HISTÓRIA, MEMÓRIA E JUSTIC;A DA JUSTI

Post on 02-Dec-2018

219 Views

Category:

Documents

0 Downloads

Preview:

Click to see full reader

Transcript

HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTICA DA JUSTIltA TRANSICIONAL A JUSTIltA

ANAMNEacuteTICA1

JOSEacute A ZAMORA

A Justilta Transicional eacute o marco pelo qual sao analisadas as relaroes entre histoacuteria memoacuteria e justira com a intenrao de explorar seus limites e possibilidades2 O termo JustIacute(a Transicional se concretizou a partir dos processos de transirao poliacutetica envolvendo a mudanra de regimes ditatoriais ou autoritaacuterios em direrao de formas democraacuteticas de govemo ou de situaroes de conflito armado ou de violencia poliacutetica em direrao apaz3 Os cenaacuterios referidos sao bem conhecidos Remetemshynos a acontecimentos processos situar6es ou periacuteodos histoacutericos profundamente traumaacuteticos Os atores que intervem na realizarao do crime perpetra m violaroes aos direitos humanos produzem vioshylencia ou atuam de forma delitiva e possuem caraacuteter poliacutetico urna vez que haacute o emprego de aparatos ou instiacutetuiroes estatais paraestatais ou de grupos paramilitares guerrilheiros ou terroristas Os instrumentos habituais de se fazer justira estabelecer a responsabilidade indivishydual comprovar os delitos definir as penas proporcionalmente e aplicaacuteshylas e se for o caso compensar a viacutetima sao superados pela magnitude dos crimes ou enfrentam enormes dificuldades para resolve-los em todas as suas dimensoes por meio da viacutea judicial Os acontecimentos referidos apresentam em qualquer caso exigencias que ultrapassam o ambito judicial Sao exigencias morais e poliacuteticas que demandam instrumentos e procedimentos diversos

1 Tradu~ao de Pedro Buck 2 Este artigo se insere no Projeto de Pesquisa Filosofia poacutes-Holocausto

perversas financiado pelo Programa Nacional I+D+l do MinisterIo

de suas

Inovaltao (FFI2009-09368) J O TAPIAS CG (Ed) Justicia Transiciacuteona teoriacutea y praxis Bogotaacute Editorial Universidad

de Rosario 2006 ELSTER J Rendicioacuten de cuentas la Justicia Transicional en nersnectiva histoacuterica Buenos Aires Katz 2006

23 iexclOSEacute CARLOS MORJRA DA SILVA FILHO PAULOABRAO MARCELOD TORELLY (COORD) 22 1 jUSTIltA DE TIltAN5[ltAo NAS AMEacuteRICASmiddotmiddot OLIARESINTERDISCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROES DE RFFTIVAltAacuteO

Um dos acontecimentos indubitavelmente extremo que mais influenciou nas transforma~Oes ocorridas no discurso juriacutedico-poliacutetico que confluiu na proposta de Justi~a Transicionat foi o do genociacutediacuteo4

Por meio do extermIacutenio genocida pretende-se a aniquiacutela~ao fiacutesica dos indiviacuteduos em razao de seu pertencimento a um dado grupo seja este real ou arbitrariamente estabelecido de forma que todos os membros deste estejam automaticamente amea~ados sem que qualquer decisao de seus membros possa lhes salvar dessa amea~a No genociacutedio realiza-se urna redu~ao massiva dos membros da espeacutecie humana a puros objetos carentes de humanidade a meros objetos que podem ser liquidados e feiacutetos desaparecer sem que o seu olhar remeta a perten~a comum a espeacutecie e ao imperativo moral de nao indiferen~a que a sela

Talvez nenhum genociacutedio tenha alcan~ado as dimensoes da Shoah5 Sua singularidade se encontra nao apenas no seu nuacutemero de viacutetimas e meacutetodos burocraacuteticos e industriais de aniquila~ao que foram empregados mas tambeacutem na decisao sem precedentes e respaldada com toda a autoridade de um Estado de eliminar completamente um grupo humano inc1uindo idosos mulheres e crian~as se possiacutevel sem deixar rastros e de liberar todos os recursos estatais disponiacuteveis para executar essa decisao Como afrontar um acontecimento tao descomunal de violencia e horror

