Lima Vaz, Antropologia Filosófica II 58-103
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metodológicos. Em cada um deles o caminho para o outro é tra-çado num terreno que parece apresentarse como o mais apto a
oferecer um fundamento sólido, seja à expressão teórica da reali-dade do outro, seja à experiencia de uma figura autêntica da suaalteridade. Assim, o roteiro para o outro é traçado sucessivamen-te no terreno da fenomenologia, da gnosiologia, da psicologia, dalógica, da ética e da historia. Apontemos rapidamente a direçãode cada um deles:
a. fen om enológico — Seu ponto de partida pode ser encontra-
do na tentativa de E. Husserl 27 para estabelecer a realidade dooutro no ámbito da esfera intencional do Eu e dentro do problemageral da constituição da realidade enquanto medida e regida peloEu transcendental, problema que oferece a linha diretriz das
M editações C artesian as28. Tratase, para Husserl, de estabeleceruma teoria da intersubjetividade transcendental rigorosamenteconstruida, segundo as exigências do método fenomenológico 29.
O laborioso itinerário da 5a M editação 30, apesar de não ter con-vencido nem mesmo os discípulos mais próximos 31, adquiriu umestatuto de paradigma nas discussões contemporâneas sobre oproblema do outro. Com efeito, a tematização fenomenológicapode ser considerada a última e mais radical tentativa da filosofíado su je i to , presente aqui sob a forma de urna egologiatranscendental, para ultrapassar a barreira do solipsismo32. Naverdade, porém, o impulso decisivo vindo de Husserl levou afenomenologia para além dos limites por ele traçados, atestandoa fecundidade de um método que frutificou em varias direções 33.
b. gnosiológico — Há, evidentemente, urna íntim a vinculaçãoentre o enfoque fenomenológico e o gnosiológico, não sendo oprimeiro senão a proposição do método mais apto para o conhe-
cim en to do outro. No entanto, a dimensão especificamentegnosiológica apresentase nesse campo com características origi-nais na exata medida em que, dentro da relação geral de alteridadeentre o cognoscente e o conhecido, o perfil do outro se destacainconfundível por entre a multiplicidade anônima dos objetos.Como descrever e fundamentar criticamente essa relação originalde conhecimento que se estabelece entre su je it os7. Tal a tarefa
que o enfoque gnosiológico do problema do outro se propõe cum-prir. A proposição da questão nesses termos tem algo de parado-xal, uma vez que a existência do outro é, primeiramente, umaevidência da qual seria tão ridículo ( ge lo ion ) duvidar quanto da
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i xistência da p h y s is34. Com efeito, o pensamento antigo não co-nheceu esse problema na sua versão gnosiológica, não obstante
lenha sido o "viver em comum" um tema fundamental da filosofia clássica, sobretudo no que diz respeito à vida ética, à vidapolítica e à amizade 3S. Na tradição cristã desse tema, fundada narevelação do próxim o no NT, a existência do outro como outro >■também uma evidência contida na urgência absoluta do precei-
to do amor, mas, aqui, a raiz mais profunda da alteridade mergu-lha no ato criador de Deus36: o que, segundo Lain Entralgo 37,
i mpõe definitivamente o tema do outro na história espiritual doOcidente, como irá atestálo exemplarmente a reflexão de SantoAgostinho 3S. No entanto, para que a existência do outro assumis-se o caráter problemático, em termos gnosiológicos, com que seapresenta na filosofia moderna, era necessário que profundasmudanças históricoculturais, agudamente analisadas por LainEntralgo39, tivessem lugar na história do Ocidente. Desde os
primeiros passos da filosofia moderna, o problema do conheci-mento do outro está presente, assinalado com o argumento quese tornará clássico de Descartes a Husserl, e que pretende expli-car tal conhecimento entendendoo como conclusão de um racio-cínio analógico que parte da experiência do Eu próprio40. As la-boriosas tentativas para fundamentar o conhecimento do outro ou para darlhe um estatuto gnosiológico adequado 41 repousam
sempre, e definidamente, sobre a realidade primeira do encontro, que se desenrola em formas sempre mais profundas a partir darelação fundamental do reconhecimento. No encontro, em suma,a pré-compreensão da relação de intersubjetividade exerce em atoo conhecimento do outro na. sua irredutível originalidade emface da relação de objetividade, não obstante as formas deficien-tes e coisificantes que o encontro pode assumir 42, ou que podemdesfigurálo.
c. p s ico lóg ico — O problema psicológico da relaçãointersubjetividade formulase no plano da realidade empírica doencontro com o outro, na medida em que ele se efetiva através davida psíquica, desde a simples percepção à imaginação e à afetividade. Ao psiquismo, com efeito, cabe uma função privilegiada
no estabelecimento das relações inter subjetivas já que esse tipode relação, em virtude da sua essencial reciprocidade, deve sersubjetivamente vivida, ou seja, deve realizarse como vida depresença recíproca, vem a ser, de encontro e de diálogo43. Se ao
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corpo próprio cabe a primazia na relação de objetividade, na medidaem que por ele nos situamos no mundo, na relação deiutcrsubjetividade o espaço intencional no qual o corpo próprio do eu e do outro entram em relação de reciprocidade não é oespaço da sua situação objetiva no mundo, mas do seu "fazersinal" ou da sua "apresentação", para falar como E. Husserl44. A partir da percepção da alteridade específica do outro no desdobra-mento especular do corpo próprio ou da sua mútua reflexão, asformas psicológicas da relação intersubjetiva apresentam umadiferenciação rica e complexa, analisada, entre outros, por MaxScheler 4S.
d. lógico — O aspecto lógico da relação de intersubjetiviestá essencialmente ligado ao medium da linguagem em que essarelação se estabelece, uma vez que toda lógica é linguagem e todouso da linguagem implica uma lógica, vem a ser, uma ordem ousintaxe dos seus elementos e um conjunto de regras que definemem termos de significação e significado a relação entre a lingua-gem e as coisas ou a sua semântica e, finalmente, as regras do uso
ou a pragmática da linguagem. A dimensão lógica daintersubjetividade desdobrase propriamente no campo da prag-mática e encontra sua expressão primeira e, de alguma maneiraarquetipal, no diá logo . As origens dia lóg icas da lógica sãocomumente admitidas pelos estudiosos da lógica antiga, tendosido a estrutura formalmente dialógica do procedimento lógicoinvestigada particularmente por P. Lorenzen e seus colaborado-
res 46. Por outro lado, o diálogo, como é sabido, tem seus títulosde nobreza filosófica assegurados pelo patrocínio, ilustre entretodos, de Platão. Foi sob o signo do diálogo platônico que a dimen-são lógica da relação de intersubjetividade fez sua entrada na his-tória da filosofia47. Na filosofia recente, a tematização filosóficado diálogo apresentase como via para a superação do solipsismoe como alternativa à teoria transcendental da intersubjetividade 4<i.Pelo caminho da investigação da estrutura propriamente lógica dodiálogo abriuse um amplo campo de reflexão na filosofia contem-porânea, no qual alguns problemas clássicos da Antropologia Fi-loso! h .i são repensados em novas perspectivas49.
e etico A dimensão ética da relação de intersubjetividademamlesta se originariamente à luz da mesma evidência com que
se ia/, presente a existência do outro e, com ela, o fato primitivodo existircom ooutro. Com efeito, esse coexistir se mostra
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i ■mstitutivamente como um coexistir no espaço do ethos, ou no■no da comunidade ética50. Assim, o questionamento dialógico*iim que Sócrates introduz na filosofia o tema da intersubjetividade
tnn em vista, em primeiro lugar, a vida ética ou o exercício dani/’.té, noção essencialmente voltada, na sua acepção grega original, para o recon hecim en to no seio do existiremcomum51. Ai tica clássica passa a ser, desta sorte, sob a égide de Sócrates, umdomínio privilegiado para a reflexão sobre as formas da relaçãomtersubjetiva. Será necessário o advento e o triunfo do individua-lismo moderno para que o refluxo da moralidade aos recessos da
subjetividade torne problemática a intersubjetividade ética, queKant tenta restabelecer com a universalização formal da máximacm imperativo categórico da razão pura prática. Mas, de fato, aintersubjetividade só irá reencontrar um lugar fundamental nodomínio da reflexão ética com o conceito hegeliano de "eticidade"(Sittlichkeit ) S2. A experiência do encontro do outro como expe-riência ética tomase um dos temas cardeais da filosofia contem-porânea, tendo sido ilustrado, entre outros, por G. Marcei (versupra, n. 48) e por E. Levinas53. Por outro lado, as tentativas dese apresentar o discurso ético como fundamento da comunidadeuniversal da comunicação como em J. Habermas e, com matizesdiferentes, em K.O. Apel54, ou o intento de pôr em relevo avisée ética da ipseidade do Si, manifestada na linguagem, na ação
e particularmente na narração, tal como o apresenta P. Ricoeur5S,manifestam a atualidade do problema da précompreensão darelação de intersubjetividade na sua dimensão ética.
f. hist ó ric o — Todos esses aspectos convergem para a nature-za essencialmente histórica da relação de intersubjetividade e, dealguma maneira, nela se fundem, sendo a história o domíniopróprio e específico do existiremcomum dos homens. A história
aqui é entendida não somente enquanto designa o fato natural dotranscorrer, cronologicamente datado, da vida humana individuale coletiva, mas o modo próprio com que a comunidade humanaexiste no tempo e que encontra sua efetivação nos costumes, nasinstituições, na linguagem, na sensibilidade comum, em sumanos diversos aspectos da relação de intersubjetividade que defi-nem para os indivíduos e para os grupos a forma do seu existir histórico. Aos conceitos de "mundo" e "natureza" na relação deobjetividade correspondem, assim, os conceitos de "história" e"sociedade" na relação de intersubjetividade. Em termos dialéticos,
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mundo da vida, elas constituem o resultado de uma m edia çã o empírica 59 que deve ser suprassumida ñas formas mais elabora-das das mediações abstrata e transcendental.
Na tradição do pensamento clássico, as formas de experienciada intersubjetividade, constituindo o dominio da sua précompreensão, eram diretamente conceptualizadas no discurso filosófico, dan-do origem a duas disciplinas normativas: Etica e Política. A noçãode urna "ciencia" da sociedade, tanto no seu aspecto diacrónicoromo Historia quanto no seu aspecto sincrónico como Sociologia,ou o exercício de uma mediação abstrata 60 sobre as formas empíricasdo seremcomum, era desconhecida ao pensamento antigo, não lhesendo, pois, familiar o conceito de "sociedade" como grandezaempírica cuja estrutura e leis de funcionamento devessem serinvestigadas e abstratamente formuladas, como nem o de "história"como processo temporal a ser submetido à investigação metódicado passado e à busca de constantes ou leis que supostamente rege-
ríam o seu desenvolvimento. Para os gregos, a única forma de vidaem comum digna deste nome era a ko inonía politileé, que os latinostraduziram por soc ietas civilis e que era, justamente, objeto de umsaber normativo, a episthém e politiké, que Aristóteles define comoo "supremo ordenador entre os saberes” 61. Sociedade e História são,pois, conceitos modernos, como são recentes as ciencias que delasse ocupam 62. Sua origem remota deve ser buscada, sem dúvida, nas
vicissitudes da grande querela medieval, que opôs a sociedade reli-giosa, a Igreja, e a incipiente sociedade política em vias de organizar-se em Estado soberano É justamente na sequência do apareci-mento e formação do conceito moderno de "sociedade" que irãonascer e crescer aquelas que vieram a denominarse "ciências hu-manas" ou "ciências do Espírito" (Geisteswissenschaften ). As no-ções de História e Sociedade (abrangendo a esfera da dialética do realque Hegel denominou Espírito objetivo) irão, pois, desempenhar dealguma maneira, na organização da enciclopédia científica do sabermoderno, a função fundadora e reguladora com relação ao ser e aoagir em comum dos homens que o conceito de Natureza desempe-nhava com relação aos fenômenos físicos. Mas foi justamente adificuldade em submeter as "coisas humanas" (ta anthiópina), como
as definira Aristóteles 64, ao código epistemológico da nova ciênciada Natureza que surgira no déculo XVII, a dar origem aos complexosproblemas lógicos e metodológicos presentes ao longo do desenvol-vimento das modernas "ciências humanas" 6S.
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A compreensão explicativa da relação de intersubjetividade,na medida em que exerce sobre o seremcomum dos homens amediação abstrata própria do conhecimento científico, é umaforma tipicamente moderna da autocompreensão do homem.Nesse ponto podemos estabelecer uma analogia com a compreen-são explicativa do espírito , anteriormente considerada 66. Mostra-mos ali, com efeito, que o procedimento operatorio ou experi-mental da ciência não se aplica ao espírito em si m esm o, poissendo ele identidade reflexiva consigo mesmo não pode exprimirse diretamente em conceitos construídos abstratamente apartir de uma impossível autoexperimentação. A compreensão
explicativa terá, então, de exercerse indiretamente sobre as ope -r a ç õ e s do homem enquanto ser espiritual, ou sobre suaobjetivização em processos e formas observáveis e analisáveis,tarefa essa que cabe às ciências humanas do indivíduo. De modoanálogo, a relação de intersubjetividade, sendo essencialmentecomunhão ou encontro que tem lugar na reciprocidade dos atos espirituais (reconhecimento e liberdade), ou sendo presença esp i-
ritual 67, não pode ser submetida diretamente ao procedimentoabstrativo da ciência. Para tanto seria necessário que a relação deintersubjetividade deixasse de ser o encontro de sujeitos que sereconhecem como tais, ou seja, na manifestação recíproca da suaipse idade ou da sua identidade reflexiva. Em outras palavras, serianecessário que os termos da relação intersubjetiva fossem intei-ramente dóceis à manipulação experimental, o que talvez seja o
desideratum implícito de algumas concepções das ciências hu-manas. O conhecimento científico — ou a compreensão explicativa— pode operar somente com relação às práticas e às obras queresultam do existiremcomum dos indivíduos — práticas sociaise culturais — que constituem, de fato, o campo das "ciênciashumanas". Mas é justamente a definição de uma metodologiaadequada ao estudo científico (isto é, de acordo com as normas
reconhecidas do conhecimento científico) das práticas e obras doexistir histórico e social do homem que apresenta dificuldadespeculiares. De fato, a epistemologia das ciências humanas conti-nua sendo campo de vivas discussões, com o oscilar do seu objetoentre os pólos da Natureza, do Sujeito e da Cultura68. Cada umdesses pólos, como foi visto na Introdução do nosso Curso, exerceuma atração poderosa sobre as duas faces com as quais se apre-senta o existiremcomum dos homens, a face histórica e a facesocial. História e Sociedade são fatos da Natureza que devem ser
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explicados a partir das leis que regem a estrutura e o movimentodos processos naturais? Serão criações de um Sujeito universal,do qual os indivíduos são momentos transitórios, que se constituie evolui através dos tempos como um todo orgânico tendo a regêlo a enteléqueia de uma idéia unificadora, seja ela o EspíritoÓbjetivo de Hegel, a Humanidade de A. Comte ou a Sociedadefinal de Marx? Ou deverão ser explicadas pela pluralidade e diver-sidade das respostas com que os grupos humanos fazem face,constituindo a sua própria tradição cultural, ao desafio da suasubsistência e permanência no tempo? Estas interrogações acom-
panham a formação e desenvolvimento das ciências humanas apartir do século XIX e dão origem a uma constelação de proble-mas filosóficos que passam a constituir a temática da chamada" filosofia das ciências humanas". Assim como aconteceu no casodo espírito, também no caso da relação de intersubjetividade acompreensão explicativa apresentase distendida entre o idealexplicativo que guia as ciências da Natureza e a com preen são
exigida pela síntese indissociável entre o fato e o sentido nas" coisas humanas", o que leva inevitavelmente as ciências huma-nas a constituirse como ciências hermenêuticas e a penetrar nocampo da filosofia 69.
