Poesia Dos Trovadores
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Os Cancioneiros primitivos
Quase todas as literaturas se iniciam
por obras em verso. Exceptuando as novas
nacionalidades resultantes da emigração de
Europeus a partir do século XVI, a poesia
surge mais cedo do que a prosa literária. Não
é difícil explicar este facto: nas civilizações
do passado, a mais corrente forma de
comunicação e de transmissão da obra
literária não é escrita, mas oral. Antes de se
fixarem no bronze, na pedra, no papiro, no
papel ou no pergaminho, as histórias, as
narrativas, e até os códigos morais e jurídicos
gravavam-se na memória dos ouvintes; e
havia artistas que se encarregavam de as
divulgar, os aedos e rapsodos entre os
Gregos, os bardos entre os Celtas, os jograis
entre os povos românicos medievais. O
verso é, inicialmente, entre outras coisas,
uma forma de ritmar a fala que facilite a
memória, quer esse ritmo se baseie em
esquemas de contraste quanto à duração das
sílabas (caso do verso greco-latino), quer em
esquemas de contraste de intensidade silábica
reforçados por aliterações (caso da poesia
germânica), quer no isossilabismo, isto é, na
regularidade quanto ao número de sílabas
reforçada pela rima (caso das literaturas
românicas medievais), quer ainda noutras
componentes fonéticas. Vestígios desta
literatura oral são ainda hoje os provérbios
que, como facilmente se verifica, obedecem
a ritmos ou recorrências fónicas que
facilitam a fixação. As literaturas românicas
medievais apoiam-se, como já notámos, na
literatura oral, cujos principais agentes eram
os jograis, embora, por via clerical,
apreendessem certos temas e lugares-comuns
retóricos de tradição greco-romana, sobretudo
desde a sua assimilação pelos trovadores
corteses (e, na Península, também pelos
segréis nobres de parcos recursos e também,
por vezes, instrumentistas).
Os mais antigos textos literários em língua portuguesa são composições em
verso coligidas em Cancioneiros de fins do século XIII e do século XIV, que reúnem
textos desde fins do século XII. Mas devemos supor muito anterior a tal época o culto
In Lopes, Óscar e Saraiva, A. José , História
da Literatura Portuguesa , Porto ed. ,16ª ed,
pg. 45 - 68
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da poesia testemunhado por estes textos escritos. A literatura oral, com efeito, só se
fixa por escrito em época tardia da sua evolução quando as condições ambientes
já divergem muito daquelas que lhe deram origem.
Portanto seria errado pensar que a poesia portuguesa nasceu com os Cancioneiros;
estes não passam de colecções, mais ou menos tardias, de textos que de início
circulariam em cópias mais restritas.
Uma parte, pelo menos, da poesia conservada pelos Cancioneiros supõe um
longo passado e uma tradição oral que nos levam a épocas muito mais remotas do
que aquelas em que se compuseram os mais antigos poemas dos Cancioneiros,
datados, como vimos, de fins do século Xll. Adiante aludiremos às carjas (kllarajat), que
parecem revelar a existência, no seio das populações submetidas ao domínio
muçulmano, de uma poesia popular muito provavelmente precursora daquela que tais
cancioneiros conservaram.
Conhecem-se três Cancioneiros ou colectâneas, aliás estreitamente aparentadas
entre si, de poemas de autores diversos em língua galego-portuguesa.
O mais antigo, o Cancioneiro da Ajuda, foi provavelmente compilado ou copiado
na corte de Afonso X, o Sábio, em fins do século Xlll, Os outros, Cancioneiro da
Biblioteca Nacional (antigo Colocci-Brancutti) e o Cancioneiro da Vaticana (com uma
variante recentemente descoberta), são cópias, realizadas em ltália no século XVl, a
partir de uma compilação que data provavelmente do século XIV.
Destes, o Cancioneiro da Ajuda é o menos completo, porque apenas abrange
composições anteriores à morte de Afonso X, excluindo, por exemplo, a vasta produção
de D. Dinis; e porque o seu coleccionador deixou de fora os géneros mais vulgares, isto
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é, as cantigas de amigo e as de escárnio ou maldizer, de que adiante falaremos. Mas
tem o interesse especial de o seu manuscrito pertencer à própria época da maioria dos
poetas seus colaboradores, e é um documento valioso, pela grafia, pela decoração e
sobretudo pelas iluminuras, que testemunham o carácter cantado e instrumental,
embora tenham sido deixados em branco os espaços destinados à notação musical,
entre outros sinais de inacabamento. Os cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca
Nacional], compilados depois da morte de Afonso X, abarcam um espaço de tempo
maior, isto é, não só os poetas contemporâneos de D. Afonso III e anteriores, mas ainda
os contemporâneos de D. Dinis e de seus filhos; abrangem. por outro lado, todos os
géneros de composições, e não só as cantigas de amor. Destes dois, o Cancioneiro da
Biblioteca Nacional é o mais completo, pois inclui quase todo o material recolhido no
Cancioneiro da Vaticana e muito outro. O Cancioneiro da Ajuda contém 64 poesias não
transcritas nos outros dois, Um catálogo do coleccionador quinhentista italiano, Ângelo
Colocci, a quem se deve a preservação do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, revela-nos
que qualquer dos cancioneiros se encontra hoje mutilado. É bem possível que estejamos
em presença de sucessivas cópias de uma e a mesma colecção, que seria talvez
encorpando pouco a pouco; e a fase mais importante da compilação deve ter sido a de
certo «livro das cantigas» mencionado no testamento do conde de Barcelos, D. Pedro,
filho de D. Dinis (1350). O conjunto abarca 1679 poesias de 153 autores identificados,
além de alguns anónimos.
O mais antigo dos trovadores conhecidos dos Cancioneiros é João Soares de
Paiva, nascido cerca de 1140, dois anos após a batalha de Ourique, pertencente,
portanto, à geração de Sancho I (a quem chegou a ser atribuída a autoria de uma
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cantiga, afinal de Afonso X). Isto situa o início da literatura escrita portuguesa
conhecida cerca de começos do século XII. É plausível relegar para depois dos dois
trovadores mencionados a discutidíssima Cantiga de Garvaia (manto escarlate) de Paio
Soares de Taveirós, que os primeiros estudiosos datavam de entre 1189 e 1198,
Rodrigues Lapa e G. Tavani aceitam 1196 e outros 1213 como data da mais antiga
cantiga (de escárnio) de Soares de Paiva: Ora faz ost' o senhor de Navarra. O trovador
mais recente é o mencionado conde de Barcelos, falecido em 1354. (Há três autores
quatrocentistas tardiamente inseridos na colecção trovadoresca). Os autores pertencem
a diversas regiões da Península, e em grande parte viveram e poetaram na corte do
rei de Leão e Castela: tal é o caso do rei Afonso X, o Sábio, e dos poetas da sua
corte literária, muitos deles portugueses e galegos, que ocupam uma parte
importante dos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional. Não devemos
imaginar todos, nem talvez mesmo a maior parte dos poetas dos Cancioneiros, no
ambiente da corte de D, Afonso III, de D. Dinis, ou da roda de seu filho, D. Pedro, conde
de Barcelos, mas também em cortes senhoriais galegas e na corte leonesa--castelhana,
com o apogeu em Afonso X, o Sábio (1252-1284), O mais antigo jogral conhecido desta
corte é referenciado em l 136, sob Afonso VII, e tem o nome de Palha. Na realidade, os
Cancioneiros não constituem colecções de poesia nacional, mas sim de poesia
peninsular em língua galego-portuguesa. Tudo se passa como se ocorresse no
Ocidente ibérico uma só literatura românica, mas polidialectal, consoante os géneros,
como acontecera com a literatura grega clássica, Devemos acrescentar aos Cancioneiros
profanos (ou, melhor dizendo, às três versões do Cancioneiro profano) as Cantigas de
Santa Maria, coligidas na corte de Afonso X e, em parte, da autoria deste rei.