Cf FEIERSTEIN D El genocidio como praacutectica social entre el nazismo y la experiencia argentina Buenos Aires FCE 2007 Esse autor dassifica o genocidio moderno a partir de sua concepoao corno novo paradigma da violencia poliacutetica em constituiacutente (estaacute a servilto da garantiacutea da homogeneidade da populaao por meio da aniquilaao daqueles grupos sociais excluiacutedos do pacto poliacutetico fundamental do ente estatal) colonialisla (estaacute a servio da apropriaao dos recursos naturais e da garantiacutea no seu caso do dominio sobre a populaltao aut6ctone sobrevivente visa a aniquilaoiio da populaao indiacutegena) poacutesshycolonial (emprega-se na luta contra os movimentos de emancipaao colonial) reorganizador (o exterminio estaacute a servio da redefiniao das rela5es sociais em um dado marco estatal com vistas a impedir sua transformaltiio cm um sentido emancipador) Este caraacuteter parashydigmaacutetico do genociacutedio tambeacutem se fez notar em sua significaltiio para a construiio de urna cultura poliacutetica cosmopolita da memoacuteria a partir da confrontaao com a cataacutestrofe de Auschwitz Referida cultura caminha em conjunto com o crescente valor simboacutelico da Declaraao Universal dos Direitos Humanos ou na universaliza30 do ~Onceito de crimes contra a humanidade Trata-se de urna nova sensibilidad e frente aperseguioao humilhaao oacutedio por razoes eacutetnicas religiosas ou polfticas frente aos crimes e injustias do passado frente asignificaao poliacutetica da responsabilidade e da culpa em relaao a esse passado Isso abriu urna brecha importante na concepao do direito e das relaltuumles entre os Estados Os Estados soberanos jaacute nao podem ser o fundamento uacutenico do direito e da justia As viola6es dos direitos humanos se transformaram em um assunto de interesse de todos (d LEVY D SZNAlDER N Erinnerung im globaler Zeitalter der Holocaust Frankfurt aM Suhrkamp 2007) Em sentido parecido mas mais criacutetico em relaao a esse processo (cf HUYSSEN A En busca defuturo perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten Meacutexico FCE 2002 p 17 el seq) Holocausto do povo judeu (NT)

JOSEacute A 7AMORA

HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E jUSTI(A DA JUSTI(A TRANSIOONAL A jUsmA ANAMNEacuteTICA

A justi~a poacutes-guerra (Julgamento de Nuremberg) centrou-se nos altos dirigentes da Alemanha nazista (611 pessoas encarceradas das quais apenas tres dirigentes mostraram arrependimento Albert Speer Hans Frank e Baldur von Schirach) Mas seria possiacutevel dar-se a questao por resolvida diante de um nuacutemero reduzido de execu~Oes O que dizer da responsabilidade de outros setores sociais os quais com suas condutas individuais ou coletivas toleraram sustentaram ou colaboraram com o extermiacutenio O processo de desnazifica~ao tamshypouco se apresentou como urna resposta adequada a essa rede intrinshycada de complexidad es Foram identificados cerca de 100000 nazistas dos quais foram julgados 6487 condenados 6197 por assassinato ou cumplicidade mas apenas 163 penas perpeacutetuas foram cominadas Estaacute mais que justificada a suspeita de que o processo de desnazifica~ao atuou como um mecanismo de expia~ao do resto da popula~ao cuja incapacidade para o luto logo foiacute associada ao chamado milagre ecoshynomico alemao A forma~ao de um tribunal internacional apareceu como a medida mais adequada ao tipo de crime perpetrado e as suas dimenshysoes mas este contribuiu para que se percebesse que sua atua~ao foi a de urna justi~a organizada pelos vencedores e portanto cega diante de suas proacuteprias cumplicidades seus possiacuteveis atos criminais seus proacuteprios excessos tomando-se assim incapaz de envolver a popula~ao alema na busca pela verdade e pela assun~ao de responsabilidades6

