Pedra da Alma
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A Pedra
da alma
Um conto de world of warcraft
Diogo iendrick
2014
RENÚNCIA
Esta é uma obra de ficção. Os personagens e cenários aqui mencionados não são de minha
propriedade. World of Warcraft pertence à Blizzard Entertainment. Não há intenção de ganho
financeiro, sendo este conto apenas para fins de entretenimento.
Este conto é para a Vem Tormenta,
especialmente para o amigo Huor.
PARTE I
folhagem púrpura balançava preguiçosamente à brisa do início
da noite. O rio Olho d’Água um suave sussurro muitos metros
abaixo. Übrisil era uma das árvores mais altas da Clareira do
Oráculo e uma das poucas que abrigavam moradia. Não havia
escada que levasse ao amplo platô em sua copa e a elfa noturna preferia assim.
A solidão sempre fora sua melhor companhia.
A lua surgiu por entre as folhagens e sempre causava emoção à druidesa.
Ao perceber que era a maior das duas luas de Azeroth, se inclinou suavemente
e fez uma silenciosa prece à deusa Eluna. Em seu pensamento havia apenas
gratidão. Uma brisa morna envolveu seu corpo fazendo um arrepio percorrer
seus membros esguios. Ela sentia o poder da lua assim como sentia o poder da
natureza. Era abençoada.
Enquanto a maior parte dos druidas de Azeroth via Cenarius como
patrono, Thaynahra e sua ordem voltavam o olhar a Eluna, a mãe do semideus.
Algo incomum e talvez por isso fossem um grupo que minguava a cada dia. De
qualquer forma, o Pacto Lunar resistia. À arquidruidesa não importava que
fossem poucos e sim o propósito de sua união. Agiam em consonância com o
Círculo Cenariano e adotavam os mesmos princípios: a natureza precisava ser
preservada a qualquer custo.
O vestido de seda lunar verde era um dos seus preferidos. Bordado com
padrões de pequenas flores brancas, a deixava confortável e seria apropriado
para a ocasião. Descalça, Thaynahra caminhou suavemente por seu platô no
alto da grande Übrisil e se deparou com um magnífico espelho. O artefato era
um grande pedaço de vidro adornado pelos galhos da própria árvore. Toda a
mobília – se é que poderia ser assim chamada – de seu refúgio era de galhos,
folhas e tecidos; poucas peças de prata eram encontradas naquela moradia
élfica.
A imagem do espelho continuava a mesma por incontáveis eras; o
metabolismo élfico garantia isso. A pele rosada exalava a suavidade e o frescor
da aurora de seus dias. Talvez com mais sabedoria no olhar. Sim, ela mesma
podia notar. Não de forma soberba, mas com a resignação de uma
sobrevivente. A druidesa vivera incontáveis batalhas e perdera tantos amigos
que desistira de contar as baixas. A tristeza nublava seu rosto com facilidade.
Muito mudara em Azeroth. A própria geografia já não era a mesma. Thaynahra
lembrava dos gritos em Auberdine, tanto durante a Terceira Guerra quanto no
Cataclisma; ocupara a linha de frente em ambas as ocasiões. Jamais perdera a
fé, mas vacilara algumas vezes.
Decidira usar a tiara lunar, seu adereço preferido. A pequena lua
prateada cingia-lhe a testa, emitindo um brilho suave por entre seus cabelos. As
marcas tribais verdes atravessavam-lhe verticalmente os olhos, conferindo certa
selvageria ao rosto sereno da druidesa. Ajeitou os cabelos azuis esverdeados
que lhe desciam lisos até a metade das costas estreitas. Seus dedos rosados
deslizavam por entre as madeixas procurando o melhor caimento. Permitiu-se
mais uma olhada no espelho e seu rosto afilado esboçou um sorriso. Sentia-se
em paz naquela noite de Outono. A perspectiva de reencontrar grandes amigos
sempre lhe enchia de alegria. Uma alegria contida, mas verdadeira.
As luas se elevavam com rapidez no céu. Estava quase na hora. A
arquidruidesa caminhou em passos suaves até a borda do platô e com um
pequeno impulso se lançou aos céus de Kalimdor. Os segundos em que pairou
no ar até começar a cair lhe davam uma magnífica sensação de liberdade.
Então, com a facilidade dos anos de experiência, deixou a energia se revolver
em seu corpo e sentiu sua forma mudar. A mudança era rápida e não
representava mais dor depois de tantos séculos. Os braços abertos se
encolhiam levemente. Simultaneamente as pernas atrofiavam. A cabeça afilava e
o vestido de tecido magicamente fiado se atava ao corpo, fazendo parte da
transformação. As penas esverdeadas se projetavam por toda parte, cobrindo-a
por completo. Era um pássaro. Um corvo da tempestade.
A metamorfose não levava mais que alguns segundos, embora sentisse
todo o processo lentamente em seu íntimo. Transformar-se em um corvo da
tempestade era a última e mais difícil etapa das metamorfoses de um druida.
Depois de tantos séculos se tornara algo banal, porém ainda maravilhoso. O
vento adejava suas penas azuladas conforme ela se erguia. Sabia que deveria ir
para baixo, mas não poderia deixar de sentir os céus por alguns momentos.
Conforme descia em um voo espiralado, Thaynahra notou a forma
humanoide à beira de um dos poços lunares. Instintivamente sabia quem era e
se fosse possível sorrir em sua forma alada ela o teria feito. O elfo noturno
estava de costas, passando a mão suavemente sobre a superfície da água que
emitia um pálido brilho prateado.
- Aí está você. – o elfo falou suavemente sem desviar o olhar do poço
lunar.
Thaynahra se lembrava com clareza da primeira vez que o encontrara,
bem como de todas as outras vezes em que estiveram juntos. Observara de
perto o amadurecimento do jovem elfo noturno e o quanto seu poder havia
aumentado nas últimas décadas. Sua participação nas batalhas decisivas
durante o Cataclisma lhe valeram o título de arquidruida, do qual ele bastante
se vangloriava, mais de forma jocosa que soberba. Thaynahra alterou sua forma
novamente enquanto pousava, o vestido verde captando o brilho da lua que
refletia em suas flores bordadas.
- Sim, grande arquidruida. – o tom era de gracejo, como os dois
costumeiramente se dirigiam um ao outro.
- Não tão grande quanto você, minha amiga.
Berwyn se virou e encarou a velha amiga por alguns momentos. O sorriso
no rosto lilás estampava a sinceridade de sua amizade. Os olhos brilhavam com
uma tremenda vivacidade.
- Quanto tempo! – sorriu o druida.
Os dois se abraçaram por alguns momentos. Rever Thaynahra sempre
trazia à memória as aventuras em Nortúndria. Lembrava-se com nitidez da
primeira vez em que vira Dalaran e da risada da amiga diante de sua
estupefação. Ele era tão jovem à época. Ficara admirado com a grandiosidade
da cidade dos magos. Os telhados purpúreos abobadados, a magia pulsante.
Em seu íntimo procurava alguma daquela inocência, da admiração simples que
uma nova paisagem poderia causar e acabou constatando o quanto mudara em
poucas décadas.
- Fico feliz por ainda lembrar o caminho até aqui. - a provocação da elfa
escondia certo ressentimento.
O jovem druida apenas sorriu e os dois caminharam até a borda do poço
lunar. Era possível ver algumas Sentinelas em pontos mais afastados da Clareira
do Oráculo. Um fogo fátuo se aproximou curioso dos dois e logo em seguida se
afastou.
A quietude de Teldrassil era reconfortante. As árvores de tronco e folhas
purpúreos, a grama macia, o brilho do poço lunar. Tudo aquilo era um alento às
almas cansadas dos dois amigos. Como druidas, estavam intimamente ligados à
natureza e principalmente àquele local. Era como se uma orquestra tocasse uma
suave canção e eles fossem instrumentos junto com toda a fauna e flora de
Azeroth. Sentiam as folhas roçando umas nas outras, as águas do rio Olho
d’Água passando sobre as pedras, o esforço das pequenas mariposas em
aproveitar as brisas noturnas para equilibrar o voo. Ser um druida era estar
conectado intimamente à natureza e também não se perder em sua música.
- Acha que os outros virão? – Thaynahra relutara em perguntar.
A druidesa tinha medo da resposta. Tantos se foram. Muitos se afastaram
e outros não estavam mais entre eles.
- Claro! Devem chegar a qualquer instante. – respondeu otimista o
druida, embora, em seu íntimo, incerto.
Os dois sentaram na borda rochosa do poço lunar e fitaram as águas
tranquilas. Podiam sentir a vida ali. Vida e poder vibrando calmamente. O brilho
pálido que o poço emitia à luz da lua aumentava conforme a maior das duas
luas de Azeroth tomava os céus.
- Soube que sua irmã terminou os treinamentos. – a elfa noturna
perguntou hesitante, mas sentia a necessidade de tratar deste assunto.
- Ah sim. É oficialmente uma druidesa. – fez uma pequena pausa. -
Cerdwin foi muito aplicada aos treinamentos. Mais do que eu jamais fui. – o
druida acrescentou com certa irreverência; a irmã mais jovem era motivo de
orgulho.
- Isso é verdade! – sorriu Thaynahra.
Embora indisciplinado e distraído no início, Berwyn fora uma grande
aposta do Círculo Cenariano desde os primeiros dias de treinamento. No
entanto, havia se juntado ao Pacto Lunar por amizade à Thaynahra. A druidesa
desejava rir e relembrar as histórias do amigo na época de seu treinamento,
mas tinha assuntos importantes a tratar:
- Ela ingressará no Círculo Cenariano então? – a pergunta direta silenciou
o elfo noturno por alguns instantes.
Thaynahra o fitou enquanto o olhar do amigo estava perdido na
superfície do poço lunar. Os cabelos prateados presos em um longo rabo-de-
cavalo, o rosto tranquilo e jovial. A túnica verde e marrom de tecido grosseiro
escondia o verdadeiro apreço pelas roupas suntuosas que usava em batalha.
“Um arquidruida deve ser imponente, régio”, dizia ele de forma divertida. E, no
entanto, estava ali em sua túnica de algodão-prata. A druidesa podia reparar na
movimentação da natureza ao redor do elfo: o simples toque do pé do druida
na relva fazia acelerar o crescimento das plantas, que se abriam em folhas
verdes e novas. A vida fluía com vigor através do corpo de Berwyn.
- Não é minha decisão, você sabe. – O olhar do druida continuava
perdido no poço lunar. Seus dedos tocavam suavemente a superfície e parecia
que a água se agitava vividamente. – Cerdwin está ciente de minhas
preocupações e até mesmo de meu desejo. Mas a decisão cabe a ela afinal.
- Entendo... – a voz de Thaynahra baixa, quase inaudível.
- Ela não vê a Horda com maus olhos, Thay. – o arquidruida se dirigiu à
amiga com a informalidade da intimidade que partilhavam – Pelo que entendi
fez amizade com uma trolesa nos Reinos do Leste. Uma trolesa!! – a indignação
era pungente no tom de voz de Berwyn.
- Ela é jovem, meu amigo. Estamos em tempos diferentes. – a
arquidruidesa estava triste e também voltara seu olhar para o poço lunar.
- Tempos difíceis. Muito difíceis. Não consigo acreditar que o Círculo
Cenariano vá permitir trolls em suas fileiras. – completou o druida.
Uma perturbação no ar voltou o olhar dos dois abruptamente e
interrompeu a resposta da elfa noturna. Uma brisa agitou os cabelos dos
druidas. Instintivamente Thaynahra liberou um desencadeamento de energia
lunar e alterou sua forma, ficando parcialmente no plano etéreo. Um brilho
pálido e dissonante a envolveu, como minúsculas estrelas cadentes.
Berwyn também se preparou. As folhas se agitaram sob seus pés e uma
suave energia verde emanava de todo o seu corpo, se alastrando por alguns
metros ao redor. Cogumelos multicoloridos e de diversos tamanhos começaram
a brotar aleatoriamente, emitindo uma oscilante luminosidade verde. As árvores
se agitaram e raízes próximas começavam a se levantar em resposta.
Os druidas, em expressões severas, pareceram notar algo familiar à
medida que a perturbação manifestava traços azulados de energia arcana a
poucos metros do poço lunar. Em um piscar de olhos um portal se abriu e um
elfo noturno passou através dele, se colocando diante dos dois druidas. Era o
arquimago Huor em todo o seu esplendor de batalha.
Berwyn imediatamente sentiu a agonia da natureza pela chegada do
mago de fogo. Instintivamente estendeu seus poderes e um tapete de trama de
energia verde se espalhou sob os pés de Huor, protegendo a relva. A rapidez
com que o arquidruida agiu impediu a grama de se queimar, deixando apenas
algumas folhas levemente chamuscadas, rapidamente curadas por ele.
- Esse sabe fazer uma entrada triunfal. Perigosa, mas triunfal. – sorriu
Berwyn. O mago era um de seus amigos mais antigos e queridos.
- Por pouco não liberei energia estelar sobre você, Huor. – a druidesa fez
uma pequena pausa, se recompondo - Isso não é jeito de abordar amigos! –
Thaynahra ainda estava atônita e lutava para acalmar a energia lunar vibrando
ao redor de seu corpo.
O arquimago estava magnífico. Seu robe vinho escuro ardia em
pequenas chamas. Padrões vibrantes de amarelo atravessavam toda a roupa
como magma rasgando o tecido. O mago pulsava em fogo. O ar ficou quente
ao redor dos três e a brisa noturna parecia intimidada pelo poder de Huor.
- Gostaria de poder abraça-los, meus amigos. Mas precisamos ir.
Os druidas se entreolharam. Thaynahra foi a primeira a falar.
- O que houve, Huor? Ir para onde? – perguntou desconfiada.
