PRÁTICAS EDUCATIVAS E FORMATIVAS EM CIÊNCIAS E … · das singularidades existentes entre os diferentes níveis de ensino, componentes curriculares e contextos formativos docentes.
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PRÁTICAS EDUCATIVAS E FORMATIVAS EM CIÊNCIAS E
MATEMÁTICA: LINGUAGENS E SABERES
As práticas pedagógicas desenvolvidos no contexto escolar e na formação de
professores, ainda hoje, têm sido pautadas na dicotomia entre os processos de ensinar e
aprender, o que implica em uma determinada maneira de considerar os processos
formativos docentes. Tal distanciamento implica conceber a Didática numa perspectiva
normativa e técnica. Entretanto, novas perspectivas estão sendo evidenciadas diante da
complexidade que envolve a prática educativa. Isso traz inúmeros desafios, para além
das singularidades existentes entre os diferentes níveis de ensino, componentes
curriculares e contextos formativos docentes. É preciso compreender essa
heterogeneidade não como entrave, mas como oportunidade de buscar convergências.
Nesse contexto, este painel tem como objetivo discutir resultados de três pesquisas que
buscaram analisar a prática pedagógica de Ciências e Matemática nos anos iniciais e
finais do Ensino Fundamental, relacionando-a a um contexto colaborativo de formação
docente. As pesquisas se articulam ao romper com mecanismos que podem atuar como
dispositivos de domesticação de práticas educativas e formativas. Para isso, baseiam-se
na valorização dos estudantes e dos professores, considerados como sujeitos sociais, e
na centralidade das experiências pedagógicas e formativas para pensar a educação.
Enfatizam a abordagem investigativa na construção de práticas científicas na sala de
aula, bem como a importância de contextos colaborativos na formação docente. Os
resultados apresentados se convergem no sentido de discutir alternativas metodológicas
e de formação docente, possibilitando um diálogo entre a Didática e os saberes
docentes. Ressalta-se a importância de repensar a prática pedagógica e a formação
docente a partir de uma perspectiva investigativa e colaborativa, contribuindo para
avanços no campo da Didática, especificamente no que se refere à reflexão sobre os
processos de ensinar e aprender.
Palavras-chave: Ensinar e Aprender. Abordagem Investigativa. Contextos
Colaborativos.
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CONSTRUÇÃO DE PRÁTICAS CIENTÍFICAS NOS ANOS INICIAIS: UMA
ABORDAGEM INVESTIGATIVA
Cláudia Starling Bosco
Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
Este trabalho apresenta o recorte da tese de doutorado concluída em 2015 e objetiva
compreender e caracterizar como as práticas científicas foram se constituindo na sala de
aula, no contexto de uma sequência didática orientada por uma abordagem investigativa
nas aulas de ciências. A pesquisa foi realizada em uma turma do 3º ano do Ensino
Fundamental de uma escola pública, na região sudeste do Brasil. A construção dos
dados e as análises foram orientadas por pressupostos teórico-metodológicos da
etnografia interacional (GREEN et al.). A partir da imersão no campo, filmagem das
aulas, registro no diário de campo, fotografias e artefatos presentes no cotidiano escolar
foram elaborados mapas de eventos e quadros das interações discursivas, a partir das
transcrições das falas em unidades de mensagem, considerando as interações
estabelecidas entre os participantes. Para isso, nos apoiamos na vertente sociocultural
(Vygotsky); na concepção dialógica da linguagem e nos estudos sobre gêneros
discursivos (Bakhtin; Swales); na análise do discurso (Bloome; Gee); na argumentação
(van Eemeren; Jiménez-Aleixandre; Osborne) e no campo da Educação em Ciências
(Candela; Carvalho; Driver; Duschl; Kelly; Lemke; Lorenzetti; Moje; Mortimer;
Munford; van Zee). Os resultados evidenciam que as práticas científicas não foram
situações previamente estabelecidas em sala de aula, mas foram construídas no processo
interativo e dialógico entre os participantes, vivenciando diversos modos de ser, agir e
falar. As crianças construíram diversas práticas científicas como observar fenômenos,
elaborar procedimentos, comunicar resultados, elaborando conceitos, a partir de um
ensino baseado na abordagem investigativa. As análises reforçam as perspectivas atuais
de considerar a importância do papel do pedagogo na abordagem investigativa como
aquele que instiga e valoriza a participação das crianças nas interações discursivas.
Palavras-chave: abordagem investigativa; interações discursivas; práticas
científicas.
Problematizando a prática pedagógica nos anos iniciais: os objetivos da
investigação
Uma visão tradicional do ensino para crianças enfatizou, ao longo do tempo, a
aprendizagem individualizada. Especificamente, o ensino de ciências esteve vinculado à
transmissão de conhecimentos científicos como exatos e rígidos, atemporais,
desvinculados da ação humana e descontextualizados historicamente. Nesse contexto,
os estudos em Educação em Ciências enfocavam o aspecto individual da aprendizagem
e a transmissão pelo professor, de maneira direta, do conhecimento científico,
considerado como produto final: “transmitiam-se os conceitos, as leis, as fórmulas. Os
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alunos replicavam as experiências e decoravam os nomes dos cientistas” (CARVALHO,
2013, p. 1).Pesquisas como as de Delizoicov et al. (2002) têm enfatizado a importância
das mudanças no campo educacional no que diz respeito ao ensino de ciências nos anos
iniciais, envolvendo a formação do professor, a concepção do que ensinar e como
ensinar a partir de um processo de aprendizagem baseado na compreensão e não na
memorização de conteúdos descontextualizados. Novas perspectivas de ensino
consideram a aprendizagem de ciências em relação à apropriação de práticas da
comunidade científica. Vários estudos enfatizam a importância da interação social na
sala de aula, tendo a linguagem como elemento fundamental, possibilitando ao aluno a
inserção em práticas culturais da ciência (JIMÉNEZ-ALEIXANDRE e ERDURAN,
2007; MORTIMER, 1998; DRIVER et al., 1998). Esses estudos reforçam que aprender
ciências está relacionado ao fato de inserir o aluno em um mundo de novos significados,
favorecendo diferentes modos de pensar, ver e explicar o mundo. Por conseguinte, a
criança passa a ter contato com outra linguagem, a científica, que traz características da
cultura científica.
Para a construção de conhecimentos científicos é fundamental que sejam
propostas situações em sala de aula para as crianças apresentarem seus pontos de vista e
confrontarem resultados, principalmente no início do processo de escolarização. Nesse
sentido, ganha relevância a concepção do ensino de ciências por investigação baseada
nos estudos de Munford e Lima (2008), ressaltando a importância da argumentação e do
engajamento dos estudantes em práticas científicas. O ensino por investigação está
relacionado a construção de práticas argumentativas, não no sentido de conhecer e
nomear simplesmente os fatos, mas possibilitar que os estudantes possam construir
evidências para promover argumentos convincentes no campo científico(DUSCHL e
GRANDY, 2010).
Outra vertente importante na nossa pesquisa foi pensar as contribuições e
implicações da Análise do Discurso para o campo da Educação em Ciências, já que a
Análise do Discurso traz determinados construtos teórico-metodológicos, representando
um determinado jeito de ver e de fazer a pesquisa. Identificamos alguns elementos
fundamentais que deram suporte à nossa pesquisa.
Um aspecto então é pensar a ciência como cultura, não como algo já pronto e
acabado, mas como uma prática social.
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Também se faz necessário valorizar o papel das interações sociais, como
elementos que possibilitam que crianças negociam significados e constroem novos
conhecimentos.
Outro importante aspecto relacionado a Análise do Discurso é refletir sobre a
construção de identidades envolvendo o conceito de sujeito e relações de poder, o papel
do sujeito, o lugar que ele assume e como suas identidades são construídas na relação
com o outro. Ele é considerado um sujeito histórico e social. Essa perspectiva nos ajuda
a compreender o modo como o sujeito constrói o mundo pela linguagem. Nessa direção,
a construção de identidades está relacionada às práticas culturais e ao uso da linguagem
(GEE, 2010).
Outro aspecto discutido envolve questões relacionadas ao saber disciplinar, aos
conhecimentos científicos, escolares e cotidianos. Os discursos disciplinares são
dinâmicos, definidos socialmente co-construídos por meio da linguagem, interação, e
nas práticas culturais. Mortimer (1998) discute algumas características da linguagem
científica e da cotidiana, reforça a necessidade de reconhecer suas diferenças e analisa
como essas características contribuem para compreender as dificuldades na
aprendizagem de ciências. Ele argumenta que as características da linguagem científica,
como por exemplo, a complexidade lexical e a estrutura conceitual, foram construídas
no decorrer do desenvolvimento científico, com objetivo de registrar e ampliar o
conhecimento, o que a torna uma linguagem difícil para os estudantes.
A partir desse contexto que embasa nossa investigação, a questão de pesquisa
que norteia a investigação é: Como acontece a construção de práticas científicas na sala
de aula? Mais especificamente, este trabalho tem como objetivo compreender e
caracterizar as práticas científicas nas aulas de ciências em uma turma do 1º ciclo do
ensino fundamental, no contexto de uma sequência didática, orientada por uma
abordagem investigativa.
Nesse objetivo, estão evidenciados os principais pressupostos teóricos que
subsidiam nosso estudo: consideramos a argumentação como uma prática discursiva e,
por isso, construída no processo de interação, reconhecemos a especificidade do ensino
de ciências para crianças e a importância do ensino por investigação, adotando uma
concepção de linguagem em uma perspectiva dialógica.
