiros
padecerem na forca antes dele, ou seja, antes de ter seu fim trágico, ainda precisou
assistir seus companheiros ter as vidas ceifadas pelos representantes da justiça
imperial que utilizavam das mãos de Pareça como meio para esse fim.
O missionário norte-americano Daniel P. Kidder esteve em Fortaleza em
1839, poucos dias depois da execução dos condenados do motim na Laura 2ª. Pôde,
então, observar o “largo, junto ao forte”, onde ocorreram os enforcamentos. Chamou-
lhe a atenção as diferenças em relação ao que se dava nos Estados Unidos, quanto
às cerimônias de pena de morte:
No Brasil não se adota o cadafalso de alçapão. A forca ergue-se sobre três moirões, em forma triangular. A ela se sobe por uma escada, e, quando a corda já está ajustada ao pescoço do condenado, este é içado pelo carrasco que, para abreviar a morte, se pendura nos ombros da vítima. (KIDDER, 2008, p. 179)
Os locais escolhidos para a realização das execuções eram geralmente os
mais públicos da cidade ou vila em que tinha acontecido o crime motivador da
sentença. Mesmo quando o julgamento e a prisão aconteciam na capital da província,
o réu era escoltado até a vila em que o crime tinha sido praticado, como foi o caso do
escravo Luís, de Aracati:
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No dia 16, pela manhã, saiu Luís da cadeia da capital, escoltado por 30 praças ao comando do alferes, depois capitão, Joaquim do Carmo Ferreira Chaves, cunhado também que foi do assassinado. Acompanhava-o também o celebre carrasco Francisco Correia Pareça. [...] No dia 23, ao amanhecer, entrou a escolta no Aracati e logo se derramou pela população, com a rapidez do raio, a fatal noticia: Era enorme a quantidade de gente que corria até a cadeia para ver o condenado, que aliás, não se mostrava abatido. (NOGUEIRA, 1894, p. 285-286).
Um caso, porém, de duplo enforcamento, diverge dos aspectos mais
comuns quanto ao lugar da execução. Trata-se do que ocorreu com os condenados
Luiz e Antônio, ambos escravos de uma família maranhense que vivia na vila de
Viçosa, em 1841, na serra da Ibiapaba, ali refugiados durante os conflitos da
insurreição conhecida como Balaiada. Alguns furtos estavam ocorrendo na vila e se
descobriu que estavam sendo praticados por um grupo de escravos, entre os quais
figurava Luiz, que foi duramente repreendido por seu senhor, Inácio João de
Magalhães. Indignado pelas ameaças recebidas, Luiz armou o assassinato de seu
senhor nas vésperas da partida da família que voltava ao Maranhão. Luiz matou Inácio
João de Magalhães com um tiro de bacamarte. Em seguida, descobriu-se que o crime
havia sido preparado em conluio com o escravo Antônio, pertencente a d. Mariana,
esposa da vítima. Ocorre que Antônio, para não ser preso, fugiu para a vila de Granja,
onde foi encontrado e capturado. Luiz também já havia sido agarrado num sítio há
poucas léguas do local do assassinato.
As autoridades condenaram os escravos, mas tomaram a decisão de enforcar
Antônio em Viçosa, “por ter sido capturado na Granja”, e enforcar Luiz em Granja, “por
ter sido preso na Viçosa!” (NOGUEIRA, 1894, p. 298). O cronista Paulino Nogueira,
estranhando o fato décadas depois, opinou que aquela sentença devia-se a “lógica
jurídica daqueles tempos” (1894, p. 298). Podemos pensar, por outro lado, que aquela
decisão permitia com que as punições, ocorrendo em lugares diferentes, exercessem
sua função intimidatória sobre um público mais extenso de cativos, situados em zona
ainda bastante agitada pelos conflitos da Balaiada, revolta que, como se sabe, contou
com a participação incisiva de negros, tanto livres como escravos (ASSUNÇÃO,
2008).
Referindo-se a Inglaterra no século XVIII, um dos países em que os rituais de
enforcamento o fizeram referência para os estudos históricos sobre a pena capital,
Edward Thompson considerou que “o ritual da execução pública era um acessório
40
necessário a um sistema de disciplina social dependente, em grande parte, do teatro”.
Ao que, acrescentava:
Uma grande parte da política e da lei é sempre teatro. Uma vez “estabelecido” um sistema social, ele não precisa ser endossado diariamente por exibições de poder (embora pontuações ocasionais de força sejam feitas para definir os limites de tolerância do sistema) (Thompson, 1998, p. 48).
No presente tópico tratamos da teatralização da morte de escravos como
um meio que o Estado brasileiro encontrou, em meados do século XIX, para promover
isso que Thompson define como os “limites da tolerância do sistema”. Sendo o Brasil
um dos maiores centros escravocratas naquele tempo, essas “pontuações ocasionais
de força” do estado imperial, enquanto parte do sistema de disciplina social, estavam
voltadas primordialmente contra as massas de cativos. No Ceará, mesmo sendo uma
província com reduzida presença numérica de escravos, isso não foi diferente.
A execução em praça pública de escravos, enquadrados em crimes
considerados graves (geralmente associados a ações violentas contra seus senhores,
administradores e feitores), teve início na província cearense, como no restante do
Império, num tempo em que revoltas multiplicavam-se pelo país e agitavam as massas
escravas, representando um grande perigo para o próprio sistema escravista. Da
perspectiva dos que almejavam manter o governo dos escravos sob controle, a
intimidação pelo enforcamento exemplar parecia uma saída necessária para fazer
desacreditar a confiança crescente que envolvia então as aspirações dos cativos por
liberdade.
O espetáculo do enforcamento de escravos, tendo uma função
disciplinadora muito clara, não deixava de ser igualmente um drama das tensões
sociais inerentes às relações escravistas. Todo o conjunto de acontecimentos
desencadeados pela ocorrência do delito praticado pelo escravo, até o sepultamento
do condenado, era acompanhado de perto por todos os agrupamentos da sociedade,
suscitando muita emoção e ansiedade. Desde o momento da descoberta do ato
criminoso, geralmente seguido pela fuga do cativo, rumores tratavam de colocar todos
a par de notícias que alteravam o curso regular do cotidiano. Notas eram estampadas
nos jornais e as autoridades faziam circular informações, procurando cumprir o
protocolo oficial.
41
2.4 O CONTRATEATRO
Em vários momentos, ações desviantes do controle pretendido por
autoridades e senhores eram perpetradas pelos incriminados e por aqueles que se
lhes prestavam solidariedade. Durante a própria encenação incriminatória e punitiva,
punha-se em movimento a demonstração da resistência ao poder dos agentes
imperiais, chegando muitas vezes a comprometer o papel disciplinador do
enforcamento e suscitando exemplos de rebeldia.
Isso se deu, decerto, durante os dias que precederam o enforcamento dos
cativos presos por terem participado do motim na escuna Laura 2ª. Quando foram
apanhados, após dois dias de fuga pelas matas desabitadas próximas à vila de
Cascavel, os negros do motim foram levados a Fortaleza e, ali, uma multidão os
aguardava. Conta o historiador oitocentista João Brígido dos Santos que era “grande
a expectação, quando esta gente chegou à casa do juiz de paz [...] Todos queriam ver
os criminosos, não pela estranheza da culpa, onde se matava tanto, mas pela sorte
que os aguardava, ex vi das leis da escravidão, que giram noutro eixo, que não o do
direito”. (SANTOS, 2009, p. 164).
Os que conseguiram assistir à concorrida sessão do tribunal do júri de 18
de julho puderam ouvir o réu Constantino falar da fome que passavam, ele e seus
companheiros negros, em alto mar, das ameaças de açoite por parte do capitão, das
humilhações que vinham sofrendo. Hilário, um dos cativos, nascido no Brasil assim
como Constantino, recebera no rosto um golpe dado com uma colher do contramestre
de bordo, quando pedia por mais comida. O depoimento apresentou o ponto de vista
dos cativos, revelou os bastidores da conspiração dos amotinados e a argumentação
encorajadora de Constantino para seus companheiros, dizendo que “em muitas partes
já tinham acontecido desordens por motivo de falta de comer!” (SANTOS, 2009, p.
158).
Mesmo encontrando-se acuados, amarrados e alquebrados pelas torturas
sofridas quando foram enfim capturados, após resistirem à prisão, o exemplo de
rebeldia dos escravos da escuna Laura 2ª parece ter inspirado ameaças à ordem
pública, aquela dos senhores. Os meses de espera pela sentença final do julgamento
não deve ter diminuído a tensão na pequena cidade de Fortaleza, pois quando o juiz
municipal marcou para o dia 19 de outubro de 1839 a data da execução dos
condenados (data que seria ainda adiada para 22 de outubro), um forte esquema de
42
segurança foi montado, sendo solicitada ao chefe da legião da Guarda Nacional a
disposição, desde as 6 horas da manhã, de uma tropa composta por um capitão, um
tenente, um alferes e cinquenta praças; também devia comparecer todo o corpo
policial da cidade e os praças de 1ª linha que se achassem presentes naquele dia
(NOGUEIRA, 1894, p. 53). Tanta mobilização de força teve seu motivo, pois o clima
de conspiração pesava na atmosfera de Fortaleza. Uma folha que fazia oposição ao
presidente de província anunciava, dias antes do enforcamento:
Rumores se têm espalhado pela cidade de que no dia da execução dos assassinos da Laura 2ª premedita-se um – S. Bartolomeu – nos oposicionistas: outros, porém, aparecem de que tenta-se somente assassinar os srs. Facundo, Miranda e José Lourenço.7
Sem que se saiba com qual intenção precisa, a matéria do Correio da
Assembleia Provincial do Ceará sustenta que os rumores que circulavam pela cidade
ameaçavam aqueles membros da oposição política ao presidente da província. Mas
isso não descarta o entendimento de possíveis outros significados desses rumores.
Afirma James C. Scott que os rumores são um dos mais consagrados meios pelos
quais setores subalternos da sociedade estabelecem os discursos ocultos que
compõem suas formas cotidianas de resistência. Adotando essa perspectiva,
pensamos que havia na capital cearense daqueles dias articulações ou, ao menos,
aspirações de revolta popular, ditas a boca miúda, que suscitavam a sensação de
insegurança por parte das elites locais. Que o delineamento de tais rumores não fosse
muito claro para os agentes do poder, isso não chega a ser algo surpreendente, haja
vista que, como disse ainda Scott:
Uma das grandes ironias das relações de poder é o fato de as atuações exigidas aos subordinados poderem converter-se, nas suas mãos, numa barreira quase intransponível e capaz de tornar a vida dos dominados opaca para as elites. (SCOTT, 2013, p. 188).
Evidências de atitudes insubordinadas permeiam as narrativas sobre
outros enforcamentos ocorridos no Ceará. A escrava Bonifácia, tendo sido condenada
por assassinar o filho de seu senhor de quatorze anos, enquanto aguardava o dia da
execução, conseguiu fugir, cavando um buraco na parede da cadeia pública, porém
foi recapturada, dias depois, em Jacarecanga, então arredores de Fortaleza, quando
7 Correio da Assembleia Provincial do Ceará, suplemento, Fortaleza, 19/10/1839, p. 5.
43
se passava por lavadeira, carregando uma trouxa de roupa na cabeça. Mais sorte teve
a cativa Raimunda, de Icó. Condenada à forca em 1841, após seis meses sofrendo
ameaças e açoites, conseguiu livrar-se da morte, evadindo-se da cadeia da vila sem
nunca mais ter sido encontrada. Quanto ao escravo Benedito, apelidado de Capitão
Cebola, era já um escravo fugido que vivia pelos mangues nos arredores de Fortaleza
quando foi capturado por ter matado uma criança que atravessava as matas do Cocó,
levando pão e carne para seu senhor. Descoberto, preso e torturado, Capitão Cebola
foi levado “algemado e carregado de ferros” ao oratório, um dia antes do
enforcamento. “Tratando-se de uma fera”, afirmou o presidente da província, “é
preciso, ainda nesta hora extrema, trazê-la bem segura” (NOGUEIRA, 1894, p. 78).
Mas o que as autoridades julgavam ser uma ameaça à ordem podia provir
de outros sujeitos que não fossem os próprios condenados. As aglomerações de
pessoas que acompanhavam as procissões e assistiam atentas aos enforcamentos
não pareciam aspirar confiança aos governantes, daí porque eram sempre vigiadas
de perto por soldados destacados para conter qualquer tumulto. O dia marcado para
o justiçamento do escravo Benedito, o Capitão Cebola, amanheceu sob intenso
aguaceiro, mas isso não impediu que à frente da cadeia ficasse reunida uma multidão
de cerca de três mil pessoas. Prorrogado o enforcamento para depois da chuva,
aquele ajuntamento aguardou até o início da tarde, quando enfim partiu o cortejo,
acompanhando o condenado. Eram tantos, que o desfile pelas principais ruas da
cidade foi cancelado e o condenado seguiu direto para o local onde havia sido erguido
o patíbulo, logo ao lado, na praça da Amélia, há poucos metros de distância. Guardas
fizeram um cerco de proteção ao redor do escravo Benedito e das autoridades
(NOGUEIRA, 1894).
Decerto, o que mais despertava o temor dos agentes estatais era a forte
emoção que tomava conta das multidões nos dias do enforcamento. A existência,
entre o público que assistia aos rituais de enforcamento, de um sentimento de
reprovação contra aquele ato foi o motivo da notícia, publicada no periódico
fortalezense O Commercial, numa matéria que tinha como título: “O justiçado do dia
18”.
Mais uma execução de pena última em nossa capital! Ontem, por uma hora da tarde, no campo da Amélia que é nossa praça de Grève, foi justiçado o infeliz Cebola, alcunha por que era conhecido o escravo Benedito, acusado de assassínio.
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Atos tais, que justamente se consideram como o reproche mais solene ao bom senso da sociedade que os tolera, nunca deixam de abalar de um modo doloroso aos que se condoem da triste humanidade quando, espezinhada em seus foros, parece gemer ao impulso da crueldade. Estes sentimentos naturalmente suscitados pelo horror duma execução, isto é, dum assassinato social, ou de um homicídio determinado pela justiça, com todo o aparato da legalidade, afim de punir outro homicídio, ocasionado pelo crime, como que ainda impressionam os habitantes da capital.8
Paulino Nogueira narra que, quando viram passar o escravo Benedito em
direção à forca, “todos choravam e tão alto que o choro dava para ouvir-se ao longe,
a semelhança de uma chuva que se aproximava” (NOGUEIRA, 1894, p. 80). A
compaixão em relação ao condenado que seguia para a morte concorria com o
sentimento de vingança ou de indignação contra o crime que esse havia praticado. No
caso do escravo Benedito, seu delito havia vitimado um criança praticamente
indefesa, porém isso não fez com que a maioria presente ao seu enforcamento
deixasse de lhe prestar apoio, erguendo seu pranto de dor e piedade. Sentimentos de
comoção também puderam ser percebidos durante a execução do escravo Antônio
em Viçosa
N’essa occasião surgio da multidão um velho, que chamou em socorro do réo a bandeira da misericórdia; e dizem que a própria senhora gritava em vozes altas da sua casa, que ficava próxima: Pega-te, meu negro, com a bandeira da misericórdia! Mas o juiz da execução, Francisco Gonçalves de Magalhães, o pae da victima e o povo gritavam ainda mais alto: Morra negro! Morra negro! (NOGUEIRA, 1894, p. 299).
Estudos de João José Reis revelaram o quanto a arte da boa morte pôde
mobilizar a sociedade brasileira no século XIX (REIS, 2009; REIS, 2001). Sendo a
crença mais difundida (um dado tanto da tradição católica europeia quanto das
provenientes da África), a de que a morte era apenas um momento de passagem, de
uma alma imortal que se desprendia de um corpo finito, muitos dos que
acompanhavam os préstitos dos condenados sentiam-se corresponsáveis por
interceder em favor daquele que em breve deixaria nosso mundo. Daí tantos prantos
e orações dirigidos aos condenados. Nesse sentido, a disposição das multidões que
observavam as procissões dos enforcados visava colaborar com o próprio cortejo.
Por outro lado, a empatia em relação à figura do condenado que o momento
solene promovia poderia representar um fator de instabilidade, caso algum quesito
visto com indispensável para a boa morte do réu não fosse contemplado. Numa época
8 O Commercial, Fortaleza, 19/04/1855.
45
de reformas urbanas e medicalização, quando novas práticas de sepultamento
pareciam desafiar a tradição funerária em várias cidades do país, a população
mantinha-se alerta para evitar um tipo indesejável de morte, pois se acreditava que
recompensas e punições poderiam recair sobre os vivos, assim como sobre o espírito
dos mortos, dependendo da forma como se procedia a passagem para o além.
A morte prematura, a morte por feitiçaria, a falta de ritos fúnebres ou os
sepultamentos inadequados eram tidos como formas impróprias de morrer e a elas
estavam associados diversos malefícios. Acreditamos que para muita gente a morte
por enforcamento deveria, de alguma maneira, estar associada a essas formas
inadequadas de morrer, pois se sabe que a dialética do corpo no imaginário popular,
como apontou José de Souza Martins, implicava em compreender que ele, o corpo,
“era um corpo carnal e simbólico ao mesmo tempo”. Nessa concepção, o corpo
humano não pertencia aos homens, não devendo ser profanado por mão humana
(MARTINS, 2015, p. 168). Convém então fazermos alusão ao historiador Peter
Linebaugh que mostrou a tensão suscitada na segunda metade do século XVIII,
quando se intensificou o confisco pelo Estado ou a usurpação ilegal dos cadáveres
dos enforcados na praça de Tyburn, em Londres. Os cadáveres dos condenados eram
vendidos para que estudantes e professores utilizassem-nos nas aulas de anatomia,
nos cursos de medicina ou cirurgia da Inglaterra. Parentes e amigos dos condenados,
no entanto, não aceitavam aquilo que era tomado como uma violação profana do
corpo dos enforcados e disputavam à força os corpos ao pé da forca, visando lhes
garantir um enterro digno. Isso provocava distúrbios frequentes e, às vezes, revoltas
de grandes proporções nos dias de justiçamento (LINEBAUGH, 1975). As cerimônias
de enforcamento tornavam-se, assim, momentos potencialmente explosivos.
As últimas palavras dos condenados ganhavam, nesse sentido, um efeito
todo especial. Daí tanta atenção direcionada aos menores gestos dos réus quando se
dirigiam à forca. Sobre a escrava Bonifácia, observou-se que marchava para o
cadafalso “sem se mostrar acovardada” e que, “ao passar pela casa do senhor, lançou
para ela um olhar muito expressivo – de quem queria proferir algumas palavras. As
portas, porém, estavam fechadas.” (NOGUEIRA, 1894, p. 66-67). Memorável também
foram os gestos e as palavras de Capitão Cebola:
Apenas o réu chegou ao cimo do patíbulo, disse em voz alta, em linguagem incorreta, mas inteligível – Peço a todos um Padre Nosso e uma Ave Maria! E dirigiu-se para o carrasco: – Manoel, eu te perdoo a morte. Meu carrasco
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não devia ser tu, mas o carrasco do Velho Machado! (NOGUEIRA, 1894, p. 67)
O enfrentamento da morte com coragem parece servir como mensagem
lançada ao público observador. Com relação ao enforcamento coletivo dos
amotinados da escuna Laura 2ª, o encorajamento pôde ser compartilhado entre os
companheiros cujo destino era o mesmo. Vendo o escravo João Mina chorar
copiosamente na frente da forca, maldizendo-se da sorte e pedindo socorro, Hilário,
que comia pão de ló e bebia vinho naquele instante, disse ao colega com repreensão:
“Morre, homem, mas não dá gosto aos teus inimigos!” O próprio Hilário, quando
chegou a sua vez, adiantou-se ao chamado do carrasco, “marchou com passo firme
e ar triunfante, subiu com sobranceira de que ia se vingar” (NOGUEIRA, 1894, p. 52).
Percebemos que, da parte dos escravos condenado, não faltaram também
gestos e palavras dramáticas que dialogavam com as expectativas daqueles que
assistiam aos rituais de enforcamento. De vítimas, enquadrados pelas rigorosas leis
do Império, punidos com a pena máxima, roubavam a cena e, ainda uma vez mais,
desafiavam a ordem de seus senhores. Podemos descrever tais atitudes, com
Thompson, como parte do contra teatro de poder acionado pelos subalternos: “Assim
como os governantes afirmavam a sua hegemonia por um estudado estilo teatral, os
plebeus afirmavam a sua presença por um teatro de ameaça e sedição” (THOMPSON,
1998, p. 65).
A execução em praça pública de escravos, enquadrados em crimes
considerados graves (geralmente associados a ações violentas contra seus senhores,
administradores e feitores), teve início na província cearense, como no restante do
Império, num tempo em que revoltas multiplicavam-se pelo país e agitavam as massas
escravas, representando um grande perigo para o próprio sistema escravista. Da
perspectiva dos que almejavam manter o governo dos escravos sob controle, a
intimidação pelo enforcamento exemplar parecia uma saída necessária para fazer
desacreditar a confiança crescente que envolvia então as aspirações dos cativos por
liberdade.
Considerações mais gerais sobre a eficácia do recurso ao enforcamento
como método de controle sobre os escravos ultrapassariam as possibilidades de
discussão do presente capítulo. Porém, não seria possível deixar de lado as
demonstrações de resistência, por parte dos escravos condenados e outros atores
sociais, que, por vezes, comprometiam o papel disciplinador dos enforcamentos,
47
chegando a oferecer expressivos exemplos de rebeldia. Sendo os enforcamentos
rituais multitudinários marcados por forte emoção, pudemos perceber que elementos
como tentativas de fuga, rumores, aspirações de revolta, costumes fúnebres e as
próprias últimas palavras dos condenados podiam se constituir em fatores
instabilizadores do teatro do poder.
Enfim, há que se notar que os rituais de enforcamento de escravos tiveram
vida curta na província cearense, antecedendo em duas décadas o declínio da
escravidão, sendo o último justiçamento registrado no ano de 1855. Fatores sociais
complexos – relacionados à própria consolidação do estado imperial, ao afastamento
dos perigos das revoltas sociais e ao declínio dos contingentes de escravos na
província com a intensificação do tráfico de cativos para outras regiões do país –
podem ser apontados como elementos que explicam a relativa brevidade dos
enforcamentos de cativos no Ceará. De toda maneira, sabemos que os próprios
escravos condenados exerceram papel ativo, contribuindo por desacreditar que a
morte na forca fosse capaz de extinguir suas aspirações por liberdade e sua rebeldia.
A teatralização da morte de escravos na forca apresentava falhas
enquanto mecanismo de controle social. Mais uma vez é Paulino Nogueira quem
oferece a crônica, criada com base nos relatos que colheu sobre o dia do
enforcamento do escravo Benedito, vulgo Capitão Cebola, último cativo executado em
Fortaleza:
Um quarto de hora depois, si tanto, quando o povo se dispersava com mostras de comoção, um caboclo trava-se de razões com outro, ao enfrentar a S. Casa, onde é hoje o teatro S. Luiz, e quase o mata com uma faca! Na altercação, dizia para o contendor – Tu pensas que eu tenho medo daquilo? (apontando para o patíbulo). Forca só se fez para homem! (NOGUEIRA, 1894, p. 80-81)
48
3 CRIMES
Após observar como as execuções de escravos no Ceará constituíram-se
em uma teatralização do poder imperial (suscitando um correspondente contrateatro,
protagonizado pelos executados e outros sujeitos históricos), no capítulo anterior,
passamos agora a analisar o universo da criminalidade na província cearense afim de
compreendermos as atitudes dos cativos consideradas ameaçadoras à ordem local e
os motivos que levaram as autoridades a condenação de parte desses escravos à
pena máxima do enforcamento. As discussões vão girar em torno do que Boris Fausto
define como crime e criminalidade. As duas expressões têm sentidos específicos,
como se segue:
‘Criminalidade’ se refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento de padrões através da constatação de regularidades e cortes; ‘crime’ diz respeito ao fenômeno em sua singularidade cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas percepções. (FAUSTO, 1984, p. 09).
Perceber as ações de resistência individuais dentro de uma lógica de
resistências coletivas nos levam também à discussão sobre o fenômeno da resistência
individual dentro de uma dimensão mais ampla das ações de resistências coletivas
dos cativos em busca da liberdade. Para os aprofundamentos das discussões no
presente capítulo, discutiremos com as obras Crime e escravidão de Maria Helena
P.T Machado, Crimes em comum, livro de Ricardo Alexandre Ferreira, e Senhores e
Caçadores de E.P Thompson, para obter um melhor aprofundamento das lutas
travadas pelos cativos e dos crimes como ato de resistência aos maus tratos do
cativeiro. Não poderíamos entender as dimensões das resistências sem obras de
João José Reis, sobre resistência escrava, e o artigo Formas cotidianas de resistência
camponesa, de James C. Scott (que nos fez compreender que em pequenos atos
cotidianos podem ser encontradas manifestações de resistência).
