O ANTROPOCENO E AS TRANSFORMAÇÕES NO SISTEMA … · No centro dessas grandes transformações está o crescimento da população humana e a urbanização no planeta. Entre os principais
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O ANTROPOCENO E AS TRANSFORMAÇÕES NO SISTEMA ALIMENTAR:
DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA A AGRICULTURA DO SEMIÁRIDO
NORDESTINO
THE ANTHROPOCENE AND CHANGES IN THE FOOD SYSTEMS:
CHALLENGES AND OPPORTUNITIES FOR NORTHEASTEAN SEMIARID
AGRICULTURE
EL ANTROPOCENO Y LOS CAMBIOS EN EL SISTEMA ALIMENTARIO:
DESAFÍOS Y OPORTUNIDADES PARA LA AGRICULTURA SEMIÁRIDA
DEL NORESTE
Jorge Luis de Sales Farias1
Resumo O Antropoceno é um período de intensas mudanças no planeta Terra, marcada pela presença humana, com destaque para as transformações que ocorreram na agricultura para atender as demandas do sistema alimentar. Esse artigo objetivou discutir as alterações na produção de alimentos no Semiárido brasileiro, a partir das modificações globais no sistema alimentar ocorridas no Antropoceno. Foi realizado um estudo sobre a produção de alimentos no Semiárido brasileiro a partir das transformações que ocorrem desde a “Grande Aceleração”. Foi utilizada a pesquisa bibliográfica e documental, foram selecionados dados e informações abordando as questões sociais, econômicas, ambientais e políticas e sua relação com a produção e o consumo de alimentos e análise ocorreu por meio de uma abordagem interdisciplinar e sistêmica. A partir desse período prevaleceu no Nordeste brasileiro um modelo agrícola produtivista, que repercutiu diretamente sobre sua agricultura e promoveu alterações na produção e consumo de alimentos. As mudanças no sistema alimentar global e as transformações que ocorreram na agricultura poderão ocasionar uma crise alimentar no semiárido nordestino, pois o modelo produtivista não foi o adequado para as particularidades econômicas, sociais, ambientais, climáticas e políticas da agricultura dessa região. Existe, portanto, uma diversidade de desafios em diferente áreas para a construção de uma agricultura que possibilite a sustentabilidade rural no semiárido nordestino. Assim, devem ser exploradas a diversidade de sua agricultura e cultura alimentar, como um elemento de fortalecimento dos diferentes contextos territoriais do semiárido nordestino, possibilitando em novos circuitos de produção e comercialização. Palavras-chave: agricultura familiar, desenvolvimento rural, objetivos do desenvolvimento sustentável, segurança alimentar e nutricional. Abstract The Anthropocene is a period of intense changes on planet Earth, marked by human presence, highlighting the transformations that occurred in agriculture to meet the demands of the food
1 Doutorando em Desenvolvimento Rural; Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
jorgelsf@msn.com
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system. This article aimed to discuss the changes in food production in the Brazilian Semiarid, from the global changes in the food system that occurred from the Anthropocene. A study was conducted on food production in the Brazilian semiarid region from the transformations that have occurred since the “Great Acceleration”. Bibliographic and documentary research was used, data and information were selected addressing social, economic, environmental and political issues and their relationship with food production and consumption and analysis occurred through an interdisciplinary and systemic approach. From this period, a productive agricultural model prevailed in the Northeast of Brazil, which had a direct impact on its agriculture and promoted changes in food production and consumption. The changes in the global food system and adjustments that occurred in agriculture may cause a food crisis in the northeastern semiarid, because the productivist model did not fit the economic, social, environmental, climatic and agricultural particularities of this region. Therefore, there are a variety of challenges in different areas for the construction of an agriculture that enables rural sustainability in the northeastern semiarid. Thus, the diversity of its agriculture and food culture should be explored, as an element of strengthening of the different territorial contexts of the northeastern semiarid, enabling new production and marketing circuits. Keywords: family farming, rural development, sustainable development goals, food and nutrition security. Resumen El Antropoceno es un período de cambios intensos en el planeta Tierra, marcado por la presencia humana, destacando las transformaciones que ocurrieron en la agricultura para satisfacer las demandas del sistema alimentario. Este artículo tiene como objetivo discutir los cambios en la producción de alimentos en el semiárido brasileño, a partir de los cambios globales en el sistema alimentario que ocurrieron en el Antropoceno. Se realizó un estudio sobre la producción de alimentos en la región semiárida brasileña a partir de las transformaciones que se han producido desde la "Gran Aceleración". Se utilizó la investigación bibliográfica y documental, se seleccionaron datos e información que abordan cuestiones sociales, económicas, ambientales y políticas y su relación con la producción y el consumo de alimentos y el análisis se produjo a través de un enfoque interdisciplinario y sistémico. A partir de este período, prevaleció un modelo agrícola productivo en el noreste de Brasil, que tuvo un impacto directo en su agricultura y promovió cambios en la producción y el consumo de alimentos. Los cambios en el sistema alimentario global y los cambios que ocurrieron en la agricultura pueden causar una crisis alimentaria en el semiárido del noreste, porque el modelo productivista no era adecuado para las particularidades económicas, sociales, ambientales, climáticas y agrícolas de esta región. Por lo tanto, hay una variedad de desafíos en diferentes áreas para la construcción de una agricultura que permita la sostenibilidad rural en el noreste semiárido. Por lo tanto, se debe explorar la diversidad de su agricultura y cultura alimentaria, como un elemento de fortalecimiento de los diferentes contextos territoriales del semiárido del noreste, permitiendo nuevos circuitos de producción y comercialización. Palabras clave: agricultura familiar, desarrollo rural, objetivos de desarrollo sostenible, seguridad alimentaria y nutricional.