Apesar de inquieto, Huor entendia a consternação dos amigos. Era
aguardado para uma reunião e então aparecia em chamas requisitando a
presença dos dois. Por instantes se deu conta da maneira com que se dirigira a
dois dos mais poderosos druidas de Azeroth, inclusive a líder de sua ordem.
Mas não havia tempo para desculpas ou grandes explicações. Não agora.
- Para onde mais? Batalha, meus amigos. – Huor utilizava o tom bem
humorado que lhe era peculiar.
O mago baixou o capuz de seu manto e o rosto amigável sorriu para os
amigos. A temperatura começava a normalizar à medida que o fogo se
apaziguava.
– É bom demais ver vocês.
Era o mesmo rosto sincero que eles conheciam de incontáveis batalhas
juntos. A pele levemente azulada, os cabelos brancos na altura dos ombros e a
barba bem aparada. Huor era um pouco mais alto que os dois amigos druidas e
existia algo de ameaçador em sua postura, talvez peculiar aos magos.
O sorriso do arquimago pareceu acalmar os outros elfos, mas nem por
isso diminuía o senso de urgência de sua chegada.
- Um ataque! Ainda não sabemos exatamente do que se trata, mas
precisam de reforços em... – o mago fez uma pequena pausa, relutante – Costa
Negra.
Huor sabia o quanto aquele nome significava para os amigos.
Especialmente para Thaynahra. A druidesa perdera incontáveis amigos na
Terceira Guerra e principalmente na devastação de Auberdine pelo Cataclisma.
A lembrança ainda era dolorosa demais e a fez baixar o olhar por alguns
instantes. Berwyn tencionou colocar a mão no ombro da amiga, mas hesitou.
Havia urgência na chegada de Huor e eles precisavam partir. A elfa encarou o
mago por alguns momentos.
- Existe um poço lunar nas ruínas de Auberdine. – sussurrou a druidesa,
ainda de cabeça baixa. Havia consternação em seu tom. As poucas palavras
denotavam a urgência.
Os poços lunares eram a preocupação principal do Pacto Lunar. A
ordem estudava a energia lunar latente nos poços, remanescentes da Nascente
da Eternidade. Estudava e protegia.
- Exatamente! Por isso o Kirin Tor me... – o mago não conseguiu terminar
a frase.
- Kirin Tor? – Thaynahra interrompeu, levantando a cabeça e encarando
Huor. Seu olhar era severo, mas logo se amenizou.
Uma tensão se instaurou por alguns segundos. Havia uma resistência
secular dos elfos noturnos com relação à magia. Pouquíssimos enveredavam
pelo caminho dos estudos arcanos e os que o faziam não eram bem vistos. O
perigo da corrupção arcana seria sempre uma sombra para a raça. Huor não
continuou a frase, nem tampouco os druidas o instigaram, embora a simples
menção ao Kirin Tor fosse suficiente para inquietá-los.
A resignação atravessou o olhar da elfa noturna e seu íntimo se acalmou.
Huor percebeu quando a amiga relaxou a postura. O mago sabia que o senso
de responsabilidade falaria mais alto, embora reconhecesse o preço.
- Precisamos avisar aos demais membros de nossa partida. Estão para
chegar a qualquer momento. – finalmente falou Thaynahra, ignorando por ora a
menção ao Kirin Tor, ao que os amigos agradeceram silenciosamente.
Atendendo à preocupação da líder do Pacto Lunar, o arquimago traçou
com os dedos algumas runas. Um rastro de energia arcana se formou,
entalhando no ar o pequeno aviso azul flutuante. Imediatamente em seguida
Huor conjurou um portal grande o suficiente para os três atravessarem. O
zumbido logo se dissipou e a Clareira do Oráculo ficou novamente em silêncio,
as águas do poço lunar cintilando à luz das duas luas de Azeroth.
PARTE II
ostanegra, que já fora uma das mais prósperas regiões do
império kaldorei, agora era apenas mais um dos muitos locais
devastados no evento que ficou conhecido como Cataclisma.
Suas praias rochosas, montanhas entrecortadas por rios e
cavernas deram lugar a ruínas espalhadas de construções élficas de diversas
eras.
O zumbido característico do portal arcano se fez em uma língua de terra
nas Ruínas de Lornesta, a leste do que restou de Auberdine. O mago Huor e
seus dois companheiros, já totalmente vestidos para a batalha, se
materializaram abruptamente.
A região sempre fora inóspita e agora parecia ainda mais tomada pela
vida selvagem. O Cataclisma aumentara a instabilidade dos elementos em Costa
Negra. Vento, chuva e descargas elétricas constantemente assolavam a região,
sem manifestar aviso de sua aproximação. Elementais vagavam sem rumo e fora
de controle. Os três elfos noturnos encontravam-se em meio a um alagamento
provocado pela destruição do solo. Um rio corria revolto às suas costas.
Apesar dos esforços do Círculo Cenariano e do próprio arquidruida
Malfurion, a natureza permanecia descontrolada. Os abalos estruturais causados
pela ascensão do Asa da Morte eram profundos e não pareciam solucionáveis a
curto prazo. Um destacamento de druidas cenarianos permanecia na região,
juntamente com xamãs da Harmonia Telúrica. Até o momento todos os seus
esforços pareciam infrutíferos.
Thaynahra e Berwyn, com algum esforço, bloqueavam as emoções que a
natureza ao redor lhes passava, mas era nítida em seus semblantes a alteração
de humor provocada pela revolta da natureza. O treinamento druida ensinara a
separar essas emoções, pois de certa forma eles eram a própria natureza e a
revolta desta era a mesma deles. A arquidruida tocou o pingente em formato
de lua que carregava no pescoço em uma silenciosa prece à Lua. O simples fato
de estar em Costa Negra a deixava desconfortável. A sensação de perigo
iminente a tomava por completo. A druidesa deixou seu corpo migrar
parcialmente para o plano etéreo, tornando sua figura translúcida. Pequenos
pontos estelares circulavam seu corpo, emitindo um brilho pálido.
A elfa noturna trajava uma túnica verde e dourada de tecido grosso,
encimada por grandes ombreiras cobertas de penas azuis. Eram acessórios
antigos, de uma era há muito passada. As leves descargas elétricas que
perpassavam as ombreiras a lembravam de aventuras anteriores. Thaynahra
estivera com essa mesma vestimenta em Auberdine, não muito antes. Os anos
são horas para quem viveu por eras.
Um assovio longo chamou a atenção do grupo. Para os ouvidos
treinados dos três elfos estava claro que não era um pássaro, embora a
semelhança fosse enorme. Imediatamente o arquimago olhou para o alto de
uma formação rochosa acima do rio e sorriu aliviado ao ver uma elfa noturna
descendo em incrível velocidade. Ao seu lado corria um animal branco, ainda
mais rápido e impossível de identificar à distância.
Os dois druidas imediatamente reconheceram a caçadora Ninde. O
cabelo azul índigo, preso por uma tiara, balançava ferozmente à brisa noturna.
As orelhas pontudas vibravam ao impacto dos pés da elfa com o solo, embora
fosse o único indício de seu contato com a terra; Ninde parecia flutuar em sua
corrida acelerada. Com a proximidade era possível também identificar Felpas,
sua altiva raposa branca.
Caçadora e fera pararam diante dos recém-chegados. Ninde fez uma
ligeira mesura saudando os dois amigos e então se deixou envolver nos braços
de Huor para um breve beijo. Elfos noturnos eram bem discretos na
manifestação de seus afetos; talvez por isso o ligeiro desconforto dos dois
druidas. Mas Huor sempre fora um elfo peculiar e Ninde era sua companheira
há incontáveis décadas. Felpas farejou os dois druidas amigavelmente e então
se colocou ao lado da caçadora novamente.
A grande raposa parecia sobrenatural em sua pelagem imaculadamente
alva. As pontas das patas eram de um negro profundo e causavam um belo
contraste com o restante do pelo. Os olhos eram vivos e inteligentes, levemente
avermelhados. Orelhas pontiagudas e compridas se mexiam atentas a qualquer
movimento.
- Ninde! Que a lua brilhe sobre você. – Berwyn rompeu o silêncio.
- Sobre todos nós, meus amigos! – a voz da caçadora era melódica e
bastante afetiva.
Huor olhou ao redor e em direção a Auberdine. Fitou a amada por alguns
instantes.
- Algum sinal?
- Nada. As feras não avistaram qualquer movimentação. Nem por terra e
nem por ar. – a elfa noturna parecia preocupada. Os cabelos azuis caíam por
sobre os ombros. A caçadora usava uma bela cota de malha élfica esmaltada de
verde com pequenos detalhes roxos em formato de folhas. Uma longa capa
verde musgo pendia-lhe dos ombros ao chão. O olhar treinado era
extremamente atento a tudo o que acontecia ao redor. – Tudo estranhamente
quieto. Nenhum sinal do Kirin Tor.
Thaynahra respirou fundo.
- Huor, qual foi exatamente a mensagem que recebeu? Precisamos saber
com o que estamos lidando.
Huor olhou em direção a Auberdine com uma expressão inescrutável.
Respondeu à amiga ainda com os olhos fixos no horizonte.
- Eles interceptaram uma mensagem. Identificaram um destacamento da
horda em uma missão ao poço lunar de Auberdine. Pelo que puderam
descobrir trata-se de algum experimento goblínico.
- Horda... – O druida Berwyn murmurou baixo, suspirando. Thaynahra
parecia confusa.
- E por quê contataram você? Eles poderiam me avisar pelas orbes de
comunicação. Ou então um mensageiro.
Huor pareceu constrangido. Ninde o encarava severamente, aguardando
uma resposta. O mago percebeu e assentiu.
- Rhonin me fez uma nova proposta...- o elfo noturno fez uma pequena
pausa e fitou seriamente os dois amigos - e eu resolvi aceitar.
Berwyn e Thaynahra permaneceram impassíveis. Se algum pensamento
passava pela mente dos dois, eles não demonstraram. Por fim, a arquidruida
rompeu o silêncio, embora sua voz não traísse qualquer emoção.
- E em que parte dessa história Berwyn e eu nos encaixamos em uma
missão do Kirin Tor?
A pergunta atingiu Huor de surpresa. Demonstrava o ressentimento da
druidesa e também um pouco do desprezo que sentia pela ordem dos magos.
Não que houvesse alguma rixa entre os grupos ou mesmo qualquer
estranhamento. Apenas o receio pela utilização da magia e principalmente pela
aproximação de novos elfos noturnos a esta.
- Vocês são meus amigos, Thay. – o tom do arquimago era sincero e
amigável. – Continuam sendo as melhores pessoas para se estar ao lado em
qualquer missão. E estamos falando de um poço lunar. É algo de nosso
interesse... o Pacto Lunar.
Um pequeno silêncio se instalou. O ruído do rio e a fúria dos elementos
à distância eram tudo o que ouviam.
- Estamos com você, meu amigo. – Berwyn respondeu, um esboço de
sorriso no rosto, a mão levemente sobre o ombro da druidesa. Gostava da
aproximação de Huor com o Kirin Tor tanto quanto Thaynahra, mas não deixaria
o amigo sem ajuda. E de qualquer forma, tratava-se de um poço lunar. A
druidesa apenas assentiu com certa indiferença.
Um grasnado se fez ouvir e rapidamente um borrão negro voando em
direção ao grupo revelou ser um corvo. Ninde estendeu o braço e o animal
desceu de seu voo. Com suaves batidas das asas negras brilhantes se
aproximou e pousou no braço da caçadora. O pássaro se agitou, abriu e fechou
o bico algumas vezes emitindo um piado quase inaudível. A elfa noturna franziu
o cenho, virando para os amigos:
- Estão aqui. – uma pequena pausa e um olhar para o arquimago. – A
Horda.
Os quatro elfos olharam em direção a Auberdine e pouco puderam notar,
embora sentissem instintivamente uma ameaça pairando no ar. A luz da lua
atravessava o corpo translúcido de Thaynahra e refletia intensamente nas
partículas estelares ao seu redor. A druidesa fechou os olhos e abaixou-se,
encostando a mão direita na superfície da água do rio. Um estremecimento
percorreu seu corpo.
- As águas do poço estão perturbadas. Posso sentir.
Ninde parecia escutar o ar. Apesar da dificuldade em relação aos
elementos instáveis de Costa Negra, a caçadora era uma exímia rastreadora. A
raposa branca permanecia inquieta a seu lado, com os pelos eriçados. Existe um
vínculo muito forte entre caçador e fera. Ambos partilham sensações e Felpas
visivelmente sentia a apreensão de sua mestra, além, é claro, de seus instintos.
- Ier il ereb! – sussurrou a caçadora em sua língua nativa, informando aos
amigos de que não estavam sozinhos.
- Precisamos nos aproximar. – Berwyn fitavam Auberdine ao longe. – O
que aconselha, Thay?
Os três elfos noturnos encararam Thaynahra, que durante um bom
tempo parecera não perceber sequer a presença dos amigos. O olhar da
druidesa parecia distante. Ao término de alguns bons minutos ela finalmente
respondeu.
- O que devemos fazer, Huor? Você convocou esta missão. – a druidesa
encarava o mago com seriedade. Mais uma vez Huor ignorou o tom frio da
amiga.
- Vocês podem se aproximar furtivamente? Ninde providenciará alguma
distração. Assim que nos aproximarmos podemos estabelecer um perímetro e
proteger o poço lunar.
Os amigos assentiram como se tivessem debatido minuciosamente o
plano e soubessem exatamente o que fazer.
O poço lunar de Auberdine era um dos mais antigos de Azeroth.
Diferente dos outros poços, suas águas eram normalmente agitadas, em
consonância com os elementos de Costanegra. Localizava-se, atualmente, em
uma elevação de terra ocasionada pelos terremotos, formando um pequeno
precipício em relação às áreas mais baixas da região.