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São para cima de quatrocentas, com refrão e acompanhamentos musicais
conhecidos, alternando séries de poesias narrativas sobre milagres da Virgem com loas
(cantigas de loor) que lhe são também dedicadas.
Os géneros dos Cancioneiros
Notámos que vários géneros de poesia estão representados nos Cancioneiros da
Vaticana e da Biblioteca Nacional. Este último inclui também um tratado poético truncado,
do século XIV (perdeu-se todo o texto anterior ao capítulo IV da 3, a Parte), relativamente
tardio, e com certa influência francesa, que pretende classificar aqueles géneros e dar as
suas regras. Distingue este tratado três géneros: as cantigas de amigo, as cantigas
de amor e as cantigas de escárnio e maldizer.
A diferença entre as cantigas de amor e as de amigo consiste, segundo o
mesmo tratado, em que nestas se supõe que fala uma mulher, ao passo que
naquelas o trovador fala em seu próprio nome. As cantigas de amigo são, portanto,
quanto ao tema, cantigas de mulher, e o nome por que são conhecidas designa o
seu objecto, o amigo ou amado geralmente referido logo no primeiro verso. Nas
poesias dialogadas, o critério de classificação é, segundo a mesma arte de trovar
fragmentária, o do ponto de vista sentimental dominante: o de elas ou o de eles.
Quanto às cantigas de escárnio e maldizer, são, é claro, de assunto satírico, e
chamam-se de escárnio, se o poeta se exprime ironicamente, sugerindo uma
apreciação oposta à que parece fazer, ou simplesmente se abstém de nomear o
satirizado; de maldizer, se o poeta apoda ou acusa directa e nomeadamente. Esta
classificação corresponde à prática da poesia de corte, tal como aparecia aos poetas
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palacianos do século XIV. Mas estes géneros tinham sofrido uma longa evolução,
partindo de origens diferentes, antes que viessem a alinhar lado a lado na poesia da
corte, como modalidades diversas de uma mesma arte. A história da cantiga de amor é
diferente da história da cantiga de amigo, embora com ela venha convergir.
As cantigas de amigo
Se atendermos sobretudo aos exemplos mais típicos, os cantares de amigo não
se distinguem dos de amor unicamente por aparecerem ali «elas» e aqui «eles» a
falar, mas também por outras diferenças de forma e intenção.
Cerca de uma quarentena de tais cantigas, nomeadamente designadas como
«Paralelísticas», apresenta uma estrutura rítmica e versificaria própria, redutível a um
muito simples esquema. A unidade rítmica não é a estrofe, mas o par de estrofes, ou,
mais precisamente, o par de dísticos, dentro do qual ambos os dísticos querem
dizer o mesmo, diferindo só, ou quase só, nas palavras da rima, que são de vogal
tónica a num dos dísticos de cada par, e i ou ê no outro; o último verso de cada estrofe é
o primeiro verso da estrofe correspondente no par seguinte. Cada estrofe vem seguida de
refrão.
A este sistema deu-se o nome de paralelismo. Mediante ele, é possível construir
uma composição de seis estrofes e dezoito versos em que apenas há cinco versos
semanticamente diferentes (incluindo o refrão), como se vê pelo seguinte esquema :
verso A estrofe 1 verso B
refrão
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1º par verso A' (variante de A)
estrofe 2 verso B' (variante de B) refrão
verso B estrofe 3 verso C
refrão 2º par
verso B' estrofe 4 verso C'
refrão
verso C estrofe 5 verso D
refrão 3º par
verso C' estrofe 6 verso D'
refrão
Um exemplo permitirá compreender melhor este esquema :
Vaiamos irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago hub eu andar vi
a lãs aves meu amigo, Vaiamos irmana, vaiamos folgar nas ribas do lago hub eu vi andar
a las aves meu amigo, Nas ribas do lago hu eu andar vi seu arco na mão as aves ferir
a las aves meu amigo, Nas ribas do lago hu eu vi andar seu arco na mão a las aves tirar
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a las aves meu amigo, Seu arco na mão as aves ferir a las que cantavan leixá~las guarir
a las aves meu amigo, Seu arco na mão a las aves tirar a las que cantavam non nas quer matar
a las aves meu amigo,
(Fernando Esquio)
O refrão sugere a existência de um coro. A disposição das estrofes aos pares e a
alternância das mesmas rimas ao longo de toda a composição deixam entrever que se
alternavam dois cantores ou dois grupos de cantores. A repetição, à cabeça de cada
nova estrofe, do verso final duma estrofe anterior é talvez o vestígio de um primitivo
processo de composição improvisada, que obriga um dos improvisadores a repetir o
último verso do outro, para o qual devia achar sequência (leixa pren, processo que
ainda subsiste nas quadras ao desafio), O facto, enfim, de, em virtude deste sistema
de repetições, a letra se reduzir a um número pequeno de versos mostra-nos que ela se
subordinava ao canto e ao ritmo da dança, e que a invenção literária desempenhava,
dentro deste conjunto, um papel relativamente secundário. Até há pouco, era só
conhecida a notação musical para seis (das sete) cantigas do jogral galego Martin Codax;
mas, como dissemos, as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda representam grupos
instrumentais, que incluem viola de arco, guitarra, saltério, sonalhas, pandeiro, etc, além
de cantores e de bailarinas, dirigidos por um nobre trovador sentado com a letra em
punho. Repare-se que esta poesia é dramática monologal (supõe um destinatário, a
«irmana», e poderia ser gesticularmente mimada); entre as cantigas paralelísticas
contam-se monólogos de amor, mas também de escárnio ou maldizer.
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Estas características e indícios levam-nos a uma fase da história da poesia em que
o poema não passa de um esboço, uma letra, para musicar, sem autonomia em relação
ao canto e à dança, De resto, o próprio nome de cantigas é a este respeito muito
elucidativo; e a arte de trovar apensa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional por várias
vezes se refere a problemas de relacionação da letra com o som.
A estrutura rítmica que estudámos na sua forma mais corrente admite variantes ou
complicações. De facto, na sua maior parte, as cantigas de amigo oferecem uma
estrutura mais complexa. Assim: em lugar de dísticos, surgem estrofes, ou coplas, de
três, quatro ou mais versos; o paralelismo anafórico (ou seja, a repetição literal entre
estrofes pareadas, com excepção das palavras da rima, ou pouco mais) dá lugar a um
pareamento ou emparelhamento mais lasso, em que a segunda estrofe de cada par
apenas repete a ideia geral da anterior; algumas composições já não respeitam
regularmente o emparelhamento das coplas; e o próprio refrão deixa de aparecer no final
de cada estrofe, ora intercalando-se no texto, ora (o que é mais importante) admitindo
pequenas variações. Com este desenvolvimento da inventividade discursiva, chega-se à
cantiga de meestria; o tratado trecentista de arte poética define-a como sendo a
desprovida de refrão, que é a forma elementar do paralelismo. No entanto, numerosas
cantigas, chamadas de paralelismo puro, respeitam sensivelmente o esquema atrás
descrito. O seu provável destino coreográfico permitiria classificá-las como bailias ou
bailadas, designação usualmente reservada a cantigas, mesmo de paralelismo imperfeito,
que aludem ao acto de se dançar enquanto são cantadas.
À complicação formal do esquema paralelístico corresponde, em geral, uma
variação temática. Nos cantares de amigo pode supor-se, com efeito, mais de um
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estrato de cultura, de ambiente social, embora sempre mais ou menos assimilado
por uma elaboração cortês.