Por meio do levantamento das trajetórias particulares das ações que
motivaram os crimes dos cativos contra seus senhores ou agregados da família, ou
mesmo funcionários das fazendas, pretendemos traçar um plano geral da
criminalidade escrava na província cearense, e compreender como os atos de
resistência se configuraram como crimes penalizados com a morte. De tal modo,
49
poderemos compreender melhor as dinâmicas das lutas pela liberdade e resistências
cativas na província do Ceará no século XIX.
3.1 REVOLTAS
Essa história começa nas primeiras décadas do século XIX, quando o Brasil
deixava para trás a antiga condição de Colônia e experimentaria a recentemente
adquirida condição de Império independente. Nesses tempos, demarcou-se uma luta
intensa pela instalação da administração imperial que, após a abdicação de D. Pedro
I em 1831, descentralizaria o domínio político, dando início a diversas disputas pelo
controle do Império. Desde os tempos da Independência, passando por todo o
Primeiro Reinado (1822-1831), até o fim do Período Regencial (1831-1840), o novo
regime político brasileiro foi profundamente marcado pela grande efervescência de
movimentos impulsionados por diferentes motivações e que eclodiram em todas as
regiões do Império. Movimentos nos quais indivíduos de diferentes segmentos sociais
manifestaram suas oposições contra a ordem estabelecida, contribuindo para o clima
de instabilidade que se deu no momento de luta pelo domínio imperial.
A abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, marco inicial de transição
para o Período Regencial é retomado como momento de disputa em torno de
diferentes projetos de nação, em perspectivas diversas que vão das discussões na
arena estritamente política, passando pelos conflitos sociais em torno do processo de
integração das regiões ao projeto centralizador na Corte imperial, até lugar de homens
e mulheres de cor na construção da nação. Nas palavras de Ilmar Rohloff Mattos:
Os anos que se seguiram a abdicação foram anos de levantes, revoltas, rebeliões e insurreições. De sonhos frustrados e de intenções transformadoras em ações vitoriosas. Foram sem dúvida, anos emocionantes para aqueles que viviam no Império do Brasil. (1987, p. 10).
Não por acaso, a Regência é referida como o período das instabilidades
políticas, de levantes, revoltas, rebeliões e insurreições, como bem destacou Ilmar
Mattos em O Tempo Saquarema. Um momento clímax do processo de conformação
da ordem advinda com a Independência. Privilegiando a política parlamentar e
abordando com minúcia as disputas entre as diversas propostas e os grupos que iam
se delineando, Marcello Basile mostra que o 7 de abril inaugurou um momento ímpar
de experimentação política, em que uma diversidade de fórmulas políticas foram
50
apresentadas e experimentadas, e de participação popular, ainda que não na política
institucional, mas nas ruas, de um amplo leque de grupos e estratos sociais, chegando
a ser identificado por Marco Morel como um grande "laboratório" político e social, no
qual as mais diversas e originais fórmulas políticas foram elaboradas e diferentes
experiências testadas.
Uma primeira observação que deve ser feita trata-se da historiografia
acerca das revoltas do Período Regencial. Durante muito tempo, as narrativas
historiográficas concentraram seus esforços sobre os movimentos de maior amplitude
nas províncias, aqueles que receberam maior atenção da administração imperial e,
muitas das vezes, atribuindo características sobretudo negativas, ressaltando as
revoltas ocorridas como sinônimo de anarquia e empecilho ao estabelecimento da
ordem. Aqui, pretendemos abordar as revoltas Regenciais em suas próprias bases e
não como um momento de transição política entre a abdicação e o chamado regresso
conservador. Na tabela abaixo, listamos alguns dos outros movimentos que sacudiram
o Período Regencial e que em alguns casos não são tão conhecidos quanto outros:
Tabela 3 – Revoltas do Período Regencial
Revoltas regenciais Ano Localização Tendência
Revolução do 7 de abril 1831 1831 Corte Exaltada/
Moderada
Mata-Marotos 1831 Bahia Exaltada
Revolta do povo e da tropa 1831 Corte Exaltada
Revolta do povo e da tropa 1831 Pará Caramuru
Setembrada 1831 Maranhão Exaltada
Setembrada 1831 Pernambuco Exaltada
Distúrbios do Teatro 1831 Corte Exaltada
Levante da ilha das Cobras 1831 Corte Exaltada
Novembrada 1831 Pernambuco Exaltada
Revolta de Pinto Madeira e Benze-
Cacetes
1831-
1832
Ceará Caramuru
Levantes federalistas (seis) 1831-
1833
Bahia Exaltada
Sedição de Miguel de Frias e
Vasconcellos
1832 Corte Exaltada
Sedição do rio Negro 1832 Pará Exaltada
(continua)
51
Fonte: BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840) In: GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial (1808-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1,
2009, p. 53-119.
Acima, reunimos alguns dos movimentos e suas principais tendências.
Porém, frisamos a importância de compreender tais movimentos enquanto
manifestações de segmentos populares. A frente desses movimentos, estavam
facções políticas com projetos e linhas de ação distintas, assim como movimentos
anti-lusitanos. Mas também alguns outros grupos eram formados por segmentos
sociais diversos, como índios, livres pobres, negros libertos e também os escravos
que, em alguns movimentos, chegaram a assumir a frente dos protestos como na
Revolta de Carrancas em Minas Gerais, no levante dos Malês na Bahia e na Rebelião
de Manuel Congo no interior do Rio de Janeiro.
Para esse primeiro momento, abordaremos algumas das Revoltas que
tiveram desdobramentos logo após abdicação de D. Pedro I em 1831. Analisaremos
Revolta do Barão de Bülow 1832 Corte Caramuru
Abrilada 1832 Pernambuco Caramuru
Assuadas (duas) 1832 Corte Caramuru
Cabanada 1832-
1835
Pernambuco-Alagoas Caramuru
Revolta do Ano da Fumaça 1833 Minas Gerais Caramuru
Carrancas 1833 Minas Gerais Escrava
Revolta do povo e da tropa 1833 Pará Exaltada
Conspiração do Paço 1833 Corte Caramuru
Rusga Cuiabana 1834 Mato grosso Exaltada
Carneiradas 1834-
1835
Pernambuco Exaltada
Malês 1835 Bahia Escrava
Cabanagem 1835-
1840
Pará Exaltada
Revolução Farroupilha 1835-
1845
Rio Grande do Sul- Santa
Catarina
“Exaltada”
Sabinada 1837-
1838
Bahia Exaltada
Rebelião de Manuel Congo 1838 Rio de Janeiro Escrava
Balaiada 1838-
1841
Maranhão e Piauí “Exaltada”
(conclusão)
52
as tendências presentes nas revoltas, quais eram as bandeiras e projetos levantados
pelos sujeitos que as compunham e, o desenrolar das mesmas durante o tempo que
os conflitos estiveram ativos até serem sufocados pelas autoridades imperiais. No
segundo momento, analisaremos revoltas que tiveram uma maior participação de
escravos, com pretensões antiescravistas como norteadoras de suas ações.
Da primeira onda de revoltas que tiveram início logo após o episódio da
abdicação do trono, a Revolta de Pinto Madeira (1831-1832) no Ceará, surgiu como
um movimento contrário a saída do monarca e, tinha como uma de suas principais
pautas motivações a restauração do Imperador D. Pedro I ao trono do Império
brasileiro. De acordo com a historiadora Ana Sara R. P. Cortez Irffi.
No ano de 1831, a vila de Crato, sede de Comarca do Cariri Cearense, foi invadida por homens que, segundo relatos, carregavam ‘cacetes e facas’ e infundiam terror à população da vila. Ainda conforme as notícias, eram os ‘homens de Jardim’, inconformados com a abdicação de D. Pedro I, pois acreditavam que o monarca teria sido obrigado a deixar o cargo e voltar para Portugal. Sobre o comando desses homens estavam Joaquim Pinto Madeira e o Padre Manoel Antônio de Sousa. Essa revolta, que durou até meados de outubro de 1832, ficou conhecida como Guerra Civil ou revolta do Pinto Madeira e seu ‘exército’, como cabras. (2017, p. 201).
Inconformados com a abdicação de D. Pedro I do trono e acreditando que
o monarca teria sido obrigado a deixar o trono, um grupo sob o comando de Joaquim
Pinto Madeira e o Padre Manoel Antonio de Souza organizaram uma revolta na
Comarca do Cariri Cearense que ficou conhecida como Revolta de Pinto Madeira.
Na região do Cariri cearense, a revolta de Pinto Madeira e seu ‘exército’ de
cabras atraiu a atenção das autoridades imperiais que viam na organização do
movimento, a defesa da restauração de D. Pedro I ao trono, o que ia contra os
interesses dos liberais que defendiam a Regência pela Constituição de 1824. As
autoridades da Província cearense declararam imediatamente o movimento incitado
por Joaquim Pinto Madeira e o padre Manoel Antônio de Souza como inimigo da
liberdade, e ao grupo de homens e mulheres que os acompanhavam, atribuíram uma
denominação de cabras, nomenclatura que atribuía todas as marcas consideradas
marginais aos sujeitos assim identificados.
De um lado, os interesses restauradores dos cabeças da revolta, do outro
as tentativas das autoridades em sufocar os revoltosos, que diziam-se defensores da
liberdade e da Constituição, e ainda a participação do ‘exército’ de Pinto Madeira, os
cabras. A participação dos cabras nessas lutas possuíam interesses diversos do que
53
percebiam as elites senhoriais e as autoridades tanto da região do Cariri, quanto até
mesmo da província cearense. Desqualificados pelas autoridades como massa de
sujeitos marginais levados pela incitação de terceiros, ou seja, considerados como
uma massa moldável às pretensões dos líderes da revolta. Ao contrário do que
pensavam as autoridades sobre essa massa popular que acompanhava Pinto
Madeira, suas reivindicações tinham raízes na defesa de condições básicas de
sobrevivência e contra uma nação brasileira que se tornava independente e relegava
a essa parcela da sociedade a exclusão do direito à cidadania. No caso da província
do Ceará, a revolta de Pinto Madeira figura-se como um dos momentos em que a
adesão ao novo Império e administração política por meio dos regentes não se deu
de forma pacífica, mas sim por meio da imposição armada e violenta.
A participação de sujeitos das camadas populares não se restringiu
somente a revolta de Pinto Madeira na província do Ceará. Muito pelo contrário,
constata-se seu engajamento em outros movimentos durante o período Regencial.
Sobre a participação dessa parcela da sociedade, os historiadores Sérgio Buarque de
Holanda e Emília Viotti da Costa sugeriram que, com o processo de Independência
do Brasil, a participação de sujeitos sociais pertencentes as camadas populares
passou a ter uma presença cada vez mais frequentes. Estes, tendo acreditado nas
promessas das liberdades cidadãs, amplamente propaladas durante o movimento da
Independência, sentiram-se traídas com a manutenção do mundo dos privilégios,
externando sua indignação e inconformismo nas rebeliões regenciais populares.
Sérgio Buarque de Holanda foi mais a fundo em suas análises e percebeu
as rebeliões populares da Regência como resultados da indignação pela continuidade
das injustiças e exclusão do pacto político, que admitia como cidadãos os sujeitos que
detinham o direito político do voto, e este, por ser censitário, excluía uma grande
parcela da população que não possuía condições financeiras para exercer a cidadania
aos moldes da Constituição de 1824. O autor sugere que as revoltas populares no
caso da província do Pará foram decorrentes das insatisfações entre os populares
com o processo de Independência:
[...] As populações nativas esperavam, com a Independência, “uma liberdade completa, liberdade constitucional mal entendida”, dir-se-ia mais tarde. No entanto, continuava o regime da escravidão, das violências…. Os nativos já se viravam contra os brancos que pela cor da pele já lhe pareciam reinóis ou seus adeptos. [...]. (HOLANDA, 1967, p. 86).
54
Movimentos sociais que contaram com enorme participação popular, a
Cabanagem (1835-1840) e a Balaiada (1838-1841) mobilizaram um grande
contingente de pessoas dos mais variados segmentos sociais, colocando em pauta
diversos projetos que nem sempre eram compartilhados por todos. A intensidade da
luta e o elevado número de pessoas que aderiram à causa dos rebeldes assustaram
as autoridades imperiais. Foram lutas sangrentas, que visavam, entre outras coisas,
quebrar a hegemonia dos portugueses no comércio, já que estes eram amplamente
responsabilizados pelo alto custo de vida e, consequentemente, pela miséria que
atingia grande parte da população.
No caso da Cabanagem no Pará, suas raízes estavam ligadas ao processo
de independência e à oposição entre os que defendiam o projeto recolonizador da
Corte portuguesa e aqueles ligados ao projeto de emancipação brasileira. A
Cabanagem foi um movimento social que agregou uma ampla frente de participação
popular e a diversidade dos projetos ali reunidos eram tanta que levou ao choque de
interesses e colaborou com o seu posterior enfraquecimento. Em Cabanos,
patriotismo e identidades, Magda Riccianalisa o segundo ciclo de revoltas do período
regencial no norte do Império. Ela mostra que a província do Pará, longe de ser isolada
e pouco povoada, como se pretendeu em várias análises, estava interligada a rotas
internacionais através do comércio intercontinental e da circulação de pessoas e
ideias entre a região e os países vizinhos.
Características semelhantes também podem ser observadas no caso da
Balaiada, movimento que ocorreu no Maranhão e no Piauí e chegou até mesmo a
repercutir em algumas vilas da província do Ceará, entre os anos de 1838 e chegou a
durar até o ano de 1841. A Balaiada chegou a registrar entre seus participantes uma
forte presença popular que dinamizou a base social da revolta, dotando-lhe de um
caráter multiclassista. Nas palavras de José Murilo de Carvalho, a Balaiada foi um
“conflito de elites que aos poucos se torna guerra popular” (CARVALHO, 2007, p. 253).
A diversidade dos rebeldes também pode ser percebida na participação
cearense. Na região que engloba as cidades de Sobral e Granja, áreas próximas à
fronteira com o Piauí, foram registrados contatos e alianças de proprietários de terras
cearenses com os rebeldes balaios. Neste sentido, o ofício nº 02, de 11 de março de
1840, enviado pelo então presidente da província do Ceará, Francisco de Sousa
Martins, ao ministro da justiça, Francisco Ramiro D’Assis Coelho, é bastante revelador
das redes de ligações do movimento com algumas pessoas do Ceará.
55
Cumpre-me participar a V. Exa. que na Villa de Granja d‟esta Provincia tem aparecido alguns indicios de connivencia com os rebeldes das Frexeiras; mas julgo que elles não terão consequencia mediante as providencias que tenho dado para prevenir qualquer rompimento.9
Interessante perceber neste trecho que o presidente buscou enfatizar que,
no Ceará, este movimento não teria força, mas diversos foram os grupos sociais no
Ceará que sofreram influências dos rebeldes. O próprio Francisco de Souza Martins
forneceu pistas sobre a origem social dos sujeitos que se rebelaram contra as
autoridades. Em seu relatório anual de 1840, informou que
Da Povoação de S. Pedro, no termo de Villa Viçoza evadirão-se muitos Indios com suas familias para se reunirem ao sequito das Frecheiras, cujos chefes empregavão os esforços possíveis não só para atrair (sic) os Indios de outras Povoações, como também os demais habitantes dos outros Municípios visinhos. Individuos desfarçados forão por elles enviados com proclamações e cartas, convidando os povos a rebelião, e excitando-os com o engodo das propriedades dos legalistas.10
A fuga dos índios para juntaram-se as forças rebeldes evidencia a situação
dos índios do Ceará naquele momento, ao optar pelo engajamento com os balaios,
declaravam insatisfação em relação as condições de vida e a posse da terra na
província. Os sujeitos que aderiram a Balaiada entenderam que ali estava uma
oportunidade para melhorar suas condições de vida.
Uma das principais causas de insatisfação entre homens livres pobres e
libertos era a questão do recrutamento, grande causador de conflitos, pois expunha
as contradições e hierarquias sociais. Era comum, durante os períodos de lutas pela
Independência a incorporação de sujeitos pertencentes às camadas populares da
sociedade para combater juntamente com as tropas oficiais do Império. Na maior parte
das vezes, eram recrutados com o uso da força. De acordo com Tyrone Cândido:
A incorporação popular nas tropas atuantes nas lutas desse período resultou em complexos desdobramentos sociais. Aquele tempo foi marcado por recrutamentos em massa, muitas vezes forçados, pelo disciplinamento de tropas com métodos violentos, pela vigilância tentando conter as deserções frequentes, pela perseguição a esses desertores, pelos castigos físicos e as
9 Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Fundo: Governo da Província. Série: Correspondência Expedida.
Livro de Registro da Correspondência da Presidência da Província do Ceará dirigida o Ministério da Justiça,
1835-1843, Livro nº 30. Ofício do presidente da província do Ceará, Francisco de Souza Martins, ao ministro da
justiça, Francisco Ramiro de Assis Coelho, nº 02, 11 de março de 1840, fls. 86.v e 87. 10 Relatorio com que apresentou o Exm. Senhor Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província,
na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa provincial no dia 1° de agosto de 1840. Ceará, Typ.
Constitucional. Anno de 1840, p 06.
56
prisões sofridos pelos soldados recalcitrantes, pela fome e falta nos pagamentos durante as duras jornadas movimentando-se pelas quentes veredas na caatinga (CÂNDIDO, 2018, p. 8).
O recrutamento forçado, já utilizado em vários momentos de conflitos,
desde os episódios de 1817 e 1824, também fora utilizado para combater os rebeldes
do Período Regencial. Por conta da “massificação operada pelo recrutamento”, aos
trabalhadores pobres livres, assim como a incorporação de índios, escravos e libertos,
igualmente feito em larga escala, provocou uma resistência de grandes proporções.
Essas experiências traduziam-se em uma diversidade de projetos e de
ações políticas, expressão do antagonismo fervilhante entre os diversos grupos
sociais, representantes de interesses diversos, econômicos, sociais, políticos ou
raciais. Alguns desses movimentos ocorridos nas províncias, sua relação com a Corte,
os projetos de identidade nacional e a participação popular, são analisados por
Marcus Carvalho em Movimentos sociais: Pernambuco (1831-1848), e em Cabanos,
patriotismo e identidades, por Magda Ricci. Nos dois textos, publicados no volume II
de O Brasil Imperial, organizado por K. Grinberg e Ricardo Salles, a data da Abdicação
é novamente o divisor de águas que mobiliza esses grupos e radicaliza as oposições.
Entretanto, os acontecimentos e seus desenvolvimentos são vistos neles como parte
de um processo histórico de longa data, envolvendo questões políticas e sociais
engendradas no enfrentamento entre os interesses dos diversos grupos em disputa.
Ambos articulam o plano político institucional das tentativas do governo na Corte de
tomar o controle sobre as províncias ao plano regional e cotidiano das querelas locais
e aos sentidos da liberdade atribuídos pelo povo, atentando para a precariedade das
liberdades individuais. A participação popular é aqui posta em relevo sem ser vista
como espasmódica ou manipulada pelas elites políticas.
Inseridos numa trama complexa e mostrando a diversidade de grupos
envolvidos e as lógicas que corroboravam as lutas, fazendo-os por vezes aliados
circunstanciais como no caso dos senhores de engenho, escravos, quilombolas,
indígenas e homens livres pobres em geral. Ainda que, por vezes, não houvesse uma
organização com objetivos mais específicos, os grupos em questão tinham suas
razões e sua lógica de ação a partir de interesses próprios. Assim, a política cotidiana
das pessoas comuns e dos diversos grupos que as compõe é analisada sem esquecer
seus laços com a política institucional.
57
No caso de Marcus de Carvalho, a não compartimentação da história
desses movimentos numa Pernambuco em constante estado de tensão, que é guiada,
de modo mais geral, pelos acontecimentos ligados ao 7 de abril, data da Abdicação,
quando aqueles que haviam apoiado a repressão de D. Pedro I às pretensões
revolucionárias de 1817 ou 1824 passam a ser perseguidos pelos que agora foram
elevados pela gangorra política.
Analisando a Sabinada na Bahia (1837-1838) não apenas como parte do
processo conflituoso de disputa entre projetos de autonomia e independência das
províncias em relação à Corte, mas, sobretudo, como disputa pelo lugar dos homens
de cor na construção da nação, Keila Grinberg analisou dois projetos políticos em
disputa: de um lado aquele representado por Antônio Pereira Rebouças que,
colocando-se do lado da “ordem”, procurava ater-se aos princípios constitucionais
segundo os quais os cidadãos brasileiros, qualquer que fosse a sua cor, só poderiam
ser distinguidos por seus talentos e virtudes; Francisco Sabino, por outro lado,
representava aqueles que viram com desgosto serem cada vez mais negadas as
possibilidades abertas a partir da Independência, de uma maior inserção de livres e
libertos, pardos e mulatos, tanto na participação política como na ocupação de cargos
públicos e militares.
O existir cotidiano da sociedade imperial na primeira metade do século XIX,
assinalado pelas várias manifestações de rebeldia e pelas formas de repressão das
autoridades imperiais, evidenciam o medo aos sentidos de liberdade da parcela pobre
da sociedade imperial e deu subsídios aos dirigentes imperiais e das elites locais a se
aliarem e a submeter esses homens e mulheres livres pobres à repressão.
A segunda categoria de revoltas Regências agrupam movimentos com
tendências antiescravistas, como foram os casos da Revolta de Carrancas (1833), em
Minas Gerais, a Revolta dos Malês (1835), na Bahia, e a Revolta de Manoel Congo
(1838), no interior do Rio de Janeiro. Nossa intenção aqui é enquadrar esses três
movimentos distintos na elaboração de políticas relativas ao tráfico negreiro e no
impacto das ações escravas.
Em 1833, dezenas de cativos se sublevaram na freguesia de Carrancas
(comarca do Rio das Mortes), onde se concentravam as mais altas taxas de escravos
por homem livre da província (cerca de 60%) e uma igualmente elevada proporção de
africanos entre os cativos (56,25% do total). A escravaria do deputado Gabriel
Francisco Junqueira matou seu filho na fazenda Campo Alegre e, em seguida, rumou
58
à Bela Cruz, onde se juntou a outros insurrectos para chacinar o proprietário José
Francisco Junqueira, a mãe, a esposa, o genro, a filha e os dois netos, um de 5 anos
e outro de dois meses. Ao todo, nove membros da família Junqueira foram
massacrados no levante, cuja repressão, tão imediata como violenta, resultou no
enforcamento exemplar de dezesseis participantes.
Marcos Ferreira de Andrade (1999) chama a atenção para a enorme
riqueza e complexidade do movimento, que podem ser percebidas por diversos
fatores. O primeiro está ligado ao grau de organização e planejamento da revolta, que
é revelado pelo sucesso do movimento e a articulação entre os escravos de várias
fazendas.
Revolta dos Malês se deu em janeiro de 1835, na capital da Bahia. Aí
também era alto o porcentual de escravos (42% da população) e de africanos (63%
entre os de condição servil). Quase seiscentos cativos lutaram nas ruas de Salvador
por cerca de três horas, com a intenção de seguir para a zona rural, onde previam se
encontrar com outros e travar batalha menos desigual. Mais uma vez, a repressão foi
rápida e cruenta: quase setenta escravos foram fuzilados sumariamente e mais de
cinco centenas sofreram punições, fossem elas pena de morte, tortura ou deportação
para a África (REIS, 1986).
Por fim, merece ser citado um terceiro levante, conhecido como a revolta
de Manuel Congo, na freguesia de Pati do Alferes (comarca de Vassouras, Rio de
Janeiro), onde a taxa de africanos chegava a 70% em 1837, por se tratar de fronteira
agrícola em franca expansão. Em novembro de 1838, centenas de escravos de duas
fazendas do capitão-mor Manuel Francisco Xavier abandonaram as senzalas na
calada da noite e se infiltraram na densa mata atlântica. Parece que tiveram por
objetivo montar quilombos na topografia serrana do Rio de Janeiro, mas autoridades
da época também ressabiaram que se unissem a outros escravos da Fábrica Nacional
de Pólvora, em Estrela (RJ). A repressão da Guarda Nacional sobreveio seis dias
depois da fuga. Ao fim e ao cabo, todos os escravos foram recuperados, à exceção
de seis cativos mortos em combate e do líder, Manuel Congo, condenado ao
enforcamento exemplar. (GOMES, 2006, p. 144-246).
Três revoltas, três lugares, três datas sem dúvida. É possível traçar
aproximações que os coloquem à luz do quadro mais amplo da política brasileira e
dos discursos sobre a escravidão no Parlamento. A revolta de Carrancas parece estar
diretamente relacionada com as convulsões políticas nascidas de disputas entre
59
liberais moderados e apoiadores do ex-Imperador, os chamados caramurus. Em 22
de março de 1833, esses conservadores tinham tomado a capital Ouro Preto e, para
obstar as ações repressivas das tropas regenciais, espalharam entre os escravos o
boato de que o imperador os tinha libertado, mas seus senhores os mantinham
ilegalmente no cativeiro. Não restam dúvidas, portanto, de que a luta dos escravos
fendeu brechas significativas para discursos antiescravistas na imprensa e nos
espaços institucionais do Estado nacional. De acordo com Tâmis Peixoto Parron
(2015):
Se uma fratura na solidariedade da classe senhorial levara a uma revolta de escravos, a de Carrancas em 1833, uma segunda revolta de escravos, a dos malês em 1835, motivara uma série de iniciativas que ameaçavam a força da própria classe senhorial. Tudo somado, a imprensa mulata, os artigos contra a escravidão, as revoltas escravas, os projetos de lei antiescravistas e as ações antitráfico do Executivo impunham uma questão aos atores coevos: qual iria ser a natureza da relação entre o governo brasileiro e a escravidão e, em particular, entre o governo brasileiro e o tráfico negreiro transatlântico? (2015, p. 317).