Thaynahra e Berwyn aproximaram-se lenta e furtivamente em suas
formas felinas. Ela de pelagem azul e ele de pelos brancos. Moviam-se com
impressionante destreza, mal alterando a relva em que pisavam. A
arquidruidesa estava um pouco à frente do amigo e se aproximava do poço
lunar com determinação. A atitude de Thaynahra preocupava Berwyn, mas ele
não se atreveria a interroga-la ali. Não em meio a uma aproximação furtiva.
Avistaram a Horda. Um grupo pequeno e sem estandartes. Fossem quem
fossem, não pareciam agir em nome de alguma organização ou facção. Um
imenso troll de pele azul clara parecia coordenar a ação.
O poço lunar estava intocado, pelo que puderam perceber. Mas não
ficaria assim por muito tempo. Cinco goblins engenheiros montavam um
maquinário. Os druidas também notaram alguns orcs de sentinela a alguns
metros do pequeno grupo.
- Andem logo com isso aí. – vociferou o troll para os engenheiros, que
apenas o ignoraram.
Os goblins conectavam fios e faziam pequenos ajustes em uma espécie
de centrífuga, pouco maior que eles próprios. Uma tubulação bastante avariada
era puxada em direção ao poço lunar.
Berwyn e Thaynahra, invisíveis em suas formas felinas, pararam à certa
distância. Não ousavam maior aproximação sem Huor e Ninde. Havia um
imenso lobo adormecido próximo ao troll. Isso e o arco em suas costas
indicavam que era um caçador. Certamente seriam rastreados se chegassem
próximos demais.
Era intrigante todo o aparato instalado pelos goblins. Os poços lunares
nunca foram preocupação da Horda, tampouco tinham poderes conhecidos. Era
impensável que um poço lunar pudesse despertar o interesse de um grupo tão
improvável quanto aquele: goblins engenheiros comandados por um troll
caçador.
O grande troll parecia demasiadamente ansioso com o andamento de
sua misteriosa missão. Olhava atentamente a movimentação dos pequenos
goblins, que ignoravam os impropérios ocasionais do grande caçador.
Mago e caçadora aproximaram-se invisíveis, mas não passaram
despercebidos por seus amigos. Os quatro se reuniram atrás de um grande
tronco de árvore, os druidas já em suas formas élficas. Thaynahra explicou
brevemente a situação.
Havia um receio pouco perceptível na voz da druidesa. Em seu íntimo
ainda pesava o desconforto por estar em Auberdine, agora somado à sua
participação involuntária em uma missão do Kirin Tor. Algo não estava bem
explicado e ela não conseguia digerir a situação. Apenas rezava à Lua para que
seu desconforto não prejudicasse sua razão e sua concentração. Sentia que
precisaria de toda esta em instantes.
- Temos o elemento surpresa e a distância. Não precisamos de
aproximação para ataca-los. Vamos estabelecer um perímetro. – A objetividade
de Ninde era precisa em sua observação. A caçadora imediatamente
desamarrou sua aljava das costas e começou a fincar algumas flechas no
terreno.
À distância Huor conseguiu avistar o pequeno e improvável grupo.
Engenheiros e um troll. Um troll caçador. O reconhecimento atingiu o
arquimago como um forte soco no estômago. O ar lhe faltou rapidamente e um
estremecimento percorreu todo seu corpo. Ele sabia quem era o caçador à beira
do poço lunar. Por alguns instantes sua mente pareceu flutuar e seu corpo
entrar em algum processo de letargia. A pele azul clara, o cabelo esbranquiçado
e espigado. O olhar zombeteiro e alucinado. Imediatamente Ninde percebeu
que havia algo de errado com seu amado. A elfa noturna parou ao lado do
mago e encarou o grande troll metros à frente.
- O que houve, Huor? O que aconteceu?
O grupo de elfos noturnos ainda não fora percebido pelo destacamento
da Horda. O arquimago estava atônito. A expressão de Huor lentamente
adotava um tom sombrio e ele pareceu balbuciar algo. Como sua companheira
não parecera entender, os lábios do mago soltaram um nome. Lentamente. Um
nome que a caçadora conhecia, e também o seu significado:
- Ironshörds!!
Ninde alternou o olhar incrédulo entre o companheiro e o troll ao lado
do poço lunar. Os dois druidas se aproximaram, estranhando a parada
repentina do casal. A lua refletia no cabelo prateado de Berwyn e uma brisa
quente os envolvia. Foi Thaynahra quem percebeu que a quentura emanava do
arquimago.
Do ponto onde estavam era improvável que fossem vistos. O grupo do
Pacto Lunar encontrava-se em uma elevação de terra, fruto da destruição
provocada pelo Cataclisma. Um grande tronco caído lhes providenciava um
belo esconderijo. O caçador troll liderava um pequeno destacamento de
goblins. Pareciam despreocupados na missão que os trouxera ali.
- Huor conhece aquele troll. – Thaynahra reparou certa melancolia na voz
de Ninde e olhou curiosa para o casal.
- O que está acontecendo, meu amigo? – Berwyn tentava manter a voz
calma de forma a inspirar o mago.
- É Ironshörds, Berwyn! IRONSHÖRDS!! – o mago quase gritou o nome
do troll.
Os elfos noturnos se agitaram e olharam inquietos em direção ao poço
lunar, receosos de que a Horda tivesse ouvido o quase grito de Huor. Ninde
encostou a mão no ombro do amado, em uma tentativa de acalma-lo, mas
afastou rapidamente ao perceber que Huor estava quente.
Berwyn se lembrava de Ironshörds. Huor lhe contara a história e o
arquidruida não estranhava a reação do velho amigo. Os três elfos noturnos
conheciam o arquimago bem o suficiente. Sabiam que a batalha era iminente e
que seria desesperada. Huor não manteria o controle de sua raiva por muito
tempo.
Os sonhos se tornaram bem menos constantes, mas a lembrança da
humilhação causada pelo troll ainda o perturbava ocasionalmente. Huor era
bem jovem quando se deparou com o já experiente troll caçador em uma
missão no Vale Gris. Durante dias foi caçado impiedosamente pelo troll.
Ironshörds o perseguira incontáveis horas com lobos e hienas famintos.
Quando estava prestes a captura-lo, desaparecia sem deixar rastros, para então
reaparecer e continuar com sua caçada insana. Era apenas diversão. Huor se
lembrava das risadas. Ainda as ouvia algumas vezes. Ouvia a voz de Ironshörds
ordenando às feras que pegassem o coelho assustado. Não, não conseguiria se
controlar. Não imaginava jamais reencontrar o troll. Sentia o calor do fogo. O
calor do seu próprio fogo.
- Ironshörds é meu. Cuidem do poço.
- Huor!! – o chamado de Ninde foi em vão. Sabia que o amado não a
ouviria. O arquimago podia ser bastante temperamental quando queria.
As chamas envolviam ferozmente o corpo de Huor. Os três amigos se
afastaram do calor crescente e seguiam o mago enquanto este se aproximava
da Horda. Apenas Ninde manteve-se no lugar em que fincara as flechas,
acompanhada da raposa branca Felpas. Sendo uma caçadora de precisão, a
distância a beneficiava e ajudava manter o foco.
A engenhoca goblínica já estava montada e em funcionamento. O troll
observava com olhos vidrados enquanto os goblins abriam um container
acoplado à centrífuga. Uma pequena esteira em movimento acoplava os dois
objetos. Os elfos noturnos observaram incrédulos quando a grotesca bolha
vermelha saiu do container em direção à centrífuga.
Era de um vermelho vibrante e parecia ter vida própria. Pulsava e liberava
um cheiro pungente, a julgar pelos goblins cobrindo o nariz. Para os elfos
noturnos não havia dúvida da procedência daquela bolha, o que não diminuía
em nada o choque da constatação. Mas eles estiveram na Queda do Asa da
Morte. Participaram daquele evento apocalíptico e quase perderam suas vidas
nele. Sabiam que se tratava de uma bolha de sangue corrompido do próprio
Asa da Morte.
Que efeitos teriam uma mistura do sangue corrompido com as águas do
poço lunar, Thaynahra desconhecia, mas não acreditava que a Horda estivesse
ali para um teste isolado. Alguma coisa eles sabiam. Quem estaria por trás
dessa empreitada? Não fazia sentido que algo dessa magnitude fosse uma ação
desprendida de um troll lunático. E como conseguira aquele sangue
corrompido? Haveria outras amostras? Isso era extremamente perigoso sequer
de se pensar.
A arquidruida imaginava que esses pensamentos ocorressem também a
Berwyn, mas ao olhar para o amigo mago, o via apenas consumido em seu ódio
determinado. Huor se aproximava do grupo da Horda cada vez mais rápido,
marcas negras nos locais em que pisava. A druidesa se perguntava se ele sequer
tinha percebido do que se tratava a grande bolha vermelha.
- IRONSHÖRDS!!!
O poderoso grito do arquimago ecoou através do terreno calamitoso de
Auberdine, surpreendendo não só o pequeno grupo da horda, mas também
seus próprios amigos. Os pequenos engenheiros olharam sobressaltados e
temeram o que viram.
Se na Clareira do Oráculo, Huor parecera esplêndido, neste momento
assemelhava-se a um deus do fogo. Sua ira irrompia em chamas, afastando
ainda mais os amigos. Era impossível até mesmo enxergar o robe vinho, pois
Huor vestia o puro fogo. O cajado em sua mão pulsava como brasa viva.
O troll caçador olhou incrédulo em direção aos elfos noturnos. Estava tão
absorto em sua missão que não cogitava ser interrompido, apesar de estar em
território da Aliança. Os elfos noturnos assumiram posição de combate,
formando um triângulo com Ninde mais atrás e Berwyn ao centro.
- Que merda é essa? – grunhiu o troll.
- A sua destruição, maldito! – era possível sentir o ódio na voz de Huor e
nas chamas ao seu redor. – Hora do acerto de contas!
Ironshörds mostrava uma expressão de confusão. Esquecera por alguns
momentos de seu empreendimento e dos goblins, que se moviam
agitadamente à sua volta. Em um movimento instintivo, alcançara o arco às
costas. A fera ao seu lado permanecia dormindo profundamente.
Ao arquimago não faria diferença explicar ao troll quem ele era. Sabia
que fora um evento insignificante na vida de atrocidades do caçador, mas não
perderia a oportunidade de informar quem era. E no que se tornara.
- Vale Gris. – Huor começou. A voz profunda e alta, para se fazer ouvir,
diferente do tom amigável que lhe era comum. – Caçado por dias. Apenas por
diversão.
O troll irrompeu em uma longa e insana gargalhada e instintivamente os
druidas souberam que não contariam mais com o autocontrole de Huor.
Com um som grave ensurdecedor, os elfos assistiram atônitos à
formação de um imenso domo ao redor do grupo da Horda. Logo identificaram
dispositivos posicionados ao redor deles projetando a energia rosa. Os dois
druidas se entreolharam, pouco escondendo a surpresa.
- Um domo de engenheiro! – Thaynahra gritou para os amigos. – Huor,
temos que concentrar forças no domo.
Huor não parecia sequer ouvir. O mago de fogo estendeu o braço direito
em direção ao troll e observou a bola de fogo se formando e crescendo sobre
seus dedos crispados. Os olhos vidrados em Ironshörds.
O arquidruida se aproximou da amiga, em voz baixa.
- Thay, isso não vai ficar bem. Huor está fora de nosso alcance e mal
entramos em combate.
A druidesa respirou fundo e encarou Berwyn por alguns instantes. Algo
dentro dela era totalmente contra estar em Auberdine e no entanto estava ali.
Berwyn era um excelente curador, mas sua atenção precisava estar totalmente
focada na cura. Ninde era perita em sobrevivência, rastreamento e possuía uma
mira espetacular, mas dificilmente engajava-se em missões de grupo. Era uma
caçadora solitária quando não estava próxima ao companheiro. Caberia a ela, a
arquidruidesa Thaynahra liderar um ataque em Auberdine. Mais um. Esperava
que este fosse menos trágico que os anteriores.
- Está certo, Berwyn. Vou fazer o possível para liderar esta loucura.
Depois exijo explicações. Seja de Huor, do Kirin Tor ou de quem for.
Olhando em direção ao domo, Thaynahra notou que o resultado da
centrifugação estava agora nas mãos de Ironshörds. Uma tigela rústica com
pouco menos de um metro de diâmetro. O troll a erguia com avidez. O
arquidruida percebeu a ansiedade da amiga e olhou incerto em direção à
Horda.
- Ele vai...
Beber. Ironshörds virou entre suas presas o resultado viscoso da
centrifugação da água do poço lunar com o sangue corrompido do Asa da
Morte. Os três elfos noturnos observaram incrédulos. Até mesmo Huor pareceu
hesitar, com uma bola de fogo ardendo entre seus dedos.
- Berwyn!! Aconteça o que acontecer, preciso que aquela centrífuga e o
poço lunar sejam protegidos. O troll não consumiu todo o resultado
abominável daquela mistura. Temos que recupera-los. – A voz de Thaynahra era
incisiva. Em seu íntimo realmente assumira o comando. O druida assentiu com
seriedade.
Ser um druida curador é ser a natureza. É através de um árduo
treinamento que um druida de restauração, como são chamados, aprende a
separar sua consciência da fauna e flora do planeta. Com o arquidruida Berwyn
não era diferente. Bastava afrouxar suas defesas à natureza e esta respondia.
Um gramado verde e brilhante cresceu em segundos sobre o pequeno
penhasco em que se encontravam. As folhas das árvores próximas agitavam-se.
A própria roupa do druida, feita de couro e folhas, florescia. Suas ombreiras
eram de folhas verdes e novas. Um aroma amadeirado o cercava. Cogumelos
brotavam por vários metros e um brilho verde emanava da relva.