Ademais a Shoah permaneceu esfumada no conjunto de horror dos crimes de guerra As viacutetimas judias quase passaram despercebidas como viacutetimas

As coisas nao sao muito mais faacuteceis quando nos referimos a comunidades fraturadas pela violencia e pela viola~ao sistemaacutetica dos direitos humanos Na maioria dos casos apoacutes a finaliza~ao dos conflitos armados ou apoacutes a transi~ao de regimes ditatoriais em demoshycracias mais ou menos fraacutegeis foram apresentadas exigencias semeshylhantes de conhecer o passado em sua integridade de que o conjunto da sociedade adquira plena consciencia dos crimes perpetrados de impedir a impunidade dos executores e responsaacuteveis pelo horror de que as viacutetimas recebam o reconhecimento social e se admita publishycamente o caraacuteter injusto da viola~ao a que padeceram e em alguns casos que sejam compensadas materialmente por isso

A importancia de conhecer a verdade do que aconteceu se justishyfica pelo fato de que muito frequentemente o crime eacute acompanhado por

CL REICHEL P Vergangenheitsbewiiacuteltigung in Deutschland die Auseinandersetzung mit der NS-Diktatur von 1945 bis heure Munique Beck 2001

JOSEacute CARIOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUWABRAO MARCEW D TORELLY (CClORD) 24 jUSl1ltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS - OIRARES INTERDTSClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROacuteILS DE EFE1IVAltAO

praacuteticas de ocultaao e esquecimento que asseguram sua impunidade desvalorizar ou criminalizar a memoacuteria infundir o medo e obrigar o esquecimento para poder sobreviver ocultar fatos e destruir provas escrever a histoacuteria pela perspectiva dos violadores etc Por isso o que as viacutetimas reclamam em primeiro lugar eacute que a verdade seja conheshycida Conhecer os fatos em sua integridade eacute o primeiro passo para possibilitar a requalificaltao moral da injustia sofrida e uma revisao dos julgamentos morais sobre viacutetimas e violadores

As viacutetimas demandam apoacutes o reconhecimento da verdade que haja o fim da impunidade que se falta justi-a Os violadores obtiveram vantagens por meio do crime construiacuteram seu presente sobre a injusshyti-a cometida e pretendem assegurar um futuro que os permita seguir vivendo corno se nada houvesse ocorrido A condena-ao dos fatos e dos responsaacuteveis eacute imprescindiacutevel para assegurar a verdade do crime Sem essa condena-ao a verdade revelada se toma refeacutem de negocialtoes pautadas em interesses ou em indiferen-as relativizadoras Pensar em uma recomposiao eacutetica da sociedade fragilizada pela violencia em urna convivencia fundamentada na igualdade e na justi-a em uma ordem que rompa com as tramas sociais do crime etc eacute impossiacutevel sem que haja o seu tratamento judicial Sem isso tampouco eacute possiacutevel pensar em urna reintegra-ao social dos violadores

Tao relevante corno acabar com a impunidade eacute a compensaao das viacutetimas Um conceito de justia que nao seja meramente punitishyvo que nao esteja centrado exclusivamente no castigo dos violadores deve estar acompanhado de medidas ativas que contribuam para melhorar a situa-ao das viacutetimas Estas exigem sair do buraco social e histoacuterico no qual seus carrascos pretenderam enterraacute-Ias Eacute necessaacuterio que sua visibilidade seja possibilitada bem corno seu protagonismo social eacute necessaacuterio criar condiacuteoes que tomem possiacutevel que refaam seus projetos de vida Sem essa reabilitaltao das viacutetimas eacute impossiacutevel reconciliaacute-las as sociedades e construir esse futuro distinto que ressoa na sensaltao de nunca mais tantas vezes repetida Para construir um futuro comum toma-se necessaacuterio afirmar a centralidade das viacutetimas reconhecer a importancia do que foi negado pela violencia e pelo crime Mas nao se trata apenas de urna reabilitaao das pessoas que foram viacutetimas de dano Toma-se necessaacuterio remover as causas estruturais e culturais da violencia7