Sobre as ações escravas e suas repercussões no parlamento o assunto é
analisado de diferentes perspectivas nos trabalhos de Rafael Bivar Marquese e Dale
Tomich. Para Marquese e Tomich em O Vale do Paraíba escravista e a formação do
mercado mundial do café no século XIX foi a ação “concertada” entre os fazendeiros
do Vale escravista e os políticos ligados ao regresso o que estreitou a relação entre o
crescimento do tráfico atlântico e o aumento da produção cafeeira, além da otimização
do tráfico conseguida por luso-brasileiros que comandavam boa parte do infame
comércio na região da África centro-ocidental. Nem sempre a historiografia articula
satisfatoriamente insurreições escravas com política nacional; às vezes sem fazer
crítica de fonte, outras sem levar em conta interesses escravistas, conclui
prematuramente que os escravos perpetraram o fim do tráfico negreiro e da
escravidão no Brasil. Sobre o desenrolar das ações antiescravistas dentro dos
debates parlamentares, o historiador Tâmis Parron percebeu o seguinte.
Trata-se de um caso em que a instabilidade no plano institucional degringolou para lutas sociais, que, por sua vez, tiveram reflexo direto no Parlamento. No mês seguinte à revolta, o ministro da Justiça apresentou um pacote de segurança pública para evitar que planos de “restauração” do duque de Bragança (D. Pedro I) resultassem em “guerra civil”. O pacote consistia em quatro pontos: 1. Centralização da Guarda Nacional mediante nomeação de comandantes e majores por presidentes de Províncias e pelo governo; 2. Criação de guardas municipais para arrochar vigilância sobre localidades e desincumbir a Guarda Nacional de tarefas menores; 3. Controle estrito sobre
60
a liberdade de imprensa (com proibição expressa de menções a D. Pedro I); 4. Punições rigorosas e sem direito a recurso de escravos sublevados. Em última análise, procurava-se evitar que inimigos externos (o ex-Imperador e seus correligionários) se aliassem a inimigos internos (escravos). (PARRON, 2009, p. 98).
Não há a menor dúvida de que os cativos contribuíram para o debate sobre
a escravidão no país. Os aparatos repressivos da justiça imperial foram acionados a
partir da pressão exercida pelos cativos em diversas regiões do Império. A própria
criação da lei de n° 4, de 10 de junho de 1835, surge no contexto das Revoltas de
Carrancas e sua criação torna-se efetiva no mesmo ano da Revolta dos Malês em
1835. Os cativos aproveitaram o momento de dissensão política para reivindicar
melhores condições de vida. A expectativa da liberdade esteve na linha do horizonte
destes sujeitos que fizeram a liberdade sua bandeira de luta contra a opressão da
sociedade escravista. Apesar da forte repressão que sofreram, estes homens e
mulheres deixaram suas marcas em diversas ações, desde as resistências por meio
das fugas, as agressões físicas e os assassinatos contra sujeitos ligados a sociedade
escravista. Na própria história do Ceará, as execuções de escravos são marcas de
uma resistência que se dava por meio da luta, e que por várias vezes foi violenta e
sangrenta em ambos os lados.
3.2 COTIDIANO, CRIMINALIDADE E TENTATIVAS DE CONTROLE SOCIAL
No caso da província do Ceará, a independência política de Portugal
transcorreu em meio a inúmeros conflitos armados, num processo que surge ainda
com a Revolução de 1817 e segue até o fim da Confederação do Equador, em 1824.
Inúmeros foram os agrupamentos de homens armados dos mais variados segmentos
sociais, e dos quais faziam parte “um conjunto popular heterogêneo de pessoas do
sertão (índios, mestiços, brancos pobres, negros libertos, inclusive escravos)”
(CANDIDO, 2018). Esses grupos de homens armados despertavam o temor da
população por onde passavam, assim como das autoridades imperiais, que nos
momentos de crise aproveitavam destes mesmos bandos para combaterem os
rebeldes, sem que deixassem de recear que a qualquer momento pudessem vir a se
unir ao “inimigo”.
Ainda se faziam presente as lembranças da Revolução pernambucana de
1817 e da Confederação do Equador de 1824 quando novos episódios políticos
61
envolvendo conflitos armados voltaram a agitar a população da província cearense.
Desta vez estamos falando dos conflitos decorrentes do Período Regencial quando,
ainda nas primeiras décadas do século XIX, quando eclodiu a revolta da Balaiada no
Maranhão e Piauí (1838-1841). No Ceará, algumas das vilas localizadas junto à
fronteira com a província do Piauí foram afetadas diretamente por tropas rebeldes que,
cometiam principalmente furtos de gênero alimentício e de animais. Em
correspondência enviada ao Ministérios da Justiça, o então presidente da província
do Ceará, Francisco de Souza Martins, em anos de 1840 descrevia ações de rebeldes
na vila de Viçosa:
Comuniquei o rezultado do ataque das freixeiras que ocorreo huma parte dos rebeldes daly fugidos se evadirão pelas matas que são muito espessas no município de villa viçosa, e no dia 1° do corrente assaltarão inexperadamente a povoação de S. Pedro do mesmo município e assassinarão seis ou sete pessôas que apanharão desapercebidas roubarão as cazas e queimaram muitas.11
A narrativa apresentada pelo chefe do executivo provincial descreveu uma
ação repleta de violência, que além dos roubos envolveu também assassinatos e
atentados contra as propriedades dos moradores da povoação de São Pedro da vila
de Viçosa. Com o propósito de conter outras possíveis ações semelhantes, as
autoridades provinciais acharam acertado o armamento da população civil, visando
que a própria população combatesse os rebeldes durante os períodos de
instabilidades. O temor às revoltas cresceu com a chegada das notícias dos
acontecimentos da revolução de São Domingos (1791-1801), conhecida como
Revolução do Haiti, onde os escravos levantaram força e colocaram fim à escravidão.
Os acontecimentos do Haiti atiçaram o medo a classe senhorial durante todo o tempo
que existiu escravidão no Brasil. Manoel Ximenes de Aragão, professor e comerciante
que escreveu em suas memórias aquilo que viu no sertão cearense da primeira
metade do século XIX, não deixou de observar esse temor sobre os “acontecimentos
desastrosos da Ilha de S. Domingos” ao tratar dos tempos logo após a extinção da
Confederação do Equador:
11 Dando algumas informações á cerca dos rebeldes das freixeiras. IN: BR.APEC.GP.CO.EX.ENC. 32-B, 1835-
1843. Ofício do presidente da província do Ceará, Francisco de Souza Martins, ao ministro da justiça, Francisco
de Assis Ramiro Coelho, n° 18, 20 de junho de 1840, fl. 95 à 99.
62
Já quase extintos os barulhos se achavam da parte dos patriotas e da do governo contra estes, quando menos se esperava, a população, lembrada dos acontecimentos desastrosos da Ilha de S. Domingos, cujos fatos eles não ignoravam e nem deixavam de falar deles, tratou de se juntar em grandes grupos e evadir todas as povoações e vilas em várias partes da província, principalmente no Cariri, na Serra do Pereiro, em Quixeramobim e na Serra Grande com o desígnio de matar a patriotas. (ARAGÃO, 1913, p. 62).
O haitianismo também serviu de motivação para que as autoridades
aumentassem a vigilância contra uma insurgência plebeia, principalmente sobre a
população de cativos, numa época em que instituições de efetivo controle sobre o
território sertanejo ainda eram incipientes. A precariedade do controle sobre as
revoltas estava relacionada à própria estrutura das forças armadas no Brasil, que
dependia do armamento da população civil para auxiliar as tropas regulares de
soldados, para promover a vigilância sobre as conspirações e os levantes. Sem poder
impor uma regular disciplina sobre as tropas, principalmente os regimentos da Guarda
Nacional, muitos soldados desertavam e alinhavam-se nas frentes rebeldes. Em
momentos mais acirrados, os governantes viam-se obrigados a armar grande parte
da população que, não estando totalmente convencida de colaborar com o Império,
podia representar um perigo ainda maior para a ordem. Sobre isso, fica evidente na
correspondência emitida ao Ministério da Justiça, no ano de 1841, pelo então
presidente da província do Ceará, Jozé Joaquim Coelho, ao comunicar a ordem que
havia dado para o recolhimento daquele armamento que seu antecessor havia
distribuído à população com o intuito de defender a província de alguns rebeldes:
Quando tiveram logar os deploráveis acontecimentos em S. Bernardo e Sobral, o meo antecessor julgou acertado armar grande porção da população de armamento ou mesmo todo o que aqui existia para o inteiro da província. Conta-me que foi elle destribuido com pouca descripção. Depois que se restabelleceol-o a tranquillidade publica não tratou elle de fazel-o o recolhimento a capital e suposto esse que grande parte do armamento tivesse sido remetido a titulo de armar a Guarda Nacional, com tudo mandei-o recolher agora mesmo por que nenhum serviço pode ser prestado pela quela
Guarda sem estar armada.12
Ao passo que o armamento da população civil passou a representar sérios
problemas quanto impossibilidade do controle sob os indivíduos dispersos pelos
sertões da província, a ordem de recolhimento foi prontamente emitida. A essa altura,
12 Aviso sobre a ordem que foi dada para recolher o armamento, IN: BR.APEC.GP.CO.EX.ENC. 32-B, 1835-
1843. Ofício do presidente da província do Ceará, Jozé Joaquim Coelho, ao ministro da justiça, Paulino Jozé Soares
de Souza, n° 48, 13 de setembro de 1841, fl. 124.
63
o então presidente do Ceará, Joze Joaquim Coelho, alertava a respeito do perigo que
a ação de armar a população podia representar para à segurança pública da província.
Ao passo que attento o estado ainda pouco lesongeiro D’esta província não acho conveniente que as armas da nação estejão depositadas nas mãos de indivíduos ignorantes e desmoralizados que podem voltal-as conta as
autoridades ao menor aceno dos anarquistas.13
Juntamente com a ordem de recolhimento do armamento, o presidente
Joze Joaquim Coelho alertava que as armas da nação poderiam se voltar contra as
próprias autoridades que haviam realizado a distribuição das mesmas, alertando para
as possíveis ações da população da província de ir contra ao poder imperial. O
armamento da população civil em momentos de crises, a fuga ao recrutamento, a falta
de controle sobre bando de homens armados pelos sertões a formação de grupos
mercenários, e a formação de vários grupos de bandidos, e de assassinos de alugueis
se espalhavam por todo o território da província. Aproveitando-se dos momentos
conturbados para administração provincial, inúmeros grupos desses homens
armados, eram classificados pelos governantes como “gentes da pior espécie”,
“massa de bandidos”, “gente ignorante”. Grupos que carregavam alcunhas como
Mourões, Malambas, Tetéus, Bentevis, Mata Velhos, Faz Fome, Zolhões,
Folgazões14. Classificados pelo presidente Martiniano D’Alencar como afamados
assassinos que por suas façanhas haviam adquirido “uma celebridade e appellidos
consetaneos as suas crueldades”15.
As décadas de 1830 à 1855 foram marcadas pela presença desses grupos
de homens, que armados, praticavam todo tipo de atos por todas as vilas das província
do Ceará, fazendo vítimas e fama por onde passavam. A instalação da justiça
demorou para ter uma ação dura contra aqueles que algumas vezes eram
considerados como feras pelos administradores da justiça. Sendo que ainda era
recente a formação da Guarda Nacional na província e a chefatura de polícia teve sua
criação só a partir da década de quarenta do século XIX. O que demorou para ter sua
efetivação em todo território cearense, que era repleto de grupos de bandidos que em
13Idem, Ibidem. 14 Relatorio com que o excellentissimo prezidente da provincia do Ceará abrio a terceira sessão ordinaria da
Assemblea Legislativa da mesma provincia no dia 1.o de agosto de 1837. Ceará, Typ. Patriotica, 1837, p. 2. 15 Idem, Ibidem.
64
alguns dos casos recebiam a conivência de autoridades, e alguns casos que eram
envolvidos em dinâmicas político-partidárias.
Como pode ser visto até o presente momento do texto, as tentativas de
instalação do Estado imperial na província do Ceará demarcaram um intenso período
de lutas violentas. De um lado, inúmeros grupos de indivíduos armados (muitas das
vezes com as próprias armas que eram distribuídas pelas autoridades para que
fizessem o combate aos rebeldes) viviam soltos pelos sertões, praticando todo tipo de
atentado por onde andavam, sempre armados de granadeiras, clavinotes, bacamartes
e a inseparável faca, instrumento que não tinha um uso especifico, mas servia de
ferramenta de trabalho para os inúmeros afazeres dos sertanejos (mas também
exercia uma função como instrumento de ataque ou defesa no momento de um
conflito).
Nos sertões, as disputas de famílias, os conflitos políticos, o banditismo e
as desavenças cotidianas faziam parte de um universo criminal corriqueiro. O
cotidiano da província cearense era marcado por conflitos que deixavam vítimas e
produziam o status do criminoso, do assassino. Senhores proprietários de terras e de
posses, políticos e membros do estado imperial, sertanejos pobres, libertos e
escravos, personagens variados do mesmo universo social da província do Ceará. A
influência de proprietários locais e o controle sobre séquitos de homens armados
reforçava o controle sobre vilas mais afastadas da capital da província. Matava-se
por tudo, por dinheiro, por política, por ofensa moral ou por vingança, também
matavam por “amor” ou em defesa da honra, enfim, a lista era imensa.
O perfil dos crimes, não era tão diferente de outras províncias da mesma
época em que o assassinato e o roubo de gado eram delitos simbolicamente
expressivos da sociedade, e que para defender ou conquistar propriedades, tentavam
contra a vida do outro. Nesta mesma sociedade, os pobres, livres ou escravos,
formavam as classes perigosas por excelência. Em seu discurso para Assembleia
Provincial no ano de 1837, o presidente da província do Ceará José Martiniano de
Alencar proferiu as seguintes considerações:
Estes assassinatos são pela mor parte o effeito repentino de rixas e brigas entre pessoas da ultima classe da sociedade e não o resultado d’esses assaltos sanguinolentos dados por diversos indivíduos prepotentes que acompanhados de grandes séquitos d’homens armados corrião d’huma
65
extremidade da província à outra levando o terror e a consternação por toda
a parte e pondo em sustos e riscos a todos os cidadão16.
Os discursos dos representantes provinciais desqualificavam boa parte da
população da província do Ceará, discursos que também repercutiam sobre a
província que, passava a ser vista como território violento, e a população pobre era
sempre vista como classe perigosa e propensa a cometer todos os tipos de crimes;
ou, se não os cometessem, poderiam ser capazes de acoitar aqueles que os haviam
cometido. O estereótipo presente nos discursos era reforçado por levantamentos
estatísticos que serviam como quadros sobre os quais seus discursos eram
construídos. O combate aos séquitos de criminosos armados acabou sendo a saída
encontrada pelas autoridades provinciais para mudar o quadro da criminalidade na
província.
Nos sertões da província, as tentativas de perseguições contra os
criminosos muitas vezes eram fadadas ao fracasso. Por vezes, a inferioridade de
homens da justiça em relação aos bandos criminosos era a principal circunstância.
Por outras vezes, o pouco conhecimento desses mesmos homens sobre os territórios
e matas nas quais os criminosos possuíam superioridade técnica possibilitava rotas
de fuga, embrenhando-se pelas matas espessas para despistar seus captores.
As estatísticas policiais lhes atribuíam as prisões por desordem, que
frequentemente estava associada a embriaguez. A faca, instrumento de trabalhos
diversos, estava sempre presente e era carregada na cintura, que imediatamente
poderia ser acionada e utilizada para produzir uma vítima e um criminoso. Além da
faca, as armas de fogo também estavam presentes no cotidiano e eram ferramentas
utilizadas em vinganças por sujeitos que não fugiam de uma disputa em nome da
honra.
Outro tanto porem não posso diser-vos da segurança individual maiormente no nosso sertão aonde o bacamarte é o desforço geralmente adoptado para a reparação de supostos gravames mais filhos de nenhuma ilustração e
moralidade dos habitantes do que de motivos reas.17
Fugir de uma peleja era desonroso para o homem do sertão que sempre
esteve atrelada a figura simbólica do “cabra macho”. Em algumas das vezes, essas
16 Relatorio com que o excellentissimo prezidente da provincia do Ceará abrio a terceira sessão ordinaria da
Assemblea Legislativa da mesma provincia no dia 1°. de agosto de 1837. Ceará, Typ. Patriotica, 1837, p. 2.
17 Idem, Ibidem.
66
pelejas só terminavam quando se produzia o assassinato, que produzia a vingança,
que produziria ainda muitos outros assassinatos, pois a vingança era cobrada com
sangue, o que algumas das vezes derramavam-se muito até se darem por satisfeitos.
Além dos crimes motivados por brigas e vinganças, outros tantos
mandavam mais nomes para as listas estatísticas das autoridades. A honra do homem
dos sertões também era ferida por suspeitas de infidelidade e as mulheres acabavam
sendo vítimas. A morte, uma vez produzida, lavava a honra e a vida das mulheres
parecia de pouco valor se fosse para reparar uma vergonha. Assim como nos crimes
por “amor”, que muitas vezes eram justificativas para atos impensados, motivados por
ciúmes ou rejeição. As tentativas de compreender as motivações para o fenômeno da
criminalidade nos sertões eram diversas. Os representantes do Império à frente da
administração provincial apontavam várias razões, como se segue adiante no discurso
de Joaquim Marcos de Almeida Rego, presidente da província no ano de 1851:
Diversas são as causas que dão lugar a essa serie de crimes atroses, mas entre ellas avulta a ociosidade e a falta de educação moral e religiosa e sobre tudo a indulgencia e a bonomia dos jurados e só pelo andar dos tempos com o progresso da civilisação da moralidade e da acção perseverante e
inexorável da justiça18.
Os discursos dos presidentes da província do Ceará acerca da
criminalidade no interior da província sempre construíam um perfil para os sujeitos dos
sertões. Quase sempre visto como um lugar distante e espaço da barbárie onde o
modelo de civilização portuguesa ainda não havia chegado. Era, portanto, o espaço
do incivilizado, onde as resoluções dos conflitos eram na maioria das vezes
solucionados de maneira violenta e as soluções para tal era a “educação moral e
religiosa”19. Os sertões visto a partir dos olhares da administração provincial era o
local propenso a ações de natureza hostil. Até aqui, já conseguimos ter uma ideia dos
discursos construídos pelas autoridades provinciais desde a década de 1830,
chegando até a década de 1850. Vai se construindo uma visão estereotipada de um
homem do sertão propenso a cometer todo tipo de violência, motivado algumas vezes
pela prática do consumo do álcool e o portar de armas. Cabia como instrumento de
combate ao crime a educação moral e religiosa, alicerces da civilização. A elite
18 Relatorio com que o excellentissimo prezidente da provincia do Ceará, Joaquim Marcos de Almeida Rego,
abrio a terceira sessão ordinaria da Assemblea Legislativa da mesma provincia no dia 7 de julho de 1851. Ceará,
Typ. Patriotica, 1851, p. 4. 19 Idem, Ibidem.
67
imperial empreendia sua leitura em relação a questão criminal a partir do nível moral
e religioso da população, defendendo sempre o ensino da moral e da religião como
princípios das nações civilizadas.
Enquanto aos crimes, já temos certa ideia do perfil e das ocorrências mais
cometidas na província cearense. O próprio presidente Joaquim Marcos de Almeida
Rego opinou: “Os crimes de homicídio avultavam mais do que todos os outros e que
reunidos às tentativas de homicídio e ferimentos formam mais do que dous terços da
totalidade deles”20. Os crimes contra a vida faziam parte de uma cruel estatística dos
relatórios províncias, responsáveis por produzir a imagem dos sertões como local
onde a vida era banalizada.
No ano de 1854, o presidente da província do Ceará, Pires da Motta, se
mostrava bastante seguro em seu discurso à Assembleia. Lembrava que a província
estava sendo alvo de comentários e notícias que a incluíam num cenário marcado por
homicídios e violências. O presidente admitiu que a má fama da província tinha certa
razão de ser: “não se passa mês em que não venha pungir o coração o conhecimento
de alguma morte violenta, às vezes acompanhada de circunstâncias atrozes e que só
a ferocidade de bárbaros se poderia recear”.
O relatório do ano de 1855, ainda sob a presidência de Pires da Motta,
arrolava dados que demostravam a ação do poder diante dos homicídios. Buscou ali
se compor estatísticas em que os delitos no Ceará apareciam em redução. Sobre os
registros criminais da província do Ceará, o capítulo Cárceres, Cadeias e o
nascimento da prisão no Ceará, de autoria de José Ernesto Pimentel Filho, Silvana
Fernandes Mariz e Francisco Linhares Fonteles Neto, que compõe o volume 2 da
coleção História das prisões no Brasil, levanta algumas observações diante das
estatísticas criminais apresentadas anualmente pelos chefes do Executivo provincial.
Os registros de crimes apresentados anualmente pelos presidentes de província e chefes de polícia do Ceará não fornecem ao pesquisador nenhuma segurança quanto à correção dos dados criminais, posto que estavam sujeitos a um poder público muito instável. Esta instabilidade sentia-se logo no fato de se ter, quase a cada ano, um nome diferente à frente do Executivo provincial. A maioria dos mapas das pequenas cidades não eram enviada com assiduidade e os registros feitos na Secretária de Polícia eram irregulares e precários. (PIMENTEL FILHO; MARIZ; FONTELES NETO, 2017, p. 157).
20 Idem, Ibidem.
68
Além dos problemas com relação ao combate à criminalidade, a burocracia
da administração da justiça também carecia de dados que pudessem não só
quantificar os tipos de crimes mais recorrentes, mas identificar aspectos referentes
aos criminosos. “Destes crimes” diz o livro de Registro dos Relatórios da Secretária
de Polícia do Ceará ao Ministério da Justiça, “os mais frequentes, são os de homicídio,
o de ferimentos, o de uso de armas defesas e fuga de presos”.21 De fato, os crimes
mais registrados pelo poder imperial eram os ferimentos e as agressões físicas, os
homicídios e tentativas de homicídio, além dos furtos e roubos, as calúnias e injurias,
o uso de armas, os estupros, os dados, as fugas e tiradas de presos, entre outros.
Afim de organizar um levantamento dos tipos de delitos cometidos na
província do Ceará, recorremos a outras tipologias de fontes. Além dos livros
referentes às correspondências dos presidentes da província e dos registros da
Secretária de Polícia da província, os processos criminais representaram uma fonte
riquíssima em dados a respeito de vítimas e réus, informações referentes as disputas
presentes no cotidiano imperial. O acesso a essa tipologia documental foi possível a
partir das pesquisas realizadas no Arquivo Público do Estado do Ceará - APEC. A
partir dos dados levantados, organizamos um gráfico com o percentual dos casos
encontrados e os separamos por tipo de crime cometido. Dessa organização resultou
o gráfico seguinte:
Gráfico 1 - Mapa dos Crimes na provícia do Ceará (1830-1855).
Fonte: Arquivo Público do Estado do Ceará- APEC.
21 SECRETARIA DE POLÍCIA DA PROVÍNCIA DO CEARÁ. Registros dos relatórios da Secretária de Policia
do Ceará ao Ministério da Justiça. 01/01/1855, fl. 5. Apud in: História das prisões no Brasil, Ernesto, pág 159.
46 31 29 28 18 17 16 15 15 1 1 2 2 2
223
0
50
100
150
200
250
1
Homicídios tentativas de homicídio Ferimentos
Roubo Injúrias Ameaças
Danos Furtos Ofensas
Reduzir a escravidão Tirada de presos Resistência
Rapto Estupro Total
69
Os números presentes no gráfico acima foram coletados a partir de uma
metodologia de pesquisa que contou com a elaboração de um recorte temporal da
pesquisa entre 1830 e 1855, período que segue a criação do Código Criminal em
1830. O ano de 1855 é a data da última execução capital na província cearense, sendo
de tal modo um recorte temporal que buscou dar conta de todas as execuções capitais
de escravos, desde a vigência do aparato jurídico imperial até o último registro de
punição capital. Certos do período temporal que pretendíamos analisar, passamos a
procurar processos criminais que estivessem enquadrados dentro do recorte temporal
previamente estabelecido.