Uma mudança começava a ocorrer com o troll. Ironshörds estava
arqueado no chão e gritava em agonia. Algo parecia se mexer
descontroladamente sob a pele do caçador, que começava a escurecer em
diversos pontos.
- Precisamos descer o domo! Huor, me escute!! Vamos concentrar os
esforços. Ainda podemos pegar o troll em desvantagem. – A druidesa tentava,
mais uma vez, chamar o mago à razão.
- Ironshörds é meu! – o elfo noturno nem ao menos se virou para a
amiga. A bola de fogo em sua mão atingira um enorme diâmetro e ele a atirou
com força em direção ao domo. Um baque surdo. O fogo se espalhou em torno
da área de colisão por alguns segundos, mas o grande escudo de energia
continuava intacto.
O processo de transformação do troll parecia chegar a um nível de
estabilização. Seu corpo praticamente dobrara de tamanho, deixando alguns
membros disformes. A pele de Ironshörds emanava uma fina fumaça,
apresentando escamas escuras calcificadas em toda sua extensão.
Levantando vagarosamente, Ironshörds parecia acordar de um transe.
Olhava com surpresa para seus próprios membros transformados. Fechava e
abria as mãos, sentindo a força fluir. Um sorriso se esboçou em seu rosto, bem
lentamente, transformando-se em uma risada gutural.
Os pequenos engenheiros olhavam estupefatos para o resultado de seu
experimento, um misto de pavor e deslumbramento. Não ousavam uma
aproximação do troll e sibilaram de medo quando este lhes dirigiu a palavra.
- Desçam o domo!
Os goblins se entreolharam com incredulidade. Três elfos noturnos
preparados para combate os aguardavam furiosamente e tudo o que os
mantinham a salvo era o domo de energia rosa. O momento de hesitação teve
fim quando o troll, agora transformado em uma monstruosidade, ordenou mais
uma vez, em um grito apavorante, que desativassem o escudo de proteção. Os
goblins correram desorientados por alguns instantes e atenderam à ordem.
Mal o escudo desapareceu e o troll correu em direção ao pequeno grupo
da Aliança, ignorando seu próprio arco atirado ao chão. Aquela arma não
representava mais nada para o caçador, que agora se tornara sua própria arma.
Ninde estivera aguardando pacientemente de sua posição no alto de um
frondoso abeto. Era uma caçadora experiente e preferia permanecer oculta a
maior parte do tempo. Suas flechas podiam cobrir dezenas de metros e podia
manter um foco e concentração melhores enquanto estivesse fora da vista do
inimigo. Soltou a tensão do fio do arco e a flecha zuniu em um rastro de cor
púrpura característico do tiro arcano. Em menos de dois segundos completos o
arco já disparava uma segunda flecha em direção ao mesmo alvo.
As duas primeiras flechas atingiram em cheio o peito do monstruoso
troll, porém sem causar qualquer ferimento. Apenas fincaram-se como uma
indiferente penugem na carapaça de Ironshörds. A caçadora observara todo o
processo de transformação e desconfiara que suas flechas fossem inúteis em
um primeiro momento. Tateou uma flecha especial em sua aljava e a encontrou
rapidamente. Renovaria o veneno de mantícora aplicado ao lobo de Ironshörds;
atirara a primeira flecha antes dos engenheiros implantarem o domo e o efeito
poderia se dissipar a qualquer momento.
O fogo estalava sobre o corpo de Huor à medida que se preparava para a
aproximação de Ironshörds. Um pedregulho flamejante atingiu o troll em cheio,
atirando-o alguns metros para trás. O caçador foi atrasado por alguns
momentos, dando vantagem a Huor, que em um piscar de olhos se
movimentava em diferentes direções, atingindo-o de diferentes formas.
Os engenheiros disparavam tiros em todas as direções. Usavam armas de
fogo de formatos variados. Os tiros rasgavam o ar com extrema velocidade e
atingiam os elfos noturnos com frequência, atravessando-os. O trabalho
compenetrado de Berwyn fazia com que não passassem de pequenos
incômodos; mal a rajada atravessava a pele de Thaynahra e a ferida cicatrizava.
A druidesa movia-se com graciosidade, elevando as mãos e conjurando
raios lunares contra seus oponentes. Os goblins tinham dificuldade em se
manterem parados. Precisavam correr a todo instante, fugindo do surto estelar.
Apesar de ser uma druidesa de habilidades de equilíbrio, seu treinamento
contemplara aspectos básicos de comunhão com a natureza. Sendo assim,
Thaynahra fez com que raízes brotassem do solo, prendendo dois goblins por
alguns momentos. Foi o suficiente para disparar energia de ira solar em um e
fogo estelar no outro. Os dois foram facilmente abatidos e ela pôde reparar que
Berwyn mantinha o terceiro preso em um modesto ciclone.
O troll se movimentava com lentidão, o que dava certa vantagem a Huor.
Os dois estavam engajados em um combate acirrado. Ódio brilhava e crescia no
olhar do mago de fogo. Movia-se com rapidez e até mesmo precipitação em
alguns momentos. Sua vantagem ainda era maior devido à inabilidade do troll
com seu novo corpo.
- Coelho orelhudo! Vou esmagar você e usar seu crânio como pote de
mijar! – Ironshörds não parecia sequer cansado. Continuava em suas investidas
contra o arquimago.
Um assovio soou alto e em alguns instantes animais selvagens, vindos de
todas as direções, avançaram em direção ao troll. Um urso marrom, dois lobos e
uma aranha gigante fizeram com que Ironshörds se detivesse por alguns
momentos. Os animais estavam sob comando de Ninde, que se aproximava da
batalha.
Berwyn observava as frentes de batalha com atenção. Thaynahra
verificava rapidamente os danos causados ao poço lunar e preparava-se para
investir contra o troll. Huor aproveitava o momento para se concentrar. As
chamas ardiam ao seu redor formando uma bolha de calor alcançando mais de
dois metros além de seu corpo.
A selvageria dos animais parecia ter conseguido causar algum dano ao
troll, que estava ainda mais irritado. Havia sangue em partes de seu corpo,
embora não parecesse profundamente ferido. Ironshörds olhou ao redor e
encontrou Ninde há alguns metros. Sabia que ela havia invocado os animais,
habilidade preciosa dos melhores caçadores. Com um grunhido de raiva, puxou
um dos lobos por uma das patas traseiras e rapidamente lhe quebrou o
pescoço. O pobre animal não teve tempo de ganir. Com uma força descomunal
o troll arremessou o cadáver do lobo em direção a Ninde. A elfa noturna não
previu a investida inusitada e sua esquiva não foi feita de maneira adequada. O
corpo da caçadora foi arremessado contra uma árvore, caindo inerte no chão.
O que aconteceu a seguir se processou bem rápido. O surto estelar de
Thaynahra atingia o troll enquanto Huor via o corpo de sua amada se chocar
contra a árvore. Se havia algum resquício de autocontrole no arquimago, esse
acabara de se esvair.
Mesmo em uma considerável distância, Berwyn sentia o calor emanando
do corpo de Huor. Precisou aumentar sua proteção à relva e também ao
próprio corpo do arquimago. O calor atingira níveis alarmantes. Não era
possível mais ver os olhos do mago; a luminosidade característica dos elfos
noturnos dera lugar a dois pequenos motes de chama.
Em questão de segundos, emitindo um grito estrondoso, Huor entregou
seu corpo ao fogo. Era difícil identificar a silhueta humanoide do mago em
meio a chama que ardia violentamente, pulsando em ódio. O arquimago abriu
os braços e, utilizando todo seu corpo como catalisador, liberou o jorro de fogo
em direção ao troll.
Berwyn entendera o que aquilo significava. O druida sabia que o corpo
de Huor não aguentaria a liberação do fogo. O calor atingido havia
ultrapassado os limites suportáveis. Imediatamente o arquidruida alterou sua
forma. Seus corpo e membros deram lugar a tronco e galhos, que se erguiam
aos céus evocando toda a força da flora de Azeroth. Raízes envolveram o corpo
de Huor. Ironshörds jazia uma pilha de cinzas.
Thaynahra correra em direção aos amigos. As raízes mantinham o corpo
do mago de pé e a força de Berwyn o mantinha vivo. O arquidruida também
canalizara suas energias à Ninde, que se aproximava um pouco atordoada.
- O que aconteceu? – a urgência na voz da caçadora não manifestava a
hesitação que tivera em tocar no mago.
Uma inquietação pairava entre os três elfos noturnos. O arquidruida
ainda estava em sua forma arvorosa e temia voltar a seu estado original. O
esforço de Berwyn era a única coisa que impedia o corpo de Huor de se
desintegrar.
- Huor usou o próprio corpo como catalisador de seu fogo. O ódio pelo
troll o dominou. – Thaynahra disse com pesar.
Ninde aproximou o rosto do arquimago, que parecia dormir
tranquilamente. O corpo emitindo uma leve quentura, estranhamente
confortante. Um filete de fumaça pairava sobre sua pele, que agora tinha um
tom roxo bastante escuro.
- E meu amor? Não foi o suficiente para mantê-lo? – a voz era um leve
sussurro em sua língua natal. Os olhos se encheram de lágrimas, o rosto suave
em sofrimento.
O arquidruida se aproximava lentamente, enquanto sua forma voltava ao
original. A natureza continuava se agitando ao redor. A relva brilhava em verde,
mais intensamente próxima a Huor.
- Receio que ele não vá resistir, minhas amigas. A vida se pendura por
um fio e não há o que eu possa fazer para restaurá-la. Seu corpo está além de
reparos. – o pesar contido na voz do druida soava distante. A voz flutuava no
vento, enquanto os elementos inconstantes de Auberdine pareciam silenciar
pela primeira vez.
- Vou buscar ajuda, Berwyn. O Círculo Cenariano está por perto. Até
mesmo Malfurion pode estar aqui. Juntos talvez possamos fazer alguma coisa,
ou mesmo pensar em algo. Não duvido de suas capacidades, meu amigo, mas
podemos ter alguma chance ainda e devemos nos apegar a isso.
- Toda tentativa é válida. Vá. Posso mantê-lo nesse estado por tempo
indeterminado.
- O maquinário goblínico é nosso. Vou confisca-lo. Não permita que se
aproximem. – dizendo isso, a druidesa assumiu sua forma alada, ao que Berwyn
apenas assentiu. O druida sabia que a amiga precisava ficar sozinha em seus
pensamentos. Mais uma batalha em Auberdine. Mais um desfecho duvidoso.
A grande raposa branca de Ninde raspava as patas no solo, sentindo a
angústia de sua mestra. A caçadora passou a mão suavemente no rosto do
amado elfo noturno. Tantas eras juntos. Não poderia acabar daquela maneira.
- Isso é ridículo. Não existe outra palavra para isso. – Ninde se virou para
Berwyn, com certa revolta na voz. O arquidruida estranhou a atitude da
caçadora.
- Berwyn! Há algo que tenho que fazer e preciso que você me prometa...
Por Huor. Ele é seu amigo. Não podemos deixar que... – a caçadora não ousou
terminar a frase.
Um lampejo de esperança se fez nítido no rosto de Berwyn. O jovem
druida era peculiar no tangente às emoções; diferente da maioria dos elfos
noturnos, suas emoções ocasionalmente se tornavam aparentes.
- Faça o que for necessário, Ninde.
- Preciso de algumas horas. Você consegue mantê-lo... vivo?
A hesitação de Ninde demonstrava o quanto ela duvidava da vida do
amado naquele estado. A respiração era inaudível e ela não ousava sentir o
pulso. A garantia que tinha da vida de Huor era a palavra de Berwyn.
O arquidruida estendeu as mãos em direção ao mago. As raízes que o
envolviam começaram a se movimentar e gentilmente deitaram o corpo de
Huor sobre elas, formando uma superfície de raízes e folhas. Berwyn sentou-se
aos pés de Huor, cruzando as pernas e relaxando o corpo.
- Estaremos aqui esperando. Eu e meu amigo Huor. – o jovem druida
olhou o corpo inerte do mago e lançou um sorriso triste à caçadora.
E Ninde correu. Correu em direção ao sul como se Sargeras estivesse em
seu encalço. Felpas, sua fiel raposa, a seu lado.
PARTE III
haynahra cruzou o grande salão circular violeta em passos
decididos. A suavidade élfica de seus movimentos não produzia
qualquer barulho do contato de suas botas com o piso lustroso.
Seu manto azul esverdeado era de um veludo pesado e cobria
todo o seu corpo, se arrastando à volta. Apenas seu rosto era visível por baixo
de um vasto capuz. Os olhos da elfa noturna brilhavam ferozmente. Seu
semblante era indecifrável.
Diferente da angústia sentida em Auberdine, estar em Dalaran naquele
momento a deixava irritada. Não pela cidade em si – adorava Dalaran, com seus
telhados abobadados e suas muitas e elegantes torres púrpuras – mas por tudo
o que representava, especialmente naquele amanhecer. Estar em Dalaran era
respirar magia. E magia era o motivo de sua raiva.
O grande salão circular violeta parecia não ter fim. As altas paredes de
mármore branco conferiam um ar nobre à sede do Kirin Tor. Thaynahra e sua
pequena comitiva seriam recebidos na Sala de Gelo, conforme informados
assim que chegaram. Lá fora o dia amanhecia triste. A arquidruidesa, a única de
Azeroth, estava ladeada por um casal de elfos noturnos, ambos
misteriosamente cobertos por mantos. Poderia ter ido sozinha, ela sabia, mas
tornar aquela visita em uma delegação tinha motivos políticos. E em se tratando
de magos, sempre havia política. Tudo envolvia poder, seja ele qual fosse.