Na compreensão explicativa da relação de objetividade, é per-mitido falar de uma primazia do "explicar" sobre o "compreen-der", pois, não obstante as ciências da natureza, consideradascomo expressão da relação do homem com o mundo objetivo,trazerem em si a ineliminável dimensão da interpretação, nelaso homem deve submeterse à necessidade objetiva das leis daNatureza. Ao invés, na compreensão explicativa da relação deintersubjetividade, a primazia cabe ao "compreender", uma vezque o homem, enquanto sujeito, transcende, explicandoo e com-
preendendoo, o domínio da legalidade da Natureza 70. Ora, a suarelação com o outro se estabelece no espaço dessa transcendên-cia, pois é uma relação recíproca de sujeito a sujeito, e não umarelação nãorecíproca de sujeito a coisa. O problema fundamental,pois, da compreensão explicativa na relação de intersubjetividadeé o problema da síntese entre o explicar e o compreender, cons-tituindo uma expressão que se possa denominar "científica" do
existir em comum dos homens.Tratase, na verdade, de definir o estatuto científico dos dois
grandes grupos de saberes que a enciclopédia moderna reuniu sob
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o nome de "ciências históricas" e "ciências sociais", naquelasincluindose as ciências da cultura, nestas a ciência dos compor-tamentos coletivos ou Psicologia social. A relação entre essesdois grupos de ciências oscila problemáticamente entre a união ea distinção, em razão do fato de que ambas têm em vista o mesmo
horizonte temático, apenas contemplado na sucessão temporal dopassado e do presente: o horizonte das estruturas, dos comporta-mentos e dos acontecimentos que tecem juntos o existir do grupohumano. Assim, a História seria a sociologia do passado, assimcomo a Sociologia seria a história do presente: uma tenta descre-ver as estruturas e comportamentos na reconstituição do queaconteceu-, outra descreve as mesmas estruturas e comportamen-
tos como explicação do que está acontecendo 71. Num e noutrocaso, o operar do homem no domínio do seremcomum ou dasua existência intersubjetiva — que é, propriamente, a sua práxis — é objeto de uma explicação que tenta compreendêlo segundoformas estáveis e explicálo segundo um tipo de ordem próprio deuma realidade na qual não reina a necessidade nomológica daNatureza, mas em que tem lugar uma conjunção típica de fre
qüências 72, contingência e acaso 73. Desta sorte, entre os alvospermanentes do saber moderno está a compreensão explicativa darelação de intersubjetividade. Com efeito, essa relação é vividaconcretamente desde que entre dois sujeitos (sociedade dual) ouentre muitos (sociedade plural) se estabelece, por meio da lingua-gem, a reciprocidade do reconhecer-se e, a partir desse primeirofio, se entretece a teia infinita do estarcomooutro ( M itsein) 74.A necessidade desta compreensão explicativa impõese desde quea descoberta, no ecúmeno mundial, da imensa variedade das so-ciedades e das suas culturas e a recuperação, nas profundezas dotempo, dos mais remotos arquivos históricos da humanidade ele-varam à dignidade de matrizes conceptuáis da consciência mo-derna a Sociedade e a História. Levantouse assim imperativa-
mente o problema de uma ciência do agir humano, ou de umateoria do operar (Handlungstheorie ) que passou a ser, aparente-mente, o problema dominante do pensamento contemporâneo 75.No entanto, como já anteriormente observamos, o florescer re-cente das teorias da linguagem como ação [sprachliches Handeln) e da competência comunicativa 76 assinala, com inequívoca clare-za, os limites da compreensão explicativa aplicada à relação de
intersubjetividade, e a necessidade da transgressão desses limitese da entrada no domínio da compreensão filosófica.
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I. Compreensão f i l osófi ca da rel ação de i n t ersubj et i vi dade
A tarefa de elaborar a categoria de intersnbjetividade e de
iirticulála à dialética que conduz o discurso da AntropologiaI dosófica vêse em face de uma singular situação teórica, de resto|;í delineada na introdução do presente capítulo e na descrição daprécompreensão. Sabemos, com efeito, que todo o discurso daAntropologia Filosófica é impelido, no seu desdobramentodialético, pelo movimento de autoposição do sujeito que, ao seafirmar a si mesmo na afirmação do seu objeto transcende, em
virtude do princípio da ilim itaç ão tética 77, a lim itaçã o eidé tica desse objeto para visar, como último horizonte intencional, auniversalidade do ser. Essa estrutura dialética do discurso antro-pológico deu origem, na elaboração da categoria do espírito, auma singularidade notável na curva do seu movimento. Aí, comovimos, a ilim itaç ão tética suprassumiu a lim itaçã o eidét ica namedida em que o homem, ao se autoafirmar enquanto espírito,
abrese intencionalmente à universalidade do ser 78. Ora, no ter-reno da relação intersubjetiva, o sujeito tem diante de si umoutro sujeito e deve assumilo no discurso da autoafirmação desi mesmo: vale dizer, tem diante de si uma outra infinidade in-tencional. Essa paradoxal relação recíproca de dois infinitos 79 éque está no fundo do mistério do conhecimento do outro enqua n-to outro, que só pode ser um reconhecimento, expresso na identida-de dialética do Eu com o nãoEu como Eu (alter ego) 80. A cate-goria da intersubjetividade deve abrigar, pois, de alguma maneiraou, mais exatamente, dialetizar esse paradoxo do encontro h u m a-no que é sempre, fundamentalmente, um encontro entre sujeitose, como tal, um encontro espir i tual81. Ela deve explicitar o subs-trato conceptual que permite ao sujeito afirmar a infinidade in-
tencional do seu Eu nela compreendendo a infinidade intencionaldo outro e sendo por ela compreendido. Tal condição significaque só me é possível afirmar o outro ou acolhêlo no espaçointencional do meu sentir, entender e querer na medida em quefor por ele também afirmado. Do contrário recairiamos na rela-ção de objetividade, ou no caso extremo da coisificação do outro.
É justamente a partir dessa reciprocidade da ilim itaç ão tética dos sujeitos que se reconhecem que se eleva a questão decisiva,linha divisória entre os filósofos da intersubjetividade: é possível
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pensar a relação entre os sujeitos sem atribuir de alguma formaa um dos termos a primazia sobre o outro 82? Mais exatamente:ao ser articulada no discurso da Antropologia Filosófica, a catego-ria da intersubjetividade compreende o outro no âmbito intencio-nal da autoposição do Eu ou no momento tético do discurso.Dessa posição fundante do Eu no discurso não deriva necessaria-mente sua precedência sobre o outro na conceptualização filosó-fica da idéia do homem, ou seja, a necessidade de se lhe atribuira dignidade de prim um ontologicum na relação EuTu ou EuNós,de sorte a desequilibrar definitivamente a reciprocidade da rela-ção intersubjetiva? Eis aí uma das questões em torno das quais se
unem as diversas correntes de crítica às filosofias do Cogito quecruzam o ar filosófico do nosso tempo 83. Ela opõe notadamente,no terreno da filosofia da intersubjetividade, dois extremos, ocu-pados respectivamente por E. Husserl e por seu discípulo E.Levinas. Entre a egologia radical de Husserl e a não menos radicalheterologia de Levinas 84, o discurso da Antropologia Filosóficadeve encontrar, sem dúvida, uma via m ed ia. Esta deve compre-
ender na forma da categoria de intersubjetividade o paradoxo dapresença do outro Eu no espaço de intencionalidade do Euafirmante que é, ao mesmo tempo, o sujeito ontológico (comom ed iaçã o ) e o sujeito lógico (como termo de atribuição) do dis-curso, mas de tal sorte que essa compreensão nem implique aprimazia ontológica do Eu sobre o outro, nem deixe que a clarezado seu afirm arse a si m esm o seja ofuscada pela presença irradiante
do outro. Tratase, em suma, de mostrar como o discurso antro-pológico, enquanto construção conceptual do Eu, ao acolher ooutro Eu na ordem das suas razões — ou seja, ao integrar nessaordem a categoria da intersubjetividade — atinge um momentosingular da dialética da identida de na diferença que é constitutivado espírito, articulando essa dialética no terreno da presen ça es -
piritual.Vimos anteriormente que a dialética constitutiva do espírito
é a dialética do em s i e do parasi 8S. O parasi é, aqui, o momentoda reflexividade do espírito ou da sua i d ent idade ativa consigomesmo na afirmação da sua identidade (intencional) na diferen-ça (real) com o objeto86. O emsi é o momento da realidade doobjeto — da sua verdade — que é normativa com relação à sua
expressão pelo sujeito. Na relação de intersubjetividade, enquan-to propriamente recon hecim ento, temos a identidade na diferen
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<;a do Eu, fazendo face à identidade na diferença do outro Eu, valedizer, temos a afirmação recíproca do outro como Eu. É essaposição da objetividade do emsi (mensurante com relação ao
parasi ou à identidade reflexiva do Eu) como atributo da subje
(ividade p ara s i do outro, que torna possível a relação deintersubjetividade como relação recíproca na pluralidade dos su- jeitos finitos. Com efeito, aqui o predicado essencial do sujeitoespiritual — a consciênciadesi — é atribuído ao outro e nelesuprassume dialeticamente o momento do emsi ou o serpostocomo objeto, fazendoo surgir como sujeito diante do sujeito (alter e g o )87. Por outro lado, é essa reciprocidade da identidade na di-
feren ça (só possível, convém lembrálo, se dois infinitos deintencionalidade paradoxalmente se reconhecem) que permitetransgredir o teor literal da expressão alter ego como anulação daoriginalidade do outro pela simples duplicação do Eu, o que de-notaria a forma extrema do solipsismo. A alteridade aqui é cons-tituída pela diferença intencionalmente infinita com que a iden-tidade dos sujeitos (ou a identidade da sua ipse idade ) é posta na
relação de intersubjetividade, o que exclui definitivamente, nahermenêutica do alter ego, a simples equalização objetiva ouaritméticamente formulada, dos sujeitos 88.
Podemos agora traçar as grandes linhas da aporética histórica da relação de intersubjetividade e esboçar os termos com que hojese formula a sua aporética crítica.
1. A porética histórica da relaç ão de inter su bje tivid ad e89
a. O problema da comunidade humana no pensamento anti— A afirmação de que o tema do conhecimento do outro enquan-to outro permaneceu ausente do pensamento antigo ou de que,pelo menos, não faça parte da tópica filosófica usual dos autoresclássicos, tornouse um lugar, comum da historiografia filosófi-ca 90. Qualquer que seja a exatidão histórica dessa afirmação, énotório, no entanto, que o problema da comunidade humana,compreendendo as diversas formas de convivência entre os ho-mens, ocupa um lugar importante na literatura filosófica da antigüidade. Dentro da ótica do universal ou da idéia de comunida-
de humana é que o problema do outro faz sua aparição comotermo das relações específicas que definem as formas da comuni-dade humana e a sua hierarquia. O outro é, então, o eu mesmo
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(alter ego) na medida em que a pluralidade empírica dos indiví-duos, dispersa pelos azares da existência, começa a unificarse nasformas hierarquicamente ordenadas de comunidade de que ohomem pode participar: família, cidade, confrarias religiosas ou
filosóficas e, finalmente, a comunidade do gênero humano segun-do os Estoicos 91. Entre os vínculos que podem ligar os homensentre si na comunidade, destacase o da amizade ( p h ilía , amicitia ), cujo louvor tornase um tópos clássico da filosofia e da literaturaantigas. São dois os fios que se cruzam nos laços da amizade e éprovavelmente a dificuldade em atálos solidamente que está nofundo da aporética da relação de intersubjetividade no pensamen-to antigo: o fio da "natureza" ( physis) que se manifesta na dispo-sição natural, na afinidade, na afetividade 92; e o fio da "razão"(logos) que se manifesta no ideal do bem e da virtude como fimda am izade 93. A ssim os su jeito s, term os da relação deintersubjetividade, conquanto mergulhados nas contingências dasua existência empírica, permanecem polarizados pela luz do logos
que os torna iguais 94, num tipo de relação que exprime a mútuareflexão dessa iluminação do logos que é predicado de cada um.Essa comunicação no logos, essência da amizade, encontra porsua vez suas formas mais elevadas de realização nos planos éticoe político 9S.
b. O próximo na tradição bíblica e no pensamento cristã
medieval — A revelação do próximo (o p les ío n )96 prenunciase jáno AT, no fundo da poderosa vaga de justiça que rompe as bar-reiras da moral arcaica para espraiarse no profetismo, no qual ainvocação do outro surge no contexto éticocultural em que fazsua aparição a noção de responsabilidade pessoal, e como julga-mento que pesa sobre as decisões da liberdade de cada um 97. Masé na revelação do próxim o do NT que se dá a profunda revolução
espiritual na compreensão do outro que marcará para sempre acultura ocidental e que põe radicalmente em questão a exigênciamais essencial da amizade antiga como relação que só pode vigo-rar entre iguais. A revelação do próxim o no NT e sua presença natradição cristã tem seu fundamento último na revelação da agápe, do amordom de Deus (charitas, caridade) e é essa revelação,consignada particularmente nas tradições paulina e joanina que
alimenta, ao longo da história do pensamento cristão, a teologiada caridade. A revelação da agápe cristã abre assim uma dimen-são que, na sua novidade, não fora pressentida pelo pensamento
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clássico no espaço da relação com o outro, dividida até entãoentre a pulsão do eros e o culto à ph ilía 98. Nesse contexto serialalvez mais adequado falar de um paradoxo na revelação cristã do
próxim o do que, propriamente, de uma aporética vigente entre
seus termos, uma vez que não é a compatibilidade entre essestermos ao nível do logos filosófico que aqui se propõe, mas a suaparadoxal junção aos olhos da fé. Tratase, na verdade, de umparadoxo profundo que nos mostra, de um lado, o próxim o comoeu m esm o 99 e, de outro, a alteridade radical que separa o Eu e opróximo, procedendo cada um da relação de criaturalidade decada individuo singular para com Deus e, mais ainda, da assunção
de cada um na esfera da gratuidade do dom divino, de tal sorteque, devendo ser amado segundo a regra da identidade do alter ego (os seautón), o próxim o é aceito na diferença infinita do insondável desígnio da agápe divina que o envolve. Por outro lado,o paradoxo da relação com o próxim o pela caridade manifestaseigualmente no exercício de um amor que é gratuito como agápe e prescrito como mandamento . Mas é justamente esse paradoxoque age com incomparável força na formação dos ideais defraternidade e dom de si ao longo da história espiritual da civili-zação do Ocidente.
c. A ocultação do outro no racionalismo moderno — A revlução copernicana iniciada por Descartes e levada a cabo por Kant,e que assinala a primeira jornada da filosofia moderna, ao promo-
ver o Eu penso ao centro do sistema do saber, erigiu em regrafundamental do método a construção conceptual da realidade apartir do sujeito, que se vê elevado à dignidade de sol do mundointeligível. Esse heliocentrismo egológico teve como conseqüência o surgimento de uma questão que pode ser considerada umadas aporias fundamentais do racionalismo: como justificar, a partirdo Eu, a pluralidade dos sujeitos? Descartes, por primeiro, perce-beu agudamente a dificuldade da questão 101. Na verdade, a luz doCogito envolve o outro e, de alguma maneira, o ofusca ou para-doxalmente o oculta, tornando necessária a exploração de cami-nhos indiretos que trabalhosamente o alcancem, tais como oraciocínio por analogia 102, o sentimento na tradição do empirismoinglês, a universalização da norma moral em Kant e, finalmente,
a exigência de presença do outro na constituição do universomoral, que encontra em Fichte sua expressão sistemática 103. Tendopermanecido na sombra da luz que irradia do Eu, o outro reapa
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rece, por outro lado, no contexto das teorías que pretendem ex-plicar a origem da sociedade e da cultura pelo pacto de associaçãoe reconstituir assim conceptual mente a formação da sociedadecivil e política. O problema da intersubjetividade transferese,
deste modo, para o plano da historia, e é nesse plano que ele iráimporse ao pensamento póskantiano.
d. Dialética e reconhecimento: o outro no horizonte da histo-ria — A inflexão historiocêntrica do pensamento filosófico a par-tir de Hegel coloca necessariamente o problema da comunidadehumana no centro da reflexão filosófica. A solidão ahistórica do
Eu cede lugar à emergência doNós
e aos passos da sua constitui-ção como sujeito da história: a luta, o reconhecimento, a cultura.A reflexão sobre o existir histórico, fundado na relação deintersubjetividade, apresentase, sem dúvida, como uma das fon-tes principais do método dialético que se difunde no pensamentofilosófico depois de Hegel. Por outro lado, o desafio da recupera-ção do outro no contexto da dialética da história, já percebido
agudamente pelo próprio Hegel104, é pensado e vivido intensa-mente pelos póshegelianos, configurandose como protesto doindivíduo contra a anônima necessidade do devir histórico oucontra a ameaça da presença dominadora de um sujeito supraindividual (a Sociedade, o Estado ou a própria História) que seimponha como único e verdadeiro ator histórico 105. De Kierkegaarda Feuerbach e Nietzsche e aos pósnietzschianos, esse protesto
age no sentido de precipitar a crise das filosofias da história e,com ela, a reproposição do problema do outro em novos contex-tos teóricos.
e. Fenomenología, lógica e linguagem: o problema do outro nafilosofia contemporânea — O retraimento das filosofias do sujeitoe da história é o pressuposto teórico que explica a emergência do
problema da intersubjetividade no horizonte da reflexão filosóficacontemporânea, não obstante ter sido o genial esforço de E. Husserlpara integrar o conhecimento do outro na esfera da egologiatranscendental um dos estímulos mais poderosos entre os quelevaram essa temática a uma posição dominante na literaturafilosófica. No entanto, outro fator decisivo, este de natureza históricocultural, impeliu o problema da relação intersubjetiva nos
seus diversos aspectos (psicológico, sociológico, filosófico) para oprimeiro plano da reflexão antropológica contemporânea: o verti-ginoso adensarse das relações humanas com o enorme cresci-
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mento dos meios e formas de comunicação e sua extensão mun-dial. A definição do uma autêntica comunidade universal de co-municação exige uma reflexão filosófica aprofundada sobre a re-lação do re co n h ecim en to , sem a qual a com unicação se
instrumentaliza e, finalmente, se desumaniza. Como já foi vistoanteriormente, três caminhos convergem para esse lugar centraldo outro no pensamento atual: o caminho fenom enológico, aber-to por E. Husserl e Max Sclieler, aos quais podem ser associadosos filósofos da existência que mais se dedicaram a esse temacomo K. Jaspers, G Marcel e J.P. Sartre, o caminho lógico , tra-çado a partir das investigações sobre a natureza e estrutura lógi-
cas do diálogo; o caminho linguístico, avançando ao lado do ló-gico e freqüentemente cruzandose com ele, e estendendose noterreno da análise da linguagem, considerada como medium pri-meiro para o encontro com o outro. A grande aporia que dominao problema do outro na filosofia contemporânea — seja comointenção do outro, seja como ju stificação racion al da relaçãointersubjetiva ou como sua expressão no universo da linguagem— é aquela na qual converge toda a aporética histórica da relaçãode intersubjetividade: considerada a relação dual ou plural entreos sujeitos, qual o fundamento que permite a essa relação trans-cender a simples contingência dos seus termos e, portanto, trans-cender de alguma maneira o seu acontecer natural e históricopara constituirse como relação que revela no outro a presença de
uma dimensão axiológica fundamental: a dignidade de um outroEu2. A essa interrogação, que se eleva incontornável no centro datemática contemporânea da intersubjetividade, a Antropologia Fi-losófica deverá buscar uma resposta que se delineará exatamentena passagem da categoria da intersubjetividade para a categoria da
transcendência.