Introdução
O Antropoceno é o período que se caracteriza pela intensidade das
atividades da espécie humana no Planeta Terra, delimitando uma nova trajetória
da humanidade. As transformações que ocorrem desde os anos 1950s, com o
avanço no crescimento da população e a rápida urbanização promoveram
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acentuadas mudanças na alimentação, conforme Willet et al. (2019) alteraram a
produção global de alimentos e o padrão de consumo, que levou a população
mundial a se alimentar de forma inadequada e os sistemas de produção de
alimentos atuarem além dos limites do sistema planetário. Esses autores
reconhecem que a alimentação representa um dos maiores desafios para a
saúde e ambiente no século XXI, pois é um dos responsáveis pela saúde
inadequada e degradação ambiental, sendo necessário e urgente uma
transformação global do sistema alimentar.
O sistema alimentar foi moldado para atuar sob um aspecto global, por
meio de um modelo produtivista, para produzir em larga escala por meio de um
processo de desnaturalização da agricultura. O aumento de oferta de alimentos
está alinhado com a reprodução de um modelo homogêneo, tanto pelo lado da
produção quanto do consumo.
Nessa circunstância, prevaleceu no Nordeste brasileiro um modelo de
produção de alimentos de natureza produtivista, que repercutiu diretamente
sobre sua agricultura, na forma de produção e consumo de alimentos. McMichael
(2016) atesta que o atual período é caracterizado pela égide do poder financeiro
e corporativo e regido por uma política agroalimentar homogeneizante, que para
a região Nordeste representa uma forte ameaça para acentuar a perda da
identidade dos seus espaços rurais e possibilitar a geração de uma crise
alimentar.
O tema segurança alimentar e nutricional foi fortalecido a partir dos anos
2000, reconhecido como uma questão relevante para a sociedade pelo Estado
brasileiro. Por meio da Lei 11.346 (Brasil, 2006) foi reconhecido o Direito
Humano à Alimentação Adequada e regulamentou o Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) formado por diferentes setores do
Estado brasileiro nos níveis municipal, estadual e federal e com a participação
da sociedade civil. Entretanto, as mudanças econômicas e políticas em vigência
no país estão comprometendo os avanços e as conquistas no tema e
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possibilitam a emergência de uma insegurança alimentar e nutricional em áreas
rurais, particularmente na área rural do semiárido nordestino, devido suas
particularidades econômicas, sociais, ambientais e políticas.
As transformações do sistema alimentar global desafiam a agricultura do
semiárido nordestino a se transformar e, com isso ressurgir um modelo de
produção de alimento alinhado com as mudanças para uma agricultura de baixo
impacto ambiental, com promoção da saúde, desenvolvimento econômico com
justiça social, enfim um sistema alimentar relacionado com o desenvolvimento
sustentável. Assim, esse artigo tem como objetivo discutir as mudanças na
produção de alimentos no semiárido nordestino, a partir das transformações
globais no sistema alimentar que ocorreram a partir do fenômeno da “Grande
Aceleração” e possibilitará identificar os desafios e as oportunidades para a
contribuição da agricultura dessa região com a segurança alimentar e nutricional
no meio rural.
O presente artigo foi dividido em quatro partes, além da introdução e
considerações finais. Na primeira parte, apresenta o Antropoceno e as
mudanças sobre o sistema alimentar global e o brasileiro. A segunda parte,
descreve a metodologia utilizada. Em seguida, foi realizada uma caracterização
do semiárido nordestino a partir dos aspectos econômicos, sociais, ambientais e
políticos e sua relação com a produção de alimentos. E, finalmente, a última
parte apresentou uma discussão sobre os desafios e perspectivas da agricultura
do semiárido para fortalecer o sistema alimentar da região, como uma estratégia
de desenvolvimento sustentável.
O Antropoceno e as mudanças no sistema alimentar
O Antropoceno representa uma nova era geológica que delimita e
caracteriza-se pela capacidade da espécie humana em promover mudanças no
Sistema Terra. De acordo com Ludwig e Steffen (2018), a história humana
apresenta diversos momentos marcantes para delimitar o surgimento dessa
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nova época, e a última metade do século XX, período denominado de “A Grande
Aceleração”, ganhou destaque para representar esse marco devido à explosão
das atividades humanas.
De acordo com Steffen et al. (2015), o termo ‘Grande Aceleração’ tem
como objetivo captar a natureza holística, abrangente e interligada das
mudanças pós-1950, envolvendo muito mais do que a mudança climática,
fornecendo uma visão dinâmica do emergente acoplamento em escala
planetária, via globalização, entre o sistema socioeconômico e o sistema
biofísico da Terra.