A Sala de Gelo, apesar do nome, era quase aconchegante. Parecia um
pequeno pedaço de Invérnia recortado e transplantado para o Palácio Violeta.
Era mágica, claro. Os três elfos noturnos encontraram-se em uma clareira de
neve assim que cruzaram a soleira para o que pensaram ser uma das muitas
salas daquele edifício. Um sol tímido se escondia atrás de pesadas nuvens. A
claridade pungente refletida em toda aquela imensidão branca não causou mais
que quatro segundos de incômodo aos elfos.
Uma grande cadeira dourada de espaldar alto e estofado púrpura
encontrava-se em meio a toda aquela neve. Discretamente, Thaynahra observou
os flocos de neve caindo lentamente do céu. Não pareciam encostar na grande
cadeira ou mesmo acumular sobre seu manto. Mágica. Como tudo ali. Por
alguns instantes esquecera que estava apenas em uma sala no Palácio Violeta.
Precisava manter sua concentração. Havia uma sensação de impotência
angustiante. Sentia-se indefesa em um ambiente manipulado como aquele.
Tencionou olhar para o vulto élfico em um manto verde água à sua direita em
busca de segurança, mas jamais se permitiria. Afastou o capuz com
determinação, deixando os cabelos azulados caírem em cascata sobre o manto
e se confundindo com o mesmo.
– Sejam bem vindos, meus amigos. – a voz masculina revelou a presença
de um humano ruivo à frente da grande cadeira. Trajava uma túnica púrpura
bordada em pura energia arcana com o olho do Kirin Tor.
Rhonin era um humano alto e robusto. Poderia ser confundido
facilmente com um formidável guerreiro, caso não fosse conhecido em toda
Azeroth. O cabelo, de um vermelho vivo, lhe descia liso até os ombros e uma
pequena barba ruiva parecia prolongar e afunilar seu rosto. Os olhos azuis eram
astutos, perscrutava tudo e todos ininterruptamente. Era um homem belo,
manifestando os primeiros traços de sua idade em vincos em volta dos olhos.
Possuía um rosto feroz, mas seus gestos firmes e calculados atenuavam
qualquer má impressão.
Era tal o nível de imersão dentro da câmara que os elfos noturnos não
saberiam dizer se as cadeiras sempre estiveram atrás deles ou se materializaram
há pouco. Cada uma delas era estofada com a exata cor do manto élfico que
vestiam. Apesar de belas, não se comparavam ao trono do líder do Kirin Tor,
demarcando nitidamente a posição que a pequena delegação ocupava frente
ao clã de magos mais poderoso de Azeroth.
– Por favor... vamos conversar.
A cordialidade no tom de Rhonin soou forçada à arquidruidesa e uma
irritação ameaçou estremecê-la. Lembrava-se, contudo, que o mago era
conhecido por ser direto e incisivo. Thaynahra puxou suavemente o manto e
sentou-se em postura digna. Seu rosto ainda impassível. Sabia que era
minuciosamente estudada pelo mago humano, não somente sua postura, mas
também suas intenções. Feitiços poderosos estavam em efeito naquele lugar.
Os dois elfos a seguiram, baixando seus capuzes. À direita da druidesa
estava Zehunter, um dos caçadores mais antigos dentre os elfos noturnos,
trajando um pesado manto verde. Encarava Rhonin com selvageria nos olhos
sob espessas sobrancelhas de intenso verde água, a mesma cor de seus cabelos
que eram longos e desciam com certo desalinho sobre o manto. Havia algo de
animalesco em sua expressão, como se o prolongado convívio com as feras o
tivesse aproximado delas. Seus companheiros – recusava-se a chama-los de
feras – não estavam visíveis, mas era provável que, a um chamado seu, todos os
animais existentes em Dalaran irrompessem no Palácio Violeta.
A elfa noturna ao lado esquerdo de Thaynahra era uma recém-
consagrada druidesa, Cerdwin. A jovem tentava disfarçar o assombro que a
câmara mágica lhe causava, mas pouco conseguia. Era uma adorável e celestial
visão, seus cabelos e manto brancos, somados à toda a neve do ambiente; o
cabelo preso em uma longa trança descia pelo ombro direito e lhe dava um ar
inocente. O olhar, de um vívido brilho branco percorria toda a extensão de neve
da Sala de Gelo, cruzando com o de Rhonin, que sorriu amigavelmente. A elfa,
irmã do arquidruida Berwyn, expressou leve consternação, sentindo-se
constrangidamente infantil. Imediatamente, juntando alguma dignidade dentro
de si, seguiu os movimentos de Zehunter, sentando-se altiva ao lado de
Thaynahra.
Um silêncio pairou entre elfos e humano. Thaynahra se perguntou onde
estariam os outros magos. Não era hábito do Kirin Tor conceder audiências
privadas com apenas um de seus membros, ainda que esse fosse seu líder,
como era o caso do arquimago Rhonin. A druidesa preferiu ignorar essa
questão e tratar do assunto urgente que a levara até a cidadela violeta dos
magos. Se o arquimago era conhecido por ser direto, tampouco ela era
conhecida por ser diferente:
– Huor está morrendo. – a druidesa permaneceu impassível como se
tivesse anunciado que uma garoa se iniciava. Já Rhonin não pôde evitar um
sobressalto.
– Morrendo?
– Sua missão não foi bem sucedida. Ou pelo menos não totalmente.
– Mas... – A informação realmente atingira o arquimago de surpresa, para
consternação de Thaynahra. A druidesa esperava que o Kirin Tor já soubesse de
todo o desenrolar de sua missão. A elfa imediatamente decidiu aumentar sua
cautela. Podia sentir as sondas mágicas ao seu redor e, pelo leve desconforto de
seus amigos, sabia que também estavam sob intenso escrutínio.
Após dar alguns momentos para que Rhonin absorvesse a informação
inicial, a arquidruidesa contou de forma objetiva todo o desenrolar do conflito
em Auberdine. A aparição de Huor na Clareira do Oráculo, o teletransporte para
Auberdine, o poço lunar e o grupo liderado pelo caçador que, há muitas eras,
caçara Huor. Não poupou Rhonin ao manifestar sua insatisfação em participar
de tudo aquilo. O arquimago ponderou sobre toda a situação durante alguns
longos minutos. Zehunter parecia pronto a avançar sobre ele a qualquer
momento, enquanto as duas druidesas permaneciam calmas e insondáveis.
– Entendo sua consternação, minha cara. – Rhonin iniciou após longo
silencio e certa relutância. – Mas também preciso que entenda... – olhou para os
dois elfos noturnos que acompanhavam a druidesa e se corrigiu – que vocês
entendam minha posição. Não posso revelar os propósitos de nossa ordem em
relação ao que deveria ser uma missão secreta.
– Uma missão secreta em Kalimdor, nosso continente. E envolvendo um
poço lunar sob nossa responsabilidade. – Thaynahra falou de forma suave,
ainda que incisiva, mas não querendo se indispor com o clã de magos.
– Ainda assim... – Rhonin fez uma pequena pausa, os dedos tamborilando
suavemente sobre o braço da majestosa cadeira. – Não posso entender por que
motivos Huor precisaria de ajuda para derrotar um grupo tão pequeno e
desarticulado como aquele. Ou mesmo entender como pôde sucumbir diante
de um simples caçador.
Nesse momento Thaynahra moveu a mão direita em direção ao braço de
Zehunter, segurando-o com suavidade. O caçador emitiu um leve rosnado,
fazendo Rhonin arregalar os olhos e balançar a cabeça em constrangimento.
– Céus! Perdoe-me, nobre elfo. Não foi minha intenção. Referi-me ao
fato de não utilizarem energias e magias. Muito embora exista manipulação
arcana em seus tiros e sejam tão mortíferos quanto qualquer mago. Veja – o
mago fez uma pequena pausa e tentou esboçar um sorriso – minha própria
esposa é uma caçadora. Realmente não quis ser rude. Toda essa situação me
deixou abalado. Perdoe-me mais uma vez.
Zehunter conteve-se, apenas cerrando o punho direito e estalando seus
dedos. A ferocidade em seu olhar permanecia, assim como a tensão em estar
naquele ambiente magicamente manipulado. Thaynahra ignorou toda a
situação, retomando o assunto que a levara ali.
– Lealdade, senhor mago. Foi lealdade o que levou Huor a procurar o
Pacto Lunar. Uma lealdade jurada há muitas eras. Agora consigo entender parte
do que houve e entristece-me ainda mais o destino de meu amigo.
– Huor é caro a todos nós. Enviarei meus melhores curadores
imediatamente.
– Ah por favor... não se incomode. – era inevitável o desdém na voz da
druidesa – Os melhores de Azeroth já estão lá. O próprio arquidruida Malfurion
está lá, juntamente com Berwyn e outros.– a acidez no comentário de
Thaynahra foi ignorada por Rhonin que apenas assentiu com sua cabeça ruiva.
Rhonin era um homem bom. Era sabido entre todos. Thaynahra não
gostava de dirigir-se assim a ele, mas a situação exigia. Era necessário equilibrar
as forças.
– Estão mantendo-o vivo, muito embora receamos não haver qualquer
solução. O fogo desintegrou seu corpo de forma irreparável. Berwyn o está
mantendo vivo até que Ninde retorne. – Thaynahra continuou.
A arquidruidesa não pôde deixar de reparar uma sombra de tristeza
atravessando o olhar astuto de Rhonin. Por instantes o arquimago se perdeu
nos próprios pensamentos, parecendo distante.
O mago de fogo passara a integrar o Kirin Tor por insistência de Rhonin.
Costumavam conversar calorosamente sobre antigos encantamentos e técnicas
de transmutação. O líder da ordem dos magos de Dalaran nutria grande
simpatia por Huor. Ambos eram magos casados com caçadoras. Rhonin pensou
em Vereesa e em seus dois filhos. Huor não teria filhos. Aquela constatação
devastara o arquimago por dentro. Segurou com firmeza os braços de sua
cadeira e respirou fundo, tentando espantar aqueles pensamentos.
– E quanto ao artefato, minha senhora? O que foi feito dele?
Resignada, a druidesa ajeitou uma dobra de seu manto, imediatamente
arrependendo-se por manifestar tal inquietação. Sabia que a parte mais
delicada daquela audiência chegaria e não poderia mostrar qualquer indício de
indecisão ou fraqueza.
– O artefato ficará sob custódia de Darnassus.
A notícia atingira Rhonin como uma bomba. O arquimago não pôde
evitar o sobressalto. As sobrancelhas ruivas arqueadas em dúvida.
– Darnassus?
A arquidruidesa sentiu certa satisfação, é verdade, em ver o
estremecimento do grande mago Rhonin, mas ainda assim precisava ser
cautelosa.
– Sim. O sangue corrompido do Asa da Morte, bem como o resultado da
centrifugação e todo o maquinário goblin está sob poder da Senhora Tyrande.
Será devidamente analisado.
– Entendo... – assentiu o arquimago Rhonin.
– O ataque foi realizado em Kalimdor, em uma de nossas antigas cidades.
Próximo demais a Darnassus. – a arquidruidesa continuou, como se precisasse
justificar o envolvimento de Tyrande. – E o que aconteceu com Huor – fez uma
pequena pausa, acrescentando peso às próximas palavras – A Senhora dos Elfos
Noturnos nutre grande sentimento por nosso amigo.
O silêncio pairou de forma constrangedora sobre a audiência. Não havia
o que argumentar. O que deveria ser mais uma simples missão do Kirin Tor
virara uma questão diplomática. Não havia mais o que fazer ali. Auberdine era
uma cidade élfica, sendo natural, aos olhos de Rhonin o envolvimento de
Tyrande na questão. O arquimago sabia que toda atividade do Pacto Lunar era
reportada diretamente à Grande Senhora dos Elfos Noturnos.
– Agradeço por nos receber tão prontamente, Rhonin, bem como todo
apreço manifestado por Huor. – Thaynahra se levantou e então, subitamente os
quatro encontravam-se em uma aconchegante biblioteca repleta de estantes e
livros. Grandes estantes de carvalho enegrecido pelo tempo abrigavam o que
pareciam ser registros raros sobre toda sorte de assuntos. Um fogo púrpura
dançava em uma lareira atrás de Rhonin.
O arquimago estava a uma escrivaninha de madeira entalhada, ainda
sentado em sua nobre cadeira. Uma bebida intocada flutuava poucos
centímetros acima da mesa, ao lado de um livro intitulado Vida Arcana, de um
autor chamado Mago Elladir. Livros atravessavam suavemente os ares da
biblioteca, indo ocasionalmente de uma prateleira a outra.
– Enviarei um destacamento do Kirin Tor para prestar toda assistência
que puder. Huor nos é muito caro. Não poderia fazer menos. – o mago se
levantou e caminhou até os três elfos noturnos. Era notória a resignação em
suas palavras e a hesitação em seus movimentos. – Vou me reunir com o
Conselho, relatar o ocorrido e refletir sobre toda a situação. Mais uma vez
lamento demais o desfecho de tudo isso.
Havia sinceridade na voz de Rhonin. Era inegável. Despediram-se
amigavelmente, apesar da tensão ainda persistir. Tudo com os magos envolvia
tensão. Política e tensão, pensou Thaynahra.
Os três elfos noturnos caminharam em silêncio por Dalaran durante
longos minutos. Apenas quando estiveram a uma distância segura do Palácio
Violeta ousaram trocar impressões. Sabiam que estariam sob observação
enquanto estivessem na cidadela dos magos.
– Toda a conversa me deixou preocupada. – começou Thaynahra em uma
versão particularmente difícil do idioma élfico. As palavras eram mais
sussurradas do que propriamente faladas, o que dificultaria o entendimento de
qualquer pessoa que os estivessem ouvindo – Rhonin deixou claro que a missão
era individual, no entanto pensei ter entendido que Huor esperava ajuda do
Kirin Tor.