Durante a procura por processos criminais, encontramos um corpus
documental de sete comarcas da província. Da comarca de Baturité, tivemos acesso
aos processos dos municípios de Imperatriz e do município de Baturité. Da comarca
do Icó, encontramos processos do município de Icó, São Matheus e Lavras da
Mangabeira. Da comarca de Sobral encontramos processos dos municípios de Granja
e Viçosa. Outros processo que encontramos são dos municípios de Solonópole e
Tauá.
A partir do levantamento das comarcas e municípios, passamos a analisar
os processos, qualificamos enquanto tipos de crimes, autores e réus e condenação
ou absolvido. Os tipos de crimes classificados e quantificados foi elaborado a partir da
minuciosa investigação dos processos criminais. Dentre os tipos de crimes mais
recorrentes, os homicídios e as tentativas de homicídios foram os mais praticados,
logo seguidos pelos ferimentos. Esses três tipos de delitos identificados representam
um cotidiano marcado pela recorrência de crimes contra a vida. Juntos, os três tipos
de crimes chegam a 107 processos dos 223 encontrados, sendo um número bastante
expressivo dentro da totalidade dos processos. Os crimes de roubo (assim
enquadrando roubo de gado e cavalos, assim como roubos de outras posses) também
era bem comum durante a primeira metade do século XIX. Outros tipos de crimes
encontrados foram: injúrias, ameaças, danos, furtos, ofensas, “reduzir a escravidão
pessoa livre”, “tirada de presos”, resistência, rapto e estupro. Alguns em menor
número do que outros, mas todos, no seu conjunto, importantes indicadores dos tipos
de ações criminais que eram praticadas na sociedade cearense do século XIX.
70
3.3 A CRIMINALIDADE ESCRAVA
A escravidão típica da grande propriedade rural coexistiu no Brasil do
século XIX com o cativeiro praticado em regiões onde predominavam os senhores de
pequenas posses. Viver entre poucos escravos, contudo, não era sinônimo de um
cotidiano suavizado. Infere-se que ocorria nessas regiões um cativeiro peculiar, o
qual, embora fosse fundamentalmente marcado pelo tipo de relação direta
estabelecida entre os senhores e seus cativos, cedia espaço ao contato recorrente
dos escravos com a população livre em geral.
Caracterizada como uma região onde a utilização de mão de obra cativa
apresentou proporções diminutas em virtude do tipo de economia nela predominante
no decorrer da maior parte do século XIX. A partir da constatação de que a
concentração de escravos na província cearense foi pouco expressiva se comparada
com outras regiões do Império onde o predomínio do sistema de plantation, no Ceará,
a população cativa encontrava-se distribuída entre proprietários de pequenos grupos
de escravos, localizados em áreas onde a produção destinava-se predominantemente
à subsistência e ao abastecimento interno.
De acordo com o historiador Eurípedes Antônio Funes (2007), ao nos
colocarmos diante de temas referentes à escravidão no Ceará, nos deparamos com a
ideia postulada de uma escravidão branda no Ceará por conta do número diminuto de
escravos na província. Se em relação a população cativa o número de negros era um
pequeno percentual em relação a livres, no caso da população negra e parda que não
era cativa temos um percentual que chegou a ultrapassar a população branca. De
acordo com Eurípedes Funes:
No início do século XIX, a presença de afro-brasileiros já era significativa por estas terras cearenses, onde negros e pardos libertos somavam 60,7% de uma população total de 77.375 habitantes. Neste universo, a população negra e parda cativa, somava 12.254, ou seja, 15,8% da população. (FUNES, 2007, p. 104).
À medida que a ocupação do Ceará foi-se efetivando por meio pecuária,
consolidou-se um espaço de trabalho que atraiu um contingente de homens livres que,
vindo de outras províncias, em sua maioria eram pobres, negros e pardos que na
condição de vaqueiros, trabalhavam por meio do sistema de quarta, efetivando-se
assim uma outra modalidade de trabalho na qual a presença de trabalhadores livres
71
era fortemente empregada. Diferentemente de outras províncias do que hoje é
considerado o Nordeste açucareiro, a ocupação das terras cearenses se deu de forma
mais lenta. Os caminhos abertos pelo gado possibilitaram uma dinâmica social
diferenciada das sociedades de engenho. Todavia, a introdução de mão de obra
escrava tornou-se de forma mais acentuada a partir da introdução das lavouras
algodoeiras.
Em lugar de confirmar ou desmentir a hipótese de que nessas
circunstâncias o cativeiro fosse mais tênue em relação a outras áreas onde
predominavam diferentes padrões demográficos de escravos, tenciona-se analisar
aqui possibilidades, matizes e complexidades do processo histórico local, pois se
infere que tanto a violência explícita quanto práticas de sobrevivência dos cativos
compunham um intricado jogo de relações no cotidiano de senhores e seus escravos.
Entretanto, sobre os índices de crimes praticados pela população livre, em
primeiro lugar é preciso lembrar que a expansão da criminalidade da população livre
encontra sua explicação no crescimento demográfico. Decerto, o aumento
populacional vertiginoso não se verificou entre a camada escrava. A partir dos dados
apresentados por Eurípedes Funes no capítulo Negros do Ceará:
Apesar das dificuldades decorrentes das omissões e lacunas nas estatísticas levantadas, foi possível perceber que a população escrava, no Ceará, apenas em 1819, segundo dados apresentados por Artur Ramos, chegou a 28% da população, não superando em outros momentos a casa dos 20%, decaindo já a partir da década de 1840, chegando em 1872 a 4,4%, mantendo esse nível até 1883/1884, quando ocorre a libertação dos cativos. (FUNES, 2007, p. 108).
Cabe lembrar aqui a queda no número de escravos por conta do tráfico
interprovincial de escravos que, após o fim do comércio internacional, intensificou o
envio de cativos das províncias do Norte do país para o abastecimento da cresce
demanda de mão de obra nas províncias do Sul do país. Diante da constatação do
pequeno número populacional da camada escrava no Ceará, a hipótese da existência
de uma ampliação efetiva dos crimes de escravos neste período baseia-se na
consideração dos homicídios contra senhores e feitores, à medida que estes foram
percebidos tanto pelos senhores quanto pelo aparelho judiciário, como crimes limites,
uma vez que atentavam diretamente contra os princípios da sociedade escravista.
Conscientes da fragilidade dos mecanismos de dominação paternalista de que
dispunham, os senhores, desde sempre temeram os ataques de seus cativos.
72
Após realizar algumas breves considerações acerca do cotidiano da
escravidão na província do Ceará, passo a analisar alguns dos casos de crimes de
morte ocorridos na província cearense durante a primeira metade do século XIX. São
casos em que se pode visualizar a trama da criminalidade na província cearense, da
qual já ouvimos falar muito por parte das autoridades provinciais e ministeriais, mas
que agora é chegado o momento de deter nossa análise dos casos de uma maneira
mais densa de cada situação.
Tivemos acesso a um conjunto de processos que nos permite adentrar e
analisar de forma mais densa um cotidiano marcado por diversas estratégias de
sobrevivência ou, como nos ensinou Michel de Certeau (1998), o cotidiano como o
conjunto de operações singulares que, às vezes, dizem mais de uma sociedade e de
um indivíduo do que a sua própria identidade. São casos em que podemos observar
as estratégias de sobrevivência e resistência empregadas por diversos sujeitos e
indicam que as tensões e contradições presentes no cotidiano encontravam seu
desaguadouro nos crimes de morte.
A escravidão produziu representações ideológicas do trabalho ambíguas e,
muitas vezes, conflitantes. Por uma parte, degradou o trabalho manual à medida que
este passou a ser visto como coisa própria de escravos. “Trabalhar feito um escravo”
é uma expressão reveladora de uma percepção do trabalho como uma atividade
própria da sua condição de cativo. Contrapondo-se a figura do senhor, do rico
proprietário que não sabia o peso das ferramentas do trabalho. Assim, segundo certo
ponto de vista aos escravos caberia dispender todo o esforço para a produção,
enquanto aos senhores caberia o ócio. Essa realidade, em vários casos, foi o gatilho
para diversas ações violentas de cativos contra seus senhores. Essa realidade, sem
dúvida, era percebida pelo escravo, à medida que colocava padrões determinantes
entre o bom escravo e o rebelde.
Essa percepção foi o estopim para o escravo André se voltar violentamente
contra seu senhor José Maria Firmino durante os trabalhos na fazenda de propriedade
do seu senhor, na vila de Itapagé no ano de 1860. Durante os serviços na plantação,
André havia recebido várias reclamações por parte do senhor que se queixava da
demora na limpeza de uma área que seria utilizada para o plantio. Durantes dias
seguidos de reclamações e ameaças de castigos físicos, enquanto o escravo estava
limpando uma área para o cultivo, ouviu seu senhor reclamar mais uma vez da demora
e tornar a repetir as ameaças de açoites. Enfurecido, o escravo André armou-se com
73
a enxada com a qual realizava o serviço e desferiu vários golpes contra seu senhor
que veio a óbito de imediato.
O escravo, colocado sob o jugo da disciplina e da produtividade,
compreendia que preencher as expectativas do senhor podia significar um dispêndio
de energia física incompatível com suas forças. Assim, entre as expectativas
senhoriais do rendimento econômico do escravo e as possibilidades materiais e
emocionais desses em cumpri-las, criou-se uma margem, mais ou menos incerta, de
tensões e negociações. Circunstâncias parecidas também foram motivos para a
explosão de fúria do escravo Antônio do Icó no ano de 1862. Antônio trabalhava nos
vários serviços da propriedade do seu senhor. Certo dia, enquanto o escravo Antônio
cortava lenha para levar para vender na cidade, José Maria, o proprietário do escravo,
reclamou da demora nas tarefas e acusou o escravo de fazer corpo mole durante o
serviço, ameaçando-o de punir com uma surra se não fosse logo levar os cortes de
lenha para vender na cidade. Indignado com o que acabara de escutar, Antônio tomou
o machado em suas mãos e desferiu um golpe com tanta força que o seu senhor não
teve tempo nem de pedir socorro, vindo a óbito logo em seguida.
Escravos e senhores viram-se compelidos a mover-se nessa zona
perigosa, onde cada um dos lados viam-se na tarefa de desenvolver estratégias que
lhes permitissem experimentar os limites um do outro. No interior dessas relações
sociais de trabalho profundamente tensas é que se insere a problemática da disciplina
e de uma economia particular do castigo.
Na análise dos casos envolvendo relações de trabalho e disciplina,
homicídios contra senhores, e também contra feitores, eram fruto de tensões
derivadas da disciplina do trabalho versus resistência escrava. Os ataques contra a
autoridade senhorial, espelhada na figura tanto do próprio senhor quando de seus
prepostos, feitores e capatazes. Nesta tendência, os ataques violentos contra aqueles
que representavam o mando senhorial foram frequentes. Sobre essa categoria de
crime, um caso que é bastante representativo das tensões envolvendo escravos e
feitores foi o crime cometido pelo escravo Francisco no ano de 1870 na vila de
Solonópole.
O escravo Francisco trabalhava na roça juntamente com outros escravos
da propriedade sob administração do feitor Manoel Felizardo, a quem todos atribuíam
uma imagem de homem autoritário e violento. Certo dia, Francisco regressava
juntamente com outros escravos de mais um dia de trabalho, quando no caminho
74
foram abordados pelo feitor que ordenou que voltassem imediatamente para o
trabalho. Percebendo que escravos não queriam atender a ordem dada, o feitor
Manoel Felizardo começou a castigar um escravo menor com muita violência. Já
indignado com a situação, o escravo Francisco de posse de uma faca que trazia junto
a cintura, e pulou sobre o feitor deferindo-lhe diversas facadas das quais resultou-lhe
na morte imediata.
A mesma percepção de um feitor injusto aparece nas palavras do escravo
Luiz de Baturité no ano de 1872. Ao ser inquirido sobre os motivos de ter assassinado
o feitor, João Marcellino, Luiz respondeu que ao reclamar da quantidade de comida
que recebia e a falta de uma camisa para vestir, o feitor respondeu que por conta da
reclamação não ia receber nenhuma comida e nem uma peça de roupa até aprender
a parar de reclamar. Luiz contou que, enfurecido, pegou uma mão de pilão, bateu com
a mesma até o feitor cair no chão e perceber que já não estava mais vivo.
Revelando-se como a figura catalisadora das tensões provenientes da
disciplina do trabalho, pressionado fortemente pelo senhor para fazer frente à
resistência do escravo, o feitor transformava-se em alvo privilegiado de ataques.
Nesse sentido, a representação do feitor prepotente e exagerado na aplicação dos
castigos tinham consequências nas revoltas violentas por parte dos cativos.
Os testemunhos dos escravos que ficaram gravados nos autos criminais
reproduzem o completo quadro das percepções escravas, remetendo-se aos pontos
nodais do sistema escravista, remarcado que o estopim dos homicídios foram as
tentativas de acelerar o ritmo do trabalho. As tensões subjacentes ao aumento da
produção e o aumento das ameaças de castigos físicos ao descumprimento da
produção exigida. A escravaria percebia a sobrecarga do ritmo de trabalho, sendo
esses os argumentos apresentados pelos escravos como os motivos dos crimes,
apresentando seus desagrados a um cativeiro muito rigoroso. O eclodir da violência
escrava contra seus senhores e feitores imbricou-se na problemática do trabalho e
nas relações sociais a ele subjacentes.
Os homicídios nos quais apareceram como vítimas homens livres formam
outro conjunto de casos dos quais tivemos conhecimento. Os conflitos envolvendo
escravos e homens livres pobres, sugerem a existência de relações sociais intensas
entre essas camadas. Este foi o caso do homicídio perpetrado em Icó pelo escravo
Bernardo no ano de 1873. Durante um momento de festividades, o escravo Bernardo
que estava na companhia do homem livre de nome Joaquim dos Santos, acabou se
75
desentendendo com o companheiro. Ambos travaram uma luta corporal na qual o
escravo Bernardo, de posse de uma faca, acabou atingindo Joaquim dos Santos que,
por decorrência dos ferimentos, adquiriu uma infecção que lhe custou a vida. Ao tentar
se defender das acusações, Bernardo alegou que ambos haviam bebido acima da
conta e o desentendimento havia tido início quando Joaquim dos Santos negou-se a
pagar a parte que cabia a ele na bebedeira.
A embriaguez parece ter sido o motivo apontado pelo escravo Manoel
durante uma briga com um homem livre de nome Vicente Ferreira em Tauá no ano de
1858. O cativo contou a justiça que já possuía desentendimentos com a vítima há
algum tempo, chegando até mesmo a ser agredido em uma ocasião na qual fora
acusado por Vicente Ferreira de ter furtado em uma plantação de sua propriedade. O
escravo Manoel contou que, durante a bebedeira, avistou de longe Vicente Ferreira
em um jogo de baralho e, tomado pelo desejo de vingança, voltou até a propriedade
do seu senhor e armou-se com um bacamarte com o qual cometera o homicídio contra
Vicente Ferreira.
Pelo visto, parece que as ações violentas envolvendo cativos também
produziu vítimas entre a camada que não estava ligada as relações de mando, como
foram os casos citados anteriormente. Tais conflitos, produzidos durante relações
sociais cotidianas, apresenta um cotidiano no qual sujeitos escravizados teciam
relações fora das propriedades senhoriais, ficando evidente nesses casos, que os
escravos estavam em circulação em vários espaços sociais.
As relações entre escravos e livres também produziu vítimas do lado da
camada cativa da sociedade. Seja enquanto réus, ou na condição de vítimas, o
contato entre livres e escravos se mostrou violento em algumas situações particulares.
O contato mais livre em espaços menos vigiados abriram oportunidades para o inter-
relaciomento entre as duas categorias e, o aflorar de questões conflituosas. Este foi o
caso da trama envolvendo o escravo José do qual passamos a narrar na sequência.
José era escravo de Sebastião da Costa Leitão, de idade por volta de trinta
e cinco aos quarenta anos de idade, estado civil disseram que era solteiro. José
apareceu para nós no processo criminal no qual o mesmo figura como vítima de
homicídio praticado pela pessoa do oficial de justiça Rufino de Paula Avelino. Certa
noite, por volta do mês de dezembro de 1840, na vila de Tauá, Verinha de Maria
Rufina, filha do oficial de justiça Rufino de Paula Avelino, decidiu sair em companhia
de Florinda Maria para tomar banho no rio que se localizava nas proximidades da casa
76
de Verinha. Pouco tempo depois, já voltando para casa, Verinha percebeu que sua
janela estava arrombada e convidou a colega Florinda para entrar em sua companhia
para que pudessem verificar do que se tratava. Ao adentrar sua residência, Verinha
logo percebeu que sua rede de dormir estava cortada, foi então que a mesma foi
surpreendida pelo cativo José que desferiu rapidamente contra a mesma socos e
pauladas.
Florinda, dando-se conta de tal situação decidiu então correr com destino
a casa de Rufino de Paula Avelino, pai da moça, para que o mesmo pudesse acudir a
filha que estava sendo agredida por José. No exato momento, Rufino chega e depara-
se com a filha sendo agredida e entra em seu socorro, começando de imediato uma
luta corporal com o cativo José que, armado de uma faca, tentou desferir golpes em
Rufino de Paula que, apesar de receber uma facada no braço, conseguiu tomar posse
da dita faca e a usou em seu proveito contra José, que não teve a mesma sorte de
Rufino de Paula e acabou sendo atingido fatalmente e vindo a óbito já no local da luta.
Tendo início o processo criminal contra Rufino de Paula Avelino, um
conjunto de pessoas, moradores próximos ou pessoas que haviam presenciado o fato
ocorrido, foram intimadas a prestar depoimento para investigação e apuração dos
culpados e dos motivos do fato. Uma das testemunhas do processo foi o viajante
Antônio Moreira da Silva, de vinte e dois anos de idade, que em seu depoimento
relatou os acontecimentos que disse ter presenciado:
Disse que estando no comercio la chegava José, escravo de Sebastião da Costa Leitão e convidara elle a testemunha para irem a caza de Vicencia moradora desta Villa e dahy se dirigirão a caza de Maria Rufina filha do accuzado e la chegando o assassignado abriu a janela da caza de Maria Rufina e entrando e não encontrando ninguém, cortara os punhos da rede e que queria dar uns bofetões naquela cabloca. 22
No exposto acima, percebemos alguns fatos que foram apresentados pelo
viajante Antônio Moreira que, por estar em companhia da vítima de Rufino de Paula,
e agressor de Rufina, apresentou alguns detalhes da trama, como o convite feito pela
vítima para ir na casa de uma terceira pessoa e que acabaram entrando na casa de
Rufina, e foi quando o cativo José apresentou suas verdadeiras intenções que era de
“dar alguns bofetões naquela cabloca”23. Os motivos que levaram José a realizar essa
22 Trecho do depoimento de Antônio Moreira da Silva no processo criminal de Rufino de Paula Avelino IN:
Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC. Cartórios do Interior. Tauá ações criminais, pacote 01, período de
1795-1870. 23 Idem, Ibidem.
77
empreitada não foram mencionados no processo criminal. As outras testemunhas
todas foram questionadas sobre os motivos que levaram o cativo José a tal atitude e
as testemunhas disseram não saber. Podemos depreender que o cativo podia ter
agido em retaliação a alguma desavença que poderia ter com Rufina ou até mesmo
com o pai da mesma, e que essa havia sido a forma que havia encontrado para sentir
que a vingança havia sido feita. Ou também pode ser que sejam outros fatos, já que
não ficaram claros os motivos do ato de José.
Por outro lado, a vida conjunta nas senzalas e a experiência comum na
vivencia da escravidão tenderam a forjar, entre os escravos, laços afetivos e alianças
de ajuda mútua. Embora isso, a análise dos processos criminais de homicídios entre
escravos demonstra que a violência inerente ao sistema perpassava, também, as
relações sociais que os cativos mantinham entre si, apontando a necessidade de
matizar as visões unilaterais da organização da comunidade escrava.
O casamento e a manutenção de uma precária estrutura família também
apresentava tensões e conflitos. Nesse sentido, o processo de 1854, no qual André,
escravo24 do Coronel Pedro Alves Feitoza, foi acusado de assassinar sua mulher,
Maria Joanna, também escrava do mesmo senhor, é ilustrativo dos conflitos
subjacentes a estrutura familiar escrava. Neste, o marido suspeitando de infidelidades
por parte da mulher, seguiu a mesma até um mato onde Maria Joanna cortava lenha
e surpreendeu-a agarrando por trás e deu uma punhalada no peito que lhe causou a
morte instantânea. Poucas informações foram encontradas no processos do escravo
André para que pudéssemos entender mais um pouco sobre essa trama que resultou
na morte de sua mulher, a escrava Maria Joanna.
O ciúmes parece ter sido o fato motivador do homicídio praticado por
Benedicto, o escravo de Francisco José da Costa, no ano de 1869 em Lavras da
Mangabeira. Neste, o escravo Benedicto foi acusado de assassinar sua companheira,
a preta Rita, escrava do mesmo senhor, por conta de um presente que a dita escrava
havia recebido do comerciante Joaquim de tal. Segundo Benedicto, as atitudes da
companheira haviam motivado suas desconfianças, e o presente recebido era a prova
da traição.
Os dois casos narrados acima são ilustrativos das tensões subjacentes à
estrutura familiar escrava. Segundo Eurípedes Funes (1996), a constituição da família
24 Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC. Cartórios do Interior. Tauá ações criminais, pacote 01, período
de 1795-1870.
78
foi a primeira forma encontrada pelo escravo, em seu universo social, para amenizar
as adversidades, pois, dentro do precário acordo que extraía de seus senhores, o
casar-se significava ganhar mais controle sobre o espaço de moradia. O seio da
família constituía o espaço em que a autoridade independia, em grande parte, da
presença do senhor. Os laços matrimoniais davam certo tom de “autonomia” e
“liberdade” para o escravo. Vivendo perto dos seus, daqueles de quem gostava, que
conhecia, tinha possibilidade de viver uma vida menos infeliz, pois juntos podiam
dividir a dor e a alegria, lutar pela compra de alforria, praticar seus cultos religiosos e
comungar dos mesmos costumes.
As diferentes tramas narradas aqui apresentam esse universo em que
sujeitos escravizados como no caso do escravo José, mostrou sua insatisfação que,
apesar de ter seu motivo desconhecido para nós, provocou uma reação do cativo
contra um sujeito pertencente a classe senhorial, e de tal insatisfação o mesmo reagiu
da forma que pode, travando uma combate direto do qual saiu sem vida, mas do qual
deixou registrado sua reação de descontentamento diante de uma realidade da qual
tantos outros sujeitos na condição de cativos haviam compartilhado.
O estudo da criminalidade na província do Ceará demostra que algumas
situações cotidianas eram resolvidas com soluções violentas, o embate corporal era
uma forma utilizada por sujeitos que acreditavam ter sido prejudicados de alguma
forma, seja ela uma situação concreta ou até mesmo uma ação vista como desonrosa
feita por parte de alguém. Tanto nas relações extremas de cativos contra seus
senhores ou prepostos, quanto nos conflitos estabelecidos com a população em geral,
ou conflitos entre sujeitos da parcela livre da sociedade. Nos diferentes espaços da
sociedade cearense, seja na capital ou nos sertões, livres e escravos viveram
circunstâncias diversas nas quais a luta por seus espaços e interesses algumas vezes
eram resolvidas de forma violenta, por meio da luta corporal, da emboscada, da
associação com terceiros ou outras formas diversas.
Durante esse capítulo, apresentamos de diversas formas os quadros da
violência e da criminalidade da sociedade cearense do século XIX, desde as lutas da
independência, das formações dos bandos de sujeitos armados e as classificações
das autoridades provinciais e ministeriais acerca destes sujeitos. Analisamos também
situações em que os conflitos violentos produziram vítimas e réus, e ao mesmo tempo
produziram a província enquanto espaço violento, alimentaram estatísticas que nas
mãos das autoridades do estado imperial, produziram o status do criminoso. Daremos
79
prosseguimento as nossas análises nos debruçando agora sobre os crimes de
escravos que foram levados a forca como forma de represália do estado imperial a
suas transgressões. São situações diversas, mas que nos permitirá compreender as
ações de controle social contra crimes praticados por sujeitos considerados como
classes perigosas, como em sua maioria nos casos os escravos e em alguns casos
que envolviam sujeitos livres.
3.4 OS CRIMES DOS ENFORCADOS
A história marcou a vida e as atitudes de senhores e escravos. Faces
opostas de um mesmo todo, o processo histórico os acolheu de maneiras diferentes
e implicou vivências peculiares. Respondendo à conjuntura do sistema escravista, os
escravos desenvolveram estratégias de resistências que se refaziam constantemente.
Crime ou criminalidade, categorias de análise de conteúdos diversos que não podem
ser encarados como excludentes, categorias que requerem conceituações claras e
procedimentos metodológicos específicos. Mais uma vez recorremos a Boris Fausto
para nos auxiliar na conceituação dessa problemática que nos acompanha em grande
parte da trajetória deste estudo. Criminalidade, como bem destacou Boris Faustos, se
refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento
de padrões de constatações de regularidades; crime diz respeito ao fenômeno na sua
singularidade cuja riqueza em certos casos não se encerra em si, mas abre caminho
para diversas percepções. (FAUSTOS, 1983, p. 09).