No centro dessas grandes transformações está o crescimento da
população humana e a urbanização no planeta. Entre os principais
determinantes dessa mudança está o aumento da população. Butler e
McFarlane (2018) apontam que devido ao rápido crescimento da população no
início da década de 1960, provocou uma preocupação generalizada de que o
crescimento do suprimento global de alimentos estava prestes a ser superado
pela demanda de alimentos.
A “Revolução Verde” foi a medida para ampliar a oferta de alimentos em
escala mundial, por meio de um processo de modernização da agricultura,
resultando na expansão da produção global de grãos e o rebaixamento dos
preços dos alimentos. A partir desse contexto, acelerou o processo de
desnaturalização da agricultura e passou a compor complexos agroindustriais,
regidos por setores especializados para atender um sistema alimentar global,
moldado para produzir e ofertar alimentos em grandes quantidades e com preços
baixos a uma sociedade cada vez mais urbanizada.
De acordo com o relatório World Population Prospects, organizado pela
Organização das Nações Unidas (2019), foi mantida a projeção para o aumento
da população mundial para os próximos 30 anos, ou seja, sairemos do atual
patamar de 7,7 bilhões para aproximadamente 10 bilhões de habitantes em
2050, apesar desse apontar para uma diminuição da taxa de crescimento
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populacional. Para atender essa demanda, de acordo com a FAO (2017), a
agricultura em 2050 precisará produzir 50% mais alimentos, concentrados e
biocombustíveis do que em 2012.
Apesar de uma certa estabilidade na produção e nos preços dos
alimentos, constatou-se, desde o início da implementação desse modelo
produtivista, o seu aspecto reprodutor de contingências nos âmbitos econômico,
social e ambiental. Porém, a crise dos preços dos alimentos 2006-2008 e a
mudança climática acelerada revelaram essas controvérsias e as fragilidades do
sistema alimentar global. Nesse sentido, Ericksen (2008) afirma que apesar do
aumento da eficiência e produtividade do sistema alimentar na redução da
prevalência da fome, este sucesso tem sombreado diversas preocupações e até
mesmo as ameaças que o próprio sistema impõe a segurança alimentar e sua
susceptibilidade as mudanças globais a partir dos aspectos sociais, econômicos,
ambientais e políticos.
Para Friedmann (2005), o sistema alimentar global está em crise e essa
situação possibilita o surgimento de um novo regime alimentar, a partir de uma
reestruturação do capitalismo em resposta as questões ambientais, denominado
de corporativo-ambiental. Segundo a autora, esse novo regime apresenta
compromissos específicos e desiguais com os movimentos sociais, Estados e
poderosas corporações agroalimentares, com implicações importantes e muito
diferentes para os agricultores, trabalhadores de alimentos e consumidores em
várias partes do mundo, é provável que consolide e aprofunde as desigualdades
entre ricos e pobres.
Na atual conjuntura de crise mundial, fatores relacionados com a elevação
dos preços dos alimentos, mudanças climáticas em curso e as projeções de
aumento populacional fazem ressurgir um grande dilema sobre como alimentar
esse expressivo número de habitantes do planeta Terra. Assim, surgem desafios
e oportunidades para novas formas de produção e consumo de alimentos e
questiona-se a capacidade da agricultura industrial em promover a segurança
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alimentar e nutricional e viabilizar a reconexão da agricultura com a natureza e
sociedade.
A partir dos anos 1950, o Brasil inicia um processo de modernização da
sua agricultura e nessa trajetória deixou de ser um importador de alimentos para
assumir a condição de um grande exportador mundial de alimentos. A trajetória
dessa mudança contou com um papel decisivo do Estado brasileiro, que foi um
grande empreendedor na produção de alimentos, apoiando as políticas agrícolas
de modernização da agricultura do país.
As políticas agrícolas foram direcionadas para a formação de complexos
agroindustriais economicamente dinâmicos, fundamentados em um modelo
produtivista, com foco em um sistema alimentar global, a princípio para atender
um mercado interno, devido a rápida urbanização, para em seguida proporcionar
a condição do país como um dos principais fornecedores de alimentos no mundo.
O papel do Estado brasileiro não ficou restrito apenas a políticas de
modernização da agricultura, sua atuação foi determinante na regulação e
abastecimento alimentar. L’Abbate (1988) afirma o surgimento de políticas
alimentares na década de 1940 e que tem como marco a criação do Serviço de
Alimentação da Previdência Social (SAPS) e, além disso, a autora destaca a
marcante atuação de Josué de Castro para o surgimento de diferentes políticas
para o abastecimento urbano, que foram acentuadas principalmente nos anos
1960, 1970 e até meados de 1980, quando ocorre um arrefecimento dessas
políticas públicas.
Os anos 1990 foram marcados por uma retração do papel do Estado na
regulação da distribuição alimentar, com o desmonte das estruturas antigas e
esse período é caracterizado por uma acentuada mobilização da sociedade civil
por uma política de combate à fome no país (Belik et al., 2001). Nos anos 2000,
o tema assume um novo reconhecimento e o Estado e sociedade definem
segurança alimentar e nutricional como o direito de todos ao acesso regular e
permanente aos alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, tendo como
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base práticas alimentares promotoras da saúde, respeitando a cultura,
sustentabilidade ambiental, social e econômica (Brasil, 2010).