– Nada envolvendo magos é simples. Não gosto deles. Sempre
irresponsáveis e ávidos por magia. – Mesmo com toda a suavidade do idioma
élfico, Zehunter conseguia se expressar com agressividade. Nesse momento,
como que ouvindo a voz do caçador, um imenso falcão marrom desceu dos
céus em um impressionante mergulho. O animal alterou a rota segundos antes
de colidir com o grupo e posou com elegância no ombro do elfo noturno, que
passou as mãos em suas penas marrons e brancas.
Os três elfos noturnos, enrolados em suas capas, chegaram ao chafariz
de Dalaran. O dia estava claro e aquele início de manhã prometia calor. A jovem
druidesa Cerdwin parecia inquieta.
– Senhora Thaynahra, algo me incomoda. O artefato não está com a
Senhora Tyrande, está? – a voz da druidesa era um sussurro quase inaudível no
idioma élfico.
– Não. Não está. Tyrande nem ao menos sabe de sua existência. Não
ainda. – Thaynahra continuou, vendo o semblante confuso da elfa mais nova. –
Mas Rhonin também não sabe disso.
– Não acha arriscado, Thay? – a pergunta viera do caçador, em seu tom
grave, com menos agressividade desta vez.
– Diplomacia é algo arriscado. Envolver Tyrande automaticamente retirou
Rhonin e o Kirin Tor de toda a situação. Pelo menos por hora. O Kirin Tor é
influente e poderoso, mas evitam questões de Estado. Eles não me deixariam
ficar com o artefato de outra forma. Rhonin sabe ser bastante persuasivo
quando quer. Não tive outra escolha. – Havia cansaço na voz da arquidruidesa.
– Entendo. – a jovem druidesa olhou para o chafariz com certa
inquietação. Os raios de sol já ultrapassavam os telhados abobadados da cidade
e atingiam parte da água, que resplandecia serenamente.
A arquidruidesa não seria a líder que era, se não fosse capaz de observar
seus seguidores nos mínimos detalhes. Thaynahra percebia a aflição de
Cerdwin, e compartilhava de sua angústia. Mas precisava se dar alguns
momentos ainda.
– Você pode ir, Cerdwin. Sei que deseja se juntar a seu irmão.
A jovem druidesa se virou rapidamente; distraíra-se à beira do chafariz.
Thaynahra se permitiu um esboço de sorriso para tranquilizar a elfa noturna.
– É que... estou preocupada com eles. Sei que não há nada que eu possa
fazer. Os melhores curadores de Kalimdor já estão lá. Mas eu gostaria de ficar
perto do meu irmão e... – Cerdwin fez uma pequena pausa – do Huor.
Cerdwin ainda era uma criança élfica quando, juntamente com o irmão,
conheceu o mago. Huor sempre conjurava esplêndidos brinquedos mágicos
cada vez que via a pequena elfa com seus cabelos presos no alto da cabeça.
Lembrava também de suas histórias. Com seu jeito peculiar, diferente da
maioria dos elfos, Huor era falante. Contava histórias fabulosas sobre Azeroth,
quedas de reis, ascensão de vilões, romances épicos.
Thaynahra assentiu e não reparou quando a druidesa se transformou em
um pássaro cinzento e subiu aos céus de Dalaran. Notou a sombra alada
quando esta já se distanciava no céu claro da cidade, passando por entre as
torres púrpuras e brilhantes. Foi então que desabou.
Não saberia dizer de onde viera ou mesmo tinha consciência de que
estava exercendo algum tipo de autocontrole. Quando deu por si, as lágrimas
rolavam das cavidades de puro brilho que eram seus olhos. Era um choro
abafado e amargo. Um choro de impotência. Seu corpo estremeceu e ela
ameaçou cair, sendo imediatamente amparada por Zehunter. O caçador a
envolveu em um abraço apertado e permaneceu em silêncio.
– É o Huor, Ze... O Huor!! E não há nada que eu possa fazer! – o lamento
viera no idioma élfico, atropelado por soluços e embargado pela dor. O peito
de Thaynahra arfava e ela chegou a pensar que fosse explodir, tamanha a
compressão que sentia.
– Eu sei, Thay... Mas essas coisas estão além de nosso controle. – o tom
sempre grave do caçador, agora cadenciado pelo pesar, soava melancólico,
triste.
– Como fomos nos deixar levar dessa forma? Como pudemos entrar em
uma missão totalmente sem sentido como essa? Fomos amadores. Nunca irei
me perdoar! – um início de raiva se mostrava em sua voz. Zehunter percebeu
com preocupação uma pequena alteração ao redor de Thaynahra. Pequenos
pontos brilhantes começavam a se desprender de seu corpo.
– Thay, você deve manter a calma. Não existem culpados em situações
assim. Você mesma disse que Huor estava fora de si, descontrolado. Ele ainda
está vivo, não está? Ainda há esperança.
A arquidruidesa afastou o rosto alguns centímetros para olhar o amigo
nos olhos, ainda se mantendo em seus braços. A expressão da elfa era de
enorme desamparo. Segurou suavemente a borda do manto de Zehunter
enquanto o encarava.
– Não, não há, meu amigo. O corpo de Huor se desmantelou em nível
estrutural. Alguma coisa na utilização da maldita magia fez isso. Berwyn está
mantendo seu corpo coeso, mas não conseguimos sequer alcançar alguma
consciência ali. – A druidesa fez uma pequena pausa e então prosseguiu com
gravidade – Berwyn provavelmente conseguiria manter Huor desta forma por
eras, se entrasse em uma espécie de transe vegetativo. E tenho certeza de que
cogita essa possibilidade. – a druidesa suspirou – Não posso perder os dois. –
Uma nova torrente de choro tomou-a.
Zehunter franziu o cenho em tristeza e puxou a amiga para si, reforçando
o abraço. A vida em Dalaran começava a se movimentar. Comerciantes abriam
suas lojas, um cheiro adocicado vinha de alguma cozinha. Os moradores da
cidade arcana olhavam com estranheza os vultos élficos abraçados em seus
mantos.
Thaynahra olhou sobre o ombro de Zehunter, fitando o céu claro de
Nortúndria. Detestava o dia. Desejou com todas as suas forças que fosse noite.
A elfa noturna fechou os olhos lentamente e se aninhou ainda mais nos braços
de Zehunter. Não havia conforto fora da noite.
* * *
Os imensos pinheiros estavam cobertos de neve e suas poucas folhas
deixavam um frescor no ar. O vento era fraco e parecia piedoso ao deixar as
folhas em seus galhos. O dia estava claro, quase ofuscante, embora o sol não
estivesse visível. Uma vegetação rasteira se alastrava pelo vale, salpicando a
neve aqui e ali. Amontoados de neves, folhas e galhos estavam por toda parte.
Invérnia era um lugar calmo e praticamente inabitado. Um sonho para qualquer
caçador.
A elfa noturna aguardava atrás da árvore, imóvel como se fosse um galho
da mesma, o manto amarronzado contra o frondoso tronco que descascava. Os
olhos brilhavam serenamente, emoldurados por um rosto lilás encapuzado. Seu
olhar encarava atentamente um pequeno arbusto a poucos metros de onde
estava. A respiração era quase inexistente, tamanha a concentração. Um
movimento sacudiu o arbusto. Uma vez. Duas vezes. A caçadora se permitiu um
leve sorriso quando viu uma pequena raposa branca correr para fora da
vegetação. Era um filhote de raposa de Invérnia. Essa, especificamente era a
mais esplêndida que já vira, pois possuía as ponta das paras negras. Seria
aquela mesma. Ninde iria domá-la.
A caçadora hesitou por alguns momentos. Um leve estremecimento
percorreu seu corpo. Estava nervosa. Era a primeira vez que domaria um animal
sozinha. Havia domado animais antes, mas na presença e com certo auxílio de
seu mestre caçador. Desta vez pesquisara com cuidado e domaria um animal
para estabelecer verdadeiramente o vínculo espiritual. Parte de sua vida se
integraria ao animal e também parte da essência da fera comporia sua própria
essência. Era um passo avançado e decisivo na vida de um caçador. Aquela
raposa branca seria a fera que acompanharia Ninde por toda a vida. Mas ela
estava pronta. Respirou fundo e olhou mais uma vez para a pequena raposa.
Um zumbido agudo irrompeu o ar inesperadamente. A pequena raposa
correu de volta ao arbusto, sob o olhar sobressaltado da jovem caçadora. Ninde
olhou cuidadosamente ao redor, se concentrando ainda mais em sua respiração
e camuflagem. Um baque surdo entre ela e o arbusto onde se escondia a
pequena raposa deixou um corpo estendido em meio à neve. A caçadora olhou
com incredulidade. Era um elfo noturno, ao que parecia.
A caçadora alcançou a aljava em suas costas com a mão direita, retirou
uma flecha e encaixou-a no arco. Seu manto de tom amarronzado envolvia
todo o seu corpo e um capuz protegia seu rosto. Lentamente deixou a
segurança dos pinheiros e caminhou para a clareira, em direção ao corpo. O
manto farfalhava atrás de si e assumia tons mais claros conforme ela caminhava
pela neve. Apontava a flecha em direção ao corpo do elfo.
Parecia ter caído de algum lugar. Ninde olhou ao redor e então para o
alto. Um portal arcano oscilava em um brilho púrpura vários metros acima. Uma
queda e tanto. A caçadora relaxou a postura, agachando-se cautelosamente ao
lado do elfo. Jogou o capuz para trás, liberando os cabelos azuis ao distante sol
de Invérnia. Pousando o arco e a flecha ao seu lado, tentou mover o corpo, pois
caíra com o rosto na neve. Não parecia estar gravemente ferido.
Era jovem. O rosto sereno era de um azul pálido e acinzentado. Uma
barba rala cobria parte dele e era branca como seus cabelos. Vestia um robe
branco com detalhes em púrpura. A roupa, o portal arcano e um cajado simples
de freixo caído ao seu lado indicavam que se tratava de um mago. Um aprendiz
talvez. Isso explicaria o portal metros acima do chão. Ninde não pôde deixar de
sorrir.
A caçadora se inclinou para verificar se havia algum ferimento na cabeça
do mago. Sem perceber, seu cabelo roçou suavemente o rosto do mago
desmaiado, fazendo com que movimentasse o nariz e a boca devido ao leve
incômodo. O elfo noturno lentamente abriu os olhos em um suave jorro de
brilho claro, característico da raça.
A primeira expressão a tomar o rosto do elfo foi de estupefação. Encarou
a caçadora como se fosse de outro mundo e ela então se deu conta de que ele
estava desperto. Um pequeno desconforto a abateu e ela recuou rapidamente.
Pensou no quanto havia sido imprudente e desejou estar com seu arco na mão.
Hesitou em pegá-lo.
– E... Eluna? – o elfo dissera em um breve e entrecortado sussurro em seu
idioma natal.
Ninde pareceu confusa por alguns segundos e então quase sorriu.
– Não... não sou Eluna. Você pelo visto bateu com a cabeça mais forte do
que supus. – a voz da caçadora era fina e suave, ao que o elfo noturno pareceu
maravilhar-se.
– Seu cabelo... – o elfo falou devagar. – Ele... me despertou. Tem cheiro
da grama molhada pelo orvalho da manhã. Achei que estava em... Darnassus. –
olhou intensamente para a jovem agachada ao seu lado. – Você... você... tão
linda! – esticou uma mão hesitante em direção à caçadora, que recuou com
rapidez felina.
– Ei ei ei... O que pensa que está fazendo? – a caçadora sobressaltada
respondeu na língua comum, ignorando o idioma élfico.
O mago respirou fundo e piscou os olhos algumas vezes, parecendo
acordar de um transe.
– Desculpe, eu... – após uma pequena pausa o jovem tentou levantar e
imediatamente levou a mão à cabeça em uma expressão de dor, desistindo por
hora da ideia de ficar em pé.
– Calma. Você caiu de uma altura considerável. Descanse um pouco.
A caçadora colocou a mão dentro do manto e retirou um cantil de couro
azulado. Habilmente destravou a tampa e estendeu para que o elfo bebesse.
– Tome! É alüvar. Vai se sentir melhor.
O jovem mago se apoiou em um dos cotovelos e pegou o cantil com
firmeza. Fechou os olhos enquanto bebia. Respirou fundo ao terminar e
encarou a elfa. Sorriu em agradecimento.
– Onde estamos?
– Invérnia. Ao norte da Aldeia Chuva Estelar, para ser precisa.
O elfo sorriu:
– Bom... nada mal. Eu tentava ir para Darnassus. E estava em Altaforja!! –
o jovem parecia maravilhado com a perspectiva do teletransporte. – É a
primeira vez que tentava. Quero dizer... a primeira vez que tentava ir de um
continente ao outro. Errei por alguns quilômetros.
A caçadora não poderia deixar de acha-lo divertido. As palavras do
jovem mago, quase cada uma delas, manifestavam um encantamento. Não um
encantamento de feitiço, mas um maravilhamento com tudo ao redor. A
maneira como a olhara, como olhou ao redor, como falava do teletransporte
fracassado. Ninde não percebeu, mas sorriu afetuosamente.
– Ora, não tenho vergonha de errar. Mas não precisa rir também. Sou um
aprendiz ainda. Um aprendiz de mago. Aliás... meu nome é Huor. O seu...?
Ninde ficou encabulada com o sorriso despercebido e piscou
nervosamente os olhos, balançando as sobrancelhas longas. Levantou-se
depressa pegando seu arco. Voltando a si, lembrou-se do propósito de estar ali
e a frustração estampou seu rosto.
– Meu nome é Ninde. E você me deve uma raposa.