O percurso da pesquisa: pressupostos teórico-metodológicos
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Como opção metodológica adotamos a perspectiva qualitativa, especificamente
um estudo de caso como instrumento de investigação, já que esse tipo de modalidade de
pesquisa é pertinente quando se pergunta “como” e “por quê?”, questões que norteiam o
nosso estudo (Yin,2001).
A orientação metodológica do estudo de caso foi articulada à apropriação de
alguns aspectos e ao uso de ferramentas da etnografia em educação (CASTANHEIRA;
GREEN; DIXON, 2001).A sala de aula na abordagem etnográfica interacional passa a
ser considerada como um espaço de construção social, enfatizando a heterogeneidade de
aspectos que a envolvem. Ela passa a ser considerada como um espaço social em que
diferentes práticas e múltiplos discursos estão presentes e, simultaneamente, são
construídos.
Para a realização da pesquisa, utilizamos elementos como a observação
participante, a transcrição das falas em unidades de mensagem, anotações em diário de
campo, observação das aulas, gravação das aulas em áudio e vídeo, fotografias e
registro das atividades desenvolvidas pelas crianças.
Para a realização da nossa pesquisa, desenvolvemos uma sequência didática em
uma turma do 3º ano sobre o tema microorganismo. Ela foi elaborada pela pesquisadora
juntamente com um grupo de trabalho, constituído por professores do ensino superior,
estudantes e licenciandos em Ciências Biológicas, em parceria com a professora da
turma.
Esta diversidade de formações e experiências tanto no nível acadêmico quanto
na sala de aula, potencializou ainda mais a elaboração do planejamento como um
momento de pensar e refletir sobre a prática pedagógica.
Nosso objetivo ao propor o trabalho com sequência didática oi engajar os
estudantes no estudo do tema, explorar os conhecimentos prévios e os interesses das
crianças. Propusemos atividades que pudessem favorecer aos estudantes oportunidades
de discutir novas ideias e conceitos, em pequenos grupos e coletivamente, além de
importante oportunizar reflexões sobre o conteúdo, de modo a sistematizar e generalizar
os conceitos apreendidos(AGUIAR, 2005).Procuramos desenvolver atividades em que a
dimensão da investigação estivesse presente, propor situações nas quais as crianças
pudessem discutir, experimentar, colocar em ação suas ideias, discutir, avaliar e
comunicar os resultados obtidos.
Apresentando e discutindo as análises: Quadro das Interações discursivas
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Escolhemos representar nossas transcrições dos eventos nos Quadros das
Interações Discursivas, elaborados considerando as questões de pesquisa. Eles foram
elaborados a partir de três blocos que orientaram nossas análises sobre as interações
discursivas: interações discursivas gerais, argumentação e práticas científicas. Nesse
trabalho, iremos discutir especificamente as Práticas científicas, entendendo que ela se
articula com os demais blocos de análise.
QUADRO DAS INTERAÇÕES DISCURSIVAS
INTERAÇÕES DISCURSIVAS NO ENSINO DE CIÊNCIAS
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ito
s
Fonte: STARLING-BOSCO e MUNFORD (2015)
O eixo “práticas científicas” está intimamente ligado ao eixo argumentação,
enfatiza outros aspectos fundamentais nas práticas da comunidade científica, como:
observando fenômenos, elaborando procedimentos, comunicando resultados e
elaborando conceitos.
Apresentamos a seguir a análise de um evento que possibilita discutir o processo
de construção de práticas científicas nos anos iniciais do ensino fundamental.
Descrição do evento: “Congresso dos cientistas: comer ou não o pão?”
O evento analisado denomina-se “Congresso dos cientistas: comer ou não o
pão?”. Aconteceu na aula número 7 no total de 15 aulas no dia 2 de maio de 2012,
quando as crianças participaram de uma atividade de elaboração de procedimentos para
investigar o processo de decomposição dos alimentos, no caso o pão.
As carteiras estavam em círculo, e a professora andava no meio, indagando e
orientando as crianças no preenchimento da atividade que discutia sobre a investigação
do pão, orientada pelas seguintes questões: i) O que queremos saber? ii) O que
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precisamos fazer? iii) Que materiais, iremos utilizar? iv) O que você pensa que vamos
descobrir?
A professora iniciou a aula retomando quais foram as investigações já
realizadas, e as crianças relembraram com facilidade: “a primeira foi do ovo, depois do
lixo e depois nós fizemos outra do lixo”. A professora, então, continuou a aula lendo a
primeira pergunta da atividade: “para investigar o pão, o que, primeiro, precisamos
fazer?” Uma criança respondeu que era preciso observar e outra que era necessário
comprar o pão. A professora continuou reforçando que então era preciso planejar a
investigação.
A professora questionou as crianças “o que nós queremos saber sobre o pão?”.
As crianças manifestaram várias ideias, como por exemplo: “do que ele é feito?”; “se
ele está estragado ou não?”; “quem criou o pão?”; “se ele tem energia?”; “quem
inventou o pão?”; “o pão pode estragar”?; “se pode ser feito doce”?.
A professora solicitou, então, que as crianças registrassem as perguntas. Nesse
momento, ficou clara a intenção da professora de direcionar as questões para aquelas
que estavam ligadas à decomposição, pois foram selecionadas as seguintes questões:
“quando ele estraga ou não?”; “quanto tempo ele demora para estragar?”. Ela finalizou a
primeira parte da atividade dizendo que a última pergunta a ser registrada seria a da
aluna Flávia, pois “cita a ideia de muita gente: o que acontece quando o pão estraga?”.
Logo, a seguir, a professora iniciou a discussão da segunda questão da atividade
perguntando “para saber essas coisas, o que precisamos fazer?” e retomou as perguntas
que foram registradas. Praticamente, todo o grupo respondeu que iriam precisar do pão.
A professora aceitou esse ponto de vista e continuou questionando com as crianças:
“mas e depois o que precisaríamos fazer com o pão?”. Revisitando a filmagem ficou
evidenciado que a professora alcançou o que pretendia que era instaurar na sala uma
discussão sobre determinadas práticas científicas na investigação do pão. Ela continuou
questionando as crianças sobre os procedimentos metodológicos “o que mais?”. Pedro
respondeu: “pegar o pão era importante para ver se ele estava duro”, e Henrique
reforçou dizendo: “temos que saber se está mole ou duro, se está estragado ou não”, e,
para isso, seria necessário colocá-lo “em algum lugar”.
Importante mencionar que as crianças se posicionavam na frente da sala e
usavam microfone, vivenciando um congresso de cientistas, inclusive eram chamadas
pela professora de “cientistas”.
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Uma criança verbalizou a opção que, para investigar, seria necessário “comer
um pedaço do pão”, a turma ficou agitada, conversando e dando gargalhadas. É esse
evento que selecionamos para discutir a seguir.
Resumindo, o segundo evento iniciou-se quando as crianças participavam de
uma atividade sobre os procedimentos necessários para investigação do processo de
deteriorização de alimentos, no caso o pão. Quando uma das crianças expôs seu ponto
de vista de que “comer o pão era uma boa ideia para investigá-lo”, outras crianças se
posicionaram de maneira contrária. Nesse momento, iniciou-se então o “Congresso dos
cientistas: comer ou não o pão?”, com intuito de debater se comer o pão era ou não um
procedimento adequado e necessário para investigá-lo.
A seguir, apresentamos o Quadro das Interações Discursivas que representando a
análise desse evento.
QUADRO - “CONGRESSO DOS CIENTISTAS: COMER OU NÃO O PÃO?”
INTERAÇÕES DISCURSIVAS NO ENSINO DE CIÊNCIAS
Transcrição Interações Discursiva
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Ela
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ito
s 38
se para
fazer esta
investigação
X X
39
vai ser
preciso
comer ou
não o pão?
X X
40
o que você
acha?
[Alunos
em
silêncio,
ouvindo a
entrevista
X X
41 Renata eu acho
que não X X X
42 P
não deve
comer o
pão?
X
43 por quê? X X
Continua.
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TERAÇÕES DISCURSIVAS NO ENSINO DE CIÊNCIAS
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ult
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Ela
bo
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do
co
nce
ito
s
44 Renata
porque ele
será um
objeto de
experiência
X X
45 Ahhhh X
46 boa
resposta X
47 vamos
agora X
48 pode sentar
Eduarda X X
49
palmas
para
Eduarda
[Crianças
batem
palmas]
X X X
50 P
agora
quem já
pensou e
quer
responder?
X
51 criança eu X
52
59 [...]
60 Henrique
nós
podíamos
investigar
X X X
61
trazer um
pão pra cá
e olhar ele
bem direito
X X X X
62
ver se ele
está
estragado
ou não
X X
63
66 [....]
67
por que
você acha
que comer
o pão não é
uma boa
estratégia?
X X
Continua.
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Conclusão.
TERAÇÕES DISCURSIVAS NO ENSINO DE CIÊNCIAS
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imen
tos
Co
mu
nic
an
do
res
ult
ad
os
Ela
bo
ran
do
co
nce
ito
s
68 P
atenção...