Um grupo numeroso de cantigas diz
respeito à vida popular rural, Tem como
personagem principal a moça que vai à fonte,
onde se encontra com o namorado; que vai
lavar ao rio a roupa ou os cabelos; que na
romaria espera o amigo. ou oferece promessas
aos santos pelo seu regresso. Este género de
cantar apresenta-nos geralmente uma situação
cujos elementos paisagísticos, muito simples e
padronizados, se carregam do simbolismo de
velhos ritos pagãos, e coloca-os perante uma ou
mais personagens, sob a forma quer de diálogo.
quer de monólogo. quer até (caso raro mas
muito significativo) de breve narrativa. como
se fosse um fragmento de um «rimance»: a
rapariga que vai ao rio lavar camisas. o corpo
«velido, que baila na romaria, Trata-se de um
género sincrético primitivo em que se
confundem o lírico. o dramático e o narrativo.
Esta matéria corresponde às cantigas de
estrutura mais simples. construídas dentro do
chamado «paralelismo perfeito" .
Há uma referência da Arte de Trovar a
uma categoria considerada rude, de cantigas de
vilaas (vilãs). segundo leitura de Jean-Marie
d'Heur. e em geral lida como de vilaos (vilãos).
A integração das comunidades rurais antigas
nos domínios senhoriais ou em concelhos
aforalados estava ainda em processo nas
origens da nacionalidade.
Outro grupo de cantigas leva-nos para
ambientes domésticos. Deixa-nos ver a moça a
fiar o sirgo em casa. a discutir com a mãe e com
as amigas: o rapaz a pedir autorização à mãe da
moça para a namorar. A protagonista aparece-
nos muito mais desembaraçada de língua e
segura de experiência; sabe jogar às
escondidas com o amor. conhece o seu poder
de sedução e maneja-o; conhece a arte de
provocar o ciúme. de que aliás também
frequentemente é vítima. Os autores destas
cantigas revelam uma elaborada concepção do
comportamento feminino; e deixaram no
conjunto das suas obras como que um romance
de amor que vai desde a alvorada do primeiro
encontro até à consumação. Este é um dos
motl'vos para apreciarmos tais poesias (e outras
dos cancioneiros) como se constituíssem séries
homogéneas. ou subséries. de acordo com os
autores e os género reconhecíveis. Um terceiro
estrato situa-se no ambiente da corte. O seu tema
é o amor cortês (que estudaremos a propósito das
cantigas de amor), tal como o trovador fidalgo o
imaginariam sentido pelo lado da mulher, seja
para a lisonjear apresentando-a como muito
consciente de ser fremosa, louçaa ou velida. seja
para se jactar daquelas que se finam de saudade
por ele. Nem sempre é fácil determinar
exactamente a fronteira entre as cantigas de tipo
tradicional e as de tipo cortês. tanto mais que a
origem manifestamente popular do processo
apenas se nos revela através de imitações ou
reelaborações palacianas. mas é muito plausível
situar no ambiente de corte motivos como o do
rei que manda pedir tranças à moça, e no
ambiente da vila ou do campo temas como a
entrevista do pretendente com a mãe da moça.
Tal estratificação da poesia dos Cancioneiros, em diversas camadas
correspondentes a meios sociais ou a épocas diferentes. é naturalmente interferida por
factores vários, como influências recíprocas e contactos dos diversos meios sociais,
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Assim é que vemos assinadas por nomes da alta nobreza cantigas de tipo primitivo, de
ambiente flagrantemente popular e vazadas no paralelismo puro - caso de numerosas
composições de D. Dinis, grande apreciador da poesia folclórica. (Esta parece ter sido
reposta em moda na sua época, depois de passada uma fase em que prevaleceu nas
cortes um gosto mais acentuadamente provençalizante.) Tais autores imitam e fazem
variar esquemas de origem rural já talvez reelaborada; assim se explicaria que variantes
das mesmas cantigas apareçam subscritas por mais de um nome, como sucede com as
duas tão próximas variantes da famosa bailada das «avelaneiras floridas», assinadas,
uma pelo poeta culto Airas Nunes, e outra pelo jogral João Zorro.
A escola trovadoresca galego-portuguesa legou mais de meio milhar de cantigas
de amigo, de sensível homogeneidade temática e formal (quase todas com refrão). A
existência de uma herança tradicional hispânica preservada nos cantares de amigo
parece atestada já no século XI pelas carjas, designação árabe dos remates de
certas composições de autoria e língua árabes ou hebraicas escritas entre meados
do século XI e o final do século XIII. Estas carjas são constituídas geralmente por um
ou dois versos em língua moçárabe (isto é, em língua românica fortemente penetrada de
arabismos, falada,como vimos, pela parte da população cristã sob o domínio árabe),
conquanto seja árabe ou hebraica a muaxafa (muwaxahat), ou corpo da composição; e
consistem precisamente em fragmentos de cantigas de mulher que lembram muito de
perto os caracteres das de amigo. Os poetas semitas recolheram-nas certamente de um
folclore que deixou outros vestígios, sobretudo nas áreas periféricas de influência
trovadoresca (Ocidente hispânico, Sicília, Alemanha). Sucessivos jograis e poetas,
sucessivas épocas e meios sociais adaptaram e variaram, pois, a poesia folclórica. As
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formas versificatórias mais simples coincidem grosso modo com os temas rurais e
primitivos; e as mais complexas incorporam tradições e reelaborações de retórica e
poética cortês já letradas, A cantiga feminina nasceu na comunidade rural, como
complemento do bailado e do canto colectivo dos ritos primaveris, próprios das
civilizações agrícolas em que a mulher goza da maior importância social; e é assim que,
não apenas na Península ou na România, mas em povos tão distantes como o chinês, se
verificam vestígios, quer do paralelismo, quer da cantiga de mulher. Transplantada a
outros meios, as suas formas variaram e, em muitos sentidos, enriqueceram-se, ao
mesmo tempo que se adaptavam a novos temas.
O primitivismo de muitas cantigas de amigo constitui precisamente a sua principal
atracção para muitos leitores de hoje. Algo se evidencia nelas de muito diferente da
mentalidade do homem actual, permitindo entrever certas formas de sensibilidade, que
nem por terem sido recalcadas por aquisições posteriores deixaram de subsistir na
psicologia moderna, sempre prontas a despertar. Há, por exemplo, em alguns cantares
de amigo uma intimidade afectiva com a natureza que é muito diferente do gosto
cenográfico da paisagem (como quadro ou reflexo dos sentimentos humanos), e que
deve antes relacionar-se com o animismo típico de certa mentalidade pré-mercantil.
Dir-se-ia existir uma afinidade mágica entre as pessoas e tudo o que parece mover-se ou
transformar-se por uma força interna: a água da fonte e do rio, as ondas do mar, as flores
da Primavera ou Verão, os cervos, a luz da alva, a dos olhos. Todas estas coisas
participavam ainda de tantas associações mágicas, as suas designações evocavam
tantas correspondências entre o impulso amoroso e o florescer das árvores, o
comportamento animal, os movimentos das coisas naturais, que o esquema repetitivo era
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como o imperceptível e subtil desenvolvimento de um tema através de modulações que
sugerem os seus inesgotáveis nexos com a vida. Assim, na tão simples cantiga de
Fernando Esquio com que ficou atrás exemplificado o paralelismo típico, a imagem das
raparigas que, por sugestão de uma delas, entrevemos dispostas a dormir na margem de
um lago - só gradativamente se apaga perante a imagem das aves feridas pelo amigo de
arco em punho; dir-se-ia que as moças vão, incautas, substituir tais peças de caça. Mas,
em nova lenta gradação, a nota de crueza dissipa-se no amigo, pois o seu ferino arco
poupa as aves canoras e isso faz pressentir a ternura do seu trato amoroso perante a
doce fala da moça, depois de sentirmos a sua prévia e cruenta desenvoltura de caçador.