Huor não teve tempo para se maravilhar também com o nome da
caçadora, pois a cobrança o deixara confuso. Franziu a testa e a elfa explicou:
– A que você afugentou quando caiu. Eu estava de tocaia para domá-la.
O jovem aprendiz de mago pareceu profundamente desapontado. Ninde
achou que fosse até mesmo chorar e se arrependeu de soar tão rigorosa. Huor
respirou fundo e tentou mais uma vez se levantar. Desta vez com calma e
movimentos lentos. Pegou o cajado e pôs-se de pé, vários centímetros acima da
caçadora. Sacodiu a neve do robe e adquiriu um ar digno.
– Eu sinto muito. Não foi minha intenção. – o sentimento na voz do
jovem elfo era comovente. Ninde sentia-se quase culpada por ele ter caído.
– Está... está tudo bem. Ela ainda está por aqui. Posso sentir.
O mago sorriu. Um sorriso largo de genuína alegria. E, mais uma vez sem
perceber, a caçadora sorriu, desta vez retribuindo ao mago. Deu-se conta de
que estava sorrindo para um total estranho, mas decidiu que não se importava.
Huor agitou suavemente o cajado e murmurou algumas palavras que
Ninde não conseguiu entender. Um chiado suave se fez ouvir e uma sombra
começou a se formar para logo se materializar em um grande naco de carne
crua. A carne fora conjurada a alguns metros dos dois elfos e o cheiro era muito
forte. Huor fez sinal para que Ninde se afastasse e os dois, lentamente, um do
lado do outro, foram em direção ao pinheiro da tocaia.
Não demorou muito e a pequena raposa saiu de sua toca, farejando o ar
em direção ao suculento pedaço de carne. Os dois elfos se entreolharam e
sorriram. Huor disse afavelmente em um sussurro:
– Não teremos problemas com a mãe dela, não é?
– Não... encontrei o rastro há alguns dias. Foi morta por alguma outra
criatura selvagem.
Huor pareceu mais uma vez sentir pena e a caçadora quis abraça-lo.
Estava encantada com o jovem aprendiz, admitira para si. Retirou a aljava das
costas e entregou-a ao mago junto com o arco.
– Fique aqui. – ela pediu.
O jovem mago fez uma mesura e esticou o braço para que ela avançasse.
A caçadora caminhou lentamente em direção à raposa branca, que a esta altura
já se banqueteava com a carne. Ninde inclinou o corpo, andando um pouco
curvada e com um dos braços estendidos, pé ante pé. Balançando suavemente
os dedos em direção à raposa, começou a entoar um mantra sussurrado bem
baixinho.
A pequena raposa então parou seu banquete e farejou o ar ao redor.
Encontrou a caçadora, que havia parado sua aproximação, e hesitou por um
momento. Os olhos das duas se cruzaram. Caçadora e fera, ambas totalmente
imóveis.
A comunhão com as feras é uma das artes mais antigas de Azeroth e ser
um caçador é exercer total domínio sobre essa técnica. Domar um animal é um
teste de resistência, sobretudo para o caçador, pois da mesma forma que
invade as defesas sensoriais do animal, também é invadido por este. Ninde foi
assaltada pelo cheiro pungente da carne crua, da neve e de fezes. Exerceu todo
seu autocontrole para não correr em direção à carne crua cujo cheiro inundava
suas narinas. Da mesma forma, a pequena raposa estremeceu experimentando
as sensações da caçadora.
Ninde conseguiu recobrar algum controle de si e retomou o caminho em
direção à raposa, que a observava fixamente. Mais um pouco e estaria lá. As
emoções fluíam entre a elfa e a fera. Quanto mais próximo Ninde chegava, mais
difícil se tornava resistir. O suor brotava em sua testa. O cheiro da carne
violentava seus sentidos. Mais um pouco. Só mais alguns passos. O jovem
mago, atrás do frondoso pinheiro, observava com curiosidade. Não tinha ideia
do que realmente se passava ou do motivo da demora da caçadora em chegar à
raposa.
A raposa então saiu de sua paralisia e se aproximou. Primeiro
cautelosamente para então avançar decidida. A caçadora esticou mais um
pouco a mão e permitiu que a pequena fera a cheirasse. O focinho gelado da
raposa tocou primeiro o dedo indicador de Ninde, para depois cheirar a própria
extensão de seu braço e decidir que não havia ameaça. Ninde sorriu e então
posou a mão sobre a testa da fera, murmurando a parte final do mantra. Um
estremecimento percorreu tanto o corpo da caçadora quanto da fera. Uma fina
luz esbranquiçada surgiu entre a mão da elfa e a cabeça do animal.
Quando Huor deu por si, Ninde caminhava em sua direção com a
pequena raposa branca no colo. Um sorriso no rosto do jovem mago se
esboçou e então tomou todo o seu rosto de forma radiante.
– Você conseguiu!!! – vibrou o aprendiz de mago com o punho cerrado.
A caçadora sorriu e acariciou a pequena raposa, que estava dócil como
se conhecesse Ninde desde o nascimento.
Ao se aproximar de Huor, a raposa o cheirou imediatamente. O mago
esticou a mão para acaricia-la e então ganhou duas simpáticas lambidas. Os
dois elfos riram juntos.
– Olha... parece que alguém gostou de você. – disse a caçadora em tom
afável.
– É... eu sou um tipo simpático. – o mago respondeu em tom de troça e a
caçadora deu uma sonora gargalhada.
Ambos passaram incontáveis minutos entretidos com a pequena raposa.
Observaram-na correr em volta de suas pernas, rolar na neve de Invérnia e roer
parcialmente a borda do robe de Huor. A noite caiu sem que os elfos sentissem,
agradados um da companhia do outro. Uma fogueira ardia e um pequeno
banquete era preparado. A raposa dormia aconchegada no manto da caçadora.
– Você deveria chama-lo de Felpas. – disse o mago distraidamente,
olhando a raposa dormindo.
– Felpas? – a caçadora indagou curiosa. – Por quê?
– Significa “feliz encontro”... em uma língua antiga.
– Você está inventando isso... – a caçadora respondeu um pouco
encabulada, mas sorrindo.
– Não, não estou! Alguns feitiços são realizados em línguas que não
existem mais. E não são alterados, pois o poder está nessas palavras. Nós
magos estudamos muitos idiomas. – o jovem mago disse em um divertido tom
de orgulho.
Ninde olhou a raposa longamente.
– Felpas... – murmurou, parecendo estudar o nome. – Foi um feliz
encontro de verdade. Será meu pequeno companheiro de caçadas.
– Não me referia somente a esse encontro...
Ninde olhou para Huor e viu o que chamaria mais tarde de “o sorriso
mais encantador de Azeroth”. Seu rosto imediatamente corou e ela não pôde
deixar de sorrir.
Ninde chegara a seu destino. As lágrimas corriam-lhe livres pelo rosto,
expulsas pelas memórias de um passado que jamais esqueceria. Ela não se
importava mais em enxuga-las. A imponente construção em pedra enegrecida
erguia-se irregular e assustadora à sua frente na Garganta de Pedra, em um
canto esquecido da Península Fogo do Inferno, em Terralém.
O pequeno prédio sustentava-se exatamente à beirada do precipício, em
uma inclinação horrenda. Dava a impressão de que despencaria a qualquer
momento e cairia no vazio púrpuro que cercava Terralém. Uma quentura
doentia emanava do solo árido. O ar era pesado e rarefeito, difícil de respirar.
Parada em frente à construção em formato de um demônio agonizante
com uma gigantesca boca escancarada, por onde teria que entrar, a caçadora
passou a mão em seus cabelos reunindo forças. A jornada tinha sido
extenuante; atravessara portais e voara durante horas, mas enfim chegara.
Ninde se agachou ao lado de Felpas, seu fiel companheiro:
– Preciso que espere por mim aqui fora, meu querido. Não vou demorar.
Não posso. – a caçadora fez uma pequena pausa e olhou incerta para seu
destino – Estarei segura.
A raposa branca encostou o focinho no nariz de sua mestra, que não
conseguiu impedir mais uma lágrima de rolar. Felpas raspou as patas no chão
enquanto via Ninde se afastar em direção à construção, onde um demônio a
aguardava na entrada.
– Minha mestra aguarda. – entoou o demônio em uma voz gutural e
assustadora. Era um terrorífico, com seus seis chifres na cabeça e um rosto
macabro adicional no dorso. A imensa criatura abriu as asas verdes de
membranas translúcidas em um breve agitar, intimidando a visitante. Um cheiro
repugnante tomou o ar.
Ninde, altiva, entrou no prédio. Não era surpresa que o cheiro fosse
ainda mais repulsivo no interior da construção, tomada de demônios como
estava. Pequenos diabretes vis amontoavam-se pelos cantos do lugar. A
caçadora encontrava-se em um amplo salão rodeado de portas. As paredes
enegrecidas sugeriam que o lugar pegara fogo incontáveis vezes. Imundície
acumulava-se em todas as direções. Um grande trono negro de pedra
acomodava o motivo de sua jornada. Ladeada por tochas de fogo vil brilhando
em verde, uma mulher sorria sentada de maneira displicente na grande cadeira.
– Minha querida... Aguardava sua chegada. Bebe alguma coisa? – a voz
da mulher transbordava uma afetação maliciosa. Um pequeno diabrete vil se
aproximou com uma bandeja, de onde a mulher retirou uma taça prateada
fumegante. Dispensou o diabrete com um forte chute.
A caçadora se aproximou. Somente o rosto visível em cima de seu manto
azulado. Reunia toda a coragem que tinha. Não podia vacilar. Não podia se
arrepender. Em seu interior queria correr para fora daquele prédio maligno e de
toda energia vil que pulsava ali.
– Não. Agradeço, mas não posso me demorar.
Um caçador vil dormia aos pés do trono negro e despertou
repentinamente, agitando os longos tentáculos de sua cabeça. Farejou em
direção à elfa, em um leve rosnado maligno. Caçadores vis nada mais eram do
que espreitadores vis treinados para caçar energia arcana. A besta demoníaca
não sentiu presença arcana na visitante e voltou a dormir, se deitando
desajeitadamente devido aos imensos chifres.
Levantando-se do trono, a mulher agitou os braços em direção à
caçadora:
– Aqui estamos. Conte-me suas angústias. – debochou.
Não só a voz, mas tudo naquela mulher sugeriam malícia e deboche.
Tratava-se de uma mulher humana, embora os chifres e o olhar maligno
sugerissem outra coisa. O corpo pálido e esguio era pouco coberto pelos trajes
negros, não mais que roupas íntimas. Um coque de cabelos negros equilibrava-
se entre os chifres grandes e demoníacos. O rosto era uma máscara de escárnio.
A feiticeira fez sinal para que a caçadora se aproximasse e tornou a sentar, um
pouco mais ereta desta vez.
– Não vim contar angústias. Vim buscar o que prometeu. – Ninde disse
com decisão. A mulher deu uma leve risada.
– Confesso estar surpresa. Não imaginei que estaria tão segura e
decidida sem seu mago de brinquedo. Soa quase desafiadora.
– Ele é meu marido. – Ninde rebateu indignada.
– Maridos, brinquedos... – a mulher disse com desdém – Homens são
brinquedos, na melhor das hipóteses. Para o que mais serviriam?
– Não vim até aqui para jogos, feiticeira. Não tenho tempo a perder.
Você deve a Huor. E eu vim cobrar a dívida.
A mulher se empertigou em seu assento. Uma sombra de ódio passou
por seus olhos e então ela sorriu em escárnio.
– Se não a conhecesse acharia que está me ameaçando, Ninde.
A caçadora não respondeu à provocação. As duas se encararam por
longos segundos. A feiticeira tomou um gole do líquido efervescente de sua
taça.
– O que me pede é caro... Espero que entenda. – fez uma breve pausa. –
Mais do que seu marido fez por mim no passado.
Dessa vez foi Ninde quem sorriu com deboche:
– Sua honra vale tão pouco assim?
A feiticeira atirou longe a taça de prata, que atingiu com força a parede
enegrecida. O som ecoou por toda a construção. O caçador vil acordou
assustado e os diabretes se agitaram amedontrados por todos os lados. Um
leve cintilar de energia vil esverdeada envolveu o corpo da humana, que gritou
em descontrole:
– Não venha até meus domínios me afrontar, elfa. Eu ainda tenho o que
precisa e posso negar.
Ninde apenas arqueou uma sobrancelha e permaneceu impassível.
Alguns minutos se passaram até que a tensão entre as duas diminuiu. Os
demônios ainda resmungavam por toda parte. Foi a bruxa quem rompeu o
silêncio.
– Eu tenho sim uma dívida com seu marido. E é apenas por causa dessa
dívida que relevo seu insulto. Mas aviso novamente: o que me pede é caro. E é
você quem estará em dívida comigo dessa vez.
Por alguns segundos Ninde pensou em recuar, embora seu rosto nada
revelasse. Não gostava de Terralém, não gostava daquele lugar e gostava
menos ainda daquela mulher. Estivera com ela algumas vezes em companhia de
Huor. A ideia de lhe dever algo era repugnante, mas não havia outra escolha. A
vida de Huor dependia disso. Sendo assim, era fácil decidir.
– Isso não é problema. A vida de meu marido vale mais do que qualquer
preço a pagar. – Ninde disse com convicção.
A feiticeira sorriu maliciosamente.
– Acredito que sim. – a mulher fez uma pausa – Ah sim... Existe um
porém. – a mulher fez uma segunda pausa, se deliciando com a expressão de
confusão no rosto da elfa. – Vocês elfos noturnos são peculiares. Creio que...
algumas modificações precisarão ocorrer para que funcione. Se ainda estiver
interessada...