2. A porética crítica da relação de intersubjetividade
Ao tentarmos caracterizar a aporética crítica que, de diversasmaneiras, está presente ao longo do desenvolvimento históricodo problema do coexistir dos sujeitos na unidade de um Nós, vemos que ela pode ser formulada em analogia com a clássicaoposição entre o sujeito empírico e o sujeito transcendental ou
inteligível, oposição que esteve presente ao longo de toda a nossareflexão sobre a unidade estrutural do homem 106. Como no casodo sujeito individual, também a reflexão sobre o Nós vêse em
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rece, por outro lado, no contexto das teorias que pretendem ex-plicar a origem da sociedade e da cultura pelo pacto de associaçãoe reconstituir assim conceptualmente a formação da sociedadecivil e política. O problema da intersubjetividade transferese,deste modo, para o plano da historia, e é nesse plano que ele irá
imporse ao pensamento póskantiano.d. Dialética e reconhecimento: o outro no horizonte da histo-
ria — A inflexão historiocêntrica do pensamento filosófico a par-tir de Hegel coloca necessariamente o problema da comunidadehumana no centro da reflexão filosófica. A solidão ahistórica doEu cede lugar à emergência do Nós e aos passos da sua constitui-ção como sujeito da história: a luta, o reconhecimento, a cultura.A reflexão sobre o existir histórico, fundado na relação deintersubjetividade, apresentase, sem dúvida, como uma das fon-tes principais do método dialético que se difunde no pensamentofilosófico depois de Hegel. Por outro lado, o desafio da recupera-ção do outro no contexto da dialética da história, já percebidoagudamente pelo próprio Hegel104, é pensado e vivido intensa-
mente pelos póshegelianos, configurandose como protesto doindivíduo contra a anônima necessidade do devir histórico oucontra a ameaça da presença dominadora de um sujeito supra individual (a Sociedade, o Estado ou a própria História) que seimponha como único e verdadeiro ator histórico 105. De Kierkegaarda Feuerbach e Nietzsche e aos pósnietzschianos, esse protestoage no sentido de precipitar a crise das filosofias da história e,
com ela, a reproposição do problema do outro em novos contex-tos teóricos.
e. Fenomenologia, lógica e linguagem: o problema do outro nafilosofia contemporânea — O retraimento das filosofias do sujeitoe da história é o pressuposto teórico que explica a emergência doproblema da intersubjetividade no horizonte da reflexão filosófica
contemporânea, não obstante ter sido o genial esforço de E. Husserlpara integrar o conhecimento do outro na esfera da egologiatranscendental um dos estímulos mais poderosos entre os quelevaram essa temática a uma posição dominante na literaturafilosófica. No entanto, outro fator decisivo, este de natureza históricocultural, impeliu o problema da relação intersubjetiva nosseus diversos aspectos (psicológico, sociológico, filosófico) para o
primeiro plano da reflexão antropológica contemporânea: o verti-ginoso adensarse das relações humanas com o enorme cresci-
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mento dos meios e formas de comunicação e sua extensão mun-dial. A definição de uma autêntica comunidade universal de co-municação exige uma reflexão filosófica aprofundada sobre a re-lação do reconhecimento, sem a qual a comunicação se
instrumentaliza e, finalmente, se desumaniza. Como já foi vistoanteriormente, três caminhos convergem para esse lugar centraldo outro no pensamento atual: o caminho fenom enológico, aber-to por E. Husserl e Max Scheler, aos quais podem ser associadosos filósofos da existência que mais se dedicaram a esse temacomo K. Jaspers, G. Marcel e J.P. Sartre, o caminho lógico, tra-çado a partir das investigações sobre a natureza e estrutura lógi-
cas do diálogo; o caminho lingüístico, avançando ao lado do ló-gico e freqüentemente cruzandose com ele, e estendendose noterreno da análise da linguagem, considerada como medium pri-meiro para o encontro com o outro. A grande aporia que dominao problema do outro na filosofia contemporânea — seja comointenção do outro, seja como justificação racion al da relaçãointersubjetiva ou como sua expressão no universo da linguagem
— é aquela na qual converge toda a aporética histórica da relaçãode intersubjetividade: considerada a relação dual ou plural entreos sujeitos, qual o fundamento que permite a essa relação trans-cender a simples contingência dos seus termos e, portanto, trans-cender de alguma maneira o seu acontecer natural e históricopara constituirse como relação que revela no outro a presença deuma dimensão axiológica fundamental: a dignidade de um outroEu7. A essa interrogação, que se eleva incontornável no centro datemática contemporânea da intersubjetividade, a Antropologia Fi-losófica deverá buscar uma resposta que se delineará exatamentena passagem da categoria da intersubjetividade para a categoria datranscendência.
2. A porética crítica da relação de intersubjetiv idade
Ao tentarmos caracterizar a aporética crítica que, de diversasmaneiras, está presente ao longo do desenvolvimento históricodo problema do coexistir dos sujeitos na unidade de um Nós, vemos que ela pode ser formulada em analogia com a clássicaoposição entre o sujeito empírico e o sujeito transcendental ou
inteligível, oposição que esteve presente ao longo de toda a nossareflexão sobre a unidade estrutural do homem 106. Como no casodo sujeito individual, também a reflexão sobre o Nós vêse em
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face da oposição entre o Nós empírico, cuja efêmera unidade setece na contingência do puro acontecer 107, e o Nós inteligível outranscendental, mantido nos vínculos de uma form a que assegurasua permanência ou sua razão de ser (assim os vínculos da fa-mília, da amizade, sociais, políticos etc...). Ora, a aporética crítica da relação de intersubjetividade delineiase exatamente na passa-gem do Nós empírico ao N ós inteligível, na medida em que ossujeitos que se unem pela form a, qualquer que ela seja, da relaçãode intersubjetividade são os sujeitos que, de alguma maneira,transcendem o nível empírico do simples acontecer do seu cru-zarse na vida 108. Em outras palavras: a re laçã o de
intersubjetividade se estabelece entre os sujeitos, que se autoexprimem ou se autosignificam na forma do Eu sou, vale dizer,cuja estrutura se constitui através do movimento dialético quesuprassume o "dado" no "significado" ou a "natureza" na "for-ma", segundo o esquema (N) —> (S) —> (F). Ora, esse esquemanão pode ser simplesmente ou univocamente estendido do Eu aoNós, pois tal extensão implicaria uma contradição entre o Eu e o
Nós, ambos exercendo a mesma m ed iaçã o entre o dado e o sig-nificado, sendo que, para o Nós, o dado seriam os sujeitosempíricos e o significado ou a form a seria a própria relação deintersubjetividade. Nesse caso, com efeito, o Eu seria simples-mente absorvido no Nós como um não-Eu, o que contradiría aprópria natureza da relação de intersubjetividade, fazendo desva-necerse os seus termos 109. A aporética crítica da relação deintersubjetividade desenhase portanto como o problema de man-terse a unidade inteligível do Eu — sua irredutível originalidade— na comunidade do Nós. Ou ainda, como o problema de sepensar analógicamente o movimento de mediação, constitutivodo sujeito singular, estendendoo à constituição do Nós, pois semtal mediação a comunidade dos sujeitos permaneceria no nível do
simples agregado. Como, portanto, preservar a originalidade dosujeito individual ao ser ele suprassumido na unidade de umsujeito transindividual que é, ao mesmo tempo, p lural nos sujei-tos concretos nos quais se realiza e uno pela relação intersubjetivaque se estabelece entre eles?
O primeiro passo para a solução dessa aporia110 é dado, porconseguinte, ao se levar em conta a analogicidade da noção desujeito, quando predicada do sujeito individual e do sujeito pluralou comunitário. Para bem entendermos essa analogia, é conve
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ni ente lembrarnos de que, ao tratar da categoria de espírito, ti-vemos presente a analogia que vigora entre o Espirito absoluto einfinito, que c reflexão subsistente em si mesma, e o espiritofinito e situado — o nosso — que se constitui pela mediação
entre o dado — que circunscreve nosso seremsituação — e osignificado no qual se exprime a reflexividade do nosso ser espi-ritual. Nessa analogia de atribuição, o primeiro analogado (ana- logatum princeps) é, evidentemente, o Espirito absoluto, ao passoque nós, enquanto constituídos estruturalmente como espíritosfinitos e situados, somos os analogados secundarios (analogata inferiora). É em virtude dessa analogia que a categoria do espírito
como vida, inteligência, ordem e consciênciadcsi111 pode serpredicada dos frágeis e efêmeros seres que somos nós. Mas, jus-tamente enquanto nos referimos ao Espírito absoluto e nos cons-tituímos como sujeitos, podemos estabelecer entre nós a relaçãode intersubjetividade nas suas variadas formas. Dessa relaçãoresulta o sujeito plural no trânsito dialético do Eu sou ao Nós somos. A predicação do ser é aqui, igualmente, uma predicação
analógica, pois o Nós não é, como vimos, uma simples extensãounívoca do Eu. No entanto, a função do analogatum princeps cabe, nesse caso, ao sujeito individual, pois é em referência à suareflexividade estrutural — inteligência e liberdade — que podemospensar a unidade do nosso seremcomum constituindo um sujeito
plural que, analogamente, pensa, delibera, reflete, decide, abraçaideais c estabelece normas c fins112. A aporia da intersubjetividade
reside justamente nessa extensão analógica ao Nós daquilo queconstitui o mais íntimo cerne da unidade do Eu, na sua reflexi-vidade como espírito consciente e livre. Esse cerne íntimo não é,exatamente, o reduto sagrado e inexpugnável do solus ipse? Comotranspôlo, mesmo analógicamente, para a unidade plural demuitos sujeitos? Por outro lado, se o Eu não se faz presente naconstitição do Nós — ou se o Eu não é um Nós, na expressão deHegel — como evitar fazer da relação de intersubjetividade umapura contingência, que afeta apenas acidentalmente a solidão damónada humana encerrada solipsisticamente no círculo que fechao Eu no seu mundo? Mas a impossibilidade radical dessa saída daaporia da intersubjetividade113 manifestase já no fato de que a rela-ção da objetividade ou a abertura do sujeito ao mundo encontra
finalmente seu fundamento na relação de intersubjetividade, naqual é suprassumida segundo a ordem do discurso da AntropologiaFilosófica. O homem é, por conseguinte, serno mundo porque ser
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comooutro e o mundo é, fundamentalmente, para o homem,m ed iaçã o para o encontro do outro 114. Sendo o sernomundoconstitutivo da estrutura relacionai do sujeito — e, portanto,constitutivo da sua essência — o sercomooutro deverá igual-
mente ser afirmado na linha da autoafirmação do sujeito, do seudesdobramento ad extra ou do seu abrirse ao horizonte do ser. Omundo é, para cada um de nós, o caminho para o encontro dooutro.
O momento eidético na compreensão filosófica da relação deintersubjetividade, cuja configuração conceptual resulta das
aporéticas histórica e crítica, pode ser, pois, caracterizado por essaoposição fundamental inerente ao eidos do existir intersubjetivo,entre o Eu, que só pode ser pensado sercomooutro na sua irre-dutível singularidade e reflexividade, e o Nós, que se constitui
justamente ao termo do êxtase ou da saída do Eu ao encontro dooutro. O eidos da relação de intersubjetividade é circunscrito,portanto, ao espaço conceptual delimitado pela pluralidade dossujeitos e pela relação que estabelece entre eles a forma de umaunidade na pluralidade. Esse contorno eidético subsiste em vir-tude da tensão dialética que o constitui, e que vigora entre o Eu,sujeito para-si, e o em -s i objetivo da relação que o liga ao outroEu ou ao outro sujeito, igualmente subsistindo para-si. Nessatensão dialética, o para-si dos sujeitos nega o seu total exaurir
se no para-o-outro ou no em-si da relação; e o em-si da relação(sua natureza objetiva) nega o isolamento monádico do para-si dosujeito. Dessa dupla negação, resulta a posição do Nós, desdobran-dose nos níveis do reconhecimento, do consenso, da afetividade,da identidade cultural. Nessa unidade dialética do subsistir (esse in) dos sujeitos e do seu referirse [esse ad) ao outro, consiste oeidos da relação de intersubjetividade, e é aqui que cabe propria-
mente a analogia com a dialética do para-si e do em-si, constitutivado sujeito singular como espírito us. Há uma primazia do em -s i darelação se a pensarmos do ponto de vista da unidade que elaestabelece entre os sujeitos, e há uma primazia do para-si dossujeitos se pensarmos a relação do ponto de vista da singularidadeirredutível dos seus termos. O para-si da relação tomada adequa-damente, ou seja, entendida formalmente como relação de
intersubjetividade compreende justamente o para-si dos sujeitose o em-si da relação na sua especificidade (p. ex., a relação deamizade) e, como tal, ele é análogo ao para-si dos sujeitos singu
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lares (que, na relação de amizade, é, enquanto sujeito, o amigo). Nessa unidade dialética do subsistir (esse in) dos sujeitos e do seureferirse [esse ad) ao outro, consiste o e idos da relação deintersubjetividade lt6. Essa unidade, por outro lado, só é pensável
na reciprocidade da relação, de modo que o seremcomum doshomens constituise pela identidade dialética (identidade na dife-rença, ou seja, resultante da dupla negação acima exposta) entreo ser-em-si dos sujeitos e o seu ser-para-o-outro 117.
Definido o eidos da relação de intersubjetividade, resta aomomento tético, segundo a ordem do discurso da Antropologia
Filosófica, assumilo no âmbito da autoposição do Eu como sujei-to. Com efeito, é essa autoposição que faz avançar o discurso,nela deve ser afirmada a identidade na diferença do ser-para-si dos sujeitos e do seu ser-para-o-outro : identidade na diferença queé, exatamente, a unidade intersubjetiva do existiremcomum,vem a ser, a expressão dialética do e id o s da relação deintersubjetividade. Por conseguinte, o momento tético se expri-
me primeiramente na afirmação "Eu sou um Nós". Mas, do pró-prio interior dessa afirmação, surge a negação da simples identi-dade entre o Eu e o Nós, negação presente no Eu sou-, de sorte apodermos concluir que a simples identidade entre o Eu e o Nós, não dialetizada por essa negação, seria rigorosamente contraditó-ria.
Assim, ao assumir no seu movimento dialético o eidos darelação de intersubjetividade, definido pela proposição "O Eu éum Nós", o discurso da Antropologia Filosófica confere a esseeidos a forma de uma categoria antropológica, ou seja, de uma
form a conceptual fundamental da autoafirmação do Eu ou da suaautoexpressão como sujeito. O princípio da lim itação eidética traça o espaço conceptual ou categorial da autoafirmação do Eu
no plano da relação de intersubjetividade, nela compreendendo apluralidade dos sujeitos na afirmação "O Eu é um Nós". Noentanto, sabemos que o movimento da autoafirmação do Eu éimpelido pelo princípio da ilim itaç ão tética que aponta para ohorizonte universal do ser. Ora, a identificação deste horizontecom a comunidade, seja ela embora pensada segundo o paradigmade uma comunidade ideal de comunicação submetida a regras de
absoluta transparência da linguagem comunicativa, esbarra como obstáculo intransponível da contingência mundana dos sujeitosfalantes, do seu ser situado e, portanto, da impossibilidade de
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uma intuição absolutamente transparente dos sujeitos entre si. É justamente a ausência dessa intuição que impõe a necessidade dese submeter a relação de intersubjetividade ao princípio da l i -m itaç ão eidética. A impossibilidade de se fazer da comunidadedos sujeitos o horizonte universal do ser, em direção ao qual semoveria o dinamismo da autoafirmação dos sujeitos singulares,é atestada eloqüentemente na história da filosofia pelas tentaçõessimétricas do solipsismo absoluto e do absoluto altruísmo quenela se manifestam. Dois extremos que se engendram um aooutro, e cuja incidência na história recente foi ilustrada pelaalternância, como fonte de inspiração dominante na vida política,entre as ideologias do individualismo e do totalitarismo.