Um dos momentos privilegiados para o estudo de algumas facetas das
relações entre cativos e senhores é por meio do conflito e, para nosso estudo não
seria diferente. Os processos criminais instaurados pelas autoridades policiais e
judiciárias para a apuração de bordoadas, facadas, tiros e outros vários tipos de
agressões físicas, possibilitam a compreensão de alguns dos limites cotidianos que
separavam a escravidão e a criminalidade. Por meio da documentação produzida
pelas autoridades policiais e judiciárias, assim como os registros escritos narrando as
tramas criminais, deixados por intelectuais e cronistas do século XIX, tivemos a
possibilidade de acessar um universo permeado por vários casos envolvendo práticas
criminosas perpetradas por sujeitos escravizados, nas quais figuraram como vítimas
sujeitos pertencentes a camada senhorial e da camada pobre livre da sociedade
cearense oitocentista. Em um quadro mais recorrente, os crimes contra seus
senhores ou prepostos, foram os mais praticados pelos sujeitos escravizados.
80
A consideração dos autos criminais permite a abordagem de aspectos
sociais da vida das camadas dominadas, tais as relações de amizade, parentesco ou
vizinhança, os padrões familiares e mesmo a organização do trabalho e sobrevivência.
Com o propósito de compreender as tramas do crime e da criminalidade dita escrava
na província cearense, analisaremos a partir de agora alguns casos de crimes de
morte perpetrados por escravos que tiveram punições enquadradas no artigo 192 do
Código Criminal de 1830 e na lei de 10 de junho de 1835 que levaram os escravos a
forca.
O temor aos escravos permeou a instituição escravista e encontrou na
Justiça especial ressonância com a repressão exemplar dos crimes contra a
autoridade senhorial. Este foi o caso da já mencionada lei de 10 de junho de 1835,
sancionada com objetivo de repressão às ações violentas praticadas por escravos
contra membros da camada senhorial. A partir da utilização dessa lei, a camada
senhorial passou a ter em mãos um poderoso instrumento de defesa, utilizado
fortemente contra tensões e revoltas escravas.
Os casos de conflitos envolvendo escravos e senhores representam um
cotidiano do sistema escravista da província cearense marcado pela ausência da
mediação de feitores, representando que os senhores possuíam relação de mando
direta com seus escravos, o que fazia com que as situações de conflitos também não
fossem intermediadas por terceiros. Analisando os casos de crimes envolvendo
cativos e senhores no município de Franca, Ricardo Alexandre Ferreira (2003)
percebeu que, em se tratando dos casos dos senhores de poucos escravos, em que
a relação de mando era direta, os possíveis conflitos também o eram, o que fez com
que Ferreira defendesse que no cotidiano de senhores de poucos escravos os
conflitos pudessem acontecer com mais frequência do que em grandes propriedades
em que o proprietário dos escravos não possuíam relação de mando diretamente com
seus cativos. O crime praticado pelo escravo Sebastião (levado à forca em Sobral, em
1841) contra seu senhor pode ser analisado a partir da ótica das tensões envolvendo
senhores e escravos:
As 10 horas da noite do dia 2 de Maio de 1841, Sebastião, escravo, matou a seo senhor, o negociante Joaquim Francisco do Rego, geralmente conhecido por Doutor Rego, quando este se recolhia à sua casa. E logo após se evadio-se deixando o seo senhor morto. (NOGUEIRA, 1894. p. 81).
81
Os motivos que suscitaram o assassinato cometido por Sebastião não
ficaram explícitos mas, por si só, o crime pode ser visto como o resultado de tensões
existentes entre o escravo Sebastião e o seu senhor. Escravos e senhores viram-se
compelidos a mover-se nessa zona perigosa, sujeitos do mesmo processo mas,
experimentando lados opostos, muitas vezes em situações limites, nas quais a
violência eclodia e o homicídio figurava-se como resultado de tensões produzidas
cotidianamente. Seja pela pressão recebida para produzir mais no trabalho, seja pelos
abusos sofridos em formas de agressões físicas ou verbais, a falta de alimentação e
de condições mínimas de sobrevivência, as relações eram carregadas de tensões que
diversas vezes produziam vítimas, sejam elas da camada senhorial ou cativa.
Os ataques contra as autoridades senhoriais, apresentam-se como indício
real da existência de tensões que muitas vezes só eram percebidas nas ações limites,
mas que se faziam presentes durante toda a existência do cativeiro no Brasil. Essa
realidade, sem dúvida, pode ser percebida à medida que nos deparamos com um
conjunto de casos nos quais os senhores apareceram como vítimas de homicídios
perpetrados por seus cativos. Além do já mencionado crime praticado pelo escravo
Sebastião, outro caso envolvendo ações violentas entre senhores e cativos trata-se
do homicídio praticado pelos escravos Antonio e Luiz.
O crime de homicídio envolvendo os cativos Luiz e Antônio, da vila de
Viçosa, localizada na região norte do Ceará, é um importante exemplo da associação
de cativos em conflitos contra senhores. Luiz e Antônio eram ambos escravos de uma
família maranhense que vivia na vila de Viçosa, em 1841, na serra da Ibiapaba, ali
refugiados durante os conflitos da insurreição conhecida como Balaiada. Alguns furtos
estavam ocorrendo na vila e descobriu-se que estavam sendo praticados por um
grupo de escravos, entre os quais figurava Luiz, que foi duramente repreendido por
seu senhor, Inácio João de Magalhães. Indignado pelas ameaças recebidas, Luiz
armou o assassinato de seu senhor nas vésperas da partida da família que voltava ao
Maranhão. Luiz matou Inácio João de Magalhães com um tiro de bacamarte. Em
seguida, descobriu-se que o crime havia sido preparado em conluio com o escravo
Antônio, pertencente a D. Mariana, esposa da vítima. Ocorre que Antônio, para não
ser preso, fugiu para a vila de Granja, onde foi encontrado e capturado. Luiz também
já havia sido agarrado num sítio há poucas léguas do local do assassinato. Capturados
e processados, ambos foram condenados à pena capital pelo homicídio que, além de
82
vitimar o senhor dos escravos, a ação dos escravos foi percebida como uma ameaça
aos interesses escravistas de proprietários locais.
Encontrando ainda uma estrutura bastante similar a essa, o escravo José
foi condenado à morte pelo art. 1° da lei de 10 de junho de 1835 na capital de
Fortaleza, em 16 de novembro de 1839, por ter matado com um tiro o seu senhor, o
sobralense Luiz Ferreira Gomes. O crime perpetrado por José havia sido realizado em
conluio com Miguel Pereira dos Anjos, homem de condição livre que, por sua
participação no crime, foi condenado pelo tribunal de Fortaleza a “20 annos de galé,
pena mínima no art. 192 do Cód. Crim.” (NOGUEIRA, 1894, p. 57). José, por sua
condição de escravo, foi enquadrado na lei de 10 de junho de 1835; já Miguel Pereira
dos Anjos, porque era homem livre, foi poupado do mesmo destino do parceiro de
crime.
Na mesma linha interpretativa, o escravo Luís havia matado um homem
branco em Aracati, amante de sua senhora, com sete facadas. O crime ocorrera em
1836, porém Luís teve de aguardar a decisão da justiça preso na cadeia pública de
Fortaleza. O crime atribuído a Luís havia sido planejado em conluio com Iria Maria,
mulata de condição livre que teve como sentença “sofrer a pena de prisão perpetua
gráo medio do artigo cento e noventa e dois”. (NOGUEIRA, 1894, p. 282).
Ações como essa, não podem ser encaradas como casos isolados, apesar
de serem resultados de ações produzidas no interior das propriedades senhoriais.
Ações violentas perpetradas por cativos contra autoridades senhoriais apresentavam
uma fragilidade nas relações de mando que de maneira alguma poderiam ser
percebidas e aproveitadas pelos sujeitos cativos. O conluio entre gente de cor (um
escravo e uma mulata de condição livre) poderia ser encarado como uma atitude grave
a ponto do assassinato ter condenado a pena de morte o escravo Luís.
Muitas vezes, motivados pelas mesmas razões, os homicídios podiam
converter-se em ataques coletivos. Sofrendo todos os parceiros de cativeiro os maus
tratos por parte dos sujeitos na condição de mando, bastava que um dentre eles
tomasse a iniciativa do ataque para que os outros o seguissem. Assim, o motim da
escuna Laura 2ª, navio de cabotagem que fazia o percurso entre as províncias de
Pernambuco e Maranhão, foi cenário de um massacre quando passava pelo litoral da
província cearense no ano de 1839. O plano contou com Constantino como um dos
líderes e a ele aderiram, inicialmente, Antonio Angola, Bento Angola, Hilário e João
Mina, que logo trataram de formular um plano de ação para tomar a embarcação.
83
Estratégia formulada, só faltava o momento oportuno para a empreitada, o
grupo decidiu que o melhor momento para agirem seria durante noite, aproveitando a
oportunidade enquanto todos já estivessem reunidos para dormir. Então, por volta de
09 da noite, na altura do porto do Arapassu25, o grupo agiu. Hilário “teve ordem de ir
tomar a faca ao marinheiro Bernardo”, enquanto “Constantino e João Mina atacaram
o capitão em seu camarote. Septe facadas já lhe tinhão dado, quando elle se refugiou
no leme”; foi então que Bento Angola gritou: “venha a fisga, e o infeliz lançou-se ao
mar!”. Luiz Cabo-Verde ficou encarregado do contramestre e, com uma estaca de
madeira, o matou; também foi o responsável pela morte do prático Felippe, que foi
assassinado a cacetadas e cujo corpo, com o auxílio de Hilário, foi jogado no mar.
Antonio Angola “deu com um páo n‟um dos marujos, e o matou”, enquanto novamente
Hilário jogava um corpo no mar, agora do marujo Maia, que “Bento tinha morto dentro
de um bóte”; e por fim, Benedicto, que “foi o assassino do passageiro Feliciano. Depois
de dar-lhe com um páo, o lançou tambem ao mar”. (VIEIRA, 2009, p. 161).
De toda a cena de violência, os amotinados pouparam apenas alguns,
dentre eles: o escravo Antonio, o cozinheiro do navio, e os passageiros, Agostinho,
Damazo, Luiz Aracati, Manoel e os menores Elias e Philippe, todos cativos. O único
sobrevivente que não era escravo foi o marujo Bernardo. Após deixarem o saldo de
seis mortos e uma cena de violência banhada de sangue, os escravos Hilário,
Constantino, Bento, Luiz Cabo verde, Antônio Angola, João Mina e Benedicto, os
autores do motim, se apropriaram do que conseguiram carregar do navio e fugiram
juntamente com Luiz Aracati – a respeito de Luiz Aracati, não consta participação no
motim, o mesmo acabou implicado por ter-se tornado cúmplice na fuga. Antônio, o
cozinheiro, tampouco participou do motim. Muito pelo contrário, o mesmo ficou do lado
do capitão e acabou tomando uma facada por conta disto. Apesar de tudo, Antônio
viu-se obrigado a acompanhar os demais que acabaram tomando o rumo da estrada
real de Aracati. O motim do Laura 2ª fez parte do ciclo de revoltas escravas da década
de 1830 no Império. A capacidade de organização dos amotinados revelou o clima de
tensão proveniente das ações encabeçadas por sujeitos escravizados.
Sem dúvida, a lei de 10 de junho de 1835 (criada em resposta as agitações
provenientes de ataques de escravos contra sujeitos da camada senhorial), revelou-
se como importante anteparo senhorial para a defesa da instituição, uma vez que o
25 Atual Iguape, litoral da cidade de Aquiraz região metropolitana de Fortaleza, capital do Estado do Ceará.
84
texto da lei tinha como objetivo primordial coibir e castigar exemplarmente, através da
pena de morte, os cativos que ousassem infringir o estatuto básico da sociedade
escravista. Apesar do rigor da lei de 10 de junho de 1835 contra os crimes que
vitimassem sujeitos da camada senhorial, a ocorrência de transgressões escravas
aconteceram com certa frequência durante todo o tempo que durou escravidão no
Brasil. Evidências de atitudes insubordinadas permeiam as narrativas sobre outros
crimes praticados por escravos no Ceará.
Ademais, essa mesma linha de análise descrita pela lei, uma tendência de
transgressões escravas também se manifestaram-se contra fiscalizadores do
trabalho, o conhecido feitor. Os ataques contra os feitores muitas das vezes ações
contra situações de extrema opressão.
Em 1845, por exemplo, Estevão, enforcado na vila do Ipú, escravo do
Coronel Diogo Lopes de Araújo Salles, matou ao feitor do seu senhor, Manoel de
Carvalho Guedes Mourão, “dando-lhe com uma mão de pilão na cabeça quando a
vítima dormia e, logo de madrugada mesmo, evadiu-se do local em fuga”.
(NOGUEIRA, 1894, p. 301). O crime que Estevão havia cometido não tinha sido contra
seu senhor, mas contra um feitor da fazenda onde morava. Logo após o crime
praticado, tomou fuga mas acabou encontrado e preso, e os procedimentos para a
realização da investigação do crime tiveram início imediatamente. Ao ser interrogado
pelo juiz sobre qual o motivo de ter cometido tal crime, Estevão alegou que já não
aguentava os maus tratos que sofria do feitor da fazenda. No caso de Estevão, fica
claro que a relação na fazenda acontecia por intermédio do feitor Manoel de Carvalho,
a quem Estevão se referiu como sujeito que cometia maus tratos com os cativos. Por
administrarem o escravos e serem figuras que autoridade a mando dos senhores,
ficava a cargo do feitor a administração de castigos aos escravos, o que os colocava
em uma posição direta com os escravos que diante de maus tratos, em alguns casos
se voltavam violentamente contra a figura do feitor. As tensões envolvendo escravos
e feitores estiveram intrinsecamente relacionadas as relações escravistas, um
representando a figura de autoridade e o outro o subordinado, dois lados opostos do
mesmo sistema.
Entretanto, o escravo, colocado sob o jugo da disciplina e o império da
produtividade, cabendo ao feitor uma disciplina rígida que por vezes se exprimia na
violência constante contra os escravos, colocava-se em uma situação de risco dentro
das tensas relações escravistas. Os conflitos envolvendo senhores e escravos
85
estiveram diretamente relacionados a relação de mando de senhores e feitores. Na
condição de autoridades das relações de produção, passavam a ocupar uma posição
na linha de frente dos conflitos encabeçados por escravos. Outra forma de conflitos
envolvendo escravos são os casos registrados de homicídios praticados por escravos
contra familiares de seu proprietário, sugerindo a existência de relações sociais tensas
entre cativos e o seio familiar do qual os mesmos eram propriedade. Neste caso,
percebemos que os sujeitos escravizados faziam parte de um universo cotidiano
também da família, não sendo o espaço do trabalho o exclusivo das relações sociais
dos escravos. Sobre essa linha de raciocínio, o caso do escravo Joaquim é bastante
revelador de ações conflituosas contra membros da família da camada senhorial.
No dia 30 de Março de 1854, pelas 4 horas da tarde, na povoação de Taboleiro d’Areia, do termo da S. Bernardo, Joaquim entra de surpresa na casa da sobrinha e afilhada do seu senhor-Anna dos Passos de Jesus, que estava sosinha, fecha as portas e tenta saciar seus instintos libidinosos; e como a moça resiste heroicamente, depois de consumar o torpe delicto, mata-a enforcando-a, receioso de que, se a moça sobrevivesse, o denunciaria e ele seria castigado. (NOGUEIRA, 1894, p. 313).
Joaquim era escravo de Antônio Ferreira da Silva Nogueira, tio da vítima
do crime. Joaquim era escravo, solteiro de 24 anos, natural de São Bernardos das
Russas. Tensões também eram produzidas nas relações entre escravos e livres,
principalmente aqueles que pertenciam as famílias dos proprietários dos escravos. O
aflorar das tensões violentas e crimes contra familiares da camada senhorial
apresentou-se como produto de uma realidade que marcou o cotidiano dos senhores
de poucos escravos.
A escrava Bonifácia, tendo sido condenada por assassinar o filho de seu
senhor de quatorze anos, crime esse praticado na capital Fortaleza no ano de 1841,
demostra que mesmo com leis mais rígidas, ações de insubordinação poderiam
acontecer a qualquer momento, seja contra senhores ou seus familiares. As
testemunhas juradas no processo crime da escrava Bonifácia descreveram o
assassinato praticado pela escrava como um ato extremamente violento, as marcas
da agressão e do estrangulamento que resultou na morte do menino de quatorze anos
deixaram todos que tomaram conhecimento do caso admirados com os requintes de
crueldade produzidos pela escrava.
Ao passo em que ações violentas eram produzidas por sujeitos da camada
escravizada, percebiam-se também a fragilidade da manutenção do sistema
86
escravista, que apesar de contar com a intromissão da Justiça com seus mecanismos
de punição exemplarmente elaborados, não conseguiam conter os ânimos exaltados
da camada cativa. Quanto ao escravo Benedito, apelidado de Capitão Cebola, era já
um escravo fugido que vivia pelos mangues nos arredores de Fortaleza quando foi
capturado por ter matado uma criança que atravessava as matas do Cocó, levando
pão e carne para seu senhor. Preso e torturado, Capitão Cebola caminhou para forca
no ano de 1855 na capital Fortaleza.
O crime, sobretudo o de morte, era um ato limite antecedido por uma série
de outras manifestações cotidianas de desagrado dos cativos em sua relação com os
senhores. Cientes dessas demandas, muitos senhores realizavam concessões aos
seus escravos interpretadas por alguns pesquisadores como estratégias de
dominação fundadas em critérios paternalistas. Do seu lado, os cativos eram capazes
de compreender essas concessões como conquistas e negociar com os proprietários
entre os extremos da submissão e da rebeldia. O crime praticado por Bonifácia na
capital Fortaleza em 1841 por exemplo, foi um ato repleto de violência praticado contra
o filho do seu proprietário, resultado de uma ação provocada pelas insatisfações
cotidiana dos cativos em relação as condições de vida enquanto escrava. Voltar-se
contra membros da relação escravista de forma violenta era o ato limite para uma
série de ações cotidianas de desagrado. O caso do escravo que mata o senhor ou
seu feitor também pode ser vislumbrado de igual modo, Estevão por exemplo, alegou
os maus tratos por parte do feitor como motivo para assassina-lo. Benedicto ou, como
era mais conhecido, Capitão Cebola não voltou-se contra um membro da sociedade
escravista, pois foi acusado pelo assassinato de um escravinho mas, por aqueles
tempos já era um escravo fugido que vivia escondido pelas matas nas proximidades
de Fortaleza, revelando-se um escravo rebelde.
A escravaria percebia a situação na qual estavam inseridos como
fortemente injusta, uma vez que trazia, implicitamente, a sua submissão a um ritmo
de trabalho mais impiedoso. Dessa forma, justificando os motivos dos crimes, os
escravos implicados, entre outros argumentos, apresentaram seu desagrado com
condições de trabalho rigorosas, agressões sofridas, assim com “a comida que havia
sido negada”. Os escravos envolvidos no crime de homicídio, os cometeram em
resposta as condições pelas quais passavam.
Embora não se possa atribuir a todos os escravos a compreensão da
escravidão em sua amplitude institucional, os ataques individuais e coletivos a
87
senhores e feitores durante sessões de castigos e humilhações públicas ou
reservadas, ou, ainda, como desfechos de planos sangrentos cuidadosamente
elaborados diariamente em meio a ameaças ocorreram nas diversas regiões do
Império. Os debates promovidos nas assembleias parlamentares, os relatórios
emitidos por secretarias de governo e a imprensa articularam diferentes narrativas a
respeito de crimes e da criminalidade escrava no Brasil do Oitocentos. Por outro lado,
o eclodir da violência escrava contra seus senhores, feitores e sujeitos da camada
senhorial, imbricou-se na problemática do trabalho e nas relações a ele subjacentes.
Esses atos criminosos canalizaram as forças do grupo cativo para a contestação da
ordem senhorial. A permanência de traços comuns a estes homicídios, recobrindo
todo o período estudado, permite identificar que foram estes decorrências dos
atributos estruturais ao sistema escravista, mais especificamente as relações de
trabalho entre senhores e feitores, e as relações sociais entre prepostos que geraram
um sistema de tensões latentes.
88
4 TRIBUNAIS
Em relação ao processo, devemos observar que não há entre
nós autoridades, juízes, ou tribunais especiais, que conheçam
delitos cometidos pelos escravos. São processados,
pronunciados e julgados, conforme os delitos e lugares, como os
outros delinquentes livres ou libertos. (MALHEIRO, 1866, p. 45).
Embora ferir ou matar fossem desfecho de disputas, não colocavam fim a
um problema. Muito pelo contrário, era o início de outro. Nos tribunais as disputas se
davam por meio dos aparatos jurídicos. Livres e escravos sentaram no banco dos réus
e proferiram suas insatisfações e motivações que resultaram em desfechos
sangrentos que os colocariam de uma vez por todas em situações que só terminariam
quando da punição por meio da morte.
O presente capítulo pretende compreender um modelo de justiça fundado
nos pressupostos punitivos expressos nas antigas ordenações portuguesas, apesar
de se dar num contexto alicerçado em princípios que visavam à constituição de
códigos criminais modernos. Na segunda parte do capítulo analisaremos as
interpretações das leis durante as sessões nos tribunais da província cearense em
que escravos foram condenados à pena capital.
4.1 LEGISLAÇÃO E CONTROLE SOCIAL
A pena capital já fazia parte do universo punitivo do Brasil desde período
colonial, quando o Brasil era regido pelas Ordenações Filipinas. Com o processo de
independência e a outorga da constituição de 1824, a sua permanência no novo
código de leis do emergente Estado imperial brasileiro passou a ser discutida. A pena
de morte tornou-se um fato jurídico do novo Império com a aprovação do Código
Criminal, cuja criação estava prevista no art. 179, inciso XVIII, da Carta constitucional,
preceituando que se organizasse, o quanto antes, um código civil e criminal fundado
nas sólidas bases da justiça e equidade. Havia a necessidade de que as instituições
jurídicas fossem reformadas para, desta forma, se consolidar o novo Império. Os
debates para criação do novo código criminal do Império teve início na câmara dos
89
deputados no primeiro semestre do ano de 1826, contando assim dois anos da
promulgação da constituição do Império.
Com abertura da Câmara dos Deputados (1826), teve início a uma série de
reformas na ordenação jurídica. Buscava‐se garantir as liberdades e determinações
previstas na Constituição do Império. A urgência dos deputados em substituir as
Ordenações Filipinas pode ser percebida no discurso proferido no primeiro dia de
agosto de 1826, quando a comissão de legislação e justiça civil e criminal considerou
que
A nação brasileira, que independenciando-se da nação, a que esteve unida por mais de três séculos, e constituindo-se debaixo de uma forma de governo diferente; ainda se está regendo pelo código daquela nação compilado pela maior parte de outros de nações estranhas, e além disso por um sem número de leis extravagantes publicadas depois, que não só se tornam quase impossível o seu conhecimento, mas que não podem convir aos povos do Brasil, a cuja índole, necessidades, e localidades se não consultou; de sorte que podemos dizer que não temos código algum.26
Claro estava para os legisladores brasileiros que já não havia mais sentido
um Império recém independente continuar a ser regido pelas leis criminais da antiga
metrópole. O Brasil passava a experimentar uma condição diferente da anterior, e
como tal, precisava possuir seu próprio conjunto de leis para se impor como
independente. Nas palavras dos membros da comissão, o Brasil possuía a partir de
então um povo diferente, de índole e necessidades diferentes. Neste mesmo parecer
a comissão definiu que o Código Criminal deveria ser dividido em duas partes, uma
penal e a outra comportando o Código de Processo Criminal.
O primeiro esboço do anteprojeto para criação do Código Criminal foi
entregue por José Clemente Pereira que fez ponderações, explicitando que o mesmo
fora escrito de maneira sumária e ainda carecia das devidas reflexões. Apesar de ter
recebido o anteprojeto apresentado pelo deputado Clemente Pereira, a mesma
comissão responsável pelo escolha do projeto do Código Criminal deixou claro que a
escolha do projeto do mesmo ainda estava aberta a todos os deputados que
quisessem apresentar anteprojetos para que a comissão pudesse fazer a escolha
daquele que melhor servisse de base para as próximas discussões na câmara e no
senado.