Nesse momento um pequeno diabrete vil, Ninde não saberia dizer se era
o mesmo que trouxera a bebida, se aproximou com uma caixa de madeira
entalhada. A caçadora pegou a caixa em suas mãos, percorrendo os entalhes
com os dedos enluvados. Olhou com incerteza para a bruxa, que assentiu em
um último sorriso malicioso. A elfa abriu a caixa e dentro estava uma esfera
púrpura, não maior que um punho cerrado. A pedra emitia um brilho sinistro e
nela repousava a última esperança de Huor.
* * *
A expressão no rosto de Huor era serena. O robe vinho parecia
tristemente apagado, sem a chama da vida do mago para o alimentar. Ninde
passava as mãos em seus cabelos brancos, debruçada sobre o pequeno platô
de galhos e folhas onde se encontrava o companheiro. As lágrimas da incerteza
lhe corriam pelo rosto. Felpas uivava a seu lado. Um triste uivo de lamento, pois
estava conectado às emoções da caçadora. E se algo desse errado? Era tão
arriscado. Mas precisava tentar.
Ninde chegara há alguns minutos de Terralém e pedira momentos a sós
com Huor. Fora recebida com olhares tristes e consoladores, mas ninguém
ousou perguntar onde estivera ou por que demorara. Encontrara o marido
rodeado por druidas, xamãs e sacerdotes. Ainda podia ouvir a sonora voz do
arquidruida Malfurion ao longe. Todos haviam tentado o melhor de suas
habilidades, mas eram categóricos afirmando que não havia solução. Apenas
Berwyn se mantivera próximo.
O arquidruida permanecia sentado aos pés de Huor, as pernas cruzadas,
os olhos fechados e indiferente a tudo ao redor. Sua pele assumira um tom
esverdeado e pequenas folhas brotavam de seus cabelos. As extremidades de
seus membros afilaram-se e mais pareciam galhos. Era o que mantinha o mago
vivo.
A caçadora aproximou o rosto do mago e beijou-lhe os lábios. Uma
última vez. Manteve o rosto próximo o suficiente por alguns momentos,
deixando que três lágrimas caíssem no rosto de Huor, que permanecia imóvel.
– Espero que me perdoe, meu amor. – a voz não mais que um sussurro
élfico.
O braço de Ninde surgiu da dobra do manto e em sua mão a esfera
púrpura reluzia. A caçadora fechou os olhos e recitou de maneira quase
inaudível as palavras obscuras que lhe foram ensinadas. O brilho sinistro agora
era mais intenso e ela parecia pulsar. Algo se agitou dentro da pedra. Algo se
remexia no interior daquela esfera demoníaca. Algo estava vivo ali dentro.
Berwyn abriu os olhos repentinamente.
– Ele... ele se foi.
O arquidruida se levantou em um sobressalto, a pele lentamente
assumindo sua cor suave de costume.
– Ele se foi! Huor... Huor se foi. – falou mais alto e em consternação,
atraindo a atenção de todos que estavam a alguns metros. Ninde chorava.
Thaynahra foi a primeira a se aproximar, alarmada.
– Berwyn!! – ela tocou o ombro do amigo. – O que houve?
– Ele se foi, Thay. Huor... – a confusão tomava o druida – A vida deixou
seu corpo. Não... não sei o que houve.
Os elfos se aproximaram do corpo de Huor, que estava tão imóvel e
indiferente quanto antes. Ninde se afastara; o corpo envolvido pelo manto
élfico. Berwyn e a caçadora trocaram um olhar. O rosto de Ninde era uma
confusão indecifrável de sentimentos, mas seus olhos clamavam por piedade.
– Ninde... – Thaynahra rompeu um silêncio fúnebre que pairava naquele
pequeno elevado de terra em Auberdine. O sol dava seus primeiros indícios de
despedida, com seus raios já preguiçosos. – Todos sentimos muito, minha
amiga.
As elfas se abraçaram, embora Ninde pouco correspondesse. Seu olhar se
mantinha distante e incrédulo. A arquidruidesa se afastou e segurou as mãos da
amiga, olhando em seus olhos com afeto. A caçadora recolheu as mãos com
hesitação e limpou a garganta em um breve pigarro.
– Eu... eu preciso ir a Ventobravo. – disse incerta.
Os druidas se entreolharam incrédulos. Mais pessoas se aproximavam
querendo prestar seus pêsames e oferecer algum tipo de ajuda. Uma irritação
começou a agitar Ninde, que se sentia sufocada.
– Eu preciso ir. – repetiu a caçadora.
– Ninde, existem algumas coisas que precisaremos arranjar. – Thaynahra
falou com carinho, dirigindo um olhar bondoso à amiga.
– Me recuso a enterrar meu marido. – a caçadora respondeu de forma
ríspida. A inquietação de Felpas, a seu lado, aumentava.
– Mas... Ninde? – Dessa vez foi Berwyn quem tentou intervir.
– Não, Berwyn. Não posso. Me perdoe.
Um silêncio se instaurou e todos os membros daquele pequeno grupo
entenderam que não era o melhor momento para prestar condolências à
caçadora. Thaynahra chamou por um mago, que prontamente abriu um portal
para Ventobravo. Nada mais foi dito.
A caçadora estava prestes a atravessar o portal quando sentiu o toque
em seu ombro. A expressão no rosto do arquidruida Berwyn era grave. Ninde
se sentiu desconfortável com seu olhar inquisidor.
– Seja lá o que está prestes a fazer... Faça funcionar! – o arquidruida
fechou os olhos ao final da frase.
Ninde piscou os olhos demoradamente e passou a mão na dobra do
manto. A esfera púrpura ainda pulsava. A elfa noturna entrou rapidamente no
portal, sem olhar novamente para trás.
* * *
A caçadora observou com esperança quando os dois homens se
aproximaram carregando uma maca volumosa coberta com um grosso tecido
cinzento. Era início de noite. Uma brisa morna passeava entre as árvores do
cemitério de Ventobravo. Em qualquer outra ocasião Ninde teria apreciado a
quietude daquele lugar. Não naquele momento.
O cemitério de Ventobravo localizava-se atrás da grande Catedral da Luz.
“A magia vil não funciona adequadamente em vocês elfos noturnos”, prevenira
a feiticeira. Somente a caminho de Auberdine a caçadora se deu conta das
implicações daquele alerta. E agora que estava ali, no cemitério de Ventobravo,
mais uma vez seus pensamentos eram completo caos. “E se desse errado?”, não
deixava de pensar.
Os dois carregadores deitaram a maca no chão, próxima a uma cova
aberta. Era um corpo de homem que carregavam, presumia-se pela robustez do
conteúdo da maca e pelo alívio que os homens sentiram ao baixa-lo. Estavam
um pouco afastados da ruela de pedras que cortava todo o cemitério. Ninde
saiu detrás de uma árvore, para sobressalto dos dois humanos.
– Pela Luz!! – gritou o primeiro homem, mais idoso dos dois.
– Nos assustou! – o segundo disse de forma áspera, mas arregalou os
olhos ao ver que se tratava de uma elfa norturna. A claridade dos lampiões
reluzia na pele clara de Ninde.
Certamente eram pai e filho. E o mais velho provavelmente herdara o
ofício do pai, como era comum nesse tipo de profissão.
– Desculpa, senhora. Está um pouco escuro e não vimos a senhora
chegar. – o mais velho dos dois coveiros limpou as mãos no avental, incerto se
deveria fazer uma mesura ou não.
– O que carregam aí? – Ninde ignorou o pedido de desculpa dos
coveiros. Sua expressão era dura e assombrosa.
– Um corpo, minha senhora. O que mais poderia ser? Somos coveiros. –
disse o mais novo, um tanto quanto insolente. – Somos simples coveiros, minha
senhora. É apenas um corpo. Nada mais. – reforçou.
O mais velho dos coveiros demonstrava apreensão. Amedrontado pela
expressão no rosto da elfa, iniciou uma justificativa de seus trabalhos honrosos:
– Somos homens direitos, dona. Pode acreditar. Fui ajudante de meu pai,
que foi o coveiro de Ventobravo durante anos. Enterrou pessoas muito queridas
de nossa cidade. E antes dele meu avô era o coveiro e meu pai seu ajudante.
Assim como meu filho é meu ajudante agora. E antes do meu avô...
– Refiro-me ao que carregam. Quem é? – a caçadora interrompeu
impaciente.
O velho se endireitou e falou antes que o filho desse alguma resposta
indelicada:
– O jovem Thomas Lenger. Não se sabe do que morreu. Era saudável
como um touro, mas andava muito triste pelo que contam. Apenas não acordou
esta manhã. Não tem nem parentes, uma pena. Ninguém para chorar.
Era o bastante. Habilmente, Ninde deslizou os braços do manto e, ao
mesmo tempo, cravou dois dardos nos homens. O efeito do veneno da
mantícora era instantâneo e indolor. Os coveiros dormiriam por algumas horas
e acordariam apenas com a mente embotada.
Desde que deixara Auberdine em direção a Ventobravo, Ninde adotara
uma postura severa. Colocara sua mente em um estado de resignação,
transferindo toda sua energia para o que precisava ser feito. Não poderia
pensar. Não poderia hesitar. O armazenamento da maldita pedra não duraria
muito tempo. Seria aquele corpo. Precisava ser.
A caçadora ajoelhou ao lado do corpo humano. Subitamente lembrou
novamente do distante dia em Invérnia, quando foi acudir um certo mago
aprendiz caído do céu. Eram tão jovens. Desde aquele dia ela e Huor se casaram
em seus corações. Estiveram sempre juntos desde então. O mago acabara com
a caçada solitária dela. Não o perderia. Não podia perdê-lo. Esticou a mão para
levantar o tecido mortuário que envolvia o corpo humano, mas hesitou. “Não
quero vê-lo”, pensou, “ainda não”.
A pedra da alma pulsava em sua mão direita. Era sólida e perfeitamente
esférica. O brilho parecia um pouco menos intenso do que a última vez que
olhara ou era impressão sua? Lisa como vidro. De fato parecia de vidro, embora
sugerisse um material mais resistente. Algum material demoníaco, certamente.
Uma torrente de pensamentos a invadiu. Dezenas de efeitos colaterais,
centenas de catástrofes. Ouviu a reprovação de Thaynahra, a decepção de
Berwyn, a gargalhada da feiticeira. Maldita. Imaginou até mesmo o fim de
Azeroth. E em sua mão a pedra apenas brilhava.
Ninde fechou os olhos. Não precisou revirar o pensamento em busca das
palavras. Já as estava pronunciando:
– Erzin kvartug grroulminzkazy!!
As palavras demoníacas saíram decididas de seus lábios, embora
nitidamente desconfortáveis na boca de uma elfa noturna. Ninde olhou a pedra
rapidamente em sua mão direita e fechou os olhos. Em um gesto rápido a
caçadora colidiu a esfera contra o que acreditava ser o peito do homem morto.
A pedra se estilhaçou, porém não deixou resíduo algum. Um brilho, em parte
verde e em parte roxo, emanou do corpo que se ergueu sobressaltado da maca,
tornando a deitar com uma respiração ofegante.
A respiração de Ninde não estava diferente. Olhava com certo horror
para a mortalha subindo e descendo conforme a respiração acelerada do...
morto? O corpo começou a se remexer, tentando se livrar do que o cobria. Por
alguns segundos a caçadora hesitou, alarmada, mas se pôs a ajudar. Pensou em
pegar o punhal em sua greva direita, mas desistiu com medo de machucar...
Huor. Tinha que ser Huor.
Os dedos da caçadora estavam um pouco atrapalhados pelo nervosismo
e ela detestou a si mesma por não ter retirado as luvas de malha. Para que
estava de armadura em Ventobravo? Não havia local mais seguro para a Aliança
em toda Azeroth. Conseguiu desenrolar a mortalha e perdeu a respiração por
alguns segundos.
Um homem humano a encarava. Olhos negros, cabelo e barba negros em
um rosto levemente quadrado. A pele morena de sol. O cenho franzido
demonstrava toda a confusão que uma pessoa podia sentir. Os olhos piscavam
e se reviravam atordoados.
A preocupação abateu o rosto de Ninde. Um aperto no peito ameaçou
estrangula-la. Suas mãos, sempre tão hábeis no manejo do arco e das flechas
mortais, tremiam incontrolavelmente. A visão começava a falhar, ao redor tudo
começava lentamente a se tornar branco. O homem moveu a boca. Em uma
primeira vez não conseguiu falar, mas na segunda a voz áspera surgiu. Uma voz
diferente do que estava acostumada a ouvir:
– Eluna...?
As lágrimas irromperam do rosto da caçadora. O homem forçou a vista
um pouco mais.
– Ninde?! Minha visão está um pouco embaçada... – o homem fez uma
pequena pausa, recobrando forças que não lembrava ter perdido. – Mas é você.
Conheço esse cheiro de orvalho... lembro desde a primeira vez... é você. – A
confusão no rosto do homem se transformou em preocupação quando a visão
lhe retornou por completo. – Por que está chorando, meu amor?
Ninde pensou ter sorrido, mas irrompeu em uma crise compulsiva de
choro e se deixou cair sobre o corpo do homem. Tremia incontrolavelmente e
soluçava de maneira dolorosa. O homem a abraçava. Um abraço diferente,
desajeitado. Por alguns momentos achou que havia sido enganada. Por alguns
momentos achou que despertaria algum morto-vivo. Mas era ele. Era Huor.
As nuvens se abriram e a lua resolveu olhar para o casal. Ninde se
recusara a pensar nas implicações de sua escolha. Não era uma escolha; era o
caminho. Escolha lhe daria ao menos duas opções e ela só tinha uma: trazer
Huor de volta. A culpa por seu egoísmo a consumiria lentamente durante o
resto da vida, ela sabia, mas não se arrependia nem por um momento. Seu
amor estava vivo. Ela só poderia esperar que a perdoasse.
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