O princípio da ilim itaç ão tética introduz, pois, necessaria-mente a negação no seio da lim itaçã o eidé tica que, no caso,circunscreve a categoria da relação de intersubjetividade, negaçãoque se exprime nessa proposição "O Eu não é um Nós". A iden-tidade na diferença se constitui aqui, portanto, como uma dialé-tica da ipseidade e da alteridade 118. Nela fica claro que o movi-
mento de negação com que o Eu, na sua reflexividade ou media-ção estrutural (ipse) nega a sua identidade com o outro (alter), queé igualmente um "ele mesmo" (ipse), não procede de um comoque último reduto autárquico ao qual o Eu se recolhe como àsecreta e inalcançável fortaleza do Cogito, ergo sum. Na verdade,conquanto na relação com o outro a ipseidade permaneça na suaessencial negatividade, é exatamente a abertura transcendental
do sujeito ao ser, constitutiva da estrutura do espírito e que de-riva do centro mais profundo da sua interioridade, que está naorigem do dinamismo da autoafirmação do sujeito e que o levaa transgredir toda l im itação eidética e, no nosso caso, a limitaçãoeidética da relação de intersubjetividade. Não é, pois, em razão deuma primazia do sujeito, traduzindo uma última insidia da ten-tação solipsística, que a autoafirmação do Eu transcende as fron-teiras da intersubjetividade, mas em razão da primazia do ser, primazia essa que o sujeito reconhece na submissão da sua finitudeà Presença infinita que é, nele, o interior intim o e o superior su m m o 119. Do mesmo modo o prim um relationis, a primazia darelação no espaço intersubjetivo, exposta brilhantemente por F. Jacques 12°, permanece submetida à primazia do ser, pois só essa
primazia torna possível, no itinerário dialético do sujeito, a pas-sagem da intersubjetividade à transcendência.
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Ao termo da compreensão filosófica ou transcendental darelação de intersubjetividade convém voltar nossa atenção para 0fato de que a categoria do existir intersubjetivo é o terreno fun-damental da articulação conceptual entre a Antropologia Filosó-
fica e a Ética. Com efeito, a com un idade ética, estruturada se-gundo formas originais da relação intersubjetiva, é a m ed iaçã o entre o agir ético subjetivo, determinado formalmente pela cons-ciência moral, e o universo ético objetivo, constituído por valo-res, normas e fins 121. Desta forma a relação de intersubjetividade,categoria antropológica fundamental, transpõese em categoriaética, na medida em que o sercomooutro apresentase origina-riamente como uma estrutura normativa que se configura comoum dever-ser no sentido ético e à qual Kant, como é sabido, deuuma forma rigorosamente universal no imperativo categórico. Apresença desse deverser no próprio coração da relação deintersubjetividade mostra a impossibilidade de se pensar um exis-tir intersubjetivo que seja eticamente neutro. A comunidade
humana é pois, já na sua gênese, constitutivamente ética, e essaeticidade se explica, na sua razão última, pela submissão, tantodos sujeitos como da relação intersubjetiva que entre eles seestabelece, à primazia e à norma do ser. Seja na sua infinidadeformal como conceito de Verdade e Bem, seja na sua infinidadereal como Existente absoluto, o ser rege tanto o agir individualcomo o agir social. Tal é a intuição profunda, subjacente à
ontologia platónicoaristotélica, que legou à tradição filosófica doOcidente, como proposição fundadora do pensamento metafísicoético, aquela que estabelece a adequação entre o ser e o bem: Ens et bonum convertuntur m.
À luz dessa articulação entre Antropologia e Ética, podemosconsiderar o desdobramento dos níveis da relação de
intersubjetividade pois, em cada um deles, deverá manifestarseuma forma própria de relação do homem com a transcendência.Se a constituição desses níveis é antropológica, sua efetivaçãoexistencial é sempre ética, de tal sorte que o agir dos sujeitos emcada um deles não pode ser pensado adequadamente senão naperspectiva de uma perfeição ou virtude [arete], a ser praticadacomo form a ética da relação de intersubjetividade.
A relação de intersubjetividade mostrase desdobrada em qua-tro níveis fundamentais. Neles se articulam as form as do existiremcomum que suprassumem as relações homemmundo ou
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uma intuição absolutamente transparente dos sujeitos entre si. É justamente a ausência dessa intuição que impõe a necessidade dese submeter a relação de intersubjetividade ao princípio da l i-m itaçã o eidética. A impossibilidade de se fazer da comunidade
dos sujeitos o horizonte universal do ser, em direção ao qual semoveria o dinamismo da autoafirmação dos sujeitos singulares,é atestada eloqücntemente na história da filosofia pelas tentaçõessimétricas do solipsismo absoluto e do absoluto altruísmo quenela se manifestam. Dois extremos que se engendram um aooutro, e cuja incidência na história recente foi ilustrada pelaalternância, como fonte de inspiração dominante na vida política,
entre as ideologias do individualismo e do totalitarismo.O princípio da ilim itaç ão tética introduz, pois, necessaria-
mente a negação no seio da l im itaçã o eidética que, no caso,circunscreve a categoria da relação de intersubjetividade, negaçãoque se exprime nessa proposição "O Eu não é um Nós". A iden-tidade na diferença se constitui aqui, portanto, como uma dialé-
tica da ipseidade e da alteridade us. Nela fica claro que o movi-mento de negação com que o Eu, na sua reflexividade ou media-ção estrutural (ipse) nega a sua identidade com o outro [alter], queé igualmente um "ele mesmo" [ipse], não procede de um comoque último reduto autárquico ao qual o Eu se recolhe como àsecreta e inalcançável fortaleza do Cogito, ergo sum. Na verdade,conquanto na relação com o outro a ipseidade permaneça na sua
essencial negatividade, é exatamente a abertura transcendentaldo sujeito ao ser, constitutiva da estrutura do espírito e que de-riva do centro mais profundo da sua interioridade, que está naorigem do dinamismo da autoafirmação do sujeito e que o levaa transgredir toda l im itaçã o eidé tica e, no nosso caso, a limitaçãoeidética da relação de intersubjetividade. Não é, pois, em razão deuma primazia do sujeito, traduzindo uma última insidia da ten-tação solipsística, que a autoafirmação do Eu transcende as fron-teiras da intersubjetividade, mas em razão da primazia do ser, primazia essa que o sujeito reconhece na submissão da sua finitudeà Presença infinita que é, nele, o inter ior int im o e o superior su m m o 119. Do mesmo modo o prim um relationis, a primazia darelação no espaço intersubjetivo, exposta brilhantemente por F.
Jacques 12°, permanece submetida à primazia do ser, pois só essaprimazia torna possível, no itinerário dialético do sujeito, a pas-sagem da intersubjetividade à transcendência.
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Ao termo da compreensão filosófica ou transcendental dai Iação de intersubjetividade convém voltar nossa atenção para oIam de que a categoria do existir intersubjetivo é o terreno fun-damental da articulação conceptual entre a Antropologia Filosó-fica e a Ética. Com efeito, a com un idade ética, estruturada segt mdo formas originais da relação intersubjetiva, é a m ed iaçã o cutre o agir ético subjetivo, determinado formalmente pela cons(iência moral, e o universo ético objetivo, constituído por valo-res, normas e fins m. Desta forma a relação de intersubjetividade,•alegoria antropológica fundamental, transpõese em categoriartica, na medida em que o sercomooutro apresentase origina
i iamente como uma estrutura normativa que se configura comoum dever-ser no sentido ético e à qual Kant, como é sabido, deuuma forma rigorosamente universal no imperativo categórico. Apresença desse deverser no próprio coração da relação deintersubjetividade mostra a impossibilidade de se pensar um exis-tir intersubjetivo que seja eticamente neutro. A comunidadehumana é pois, já na sua gcnese, constitutivamente ética, e essa
cticidade se explica, na sua razão última, pela submissão, tantodos sujeitos como da relação intersubjetiva que entre eles seestabelece, à primazia e à norma do ser. Seja na sua infinidadeformal como conceito de Verdade e Bem, seja na sua infinidadereal como Existente absoluto, o ser rege tanto o agir individualcomo o agir social. Tal é a intuição profunda, subjacente àontologia platónicoaristotélica, que legou à tradição filosófica do
Ocidente, como proposição fundadora do pensamento metafísicoético, aquela que estabelece a adequação entre o ser e o bem: Ens et bonum convertuntur m.
À luz dessa articulação entre Antropologia e Ética, podemosconsiderar o desdobramento dos níveis da relação deintersubjetividade pois, em cada um deles, deverá manifestarse
uma forma própria de relação do homem com a transcendência.Se a constituição desses níveis é antropológica, sua efetivaçãoexistencial é sempre ética, de tal sorte que o agir dos sujeitos emcada um deles não pode ser pensado adequadamente senão naperspectiva de uma perfeição ou virtude [arete], a ser praticadacomo form a ética da relação de intersubjetividade.
A relação de intersubjetividade mostrase desdobrada em qua-tro níveis fundamentais. Neles se articulam as form as do existiremcomum que suprassumem as relações homemmundo ou
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homemnatureza, ou seja, suprassumem a relação de objetividade naquela que é, propriamente, a existência histórica do homem.
a. Nível do encontro ou do existir interpessoal no qual temlugar a relação EuTu e em que a reciprocidade da relação assume
um caráter oblativo mais ou menos profundo e tende à gratuidadedo domdesi. É nesse nível que se situa a realidade humana doamor, na sua triunidade de pulsão, amizade e dom I23. A relaçãointersubjetiva no nível do encontro pessoal é especificada etica-mente pelas virtudes próprias do amor, particularmente a f id e li-dade 124.
b. Nível do consenso espontâneo ou do existir intraco munitário, em que tem lugar a relação EuNós intragrupal, e noqual a reciprocidade da relação revestese do caráter daconvivialidade própria da vida comunitária e de um colaborarespontâneo e cordial nas tarefas da comunidade. A relaçãointersubjetiva no nível do consenso espontâneo é especificadaeticamente pela virtude da am izad e 125.
c. Nível do consenso reflexivo, que se exprime na reciproci-dade de direitos e deveres ou na forma da obrigação cívica. É esseo nível do existiremcomum que podemos denominar intrasocietário, e no qual se dá a passagem da sociedade convivialpara a sociedade política. Aqui a relação EuNós é extragrupal ese estende até os limites definidos pelas regras institucionais doconsenso ( po liteia ou Constituição). A reciprocidade da relaçãotem primeiramente um caráter form al, expresso nas leis do exis-tiremcomum. A relação intersubjetiva no nível do consensoreflexivo é especificada eticamente pela virtude da justiça 126. Énesse nível que se dá, por conseguinte, a necessária articulaçãoentre Ética e Política. A absolutização do político, que passa a sero pólo indutor do pensamento político moderno, mostra aqui seu
erro profundo, seja do ponto de vista antropológico, pois restringeaos limites da comunidade humana o horizonte do ser para o qualse abre a autoafirmação do sujeito, seja do ponto de vista ético, pois acabaria reduzindo ao nível do político e submetendo às suasregras e aos seus condicionamentos a riqueza e significação hu-manas dos outros níveis nos quais se desdobra a relação deintersubjetividade ,27.
d. Um quarto nível, mais amplo, pode ser designado nível dacomunicação intracultural, na medida em que a cultura se apre-
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senta como o horizonte que continuamente se dilata e cm cujoâmbito têm lugar todas as formas de comunicação intersubjetiva.Nesse nível situase propriamente o existir histórico do homem,sendo a História o englobante último da comunidade humanaenquanto tal. Com efeito, nenhuma comunidade humana parti-cular subsiste sem recuperar continuamente na memória históri-ca, codificada em formas diversas que vão da narração mítica àdescrição historiográfica, o seu passado, no qual estão inscritassuas razões de ser. Desta sorte, a relação de intersubjetividade,desdobrandose desde o nível da relação EuTu no encontro , atin-ge a amplitude da relação EuHumanidade na longa dimensão dotempo e do espaço onde se desenrola a História. A essa Histórianossa história pessoal está ligada por mil fios — os fios do uni-verso cultural. É sabido que esse nível mais abrangente da relaçãode intersubjetividade, seja na sua incidência subjetiva comoconsciência histórica, seja na sua face objetiva como sentido da História, passou a ser um lugar privilegiado da reflexão sobre o
homem no pensamento filosófico, de Hegel a nossos dias. A re-flexão sobre a História 128 mostrase, igualmente, como passagemobrigatória para a reflexão sobre a Transcendência, sendo a His-tória a alternativa mais sedutora ao pensamento do Ser como
prim um ontologicum e, portanto, como conceito fundante dasfilosofias da imanência que se sucedem depois de Hegel. Evocadoaqui no contexto da relação de intersubjetividade, o tema da
História deverá reaparecer ao tratarmos das categorias de realiza-ção e de pessoa.
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NOTAS
1. Ver Pascal, Pensées, n. 199, éd. Lafuma (L'Intégrale, Seuil, pp. 525528). Essahipótese da "comunicação" dos observadores é fundamentalmente considerada no "uni-verso autoreferencial" de Wheeler; ver J. Demaret, L'Univers, op. cit., pp. 293296.
2. Sobre o gesto e a palavra, ver a obra clássica de A. LeroniGourhan, Le geste et la parole, 2 vols., Paris, Albín Michel, 1964. Sobre o linguistic turn nafilosofia contemporânea, por alguns comparado com a revolução copernicana deKant, ver as reflexões de F. Jacques, L ’esp ace logiqu e de 1'interlocution (Dialogiques,
II), Paris, PUF, 1985, pp. 541588.3. Ver P. H. Kolvenbach, "Langage et Anthropologie: le Journal Spiriluel de Ignace
de Loyola", Gregorianum 72 (1991): 211221 [tr. port, em Síntese, 54 (1991): 303313).
4. Ver o artigo de F. Jacques, "Reference et Difference: la situation originairede la signification", ap. Encyclopédie Philosophique Universelle I, pp. 492512.
5. Ou seja, do Eu enquanto capaz de linguagem (logos).
6. Uma explicação dessa circularidade dialética na região categorial da estru-tura podese ver em Antropologia F ilosófica 1, op. cit., pp. 224225. Também épossível levar cm conta aqui a consideração da finalidade, segundo a qual ascategorias se ordenam para a categoria que suprassume todas as outras, ou seja,à pessoa. Sobre essa ordem nas potências da alma ver Santo Tomás, Summa Theologiae, Ia., q. 77, a. 7.
7. Sobre a imagem clássica do círculo no conhecimento intelectual ver A ntro- polo gia Filosófica I, op. cit., p. 230, n. 35. Santo Tomás a evoca comentando oPseudoDionísio: ver In librum de divinis Nominibus, c. IV, lec. 7 (ed. C. Pera,pp. 121122). Quanto a Hegel ver F. Kümmel, Platon und H egel: zur ontologischen
Begründung des Z irkels in der Erkenntnis, Tübingen, Max Niemeyer, 1968; DenisSoucheDagens, Le cercle hegélien, Paris, PUF, 1986.
8. Convém lembrar ainda uma vez o princípio tomásico: non intellectus intelligit sed homo per intellectum; ver supra, 2a. sec., cap. I, nota 8.
9. J. Maritain, La Personne et le bien commun, Paris, Desclée, 1947, p. 43.Esse "todo aberto" será conceptualizado exatamente na categoria de pessoa. Verinfra, sec. 3, cap. 2.
10. Ver Mt 10,39, Lc 9,24, 17,33; Jo 12,25.
11. Ver Grundlinien der Philosophic des Rechts, §§31 e 32 (Werke, ed.MoldenhauerMichael, 7, pp. 8487, com a nota manuscrita de Hegel e o Zusatz ao § 32).
12. Esse problema pode ser ilustrado exatamente com o problema da "divi-são" (Einteilung) na dialética hegeliana e, particularmente, na Filosofia do Espi-rito. Ver Enzyklopiidie der ph ilosop hischen W issenschaften (1830) § 377 e Zusatz [Werke, cd. MoldenhauerMichel, 10, pp. 911). Sobre a divisão da Filosofia do Espirito objetivo ver Grundlinien der Philosophic des Rechts § 33 com o Zusatz
e as notas manuscritas de Hegcl (Werke, 7, pp. 8791). Ver B. Bourgeois,Introduction, em G. W. F. Hegel, Encyclopédie des Sciences Philosophiques, III, Philosophic de l’Esprit, Paris, Vrin, 1988, p. 11.