A história recente do Brasil, no que se refere as mudanças globais
iniciadas na década de 1950, reconhecidas como a “Grande Aceleração” e a sua
interface com o sistema alimentar assume um caso paradoxal. Por um lado, o
país experimentou enormes avanços na segurança alimentar, com destaque
para a saída do mapa da fome em 2014, a partir de um pacto estabelecido entre
o Estado e sociedade brasileira. De outro lado, persiste como ideal o modelo
agrícola ancorado na agricultura industrial, que desconsidera as distintas
realidades regionais.
A partir de 2015, o país atravessa por momentos de mudanças políticas e
econômicas, notadamente, relacionadas com um contexto liberal e para o
fortalecimento do sistema alimentar global. Ressalta-se ainda a diminuição do
papel da sociedade na discussão sobre segurança alimentar e nutricional com a
extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Consea
(Brasil, 2019). Essa nova conjuntura poderá ocasionar um retrocesso e, com isso
resultar em crises alimentares, tais como o surgimento de espaços vazios
alimentares, denominados de desertos alimentares, particularmente em regiões
mais vulneráveis como o Semiárido nordestino.
Metodologia
Foi realizado um estudo sobre a produção de alimentos e as mudanças
no sistema alimentar no Semiárido brasileiro a partir das transformações que
ocorrem desde a “Grande Aceleração”. O Semiárido brasileiro (SAB) está
presente nos nove estados da Região Nordeste e em parte do norte de Minas
Gerais, abrangendo 1.262 municípios e ocupa 54,1% do território nordestino. Em
2017, recebeu nova delimitação política e administrativa2, a partir da
2 O Semiárido Brasileiro foi definido pela primeira vez em 1989. Em 2005, ocorreu a segunda
delimitação com base nos critérios: i) precipitação pluviométrica média anual inferior a 800 mm;
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regulamentação pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Brasil,
2017) para a introdução do estado do Maranhão.
De acordo com Silva et al. (2010), o SAB apresenta características gerais
relacionadas com insolação média de 2.800 h.ano-1, temperaturas médias
anuais de 23 °C a 27 °C, evaporação média de 2.000 mm.ano-1 e regime
pluviométrico no máximo de 800 mm e marcado pela escassez, irregularidade e
concentração das precipitações em breves períodos em média, de três a quatro
meses, apresentando volumes de água insuficientes em seus mananciais para
atendimento das necessidades da população.
Foi utilizada a pesquisa bibliográfica e documental, foram selecionados
dados e informações relacionados com questões sociais, econômicas,
ambientais e políticas e sua relação com a produção e o consumo de alimentos
e análise ocorreu por meio de uma abordagem interdisciplinar e sistêmica.
O Semiárido brasileiro e a produção de alimentos
A Região Nordeste, de acordo com o Censo demográfico realizado pelo
IBGE em 2010, apresentava 53 milhões de habitantes, representando 27% do
contingente populacional do país, com taxa de urbanização de 73%. O SAB,
considerado o mais populoso do mundo, apresentou 11% da população
brasileira, com 38% habitando o espaço rural.
A agricultura praticada no Nordeste, de acordo com Castro (2012),
apresenta destaques na produção de cana-de-açúcar como o principal produto
agrícola da região (Alagoas, Pernambuco e Paraíba), plantios de algodão (Bahia,
Maranhão e Piauí), soja (Bahia, Maranhão), tabaco (Bahia), frutas com o cultivo
irrigado para exportação (Bahia e Pernambuco - vale do rio São Francisco e Rio
Grande do Norte - Vale do Açu) e a produção de ovos de galinhas, leite bovino,
ii) índice de acidez de até 0,5 calculado pelo balanço hídrico; e iii) risco de seca maior do que 60%.
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milho e mandioca disseminados por praticamente em todos os estados da
região, reconhecidos como produtos típicos da agricultura familiar.
A Caatinga é o principal bioma do Semiárido brasileiro, segundo Kiill e
Porto (2019) é formado por uma floresta tropical sazonalmente seca do Novo
Mundo (FTSS), a maioria desse bioma ainda permanece pouco estudada e
protegida em comparação com as florestas tropicais e savanas adjacentes,
estão entre os sistemas ecológicos mais vulneráveis às mudanças climáticas.
Os resultados preliminares do Censo Agropecuário de 2017 (IBGE, 2019)
apresentou 2.322.495 estabelecimentos agropecuários na Região Nordeste,
correspondendo a 45,8% do total de estabelecimentos brasileiros. Todavia, no
censo anterior, a região contava com 2.454.006 de estabelecimentos ocorrendo
uma diminuição no número de estabelecimentos (-5,4%). Os resultados
preliminares do censo apontam para uma estrutura fundiária concentradora de
terra.