26 Anais da Câmara dos Deputados, 01 de Agosto de 1826.
90
Cerca de um ano depois da apresentação do anteprojeto de Clemente
Pereira, foi a vez do deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos apresentar seu
anteprojeto no ano de 1827. Seu anteprojeto estava divido em três partes: a primeira
tratava dos crimes e das penas; a segunda das matérias judiciais, como os conselhos
de jurados de acusação ou sentença; e por fim, a terceira expunha a ordem do
processo. Muitos dos deputados da comissão de criação do novo Código Criminal
votaram contra o anteprojeto de Bernardo Pereira de Vasconcelos. Na verdade, o
anteprojeto de Bernardo Pereira
Dividia os delitos em Crimes Policiais (crimes contra a ordem pública no cotidiano das cidades); Crimes Particulares (crimes contra as pessoas, suas propriedades, honra e moral); Crimes Públicos (Delitos contra a ordem monárquica, bem como delitos cometidos por funcionários públicos). As penas aplicadas, e acordo com o projeto, seriam: morte, galés, prisão simples e com trabalho, banimento, desterro, infâmia (suspensão da cidadania brasileira), multa, perda dos objetos do crime, caução (fiança ou penhora dos bens), vigilância da justiça (o réu deveria habitar no lugar que lhe for designado pela justiça). [...] Além disso, no projeto de Vasconcelos já estava prevista a punição da tentativa de crime, a existência de condições agravantes e atenuantes, bem como considerava a pena como um mal necessário que visava à correção do infrator [...]. (ALBUQUERQUE NETO, 2008, apud SANTOS, 2012, p. 30).
Apesar da comissão já contar com dois anteprojetos para o Código Criminal
– o de José Clemente Pereira e o de Bernardo Pereira de Vasconcelos –, em 15 de
maio de 1827 o deputado Clemente Pereira entregou mais um anteprojeto de código
criminal à câmara dos deputados e, assim como fizera Bernardo dias antes, logo no
dia posterior tratou de apresentá-lo oralmente aos parlamentares. Meses depois, em
setembro daquele ano, a comissão de legislação justiça civil e criminal deu o veredito
final e indicou o anteprojeto de Bernardo Pereira de Vasconcelos como vencedor,
argumentando que o mesmo, por ser
Mais amplo no desenvolvimento das máximas jurídicas, razoáveis e equitativas e por mais miúdo na divisão das penas, cuja prudente variedade muito concorre para a bem regulada distribuição delas, poderá mais facilmente levar-se à possível perfeição com o menor número de retoques acrescentados àqueles que já a comissão lhe deu de acordo com seu ilustre autor. 27
Apesar da escolha do projeto do deputado Bernardo Pereira de
Vasconcelos ainda no ano de 1827, uma série de discussões ocorreram no interior da
Assembleia Legislativa até ser sancionado o Código Criminal em 1830. Entre elas
27 Anais da Câmara dos Deputados, 14 de setembro de 1827.
91
estava a manutenção ou não das penas de morte e de galés perpétuas nos crimes de
homicídio qualificado e insurreição de escravos, sendo excluídos dos crimes políticos.
Sobres os debates a respeito da manutenção da pena de morte, o deputado Antônio
Ferreira França proferiu em discurso na câmara a tentativa de excluir a pena de morte
de qualquer discussão quanto ao código criminal com o argumento de que a
constituição brasileira de 1824 já a havia abolido:
Eu peço licença para dizer que havendo dito na proposta que está abolida pela constituição, ela merece ter o primeiro lugar, pois sendo causa deste gênero deve ter a preferência, porque a proposta é constitucional; perdoe V. Ex., mas julgo não pode haver demora, assim está determinado pela constituição. 28
O deputado referia-se ao inciso 19 do artigo 179 da Constituição que abolia
os açoites, a tortura, as marcas de ferro e as penas cruéis, mesmo que o artigo 27 da
mesma carta abrisse um precedente para a pena de morte. Com efeito, a
argumentação do deputado foi interessante, mas execuções de pena de morte
coexistiram durante esses seis anos de constituição sem que houvesse nenhuma
interferência jurídica por parte do legislativo. O presidente da câmara, deputado Costa
Carvalho, replicou Ferreira França, informando que não era o momento de se discutir
a pena de morte e sim o parecer da comissão de legislação e justiça criminal e civil;
era o momento de se entrar em questão o código penal e não apenas uma de suas
penas.
Como vimos, os debates na câmara em torno do tema se alongaram desde
1826 e se enveredaram pelo ano de 1830 quando Paula e Souza propôs a eleição de
uma comissão especial para agilizar a redação do código, evitando assim as
intermináveis discussões e emendas ao texto original que já duravam quatro anos. Os
indicados foram Limpo de Abreu, Luiz Cavalcanti e o próprio Paula e Souza, autor da
emenda. Lino Coutinho resumiu bem o momento pelo qual passava a nação. Já não
restava mais espaço para o Brasil, independente de Portugal, julgar seus crimes pelo
Livro V das Ordenações Filipinas. Para ele, a responsabilidade dos deputados era
discutir artigo por artigo, item por item de forma madura; mas, renunciou aos debates
pormenorizados e, votou na comissão especial indicada por Paula e Souza.29
28 Anais da Câmara dos Deputados, 06 de maio de 1830. 29 Anais da Câmara dos Deputados, 11 de setembro de 1830
92
As discussões pautadas sobre a introdução ou não da pena de morte no
Código Criminal tiveram início a partir do dia 11 de setembro de 1830. Foram debates
acalorados, com falas bastante extensas, onde os discursos favoráveis e contrários
se alternaram muitas vezes. Neste momento, escolhemos alguns discursos que
julgamos terem expressado a maioria das opiniões trazidas pelos deputados.
Apresentaremos os discursos, ideias e propostas dos poucos deputados que negaram
decisivamente a pena de morte no texto do Código Criminal. Logo após essa primeira
exposição, apresentaremos os discursos daqueles deputados que foram favoráveis
da permanência da pena de morte no texto do Código, mas trataram de reformular
sua aplicação, excluindo-a dos crimes políticos e introduzi-la nos cometidos por
escravos. Outro grupo de deputados ainda propôs a elaboração de um Código
Criminal exclusivo para a parcela cativa. Por fim, discutiremos as argumentações
daqueles que defenderam a necessidade de tal pena tanto para a parcela livre quanto
para cativa, sendo essa a proposta vencedora dos debates.
O já citado Ernesto Ferreira França lançou seu discurso e bradou diante de
todos os deputados que daquela câmara não deveria “sair um código bárbaro”.
Preliminarmente o deputado Ferreira França requereu que a pena de morte fosse
retirada em casos de crimes políticos, mas no decorrer dos debates ele se posicionou
contra a pena de morte quer para crimes políticos, para cidadãos comuns ou para
escravos. Em 13 de setembro, o deputado ainda faz mais um discurso, desta vez mais
abrangente que o anterior, afirmando que em uma nação onde faltavam instrução
primária e casas de correção, a pena de morte era coisa duvidosa e que a mesma
seria imputada em relação à condição do criminoso e não ao crime. 30
Outro deputado que proferiu um discurso contra a pena de morte foi Ribeiro
de Andrada. Segundo ele, a pena de morte além de ser inútil era também uma
anomalia para uma nação moderna. Leitor de Cesare Beccaria, o mesmo fez
referências ao autor para sustentar suas afirmações no debate. Defendia que a
suspensão da liberdade seria o ideal para a punição do criminoso, e criticou a pena
de morte apresentando-a como um espetáculo de terror e vingança que se apagava
das memorias após realizada a execução do criminoso. Essas ideias já haviam sido
apresentadas pelo escritor Beccaria:
O rigor do castigo faz menor efeito sobre o espírito do homem do que a duração da pena, pois nossa sensibilidade é mais fácil e mais
30 Anais da Câmara dos Deputados, 13 de setembro de 1830.
93
constantemente atingida por uma impressão ligeira, porém frequente, do que por abalo violento, porém passageiro. Todo ser sensível está dominado pelo império do hábito [...]. A impressão causada pela visão dos tormentos não pode resistir à ação do tempo e das paixões, que em breve levam da memória as coisas mais essenciais. Em geral, as paixões violentas causam vivíssima surpresa, porém o seu efeito não é duradouro. (BECCARIA, 2011, p.11).
Os argumentos do deputado estavam de acordo com os pressupostos
defendidos por Beccaria. Para este, uma punição duradoura permeada por uma série
de trabalhos pesados e de privação da liberdade, em vez dos espetáculos de
enforcamentos rápidos e cruéis, seria bem mais vantajoso para se atingir a
sensibilidade do espírito humano. Do outro lado dos debates estavam os que
defendiam a permanência da pena de morte no Código Criminal, neste grupo
encontramos o deputado Antonio Pereira Rebouças, que em seu discurso proferiu os
seguintes argumentos.
Disse-se: a pena de morte é necessária no Brasil, porque no seu solo existem homens imorais e facinorosos que a troco de uma miserável quantia cometem um assassinato [...] que os escravos, e outros homens acostumados a serviços penosos cometeriam crimes porque melhorariam de condição indo para uma prisão sem trabalho [...] que não temos a madureza necessária para não admitirmos a pena de morte. 31
Rebouças defendeu a permanência da pena de morte e baseou-se no fato
de que a pena de morte já existia há muito tempo no Brasil, e que ainda assim existiam
diversos criminosos que cometiam todo tipo de sorte de crime em troca de
pagamentos. O que o deputado não percebeu foi que seu discurso foi ambíguo, pois
ao declarar a existência de criminosos quando a pena de morte já fazia parte do
universo das penas da justiça, o mesmo deixou em evidencia que a pena de morte
não surtia efeito no combate aos crimes de assassinatos mandados.
Bernardo Pereira de Vasconcelos, então autor do projeto, não poderia
deixar de subir à tribuna para defender a adoção da pena de morte. Em 14 de
setembro mostrou um tom inquisidor àqueles que se pronunciavam contra a pena
capital:
Parece-me, pois que todos os senhores que falaram sobre esta matéria devem ilustrar à comissão, sobre as penas que devem substituir a de morte e galés. Devem também declarar-se se este código compreende os escravos [...]. Examinem os ilustres deputados que tem falado contra a pena de morte,
31 Anais da Câmara dos Deputados, 14 de setembro de 1830.
94
que nós não temos prisões para receber os que cometeram grandes crimes; que este código vai ser executado desde já, e, entretanto não se tratou ainda que penas hão de substituir no código as de morte e galés. 32
Vasconcelos ao defender a pena de morte e de galés pediu que aqueles
que fossem contra apresentassem propostas de substituição para penas, e que tantos
debates e nenhuma apresentação de uma proposta diferente só faria adiar mais ainda
a promulgação do Código que já vinha se arrastando nos debates da câmara desde
1826.
Outro grupo de deputados se posicionou a favor da criação de um código
de leis que normatizassem especificamente os crimes cometidos por escravos. Um
dos mais destacados representantes desse grupo foi o deputado Paula e Souza. Para
o deputado, a pena de morte deveria se estender para homens livres também, que
cometiam toda a sorte de crimes e inclusive alguns era conhecidos por cometerem
crimes atrozes em troca de pagamentos.
Neste denso e agitado debate, muito vai se revelando sobre as concepções
e valores da sociedade escravagista que dominava o Brasil, havia quem defendesse
proposições adversas, como foi o caso do deputado Rego Barros, que era contra a
pena de morte em casos que figurassem crimes de origem políticas, mas era a favor
da manutenção da mesma em crimes de homicídio e insurreição de escravos.
Até o veredito final do Código Criminal intensos debates foram proferidos
na câmara dos deputados. No dia 15 de setembro de 1830, finalmente chegou ao
momento da decisão do projeto. Neste momento, a câmara já contava três emendas
de propostas. Uma de autoria de Bernardo Pereira de Vasconcelos, redator do
Código, que propôs que a pena de galés continuasse existindo até o momento em que
se inaugurassem cadeias apropriadas; voltando atrás retirou a mesma antes que ela
entrasse em votação. Paula e Sousa propôs que a pena de morte só fosse aplicada
nos casos de homicídio e aos cabeças de insurreição, sempre em grau máximo. Esta
emenda foi rejeitada pela casa. Todavia, a emenda proposta por Rego Barros, em que
a pena de morte fosse excluída nos casos de crimes políticos e introduzida nos crimes
de homicídio e contra escravos (sendo votada em uma casa de políticos e de senhores
escravistas) passou sem maiores objeções. (SANTOS, 2012, p. 50)
32 Anais da Câmara dos Deputados, 14 de setembro de 1830.
95
Após ser aprovado na câmara dos deputados, o projeto do Código Criminal
de Vasconcelos seria enviado para que os senadores pudesse votar se aprovariam
ou não o projeto. No senado, o projeto não teve problemas para receber a aprovação.
A urgência em aprovar o código era tamanha que os senadores decidiram não fazer
discussões pormenorizadas para não atrasar ainda mais o projeto que já vinha se
arrastando desde 1826. Sem mais debates, os senadores acharam de acordo aprovar
o Código Criminal de imediato, e o mesmo já passou a entrar em vigor no dia 16 de
dezembro de 1830.
Surgia assim o primeiro Código Criminal brasileiro. Sua sistematização de
legislação penal possuía 313 artigos e estava dividido em quatro partes: I - Dos Crimes
e das Penas: que correspondiam aos artigos 1° ao 67°; II - Dos Crimes Públicos: artigo
68° ao 178°; III – Dos Crimes Particulares: artigos 179° ao 275°; IV – Dos Crimes
Policiais: artigos 276° ao 313°Logo no primeiro artigo estava previsto que nenhum
crime seria punido com penas que não estivessem estabelecidas na lei, além de
atenuantes e agravantes (BRASIL, 1830). Além de ser considerada bastante liberal
para a época, foi também o primeiro Código Autônomo da América Latina, inspirando
e servindo de base ao Código Espanhol de 1848 e ao Código Penal Russo de 1855.
O Código Criminal de 1830 estabelecia, destarte, três tipos de crimes:
Públicos, onde eram abordados os crimes contra o Império, contra a tranquilidade
interna, contra o tesouro e a propriedade pública; Particulares, onde se encontravam
os crimes contra a liberdade e a segurança individual, contra a propriedade particular;
e Policiais, em que estavam regulamentados os crimes contra as normas policiais e
regras públicas, as posturas municipais. Ademais, estavam previstas no código as
seguintes penas: morte (do art. 38 ao 43); galés (art. 44 e 45); banimento, degredo e
desterro (do art. 50 ao 52); multa (do art. 55 ao 57); suspensão do emprego (art. 58);
e perda do emprego (art. 59). Previa ainda a existência de circunstâncias agravantes
96
(do art. 1633 ao 1734) e atenuantes (art. 1835) e entendia a menoridade como uma
circunstância atenuante. Os açoites como pena ficavam reservados aos escravos e
não poderia exceder o número de 50 por dia (art. 60). Aos escravos que fossem
condenados, caberia a aplicação da pena de morte, galés ou açoites determinado pelo
juiz, e ao fim seria devolvido ao senhor que o traria acorrentado a ferros por um prazo
determinado.
Ainda em relação às penas a que estavam sujeitos os cativos que
cometessem atos conceituados como delitos, verificavam-se algumas distinções em
relação ao restante da população. No Código Criminal, dois artigos estão ligados
diretamente aos delitos praticados pela parcela da população cativa; eram eles os
artigos de número 113 (que conceituava e regulava o crime de insurreição) e o artigo
de número 60.
33 As circunstâncias agravantes mencionadas no código eram: 1º Ter o delinquente commettido o crime de noite,
ou em lugar ermo. 2º Ter o delinquente commettido o crime com veneno, incendio, ou inundação. 3º Ter o
delinquente reincidido em delicto da mesma natureza. 4º Ter sido o delinquente impellido por um motivo
reprovado, ou frivolo. 5º Ter o delinquente faltado ao respeito devido á idade do offendido, quando este fôr mais
velho, tanto que possa ser seu pai. 6º Haver no delinquente superioridade em sexo, forças, ou armas, de maneira
que o offendido não pudesse defender-se com probabilidade de repellir a offensa. 7º Haver no offendido a
qualidade de ascendente, mestre, ou superior do delinquente, ou qualquer outra, que o constitua á respeito deste
em razão de pai. 8º Dar-se no delinquente a premeditação, isto é, designio formado antes da acção de offender
individuo certo, ou incerto. Haverá premeditação quando entre o designio e a acção decorrerem mais de vinte e
quatro horas. 9º Ter o delinquente procedido com fraude. 10. Ter o delinquente commettido o crime com abuso
da confiança nelle posta. 11. Ter o delinquente commettido o crime por paga, ou esperança de alguma recompensa.
12. Ter precedido ao crime a emboscada, por ter o delinquente esperado o offendido em um, ou diversos lugares.
13. Ter havido arrombamento para a perpetração do crime. 14. Ter havido entrada, ou tentativa para entrar em
casa do offendido com intento de commetter o crime. 15. Ter sido o crime commettido com surpresa. 16. Ter o
delinquente, quando commetteu o crime, usado de disfarce para não ser conhecido. 17. Ter precedido ajuste entre
dous ou mais individuos para o fim de commetter-se o crime.
34 Ainda existiam as circuntâncias agravantes mencionadas no Art. 17. Tambem se julgarão aggravados os crimes:
1º Quando, além do mal do crime, resultar outro mal ao offendido, ou á pessoa de sua familia. 2º Quando a dôr
physica fôr augmentada mais que o ordinario por alguma circumstancia extraordinaria. 3º Quando o mal do crime
fôr augmentado por alguma circumstancia extraordinaria de ignominia. 4º Quando o mal do crime fôr augmentado
pela natureza irreparavel do damno. 5º Quando pelo crime se augmentar a afflicção do afflicto.
35 Art. 18. São circumstancias attenuantes dos crimes: 1º Não ter havido no delinquente pleno conhecimento do
mal, e directa intenção de o praticar. 2º Ter o delinquente commettido o crime para evitar maior mal.
3º Ter o delinquente commettido o crime em defeza da propria pessoa, ou de seus direitos; em defeza de sua
familia, ou de um terceiro. 4º Ter o delinquente commettido o crime em desaffronta de alguma injuria, ou
deshonra, que lhe fosse feita, ou á seus ascendentes, descendentes, conjuge, ou irmãos. 5º Ter o delinquente
commettido o crime, oppondo-se á execução de ordens illegaes. 6º Ter precedido aggressão da parte do offendido.
7º Ter o delinquente commettido o crime, atterrado de ameaças. 8º Ter sido provocado o delinquente. A
provocação será mais ou menos attendivel, segundo fôr mais ou menos grave, mais ou menos recente. 9º Ter o
delinquente commettido o crime no estado de embriaguez. Para que a embriaguez se considere circumstancia
attenuante, deverão intervir conjunctamente os seguintes requesitos; 1º que o delinquente não tivesse antes della
formado o projecto do crime; 2º que a embriaguez não fosse procurada pelo delinquente como meio de o animar
á perpetração do crime; 3º que o delinquente não seja costumado em tal estado a commetter crimes. 10. Ser o
delinquente menor de vinte e um annos. Quando o réo fôr menor de dezasete annos, e maior de quatorze, poderá
o Juiz, parecendo-lhe justo, impôr-lhe as penas da complicidade.
97
Art. 60. Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o Juiz determinar. O número de açoites será fixado na sentença, e o escravo não poderá levar por dia mais de cinquenta.36
A pena de açoites limitava-se aos cativos em virtude destes estarem fora
das disposições do artigo 179 § XIX da Constituição de 1824, que abolia “os açoites,
a tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis”. No Código Criminal
de 1830, em seu Capítulo IV (com o título Insurreição) definia em seu artigo 113
“Julgar-se-ha commettido este crime, retinindo-se vinte ou mais escravos para
haverem a liberdade por meio da força”. E definia as penas – “Aos cabeças - de morte
no gráo maximo; de galés perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; - aos
mais – açoutes”. A pena de morte era mencionada ainda em outra situação definida
pelo artigo 192 “Matar alguém com qualquer das circumstancias aggravantes
mencionadas no artigo dezaseis, numeros dous, sete, dez, onze, doze, treze,
quatorze, e dezasete”. E definia o grau das penas – “de morte no gráo maximo; galés
perpetuas no médio; e de prisão com trabalho por vinte annos no mínimo”.37
O novo Código afirmou-se entre muitos juristas do Oitocentos como corpo
de leis moderno, construído as bases das ideias liberais. Tais adjetivos são
contestados por Jurandir Malerba, em obra na qual ele trata dos paradoxos jurídicos
dos oitocentos brasileiro ao analisar a Constituição de 1824, o Código Criminal de
1830, o Código de Processo Criminal de 1832 e o Código Comercial de 1850.
Segundo ele:
Inúmeros autores criaram o mito de que o diploma criminal promulgado em dezembro de 1830 seria um marco de modernidade, portador de novas ideias liberais em voga na Europa, e que se anteciparia a elas na legislação penal [...]. Mas estava longe de ser esse bastião de liberalismo que embeveceu os contemporâneos e mesmo estudiosos posteriores. (MALERBA, 1994, apud SANTOS, 2012, p.31).
Ainda segundo Malerba, apesar dos textos jurídicos imperiais darem a
impressão de negar a sua herança colonial, “todo o ordenamento político e jurídico do
Império permanecerá fundado nas mesmas bases anteriores: o latifúndio
agroexportador e o trabalho escravo”. (MALERBA, 1994, apud Santos, 2012, p. 31).
36 Código Criminal do Império do Brasil, art. 60. 37 Código Criminal do Império do Brasil, 1830, Artigos 113 e 192.
98
Não havia possibilidades de se esconder os valores ensejados pela elite latifundiária
e escravista. O Código Criminal carregaria em si toda a subjetividade daquele tempo
– como qualquer outra fonte histórica.
Analisando a sociedade imperial, Hebe Mattos focalizou o conceito de
cidadania empregado na época. A historiadora menciona que a Constituição Imperial
de 1824 reconheceu os direitos civis de todos cidadãos brasileiros, os diferenciando
pelo ponto de vista político. Tendo como referencial o direito ao voto, expressão
máxima de cidadania, Mattos nos aponta uma tripartição da sociedade oitocentista. O
cidadão passivo “sem renda suficiente para ter direito ao voto”, o cidadão ativo votante
“com renda suficiente para escolher, através do voto” e o cidadão ativo eleitor e
elegível. Como o poder aquisitivo era o fator primordial para o exercício do voto, as
posses diferenciavam os direitos políticos. Em outras palavras, se os descendentes
de escravos libertos poderiam (se renda tivessem) exercer plenamente todos os
direitos políticos da monarquia, os escravos nascidos no Brasil que fossem alforriados
não entrariam em pleno gozo dos direitos reconhecidos aos cidadão do Império.
(MATTOS, 2004, p. 20-21). Em linhas teóricas, se a Constituição de 1824 considerava
todos os homens cidadãos livres e iguais, o voto censitário hierarquizava atuação
política, produzindo cidadãos diferenciados. Ainda segundo Mattos, este aspecto era,
“o principal limite do pensamento liberal no Brasil”. (MATTOS, 2004, p. 7-8). Os
direitos e as garantias de nossa primeira constituição eram um privilégio para os
cidadãos, homens livres, e não para os escravos.
O código de 1830 deu conta de uma sociedade mista, composta de
cidadãos ricos com direitos políticos, homens pobres aquém das decisões e, por fim,
uma massa escrava que não era considerada humana, que recebia a denominação
de Coisa. Jurisconsulto e parlamentar, Agostinho Marques Perdigão Malheiro (1966)
foi um dos mais destacados pesquisadores dos fundamentos jurídicos, em sua obra
mais conhecida, A escravidão no Brasil, publicada entre 1867 e 1868, Malheiro é
enfático:
Em relação à lei penal, o escravo, sujeito do delito ou agente dele, não é coisa, é pessoa na acepção lata do termo, é um ente humano, um homem enfim, igual pela natureza aos outros homens livres seus semelhantes. Responde, portanto, pessoal e diretamente pelos delitos que cometa; o que
foi sempre sem questão. (1966, p.49).
99
A Constituição imperial havia sido promulgada mas, excluía o escravo
enquanto agente político, negava direitos por não ser considerado como cidadão e
súdito da monarquia, o considerando como Coisa, ao mesmo tempo, o Código
Criminal inseria o escravo como sujeito do delito, passível de punição. Se a
Constituição excluía o escravo na participação da cidadania no Império, o Código
Criminal o incluía em relação a lei penal.
O aparato criminal estava criado. Os políticos continuavam organizando a
legislação do Império. A abdicação de D. Pedro I ao trono brasileiro em favor de seu
filho, até então impúbere, não foi motivo para que os trabalhos parassem. Faltava
ainda a organização do aparato jurídico que não havia sido criado em conjunto com o
Código Criminal como era esperado pelos deputados da comissão do Código. A
conclusão do Código do Processo Criminal só foi concluída em 29 de novembro de
1832. As alterações mais significativas que tivemos em relação à pena de morte no
Estado imperial brasileiro, além da inserção no Código criminal e da lei de 10 de junho
de 1835 – da qual falaremos ainda neste tópico – vieram no momento da criação do
Código Processual em 1832; na sua Reforma em 1841 e no Regulamento número
120, de 31 de janeiro de 1842, necessário para organizar toda a parte policial e
criminal da Reforma do Código de Processo.
Quanto à pena de morte, o Código de Processo Criminal veio para dirimir
algumas dúvidas e esclarecer algumas obscuridades, assim como gerar outras. Ele
estabeleceu por meio do art. 332 que para condenação a pena de morte havia a
necessidade da unanimidade de votos dos jurados presentes na sessão de
julgamento.38 Comumente, qualquer pena era imposta quando dois terços do corpo
de jurados fossem a favor dela, mas em relação à pena de morte se a quantidade de
votos não alcançasse a totalidade dos jurados, o réu seria imediatamente sentenciado
à pena de galés perpétuas, não obstante, poderia protestar por um novo júri.39 Em
relação a pena de morte o Código Processual não apresentava distinção entre réus
livres ou escravos.