Não poderia traduzir-se melhor o enleio da donzela frente ao seu másculo e, todavia,
meigo namorado. Ora imagens como estas de uma altanaria extensiva ao amor eram
símbolos tradicionais, imediatamente reconhecidos e, pela sua própria obliquidade de
alusão, capazes de evocar em conglomerado muito diversas vivências dos
cantores-dançarinos e seu público. E observemos que, a julgar pelos poucos textos
musicais subsistentes, o canto desta lírica acusa a influência da antífona ou do
responsório eclesiásticos, - os quais por seu turno tiveram uma das origens em ritos
rurais antiquíssimos.
Nada disto (nem os processos formais repetitivos, nem o erotismo feminino como
que ritualizado em símbolos) se pode atribuir apenas à veia popular galaico-portuguesa.
Alguns traços de arcaísmo fonético, nomeadamente a manutenção do n intervocálico em
palavras-chave como fontana, louçana, etc., permitem suspeitar neste género uma
origem que vem da proto-história, talvez moçárabe, do Galego-português. As carjas
referidas fazem supor uma tradição românica peninsular suficientemente antiga e pujante
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para ser comum, quer a uma lírica moçárabe meridional do século XI pelo menos, quer a
uma lírica do Noroeste peninsular, onde pouco se fez sentir a influência árabe. É mesmo
possível, como oportunamente observou Rodrigues Lapa, entrever um fundo tradicional
românico de poesia rural baseado em dísticos paralelísticos seguidos de refrão, do qual
proviriam, quer a bailia galaico--portuguesa, quer a carja moçárabe, quer o conductus
litúrgico, quer o strambotto italiano, Sobre esta comum tradição se teria elaborado a
poesia folclórica galego-portuguesa, a qual teria acabado por diferenciar-se e enraizar-se
na vida local, como atestam certos traços regionais bem distintivos de flora (pinheiro,
avelaneira), paisagem física e humana (ria de Vigo, ribeiras e romarias nortenhas).
Em toda a Cristandade medieval, viu-se a Igreja obrigada a reprimir a prática de
ritos e festas pagãs, cuja persistência mais ou menos ingénua sob a liturgia cristã
apresentava como um dos seus aspectos mais pertinazes os cânticos eróticos de
mulheres dentro dos próprios templos, por ocasião de romarias ou das festas pascais que
cristianizaram as festas gentílicas das Maias sob a forma de júbilo da Ressurreição. Há,
em línguas castelhana e catalã, vestígios antigos de paralelismo em cantigas de mulher.
O que singulariza o lirismo galaico-português mais típico é a sua confinação à
estética do paralelismo, mesmo nos espécimes já de certo reelaborados que nos
chegaram. Dá-se uma rarefacção extrema de elementos narrativos ou descritivos;
avultam poucos mas densos símbolos de participação imaginária entre, por um
lado, certas coisas naturais e, por outro lado, uma coita feminina sem
individualidade, sem ambiente doméstico, quase toda personificada nos «meus
olhos» a luzirem numa situação vaga - na presença ou ausência do amigo, que todo
ele se reduz também à carga amorosa de sinal contrário. Cada verso vale por si,
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recortado por repetições simétricas e modulantes, reevocado por outras associações
(como as da rima final e do refrão, a intervalos fixos), delimitado por uma nítida pausa de
pontuação. A imprecisão dos sinónimos e do uso dos tempos verbais, nos lugares das
rimas alternantes, afrouxa a já lassa ligação lógica, que poucas e monótonas conjunções
sustentam. Dificilmente se poderá imaginar um tipo de poesia mais próximo da
encantação mágica, ou da música. Mas o mais impressionante é encontrarem-se, dentro
de uma tal simplicidade estilística, algumas das melhores poesias que jamais se flzeram
em língua portuguesa. Contam-se entre elas as que principiam por «Sedia--m'eu na
ermida de sa Simeõ» (Meendinho), «Levad'amigo, que dormides as manhanas frias»
(Nuno Fernández Torneol) e «Levantou-s' a velida» (D, Dinis), cujo esquema repetitivo
estrutura um poderoso crescer e multiplicar de representações emocionais, cujas
modulações de timbres vocálicos dão fundo harmónico às modulações do humor ou
sentimento, cujas hipérboles ou ambiguidades, virtualmente mitológicas pela sua audácia,
nada ficam a dever à liberdade metafórica da poesia moderna. Nestas composições, as
proezas ou maravilhas de que a poesia, ainda um pouco ingenuamente mágica, julgava
capazes as pessoas ou as coisas revelam-nos, na máxima sobriedade de expressão
verbal, algumas fundas aspirações ou fruições estéticas que as possibilidades técnicas
modernas tendem a ocultar. Já, evidentemente, nos encontramos, com estas poesias,
perante elaborações cultas de uma tradição; o próprio D, Dinis, e ainda Pêro da Ponte,
entre outros, chegam a combinar habitualmente certos recursos paralelísticos com
recursos de origem cortês occitânica, É de resto impossível reconstituir o longo processo
de interacção das origens pagas rurais com a cultura do clero e da nobreza. Mas não há
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dUvida de que tais pequenas obras-primas são a consumação de uma arte paralelística
de trovar assente numa cultura arcaica com alguns traços regionais.
É costume classificar as cantigas de amigo, segundo os seus temas, em
bailadas ou bailias, cantigas de romaria, marinhas ou barcarolas, a que, não menos
justificadamente, se poderiam acrescentar cantigas de fonte, de cenas venatórias, de
amiga e mãe, de amiga e amigas (às vezes designadas como irmanas), de despedida,
etc.. O que, realmente, mais interessa apontar é a grande quantidade (cerca de 60) das
cantigas onde há referência a romarias que se podem quase todas localizar na
Galiza ou no Minho; a originalidade temática galaico-portuguesa destas e ainda de
cerca de uma vintena de outras respeitantes a um ambiente marítimo (mar, ondas. ria,
barcas partindo ou chegando); o carácter geralmente muito castiço das bailias,
porventura representantes do estrato histórico mais antigo porque mais difundido na
Europa, se não em todo o mais velho mundo agrário (cerca de meio cento de espécimes).
Se os cantares de amigo de tipo primitivo, evocadores de uma época remota da
história da poesia, podem interessar sob estes aspectos alguns leitores modernos, os de
tipo mais complexo, correspondentes às estratificações burguesa e palaciana, não
deixam também de ter interesse, embora diverso. Não é uma sugestão encantatória (e,
nos melhores casos, extraordinariamente moderna) a que fica da sua leitura. Os poetas
conseguem dar com vivacidade os diversos estados da mulher namorada, no decorrer
da intriga sentimental. A saudade, o ciúme, o ressentimento, os amuos, as
ansiedades, as desconfianças, a reivindicação da liberdade de amar perante a
intervenção materna, etc. exprimem-se de modo muito vivo; e ao lado da
diversidade de situações é de notar a dos tipos psicológicos simulados: as
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mulheres ora são ingénuas, ora experimentadas; ora compassivas e inclinadas à
piedade, ora astutas e calculistas; ora indiferentes, ora susceptíveis ora se
entregam, ora desfrutam os amigos. Os trovadores deixaram nestas poesias o
resultado duma experiência ampla da vida sentimental, com a qual seria possível
imaginar um romance precursor da Menina e Moça. É de notar, por outro lado, a simpatia
com que alguns destes poetas sabem colocar-se dentro do ponto de vista da mulher e
dos interesses femininos, com uma candura que ainda ressoará na poetisa galega
oitocentista Rosalía de Castro.
a influência occitânica e as cantigas de amor
Outro caminho temos de seguir se quisermos estudar, nas suas origens, a cantiga
de amor. Quer' eu en maneira de proençal fazer agora uu cantar d'amor
escreve o poeta D, Dinis, declarando o que provavelmente todos os trovadores galego-
portugueses tinham presente no espírito: a ideia de que os Provençais eram os modelos
a seguir.