[Professora
chama
atenção de
uma
criança]
X X
69
e aí
quando
você
investigar
X X
70
pode estar
todo
babado
[Muitos
risos]
X X X
71 ok X
72
palmas
para o
Henrique
X
Fonte: STARLING-BOSCO e MUNFORD (2015)
Nessa parte, a professora, então, direcionou a discussão para o aspecto
metodológico: se seria preciso comer ou não o pão para investigá-lo. Como evidenciado
no quadro, as crianças apresentaram seus pontos de vista, eram encorajadas pela
professora a participarem e eram valorizadas pela participação, como nas linhas 45 e 46
“ahhhh” “boa resposta” e pelas crianças (linha 49), a partir da solicitação de
participação feita pela professora “palmas para Renata”. Esse trecho retoma a
importância da argumentação no ensino de ciências diante da apresentação e das
justificativas de pontos de vista.
Para se engajar na discussão, a criança precisa se posicionar diante do mundo,
demonstrando seus pontos de vista e interagindo com o outro. Para justificar, é preciso
olhar de outra maneira para a situação e construir um discurso que apoie seu ponto de
vista de maneira coerente, o que no início da escolarização é um grande desafio para as
crianças.
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Logo a seguir, a professora solicitou a participação de Henrique no papel de
“cientista”, orientando para a mudança de postura e espaço ocupado na sala “dá um
passo a frente” (linha 54). Aqui fica evidente um exemplo de como os modos de agir e
de falar no congresso foram se instituindo na turma. O posicionamento de Henrique
(linhas 60 a 62) evidencia aspectos fundamentais da necessidade de introduzir práticas
científicas no ensino de ciências, se considerarmos a perspectiva investigativa,
mencionando a importância da observação e elaboração de procedimentos e evidências.
O evento prosseguiu quando outra criança, chamada aqui de Sofia, apresentou
suas investigações sobre o pão e explicitou seu ponto de vista sobre o tema em
discussão, se comer era uma boa estratégia ou não (linhas 73 a 107). Sofia não
concordou em comer o pão e justificou dizendo que “se você compartilhar todo o pão
com as pessoas”, “se a gente precisar do pão a gente” “a gente não vai poder ter” (linhas
103 a 105).
Continuando a análise do “Congresso dos cientistas: comer ou não o pão?”, nas
linhas 108 a 117, há uma importante sinalização sobre os modos de interação que
aconteceram na sala de aula no decorrer dos congressos. Como vimos, até então, a
professora constantemente solicitava o reconhecimento das crianças após a fala do
“cientista” quando dizia “palmas para o cientista”, o que foi ao longo do tempo sendo
apropriado pelas crianças e se tornando uma regularidade durante esses momentos.
Entretanto, a construção de significados e de modos de ser e de agir é flexível e
se altera a partir de novas interações que são estabelecidas na turma, pois um evento
está sempre conectado com eventos passados e futuros, como sinalizou os estudos de
Bloome (2009, 2010).
Alguns apontamentos finais
A partir da análise do evento “Congresso dos cientistas: comer ou não o pão?”,
descrevendo as atividades desenvolvidas e focalizando as ações e discurso dos sujeitos
foi possível perceber que os aspectos investigativos de uma pesquisa foram
privilegiados pela professora e crianças, na medida em que ao discutirem sobre se
comer o pão era ou não importante para investigá-lo.
Observamos como as crianças vivenciaram e construíram práticas científicas,
explicitando pontos de vista, justificativas, indicando diferença de opinião, propondo
novas estratégias de metodológicas.
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Quando as crianças elaboraram e discutiram os procedimentos para investigar o
processo de conservação e decomposição do pão foi possível perceber maneiras
particulares de construção de determinados modos de ser e de agir em consonância com
as práticas científicas e argumentativas. Isto reforça a importância de considerar a
abordagem investigativa para o desenvolvimento de práticas científicas nos anos iniciais
do Ensino Fundamental e reforçar o papel do professor de oportunizar, instigar e
valorizar as interações discursivas na sala de aula.
Nessa perspectiva, a mediação do professor nos momentos de interação torna-se
um elemento fundamental para proporcionar ao aluno novas oportunidades de
aprendizagem, favorecendo a construção e inserção das crianças nas práticas científicas.
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MUNFORD, D; LIMA; M. E. C de C. Ensinar ciências por investigação: em quê
estamos de acordo? In: Revista Ensaio. v. 9, n. 1, 2007. p. 72-89.
YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Trad. Daniel Grass. 2. ed. Porto
Alegre: Bookman, 2001.
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DIDÁTICA E SUBVERSÃO DE SABERES: UM OLHAR PARA PRÁTICAS
MATEMÁTICAS NOS ANOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Resumo
Fundamentalmente, as pesquisas em Didática da Matemática têm se ocupado com a
constituição de mecanismos de valoração dos aspectos didáticos que circunstanciam os
processos de ensino, de aprendizagem e de avaliação da matemática escolar. Neste
artigo, apresentamos um ensaio teórico-filosófico que busca problematizar como esses
mecanismos, se tomados de modo descuidado, podem atuar como dispositivos de
domesticação da escola: uma série de táticas e de estratégias que visam eliminar,
restringir, coagir, neutralizar ou controlar o espaço escolar, desviando-o de um sentido
de tempo livre que, outrora, lhe fora atribuído. Junto a um episódio sobre o ensino de
funções em uma turma de nono ano do Ensino Fundamental, apresentamos as
dimensões epistêmica e cognitiva do mecanismo de valoração da idoneidade didática
(GODINO et al., 2006) e, ao questioná-lo, tratamos dos modos como os saberes
institucionalmente construídos e priorizados pelos processos didáticos podem ser
subvertidos, convidando-nos a pensar novas práticas educativas no espaço escolar. Essa
subversão não pretende vincular o saber produzido a um mundo dado, com objetivos e
finalidades previamente definidos, mas produzir um mundo no qual os objetos, as
linguagens e as subjetividades vão se compondo na medida em que o próprio mundo é
produzido. Defendemos, assim, uma didática que tome o traduzir, o verter, o recriar, o
romper e o recomeçar como ações. Procuramos pensar a educação como ato criador e
os processos didáticos como acontecimentos abertos nos quais os saberes rompam com
as formas inerciais de relacionar-se com a matemática, preocupando-se com as
experiências formativas dos sujeitos da educação.
Palavras-chave: Didática. Educação Matemática. Filosofia da Educação Matemática.
Apresentando a discussão
Segundo Godino et al. (2006), a didática da matemática deveria aportar
conhecimentos para a análise da adaptação e pertinência dos conteúdos matemáticos a
um determinando projeto educativo; dos meios tecnológicos e temporais adequados
para colocar em movimento um processo de estudo matemático; do tipo de interação
entre professor e alunos que permita identificar e resolver as dificuldades e conflitos nos
processos de estudo matemático; da adaptação entre os objetos formativos e as
capacidades e competências prévias dos alunos, assim como seus interesses, afetividade
e emoções; da pertinência dos significados pretendidos (e implantados), dos meios
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usados e dos padrões de interação ao projeto educativo da escola e o contexto em que se
desenvolve o processo de estudo.
Ao analisar o percurso das investigações sobre a didática da matemática,
percebemos que, inevitavelmente, essas investigações centram seu interesse na
problematização de como deve ser uma aula de matemática, com atenção ao ensino,
como divulgação de ideias, ou à aprendizagem, como pesquisa empírica (D’AMORE,
2007). Seja construindo críticas e/ou vislumbrando cenários de melhoria, essas
pesquisas, por meio da descrição e análise de práticas escolares, constituem mecanismos
de valoração dos aspectos didáticos que circunstanciam os processos de ensino, de
aprendizagem e de avaliação da matemática escolar.
Nesse sentido, Godino et al. (2006), em um estudo teórico, propõem um modo
de descrever os processos de ensino e aprendizagem da matemática, bem como valorar a
idoneidade didática – expressão utilizada pelos autores – de tais processos. Nosso
objetivo ao convidar esse trabalho é discorrer sobre como a valoração das diversas
dimensões da sala de aula de matemática, amplamente empreendida pelas investigações
em didática da matemática, está associada a um processo de domesticação da escola,
propondo pensar como esses critérios, em seus componentes e descritores, atuam como
“uma série de táticas e de estratégias para eliminar, restringir, coagir, neutralizar ou
controlar a escola” (SIMONS; MASSCHELEIN, 2014, p. 98. Tradução nossa).
Note-se, contudo, que não pretendemos nos contrapor às discussões presentes no
trabalho de Godino et al. (2006). O objetivo ao mobilizar tal trabalho é apenas o de
apropriarmo-nos das ferramentas de valoração da idoneidade didática propostas pelos
autores para, junto a elas, promover deslocamentos que dizem de sentidos outros para a
educação.
A didática da matemática entre critérios de valoração e domesticação da escola
Como destacamos, Godino et al. (2006) propõem um modo de descrever os
processos didáticos envolvidos na dinâmica do ensinar e aprender matemática no
ambiente escolar, valorando tais processos. Para a valoração da idoneidade didática, são
estabelecidos critérios em diversas “dimensões”, sendo destacada pelos autores a
epistêmica, a cognitiva, a interacional, a mediacional, a emocional e a ecológica. Cada
uma dessas dimensões não é, evidentemente, tratada de modo isolado, já que a
configuração de uma pode afetar diretamente outra, outras ou todas.