O Código Processual trouxe de volta a possibilidade do réu recorrer ao
Poder Moderador para minoração das penas, direito esse que a Constituição de 1824
38 Art. 332. As decisões do Júri são tomadas por duas terças partes de votos; somente para a imposição da pena de
morte é necessária a unanimidade, mas em todo caso, havendo maioria, se imporá a pena imediatamente menor:
as decisões serão assinadas por todos os votantes. (BRASIL, 1832). 39 Art. 308. Se a pena imposta pelo Júri for de cinco anos de degredo, ou desterro, três de galés ou prisão, ou for
de morte, o réu protestará pelo julgamento em novo Júri. Idem, Ibidem.
100
previa40 Mas, tempos depois, em 11 de abril de 1829, o imperador abriu mão dessa
sua exclusividade constitucional. Por se tornarem recorrentes os crimes de escravos
contra seus senhores, o imperador mesmo à revelia das prerrogativas do poder
moderador renunciou o direito de perdoar ou moderar as penas capitais impostas a
escravos, pois
Tendo sido mui repetidos os homicidios perpetrados por escravos em seus proprios senhores, talvez pela falta de prompta punição, como exigem delictos de uma natureza tão grave, e que podem até ameaçar a segurança pública, e não podendo jamais os réos comprehendidos nelles fazerem-se dignos da Minha Imperial Clemencia: Hei por bem. Tendo ouvido o Meu Conselho de Estado, ordenar, na conformidade do art. 2.º da lei de 11 de Setembro de 1826, que todas as sentenças proferidas contra escravos por morte feita a seus senhores, sejam logo executadas independente de subirem á Minha Imperial Presença. As autoridades a quem o conhecimento deste pertencer o tenham assim entendido e façam executar
Assim, a análise principia pelos desdobramentos da situação dos escravos
frente às posturas municipais e a justiça criminal, aborda alguns dos principais
conflitos entre autoridades e senhores no município de Franca, passando pelos efeitos
locais das tensões desencadeadas pelas revoltas de cativos no país e termina com
um dos principais componentes da relação entre alguns senhores. 41
O Império, cada vez mais rígido em relação aos crimes cometidos por
escravos, por meio dos códigos de leis buscava a manutenção do regime escravista.
No entanto, foi a Lei nº 4 de 10 de junho de 1835 que regulamentou especificamente
a punição para os escravos que matassem ou ferissem gravemente seus senhores,
administradores, feitores e respectivos familiares. Caso os ferimentos fossem
considerados leves seria aplicada a pena de açoites. A lei de exceção, criada em meio
a um agitado contexto de lutas escravas pela liberdade, barrava a possibilidade de
qualquer recurso para os escravos que cometessem crimes contra os agentes do
sistema escravista, pois, sendo a sentença condenatória, se executaria sem recurso
algum. Como a lei não deixava brechas para o pedido de graça e a comutação, sendo
condenados, à morte ou a qualquer pena, não haveria nenhuma medida judicial
cabível que suspendesse ou atenuasse a sentença. De acordo com o artigo 1° da lei
de 10 de junho de 1835, escravo condenado era escravo executado.
40 O Imperador exerce o poder moderador: Inciso VIII – Perdoando e moderando as penas impostas aos réus
condenados por sentença”. Constituição Brasileira de 1824. 41 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1829, Página 263 Vol. 1 pt. II
101
Art. 1º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem.42
Tendo tomado como objeto de investigação a criação do projeto de lei do
que viria se tornar a lei 10 de junho de 1835, Ricardo Figueiredo Pirola (2015) analisou
minuciosamente os preâmbulos da lei de 1835, seu contexto histórico e os debates
parlamentares a respeito do projeto de lei, iniciado em 1833.
Ao reforçar as penas para os crimes que atingiam o senhor, feitor, administrador e suas mulheres e filhos, a proposta de 1833 colocava em evidência não apenas as ações cativas que deveriam ser mais severamente reprimidas, mas também o grupo de pessoas a ser protegido pela nova legislação. Os ataques de um escravo contra uma pessoa livre qualquer ou contra outro escravo (desde que não estivessem inclusos no grupo de indivíduos mencionados no artigo primeiro da proposta) continuariam a ser julgados pelas penas previstas no Código Criminal. (PIROLA, 2015, p. 36).
A proposta de 1833 elegia, nesse sentido, a família senhorial e os agentes
mais diretamente ligados ao controle da produção como um grupo privilegiado, que
passaria a ter uma barreira legal de proteção contra possíveis ações rebeldes dos
cativos. Os ataques escravos contra esse grupo seria severamente reprimido sem a
possibilidade de recurso algum por parte do Poder Moderador.
Ricardo Pirola (2015) esclarece que durante muito tempo a criação da lei
de 10 de junho de 1835 esteve associada aos atentados praticados por escravos
contra sujeitos ligados a classe senhorial durante a década de 1830; mais
especificamente historiadores associavam a criação da lei a revolta dos Malês (1835)
na província da Bahia. Mas, de acordo com Pirola, os debates parlamentares já
haviam começado desde 1833, sendo mais bem associado assim a Revolta de
Carrancas, que pertencia à vila de São João Del Rey, na província das Minas Gerais.
Tendo eclodido em 13 de maio de 1833, diversos escravos pertencentes a várias
fazendas se insurgiram e deixaram um saldo de vários mortos. Os “rebeldes de
Carrancas foram exemplarmente punidos, sendo que 16 deles receberam à pena de
morte por enforcamento sendo executados em praça pública em dias alternados e
com cortejo da Irmandade da Misericórdia, na vila de São João Del Rei”.
Pouco menos de um mês após o fatídico na vila de São João Del Rei, em
10 de junho de 1833, a Regência, representada pelo ministro da justiça Aureliano de
42 BRASIL, Lei N° 4 de 10 de junho de 1835.
102
Souza e Oliveira Coutinho, submeteu a Câmara dos Deputados um projeto de lei com
o intuito de simplificar o trâmite processual nos casos de escravos que assassinassem
seus senhores e/ou pessoas que sobre eles exercessem autoridade. Em plenária o
ministro chamou a atenção dos deputados para os crimes perpetrados por escravos,
que eram, segundo ele, dignos da mais séria atenção do corpo legislativo. Vejamos
um trecho do seu discurso:
Se a legislação até agora existente era fraca, e ineficaz para coibir tão grande mal, a que hora existe mais importante é, e menos garantidora da vida de tantos proprietários fazendeiros, que vivendo mui distantes uns dos outros, não poderão contar com a existência, se a punição de tais atentados não for rápida e exemplar, nos mesmos lugares, em que eles tiverem sido cometidos.43
Um fato interessante que é destacado no discurso é a crítica do deputado
em relação a legislação já existente, afirmando que a mesma era ineficaz para coibir
ações de cativos contra sujeitos do sistema escravista. Pirola (2015) aponta dois
pontos centrais das análises historiográficas em relação a lei de 10 de junho de 1835;
o primeiro seria o contexto histórico e o segundo sua aplicabilidade no Estado imperial.
Em relação ao primeiro ponto, já destacamos o contexto de agitação escrava e
mencionamos duas grandes revoltas que repercutiram no Império, a Revolta dos
Malês na Bahia (1835) e a Revolta de Carrancas (1833). Em relação ao segundo
ponto, Pirola faz suas interpretações a partir das análises de Ribeiro (2005 apud
PIROLA 2015), que também analisou a criação do projeto de lei contra os crimes
cometidos por escravos contra senhores, segundo o autor, “cada execução afirmava
o direito de um senhor possuir escravos, seu direito de castigá-los, prendê-los, vendê-
los, no limite, através dos instrumentos estatais, matá-los”. (RIBEIRO, 2005, apud
PIROLA, 2015, 47). A lei de 10 de junho mostrava-se como um dos meios de controle
da população cativa. Referindo-se à lei excepcional de 1835, argumentava Perdigão
Malheiros nos anos sessenta dos Oitocentos:
Esta legislação excepcional contra o escravo, sobretudo em relação ao senhor, a aplicação da pena de açoites, o abuso da de morte, a interdição de recursos, carecem de reforma. Nem estão de acordo com os princípios da ciência, nem esse excesso de rigor tem produzido os efeitos que dele se esperavam. A história e a estatística criminal do Império têm continuado a registrar os mesmos delitos. E só melhorará, à proporção que os costumes se forem modificando em bem do mísero escravo, tornando-lhe mais
43 Anais da Câmara dos Deputados, 10 de junho de 1833.
103
suportável ou menos intolerável o cativeiro, e finalmente abolindo-se a escravidão (MALHEIRO, 1866, p. 47).
Crítico da lei de 1835 e do conjunto de leis penais em relação aos escravos,
Malheiros definia que somente uma mudança nos costumes poderiam modificar os
problemas criminais pelos quais o Império passava. Outra mudança no conjunto das
leis do Estado imperial veio com a promulgação do decreto de 9 de março de 1837.
Em decreto publicado em 9 de março de 1837, o Regente em nome do Imperador
buscou explicitar o fato de que a recém aprovada lei de 10 de junho de 1835, que
impossibilitava os réus de apelação judicial depois da condenação em primeira
instância, não alterava o direito de recorrer à graça imperial. O ato de perdoar ou
comutar uma sentença era uma dos princípios constitucionais que a lei de 1835 não
havia alterado.44
Os caminhos trilhados e as possíveis respostas nos levam a acreditar que
a pena de morte estava intrinsecamente ligada ao projeto de nação e à manutenção
da governabilidade, e a continuidade do sistema escravista, assim como queriam as
elites brasileiras. Uma vez excluída dos crimes políticos, a pena de morte alcançava
basicamente os homens pobres livres e notadamente os escravos. Já discutimos no
1° capítulo a função pedagógica da pena de morte para o Estado imperial brasileiro,
sendo um importante mecanismo de controle do Estado brasileiro sobre a massa da
população subalterna.
4.2 ESCRAVOS RÉUS NOS TRIBUNAIS DA PROVÍNCIA CEARENSE
A Constituição de 1824, apesar de conter exceções como a que limitava a
cidadania dos libertos nas eleições, não continha nenhuma regra para a definição
jurídica dos que se encontravam no cativeiro. Por um lado, o silêncio do texto
constitucional quanto aos cativos era juridicamente sustentável e reafirmava a
escravidão não incluindo coisas ou objetos de propriedade (os escravos) em regras
destinadas a cidadãos. Por outro lado, essa falta de princípios constitucionais
norteadores gerou uma consequência direta: os escravos continuaram a ocupar até a
abolição o mesmo banco dos réus dos de condição livre.
44 Coleção das Leis do Império do Brasil, Atos do Poder Executivo, Decreto de 9 de março de 1837.
104
Situação um tanto paradoxal. Ao mesmo tempo em que a Constituição de
1824 excluía os escravos, negava a estes a cidadania. Por serem considerados
peças, propriedades comercializadas assim como os animais, a lei penal os
colocavam enquanto agentes ativos, pois eram passiveis das mesmas punições que
os sujeitos ditos cidadãos. Agostinho Marques Perdigão Malheiro (1866) foi um dos
mais destacados pesquisadores dos fundamentos jurídicos que sustentaram a
legislação sobre os escravos no Brasil. Em sua obra mais conhecida, A escravidão no
Brasil, Malheiro é enfático.
Em relação à lei penal, o escravo, sujeito do delito ou agente dele, não é coisa, é pessoa na acepção lata do termo, é um ente humano, um homem enfim, igual pela natureza aos outros homens livres seus semelhantes. Responde, portanto, pessoal e diretamente pelos delitos que cometa; o que
foi sempre sem questão. (1866, p. 49).
Perdigão Malheiro assevera que as penas relativas aos escravos eram
entendidas como exceções ou excepcionalidades. O Código Criminal do Império
impunha exclusivamente ao condenado escravo, quando sentenciado a outras penas,
que não fosse à de morte ou galés perpétuas, a substituição da pena de prisão pela
de açoites, que não poderiam ultrapassar a quantidade de cinquenta por dia,
complementada pela obrigação do uso de ferros nos pés ou pescoço durante o
período determinado pelo juiz. Pena exclusiva dos escravos, os açoites só foram
abolidos do Brasil em 1886.
Não havia no Código Criminal destaque artigo a artigo que explicassem a
maneira de se imputar pena aos escravos. Com exceção do artigo de número 60 “Art.
60. Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será
condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que
se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar.”
Estabelecendo a quantidade de açoites “O numero de açoutes será fixado na
sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta.”45 O mesmo código,
entretanto, não possuía uma lei específica para a punição do escravo que
assassinasse seu senhor ou qualquer outra pessoa, salvo quando se caracterizava o
crime de insurreição.
O crime de insurreição não só definia a punição para as reuniões de vinte
ou mais escravos “para haverem a liberdade por meio da força” como estendia a
45 Código Criminal do Império do Brasil, 1830, art. 60.
105
mesma punição dos cativos aos livres identificados como cabeças do levante. Previa
a punição ainda, na forma do artigo 115, de todos aqueles que participassem da
insurreição incitando ou ajudando os escravos a se rebelar: “Ajudar, excitar, ou
aconselhar escravos á insurgir-se, fornecendo-lhes armas, munições ou outros meios
para o mesmo fim”. 46 Estudioso de uma das insurreições de escravos que mais
repercutiram no Império, o levante dos Malês, ocorrido em Salvador, na Bahia, em
1835, João José Reis argumenta:
O artigo 115 tinha como único objetivo atribuir ao homem livre, mas sobretudo ao liberto, uma maior periculosidade para distingui-lo do escravo e justificar sentenças mais duras. E o alvo principal dessa lei eram forros de origem africana, pois eles e seus patrícios escravos eram os que se rebelavam com maior frequência no Brasil, e na Bahia em particular. (2003, p.452).
Mesmo julgados culpados pelos crimes punidos com a morte (insurreição,
homicídio agravado e roubo com morte), livres e escravos ainda podiam recorrer a
Imperial Clemência, um dos atributos do Poder Moderador que podia perdoar, comutar
a pena, ou mandar que a executassem. Menos de cinco anos se passaram desde a
promulgação do Código Criminal do Império em 1830, os problemas com notícias de
planejamento de insurreições e assassinatos de senhores se impuseram, e a Lei n. 4
de 10 de junho de 1835 suspendeu a possibilidade dos recursos aos cativos
condenados pelo assassinato ou prática de ferimentos graves contra seus senhores,
os familiares dos seus senhores e prepostos.
Num primeiro momento, a imediata execução da sentença foi suspensa
para que houvesse tempo de se empreender uma revisão dos autos antes da
consumação da pena. Posteriormente, em 1837, o recurso à Graça Imperial foi
permitido aos cativos condenados à morte por homicídios que não vitimaram seus
proprietários. Um aviso de 1849 mandava estender aos cativos condenados na lei de
1835 um dispositivo geral do Código do Processo que proibia a aplicação da pena de
morte nos casos em que a única prova contra o réu era a confissão. Mais tarde, em
1854, os escravos que vitimaram seus senhores também puderam fazer suas
condenações subirem à apreciação da Clemência Imperial. (FERREIRA, 2011).
Nos tribunais, os interesses em jogo tornavam a situação bem mais
complexa. Caso a caso, a interpretação da lei por parte de advogados, promotores de
acusação e juízes tomavam rumos diferentes. Uma situação interessante acerca da
46 Idem art. 115.
106
infinidade de interpretações das legislações criminais, diz respeito ao julgamento dos
escravos responsáveis pelo motim do Laura 2° no ano de 1839. Após proferida a
sentença, o Juiz Clemente Francisco da Silva quis dar a execução aos condenados o
mais rápido possível, mas acabou sendo impedido pelo presidente da província João
Antonio de Miranda, que alegou que as medidas legais não haviam sido obedecidas
como mandava a legislação penal. Em oficio dirigido ao Ministério da Justiça, o
presidente da província do Ceará alegou os motivos que o fizeram interver na
execução.
Pretendeo o juiz de direito interino desta Capital fazer executar a sentença respectiva; porem obstei-lhe, valendo-me do Dec. de 9 de Março de 1837 que, além de determinar que só no caso de morte, feita por escravo contra seo senhor, se deve executar a sentença independente do recurso ao Poder Moderador, me permitte mais impedir nesse mesmo caso a execução, quando eh assim julgue conveniente representar então o Poder supremo. (NOGUEIRA, 1894, p. 51).
Em sua intervenção o presidente João Antonio de Miranda fez questão de
lembrar ao Juiz que a sentença não poderia ser executada enquanto a lei não fosse
devidamente observada. Desta maneira, o presidente alegava que as interpretações
do Juiz de direito não estavam de acordo com a legislação vigente. Com base no
Decreto de 9 de março de 1837, o presidente da província esclarecia sua intervenção
na atitude do magistrado.
Ainda naqueles casos em que não há lugar o exercício do Poder Moderador, não se dará execução à sentença de morte, sem prévia participação ao Govêrno Geral do Município da Côrte, e aos Presidentes nas Províncias, os quais, examinando e achando que a Lei foi observada, ordenarão que se faça a mesma execução, podendo contudo os Presidentes das Províncias, quando julguem conveniente, dirigir ao Poder Moderador as observações que entenderem ser de justiça para que este resolva o que lhe parecer; suspenso então todo o procedimento. (NOGUEIRA, 1894, p. 51).
O presidente da província tomou para si o direito que o decreto imperial
havia criado para o líder do governo provincial, e ao se mostrar contrário a decisão do
magistrado, acabou criando uma disputa jurídica onde ambos buscaram evocar a
legislação para fundamentar seus pontos de vista. Do ponto de vista do magistrado,
sua decisão se fazia favorável com base na interpretação que o mesmo fazia do artigo
4° da lei de 10 de junho de 1835, que previa “Em taes delictos a imposição da pena
de morte será vencida por dous terços do numero de votos; e para as outras pela
107
maioria; e a sentença, se fôr condemnatoria, se executará sem recurso algum”.47 A
interpretação que o magistrado fazia da lei de 10 de junho de 1835 estava correta até
aí, mas a mesma legislação apresentava um ponto falho em sua decisão, e valendo-
se desse ponto falho o presidente da província construiu a sua argumentação de não
deixar executar a pena sem o recurso. Observemos o que determinava a lei de 10 de
junho de 1835 em seu artigo 1°.
Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem.48
Para o juiz, o capitão do navio era o administrador da embarcação assim
como um feitor é administrador de uma fazenda, e no seu entender “ninguem
juridicamente fallando poderá negar que o capitão de um navio seja administrador;
porquanto este nome se dá áquelle que administra e negocia fazenda alheia para seo
dono”49. Com base na letra da lei de 10 de junho de 1835, o magistrado fazia firme o
seu argumento de que os escravos do Laura não tinha direito ao recurso de graça e
deveriam ser imediatamente executados. Mas, ainda contrário a decisão do juiz, o
presidente da província, com base na mesma legislação, também construiu seu
argumento de acordo com o que interpretava com base na lei: “os reos erão escravos
do Capitão do navio, a quem assassinarão?” a pergunta do administrador provincial
acabou por encerrar os debates entre o magistrado e o presidente da província, e os
escravos da Laura tiveram direito ao recurso de graça imperial.
As discordâncias entre o líder do governo provincial e o magistrado abriu
brechas para que pudéssemos analisar alguns dos pontos defendidos ambos. O
primeiro ponto que podemos mencionar é o fato do julgamento ter sido realizado às
pressas, era necessário mostrar a força da justiça em relação aos crimes de maior
gravidade, e a busca pela punição exemplar acabou fazendo com que o rápido
processo contra os escravos abrissem brechas para possíveis contestações. Assim
aconteceu, todos foram julgados e condenados, sem a defesa do advogado ou de um
curador para os escravos.
47 Lei n° 4 de 10 de junho de 1835, art. 4. 48 Coleção das Leis do Império do Brasil, Atos do Poder Executivo. Lei n° 4 de 10 de junho de 1835. 49 APEC. Livro de Registro da Correspondência da Presidência da Província do Ceará dirigida o Ministério da
Justiça, 1835-1843, Livro nº 30. Ofício do presidente da província do Ceará, João Antonio de Miranda, ao ministro
da justiça, Francisco Paula de Almeida e Albuquerque, nº 22, 07 de agosto de 1839, fl. 79.v.
108
A posição tomada pelo presidente da província frente a observação da lei
mostra a percepção que o mesmo havia feito da decisão do juiz em negar o direito ao
recurso tomando como base o artigo 4° lei de 10 de junho de 1835 que negava o
direito ao recurso de graça, mas o próprio juiz não tinha pleno conhecimento se os
escravos pertenciam a sociedade Ferreira e Irmãos, por isso o mesmo deve ter
preferido condenar os escravos com base no artigo 192 do Código Criminal e não no
artigo 1° da lei de 10 de junho, visto que nem todos os escravos amotinados
trabalhavam no navio. Sendo assim, a legislação não poderia ser aplicada como
mandava a letra da lei. Por esse motivo o presidente interveio na decisão e resolveu
acionar o poder central para tomada de decisão na sentença dos escravos da Laura.
Apesar da disputa jurídica acerca do cabimento ou não do recurso de graça, o Poder
Moderador não concedeu o perdão aos réus, e ordenou que a execução tivesse
prosseguimento.
Ser julgado com base no Código Criminal e não na lei de 1835 era sem
dúvida uma vitória da defesa ocorrida antes mesmo da decisão dos jurados pela culpa
ou inocência do cativo. Significava a possibilidade de o réu escravo recuperar os
mesmos direitos e instrumentos de defesa dos réus livres. Era, por exemplo, a
possibilidade de os defensores contarem com a argumentação de que para a prática
do crime existiu alguma das circunstâncias atenuantes previstas no Código Criminal
estratégia que, uma vez acatada pelo júri, resultava efetivamente na diminuição da
pena.
No caso da província do Ceará, dos 16 escravos executados com a pena
de morte, somente três foram condenados com base na lei de 10 de junho de 1835.
Fuisset no ano de 1837, em Quixeramobim, foi condenado por ter assassinado seu
senhor, o português de conhecido pela alcunha de José da Fama. José, por ter
assassinado seu senhor no ano de 1840 na capital Fortaleza. E Bonifácia, por ter
cometido, com requintes de crueldade, um assassinato contra um garoto de quatorze
anos, filho do seu senhor. Todos esses, foram casos que foram enquadrados na lei
de 10 de junho de 1835 por terem sido assassinatos cometidos contra senhores e
membros da família de seus proprietários.
Porém observamos que outros casos de assassinatos contra proprietários,
feitores e familiares não foram enquadrados na lei de 10 de junho de 1835, e sim com
base no artigo 192 do Código Criminal. O homicídio perpetrado pelos escravos
Antonio e Luiz, por exemplo, havia sido cometido contra Ignácio João, proprietário do
109
cativo Luiz, já a Antonio, era escravo da esposa do assassinado, sendo ambos os
escravos pertencentes à mesma família.
Cúmplices em uma trama de assassinato contra Ignácio João, ambos
planejaram e executaram o plano que vitimara Ignácio. Rapidamente descobertos
pelas autoridades, Luiz e Antonio foram presos e levados ao julgamento que
aconteceu de forma muito rápida. Presidido pelo capitão Ignácio José Rodrigues, teve
como acusador o promotor público Luiz José de Madeiros, sendo o defensor dos réus
o advogado Ignácio José Rodrigues Pessoa. Os réus, Luiz e Antonio, foram julgados
condenados com base no artigo 192 do código criminal.
Situação parecida foi a que acometeu a execução de Estevão, escravo do
Coronel Diogo Lopes de Araújo Salles, morador na vila de Ipú, região Norte da
província do Ceará. No ano de 1845, Estevão foi acusado de ser o autor da morte
perpetrada em Manoel de Carvalho Guedes, feitor do senhor ao qual Estevão
pertencia. Capturado e interrogado, confessou que havia praticado o crime “dando-
lhe com uma mão de pilão na cabeça quando o Manoel dormia, e de madrugada
evadio-se”. Estevão não negou a autoria do crime do qual passava a virar réu, mas
em sua defesa alegou que havia cometido o mesmo em circunstâncias dos “maltratos
que sofria”. (NOGUEIRA, 1894, p. 301).
Estevão foi levado ao júri na sessão do dia 16 de setembro de 1845 e,
acabou sendo pronunciado como incurso no grau máximo do artigo 192 do Código
Criminal. A diferença fundamental entre ser pronunciado pelo artigo 192 e o artigo
primeiro da lei de 10 de junho de 1835 estava nos procedimentos judiciais adotados
para o julgamento e depois dele. O pronunciamento pela lei de 10 de junho previa a
convocação extraordinária do júri, e a pena de morte só poderia ser aplicada se a
votação do júri corresponder a dois terços dos votos. Já no artigo 192 do código
criminal, o réu seria julgado em uma sessão regular, sem a necessidade de maioria
de votos de um júri. Apesar do artigo 192 do código criminal possibilitar circunstâncias
atenuantes durante a execução do crime, também existiam as circunstâncias
agravantes que poderia levar a condenação pelo artigo 192 ao grau máximo, ou seja
a condenação à morte. No caso de Estevão, a pena foi agravada com base nas
circunstâncias agravantes previstas no artigo 16 do Código Criminal de 1830.