Com efeito, foi nas cortes feudais
occitânicas (e não restritamente provençais,
como costuma dizer-se) que floresceu a
primeira grande escola da poesia românica,
18
elaborada numa língua (Langue d'oc) que
seria mais tarde eclipsada pelo Francês do
Norte (Langue d'oïl mas que entaã exprimia
uma civilização mais adiantada, ligada a uma
já antiga dinâmica comercial mediterrânica,
Ainda hoje se investiga e se discute quais
fossem as tradições literárias que permitiram
uma tao rápida evoluçao do lirismo
provençal. Não há dúvida, porém, de que uma
parte da cultura latina clássica deve ter sido
transmitida até aos trovadores por intermédio
da literatura eclesiástica medieval, sobretudo
através de certas formas ainda em latim mas
já impregnadas de espírito profano
(epistolografia amorosa espiritualizada entre
clérigos e freiras, poesia dos goliardos,
estudantes medievais); e é ainda mais
evidente que entre o canto, a poesia, o drama
litúrgico com que o clero fomentava a
participação do povo na celebração do culto
e, por outro lado, o folclore rural, de origens
mais antigas que o Cristianismo, se exerceu,
durante toda a Idade Média, uma intensa
influência recíproca a cujos progressos muito
deveu essa nascente literatura aristocrática de
corte.
Com efeito, após longa polémica, os
filólogos apuraram a etimologia do verbo
trovar, que afinal vem de tropare; isso reforça
as ligações hist6ricas já conhecidas entre a
lírica profana medieval e os tropos,
desenvolvimentos musicais e depois também
versificados (estróficos e rimados) que desde
os séculos VIII e IX se inseriram na liturgia.
Essa inovação, mais tarde condenada no
século XVI e que tanta importância teve no
desenvolvimento da poesia, da música e até
do teatro religioso e laico, é o resultado de
uma tendência do clero romano para melhor
atrair os fiéis populares e os trazer à
participação do culto, tendência evidente
desde a adopção do canto litúrgico no século
1V até ao incremento da salmodia
responsarial (solista e coro, como na
ladainha) e antifonal (dois semicoros), cujas
relações com o paralelismo galaico-português
já apontámos. A novação dos tropos fora
aliás precedida pela da sequência
(textualmente pro sequentia, que, por
breviatura, refez e prestigiou a palavra prosa),
adaptação de textos ao melisma (neste
caso,jubilus) da vogal final da palavra
Aleluia, que se sustentava originariamente
sobre sucessivas notas musicais.
Os Provençais foram depois os
mestres e iniciadores da poesia europeia
moderna, sem os quais se não
compreenderiam nem Dante nem Petrarca. Os
jograis occitânicos levaram a sua arte
apuradíssima a todas as cortes da Europa.
Diversas notícias documentam as suas
estadias na Península Ibérica, e a corte de
Afonso X, o Sábio, foi um dos refúgios dos
trovadores dispersos pela matança dos
Albigenses. A moda de trovar à maneira
provençal introduziu-se, pois, nas cortes
peninsulares, incluindo a corte portuguesa,
onde já se manifestava sob o reinado de
Sancho I. Havia de resto entre as cortes de
além-Pirenéus e o novo reino do Ocidente da
Península relações estreitas que facilitavam a
influência transpirenaica: o conde D,
Henrique trouxe consigo numerosos senhores
franceses; são bem conhecidas as influências
do clero, nomeadamente através das reformas
monacais de Cluny e Cister, que se
relacionam com as origens francesas da
dinastia portuguesa e que impuseram o ritual
de Roma e a adopção da escrita carolíngia em
substituição da anterior escrita visigótica;
muitos portugueses frequentavam a
peregrinação a Santa Maria de Rocamador,
no Sul da França, e muitos trovadores
occitânicos vieram peregrinar a Santiago de
Compostela; e diversas vagas de exílio, como
a provocada pelas lutas civis do tempo de D,
Afonso II, levaram senhores portugueses a
França, destacando-se entre elas, pelas
influências literárias bem conhecidas que
trouxe, a que acompanhou na sua juventude o
19
futuro Afonso III. Os casamentos de D,
Afonso Henriques, D, Sancho I e D. Afonso
III com princesas criadas em cortes cultural e
até politicamente ligadas com a Provença,
respectivamente Sabóia, Aragão (unida com a
Catalunha) e Bolonha, devem também ter
facilitado a influência occitânica, No entanto
o encontro mais produtivo da joglaria galaica
com o trovar occitânico deve ter-se produzido
na corte castelhana.
Quando a poesia provençal, através dos seus trovadores e jograis ou dos seus
imitadores peninsulares, chegou à Península, existia já aqui (é difícil duvidar) uma escola
local de poesia jogralesca, provavelmente relacionada com as carjas moçárabes, aquela
mesma que recolheu, adaptou e divulgou nas vilas e nas cortes a poesia folclórica a que
pertencem as cantigas de amigo.
O Galego, falado aquém e além do Douro, era a língua materna dos jograis
Tradicionais. A Galiza além-Douro escapou ao domínio muçulmano e contribuíram para
o seu desenvolvimento cultural precoce diversos factores, entre os quais as
peregrinações a Santiago de Compostela, em que participavam romeiros de toda a
Europa. O mais antigo jogral galego de que há notícia (Palha) pertenceu à corte de
Afonso VI, avô do primeiro rei de Portugal. É inegável nas cantigas de
amor galego-portuguesas uma avassaladora influência provençal. A própria língua
dos poetas ficou embutida de provençalismos, como sen, senso (em vez da palavra
indígena seso, donde provém o actual siso); cor (em vez de coraçon); prez (em vez
de preço); gréu (em vez de grave, com o sentido de pesado, difícil). Com estas e
muitas outras palavras e com diversas fórmulas também de origem provençal,
forjaram os poetas galego-portugueses um formulário de expressões que se
distingue da língua dos cantares de amigo de inspiração folclórica, embora também
20
nestes, e logo na fase mais antiga que o Cancioneiro cortês documenta, se
verifiquem vestígios da influência estrangeira.
Quanto aos temas, elaboraram os Provençais o ideal do amor cortês, muito
diferente do idílio rudimentar nas margens dos rios ou à beira das fontes que os cantares
de amigo nos deixam entrever. Não se trata agora de uma experiência sentimental a
dois, mas de uma aspiração, sem correspondência, a um objecto inatingível, de um
estado de tensão que, para permanecer, nunca pode chegar ao fim do desejo.
Manter este estado de tensão parece ser o ideal do verdadeiro amador e do verdadeiro
poeta, como se o movesse o amor do amor, mais do que o amor a uma mulher. E não só
a esta dirigem os poetas as suas implorações, queixas ou graças, mas o próprio Amor
personificado, figura de retórica muito comum entre os trovadores provençais e por eles
transmitida aos galego-portugueses. O Amor reina, até, numa Vila ideal, com as suas
cortes, os seus foros e leis.
O trovador imaginava a dama como um suserano a quem «servia> numa atitude
submissa de vassalo, confiando o seu destino ao «bon sen» da «senhor». «Je soy votre
homme lige», diz em língua francesa e em termos de vassalagem feudal um poeta
português. Todo um código de obrigações preceituava o «serviço» do amador, que,
por exemplo, devia guardar segredo sobre a identidade da dama, coibindo toda a
expansão pública da paixão (o autodomínio, ou «mesura», era a sua qualidade
suprema), e que não podia ausentar-se sem sua autorização. O apaixonado deveria
passar provações e fases comparáveis aos ritos de iniciação nos graus da
cavalaria, antes de chegar a drudo, amante espiritual da midons, ou dama. Mesmo
21
em algumas cantigas de amigo as damas manifestam o seu desagrado por os amadores
respectivos terem infringido estas ou outras regras do «serviço».