A agricultura do SAB é predominantemente familiar e apresenta a maior
parcela desse estabelecimento do país. De acordo com Guanziroli et al. (2014),
a Região Nordeste apresenta uma agricultura familiar mais significativa e
representativa dentro do contexto de sua agricultura do que na média nacional,
92,7% representam a categoria de familiares no Nordeste contra 84,4% na média
do Brasil. Contudo, ocorre a persistência da pobreza que afeta os espaços rurais,
de acordo com Maluf e Mattei (2011), 53% dos domicílios rurais são classificadas
como pobres e respondiam por 70% do total de pessoas extremamente pobres.
Os resultados preliminares do Censo Agropecuário de 2017 (IBGE, 2019)
revelam uma retração de 17,4% no emprego na agricultura da região Nordeste,
com uma diminuição de 1.339.013 pessoas ocupadas na agricultura nordestina.
Diferentes fatores concorrem para o aumento do desemprego na agricultura,
com destaque para a elevada pobreza rural, perturbações climáticas, uso
inadequado dos recursos ambientais, políticas descontextualizadas e
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tecnologias inadequadas deverão ser apontados como causas desse gravíssimo
problema social e econômico.
O Semiárido brasileiro, apesar de suas peculiaridades ambientais,
culturais, sociais e econômicas, foi alvo de diferentes políticas públicas, que por
sua vez, estavam de acordo com o contexto histórico e o pensamento político
predominante, entre elas destaca-se as políticas relacionadas com a
modernização da agricultura. Essa modernização obteve sucesso especialmente
naqueles produtos que compõem a pauta de exportação do complexo
agroindustrial brasileiro, entretanto, apresentou problemas em sua implantação
no Semiárido brasileiro (SAB).
Tonneau et al. (2005) destacam que as políticas de modernização
agrícola provocaram profundas reestruturações econômicas e marginalizaram a
agricultura nordestina, especialmente do semiárido que apresenta um deficiente
acesso aos mercados em decorrência da sua fraca competitividade. É nesse
contexto de rupturas e dos limites ecológicos, econômicos, técnicos, sociais e
políticos do modelo dominante que a agricultura familiar do semiárido subsiste
(Sabourin; Caron, 2003). Agravando-se, com a emersão de uma crise alimentar,
comprometendo a segurança alimentar e nutricional dos agricultores familiares,
com a possibilidade de existirem desertos alimentares no espaço rural
nordestino.
Uma outra agricultura para o semiárido nordestino? Desafios e
oportunidades
A partir da “Grande Aceleração” na década de 1950, o sistema alimentar
foi moldado para atender a demanda por alimentos em uma sociedade cada vez
mais urbanizada. Nessa transformação, o modelo produtivista impôs uma
agricultura industrial que promoveu uma dupla desconexão da agricultura com a
sociedade e a natureza (Lamine; Dawson, 2018), promovendo uma crise que
repercute em diferentes espaços do planeta e áreas do conhecimento humano.
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Essas mudanças desestabilizaram economias locais e regionais, no caso
do Nordeste brasileiro, Furtado (1984) afirmou que apesar do crescimento
econômico vertiginoso nas décadas de 1960 e 1970 na região, que marcou
considerável esforço de acumulação, em nada se refletiu para a grande maioria
da população rural, que pouco ou nada dele se beneficiou. O autor chama
atenção que não adiantaria investir em políticas apenas para incrementar a
densidade demográfica sem fortalecer a produção de alimentos destinados à
população local que no seu entender “...o colapso de uma produção de alimentos
organizada como agricultura de subsistência assume, necessariamente,
dimensões de calamidade social”. Nesse caso, ele manifestava a preocupação
com a desconexão do local com sua produção de alimentos, pois a forma como
se conduzia o processo de modernização, poderia levar um colapso na
agricultura do semiárido, com a necessidade de estabelecer um outro tipo de
desenvolvimento para essa região.
Após 35 anos da publicação do artigo de Furtado, constata-se que apesar
de diversas e diferentes políticas destinadas a produção de alimentos na região,
estas não foram efetivas na transformação da base produtiva. Estas foram
influenciadas pela conjuntura política e econômica no país e apresentavam em
seu cerne o modelo produtivista, direcionado a um processo de especialização
produtiva, como forma de produzir alimentos mais baratos e elevada escala.
Esse tipo de agricultora não se adequou às condições sociais, econômicas,
climáticas e ambientais da região seca do Semiárido brasileiro.
A partir dos anos 2000, agenda de políticas públicas para o
desenvolvimento rural e a segurança alimentar e nutricional assumiu relevância
pelo estado brasileiro, contudo essas ocorreram em um cenário dúbio. Por um
lado, os investimentos públicos para a agricultura familiar e políticas sociais
possibilitaram a redução da pobreza no meio rural, entretanto, sem alteração das
bases produtivas, e por outro lado, ocorreu a primarização da economia, o que
favoreceu o fortalecimento da agricultura comercial do país, com a expansão da
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modernização produtiva (Favareto, 2010). Entretanto, apesar de avanços em
determinados setores, o semiárido nordestino, ao longo dos últimos 50 anos,
vem sofrendo uma série de dificuldades de ordem econômica, social, ambiental
e política, que repercute diretamente sobre sua agricultura, na forma de
produção e consumo de alimentos.