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Optamos neste momento por percorrer duas dessas dimensões, a epistêmica e a
cognitiva, buscando evidenciar que, se tomada de modo descuidado, essa proposta de
valoração pode atuar como instrumento de domesticação da escola, desvinculando-a do
sentido de tempo livre que discutimos anteriormente. Procuramos, assim, promover
sutis deslocamentos nessas dimensões, problematizando-as não em um sentido de
desqualificação, mas na abertura de discussões que coloca em questão os modos como
temos pensado a relação entre a Didática da Matemática e os processos de valoração tão
presentes na atualidade da educação escolar.
A dimensão epistêmica estaria ligada ao “grau de representatividade dos
significados institucionais implantados (ou previstos), no que diz respeito a um
significado de referência” (GODINO et al., 2006, p. 4. Tradução nossa), incluindo
também outras configurações epistêmicas que constituem a trajetória que envolve os
problemas, as ações, as linguagens, as definições, as propriedades e os argumentos
mobilizados em situações de ensino-aprendizagem de conceitos matemáticos.
Poderíamos dizer, dada essa compreensão, que a idoneidade epistêmica refere-se à
qualidade da matemática ensinada; interessando olhar, fundamentalmente, para como a
dinâmica da sala de aula opera com os significados institucionais.
Ao valorar um processo de ensino-aprendizagem da matemática a partir desse
aspecto, estamos atribuindo uma centralidade à matemática institucionalizada – aquela
prevista em currículos, programas oficiais, livros-didáticos e tantos outros documentos
– na educação escolar. Essa centralidade supõe uma maior valoração dessa matemática,
tornando secundárias outras matemáticas que permeiam ou que podem permear o
ambiente escolar. Nesse sentido, a aprendizagem matemática ganha uma
responsabilidade muito específica do ponto de vista epistêmico: ela deve reportar-se aos
conteúdos matemáticos institucionalizados, respondendo positivamente a essas
imposições.
Por mais que a análise da idoneidade epistêmica avalie a riqueza do processo de
ensino-aprendizagem da matemática, levando em consideração a multiplicidade de
questões, linguagens e implicações que o processo dispõe e/ou pode gerar, centralizar a
matemática institucionalizada é um modo de domesticar a escola. Nessa domesticação,
a possibilidade que tem o aluno de implicar-se com o objeto matemático e mobilizá-lo
em um sentido de profanação se perde em nome das significações usuais, sendo o tempo
escolar, o tempo livre, convertido em tempo produtivo no qual a matemática se mantem
na via da estratificação. Aprender matemática significaria, então, conservar as
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finalidades dos conteúdos matemáticos institucionalizados, seja no âmbito da
reprodução ou da aplicação usual de cada um deles.
Contudo, como pensar a idoneidade epistêmica para além desse aspecto de
submissão à matemática institucionalizada? Um movimento interessante poderia ser
partir de uma contraposição à ideia de que a escola é um ambiente de aprendizagem.
Ora, se aprendemos em várias dimensões de nossa vida, dentro ou fora da escola, não é
a aprendizagem que faz com que uma escola seja uma escola. Isso, no entanto, não quer
dizer que em uma escola não se aprenda: nela acontece uma “forma de aprendizagem na
qual se desconhece de antemão o que poderá aprender”, configurando-se como um
“acontecimento aberto que só pode suceder se não há um propósito final e uma
funcionalidade externa estabelecida” (SIMONS; MASSCHELEIN, 2014, p. 85.
Tradução nossa).
Se a aprendizagem na escola implica, então, abertura sem finalidade, o próprio
sistema de valoração necessita ser revisitado. A convergência entre as aprendizagens
escolares de matemática com aquelas institucionalizadas deve ser apenas um dos
aspectos levados em consideração no processo de valoração da idoneidade didática em
sua dimensão epistêmica, permitindo que outras compreensões emerjam e se sustentem.
Aqui, tomaremos as palavras de D’Ambrósio (2007): “a crítica que faço à epistemologia
é o fato dela focalizar o conhecimento já estabelecido, de acordo com os paradigmas
aceitos no tempo e no momento” (p. 37). Evidentemente, cabe também ao processo
mostrar ao educando que existem aprendizagens historicamente legitimadas e que, pela
importância social, devem ser perseguidas e compreendidas. Encontrar um território
fronteiriço seja, talvez, uma dos maiores compromissos da educação escolar.
Outra dimensão destacada no processo de valoração da idoneidade didática é a
cognitiva, que “expressa o grau em que os significados pretendidos/implantados estão
na zona de desenvolvimento potencial dos alunos, assim como a proximidade dos
significados pessoais alcançados aos significados pretendidos/implantados” (GODINO
et al., 2006, p. 5. Tradução nossa). Nessa dimensão importam, por exemplo, aspectos
ligados ao conhecimento prévio dos estudantes para aprendizagem de um determinado
tema e aos modos como os significados pretendidos podem ser alcançados em seus mais
variados componentes.
Ocorre que, muitas vezes, o sentido da cognição em matemática, com foco na
aprendizagem, é dado pelo viés do reconhecimento. Clareto (2013) afirma que “Talvez
possamos dizer que a educação matemática tem colocado o problema da aprendizagem
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em termos de representação, em sentido forte, na acepção de uma imagem universal do
pensamento”, importando, assim, os sentidos que tratam a “aprendizagem como
passagem ou transição natural e um estado de não saber para um estado de saber”
(CLARETO, 2013, p. 65). Ao operar ao lado de uma imagem universal do pensamento,
a aprendizagem torna-se modo de representação do mundo e o conhecimento se
configura por meio de regras e saberes previamente estabelecidos. Trata-se, então, de
uma política cognitiva em que a aprendizagem está indissociavelmente ligada ao ensino:
“aprender é reter algum conhecimento ensinado por alguém” (CLARETO, 2013, p. 66).
Contudo, a autora aponta outros caminhos para essas perspectivas, propondo um
olhar sobre uma constituição mútua si-matemática que interroga a própria matemática
como ciência preexistente ao sujeito do conhecimento. Abre-se a possibilidade de
pensar a matemática inventando-se e sendo inventada no processo de ensino-
aprendizagem; uma matemática mais distante daquela estabelecida na reprodução de
conteúdos em sala de aula. A dimensão cognitiva assim pensada desloca o olhar dos os
extremos do processo de aprendizagem – dos pré-requisitos para os conteúdos
almejados – para a atenção aos processos de invenção de uma matemática singular no
espaço da sala de aula.
Ainda sobre essa perspectiva, Cammarota (2013)i destaca que:
A aprendizagem aqui surge muito mais como processo de
subjetivação que aquisição de conhecimentos ou informações.
Aprender é tornar-se. Aprendizagem como invenção de si. […]
colocar o problema da aprendizagem inventiva implica em um
desaprender regras de funcionamento constitutivas da subjetividade a
todo o tempo, colocando-a em movimento. Correlata, simultânea e
reciprocamente, a invenção de si implica a invenção, naquela
atividade, de uma geometria singular. Assim, aprendizagem como
invenção de si e do mundo. Aprendizagem como problematização.
Uma política cognitiva de invenção. (CAMMAROTA, 2013, p. 104)
.
Se a aprendizagem se aproxima do constituir-se matemática e educando,
mutuamente, como olhar para dimensão cognitiva? Talvez, desviando nossos olhares
das distâncias que ligam os pré-requisitos aos objetivos para os processos que dizem de
uma matemática inventando-se sem caminhos antecipáveis ou, como comenta
Cammarota (2013), na desaprendizagem do estabelecido. Trata-se de uma educação do
olhar para o não normatizado e o não normalizado: uma matemática que também na
singularidade, na constituição de novos modos de existir, encontra sua legitimidade e
importância.
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Tomadas essas concepções epistemológicas e cognitivas, apresentaremos a
seguir um episódio ocorrido em uma aula de matemática de uma turma de nono ano do
Ensino Fundamental. Esperamos, com essa narrativa, delinear algumas discussões que
coloquem a didática da matemática como problema.
Palitos e triângulos: colocar a Didática da Matemática como problema
O episódio que apresentaremos nesta seção ocorreu em uma atividade
desenvolvida com alunos do nono ano do Ensino Fundamental de uma escola pública do
município de Juiz de Fora (MG)ii. O objetivo da atividade era buscar uma associação
numérica para a situação apresentada, a partir de um processo de experimentação O
passo inicial foi o de incentivá-los, individualmente, a construir tabelas, criar desenhos e
outras formas de registro para perceber como se comportava a relação entre o número
de palitos e o número de triângulos. Procurávamos chegar a uma lei que descrevesse o
número de triângulos em função do número de palitos, observando uma possível
dependência existente entre essas duas grandezas nesse contexto. Tratava-se, então, de
aula introdutória sobre o tema funções.
Vamos tentar vencer um desafio? Trata-se de uma atividade com
palitos de fósforo na qual você deve construir triângulos que tenham
todos os lados iguais, de tal maneira que os triângulos sejam todos
iguais entre si. É possível formar triângulos com quaisquer números
de palitos? O grande desafio é tentar uma forma de saber quantos
triângulos poderiam ser construídos com um número qualquer de
palitos (esse número qualquer pode ser muito grande). Pense sobre
isso e tente explicitar uma forma de sempre saber o número de
triângulos formados, dado o número de palito e vice-versa.