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13. A reciprocidade exprime aqui somente a capacidade de responder, semexcluir formas de dissimetria entre os sujeitos na relação intersubjetiva que po-dem atingir — e deformar — a reciprocidade fundamental que a define.
14. Bibliografia fundamental sobre o problema da intersubjetividade: E. I lussetl,
Cartesianische Meditationen und Pariser Vortraege (Husserliana, 1), La Maye, M.Nijhof, 1953; M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., I, 1, cap. 4; f.P. Sartre, L’Etrc et la Nécint, Paris, Gallimard, 1953, pp. 275503; M. MerleauPonty, Phénoménologic de la Perception, Paris, Gallimard, 1946, pp. 398429; E. Levinas, Toialité et Infini: essai sur V exkériorité, (Phánomenologica, 8), La Haye, M. Nijhof, 1961; M. Theunissen,Der Andere: Studien zur Sozialontologie der Gegenwart, Berlim, de Gruyter, 1965(ver bibl., pp. 509517); P. Lain Entralgo, Teoría y realidad del otro, Madrid, Revistade Occidente, 2. vols., 1968; J. Bõckenhoff, Die Begegnungsphilosophie: ihre Geschi- chte, ihre Aspekte, Friburgo B.Munique, K. Alber, 1970; E. Hegstenberg, Philoso-
phische Anthropologic, op. cit., pp. 101120; H. SchreyH. Holz, Dialogisches Denkcn, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1970; J. de Finance, L’Affrontemenl de 1’Autre, Roma, PUG, 1972; nova edição sob o título De l'Un et de 1’Autre: essai sur Taltérité, Roma, PUG, 1993; L. Pareyson, Esistenza c Persona, (nuova ediz.)Genova, II Melangolo, 1985, pp. 205212; 227246; F. Jacques, Difference et Subjecti- vité: Anthropologie d'un point de vue relationnel, Paris, Aubier, 1982; id. Dialogiques: recherches logiques sur le dialogue (Dialogiques, I, II), Paris, PUF, 19791985; P.Ricoeur, Soi-méme comme un autre, Paris, Seuil, 1990; J. Barbaras, "Autrui", ap.
Encyclopedic Philosophique Universelle II, Paris, PUF, 1990, pp. 209213.15. Sobre a primazia da relação ou o prim um relationis ver F. Jacques,
Difference et Subjectivité, op. cit., pp. 141189. A aparição do "outro Eu" aotermo da relação não deve ser entendida, evidentemente, como transposição domeu próprio Eu, o que negaria a primazia da relação, mas, exatamcnte, comodescoberta do outro na alteridade constitutiva do diálogo.
16. Essa expressão é de Lucien Málveme, Signification de l’homme, Paris,PUF, 1960, pp. 55.
17. Ver Antropologia Filosófic a I, op. cit., pp. 224225, e Lucien Málveme,Signification de l’homme, op. cit., pp. 44, nota 1.
18. Ver supra, cap. 1, nota 1.
19. O tema do reconhecimento cm Hegel acompanha a formação do Sistemadesde os primeiros esboços dos tempos de lena c, explicitamente, nas lições de18031804 (publicadas no vol. VI, contendo os Jenaer Systementwürfe /, Hambur-go, Meiner, 1975, pp. 306315) até a Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1830) §§ 430435, é na Fenomenología do Espírito que se encontra a passagem maisconhecida sobre o reconhecimento (Phánomenologie des Geistes, IV, A). O tema,surgindo aí no contexto da dialética da autoconsciência, só irá alcançar plenasignificação ao fim da seção "Espírito", na dialética do Mal e seu Perdão (VI, C,c). Sobre o tema do reconhecimento em Hegel ver L. Siep, Anerkennung ais Prinzip der praktischen Philosophic, Friburgo B.Munique, Alber, 1979 (ver sobreo reconhecimento em Fichte, pp. 2636); G. Gérard, Critique et Dialectique: Titinéraire de Hegel à Iéna (1801-1805), Bruxelas, Facultés Universitaires SaintLouis, 1982, pp. 306313; F. Chiereghin, Dialettica delTassoluto e ontologia delia soggetività in Hegel, Trento, Verifiche, 1980, pp. 108118, R. VallsPlana, Del Yo
al Nosotros: lectura de la Fenomenología del Espíritu, Barcelona, Estela, 1971, pp.75109; G. Jarczyk P.J. Labarriére, Les premiers combats de la reconnaissance: maitrise et servitude dans la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel, Paris, Aubier,1987; H. C. Lima Vaz, "Senhor e Escravo: uma parábola da filosofia ocidental" emSímese, 21 (1982); 729.
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20. Corrente que tem origem em Feuerbach, passa por Marx c a fenomeno-logía e espraiase pela filosofia atual de M. Buber e E. Levinas a J.P. Sartre. Umaminuciosa reconstituição histórica dessa corrente encontrase em J. Bóckenhoff,Die Begegnungsphílosophie, op. cit., pp. 13210.
21. Ver L. Málveme, Signification de l’homme, op. cit., p. 58.22. Ver em H. C. Lima Vaz, "Senhor e Escravo: uma parábola da filosofiaocidental", art. cit., pp. 1319.
23. Ph anom enologie des Geistes IV (ed. BonsiepenHeede, G esam m elte Werke, 9, p. 103; ver p. 108).
24. Sobre essc problema, ver a exposição, de inspiração hegeliana, de P.J.Labarriére, Le discours de l’altérilé, Paris, PUF, 1982, pp. 308346; a distinção doconhecimento do outro como "coisa" (allud) e como "sujeito" (alius) c cuidado-
samente estudada por J. de Finance, L’Affrontement de l’autre, Roma, Universi-dade Gregoriana, 1973, pp. 745.25. Na sua analítica do Dasein, Heidegger apresenta o sercom (Mitsein) como
constitutivo da essência do sernomundo do Dasein. No entanto, a coexistenciacom os outros é pensada aqui na perspectiva da hermenéutica do existir cotidiano,no qual o outro surge no prolongamento da manifestação dos entes como o queestá sob a mão (Vorhandenes), em vista do uso. É nessa perspectiva, cujas limita-ções são patentes, que se desvela o horizonte do mundo como "mundocom"(Mitwelt). Uma discussão aprofundada do Mitsein heideggeriano, em confronto
com a concepção husserliana da intersubjetividade, encontrase em M. Theunissen,Der Andete, op. cit., pp. 156186. Sobre a aparição do tema do outro no terreno daconstituição do valor moral ver as páginas profundas de A. Leonard, Le fondem ent de la morale: essai d’éthique phiíosophique, Paris, Cerf, 1991, pp. 200223.
26. Na obra já citada de J. Bóckenhoff, Die Begegnungsphilosophie, o deslo-camento temático "Do eu ao outro" é acompanhado minuciosamente a partir deDescartes. Ver também o vol. I de P. Lain Entralgo, Teoría y realidad del otro, eH. C. Lima Vaz, "Nota histórica sobre o problema filosófico do outro", ap. On-
tologia e Historia, São Paulo, Duas Cidades, 1968, pp. 281298.27. Ver Cartesianische Meditationen, med. V, op. cit., pp. 121183 (tr. fr., pp.74134).
28. Ver o estudo analítico das M editações por P. Ricoeur, "Étude sur les M éditations Cartesiennes de Husserl", ap. À l ’éco le de la Phénom énolo gie, Paris,Vrin, 1987, pp. 75109.
29. Ver o amplo estudo sistemático da teoria husserliana em M. Theunissen,Der Andete, op. cit., pp. 15115; Cesar Moreno Márquez, La intención comuni-cativa: ontologia y intersubjetividad en la Fenomenología de Husserl, Sevilla,Universidad de Sevilla, 1989.
30. Ver a minuciosa análise de Ricoeur "Husserl: la cinquiéme meditationcartésienne", ap. À l ’éco le de la Phénom énologie, op. cit., pp. 197225.
3 1 . 0 exemplo mais conhecido é o de M. Heidegger que, não obstante terdedicado sua obra principal Ser e 'Tempo a seu mestre Husserl, nela se distanciadefinitivamente da perspectiva husserliana, contrapondo a analítica do Dasein àteoria transcendental da intersubjetividade. Ver a documentada comparação entreambas as posições cm M. Theunissen, Der Andere, op. cit., pp. 156186.
32. Ver a crítica de F. Jacques ao programa husserliano em Différence et Subjectivité, op. cit., pp. 158164.
33. Entre os principais representantes de urna fenomenología do "outro"convém citar, além de M. Heidegger, J.P. Sartre (discussão das posições sartrianas
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nessa questão em M. Theunissen, Der An dete, op. cit., pp. 187240). Uma menudoparticular deve ser feita à obra de Max Scheler, Wesen und Formen der Sympathic. Bonn, F. Cohen, 1923, pp. 244307. Não obstante não tenha ele temat izado tormalmente o problema da intersubjctividade, e sim o problema do aceso ao "outro" como "Eu estranho" (fremd es Ich), suas análises pioneiras nessa e em outrasobras oferecem um rico material para a caracterização fcnomenológica da précompreensão da relação de intersubjetividade. Sobre Scheler, ver P. Lain Entralgo,Teoría y realidad del otro, op. cit., I, pp. 221225.
34. Ver Aristóteles, Física, II, 1, 193 a 110.35.
35. Ver J. Cl. Fraisse, Philia: la notion d’amitié dans la philosophic antique, Paris, Vrin, 1974, A. J. Voelke, Les rapports avec autrui dans la philosophie
grecque, Paris, Vrin, 1961.
36. Questão compreendida na questão geral discutida por Santo Tomás: Utrum
return multitudo et distinctio sit a Deo (Sumiría Theologiae, la., q. 47 a.l).
37. Teoría y realidad del otro, op. cit., pp. 2934.
38. Ver os artigos de M. Chastaing, "Saint Augustin et la connaissanced'autrui", Revue Philosophique de la France et de FÉtranger, 151 (1961): 109124;152 (1962): 90102, 153 (1963): 223238; quanto a Santo Tomás de Aquino, verLuciano M. de Almeida, A im perfeição intele ctiva do conhecim ento hum ano: introdução à teoria tomista do conhecimento do outro, São Paulo, 1977.
39. Teoría y realidad del otro, op. cit., 1<J volume.
40. Sobre as vicissitudes históricas desse argumento ver J. Bóckenhoff, Die Begegnungsphilosophie. op. cit., pp. 3543; sobre a sua utilização por Husserl verP. Ricoeur, À l ’École de la Phénom énologie, op. cit., pp. 205212, M. Theunissen,Der Andere, op. cit., pp. 6068. O problema do conhecimento do "outro" tornase igualmente um tema longamcnte discutido na filosofia analítica, formuladocomo conhecimento do "outro espírito" (other m ind). Ver o artigo de J. M. Shorter"Other minds", ap. Encyclopedy of Philosophy (P. Edwards), Nova Iorque, MacMillan, 1972, pp. 713: aí são discutidos o argumento de analogia e os pontos de
vista de L. Wittgenstein, P. F. Strawson e J. Wisdom.41. Sobre a dimensão gnosiológica da relação de intersubjetividade, ver o
capítulo de J. de Finance sobre o conhecimento da "alteridade" em L’Affrontement de 1’Autre, op. cit., pp. 745. Ver igualmente a solução proposta por A. Brunner,La Connaissance humaine, Paris, Aubier, 1943, pp. 103134; La Personne Incarnée, Paris, Beauchesne, 1947, pp. 203227; J. Bóckenhoff, Die Begegnungsphilosophie, op. cit., pp. 326379.
42. Urna ampia e profunda meditação sobre o "encontro" é proposta por P.
Lain Entralgo, Teoría y realidad del otro, op. cit., II, pp. 55230; a filosofia siste-mática do "encontro" é desenvolvida por J. Bóckenhoff, Die Begegnungsphiloso- phie, op. cit., pp. 211438.
43. Presença, encontro, diálogo, que os primeiros gestos e reações da criançapõem em movimento. No verso tão citado de Virgílio, Incipe, parve puer, risu cognoscere matrem (Eel. IV, 60) o sorriso de um para o outro — mãe e filho —é a primeira forma vivida da presença, do encontro e do diálogo mãefilho. Ver P.Lain Entralgo, Teoría y realidad del otro, op. cit., II, pp. 191208, com a biblio-grafia ai citada e comentada. No seu livro Le Principe Responsabilité (tr. fr.),
Paris, Cerf, 1990, pp. 6467, Hans Jonas apresenta a relação progenitoresfilhosmenores como nãorecíproca do ponto de vista ético, não havendo por parte dacriança possibilidade de reivindicar seus direitos. Mas ela é recíproca do ponto devista p sicológico (reconhecimento) e contem virtualmente a reciprocidade ética.
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44. Ver Cartesianische Meditationen, op. cit., V, § 50; pp. 130141; Ricoeur, À l ’éco le d e la phénom énologie, op. cit., pp. 205212.
45. Ver a já citada exposição do pensamento de Schelcr por Lain Entralgo, op.cit., I, pp. 237255, c sobre a percepção do ouiro, ibid., II, pp. 70113.
46. Ver, de P. Lorenzen, M ethod isches D enken, Frankfurt a. M., Suhrkamp,1968, pp. 2469; P. LorenzenK. Lorenz, D i a l o g i s c he L o g i k , Darmstadt,Wisscnschaftliche Buchgesellschaft, 1978, sobretudo P. Lorenzen, "Logik undAgon", pp. 18 c K. Lorenz, "Die dialogische Rechtfcrtigung der effektivcn Logik",pp. 179209.
47. Ver o estudo exaustivo de J. Labordcric, Le dialogue platonicien de la maturité, Paris, Belles Lettres, 1978, principalmente a caracterização do diálogocomo lógica, como método c como expressão (pp. 176216).
48. A filosofia do diálogo como alternativa à fenomenología transcendentalé estudada por M. Theunissen, Der Andere, op. cit., pp. 243475. Entre os repre-sentantes mais conhecidos da "filosofia do diálogo", convém citar M. Buber c suaobra clássica Ich und Du (Heidelberg, Schneider, 1923). Os escritos principais deBuber estão reunidos cm Die Schriften fiber das dialogische Prinzip, Heidelberg,Schneider, 1954. Em francês ver La vie en dialogue, París, Aubier, 1959. SobreBuber ver Theunissen, op. cit., pp. 257346 e, sobretudo, B. Casper, Das dialogische Denken: eine Untersuchung der religionsphilosophische Bedeuíung F. Rosensweigs, F. Ebners M. Bubers, Friburgo cm B., Herder, 1967.
49. Dcstacasc aqui a obra de Francis Jacques que acentua fortemente a prio-ridade da relação sobre os termos no diálogo, elevado à dignidade de princípio naconstituição do universo da linguagem e do sentido. As obras principais de F.
Jacques, já citadas, são: D ialogiques 1: rech erch es logiqu es sur le dialogue (1979);Dialogiques II : l ’espace logique de 1’ interlocution (1985) e Dif ference e t sub jectivité: anthropologic d ’un poin t d e vue relationn el (1982). Em Dialogiques II, pp. 609621, urna rica bibliografia com especial relevo para a produção dafilosofia analítica nesse campo.
50. Ver "Fenomenología do ethos" ap. Escritos de Filosofia II: Ética e Cul-tura, op. cit., pp. 1135.
51. Ver o papel exemplar do "homem sábio" ( phrón im os) na definição daarete, Et. Nic., II, 6, 1106 b 36 ; e Ética e Cultura, op. cit., pp. 106107; 111.
52. Convém lembrar que o "reconhecimento" ( A n erk en n u n g ) naFenomenología do Espírito só alcança sua plena significação com a dialética doMal e seu Perdão ao fim da seção "Moralidade" (ver supra, nota 19). Na "Filosofiado Espírito objetivo" da Enciclopédia, a "moralidade" é, por sua vez, suprassumida
na "vida ética concreta" (Sittlichkeit).53. Sobre o aspecto é t i c o do encontro ver J. Bockcnhoff, D ie
Begegnungsphilosophie, op. cit., pp. 378405. As obras principais de Levinas quedizem respeito ao tema aqui tratado são T ota lité et Infini: e ssa i sur 1’ extério rité (1961), já anteriormente citado e A utrem ent q u ’étre ou audélà d e 1’essence, LaHaye, M. Nijhof, 1974; uma autoapresentação do pensamento de Levinas encontrase na sua entrevista a Ph. Nemo publicada sob o título Éth ique et Infini, Paris,Fayard, 1982. Sobre Levinas ver Ulpiano Vásqucz, El discurso sobre Dios en la obra de E. Levinas, Madrid, UCPM, 1982 (ver pp. 109118).