Nessa conjuntura, a agricultura no semiárido nordestino encontra-se em
uma situação crítica. De acordo com Tonneau et al. (2011), ainda prevalece uma
desorganização das suas principais atividades econômicas, historicamente
vinculadas ao complexo gado-algodão-lavouras alimentares e uma crise
climática antiga que converge para o estabelecimento de uma economia sem
produção, entendida como aquela constituída pelas subvenções sociais e
transferências da União para as prefeituras e governos estaduais. Segundo os
autores, as políticas sociais, principalmente a aposentadoria, impediram o êxodo
rural, mas não impediram uma crise social, as aposentadorias beneficiaram
principalmente os supermercados e as agroindústrias alimentares transformando
os produtores rurais em consumidores e, nessa conjuntura, a agricultura não é
mais atrativa em virtude de sua baixa competitividade.
Segundo Wiskerke (2010), a produção de alimentos coordenada pelo
sistema alimentar industrial, permitiu uma concentração dessa atividade
econômica em determinadas regiões, enquanto outras são marginalizadas ou
ameaçadas de marginalização. O modelo de produção convencional de
alimentos ancorado no sistema alimentar global, determinado por
competitividade, trouxe resultados econômicos e sociais apenas para uma
parcela de estabelecimentos que estavam próximos de áreas úmidas no
Semiárido brasileiro.
Assim, foram desconsideradas as peculiaridades regionais e deslocou
para a periferia os sistemas agroalimentares que não estivessem de acordo com
essa agricultura convencional e, consequentemente, promoveu uma
desconexão entre a produção e consumo de alimentos, salientada pela presença
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de supermercados. Essa persistência de produzir alimentos “de lugar nenhum”
não possibilitou mudanças sociais e econômicas para a maioria dos
estabelecimentos no semiárido, inclusive continua reproduzindo um modelo
excludente e aprofundando as desigualdades.
De acordo com Aquino et al. (2018), a situação de marginalização dos
agricultores familiares na Região Nordeste em relação a distribuição dos ativos
produtivos, permitiu que esses assumissem uma condição de dependência de
outras fontes de renda externa a propriedade e das transferências sociais para
sobreviver. Esses autores constataram a existência de abismo produtivo que se
mantém em todas as regiões brasileiras, apresentando, inclusive, sinais de piora
relativamente aos números do levantamento censitário do IBGE de 2006,
chamam a atenção para a agricultura familiar das regiões Norte e Nordeste que
é formada basicamente por agricultores extremamente pobres e de baixa renda.
A redução na disponibilidade de mão de obra na agricultura da Região
Nordeste, revelada pelo resultado preliminar do censo agropecuário 2017,
sinaliza a contínua desvalorização da importância da agricultura na região. O
agravamento dessa situação decorre da necessidade de mão de obra para a
produção de alimentos, pois não ocorreram mudanças significativas de base
técnica nas áreas secas do semiárido. Essa retração na mão de obra poderá
ampliar a dependência do abastecimento local por alimentos produzidos em
outros espaços produtivos e a diminuição da renda, essa associação poderá
comprometer a segurança alimentar e nutricional dos próprios agricultores.
Na questão ambiental, persistem no semiárido ações antrópicas
fundamentadas em métodos extrativistas e predatórios, esgotando os recursos
naturais e agravando a fragilidade do bioma. Araújo Filho (2013) aponta que os
impactos dessas ações parecem estar evoluindo para a intensificação da aridez,
a ser, provavelmente, incrementada com os efeitos do aquecimento global, que
a transformará definitivamente em uma região árida, de cujas consequências as
gerações futuras pagarão o preço.
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A partir de um conjunto de mudanças que estão ocorrendo no
Antropoceno, as mudanças climáticas são emblemáticas para a humanidade,
afetando todos de um modo geral, contudo de forma diferenciada. Machado Filho
et al. (2016) ao avaliar os cenários da mudança do clima e os impactos
relacionados à agricultura familiar nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, a partir
de um aquecimento de 0,5 °C - 2 °C, entre 2016 e 2035, apontam para alterações
nos padrões de temperatura e de precipitação, que são de extrema relevância
para o rendimento das culturas agrícolas. De acordo com os autores, ocorre uma
tendência de seca e poderá levar a resultados negativos no âmbito da segurança
alimentar, afetando de sobremaneira as duas principais culturas da agricultura
familiar: mandioca e milho e, assim, uma crise climática representa um grave
problema alimentar no semiárido nordestino.
Os padrões globais de consumo estão sendo alterados, que condizem
com o estilo de vida moderno, estão modificando o hábito alimentar dos
agricultores, substituindo alimentos que outrora produziam para seu consumo
por alimentos fornecidos pela indústria alimentar global. Essa transição foi
observada em comunidades rurais localizadas no semiárido por Reinaldo et al.
(2015), esses afirmaram que essa mudança refere-se as limitações impostas na
produção de alimentos, que compromete sua autonomia na produção de
alimentos, conduzindo a uma dependência de compra de alimentos nos
mercados e supermercados e contribui decisivamente para substituição dos
alimentos produzidos localmente por produtos processados e industrializados.