Os alunos foram construindo, livremente, seus padrões e
confeccionando suas tabelas e outras formas de registros. Algumas
folhas de papel pardo foram fixadas na lousa – de modo a serem
preenchidas pelos alunos – contendo tabelas com duas colunas:
número de palitos e número de triângulos.
Os alunos foram convidados a apresentar suas elaborações.
Cassiana foi, voluntariamente, a primeira aluna. Pedimos que a aluna
desenhasse o padrão por ela elaborado e completasse uma das
tabelas. O trabalho de Cassiana consistia no seguinte:
Figura 1 – Representação do padrão geométrico elaborado por Cassianaiii
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Tabela 1 – Representação da tabela elaborada por Cassiana
Número de Palitos Número de Triângulos
0 0
1 0
2 0
3 1
4 1
5 1
6 2
… …
Perguntamos aos demais alunos se alguém havia utilizado um
padrão diferenciado. Nesse momento, Luiz Fernando se ofereceu para
ir à lousa e apresentar o seu trabalho.
Figura 2 – Representação do padrão geométrico elaborado por Luiz
Fernando
Tabela 2 – Representação da tabela elaborada por Luiz Fernando
Número de Palitos Número de Triângulos
0 0
1 0
2 0
3 1
4 1
5 2
6 2
… …
A turma parecia perceber, até aqui, a possibilidade de
existência de padrões distintos. Perguntados sobre o porquê de serem
diferentes, os alunos apontaram para a tabela, afirmando que,
segundo o padrão de Luiz Fernando, era necessário um número
menor de palitos para formar triângulos. “No primeiro [de Cassiana]
os palitos vão de três em três e no segundo [de Luiz Fernando] vão de
dois em dois”, justificaram.
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Marina disse, nesse momento, que seu padrão era diferente dos
dois outros expostos na lousa. Pedimos que ela mostrasse aos demais
alunos o padrão geométrico e a tabela por ela desenvolvidos,
resultando na seguinte apresentação:
Figura 3 – Representação do padrão geométrico elaborado por Mariana
Tabela 3 – Representação da tabela elaborada por Mariana
Número de Palitos Número de Triângulos
0 0
1 0
2 0
3 1
4 1
5 2
6 2
… …
Os alunos notaram que o padrão de Marina gerava a mesma
tabela do padrão de Luiz Fernando. Contudo, quando perguntamos se
as duas relações eram iguais, os alunos disseram que não, pois “os
desenhos são diferentes”.
Destacamos como ponto central da narrativa a última afirmação dos alunos: as
relações não são iguais, pois “os desenhos são diferentes”. É possível que,
matematicamente, duas relações numéricas idênticas, que associam o número de palitos
e o número de triângulos, produzam funções diferentes?
Na perspectiva de uma matemática institucionalizada, duas funções (relações
com condições específicas entre conjuntos) são iguais quando possuem o mesmo
domínio, lei de formação e imagem. A igualdade de funções não estaria pautada,
portanto, na disposição geométrica dos palitos na folha, mas na relação numérica que
essa disposição promove. Funções se relacionam com relações numéricas promovidas
entre dois conjuntos e não com os modos pelos quais essas relações são confeccionadas.
A questão que se coloca, contudo, é a seguinte: a operação dos alunos – “as relações não
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são iguais, pois os desenhos são diferentes” – pode ser compreendida como um
conhecimento matemático?
Suspeita-se que muitos desviariam de uma resposta direta para essa questão.
Outros, provavelmente, diriam que se os alunos seguissem na aprendizagem escolar
mantendo-se nessa afirmação obstáculos apareceriam, já que o produto dessa operação
não se produz em meio aos conhecimentos estabelecidos pela matemática
institucionalizada. Poderiam, ainda, dizer que o feito dos alunos em designar tais
relações como diferentes aponta para uma potente possibilidade de produção de um
conhecimento matemático institucionalizado, já que permite, após reconfigurações,
convergir para o conceito de função, fim do processo didático em questão. Depois de
construído o conceito, pouco importariam as disposições geométricas dos triângulos,
mas apenas as relações numéricas que podem ser estabelecidas e as leis e condições que
dizem dessa relação.
As propostas para pensar a educação escolar de Simons e Masschelein (2014)
levam, contudo, a outros esboços de uma resposta para essa questão. Ao pensar a escola
em seu sentido de tempo livre, dois aspectos parecem basais: a conversão do saber em
bem comum e o espaço escolar como espaço não produtivo.
O saber como bem comum rompe com as posições hierárquicas dos saberes e
com a individualização de sua produção, insinuando uma postura pedagógica atenta à
dimensão coletiva do conhecimento. No episódio, a fala dos alunos – as relações não
são iguais, pois os desenhos são diferentes – permite modulações de um saber em que as
hierarquias que definem posições de estados, como aquele que sabe e aquele que não
sabe, são colocadas em jogo na medida em que o conhecimento brinca com o
estabelecido e com o esperado.
Quando perseguido, esse saber pode trazer ao processo didático a possibilidade
de remodelar e torcer com as formas de existir da escola, do professor, do currículo, do
aluno e, dentre tantas outras, da própria matemática. Percebe-se que o que garante a
igualdade entre as relações palito-triângulo nesse episódio não é somente a regularidade
numérica expressa pela tabela, mas também a disposição geométrica dos palitos na
folha. Esse saber não se encontra arraigado somente na correspondência entre o número
de palitos e o número triângulos, mas também no processo pelo qual se confeccionou
esse tipo de relação: um saber que mergulha em problemáticas de um coletivo, que se
situa localmente nas micropolíticas da sala de aula e que pode ser tratado em sua
potência criadora, convertendo-se em bem comum.
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Essa criação, contudo, não pode ser pensada na direção do produto, mas do
processo. De tal modo, a escola converte-se em espaço não produtivo, insinuando
também outros caminhos para os processos didáticos da matemática. Aqui, o aprender
não está direcionado à finalidade, mas à operacionalidade: aprender como modo de
dispor objetos, linguagens e subjetividades em um espaço que institucionalmente se
legitima como matemático. Aprender não seria, então, reportar-se aos conhecimentos
previamente estabelecidos, mas justamente desviar-se desses: trata-se de escapar.
A relação palito-triângulo, institucionalmente concebida na exclusão do padrão
geométrico, toma no episódio a configuração de um saber sem finalidade. Para que
serve pensar relações numéricas levando em consideração disposições geométricas? A
resposta a essa pergunta direciona a uma página em branco na qual nenhuma finalidade
pode ser previamente rascunhada. O saber construído não pretende, portanto, vincular-
se a um mundo dado, com objetivos e finalidades postas, mas produzir um mundo no
qual os objetos, as linguagens e as subjetividades vão se compondo na medida em que o
próprio mundo é produzido, em medos e inseguranças. Ao convidar o padrão
geométrico para delimitar a igualdade dessa relação e ao sair de um espaço reconhecível
pela tradição, permite explorar as bordas, as periferias, os espaços de problematização
dos saberes instituídos. Por que o saber institucionalizado não considera as disposições
geométricas? Nos limiares do pensamento, no aventurar-se no exterior, questões que
ainda não possuem uma forma de expressão estabelecida, que nascem e morrem e já não
existem, são autorizadas e podem ser perseguidas.
Os dois aspectos que dizem da escola em seu sentido de tempo livre – o bem
comum e o espaço não produtivo – convidam, inevitavelmente, a colocar algumas
questões. Se a didática da matemática deve reporta-se aos conhecimentos para a análise
da adaptação e pertinência dos conteúdos matemáticos, como afirma Godino et al.
(2006), seria possível pensá-la junto aos processos de diferenciação dos saberes? É
possível pensar uma didática da matemática sensível aos saberes singularmente
produzidos nas micropolíticas de uma sala de aula?
Compondo com uma questão próxima, Corazza (2015, p. 107) escreve que
“didática e diferença seriam incompossíveis; logo, a princípio, uma didática da
diferença seria impossível de ser pensada”. Para colocar a didática como problema é
fundamental, então, deixar vazar seus significados usuais: uma didática que se afasta da
adaptação e da pertinência para ser pensada como tradução da tradição, que se impregna
por atos criadores e que consegue “maquinar didaticamente, com uma especificidade
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prazerosa, aventureira e aventurosa” (CORAZZA, 2015, p. 105). Didática que briga e
brinca com conceitos estabelecidos, que traduz as matérias originais da tradição – da
arte, da ciência e da filosofia – e que as leva a compartilhar espaços/tempos de inter-
esse, explorando distâncias entre objetos e linguagens que, em suas heterogeneidades,
vão se compondo de forma anacrônica. Trata-se, então, de uma
[…] concepção de didática como um movimento do pensamento, uma
direção tradutória dos atos curriculares – por si próprios,
transcriadores de elementos artísticos, filosóficos e científicos.
Tradução, que implica menos transportar ou transpor […] os sentidos
de uma língua para outra e mais verter ou recriar: dotando-se da
consistência de romper com o estabelecido; empreendendo novos
recomeços; apropriando-se do antigo ou do estrangeiro e tornando-os
seus, ao entrecruzá-los com a língua didática e fazer ressoar a sua voz.
(CORAZZA, 2015, p. 108)
Porém, a didática como traduzir, verter, recriar, romper ou recomeçar pede por
uma escola que tencione, invente, suspenda e profane. Instiga pensar a educação e a
tradução como atos criadores e os processos didáticos como acontecimentos abertos nos
quais os saberes rompam com as formas inerciais de relacionar-se com a matemática,
preocupando-se com os processos formativos dos sujeitos da educação. Uma didática da
tradução firma, assim, uma luta contra os processos da tradição que impregnam o
espaço escolar com a definição e a imposição dos usos sociais e laborais dos saberes.