A este ideal de amor corresponde certo tipo idealizado de mulher, que atingiu mais
tarde a máxima depuraçã na Beatriz de Dante ou na Laura Petrarca: os cabelos de oiro, o
sereno e luminoso olhar, a mansidão e a dignidade do gesto, o riso subtil e discreto. As
cantigas de amor oferecem-nos existem uma cópia simplificada e fruste do retrato original
pintado pelos trovadores provençais, referindo-se ao «catar» (olhar) da «senhor», ao seu
«prez» ou «sén»,ou «bon riir», ou «falar>, ou «parecer>, etc.
É também com os Provençais que os poetas dos Cancioneiros peninsulares
aprendem a objectivar paisagens. A descrição das flores de Maio, da brisa excitante da
Primavera, do cantar malicioso dos rouxinóis são motivos obrigatórios dessa lírica cortês.
D, Dinis, discípulo confesso dos occitânicos, mas, como vimos, também fiel às tradições
regionais, critica mesmo Airas Nunes, que descreve o convencionalismo deste quadro
primaveril obrigatório do amor provençal. Teve entre os Provençais grande voga o tema
do cavaleiro que, seguindo por um caminho florido, encontra e requesta de amores uma
pastora. Este género, denominado entre nós pastorela, é imitado por alguns poetas
mais cultos dos Cancioneiros com certa nitidez formular e descritiva que fica já longe do
ambiente paisagístico sugestivo mas vago das cantigas de amigo. (Veja-se a célebre
pastorela: Pelo souto do Crexente de João Airas de Santiago.) De um para outro caso
difere muito a relação do homem com o meio.
Nos modelos occitânicos desfruta-se um espectáculo de coisas belas, referidas
segundo uma ordem retórica precisa, como um cenário, ao passo que maior parte das
22
cantigas nas cantigas de amigo em que se vazam há antes, como vimos, e para usar
termos conhecidos, uma participação animista entre pessoas e coisas.
Resultado da influência provençal é ainda o esboço de análise introspectiva que se
encontra em alguns dos trovadores peninsulares. O sentimento dos contrastes do
amor, do querer e não-querer, da timidez e da violência impulsiva do desejo, do
doce-amargo da saudade - são temas muito correntes entre os Provençais, que os
transmitiriam a Petrarca, em quem por sua vez irão aprendê-los Bernardim Ribeiro e
Camões. Os poetas dos Cancioneiros galego-portugueses não os desconhecem, mas
repetem-nos um pouco como fórmulas decoradas e reduzem-nos quase sempre a breves
esquemas verbais exprimindo unidade na contradição, como prazer-pesar, viver-morrer,
bem-mal, Basta um breve confronto para revelar que as qualidades características da
poesia trovadoresca provençal se esbatem ao serem adaptadas à língua e ao estilo dos
trovadores peninsulares, A nitidez descritiva, a introspecção, o brilho e a justeza das
analogias e imagens, tudo isto se embacia nas páginas dos nossos Cancioneiros. As
metáforas e comparações quase aqui não existem, e brilha pela singularidade um
poeta que diz ser a sua dama como um rubi entre as pedras; o retrato da dama é
extremamente vago e convencional; só em imitações da pastorela occitânica se
encontram alusões descritivas ao mundo das plantas e aves; a análise dos
sentimentos estereotipa-se. Por outro lado, a poesia occitânica caracteriza-se por uma
grande variedade de temas, mas a monotonia domina o conjunto dos cantares de amor
recolhidos nos Cancioneiros peninsulares, exceptuando um ou outro poeta, como Airas
Nunes, que descreve a Primavera, e que nota o contraste entre a constância dos
23
sentimentos e a mudança das estações, ou como João Garcia de Guilhade, que encara
com humorismo os jogos do amor . A diferença entre o lirismo provençal e o dos
Cancioneiros peninsulares revela-se principalmente na estrutura formal. O género
provençal característico, a cansó (canção), não se aclimatou na Península, a não
ser muito mais tarde, no século XVI, por influência de Petrarca. As cantigas de amor
sem refrão nem repetições - conhecidas pelo nome de «cantigas de meestria» por serem
aquelas que exigiam maior conhecimento da técnica provençal – constituem minoria.
O refrão encontra-se, efectivamente, na maior parte das cantigas de amor, assim
como o paralelismo, embora atenuado e por vezes mascarado. O poeta galego-
português só por excepção desenrola um pensamento com princípio, meio e fim ao
longo de uma série de estrofes; prefere o processo de modular em cada estrofe,
variando palavras e rimas, a mesma ideia. Esta construção dá à maior parte das
cantigas de amor um tom de lamento repetido e insistente, quando muito um
desenvolvimento, por assim dizer, em espiral, espécie de compromisso entre a
retórica de progressão rectilínea dos provençais e a estética repetitiva, circular, das
bailias. Há quem considere isto como o produto de uma sensibilidade étnica, mas há
que ter em conta que faltava aos poetas peninsulares ocidentais (portugueses, galegos,
leoneses, castelhanos) uma experiência literária que lhes permitisse acompanhar o largo
fôlego, a complexa estrutura e a eloquência discursiva da cansó provençal, Nestas
condições se vazaram os temas provençais, aliás imperfeitamente assimilados, dentro
dos moldes praticados pela escola jogralesca local, isto é, dentro do paralelismo e do
refrão; a isso ajustaram os seus dons, às vezes notáveis.
24
A influência provençal, portanto, ainda que flagrante, é integrada numa poesia
peninsular, de origem folclórica, difundida por jograis galegos, cujas formas originárias
estão representadas nas cantigas de amigo de estrutura paralelística mais simples.
O relativo primitivismo dos trovadores galego-portugueses que assimilaram a
influência provençal, adaptando-a às formas poéticas já existentes no seu país, não deve
confundir-se com a expressão de uma pura espontaneidade. Pelo contrário, há exemplos
de como o paralelismo e o refrão constituem para muitos deles um quadro formal
artificiosamente aproveitado. É fácil documentar em numerosas composições dos
Cancioneiros, sobretudo nas cantigas de amor, um exercício formalista, que dispõe de
uma arte ainda primitiva. Numerosos poetas se dedicam a inventar sentidos novos com
jogos de ritmos e de palavras. Contam-se entre estes processos formalistas os do
«dobre» e do «mordobre» (noutra leitura «mozdobre»). Consistia o primeiro em
repetir uma mesma palavra por cada estrofe, sempre nos mesmos lugares de
estrofe e verso (por exemplo, no final do primeiro e do último verso), jogando por
vezes com os seus vários sentidos, o que transformará em trocadilho um simples
processo repetitivo. Assim, um poeta comemora a tomada de Valença (Valência),
repetindo este vocábulo, ora para significar a cidade conquistada, seu valor ou
importância, ora para designar a valentia do rei conquistador. O mordobre só difere do
dobre por se não fazer com uma forma única, mas com flexões da mesma palavra
ou com formas etimologicamente afins.