O sistema alimentar global está apoiado em uma agricultura orientada
para a exportação, com perda de cultura alimentar, a alimentação fornecida por
grandes supermercados e não existe saída para a produção agrícola local
(Fonte, 2008). Nesse contexto, a agricultura brasileira foi alvo de profundas
transformações agrárias e agrícolas, que por um lado transformou o país em
importante exportador de alimentos e, por outro promoveu um deslocamento das
outras formas de agriculturas para a periferia da produção de alimentos no país.
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O sistema alimentar no semiárido nordestino, apesar de suas
peculiaridades, persiste na manutenção de um modelo de produção agrícola
ancorado em um ideal de um progresso técnico e alinhado a um modelo
agroexportador. Schneider e Gazolla (2017) afirmam que essa forma de
produção de alimentos promove uma desconexão com a base natural e
apresenta uma necessidade constante de aumentar a escala dos fatores de
produção, o que torna quase impossível a sobrevivência de agricultores “não
integrados” ao seu modo de funcionamento. Assumindo essa premissa, uma
parcela considerável de agricultores familiares do semiárido nordestino, que
produzem alimentos por meio de uma diversidade de atividades, para atender o
próprio consumo e diferentes mercados, está com sua autonomia restringida no
aspecto produtivo, o que poderá ocasionar uma diminuição na produção de
alimentos em áreas rurais, representando um risco para o surgimento de
desertos alimentares em áreas rurais no semiárido nordestino.
O tema desertos alimentares está associado com espaços vazios
alimentares, no qual são observados a distância a ser percorrida e a renda da
população para adquirir alimentos saudáveis e nutritivos. De acordo com Dutko
et al. (2012), somente nos EUA foram identificadas 6.500 regiões com desertos
alimentares. Walker et al. (2010) afirmam que as discussões sobre desertos
alimentares não devem se restringir apenas a um problema de barreiras
geográficas para acessar alimentos, pois existe uma forte relação entre o
surgimento de desertos alimentares e a presença de elevadas taxas de pobreza
e desigualdades sociais e econômicas. No Brasil, o tema é embrionário, com
pesquisas esporádicas e limitado a estudos nas áreas urbanas, carecendo de
um aprofundamento teórico sobre o surgimento desse fenômeno e do
reconhecimento do comprometimento da segurança alimentar e nutricional dos
agricultores em áreas deprimidas sociais e econômicas, como o Semiárido
brasileiro.
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Nessa trajetória, a agricultura do semiárido nordestino encontra-se diante
de uma encruzilhada, com a necessidade de reorientar sua trajetória ou não, é
um momento de se fazer escolhas. No primeiro caso, essa reorientação deverá
ter como pressupostos, o reconhecimento de suas peculiaridades econômicas,
sociais, ambientais, culturais, políticas e espaciais e, com isso buscar elementos
que possibilite o fortalecimento e a construção de novas economias alternativas.
O segundo caso, é continuar no mesmo caminho que a trouxe até este momento,
mantê-la na periferia dos sistemas alimentares e isso poderá representar um
sério risco na segurança alimentar e nutricional, com consequências para a
formação de vazios alimentares em áreas rurais e até mesmo, em cidades de
pequeno porte do semiárido.
Existe, portanto, uma diversidade de desafios em diferente áreas para a
construção de uma agricultura que possibilite a sustentabilidade rural no
semiárido nordestino. Nesse caso, surgem como oportunidades o
reconhecimento de um modelo de produção de alimento distinto de outras
regiões do país, com a expressão de um relocalismo alimentar como alternativa
para a emergência de uma agricultura alinhada ao desenvolvimento sustentável.
Nessa conjuntura, Petersen (2015) defende uma produção de alimentos
diferente dos modelos exógenos e reprodutores de uma racionalidade
tecnocrática e generalista, que rotularam como atrasadas todas as visões e
vivências incongruentes com o paradigma agrícola moderno, ocasionando um
verdadeiro “memoricídio cultural”. Por sua vez, Nunes et al. (2014) afirmam que
a Região Nordeste deve buscar uma estratégia própria de desenvolvimento a
partir de suas especificidades e construir uma dinâmica econômica própria e
mais endógena, considerando as escolhas e capacidade coletiva dos atores no
nível local, a diversidade regional e o meio ambiente.
Nesse processo de reconhecimento da necessidade de uma agricultura
diferenciada para a região, surgem oportunidades, principalmente relacionadas
com agendas internacionais que devem contribuir com aprendizagem,
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reconhecimento e a emersão de novas trajetórias para a agricultura do semiárido
nordestino, entre elas destaca-se a Agenda 2030. Essa agenda coordenada pela
ONU estabeleceu em 2015 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
(ODS), com os países signatários assumindo o compromisso de ajustarem suas
políticas nacionais na busca do alcance desses objetivos nos próximos quinze
anos (Griggs et al., 2013).
De acordo com a FAO (2019), a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável é um reconhecimento de um mundo que está mudando, com novos
desafios e devem ser superados para viver em um mundo sem fome,
insegurança alimentar e desnutrição em qualquer uma de suas formas. O
Objetivo de Desenvolvimento Sustentável Fome Zero e Agricultura Sustentável
(ODS 2) reflete a preocupação com a sustentabilidade dos sistemas
agroalimentares globais, tornando-se um desafio para a sociedade o
reconhecimento que a saúde, o meio ambiente e a agricultura estão interligadas
em uma mudança emergente (Blesh et al., 2018).