No episódio, diferentes objetos, linguagens e modos de subjetivar-se se
encontram: há uma relação palito-triângulo de um currículo que, por meio de uma
língua didática, direciona-se a fins estabelecidos e a modelos representacionais; e há
pelo menos uma outra relação palito-triângulo que exige por uma língua didática “com a
condição de que cada língua esqueça a própria origem para se tornar dupla de si
mesma”, fazendo com que a tradução, o ato de criação que dispõe objetos, linguagens e
subjetividades outros, “não assimile, mas aproxime distâncias, numa espécie de
heterofilia, que desfaz as identidades sedentárias” (CORRAZA, 2015, p. 110). Uma
língua didática menos balizada por teorias e práticas pedagógicas e mais atenta às
experiências e seus desdobramentos na produção de pensamento e subjetividade.
Não se sabe, ainda, em que medida as provocações – e, porque não, proposições
– apresentadas neste texto podem ser desdobradas em propostas e ações. Entretanto, está
claro que a atenção a essas questões pode produzir novos caminhos para os aspectos
ligados ao ensino, à aprendizagem e à avaliação da matemática escolar, minimizando as
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tentativas de eliminar, restringir, coagir, neutralizar ou controlar o espaço escolar por
meio do previamente estabelecido. Pensar essas questões é criar elos com modos de
pensar a educação que a desvencilham dos mundos sociais e laborais tão fortemente
tomados como fins últimos da educação escolar. É, portanto, uma tentativa de
minimizar as ações de domesticação da escola.
Referências
CAMMAROTA, Giovani. Fabulações e modelos ou como políticas cognitivas
operam em educação matemática. 2013. 154 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Faculdade de Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2013.
CLARETO, Sônia Maria. Entre maçãs e números: a sala de aula de matemática,
políticas cognitivas e educação matemática. Horizontes, v. 31, n. 1, p. 63-70, jan./jun.
2013.
CORAZZA, Sandra Maria. Didática da tradução, transcriação do currículo (uma
escrileitura da diferença). Pro-Posições, v. 26, n. 1, p. 105-122, jan./abr. 2015.
D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. 5.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
D’AMORE, Bruno. Elementos de didática da matemática. Tradução de Maria C.
Bonomi. São Paulo: Livraria da Física, 2007.
GODINO, Juan Días et al. Análisis y valoración de la idoneidad didáctica de procesos
de estudio de las matemáticas. Paradigma, v. 27, n. 2, p. 1-24, dez. 2006. Disponível
em: <http://www.ugr.es/~jgodino/funciones-semioticas/idoneidad-didactica.pdf>.
Acesso em: 28 nov. 2015.
SIMONS, Maarten; MASSCHELEIN, Jan. Defensa de la escula: una cuestión pública.
Tradução de Antonio F. R. Esteban. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2014.
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PRÁTICAS DE LETRAMENTO ESTATÍSTICO EM CONTEXTOS
COLABORATIVOS E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DOCENTE
Keli Cristina Conti
Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo: Este artigo é baseado numa pesquisa de doutorado que buscou compreender a
experiência formativa e o desenvolvimento profissional de professores e futuros
professores da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental na
perspectiva do letramento estatístico em contextos colaborativos. Tais contextos se
constituíram a partir da formação de um grupo que se reuniu para estudar Estatística. O
grupo foi formado por professores, futuros professores e uma pesquisadora de uma
cidade do interior do estado de São Paulo. No percurso da pesquisa foram utilizados,
entre outros autores, aportes teóricos de Barton e Hamilton (2004), Street (2004; 2008)
e Rojo (2009; 2010) relativos ao letramento; Batanero (2002; 2013); Gal (2002),
Watson (2002; 2006) e Lopes (2008; 2011) relativos à Educação Estatística e ao
letramento estatístico; no que diz respeito ao desenvolvimento profissional, nossos
principais aportes foram Ponte (1995; 2011) e Fiorentini (2009; 2010), além de
Hargreaves (1998) para compreender nosso contexto colaborativo. Em abordagem
qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994), este configurou-se como um estudo de caso
composto pelos participantes do grupo de estudos. Depois da observação e da descrição
dos dados (vídeos, diário de pesquisa e outros materiais), escolhemos alguns momentos
videogravados que, após transcritos, foram analisados à luz do referencial teórico. Com
o trabalho no grupo que buscou ser colaborativo, consideramos que contribuímos para o
desenvolvimento profissional de professores e futuros professores da Educação Infantil
e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, os quais foram se percebendo capazes de
lidar com a Estatística, confiantes de que poderiam trabalhar com seus estudantes numa
perspectiva de letramento estatístico e assumindo-se como produtores de conhecimento.
Palavras-chave: Estatística – Estudo ensino. Letramento. Práticas formativas.
Introdução
A literatura especializada em Educação Estatística é clara quanto aos desafios que
lança à comunidade educativa. Os professores, em particular os dos anos iniciais,
constituem um grupo bastante solicitado a se desenvolver e a aperfeiçoar a prática
pedagógica por serem eles os que despertam os estudantes para o conhecimento,
inclusive o de Estatística. Partindo desse pressuposto, criou-se um grupo de estudos
sobre aprender e ensinar Estatística – de nome Estatisticando –, que se almejava
colaborativo, composto por diferentes profissionais ligados à educação, formados ou em
formação e com experiências diversas no âmbito da Educação Estatística.
Este artigo portanto, é baseado em uma pesquisa de doutorado, concluída em 2015,
cujo objetivo principal foi compreender a experiência formativa e o desenvolvimento
profissional de professores e futuros professores da Educação Infantil e dos Anos
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Iniciais do Ensino Fundamental na perspectiva do letramento estatístico em contextos
colaborativos.
Começamos por explicitar o que entendemos sobre letramento e letramento
estatístico, num segundo momento, revisitamos o conceito de desenvolvimento
profissional dos professores, em particular no que se refere à Educação Estatística,
destacando como o envolvimento em contextos colaborativos promove tal
desenvolvimento. Por fim, apresentamos e discutimos os resultados que apontam como
o envolvimento num contexto colaborativo pode levar ao desenvolvimento profissional.
Letramento e letramento estatístico
Quando analisamos o termo “letramento” no contexto brasileiro, temos
articulados a ele os conceitos de alfabetização e de letramento. Segundo Soares (2003),
alfabetizar-se é deixar de ser analfabeto, e ela esclarece, também, que o termo
“alfabetizado nomeia aquele que apenas aprendeu a ler e a escrever, não aquele que
adquiriu o estado ou a condição de quem se apropriou da leitura e da escrita,
incorporando as práticas sociais que as demandam” (p. 19). Referindo-se a letramento,
Soares (2003) menciona “o estado ou condição de quem interage com diferentes
portadores de leitura e de escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita,
com as diferentes funções que a leitura e a escrita desempenham em nossa vida” (p. 44),
e o define, resumidamente, como “estado ou condição de quem se envolve nas
numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita” (p.44).
Para Gal (2002, p. 2), o vocábulo letramento tem sido “combinado com termos que
denotam domínios de conhecimento específico” ou, dito de outro modo, com dimensões
de outra natureza, como letramento escolar, letramento social ou não escolar, letramento
computacional, letramento científico, letramento estatístico, entre outros.
Gal (2002, p. 1) considera o letramento estatístico como “uma competência
esperada de cidadãos em sociedades sobrecarregadas de informação, frequentemente
vista como um resultado esperado da escolaridade e como componente necessário do
letramento e da numeracia de adultos”.
Gal (2002) propõe o que chama de “um modelo de letramento estatístico”, ou
seja, um modelo das bases de conhecimento que os adultos, e também os estudantes em
processo de formação, deveriam ter disponíveis para poderem compreender, analisar e
criticar as estatísticas que nos cercam, baseado em “elementos de conhecimento” e
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“elementos de disposição” que, segundo o autor, não ocorrem separadamente, embora
sejam descritos dessa forma para facilitar a apresentação e o entendimento de suas
dimensões. Budgett e Pfannkuch (2007) acrescentaram ao modelo de letramento
apresentado por Gal (2002), o que chamam de “componente de raciocínio”. Procuramos
sintetizar as ideias de letramento estatístico de Gal (2002) e Budgett e Pfannkuch (2207)
no esquema a seguir (Figura 1):
Figura 1: Modelo de letramento estatístico baseado em Gal (2002) e Budgett e Pfannkuch
(2007).
Fonte: Elaborado pela autora.
Explorando o que Gal (2002) classifica como “elementos de conhecimento”,
temos as “habilidades de letramento” – letramento compreendido em seu sentido mais
geral e próximo do que trouxemos com Soares (2003). A necessidade dessas habilidades
surge do fato de as mensagens estatísticas apresentarem-se em textos orais ou escritos e
porque informações dessa natureza, muitas vezes, estão inseridas em textos complexos.