Tal é o caso também do processo conhecido pelo nome de «atá-fiinda», aliás
pouco vulgar entre os provençais: cada estrofe termina no meio de uma frase, de modo
25
que o leitor tenha de procurar imediatamente o seu complemento na estrofe seguinte,
seguindo sem parar até a um remate de dois ou três versos, onde finalmente o período se
completa. Trata-se, afinal, de um caso especial de encavalgamento ou «enjambement»,
pelo qual as palavras indispensáveis ao sentido de um verso são atiradas para o verso
seguinte, com a particularidade de que os versos assim ligados constituem, na «atá-
fiinda», o termo e o começo de duas estrofes consecutivas. Ao contrário do que poderia
parecer à primeira vista, geralmente não conduz a uma sequência ininterrupta do
discurso, porque cada estrofe exprime afinal o mesmo pensamento, segundo o processo
repetitivo tradicional. É um mero jogo rítmico (não coincidência da pausa frásica com a
pausa estrófica); espertina a atenção do leitor, e cria nele um estado de expectativa que
pode ser utilizado para pôr em relevo a conclusão ou «fiinda». O uso regular , estrofe a
estrofe, do verso branco («palavra perduda») é também considerado, na Arte de Trovar
do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, como um artifício de mestria, por tornar
ritmicamente menos nítida a percepção do verso, apoiando-a apenas no isossilabismo
(número certo de sílabas), Todos estes processos, quebrando a coincidência das pausas
sintácticas com as pausas versificatórias, criando uma certa margem de imprevisibilidade
e de indeterminação rítmica (e isto numa altura em que o predomínio da transmissão oral
sobre a escrita ainda mais acentuava a importância do ritmo do verso), constituem, sem
dúvida, manifestações de uma mestria versificadora superior àquela que era exigida
pelos esquemas paralelísticos ou repetitivos mais fixos e com apoio musical.
A análise destes e de outros processos formais permite-nos acompanhar o
trabalho laborioso de poetas, em muitos casos profissionais, como Pêro da Ponte, que
26
ensaiam formas de expressão, adaptando esquemas antigos e imitando modelos
estranhos. O conjunto dos cantares de amor ressente-se destes tenteios, deste esforço
dos poetas para ascenderem a uma expressão culta a partir de formas primitivas, Daqui
resulta uma forma por vezes inacabada, uma série de tentativas malogradas, uma
oscilação entre o primitivismo e o preciosismo ingénuo que caracterizam no seu conjunto
este género, onde é difícil seleccionar uma obra-prima, Merecem todavia salientar-se
algumas realizações de D, Dinis, pêro da Ponte, João Garcia de Guilhade, Airas Nunes e
alguns mais.
Entre os géneros occitânicos de que é possível encontrar algum eco nos
cancioneiros galaico-portugueses contam-se a pastorela, já mencionada; a alba,
despedida dos amantes ao romper do dia (esboço da célebre cena shakespeariana em
Romeu e Julieta), de que indevidamente já foi aproximada a bela cantiga atrás referida de
Nuno Fernández Torneol; a canção de tear («Sedia la fremosa su sirgo torcendo» de
Estêvão Coelho), que revela a influência da chanson de toile dos trouveres da França do
Norte; o pranto à morte de um senhor venerado; a despedida (congé) e o descordo
(descort), que pretende traduzir um abalo emocional por várias mudanças de estrutura
estrófica, por uma sintaxe acidentada de hipérbatos ou por pretensas inconsequências
lógicas. As correspondências galaico-portuguesas a estes géneros caracterizam-se pela
simplificação já apontada, pelo recato da notação sensual, pela imaturidade das suas
tentativas doutrinais e, na sua maioria, por uma tendência para a expressão paralelística
da subjectividade feminina, o que permite classificá-las, por vezes (como com maior ou
menor razão se tem feito a muitas), entre as cantigas de amigo,
27
A sátira
As cantigas de escárnio e maldizer ocupam grande espaço nos Cancioneiros da
Vaticana e da Biblioteca Nacional de Lisboa, mal se distinguindo entre si. Têm por
assunto, na sua grande maioria, certos aspectos particulares da vida de corte e
especialmente da boémia jogralesca. A sua leitura revela-nos, além do resto, uma
sociedade boémia em que entravam jograis de corte, cantadeiras, soldadeiras
(bailarinas), fidalgos. O jogral e a sua companheira tinham um estatuto social de
marginais. Eram «artistas» da boémia, e por isso mesmo permitiam-se-lhes
liberdades de costumes e de fala vedadas no mundo regularmente constituído. Isto
explica que os vícios mais íntimos, as aventuras mais pícaras destes heróis truanescos
surjam assoalhados escandalosamente: as andanças e percalços de uma bailarina
versátil, os sapatos dourados de um fidalgo pretensioso, a voz de um cantor
enrouquecida pelos abusos do álcool, etc. não faltando mesmo uma abadessa elogiada
ou satirizada por um segrel quanto à sua experiência sexual. Mas estes marginais
fraternizavam com fidalgos, clérigos e até reis no mundo da boémia; vemo-los
misturados nos mesmos mexericos, usando a mesma linguagem, com grande
abundância de termos hoje considerados obscenos. É uma explosão carnavalesca
com raízes antiquíssimas e típica da Idade Média.
Raro se encontram nas cantigas de escárnio temas de alcance geral. Mas, nos
muitos casos anedóticos a que se referem, distinguem-se certos motivos frequentes,
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condicionados pelo ambiente. Toda uma massa de composições espelha os problemas
típicos da vida jogralesca. Numerosas cantigas, por exemplo, ocupam-se da sovinice dos
ricos-homens, da miséria envergonhada dos infanções: à escassez das classes nobres
são, naturalmente, muito sensíveis os jograis que, em paga do seu trabalho artístico,
pedem roupas ou alimento. Outro grupo de cantigas mostra-nos as disputas entre os
jograis e os trovadores fidalgos: aqueles porque pretendiam ultrapassar a sua condição,
que era, pelo menos convencionalmente, de simples executantes musicais, metendo-se
também a compor versos; estes porque defendiam a jerarquia, que limitava o papel do
jogral ao acompanhamento instrumental e ao canto da composição já criada pelo
trovador. Patenteia-se nestes conflitos que o jogral era um vilão, e o trovador, na maior
parte dos casos, um indivíduo da classe nobre. Não admira por isso que também a
ideologia da nobreza se exprima em numerosas cantigas satíricas. O plebeu, nobilitado
ou não, aparece muitas vezes coberto de ridículo, nos seus trajos e na sua figura.
Esboça-se aqui o tipo do «burguês», satirizado já pela comédia clássica, e mais tarde
pela commedia dell'arte, por Molière (Le Bourgeois Gentilhomme) e por D, Francisco
Manuel de Melo, Mas não é menos frequente a troça à pelintrice da pequena nobreza, de
um modo que preludia a farsa vicentina sobre os escudeiros esfomeados. Como
repertório pícaro ou pitoresco de costumes, testemunho voluntário ou involuntário de uma
ideologia, a sátira trovadoresca completa os Livros das Linhagens; em muitos casos o
gosto, por assim dizer, naturalista, da anedota vivida ou testemunhada prevalece mesmo
sobre a intenção trocista. E assim perpassam, já só por si interessantes, o velho que
29
desesperadamente se pinta e enroupa muito caro; a rapariga que a mãe antes ensina a
saracotear-se do que a coser e fiar; um cavalo faminto abandonado, como mais tarde o
de Tolentino, mas que se refaz com erva fresca depois das chuvas; gabarolices de falsos
romeiros à Terra Santa; fracassos imprevistos por um astrólogo; um juiz que se deixa
peitar; agoiros e superstições; incidentes variados de viagem e hospitalidade; uma
ex-soldadeira queixando-se, no confessionário, não dos antigos pecados, mas da velhice;
raparigas casadas (o poeta considera que vendidas) à força, ou impunemente raptadas;
abadessas cheias de condescendências, etc. Estas pequenas iluminuras entrudescas de
costumes são apresentadas com uma cordialíssima satisfação pelos simples factos, ou
com uma desfaçatez, um amoralismo, uma real ou imaginária auto-ridicularização pelos
seus protagonistas que contrastam surpreendentemente com a pudicícia moralizante de
quase toda a posterior literatura portuguesa.