54. Ver Ética e Cultura, op. cit., pp. 7172.
55. Ver, de P. Ricoeur, Soim ém e com m e un autre, op. cit., études 7, 8, 9, pp.199344.
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56. Ver H. C. Lima Vaz, "Consciência e Historia", ap. Ontologia c Histmia. op. cit., pp. 266280 (aqui, pp. 275279).
57. Ver L. Pareyson, Esistenza e Persona, op. cit., pp. 207209. Aqui se apo-senta o problema da relação mimética Eu <— Outro, elaborada por R. Girard, La
Violence et le Sacre, Paris, Grasset, 1972.58. A metáfora do "centro" pode parecer uma irremediável concessão ao
solipsismo. Mas tratase, sem dúvida, de urna metáfora inevitável desde que for-memos a representação do espaçotempo humano no qual têm lugar as relaçõesde objet ividade e intersubjetividade e cujo "centro" são, necessariamente, ossujeitos concretos.
59. Ver Antropologia Filosófica 1, op. cit., p. 164.
60. O termo abstrata é tomado aqui no sentido definido em Antropologia
Filosófica I, p. 164.61. Kyriotátê tôn epistemôn, Et. Nic., I, 1, 1094 a 27.
62. Ver Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura, op. cit., pp. 160162.
63. Ver Joseph R. Strayer, The medieval origins of modern State, PrincetonUniversity Press, 1970 (tr. fr., Paris, Payot, 1979).
64. Et. Nic., X, 10, 1181 b 15: as "coisas humanas" são o objeto próprio daPolítica.
65. Problemas estudados magistralmente por G. Gusdorf na sua grande obra,freqüentemente por nos citada, Les sciences humaines et la pensée occidentale, já no scu 13L>volume.
66. Ver Antropologia Filosófic a I, op. cit., I, pp. 207208.
67. Ver Antropologia Filosófica I, op. cit., p. 207. É verdade, como vimosanteriormente (supra, cap. 1 e nota 13), que, na relação de intersubjetividade, aestrutura psíquica reivindica a primazia enquanto condição primeira de possibilida-de para o nosso encontro com o outro na exterioridade do mundo, ou para o nosso
sercom (Mitsein) no âmbito do mundocom (Mitwelt), assim como o corpo próprioé condição primeira de possibilidade da nossa presença às coisas. (No casolimite darelação com o outro só através do "corpo", o outro seria reduzido à condição decoisa.) Mas, sendo essas formas de presença sempre "presenças espirituais" (o espi-rito suprassume dialeticamente o corpo próprio c o psiquismo), no caso da presençaao outro a suprassunção dialética do psiquism o se faz através dos atos estritamenteespirituais do reconhecimento e do amor, de sorte que a presença ao outro naeleição de intersubjetividade é, por excelência, uma presença espiritual.
68. Ver A ntropologia F ilosófica I, op. cit., pp. 919.
69. Talvez seja esta a ocasião para justificarmos a expressão "compreensãoexplicativa" que parece unir dois termos separados pela tradição da filosofiahermenêutica, a saber, a "explicação (Erklüren) e a "compreensão" (Verstehen). Aexpressão, no entanto, pretende ressaltar o fato de que tanto a "explicação" comoa "compreensão", como hoje comumente se admite (ver Th. Bodammer,Philosophic der Geisteswissenschaften, Friburgo B.Munique, Alber, 1987, pp.231232) constituem momentos necessários do procedimento metodológicointerpretativo ou dc uma Teoria da Interpretação como metodologia própria das
"ciências humanas" como mostra Th. Bodammer, op. cit. (ver bibl., pp. 249303).A influência dominante do modelo organicista na origem das ciências humanasé estudada por G. Gusdorf, Les origines de 1’herm éne utiqu e [Les scien ces hum aines et la pensée occidentale, vol. 13, Paris, Payot, 1988, pp. 344428). Ver ainda M.
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Riedel, Verstehen oder Erklarenl zur T heorie und G eschich te der hermeneu tischen Wissenschaflen, Stuttgart, KlettCotta, 1978, uma excelente antologia de textoscom introdução do A. é a de O. Põggelcr, H erm eneutische Philosophic, Munique,Nymphenburger Verlagshandlung, 1972.
70. Ver a referencia ao paradoxo de Hawkings, supra, cap. 1, nota 2, fim.
71. Na sua conhecida obra Com m ent on écrit l ’histoiie: essai d'epislémologie, Paris, Seuil, 1971, Paul Veyne nega mesmo a existência de um objeto próprio daSociologia, que seria absorvida pela História (op. cit., pp. 313343). Como, por outrolado, para Veyne a História igualmente não é uma ciência, mas uma narração, amodo dc um romance que tivesse acontecido de verdade, a compreensão explicativada relação dc intersubjetividade consistiría, nesse caso, na narração ordenada dosacontecimentos que resultaram da efetivação de certas práticas sociais pelos atoreshistóricos. Fica o problema de distinguir, classificar e hicrarquizar essas práticas,
o que seria o trabalho teórico, nem sempre fácil, do historiador no papel do soció-logo.
72. É a forma de necessidade que Aristóteles atribui ao ethos, que é a "segun-da natureza" para a p iáx is humana, tornando possível a esta proceder "quasesempre" ( p o llá k is , os epi tó poly , ut in plm ibus) da mesma maneira. Ver Escritos de Filosofia, II, Ética e Cultura, op. cit., p. 11.
73. Dois conceitos cuidadosamente distinguidos por Aristóteles, distinçãoessa importante para a análise do evento histórico: um é a "contingência", atri-
buída ao evento que não tem em si a razão intrínseca do seu acontecer, mas é o"acontecido" (íó sym bebekós , acc idens) entre outras alternativas possíveis; outroé o "acaso", ou seja, o que admite a possibilidade de ter acontecido de outramaneira (íó end echóm enon allôs échein; qu od aliter f ieri poterat). Ver a aplicaçãodessa distinção no caso da práxis humana em R. Bubner, G eschichtsprozesse und Handlungsnormen, Frankfurt M., Suhrkamp, 1984, pp. 4047.
74. Com efeito, são as formas da linguagem que constituem o universo daintersubjetividade: linguagem do reconhecimento, em primeiro lugar, linguagensdo interesse, linguagem do conflito, linguagem da convivência, linguagens do
saber, linguagem da amizade e do amor, etc...75. Ver U. Gaier, System des Handelns, op. cit., pp. 1719. As obras mais
significativas nesse campo são, provavelmente, as dc J. Habermas e de K.O. Apcl.Ver Gaier, ibid., pp. 1925.
76. O livro de U. Gaier, citado na nota anterior, é uma tentativa abrangente,por parte de um especialista da ciência da literatura, de autofundamentar a com-preensão do operar humano a partir da noção de "campo de possibilidades" dosujeito ( M enschenm ügliche) entendido como "integração" (p. 85) das capacidades
humanas formalizadas no conceito de "competência" (Kompetenzbegriff), que éaplicado desde a "situação" e o "sentimento da situação" (Befindlichkeit) até acompetência lúdica. O Sachregister deste livro rico e estimulante não registra ovocábulo "Filosofia". Mas é impossível lêlo sem transitar freqüentemente porterritórios reconhecidos universalmente como submetidos à jurisdição da Filoso-fia. Convém referirse, nesse contexto, à obra do filósofo americano G. H. Meadcomo terreno de encontro da compreensão explicativa e da compreensão filosóficada intersubjetividade. Ver, a propósito, Hans Joas, Pr aktische Inter sub jektivitãt: die Entwicklung des Werkes von G. H. Mead, Frankfurt a. M., Suhrkamp. 1980.
77. Ver Antropologia Filosófica I, op. cit., p. 167. Ver a observação dc N.Hartmann, Das Problem des geistigen Seins, 2- ed., Berlim, dc Gruyter, 1949, p.III.
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78. Ver Antropologia Filosófica I, op. cit., pp. 222223.
79. Ver supra, Introdução, in initio.
80. Ou Soi-mém e com m e un autre (Ricocur) o que implica, necessariamente,o autre comme soi-méme. Essa identidade se dá, por excelência, no conhecimentoafetivo do outro que culmina no amor. Não tendo sido adequadamente
conceptualizada no materialismo de Feuerbach (ver Antropologia Filosófica I, pp.125127) ela é a razão da insuficiência do conceito de "ser genérico"(Gattungswesen) para fundamentar a relação EuTu, o que explica provavelmente,na evolução do pensador alemão, a passagem do humanismo da juventude paraum naturalismo de tipo panteísta na velhice.
81. As formas degradadas do encontro — coisificantes, alienantes, ou queoutra feição desumanizante possam ter — só podem ser avaliadas como tais semedidas pelo arquétipo ideal do encontro ou, na sua conccptualização filosófica,
pela categoria de intersubjetividade; essa, por sua vez, só pode ser adequadamenteconstituída se aceitarmos como termos da relação do encontro os sujeitos na suatotalidade estrutural na qual, sabemos, o espírito suprassume o somát ico e o
psíquico-, em suma, se o encontro for definido como espiritual, pois "só o espíritoé para o espírito" [Hegel, Enzyklopàdie der phil. Wissenschaften (1830), §§ 563564],
82. Sobre esta questão, ver F. Jacques, D ifference et Su bjectivité , op. cit., pp.141189; Id., Dialogiques: recherches logiques sur le dialogue, op. cit., pp. 1163.
83. Ver P. Ricoeur, Soi-même comme un autre, Préface, op. cit., pp. 1138.84. O termo é, provavelmente, infiel à intenção profunda de E. Levinas, dado
o seu esforço constante em superar o logos helênicoocidental e em preconizar o
testemunho da tradição profética como caminho para submeterse à invocação dooutro (ver Totalité et Infini, op. cit., sec. Ill, pp. 161195; Autrem ent qu'étre ou
au-délà de 1’essence, op. cit., cap. 2,1; cap. 5,2). Usamos esse termo na medida em
que o discurso levinasiano desdobrase necessariamente como um logos de umaalteridade primeira e irredutível: a alteridade (eterotês ) que irradia da face do
Outro. Sobre as dificuldades do logos levinasiano ver F. Jacques, Difference et Subjectivité, op. cit., pp. 164182.
85. Ver A ntropologia Filosófica I, op. cit., pp. 205206.
86. Essa dialética é condensada no axioma clássico: in cog nitione cogn oscens
fit a liud in quantum aliud quin desinat esse seipsum-, ou seja, tomase outro
enquanto se afirma reflexivamente na sua identidade ou na sua ipseidade.
87. Situação dialética expressa graficamente na fórmula da reciprocidade
SI <—> S2. Ver Antropolo gia Filosófica I, op. cit., p. 212. O bloqueio dessasituação pela fixidez objetivante do olhar ou pela fixação do outro na opacidadeobjetiva do em-si (ensoi) é justamente o que toma impossível ao conhecimento do
outro em UÊtre et le N éant elevarse ao plano do reconhecimento autêntico, o que
constitui, sabidamente, uma das aporias fundamentais do pensamento sartriano.
88. Portanto, a interpretação do alter ego comporta, na reciprocidade da re-lação, a dialética da identidade do alter ut ego e da diferença do alter quam ego: essa última assegurada justamente pela infinitude intencional do outro, funda-
mento da sua irredutível originalidade.89. Ver o esboço histórico de J. Bòckenhoff, Die Begegnungsphilosophie, op.
cit., pp. 15210; e o de P. Lain Entralgo no 1Qvolume de Teoría y rea lidad d el otro.
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90. Essa ausência costuma ser explicada pelo objet ivismo do pensamentoantigo (uma caracterização que, no entanto, deve ser matizada segundo as conclu-sões de R. Mondolfo, La comprensión del sujeto en la cultura antigu; BuenosAires, Imán, 1955), que absorve a singularidade do outro na universalidade dologos.
91. A propósito, consultar AndréJcan Voelkc, Le rapport avec autrui dan s la philosophic grecque, d ’A ris tote a Panetius, citado na nota 35 supra.
92. Esses aspectos convergem para a noção de oikeiôtes (Platão) e, posterior-mente, para a complexa noção estoica de oikeiósis. Ver JeanClaude Fraisse, Philia: la notion d’amitié dans la philosophic antique , op. cit., passim, sobre a oikeiósis ver A.J. Voelkc, op. cit., p. 107 n. 8.
93. Com efeito, a relação dialógica (diá-logos), origem provável das regras deuso do lógos que deram origem à Lógica (ver supra n. 46), devendo submeterseàs exigências do lógos verdadeiro (Platão), impõe à amizade submeterse, por suavez, à direção do lógos para poder encaminharse à amizade perfeita (Léleia p hilía, Aristóteles).
94. Tema do amante e do amado como espelho um para o outro na tradiçãoplatônica (!'’ A lcib íades , Fedro, 255 a). Ver Aristóteles, Ét. Nic. IX, 9, 1169 b 33 1170 a 4. Ver J. Pépin, Idées greeques sur l'homme et sur Dieu, Paris, BellesLettrcs, 1971, pp. 7180.
95. É o caso, particularmente, na concepção aristotélica da philía . Ver J.Cl.Fraisse, op. cit., pp. 257286.
96. A fonte clássica dessa revelação é a parábola do bom Samaritano, Lc 10,2537.
97. Como é sabido, essa é a fonte primeira de inspiração do pensamento deE. Levinas, ver A utrem ent q u ’étre ou au-délà d e 1’essence, op. cit., 5, 2, d.
98. Essa triunidade do amor: eros, philía, agápe passa, desde então, a cons-tituir o espaço humano da presença do outro na tradição espiritual do Ocidente.
Ver J. B. Lotz, Die Drei-Einheit der Liebe: Eros, Philía, Agápe , Frankfurt a. M.,Knceht, 1979. Ver aí o esquema simbólico das pp. 220221. A triunidade do amorfundasc, para Lotz, na triunidade da vida humana, cuja estrutura ternária éconstituída pela vida sensível (corporalidadc), vida espiritual (personalidade) cvida divina (graça): ver ibid., pp. 2426. A triunidade antropológica, descrita porLotz, c de natureza filosóficoteológica, mas apresenta alguma analogia com a triunidade do corpo próprio — psiquismoespírito — com a qual definimos a estru-tura fundamental do homem.
99. A gapéseis ton p losion sou os seautón, Me 12,31.100. Ver o volume coletivo, com ampla bibliografia, L’Amour du Prochain,
Paris, Ccrf, 1954 c J. B. Lotz, Die Drei-Einheit der Liebe, op. cit., pp. 163221.
101. Ver os textos do Discurso do Método c das Segundas Meditações ana-lisados, juntamente com outros textos, por P. Lain Entralgo, Teoría y rea l ida d del otro, op. cit., I, pp. 3952; J. Bõckenhoff, Die Begegnungsphilosophie, op. cit., pp.3536.
102. Ver Lain Entralgo, op. cit., I, pp. 5463; J. Bõckenhoff, op. cit., pp. 3543.
103. Ver Lain Entralgo, op. cit., I, pp. 102113; J. Bõckenhoff, op. cit., pp. 102106. Sobre o pensamento de Fichte nesse ponto, ver igualmente as páginas pene-trantes de E. Heintel, "Ich und Du in Ontologie und transzendcntal Philosophic"
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ap. Grundriss der Dialektik: ein Beitrag zu ihrer fundamentalphilosophischen Bedeutung, Darmstadt, Wisscnschaítlichc Buchgesellschaft, 1984, II, pp. 52S9.
104. Podese considerar como indício dessa recuperação a posição do momen-to da moral idade (ou da consciência moral individual) como mediador entre ascoisas e a sociedade na estrutura dialética da Filosofia d o Espírito ob jetivo ou da
Filosofia do Direito.105. Ver o texto "A História em questão" ap. Escritos de Filosofia II: Ética
e Cultura, op. cit., pp. 227249.
106. Sobre essa oposição ver tambcm as considerações elucidativas de E.Heintel, "Der Mensch ais daseiende Transzcndentalitãt", ap. Grundriss der Dialektik, op. cit., I, pp. 312317.
107. No nível desse acontecer situase o conceito sociológico de "massa",
que deu origem a uma abundante bibliografia. Do ponto de vista filosófico ver H.E. Hengstenbcrg, Philosophische Anthropologic, op. cit., pp. 114120.
108. Com efeito, nesse nível os indivíduos constituem apenas um agregadoinforme dentro de uma maior ou menor probabilidade de se encontrarem poracaso, e ao qual nenhuma inteligibilidade intrínseca pode ser atribuída. Eviden-temente, o nós empírico não é suprimido mas suprassumido ao nível de um nós inteligível.
109. Essa contradição, convém notálo, está implícita nas teorias sociais c
políticas conhecidas sob o nome de coletivismo e tornouse mesmo visível eexplícita no dogma fundamental dos totalitarismos de uma época recente.