Ou seja, tais habilidades são essenciais para as de ler e escrever em práticas sociais. Gal
(2002, p. 7) aponta ainda que “o letramento estatístico e o letramento geral estão
interligados”. O “conhecimento estatístico” implica: saber como os dados podem ser
produzidos e por que são necessários; familiarizar-se com os termos básicos, com ideias
da estatística descritiva, com representações em gráficos e tabelas, incluindo sua
interpretação, com noções básicas de probabilidade; conhecer como as conclusões são
alcançadas naquela realidade, traduzindo esse conhecimento de modo que esclareçam se
houve compreensão. Com relação ao “conhecimento estatístico”, Gal (2002) ainda
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completa que incluir em um curso uma grande quantidade de conteúdo estatístico não é
suficiente para garantir o letramento estatístico.
Com relação ao “conhecimento matemático”, destacamos o papel de apoio que
este vem dar não só ao letramento estatístico, mas ao conhecimento estatístico;
entretanto, ele – o conhecimento matemático – não pode ser o centro do processo, pois
existem recursos tecnológicos de apoio, como calculadoras e computadores. O
“conhecimento contextual”, segundo Gal (idem), “é a fonte de significado e a base para
a interpretação dos resultados obtidos”, ou seja, é por meio dele que se compreende o
que significam, no contexto, os dados que foram gerados. E o “questionamento crítico”
aparece como forma de avaliação crítica das informações estatísticas, principalmente
devido à forma que, muitas vezes, essas informações podem assumir, como, por
exemplo, a do abuso intencional dos dados, apresentados de forma sensacionalista.
Quanto ao que Gal (2002) chama de “elementos de disposição”, que estamos
entendendo como posicionamento, há uma ênfase na interligação dos conceitos de
posição crítica, de concepções e de atitudes. A posição crítica está relacionada à atitude
de questionamento das informações que nos chegam, pois certas concepções e atitudes
estão “na base da posição crítica das pessoas” e estas devem confiar em seu poder de
ação crítica.
Segundo Budgett e Pfannkuch (2007) o “componente de raciocínio”, acrescentado
ao modelo é composto por dois elementos: o conhecimento da argumentação estatística
e a visualização em eventos diários a partir de uma perspectiva estatística. Os autores
acrescentam ainda que o conhecimento da argumentação incluiria o raciocínio
inferencial da Estatística e a construção de declarações estatísticas baseadas em dados e
gráficos e o conhecimento em eventos cotidianos envolveria a consciência heurística
que as pessoas usam para o raciocínio e a visualização sobre generalizações, todos os
dias, em eventos da vida, do ponto de vista estatístico.
Em síntese, Gal (2002, p. 19) afirma que o “comportamento estatisticamente
letrado” precisa da ativação inter-relacionada dessas bases de conhecimento (elementos
de conhecimento), mencionadas na Figura 1, na presença da disposição crítica com
apoio de crenças e atitudes. Gal (2002, p.19) realça “o papel-chave que fatores e
componentes não-estatísticos desempenham no letramento estatístico e refletem a
natureza abrangente frequentemente multifacetada das situações nas quais o letramento
estatístico pode ser ativado”, que chamamos de elementos de disposição. Acreditamos
também que os componentes acrescentados por Budgett e Pfannkuch (2007), o
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elemento de raciocínio, amplia a percepção de que, ao dar um parecer, seu raciocínio
deve ter evidências baseadas não apenas em opiniões pré-existentes.
Relacionando a letramento e a Estatística, Watson (2002, p. 27) completa: “o
letramento estatístico não deveria ser considerado como responsabilidade exclusiva dos
professores de Matemática, excluindo professores de outras áreas curriculares”; ou seja,
é quase impossível levar o estudante a construir conhecimento, argumentar e apropriar-
se das ideias estatísticas, fechando-nos no conteúdo estatístico e/ou matemático
Questionamo-nos sobre como formar estudantes nessa perspectiva de letramento
estatístico, por meio da qual os estudantes podem realizar uma efetiva e significativa
aprendizagem, ou seja, aquela que lhes sirva de ferramenta para que consigam interagir
nas mais diversas práticas sociais que vivenciam no seu dia-a-dia de cidadãos, ao invés
de um conhecimento instrumental estatístico, baseado em uma coleção isolada de regras
e algoritmos aprendidos pela repetição e pela rotina, com professores que atuam ou
atuarão em todas as disciplinas – inclusive a Matemática – dos anos iniciais do Ensino
Fundamental (estudantes de 6 a 10 anos), cujos conhecimentos são ainda incipientes.
O contexto colaborativo e o desenvolvimento profissional dos professores em
Estatística
Segundo Batanero (2002), o fato de conteúdos estatísticos fazerem parte dos
currículos oficiais de muitos países – a exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(Brasil, 1997)– não implica, obrigatoriamente, que sejam ensinados nos diversos níveis
escolares.
Paralelamente às questões curriculares e do domínio de competências pela
população, surgem os questionamentos relativos à necessidade de formação – didática e
de conteúdo – dos professores que ensinam Estatística (Batanero, 2002), pois esse pode
ser o motivo, muitas vezes, para não se dar a devida importância à temática. Sobre essa
formação de professores, Ponte (2011), menciona os caminhos que podem ser
assumidos, com foco maior ora no conteúdo, ora no currículo, ora na investigação.
Formação de professores emestatísticapode seguirmuitos
caminhos.Depende,por exemplo, de qual é a perspectiva assumidapara o
ensino deestatística.Na verdade, o caminhofaz a diferença quandotal ensinoé
centradoem: (a) conceitos-chave e procedimentos, medidas de computação
estatística eque representam dadosemexercícios de rotina, (b) manipulação de
dados,coleta,representação einterpretação de dadosprontos,fornecidos
peloprofessor, pelolivro didático ou pela internet, ou (c) fazendoinvestigações
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estatísticas, que envolvem um ciclo completodesde levantar questões,coletar,
analisar, interpretar e criticardadose argumentos (PONTE, 2011, p. 300).
Uma possibilidade para a formação dos professores, na perspectiva do letramento
estatístico e do caminho apontado por Ponte (2011), em que eles possam se formar
fazendo investigações é torná-los protagonistas de seu processo de desenvolvimento
profissional, ou seja, incorporando-os em grupos de investigação.
Nessa perspectiva de desenvolvimento profissional, “professores da escola e da
universidade, mestrandos e doutorandos e futuros docentes podem, juntos, aprender a
enfrentar o desafio da escola atual” (Fiorentini, 2011a, p. 7, grifo do autor). Estamos
assumindo, com Fiorentini (2004), que em um grupo colaborativo:
[...]todos trabalham conjuntamente (co-laboram) e se apoiam mutuamente,
visando atingir objetivos comuns negociados pelo coletivo do grupo. Na
colaboração, as relações, portanto, tendem a ser não-hierárquicas, havendo
liderança compartilhada e co-responsabilidade pela condução das ações.
(Fiorentini, 2004, p. 52)
Desejávamos que o grupo colaborativo se constituísse como uma comunidade de
aprendizagem profissional e de pesquisa sobre a prática de ensinar e aprender Estatística
nas escolas, na perspectiva que Fiorentini (2010) descreve:
Em cada grupo colaborativo os formadores, professores e futuros professores
analisam e discutem os problemas e desafios trazidos pelos professores,
episódios de aula narrados e documentados pelos professores, e negociam
conjuntamente significados e outras possibilidades de intervenção em suas
práticas escolares, sobretudo tarefas e atividades exploratório-investigativas
(FIORENTINI, 2010, p. 582).
Quando nos envolvemos nesse processo de desenvolvimento profissional, num
contexto colaborativo, o formador que investiga e apoia o processo, o professor e o
futuro professor, juntos desenvolvem um trabalho que requer, de acordo com Ferreira
(2003), identificar os conhecimentos teóricos e práticos para desenvolver um ensino
efetivo e significativo para os estudantes e assumir que os professores também
constroem conhecimento, analisando-os; tomando a aprendizagem como um processo
contínuo; levando em conta a contextualização e também a realidade escolar na qual
está inserido ou da qual futuramente fará parte.
Desejando criar um contexto colaborativo, na perspectiva de Fiorentini (2004,
2010), e constituir uma comunidade de aprendizagem profissional e de pesquisa sobre a
prática de ensinar e aprender Estatística nas escolas, é que planejamos o trabalho de
campo da pesquisa, que passará a ser detalhado a seguir, com a apresentação do grupo
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Estatisticando e seus participantes. Também detalharemos os aspectos metodológicos da
pesquisa
Metodologia da investigação
Querendo compreender as aprendizagens e o desenvolvimento profissional de
professores e futuros professores da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino
Fundamental (estudantes de 6 a 10 anos) quando estão num contexto colaborativo e são
instigados a trabalhar com Estatística numa perspectiva de letramento(s), caminhando
em direção ao letramento estatístico, objetivamos, do ponto de vista investigativo:
• Compreender o processo de desenvolvimento profissional na perspectiva do
letramento estatístico em contextos colaborativos, evidenciando indícios de
desenvolvimento de conhecimento e de desenvolvimento pessoal como participantes de
um grupo de professores e futuros professores que se reúnem para estudar Estatística.
Do ponto de vista formativo, enquanto grupo, também objetivamos:
• A partir dos eventos de letramento, contribuir para o desenvolvimento
profissional dos participantes, no que diz respeito ao conhecimento, perspectivando o
letramento estatístico, para que possamos criar situações em que eles venham a se
desenvolver pessoal e profissionalmente.