Situação parecida foi a do escravo Sebastião, também acusado pelo
assassinato cometido contra o seu senhor, Joaquim Almeida Rego, em 2 maio de
1841, logo no dia 6 do mesmo foi capturado e interrogado no dia seguinte “respondeo
110
elle ser natural de Pernambuco, com 35 annos de idade, que fora preso na Lagôa das
Pedras, Riacho das Intas, do termo de Sobral, e que o motivo de sua prisão era ter
dado uma facada no seu senhor”. (NOGUEIRA, 1894, p. 85). Sebastião havia sido
preso portando a arma do crime, a faca ainda suja de sangue, sabia que não tinha
como negar que havia sido ele o autor daquele assassinato, resolveu confessar
durante o interrogatório, mas em sua defesa Sebastião alegou que “praticara o acto
por ter tirado um bocado de aguardente de seo senhor, ficando alguma cousa tonto e
com medo de ser castigado” (NOGUEIRA, 1894, p. 85). Julgado, Sebastião foi
condenado a morte com base no grau máximo do artigo 192 do Código Criminal de
1830.
Além da lei de 10 de junho de 1835 e do Código Criminal de 1830, o Código
do Processo Criminal de 1832 parece ter gerado inquietações acerca dos julgamentos
de escravos na província cearense. A acusação que pesava contra José, em 1840 na
capital Fortaleza, era de haver matado o seu senhor com um tiro, e por ter tido como
cúmplice na trama o livre Miguel Pereira dos Anjos, de vinte e poucos anos de idade.
Outra prova não existia contra José senão a sua confissão de autoria do crime, e o
depoimento do cúmplice Miguel dos Anjos. Outra testemunha não havia que pudesse
atribuir aos réus a autoria do assassinato de Luiz Ferreira Gomes. Apesar da falta de
mais depoimentos, o juiz de direito José Maria Eustáquio proferiu a sentença dos réus:
Conformando-me com a decisão do jury de senteça, em virtude do art. 1° da lei de 10 de junho de 1835, condemno o réo escravo José á pena de morte por ter assassinado a seo senhor Luiz Ferreira Gomes; e o réu Miguel Pereira dos Anjos a 20 annos de galés, pena mínima do art. 192 do Cód. Crim. Por ter avido as circumnstancias aggravantes n° 17 do art. 16 do mesmo Cód. Crim. (NOGUEIRA, 1894, p. 57).
Apesar de confiar que a sentença estava de acordo com a lei, o juiz José
Maria Eustáquio remeteu a cópia da sentença juntamente com o processo do réu para
o presidente da província para que observasse os procedimentos jurídicos, até aí tudo
corria conforme mandava o decreto de 9 de março de 1837. Mas, um fato que
despertou nossa atenção diz respeito as observações feitas pelo juiz na
correspondência reproduz um pouco das inquietações que perturbavam o magistrado
a respeito da sentença de José.
Nenhuma testemunha jurada existe no processo que presenciasse o delicto: as que juraram todas se referem a voz pública e a indícios e circumnstancias anteriores e posteriores ao delicto; mas, apezar do art. 94 do Cód. do Proc. Juguei dever condemnar á morte o réo José em rasão da declaração do có-réo Miguel Pereira dos Anjos, que não foi destruída pelo réo José; e porque
111
as leis tem feito mui series excepções para a imposição da pena de morte contra escravos: não obstante, V. Exc. Na conformidade do Dec. de 9 de março de 1837, decidirá se a sentença deve ser executada – Deus Guarde a V. Exc. – Cidade de Fortaleza, 18 de Novembro do anno de 1839. – Exc. Sr. Dr. João Antonio de Miranda, presidente desta província. – José Maria Eustáquio Vieira, Juiz de Direito Interino. (NOGUEIRA, 1894, p. 58).
O artigo 94 do código do processo criminal do qual o magistrado faz
menção determinava o seguinte “A confissão do réo em Juizo competente, sendo livre,
coincidindo com as circumstancias do facto, prova o delicto; mas, no caso de morte,
só póde sujeital-o á pena immediata, quando não haja outra prova”50. O juiz de direito
proferiu a sentença do escravo José declarando que, apesar de ter reconhecido no
réu a autoria do assassinato de seu senhor e de ainda ter contra o réu escravo José,
e ter tomado o depoimento do cúmplice no assassinato no qual acusava José, não
sabia se em casos de condenação pelo artigo 1° da lei de 10 de junho de 1835 a pena
de morte poderia ou não ser imposta, pois a única prova existente no caso era a
confissão do réu. Tomado por incertezas diante do caso, o juiz de direito decidiu
recorrer ao poder moderador do presidente João Antonio de Mirada, para que o
mesmo analisasse se a sentença estava na conformidade da lei e ordenasse a
execução.
Mas, pelo visto, o presidente João Antonio de Mirada também ficou receoso
em ordenar a execução do réu, e acabou remetendo a documentação para que o
Ministro da Justiça esclarecesse a situação. O presidente João Antonio Miranda
enviou o seguinte oficio.
N° 36. Exc. Sr. Foi nesta Cidade condemnado á morte o réo escravo José, a quem diz respeito o officio em original do juiz de Direito Interino a sentença junta, que tudo incluso passo as mão de V. Exc. Ou porque seja negócio melindroso, ou por impulso de minha consciência, ou porque emfim me pareça que poderia haver outra sentença, se differente marcha tivesse tido o processo no 2° Conselho, resolvi-me aproveitar da disposição do Dec. de 9 de março de 1837, e tudo levar a sabia consideração de V. Exc. O juiz de direito portanto entendeo que o cit. Art. 94 pode militar para o caso em questão, e eu também concordo com elle, se não se acha revogado pela Lei de 10 de junho de 1835, o deduzo como indispensável a consequência de que, não havendo outra prova, não podia a confissão de um réo obrigal-o á pena última, quaisquer que sejam aos excepções, que se hajam estabelecido para o processo dos escravos em semelhante caso. (NOGUEIRA, 1894, p. 57).
Pelo visto, a sentença do escravo José encontrava um empecilho que nem
mesmo o presidente da província conseguia resolver, “Ou porque seja negócio
50 Código do Processo Criminal, 1832, Art. 94.
112
melindroso, ou por impulso de minha consciência, ou porque emfim me pareça que
poderia haver outra sentença, se differente marcha tivesse tido o processo no 2°
Conselho”. (1894, p. 57). O entrave encontrado pelo magistrado e pelo governante
não encontrou a mesma problemática nas mão do Regente do Império, que logo
tomando conhecimento do caso ordenou que a sentença fosse cumprida sem mais
recursos, sendo o réu escravo José executado na forca.
José não foi o único escravo que teve que esperar a resolução de um
dilema entre as autoridades por conta da aplicação ou não do artigo 94 do código do
processo criminal. Ricardo Pirola (2015), ao analisar em sua tese o contexto de
criação da lei de 10 de junho de 1835, percebeu que várias remessas de processos
enviadas ao Ministério da Justiça davam conta da dúvida em relação a aplicação do
artigo 94 do código do processo criminal em casos de condenação pelo artigo 1° da
lei de 10 de junho de 1835. Segundo Pirola, várias autoridades do magistrado ou do
governo imperial faziam diferentes leituras sobre a validade da confissão do réu como
única prova do crime de escravos condenados pela lei de 10 de junho de 1835. De
acordo com Pirola:
Dois argumentos foram mais utilizados para justificar a comutação da pena capital de escravos: primeiro, a inexistência de outra prova além da confissão do réu (o que de acordo com o artigo 94 do Código do Processo provava o delito, mas impedia a aplicação da pena de morte) e, segundo, a menoridade dos réus. (PIROLA, 2015, p. 140).
O artigo 94 fazia parte do capitulo VI do código do processo criminal que
estabelecia As provas. De acordo com o disposto na lei, apenas a confissão do réu
não bastava para uma condenação à morte, visto que a confissão poderia ter sido
forçada por alguma ameaça, castigos físicos ou qualquer outro tipo de coerção. Sobre
essa linha de analise, podemos citar o caso da escrava Raymunda do Icó, acusada
de praticar um assassinato no ano de 1840 contra Maria Delfina de Jesus, filha do seu
senhor. Raymunda foi leva ao júri que sentenciou a mesma a pena de morte prevista
no artigo 1° da lei de 10 de junho de 1835. O fato é que, de acordo com os comentário
de Paulino Nogueira, “Raymunda foi submetida a castigos até confessar o crime. A
confissão foi a base de ameaças de morte e açoites! Açoites tão rigorosos quem sendo
executados há seis mezes, ainda a Ré conservava duas grandes chagas resultados
dos açoites”. (NOGUEIRA, 1894, p. 94).
113
Em virtudes das possíveis ameaças e castigos físicos, como foi o caso da
escrava Raymunda, a justiça, pelo menos na letra da lei, recusava a confissão do réu
para casos de condenação à morte, buscava assim, evitar arbitrariedades de
confissões sob pressão. Apesar de toda a violência e irregularidades na aplicação da
sentença, Raymunda acabou fugindo da cadeia da vila de Icó e seu paradeiro não foi
encontrado, acabou tendo mais sorte que outros tantos que haviam tido a mesma
experiência que ela.
Essa porém, não foi a mesma sorte dos escravos Benedicto e Joaquim.
Quanto ao escravo Benedito, apelidado de Capitão Cebola, era já um escravo fugido
que vivia pelos mangues nos arredores de Fortaleza quando foi capturado por ter
matado uma criança que atravessava as matas do Cocó, levando pão e carne para
seu senhor. Descoberto, preso e torturado, Capitão Cebola foi levado diante do júri
presidido pelo juiz Miguel Fernandes Vieira, que mais uma vez, deu oportunidade para
Benedicto falar sobre o caso. Diante dos membros do tribunal, Benedicto “negou o
crime que havia confessado na formação da culpa, e disse que se havia confessado
algo, foi por estar ainda tonto das pancadas que levara dos soldados”. (1894, p. 75).
No caso de Benedicto e Raymunda, a confissão foi extraída por meio de
ameaças e tortura. Ao sujeito que estava diante de forte agressão física e ameaças,
a primeira proposta feita pelo torturador acabava sendo a opção mais viável diante de
uma condição de dores e sofrimentos intensos. Benedicto deixou claro que se
confessou sua autoria no crime, está não foi por vontade própria, nem muito menos
em condições favoráveis a racionalização do que estava declarando diante das
autoridades.
Um caso bastante interessante com o qual nos deparamos foi o do escravo
Joaquim, na vila de São Bernardo das Russas.51 Contra Joaquim havia sido aberta
uma investigação por um homicídio praticado contra Anna dos Passo Jesus, sobrinha
de seu senhor. Preso como o principal suspeito do crime, Joaquim foi indiciado.
Anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de 1854, aos três dias do mez de abril, nesta povoação e districto de Taboleiro d’Areia, Termo da Villa de São Bernardo, comarca do Aracati, Província do Ceará-Grande, em casa de audiências do Subdelegado actualmente em exercício o cidadão Jozé Felizardo Freire, comigo o Escrivão do seo cargo ao deante nomeado; e sendo ai presente o réo indiciado preto Joaquim, escravo de Antonio Ferreira da Silva Nogueira, para fim de ser interrogado acerca do horrível assassinato em Anna dos Passos de Jesus. (NOGUEIRA, 1894, p. 316).
51 Atualmente município de Russas, localizado na região do Vale do Jaguaribe, Estado do Ceará.
114
Tendo início aos procedimentos sumários para formação da culpa, Joaquim
passou a responder uma série de perguntas: qual seu nome, idade, estado, e
naturalidade. Respondeu chamar-se Joaquim, solteiro, de 24 anos de idade, e natural
de São Bernardo das Russas. “Perguntado onde estava ao tempo em que foi
perpetrado o assassinato? Respondeo que em casa da própria assassinada, sendo
elle o próprio autor do crime”. (1894, p. 314). Perguntado com qual instrumento tinha
assassinado a vítima, respondeu que com um cabresto de couro.
Joaquim não negou sua autoria no assassinato de Anna Passos, mas
apresentou uma versão diferente da versão das testemunhas do crime. Segundo a
versão de Joaquim, o assassinato que havia produzido em Anna Passos foi resultado
de uma acusação de roubo de um dinheiro da vítima, a qual furto a mesma havia
apontado Joaquim como o autor. Em seu depoimento, Joaquim relatou que temendo
os castigos que seriam imputados pelo seu senhor se soubesse de tal acusação,
resolveu assassinar Anna Passos para se livrar de tais acusações. Essa foi a versão
apresentada por Joaquim. Uma informante que disse ter visto o crime, narrou com
detalhes tudo que presenciou. A informante era Maria, escrava de João Soares
Pereira que disse que “vio por um buraco na parede o preto Joaquim dentro da casa,
abaixado como sentado ou de cócoras, e junto delle igualmente vio as pernas da
moça, batendo com os pés no chão como quem estribuchava”. (1894, p. 315).
O subdelegado pronunciou Joaquim como incurso no artigo 192 do código
criminal, e o juiz municipal sustentou a pronuncia, dando lugar ao julgamento que teve
início no dia 18 de março de 1854. Presidio ao júri o juiz de direito José Pereira da
Graça, acusou o promotor público José Liberato Barroso, defendeu o curado Hypolito
Cassiano Pamplona. Durante o julgamento Joaquim negou todo o crime dizendo que
“Se o confessara nos dous interrogatórios procedentes, fora levado por promessa que
lhe fizeram de soltal-o si elle não negasse o crime”. (1894, p. 317). Desta vez nos
deparamos com uma declaração interessante, Joaquim teria mesmo sido convencido
a confessar um crime mesmo não sendo o autor com a promessa de ficar solto, ou
teria Joaquim decidido voltar atrás dos depoimentos anteriores e decidido alegar uma
possível coerção por parte das autoridades que haviam realizado o sumário do crime.
Teria sido essa uma estratégia das autoridades policiais ou de Joaquim. Se foi ou não
uma estratégia de Joaquim se livrar das acusações a ele imputadas, o juiz não deu
muito crédito a essa alegação.
115
Desta vez foi o advogado de Joaquim quem tentou livrar seu cliente de uma
fatídica condenação a forca. Em favor do réu, o advogado alegou menoridade. Caso
provada, livraria Joaquim de uma condenação à morte ou a pena de galés (a segunda
mais rígida depois da capital), conforme prescrevia o artigo 45 parágrafo 2° do código
do criminal. A pena de galés não poderia ser aplicada em dois casos:
Art. 45. A pena de galés nunca será imposta: 1º A's mulheres, as quaes quando tiverem commettido crimes, para que esteja estabelecida esta pena, serão condemnadas pelo mesmo tempo a prisão em lugar, e com serviço analogo ao seu sexo. 2º Aos menores de vinte e um annos, e maiores de sessenta, aos quaes se substituirá esta pena pela de prisão com trabalho pelo mesmo tempo.52
A tentativa de alegar a menoridade poderia ser uma saída para aquela
situação em que Joaquim se encontrava, de modo que, ainda segundo as disposições
do artigo 18, parágrafo décimo do Código Criminal, o fato de um réu ser menor de 21
anos era considerado circunstância atenuante: “São circunstâncias atenuantes dos
crimes: ser o delinquente menor de vinte e um anos”. O que significava, entre outras
coisas, a impossibilidade de aplicação da pena de morte. Se a alegação do advogado
fosse aceita, Joaquim se livraria não só da condenação à morte como também da
condenação a galés, mas a alegação da menoridade não foi desfeita pelo promotor
público que alegou “com a certidão do baptisterio, pela qual se verificava que o réo
tinha sido baptisado a 31 de agosto de 1830, e contava, portanto, 24 anoos”.
(NOGUEIRA, 1894, p. 317). A alegação de confissão por meio de coerção declarada
por Joaquim, e a tentativa do advogado em recorrer apresentando uma suposta
menoridade do réu não foram matérias suficientes para livrar Joaquim da sentença
proferida pelo juiz. “A vista da decisão do jury, condemno o réo Joaquim, escravo de
Antonio Ferreira da Silva Nogueira, na pena de morte, que será executada na forca,
na forma da lei” (1894, p. 318). Joaquim caminhou para forca no dia 20 de fevereiro
de 1855.
Quando tiveram a oportunidade de defesa os réus falaram, e falaram
bastante. Os escravos envolvidos no motim do Laura 2ª usaram os argumentos da
fome, das péssimas condições com que eram tratados e do medo da repressão
violenta em prol de suas defesas. Os que conseguiram assistir à concorrida sessão
do tribunal do júri durante o julgamento dos réus da Laura 2ª puderam ouvir o réu
52 Código Criminal do Império do Brasil, 1830, art. 45.
116
Constantino falar da fome que passavam, ele e seus companheiros negros, em alto
mar, das ameaças de açoite por parte do capitão, das humilhações que vinham
sofrendo. Hilário, um dos cativos, nascido no Brasil assim como Constantino, recebera
no rosto um golpe dado com uma colher do contramestre de bordo, quando pedia por
mais comida. O depoimento apresentou o ponto de vista dos cativos, revelou os
bastidores da conspiração dos amotinados e a argumentação encorajadora de
Constantino para seus companheiros, dizendo que “em muitas partes já tinham
acontecido desordens por motivo de falta de comer!” (SANTOS, 2009, p. 158).
Mesmo encontrando-se acuados, amarrados e alquebrados, algumas
vezes machucados por conta das agressões que sofriam durante a prisão, muitos dos
réus escravos falavam das condições cruéis do cativeiro, da fome e das agressões
físicas. O banco dos réus talvez fosse o único momento para os sujeitos escravizados
declararem publicamente suas insatisfações contra o cativeiro.
Apresentamos o cenário dos tribunais acionados contra escravos punidos
à pena máxima da província cearense. Como historiadores já antes demonstraram, o
século XIX no Brasil destacou-se pela presença de uma intromissão paulatina e cada
vez mais efetiva de poderes externos e normativos nas relações privadas
estabelecidas entre os senhores e todos aqueles por eles submetidos. De acordo com
Maria Helena P. T Machado.
Ao longo do século XIX [...] a tendência manifesta foi a de uma paulatina intromissão do Estado na regulamentação das relações entre senhores e escravos, como comprova o caudal de leis, decretos, avisos e alvarás que se somaram e superpuseram nas últimas décadas da escravidão regulamentando a instituição escravista e a esfera de poder senhorial. (MACHADO, 1987, p. 31).
O Código Criminal em 1830 e o Código do Processo Criminal de 1832
marcaram uma intromissão normativa dos poderes estatais em uma relação punitiva
que já era antiga. Cabia agora ao Estado Imperial a punição aos crimes cometidos por
cativos, e não mais somente aos senhores proprietários. Os instrumentos legais
passavam a ser utilizados nas tarefas de vigilância, apuração das ocorrências,
identificação de transgressões, condução dos julgamentos e determinação das
punições a serem cumpridas. De um lado, uma vigilância a nível local realizava um
trabalho administrativo e preventivo; de outro, os códigos: Criminal do Império (1830)
e de Processo Criminal do Império do Brasil (1832) (os quais, ao lado do conjunto de
117
leis excepcionais, avisos, decretos, entre outros, eram empunhados por distintas
autoridades que, progressivamente, passaram a intervir nos acertos entre senhores e
destes com seus cativos, principalmente, em regiões de grandes concentrações de
escravos). Tentar compreender o cotidiano cativo numa localidade de predomínio das
pequenas posses de escravos, por meio da análise de processos criminais implica
considerar as tensões que dia a dia marcavam a vida dos escravos. De um lado a
relação quase sempre direta com os senhores, de outro a intervenção da justiça.
Ambos prioritariamente reservando aos cativos a punição pelos atos considerados
como faltas, infrações ou crimes
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegando ao final dessa trajetória, a sensação que fica é a de dever
cumprindo e a certeza é de que esse tema está longe de ser esgotado. Chegar até
aqui não foi tarefa fácil, O caminho que procurei trilhar nesta pesquisa talvez possa
ser formulado sem que seja preciso me estender muito; então tentarei ser breve. Meu
objetivo principal foi tentar compreender a pena de morte enquanto mecanismo de
controle social da população cativa na província cearense no século XIX. Trabalhei
bastante para tentar dar conta desta pesquisa e, agora preciso juntar os fios da minha
argumentação para tentar escrever essas considerações finais.
Num primeiro momento tratamos da teatralização da morte de escravos
como um meio que o estado brasileiro encontrou, em meados do século XIX, para
promover isso que Thompson define como os “limites da tolerância do sistema”.
Sendo o Brasil um dos maiores centros escravocratas naquele tempo, essas
“pontuações ocasionais de força” do estado imperial, enquanto parte do sistema de
disciplina social, estavam voltadas primordialmente contra as massas de cativos. No
Ceará, mesmo sendo uma província com reduzida presença numérica de escravos,
isso não foi diferente.
O espetáculo do enforcamento de escravos, tendo uma função
disciplinadora muito clara, não deixava de ser igualmente um drama das tensões
sociais inerentes às relações escravistas. Todo o conjunto de acontecimentos
desencadeados pela ocorrência do delito praticado pelo escravo, até o sepultamento
do condenado, era acompanhado de perto por todos os agrupamentos da sociedade,
suscitando muita emoção e ansiedade. Desde o momento da descoberta do ato
criminoso, geralmente seguido pela fuga do cativo, rumores tratavam de colocar todos
a par de notícias que alteravam o curso regular do cotidiano. Notas eram estampadas
nos jornais e as autoridades faziam circular informações, procurando cumprir o
protocolo oficial. Adotando uma sugestão de Peter Linebaugh, procuramos entender
o teatro de execução pública também enquanto um drama social capaz de expressar
o conjunto de tensões que permeavam a sociedade na época; no caso da sociedade
brasileira, estas tensões confluíam para as contradições fulcrais das relações
escravistas.
Em vários momentos, ações desviantes do controle pretendido por
autoridades e senhores eram perpetradas pelos incriminados e por aqueles que se
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lhes prestavam solidariedade. Durante a própria encenação incriminatória e punitiva,
punha-se em movimento a demonstração da resistência ao poder dos agentes
imperiais, chegando muitas vezes a comprometer o papel disciplinador do
enforcamento e suscitando exemplos de rebeldia.
Percebemos que, da parte dos escravos condenados, não faltaram também
gestos e palavras dramáticas que dialogavam com as expectativas daqueles que
assistiam aos rituais de enforcamento. De condenados, enquadrados pelas rigorosas
leis do Império, punidos com a pena máxima, roubavam a cena e, ainda uma vez mais,
desafiavam a ordem de seus senhores. Podemos descrever tais atitudes, com
Thompson, como parte do contrateatro de poder acionado pelos subalternos: “Assim
como os governantes afirmavam a sua hegemonia por um estudado estilo teatral, os
plebeus afirmavam a sua presença por um teatro de ameaça e sedição”.
(THOMPSON, 1998, p. 65).
A execução em praça pública de escravos, enquadrados em crimes
considerados graves (geralmente associados a ações violentas contra seus senhores,
administradores e feitores), teve início na província cearense, como no restante do
Império, num tempo em que revoltas multiplicavam-se pelo país e agitavam as massas
escravas, representando um grande perigo para o próprio sistema escravista. Da
perspectiva dos que almejavam manter o governo dos escravos sob controle, a
intimidação pelo enforcamento exemplar parecia uma saída necessária para fazer
desacreditar a confiança crescente que envolvia então as aspirações dos cativos por
liberdade.
Considerações mais gerais sobre a eficácia do recurso ao enforcamento
como método de controle sobre os escravos ultrapassariam as possibilidades de
discussão em considerações finais da pesquisa. Porém, não seria possível deixar de
lado as demonstrações de resistência por parte dos escravos condenados e outros
atores sociais, que, por vezes, comprometiam o papel disciplinador dos
enforcamentos, chegando a oferecer expressivos exemplos de rebeldia. Sendo os
enforcamentos rituais multitudinários, marcados por forte emoção, pudemos perceber
que elementos como tentativas de fuga, rumores, aspirações de revolta, costumes
fúnebres e as próprias últimas palavras dos condenados podiam se constituir em
fatores instabilizadores do teatro do poder.
Enfim, há que se notar que os rituais de enforcamento de escravos tiveram
vida curta na província cearense, antecedendo em duas décadas o declínio da
120
escravidão, sendo o último justiçamento registrado no ano de 1855. Fatores sociais
complexos – relacionados à própria consolidação do estado imperial, ao afastamento
dos perigos das revoltas sociais e ao declínio dos contingentes de escravos na
província com a intensificação do tráfico de cativos para outras regiões do país –
podem ser apontados como elementos que explicam a relativa brevidade dos
enforcamentos de cativos no Ceará. De toda maneira, sabemos que os próprios
escravos condenados exerceram papel ativo, contribuindo por desacreditar que a
morte na forca fosse capaz de extinguir suas aspirações por liberdade e sua rebeldia.
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