110. Tratase, como se vê, de uma forma peculiar do dilema entre o uno e omúltiplo.
111. Ver Antropologia Filosófic a I, op. cit., pp. 203204.
112. Essa analogia já está presente na linguagem comum, quando falamos dedois amantes que se sentem identificados na unidade de um mesmo pensamentoe de um mesmo querer, numa assembléia que unida delibera e decide, no consen-
so institucional que une as inteligências e as vontades num mesmo entendimentoe num mesmo propósito em tomo de leis, etc...
113. A aporia seria apenas contornada e não definitivamente evitada na pers-pectiva de uma solução dc tipo leibniziano que postulasse uma espécie de harmo-nia preestabelecida entre as mónadas humanas, harmonia que já estaria presenteno mais elementar vínculo intersubjetivo. Essa solução deslocaria para o instituidorda harmonia a tarefa aparentemente contraditória de preestahclccer ab extra umaforma de pluralidade ordenada das mónadas inteligentes e livres.
114. A propósito, ver N. Hartmann, Das Problem des geistigen Seins , op.cit., pp. 182184; e as páginas clássicas de Eleidcgger sobre o "scrcom" ( M itsein),em Sein und Zeit, op. cit., pp. 114129.
115. Ocorre aqui a evocação da teologia cristã da Trindade que é, como ésabido, uma das fontes principais das noções de pessoa e comunidade na culturaocidental. Nela se faz presente um arquétipo fundador da noção de comunidade de pessoas, conquanto infinitamente distante da nossa compreensão, na sua misteriosa c insondável profundidade. Não obstante, um reflexo desse mistéiio <
transmitido pela palavra da Revelação, iluminando para sempre a consciência dohomem. Afirmase nele a identidade entre o subsistir dos sujeitos c o sei pai.i d<trelação, pois sujeito e relação são absolutamente um¡ e, ao m niim nmpo, idiferença das relações na oposição do ser-para que as consumi <omo ,
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distintas. Identidade na diferença que é princípio de infinita comunhão, pois aidentidade da esscncia na distinção das pessoas assegura sua unidade perfeita nacircunsessão trinitaria. Ver Summa Theol., la., q. 28, a. 2 c., onde o mistério écontemplado à luz da concepção aristotélica das categorias, que no entanto scexaure ou é suprassumida na afirmação: nihil autem quod est in Deo potest
habere habitudinem ad id in quo est vel de quo dicilur nisi habitudinem identitatis propter sum m am Dei s implicitatem (ad lm). Ver, nesse contexto, asreflexões de F. Jacques, Différence et Subjectivité, op. cit., pp. 8697, comentandoa teologia trinitária de Santo Agostinho. Arquétipo absoluto e paradoxo da exigên-cia mais profunda inscrita no íntimo do ideal humano de comunhão: ser total-mente a si mesmo, na total doação de si!
116. A idéia de "reciprocidade" é o fio condutor da obra notável de MauriceNédoncelle, La réciprocité des consciences: essai sur la nature de la personne, Paris,Auber, 1942, hoje injustamente esquecida, mas que merece ser relida no contextoatual da aporética da relação de intersubjetividade que estamos descrevendo.
117. A propósito, ver P. Ricoeur, Soi-méme comme un autre, op. cit., pp.367410.
118. Na tradição da teologia trinitária recebida por Santo Tomás de Aquino,a pessoa fora definida por Ricardo de São Vítor pela noção de incomunicabi l idade (ver Summa Theol., la., q. 29, a. 3 ad 4m), que podemos traduzir dialeticamentepela reflexividade essencial do Eu sou, sua ipseidade. No mistério trinitario essa
incomunicabilidade se compõe misteriosamente com a comunidade do subsistirna mesma essência (la., q. 30, a. 2 ad 2m) na pluralidade transcendental dasrelações (la., q. 30, a. 3, c.), assegurando a diferença na identidade.
119. Ver Antropologia Filosófica I, op. cit., p. 266.
120. Ver Différence et Subjectivité, op. cit., pp. 142189.
121. Com efeito, a relação de objet iv idade não pode ser propriamente media-dora de uma passagem ao universo ético, que supõe a reciprocidade consciente clivre em princípio, dos sujeitos que compõem a comunidade ética. Assim sendo,não há "comunidade ética" entre o homem e a Natureza, e a noção de "deveres"do homem para com a Natureza conserva apenas uma analogia metafórica coma noção estrita de dever moral. A expressão "contrato natural" (M. Serres) encer-ra, assim, uma metáfora, como também a encerra a expressão "aliançaantropocósmica". Ver, a propósito, H. Faes, "Contrat social et contrat naturel: dela nature comme objet de responsabilité", ap. de la N ature: de la phy sique classique au souci écologique (Philosophic 14), Paris, Bcauchesne, 1992, pp. 121141, noprolongamento da obra já clássica de H. Jonas, Le Principe responsabilité: une
éthique pour la civilisation technologique (tr. fr. de J. Greisch), op. cit.; de umponto de vista crítico, ver Luc Ferry, Le nouvel ordre écologique: l’arbre, l’animal et l'homme, Paris, Grasset, 1993.
122. Ver as reflexões de E. Heintel, "Ens et bonum convertuntur", ap.Grundriss der Dialektik, op. cit., II, pp. 222225.
123. Ver J. B. Lotz, Die Drei-Einheit der Liebe, op. cit., que mostra o movi-mento único do amor como eros, philía c agapé, ou seja, pulsáo, amizade, dom.Esse movimento eleva a relação EuTu do estágio prépessoal à sua expressão
plenamente pessoal que é, justamente, o amordom (amor benevolentiae). Dentrea imensa biografia sobre o problema do amor, citamos a obra clássica de M. C.d'Arcy, The Mind and Heart of Love: a study of Eros and Agape, Londres, Faber
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and Faber, 1946 (tr. fr. La double nature de l’amour, Paris, Aubier, 1948); MNédoncelle, Vers une ph iloso ph ie de 1’Am our (col. Philosophic dc l'Esprit), Paris,Aubier, 1948. A doutrina tomásica do amor, extremamente rica, é estudada potL. B. Geiger, Le problème de l’amour chez Saint Thomas d’Aquin, Montreal
Paris, Institut d'Etudes MédiévalesVrin, 1952; A. J. Bruneau, "Réalité spirituclledc l'amour", Revue Thomiste , 60 (1960): 381416, Aimé Forest, "L'Amourspirituel", ap. L’Avénemenl de l’Áme, Paris, Beauchesne, 1973, pp. 155172. Oproblema da philía em Aristóteles, a partir do ponto de vista da vulnerabilidadedos bens humanos e da obtenção de urna eudaimonia de acordo com a condiçãohumana, c discutido longamente por Martha C. Nussbaum, The fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy, CambridgeUniversity Press, 1986, pp. 354372.
124. A fenomenología e a metafísica do encontro foram magistralmente ex-postas por P. Lain Entralgo em Teoría y práctica del otro, op. cit., 2- vol. com otítulo Otredad y projimidad. Ver também J. Bõckenhoff, Die Begegnungsphiloso-
phie , op. cit., toda a segunda parte. O paradoxo e a profunda novidade da revelaçãoevangélica do próxim o estão justamente na extensão universal da relação EuTupelo mandamento do amor, fazendo do encontro, no seu sentido mais exigente,o paradigma e a norma da relação de intersubjetividade. Sobre essa exemplaridadedo encontro do próxim o ver Lain Entralgo, op. cit., II, pp. 1929.
125. Ver Aristóteles, Ét. Nic., liv. VIIIIX; Tomás de Aquino, Summa Theol., la. 2ae. q. 26, a .4; 2a. 2ac. q. 26 (sobre a ordem da caridade). A amizade (philía) não é propriamente uma "virtude" mas um estado de ânimo que procede comopólo indutor de virtudes: fidelidade, generosidade etc.
126. Ver Aristóteles, Ét. Nic., liv. V; Tomás de Aquino, Summa Theol., 2a. 2ae., q. 58. Sobre os níveis segundo os quais a sociedade política se estrutura noseu pleno desenvolvimento ver H. C. Lima Vaz, "Democracia e dignidade huma-na", Síntese, 44 (1988): 1125.
127. Sobre essa absolutização do político ver H. C. Lima Vaz, "Mística ePolítica", Símese 42 (1988): 512.
128. Ver H. C. Lima Vaz, "A Historia em questão", ap. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura, op. cit., pp. 227249. Urna excelente síntese sobre o problemada Historia no pensamento atual encontrase cm R. Bubner, Geschichtsprozesse und Handlungsnormen, Frankfurt, Suhrkamp, 1984, pp. 11169. Ver também aluminosa meditação de Max Müller, "SinnDeutung der Geschichte", ap. Sinn- -Deutung der Geschichte: drei philosophische Betrachtung zur Situation. Zürich,
Edition Interfrom, 1976, pp. 754. Permanece sempre atual e digno de ser lido emeditado o livro III da obra dc Peter Wust, Die Dialektik des Geistes, dedicadoao movimento do Espirito na historia da humanidade: op. cit., pp. 399746.
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CATEGORIA DA TRANSCENDÊNCIA
Vous é t e s en ce monde v i s ib l e comme dans l ’ au tr eVous étes ici
Vous étes ic i e t je ne puis pas é tre autre part qu’avec vous .
Paul Claudel, L’Esprit et l’Eau
1. I nt rodução
O termo t r a n s c e n d e n c i a (como antes o b j e t i v i d a d e eintersubjetividade) pretende designar aqui a forma de uma rela-ção entre o sujeito situado enquanto pensado no movimento dasua autoafirmação — ou da construção dialética da resposta à
interrogação sobre o seu próprio ser — e uma realidade da qualele se distingue ou que está para além (trans) da realidade que lheé imediatamente acessível, mas com a qual necessariamente serelaciona ou que deve ser compreendida no discurso com o qualele elabora uma expressão inteligível do seu ser. O surgir da re-lação de transcendência 1ao termo da nossa reflexão sobre a re-lação de intersubjetividade não deve ser atribuído, evidentemen-
te, a uma seriação arbitrária das categorias do discurso. Ela surgecomo o horizonte mais amplo que se abre ao movimento da autoafirmação do sujeito desde que, em virtude do princípio dei lim i tação tét ica , ele passa além dos limites da relação deintersubjetividade, ou seja, não se exaure no âmbito da comuni-dade humana e não tem como seu último horizonte o horizonteda História. A relação de transcendência resulta, na verdade, do
excesso ontológico pelo qual o sujeito se sobrepõe ao Mundo e àHistória e avança além do sernomundo e do sercomooutro na
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busca do fundamento último para o Eu sou primordial que oconstitui e do termo último ao qual referir o dinamismo dessaafirmação primeira. É desse excesso ou dessa superabundanciaontológica do sujeito, expressos estruturalmente na categoria do
espírito que procede, de resto, o dinamismo mais profundo daHistória e a inexaurível gestação de formas de busca ou expressãodo Absoluto que acompanha o curso histórico e que é a atestaçãomais evidente da presença da relação de transcendência na cons-tituição ontológica do sujeito.
Desde outro ângulo da análise filosófica, a relação de trans-
cendência pode ser considerada como a suprassunção dialéticafinal da oposição entre interioridade e exterioridade, que vimosapresentarse nas categorias de estrutura no seu aspecto fo r m a l2e que, nas categorias de re lação retorna sob seu aspecto real. Narelação de objetividade, fazse presente a irredutível exterioridadereal do mundo no seu estaraí indiferente ao sujeito, determinan-do assim a nãoreciprocidade da relação. Na relação deintersubjetividade, a exterioridade real do outro é suprassumidana forma do existiremcomum ou do sercom, e a reciprocidadeda relação cria o espaço intencional no qual a pura exterioridade mundana dos sujeitos é negada pela sua interiorização recíprocano reconhecimento, no consenso ou no amor. No entanto, o es-paço intencional entre os sujeitos na relação de intersubjetividade é igualmente ocupado pela opacidade das coisas que constituemo corpo dos sinais por meio dos quais os sujeitos se comunicam.Não há intuição transparente do outro e a visão da sua verdadeiraface é toldada pelo véu dos sinais que se estende entre o Eu e ooutro. Em suma, o sernomundo dos sujeitos e a conseqücntemediação das coisas determinam a exterioridade do m ediu m dalinguagem através do qual os sujeitos se comunicam e onde ins-
tituem o corpo dos sinais nos quais os significados se encarname se submetem ao jogo ambíguo do oculto e do manifesto. Assim,a oposição entre interioridade e exterioridade, que está inscrita naestrutura do espíritonomundo ou na estrutura do homem en-quanto sujeito finito e situado, impele o discurso da AntropologiaFilosófica para além da exterioridade do m un do e do outro, vema ser, justamente na direção de uma transcendência, que deve
mostrarse como suprassunção dessa oposição. A transcendência, desde esse ponto de vista, apresentase como o lugar conceptualno qual o sujeito pensa o Transcendente como exterior a sua
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finitude e à sua situação no mundo e, segundo a mesma i .i/.io, ouseja, exatamente como transcendente, interior ou im ánen le [in manens, o que permanece no interior) ao mesmo sujeito comoespírito. Essa síntese de interioridade e exterioridade, que SantoAgostinho exprimiu na dialética do superior su m m o e do interior intimo, ou seja, identidade na diferença (identidade em-si, dife-rença para-nós) entre o transcendente e o imánente apresentase,para o sujeito, como a estrutura conceptual fundamental do pen-samento do Absoluto.
No itinerário da Antropologia Filosófica, a questão do Abso-
luto se põe necessariamente não só, como veremos, exigida pelahermenêutica adequada de uma das mais fundamentais e cons-tantes experiências humanas, mas ainda, como foi acima obser-vado, pelo excesso ontológico do sujeito expresso no princípio dailim ita çã o tética, que conduz o movimento dialético do discursopara além dos horizontes da objetividade e da intersubjetividade. Ora, esse excesso ou essa superabundância ontológica do sujeito,que lhe não permitem encontrar o termo do itinerário da suaautocompreensão na Natureza ou na História, tem a sua fonte naidentidade dialética entre o espírito e o ser3. Vale dizer que arelação que suprassume no sujeito a oposição entre a exterioridade e a interioridade é a relação com o ser, considerada formalmentecomo tal. Ora, essa relação é, necessariamente, uma relação de
transcendência, em virtude da diferença real entre o sujeito, finitoe situado, e o ser; e, sendo tal, é uma relação com o Absoluto, pois é a universalidade absoluta do ser que se constitui em hori-zonte último do espírito. Por outro lado, a própria natureza darelação de transcendência implica a im an ên cia do ser — ou doAbsoluto — no sujeito enquanto sujeito 4. Com efeito, sendo arelação de transcendência a suprassunção da oposição entre
interioridade e exterioridade, o Transcendente só pode ser tal para o su jeito na identidade na diferença (identidade dialética) doexterior e do interior, da transcendência e da imanência. Em
outras palavras, o paradoxo da relação de transcendência mani-festase no fato de que, entre os dois termos da relação, o sujeitoe o Transcendente (seja ele o Absoluto real — Deus —, seja oAbsoluto form a l — a Unidade, a Verdade e o Bem) não se verificaa distinção adequada entre dois termos finitos que permite falarde nãoreciprocidade ou de reciprocidade entre eles, como nasrelações de objetividade e de intersubjetividade. Na relação de
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transcendência, a relação real do mensurado ao mensurante 5 é arelação que refere o mensurado, ou o sujeito finito, ao mensurante,ou ao Absoluto, ao passo que a atribuição ao Absoluto de umarelação ao sujeito finito fundase somente na razdo [relatio rationis)
pela qual o sujeito, ao visar à absoluta universalidade do ser, visanecessariamente ao Absoluto e mostra, inscrita no movimentodialético da sua autoafirmação, sua radical dependência do Ab-soluto. Essa relação de razão 6 exprimindo, em suma, a impossi-bilidade, para o sujeito, de encerrar nas formas finitas da ob je t i -vidade e da intersubjetividade o dinamismo da autoexpressãoque habita o Eu sou, atesta o termo necessário desse dinamismona " submissão ao Infinito", para usar a expressão de Descartes 7,ou seja, no reconhecimento da transcendência como telos supre-mo da autoafirmação do seu ser.
As categorias de relação descrevem, desta sorte, o itineráriodialético do sujeito ao buscar novas form as do seu autoexprimirse e da sua autocompreensão na saída de si mesmo, no êxodo
que o leva além das fronteiras da sua finitude e do seu ser situa-do 8 e o conduz a afirmar seu ser como sernomundo e sercomooutro. Ora, é justamente no encaminharse para a transcendên-cia que o itinerário perfaz a reflexão total do espírito sobre simesmo e o sujeito pode reencontrarse no nível mais profundo doseu ser, onde, enquanto espírito, acolhe o Absoluto presente comoVerdade (medida), como Bem (norma) e como Ser (fim) a todo ato
de inteligência e liberdade.