Na abordagem qualitativa, optamos pelo estudo de caso que, segundo Ponte
(2006), “visa conhecer uma entidade bem definida como uma pessoa, uma instituição,
um curso, uma disciplina, um sistema educativo, uma política ou qualquer outra unidade
social” (p. 2) e seu objetivo “é compreender em profundidade o “como” e os “porquês”
dessa entidade, evidenciando a sua identidade e características próprias, nomeadamente
nos aspectos que interessam ao pesquisador” (p. 2).
Assim, quisemos esquadrinhar os saberes, as reflexões, os conflitos, as
aprendizagens dos participantes desse grupo, a partir dessa proposta de investigação e
tendo como questão norteadora: Que indícios de desenvolvimento profissional
apresentam os professores e futuros professores da Educação Infantil e dos anos iniciais
do Ensino Fundamental, em contextos colaborativos em práticas de letramento
estatístico?
Então, a partir de um convite enviado, por e-mail, aos professores das escolas
vizinhas que atuavam na Educação Infantil, nos anos iniciais do Ensino Fundamental e
aos estudantes dos cursos de Pedagogia e Matemática de uma Instituição de Ensino
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Superior, de cunho privado, foi criado, no segundo semestre de 2010, o grupo
“Estatisticando”, considerado “nosso caso” que se reuniu regular e voluntariamente, de
Setembro de 2010 até Dezembro de 2011, totalizando 20 encontros.
No que se refere a recolha dos dados, foram utilizados gravações de áudio e vídeo,
ficha de identificação do perfil dos participantes preenchida individualmente e uma
caracterização oral, respondida em grupo, materiais trazidos pelos participantes do
grupo e narrativas produzidas pelos participantes do grupo.
O grupo chegou a ter 20 interessados, mas na maior parte do tempo, foi formado
por 9 participantes: Keli, pesquisadora e formadora de professores, que atuava nos
cursos de Pedagogia e Matemática; Silvana, professora aposentada, com experiência de
atuação na Educação Infantil (crianças de 3 a 6 anos); Eduardo, professor em início de
carreira, atuando nos anos iniciais do Ensino Fundamental (crianças de 6 a 10 anos);
Rosana, estudante de Pedagogia, que já atuava como professora na Educação Infantil;
cinco estudantes de Pedagogia, sendo que Roseli e Mie já realizavam atividade de
estágio nos anos iniciais do Ensino Fundamental, por estarem no último ano da primeira
graduação, e Thaynara, Érica e Cíntia encontravam-se no período inicial de estágio nos
anos iniciais do Ensino Fundamental, por estarem no 2.º ano da primeira graduação.
Todos os participantes concordaram que fosse usado seu primeiro nome na pesquisa.
Nos encontros, com duração aproximada de 50 minutos, procuramos nos inspirar
na dinâmica de trabalho e pesquisa de grupos colaborativos proposta por Fiorentini
(2011b). Nessa dinâmica de trabalho, os formadores atuam em função das demandas
dos professores e futuros professores, que trazem problemas e desafios das práticas
escolares, para juntos poderem estudar, problematizar, refletir, investigar e escrever
sobre a complexidade de se ensinar e aprender Estatística nas escolas.
Vale destacar, como previsto, que o grupo não agiu cooperativamente desde o
início. Nos primeiros encontros era esperado que a pesquisadora trouxesse os materiais
e conduzisse as reuniões; porém, gradualmente, todos passaram a participar mais das
decisões, assumindo responsabilidades no trabalho do grupo, preparando ou indicando
materiais, e o espaço foi se tornando mais colaborativo na medida em que a afinidade na
relação entre os participantes aumentava.
Nesse processo de efetiva colaboração, surgiu também o desejo de relatar, por
escrito, o processo vivido e as experiências desenvolvidas no grupo e com o apoio do
grupo, o que passaremos a expor.
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Produção de saberes no grupo
Embora almejássemos que os participantes pudessem escrever e compartilhar suas
experiências, essa não foi uma exigência para a participação no grupo e acreditamos
que, se isso fosse apresentado de início, poderia afastar os professores que não se
sentiam capazes de produzir saberes a partir da prática de suas salas de aula. Então,
procurando incentivar a escrita, sem exigi-la, esse processo ganhou força no segundo
semestre de 2011, quando o grupo já se reunia por mais de dois semestres. Também se
prolongou para além dos encontros do grupo, ocorrendo principalmente via e-mail.
Consideramos que os estudos realizados no contexto colaborativo do
Estatisticando incentivaram a investigação da prática pedagógica, inicialmente em
momentos em que o destaque era para o ensino e a aprendizagem da Estatística com
estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Os resultados, assim como
acontece no Grupo de Sábado (GdS), foram textualizados em forma de narrativas. De
acordo com Carvalho e Fiorentini (2013), essa modalidade de investigação, se aproxima
mais de uma análise narrativa. Esses autores afirmam que as “análises narrativas”
[...] expressam um conhecimento da prática, pois, embora geralmente tenham
origem na prática, as situações foram problematizadas,analisadas e
sistematizadas narrativamente, tendo como mediaçãoleituras dos campos
acadêmico e profissional e as múltiplas percepções e interpretações de
parceiros críticos[...] (p.22, grifo dos autores).
Ainda sobre as textualizações narrativas que se aproximam de análises
narrativas, de acordo com Carvalho e Fiorentini (2013, p. 17, grifo nosso), “mais que a
conceitualização de um gênero textual, esta afirmação nos remete a um processo”,
complementando que nesse processo são gerados textos que são “ouvidos/lidos/vistos”.
Nesse contexto, pensando no processo vivenciado, chamamos as textualizações
narrativas produzidas pelos participantes de “análises narrativas de situações de sala de
aula”.
Nesse sentido, foram produzidos onze textos, dos quais participei como
coautora, fazendo parceria com um dos participantes, buscando atuar como parceira
crítica: dez análises narrativas de situações de sala de aula e um artigo, fruto de
iniciação científica. Oito análises narrativas de situações de sala de aula foram
produzidas em parceria com dois participantes do grupo Estatisticando, Mie e Eduardo,
exclusivamente sobre a temática ali estudada; o artigo foi escrito em parceria com
Roseli, também com temática versando sobre a Estatística, com destaque para o livro
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didático; e duas análises narrativas foram feitas em parceria com Rosana, contando
também com a colaboração de duas outras estudantes de Pedagogia, sobre temática que
não era o foco principal de nossos estudos, mas sempre almejando, como defende
Kilpatrick(1996, p. 118), o “professor como pesquisador”, mais do que simplesmente
sujeito da pesquisa. Importante mencionar, também, que os trabalhos produzidos pelos
integrantes do Estatisticando foram apresentados em eventos da área de Educação e de
Educação Matemática, como forma de discutir com a comunidade acadêmica a prática
de sala de aula e a do grupo.
Algumas considerações
As atividades vivenciadas no grupo Estatisticando buscaram considerar a escola
como local de trabalho e de aprendizagem profissional, mas, também, a oportunidade
para que os participantes exercitassem protagonismo em seu desenvolvimento
profissional.
Consideramos, no espaço proporcionado pelo grupo Estatisticando, que os
participantes puderam se relacionar colaborativamente, assim como apresenta Fiorentini
(2011a), “envolvendo formadores, pesquisadores e futuros professores, que assumem a
pesquisa como postura e prática social” (p. 17), e concluindo que esse contexto “é rico e
poderoso de desenvolvimento profissional, de transformação das práticas pedagógicas e
curriculares, de produção de conhecimento e de uma nova cultura de ensinar e
aprender” (p. 17). Com o trabalho no grupo que buscou ser colaborativo, consideramos
que contribuímos para o desenvolvimento profissional de professores e futuros
professores da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, os quais
foram se percebendo capazes de lidar com a Estatística, confiantes de que poderiam
trabalhar com seus estudantes numa perspectiva de letramento estatístico. Esperamos
estar contribuindo também com a formação de pessoas estatisticamente mais
competentes, capazes de usar a Estatística na resolução de problemas do dia a dia,
posicionando-se e usando-a na tomada de decisões, conscientes de seu poder de ação
crítica. Por isso, consideramos importante prosseguir o estudo sobre grupos e contextos
colaborativos onde diferentes profissionais partilham e refletem sobre práticas
profissionais nas aulas de Estatística, por ser um domínio de conhecimento muitas vezes
associado a uma simplicidade no seu ensino e na sua aprendizagem, procurando
documentar as várias etapas da história destes grupos, mostrando a sua exequibilidade e
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a sua relação com aprendizagens significativas tanto para os professores quanto para os
estudantes.
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i A dissertação de Cammarota (2014) tem como objetivo investigar como políticas cognitivas operam na
Educação Matemática. Por um lado, o autor evidencia a existência que políticas cognitivas que
“instauram modelos representacionais [que] acabam por levar a cabo uma constituição moral e
moralizante do conhecimento” (p. 147) e, por outro, percorre um pensar sobre as políticas cognitivas que,
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desviando dos modelos representacionais e das tentativas de domesticação da escola, toma a sala de aula
de matemática como campo no qual diferentes modos de subjetivar-se – também pela matemática –
emergem e coexistem.
ii Esse episódio decorre de uma ação desenvolvida pelo projeto Tornar-se o que se é: a escola como
espaço de produção de subjetividade-professor de matemática, financiado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
iii
As figuras e tabelas apresentadas neste texto são representações daquelas confeccionadas pelos alunos
no momento da aula e servem, aqui, como recurso ilustrativo para a narrativa.
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