Porém, Caron et al. (2018) alertam que para alcançar sistemas
alimentares inclusivos e sustentáveis é necessário ir além de alcançar o ODS 2.
Assim, eles propõem a integração dos ODS voltados para a produção de
alimentos a partir de uma abordagem territorial, com o estabelecimento de um
novo contrato social rural-urbano, que remunerará os habitantes rurais e seus
territórios, tanto pelas funções que desempenham como pelos bens públicos que
fornecem às sociedades, ao planeta e às economias. Nessa circunstância, a
agricultura no semiárido nordestino deveria ser ressignificada e assumida como
um espaço para a construção de novas economias.
A conjuntura atual do país, particularmente na relação Estado e
sociedade, está conformando novas institucionalidades para responder um
conjunto de crises sociais, políticas, econômicas, ambientais e climáticas em
diferentes escalas. Por um lado, esses arranjos políticos e institucionais
representam um enorme desafio para o semiárido nordestino, uma vez que
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persistem no modelo neoliberal na busca de soluções. Mas por outro, abre-se a
oportunidade para a emersão de novas arenas e possibilitar criar diferenciais,
com destaque para a expressão de inúmeras redes alimentares alternativas a
partir de sua valorização e reconhecimento.
Goodman et al. (2012) afirmam que o atual debate para a criação de um
futuro econômico mais sustentável está relacionado com a importância das
economias alternativas, como um espaço empírico para a produção de novos
conhecimentos. Assim, devem ser exploradas a diversidade de sua agricultura e
cultura alimentar, como um elemento de fortalecimento dos diferentes contextos
territoriais do semiárido nordestino, possibilitando em novos circuitos de
produção e comercialização que se situam fora do modelo de agricultura
convencional (Renting et al., 2017).
Nesse aspecto, abre-se uma nova agenda de ações públicas para essa
região voltada para investigações sobre a agricultura como um recurso de uso
comum, relocalização dos sistemas agroalimentares, redes alimentares
alternativas, cadeias curtas de abastecimento alimentar, mercados, produção de
alimentos em condições semiáridas, abordagens territoriais com foco na
reconexão da agricultura com a alimentação saudável. O conhecimento nesses
temas poderá ser a base para a compreensão de um processo de relocalização
alimentar no semiárido nordestino com foco no desenvolvimento sustentável.
Considerações finais
As transformações que ocorreram a partir do Antropoceno permitiram a
ascensão da agricultura industrial, forjada pelo sistema alimentar global.
Entretanto, esta não foi bem-sucedida nas áreas secas do Semiárido brasileiro,
particularmente pelo processo de padronização e especialização da produção
de alimentos. Ao longo dessa trajetória, a modernização da agricultura promoveu
o fim de um ciclo econômico na região, desmantelando o tripé pecuária-algodão-
lavouras de sequeiro e promoveu uma desvalorização da agricultura do
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semiárido nordestino. Entretanto, persiste a adoção de modelo produtivista e
mais competitivo, que pode ser compreendido como uma grande contradição, ou
seja, a busca por algo que foi o responsável pela desconexão, desenraizamento
e desvinculação da agricultura com as diferentes realidades desse espaço rural.
Ressalta-se, que ao longo desses anos, a inter-relação de diferentes
fatores econômicos, sociais, ambientais e políticos estão comprometendo a
segurança alimentar e nutricional dos agricultores, limitando sua capacidade de
produzir alimentos para o seu autoconsumo, repercutindo em novas formas de
abastecimento, que poderá contribuir com a insegurança alimentar e nutricional
e o surgimento de desertos alimentares nesse espaço rural.
As diversas transformações econômicas, sociais, ambientais, climáticas e
políticas estão apresentando novos desafios para a agricultura brasileira,
especialmente para a agricultura do semiárido nordestino. Assim, o
enfrentamento a esses desafios exige um modelo alternativo de produção de
alimentos e construção de uma agenda para o desenvolvimento sustentável
nessa região.
O desenvolvimento sustentável deve ser entendido como uma
oportunidade para a elaboração de condições que proporcionem melhorias na
qualidade de vida das pessoas. A Agenda 2030, por meios dos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável poderá auxiliar na construção de novos caminhos,
com rearranjos institucionais voltados para a produção de alimentos adequados
não apenas as diferentes condições ecológicas da região, mas que, de fato
possa contribuir com o fortalecimento da autonomia da população rural e urbana
do semiárido nordestino.
Uma outra oportunidade na produção de alimentos para a região está no
reconhecimento e valorização das redes alimentares alternativas e cadeias
curtas de abastecimento alimentar, como uma forma de compreender esse
processo de relocalização e restabelecer a reconexão sociedade, natureza e
agricultura. Nesse caso, faz-se necessário a construção de conhecimentos para
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uma transição da agricultura nessa região, sob o risco de uma emersão de uma
crise alimentar.
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