A relação de transcendência é, pois, a suprassunção da nãoreciprocidade da relação de objetividade e da reciprocidade da rela-ção de intersubjetividade. Nela a nãoreciprocidade tem lugar justa-mente na transcendência do Absoluto e na infinitude do seu ser queexclui qualquer relação real ou relação de dependência ad extra 9. Já
a relação de reciprocidade é suprassumida na imanência do Absolu-to ao sujeito de sorte que, no seu movimento para a transcendência, o sujeito é, na verdade, participação no mais íntimo do seu ser dainfinita generosidade do Absoluto. Essa generosidade infinita é aoutra face do infinito excesso ontológico do Absoluto que está pre-sente, como princípio e fonte do ser, nas raízes do ato de existir dosujeito. Desta sorte, o sujeito existe como serparaaVerdade, ser
paraoBem, serparaoSer: ser para a Transcendência10.A categoria da relação de transcendência se constitui, por
conseguinte, como passagem dialética para as categorias de real i -
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z a ç ã o e de p e s so a , pois essas só poderão definir se r o m o
suprassunção da unidade estrutural e da unidade relacionai <l<>homem se se mostrarem como sua efetivação na unificação dapresença a si mesmo do sujeito, e como sua razão última na
unidade profunda do seu ser; em suma, como realização concretae como fundamento ontológico da vida propriamente humanaque é a vida segundo o espírito n. Como foi observado na intro-dução à categoria de espírito 12, é somente ao constituirse estruturalmente como espírito que o homem se abre à transcendência,seja à transcendência form al da Verdade e do Bem, seja à trans-cendência real do Existente absoluto 13. A distinção entre o for-
m a l e o real é, aqui, decorrência da finitude da nossa inteligênciaque não tem a intuição ontológica ou numenal do ser e deveformar os conceitos analógicos transcendentais do Ser, da Unida-de, da Verdade e do Bem 14. Mas é por meio desses conceitos queo Absoluto real pode ser objetivamente acolhido e pensado noâmbito da infinitude intencional do nosso espírito finito. Compreendese assim que a negação do espírito, que percorre sob milformas a filosofia póshegeliana, prolongase em negação da trans-cendência, desde que ela implique a referência a um Transcen-dente absoluto. De Feuerbach e Marx a nossos dias essa negaçãoé uma advertência ou um non plus ultra colocado ao termo detodos os caminhos da filosofia contemporânea que se estendem,todos eles, pela planície da imanência. Mas a ela, como à negação
do espírito, pode aplicarse o argumento de retorsão (elentikôs) ,s.Na verdade, a negação da transcendência pressupõe, no espírito,a afirmação implícita da sua abertura transcendental ao ser; ora,não podendo evidentemente, o espírito finito e situado identifi-carse com o ser, a identidade (intencional) na diferença (real) põenecessariamente a exigência do Transcendente como Absoluto do
ser 16.
Antes de percorrermos os níveis de compreensão da relação de transcendência, convém voltar nossa atenção para uma pecu-liaridade dessa categoria que a distingue das que até aquiestudamos. A relação de transcendência é, evidentemente, com-preendida no discurso da Antropologia Filosófica como uma ca-tegoria antropológica, ou seja, como um conceito ontológico pri-
meiro por meio do qual o sujeito se afirma como ser. O homemé para a transcendência: o esse ad constitutivo do seu ser que semostrou, nas duas categorias anteriores, voltado para o mundo e
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para o outro como seus termos necessários e entre si irredutíveis,mostrase agora referido a um para a lém do mundo o do outro —da Natureza e da Historia — de sorte que essa referência, quedeve ser dita exatamente relação de transcendencia , irá ser pen-
sada como um conceito primeiro ou categorial na articulação dodiscurso com o qual o homem se afirma como ser. No entanto,o termo da relação não é, nesse caso, compreendido num âmbitoconceptual unívoco. Com efeito, não tendo dele uma experiênciadireta, como a temos do m un do e do outro, não podemos pensálo como interior à relação com que a ele nos referimos. Tratase,pois, de uma relação absoluta, para falar como S. Kierkegaard 17,
e essa expressão paradoxal significa que, aqui, op tim u m relationis ou a primazia da relação que vigora na relação de intersubjetividadecede lugar ao prim um absolutum , ou seja, ao Transcendente como qual o sujeito se relaciona, não em razão de uma reciprocidadeontológica, mas em razão da sua radical dependência dele. As-sim, a relação é absoluta porque inscrita absolutamente na estru-tura ontológica do sujeito, ou na raiz mais profunda do seu ser.
Portanto o Transcendente, sendo im án en te ao dinamismo inte-lectual que permite ao sujeito articular o discurso da sua autoafirmação como sujeito e sendo, do mesmo modo, im án ente àrelação de intersubjetividade como a mais profunda exigência desercomooutro, não se deixa exprimir na finitude da experiênciaou do conceito, mas está presente ao conteúdo objetivo do dis-curso como uma presença ausente, uma presença que se não ma-nifesta como tal, mas apenas como o sinal de uma exigênciaabsoluta que aponta para a direção mais fundamental do movi-mento do espírito I8.
2. Pré-compreensão da rel ação de t ranscendênci a
O termo "transcendência", formado a partir do verbo "trans-
cender" [trans-ascen d ere, tran scen der é ), significa literalmente
"subir além de...". Portanto, segundo o teor literal do termo, a
acepção filosófica de "transcendência" diz respeito à metáfora dasubida ou ascensão que, desde Platão, ocupa um lugar ilustre no
repertório metafórico da linguagem filosófica 19. Nessa primeira eelementar acepção, o conceito de "transcendência" se opõe ao de
"imanência" como o "além" transmundano se opõe ao "aquém"
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mundano. O im án en te designaria, nesse caso, o ámbito do nuindo como horizonte englobante das experiências imediatas dohomem, ao passo que o transcendente se referiria às realidadessupostamente existentes para além das fronteiras do mundo e
postuladas como causa, fundamento ou modelo ideal das realida-des mundanas. Purificada da sua origem metafórica espacial 20, aoposição im an ênciatran scend ência aparece assim como a articu-lação primeira do pensamento metafísico ao qual corresponde,desde o ponto de vista antropológico, a experiência que denomi-naremos transcendental na qual se descobrem ao homem, entre-vistas, mas não devassadas, a insondável profundidade e a infinita
amplitude do ser com o tal, experiência que se traduz na inquietainsatisfação da razão, que vai sempre além de qualquer ser parti-cular ou limitado pelo seu estarnomundo 21.
A primeira tematização rigorosa do problema da transcendên-cia na história da filosofia, e que permanece até hoje exemplar enormativa, tem lugar na teoria das Idéias de Platão e no seu
coroamento pela doutrina dos Princípios 22. Platão inscreve comtraços indeléveis nas primeiras páginas da história do pensamen-to ocidental aquela que pode ser designada como a formaparadigmática da Metafísica em sentido estrito como ciência datranscendência — ou ciência das Idéias na conceptualização pla-tônica — e que é, na verdade, a transcrição, no código do logos demonstrativo tal como Platão o concebe, dessa experiência fun-
damental que acompanha nas mais variadas expressões as vicis-situdes da cultura humana desde, presumivelmente, os seus iní-cios: a experiência dos limites, da contingência e do perene fluirdas coisas circunscritas ao horizonte do estarnomundo e envol-vidas nas incertezas do sernomundo e nos enigmas do vero m un do 23. Experiência que, no entanto, só se constitui como talna medida em que esse horizonte e, nele, as contingências desse
viver e os limites desse ver são transgredidos — e eis a outra faceda experiência — na direção da misteriosa e ilimitada profundi-dade do ser que se estende para além do precário estar, viver ouver nos limites do mundo e que é, enquanto tal, propriamente
transcendente.
Se a experiência da transcendência encontra em Platão sua
primeira e rigorosa expressão filosófica, na verdade ela está plí-sente, como já observamos, sob diversas formas na história dasculturas e emerge com inconfundível nitidez, segundo se pode
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documentadamente comprovar, lá onde as primeiras civilizaçõescomeçam a florescer24. Essa experiência assume um inequívocoalcance civilizatório no curso do chamado "tempoeixo" que seestende de 800 a.C. a 200 a.C. aproximadamente, no arco geográ-
fico que vai do ExtremoOriente ao Mediterrâneo e no qual sedesenvolveram grandes civilizações, cujos universos simbólicosfundiramse, a partir da idade ecumênica que se seguiu às con-quistas de Alexandre, na rica e complexa matriz das grandes idéiasque haveríam de inspirar a história futura. Ora, o tempoeixo secaracteriza justamente pela surpreendente sincronia com que semanifestaram em áreas de civilização tão distantes geografica-mente e tão profundamente diversas no seu perfil cultural, for-mas de experiência da transcendência cuja estrutura revela umaclara analogia. Para além das teorias que procuram explicar o fa to histórico do tempoeixo 25 e propor uma interpretação da suaaparição na cronologia da história universal 26, essa época excep-cional se mostra como aquela em que a irrupção da experiência
da transcendência provoca uma inflexão profunda e decisiva nacompreensão, pelo homem, da sua existência 27. Entre as muitasinterpretações desse evento espiritual de tão amplo e profundoalcance, convém assinalar a que foi proposta por E. Voegelin nasua obra monumental Order and History 28. Aí a experiência datranscendência é pensada no contexto do desenrolarse de uma"história da ordem" capaz de fornecer os marcos indicadores de
uma "ordem da história", ordem essa que permita, afinal, a com-preensão da situação atual da história universal29. Na perspectivaadotada por Voegelin é a idéia da participação no ser como tota-lidade, na qual o homem se sente justamente integrado, que irámanifestarse como essência da sua existência. Ora, é o lugardessa essência — ou desse serparte — no Todo, que constitui oproblema fundamental do qual emerge a idéia da ordem e, final-
mente, a experiência da transcendência, que iria alcançar suasexpressões paradigmáticas na idéia de Revelação em Israel e naidéia de Filosofia na Grécia. Essas expressões haveríam de operar,por sua vez, de modo aparentemente irreversível ao menos noOcidente, a mais profunda inflexão conhecida no curso do proces-so civilizatório. Tal inflexão não se cumpre, por conseguinte, emvirtude de alguma revolução tecnológica na esfera dos bens ma-teriais da civilização nem, ao menos diretamente, como conseqüência da criação de uma nova ordem social e política. Maisradicalmente, ela tem lugar nas estruturas profundas do espírito
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humano onde assentam os símbolos e conceitos com que o liomem exprime seu conhecimento da ordem do ser e sua pariu ipação nela. Símbolos e conceitos que, segundo Voegelin, se apivsentam cm quatro feições típicas que irão finalmente se unir, nomomento em que a consciência se desvencilhe do compacto sim-bolismo cósmico no qual encontrara a primeira expressão da or-dem, o que terá lugar nas duas grandes formas — revelatória efilosófica — da experiência da transcendência. Essas feições30podem ser descritas como
a. a experiência da participação;
b. a preocupação com a permanência e o fluir dos seres nacomunidade do Ser;
c. o processo de simbolização pelo qual a ordem do ser, supos-ta irrepresentável em si mesma, passa a ser representada por sím-bolos que analógicamente a exprimem;
d. dessa consciência do caráter analógico dos símbolos decor-
re a possibilidade da sua convivência em tradições distintas e,finalmente, a emergência da idéia do verdadeiro e do fa lso nomonoteísmo de Israel e na filosofia grega.
A experiência da transcendência, desvelando uma nova di-mensão — a mais abrangente e a mais profunda — da relação dohomem com a realidade, vem dar um novo sentido às grandes
experiências tais como a experiência da utilização dom un do
pelotrabalho e a experiência do reconhecimento do outro no coexistirem sociedade. Assim, ela torna possível uma "ordem da históriacomo história da ordem" na expressão de E. Voegelin. A progres-siva perda da efetividade histórica da experiência da transcendên-cia ou sua substitutição por pseudoexperiências que desenhamas diversas faces do niilismo contemporâneo pode, de resto, ser
apontada como a raiz mais profunda da desordem espiritual donosso tempo, caracterizada pelo retraimento das experiênciasautênticas da transcendência e pelo dominador avanço de formasdiversas de gnoses da im an ên cia 31.
A précompreensão da relação de transcendência exerceseportanto no campo das grandes formas de experiência da trans' cendência que se constituíram ao longo da história, na medidaem que nelas se faz visível a abertura do homem a uma realidadepara além do Mundo e da História32, que convém denominarexatamente uma realidade transcendente. Exprimir, seja simboli
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en mente por imagens, seja conceptualmente essa realidade, é tarei; idas linguagens religiosas e desta parte da Filosofia que a tradiçãoplatónicoaristotélica designou com o nome de teologia e quehoje está compreendida na Filosofia da Religião. Mas a experiên-
cia da transcendência é aqui considerada enquanto estabeleceuma re lação entre o homem e o Transcendente: tratase, comosabemos, de uma categoria antropológica. Interessanos, pois,evocar as formas de experiência da transcendência que se apre-sentam como as mais significativas em vista da conceptualizaçãofilosófica dessa relação que, como fa to universal, deve ser levadaem conta ao estudarmos as relações fundamentais do ser huma-no. Dentro dessa perspectiva, podemos distinguir três grandesformas de experiência da transcendência que deixaram um sulcoprofundo e contínuo 33 no terreno do pensamento filosófico. Sãoelas:
a. a experiência noética da Verdade, que deu origem à Meta-física como "filosofia primeira" [protê philosophía),
b. a experiência ética do Bem, que deu origem à Ética como"ciência da p ráx is" (p ra kt iké ep isth ém e) 34;
c. a experiência noéticoética do Absoluto que deu origem àTeologia como "ciência do divino" (theología ). Essa última expe-riência é a transposição filosófica da experiência religiosa e nelaconvergem, de alguma maneira, a experiência noética e a expe-
riência ética 3S. Consideremos brevemente cada uma dessas expe-riências:
a. Experiência noética da Verdade — Essa experiência consti-tui o primeiro traço daquela que E. Voegelin denominou a "di-ferenciação noética" da consciência, assinalando a irrupção dotempoeixo no mundo grego. Nós a vemos surgir com extraordi-
nária limpidez, e animada por uma prodigiosa energia de pensa-mento, na passagem do século VI ao século V a.C., sobretudo nosgrandes pensadores inaugurais desse tempo, como Heráclito eParmênides 36. Mas é sem dúvida em Platão que a experiêncianoética da Verdade como experiência metafísica da transcendên-cia alcança sua expressão paradigmática. Dela irá derivar o con-ceito de "transcendental" que prevalecerá na filosofia ocidental
até Kant. A concepção platônica da Verdade é campo de umavasta bibliografia e não é nosso propósito expôla aqui37. Seguin-do a trilha da tradição eleática, o conceito platônico de verdade
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(aléthe ia) definese a partir do discurso na medida em que seconstitui como "discurso verdadeiro" (alethés logos), como talele é o discurso da "ciência” (ep ísthém e) enquanto oposto à "opi-nião" (dóxa )3S. Ora, o discurso verdadeiro se caracteriza justa-
mente por sua homologia (que a tradição posterior designou como termo adaequat i o ) com o ser, que é propriamente o verdadei -ro 39. Platão desvela assim, com rigor e amplitude, pela primeiravez na historia da filosofia, o horizonte temático da "experiênciatranscendental" como experiência noética da Verdade, cuja in-fluência será profunda e decisiva na formação do conceito ociden-tal de homem. Portanto, a idéia da Verdade como expressão deuma relação fundamental do homem com a realidade (a relaçãodo saber verdadeiro ou da ciência) é, para Platão, um conceitoontológico: ele traduz, em suma, uma relação peculiar do homemao s e r 40. Nessa homologia entre Verdade e Ser, que será retomadapor Aristóteles 41, podemos ver a origem histórica do conceito de"transcendental" na sua acepção metafísica. Os "transcendentais"
são justamente as noções cuja predicação do conceito de ser ex-prime os atributos (ou passiones entis na terminologia clássica)com ele logicamente conversíveis (identidade real na diferença
form al) , vindo a constituir a arquitetura metafísica fundamentaldo nosso pensamento: ser (ens), uno (unum ), verdadeiro (verum ),bom (bon um ) e ainda, segundo alguns autores, belo {pulchrum ) 42.
Com a experiência noética da Verdade considerada comoexperiência m eta física na medida em que é, formalmente, umaexperiência do Ser (ou experiência da identidade entre Verdade eSer), a estrutura fundamental do pensamento filosófico descobreseu fundamento nessa presença originária do homem ao Ser queé propriamente experimentada na reflexão do espírito sobre simesmo 43. Enquanto tal, essa experiência merece ser denominada
"experiência transcendental" u . Semelhante expressão pode pare-cer, à primeira vista, paradoxal e mesmo inadequada: "Experiên-cia" diz respeito, na sua acepção usual, à presença de um objetocaptado na sua particularidade: "transcendental" equivale a "uni-versal" e, mesmo "universalíssimo", como condição que antece-de toda experiência (sentido kantiano moderno) ou como concei
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