Contam-se pelos dedos as composições em que os poetas cultivaram a sátira
como género de interesse geral, versando temas morais ou sociais, à maneira do
«sirventês» moral occitânico: tal é o caso de dois clérigos - ambos muito conhecedores
dos modelos provençais - Martim Moxa e Airas Nunes. O primeiro justifica uma visão
pessimista apocalíptica do mundo com os desacatos da honra e autoridade, a venalidade
dos validos régios, o empobrecimento geral, a omnipotência da lisonja e o desprezo pela
clerezia, ou cultura, chegando a abonar a imoralidade própria com a alheia. O segundo
apresenta-se procurando de porta em porta e sem resultado uma Verdade que não existe
em parte alguma, nem nos conventos e mosteiros, nem na cidade santa de Santiago de
Compostela. Pêro da Ponte dá-nos também alguns dos melhores testemunhos do tempo,
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quer através dos seus prantos, de que a sátira não está ausente, quer pela crítica às
arbitrariedades exercidas sobre certos concelhos. Como arma política, instrumento de
acção sobre a opinião pública, também a sátira foi entre nós pouco brandida.
Sobressaem, no entanto, as canções compostas por Afonso X, o Sábio, acerca dos
fidalgos que desertaram numa campanha contra Granada; e as composições em que se
profligam os alcaides dos castelos que atraiçoaram Sancho II na guerra civil de 1245, ins-
piradas talvez na corte de Afonso X, amigo e aliado daquele rei. Quer as composições
anedóticas, quer as de interesse geral, usam de processos métricos e' estilísticos que
estão longe de ser espontâneos. O teorizador anónimo da arte de trovar trecentista
que até nós chegou truncada parece reconhecer a influência, na cantiga de
escárnio, de uma retórica de tradição eclesiástica, portanto indirectamente
clássica, no uso satírico da aequivocatio, da alusão oblíqua, talvez mais apreciada
como processo artístico do que usada como eufemismo. Abunda, não só o
trocadilho malicioso, que serve mesmo de ossatura a várias composições mais
escabrosas, mas uma variadíssima técnica servindo toda a gama de humor a que a
matéria de facto pode ser sujeita. Nem sequer falta aquela subtil malícia a que as
retóricas clássicas chamam a lítotes e em inglês se designa expressivamente como
understatement: Gil Peres Conde atribui à sua má sorte, ou má hora, o esquecimento
régio de tantos bons serviços como os que enumera. E estes poetas, tão adestrados
pelas cantigas de amigo no mimetismo finamente irónico dos sentimentos alheios,
assumem frequentemente a voz das personagens focadas, ou de outras cujo ângulo
visual melhor trai o objecto de troça: assim, Diego Pezelho ascende ao sarcasmo
31
imaginando um prisioneiro, vítima da fidelidade a D. Sancho II, disposto a comprar a
liberdade em troca de um juramento, de traição. Até a blasfémia serve de veículo ao
humor, como, depois, em Gil Vicente, e vá de acusar desabridamente a Providência de
cumplicidade na clausura violenta da amada, se não mesmo de pecado mortal, porque
negou protecção aos seus mais fiéis vassalos. Agora a utilização literária do sonho:
Martim Moxa caracteriza a cedência dos senhores às insídias dos lisonjeiros com um
sonho em que teria visto um pequeno pássaro dominar, pela crista, outra ave mais
encorpada. E o absurdo: Martim Eanes Marinho faz o rol das dádivas de um infanção
pobretanas mas sempre a prometer mundos e fundos: umas calças de névoa de antanho,
um potro cor de mentira, uma loriga invisível, sem peso e cravejada de intrujice, um pau
de nevoeiro e outras muitas coisas de chufas guamecidas, Outro satírico pergunta ao rei
se lhe pagará depois de morto o que lhe deve, falando a propósito de «os vossos meus
dinheiros». Alegorias chistosas: os projectos de uma aventura de amor são
divertidamente descritos pelo protagonista e por um seu amigo em termos de materiais
de construção civil, pois se trata de «madeira nova», em calão de hoje «material novo»,'
outro satírico imagina deserto o leilão a que se expõe a pessoa de um mau rico-homem.
Em tons mais amargos, há aquele poeta que, numa tenção de escárnio, se recusa,
perante insistências do antagonista mordaz, a reconhecer de todo em todo a morte da
bem-amada; além de tantos outros que assoalham, rindo, os seus desaires eróticos mais
íntimos, hoje inconfessáveis. E há o admirável descordo em que Afonso X, saturado de
cuidados sentimentais, económicos e militares, desabafa a sua ânsia de fugir aos lacraus
da Meseta, abalar sozinho, feito mercador ou marinheiro, pelo mar em fora até qualquer
32
outra gente. Conforme se vê, o escárnio galaico-português dos anos de mil e duzentos ou
mil e trezentos contém em ovo muitas tonalidades que mais tarde se reconheceriam
afinal como líricas, Não admira por isso que Rodrigues Lapa, ao presentear-nos
finalmente com a edição crítica de todas as 428 composições classificáveis neste terceiro
género da escola trovadoresca, tenha incluído espécimes que também se poderiam
considerar como de amor, e até de amigo. O escárnio era o refúgio de uma variada gama
de subjectividade que ainda se não valorizava a si própria.
Versificação
O verso (que o fragmento de Poética incluído no Cancioneiro da Biblioteca
Nacional designa como palavra) é normalmente definido por um número certo de sílabas,
mas o isossilabismo acaba só por impor-se com rigor ao cabo de uma persistente
influência occitânica, pois de início (e nas cantigas de recorte paralelístico) há sinais de
uma regularidade mais frouxa. Não se nota a observância de regras uniformes quanto à
inclusão da última sílaba na contagem, quando o verso termina em palavra grave; apenas
se exige que a distribuição de rimas agudas e graves obedeça ao mesmo esquema em
todas as estrofes de uma mesma composição. Predomina, aliás, o verso agudo. O
número de sílabas oscila entre 4 e 16, dominando os versos de 7, 8 e 10 sílabas.
A Poética também não regista regras de acentuação tónica obrigatória, o que, tal
como a instabilidade na contagem silábica, revela a dependência do ritmo versificado
relativamente ao do canto, É contudo mais fácil reconhecer algumas tendências de
regularidade rítmica na cantigas de amigo, sobretudo paralelísticas, certamente por
33
corresponderem a esquemas de canto e dança mais fixos e tradicionais.
A estrofe (cobla, cobra ou talho) abrange de 2 a 10 versos, com predomínio de
7 nas cantigas de mestria e de 4 nas de refrão.
Os três géneros admitem, em regra, uma estrutura dialogal, mais típica do
escárnio (tenção); nas tenções o reptado deve obedecer às rimas do desafiante.
Assemelham-se às tenções as cantigas de seguir, cujas letras, semelhantes ou
contrastantes, se adaptam a um mesmo som, ou música, e tendem para a paródia.
Os numerosíssimos hiatos que a grafia arcaica regista impõem-se, normalmente, à
contagem silábica, mas há sinéreses mais ou menos frequentes, conforme o timbre das
vogais e o grau de uso correntio das palavras, Isto revela uma evolução fonética em
marcha, provavelmente retardada no verso por velhos hábitos de ritmar as palavras pelo
canto. O mencionado tratado de Poética ou Arte de trovar classifica já esse hiato como
um erro comparável à cacofonia, embora pareça admitir um hiato por verso desde que se
não trate de vogais do mesmo timbre.
Jean-Marie d'Heur descobriu num códice alcobacense do século XIV (CDIV 1286),
junto de um dicionário latino-português de verbos editado por H, H, Carter, curiosas
anotações em latim que confirmam e completam esta Arte de trovar quanto às estruturas
dos versos e estrofes.
Lopes, Óscar e Saraiva, A. José , História
da Literatura Portuguesa , Porto ed. ,16ª ed,
pg. 45 - 68
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