7 Nao se deve esquecer que as grandes matamas modernas foram organizadas gratas ao juridicismo burocraacutetico e realizadas por pessoas comuns e honestas Como afirma P Legendre Ha criminalidade burocraacutetica pesteia a honestidade (O imperdoaacutevel

JOSEacute A ZAMORA I 25 HISTOacuteRlA MEMOacuteR1A E jUS11ltA DA jUSTIltA TRANSIC10NAL A jtJS11ltA ANAMNfTlCA

Vimos a servilto dessas exigencias a constituiltao de comissoes ad hoc em diversos paiacuteses cujos resultados estiveram condicionados a muacuteltiplos fatores caracteriacutesticos das respectivas transioes poliacuteticas e dos equiliacutebrios de poder entre as partes em litiacutegio Na maioria dos casos as JI cornissoes da verdade foram produzidas em um contexto poliacutetico em que os antigos violadores e os grupos sociais beneficiados ou responsaacuteveis pela violencia mantinham urna importante capacidade de influencia e ameaa Por vezes eram transiltoes mais ou menos acordadas pelos quais as for-as poliacuteticas que sustentavam a ditadura pretendiam assegurar sua impunidade em troca de urna retirada parcial do poder ou de mudan-as moderadas na ordem existente Em outros casos as partes contestadoras e as responsaacuteveis pelos delitos e vulnera-oes aos direitos humanos pactuavam urna impunidade muacutetua Nao pode parecer estranho pois que as recomenda-oes dessas comissoes raramente se fizeram cumprir ou que inclusive tenham sido limitadas por leis indultos ou anistias concedidas aos delitos e crimes perpetrados8

Nos processos de transiao poliacutetica a correlaao de foras impede que exigencias radicais pela verdade justilta e reabilitaao das viacutetimas se faam valer A fragilidade do poder decorrente da transiltao poliacutetica dificulta a aplica-ao rigorosa de urna justia punitiva Os violadores seguem detendo poder e exigem quea paacutegina seja virada para ceder parte desse poder para que as violaltOes dos direitos sejam cessadas ou para que a convivencia seja reconstruiacuteda O pre-o pela cessao do poder eacute o perdao na forma de esquecimento o qual nao eacute mais do que urna forma de se assegurar a impunidade Outras vezes eacute a falta de meios para investigar julgar ou cominar penas que conduz a busca por caminhos alternativos Em outras situaltoes se trata de urna questao de prudencia poliacutetica Os violadores formam parte da sociedade talvez urna parte numericamente significativa A sociedade nao pode prescindir de suas capacidades e recursos caso queira evitar o colapso Assim torna-se necessaacuterio que eles sejam implicados na

InABEL O (Ed) [l perdoacuten quebrar la deuda y el olvido Madrid Caacutetedra 1992 p 26) f possiacutevel responsabilizar judicialmente as burocracias criminosas Estaacute claro que a justilta e o perdao nao podem ser urn retomo a normalidade porque essa normalidade estaacute comprometida corn a violencia e com o crime de urna forma radical Eacute preciso acabar com a neutralizaao moral das burocracias e da estrutura institucional dos Estados

8 Cf MARTIN BERISTAIN C Justicia y reconciliacioacuten el papel de la verdad y la justicia en la reconstruccioacuten de sociedades fracturadas por la violencia Bilbao Hegoa 2000 p 12 el seq SCHABAS WA Comisiones de la verdad y memoria In GOacuteMEZ ISA F (Dir) [ derecho a la memoria Iruacuten Alberdania 2006 p 101-112

27 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIO IAULOABRAO MARCELOD TORELLY (COORD)

26 I iexclUSTIltA DETRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRlCAS-OLHARES INTERDlSCIPLlNARES fUNDAMENTOS E PADROacuteES DE FFETIVAltAO

constrwao de um futuro compartilhado Eacute assim que se apela de forma instrumental a reconciliarao e ao perdao como componente de urna Justira Transicional ou reconstrutiva Em realidade estariacuteamos perante urna retoacuterica poliacutetica do perdao9

Junto a essas razoes estrateacutegicas encontramos outras razoes mais profundas que tambeacutem devem ser levadas em considerarao Os acontecimentos processos situaroes e periacuteodos histoacutericos em considerarao ultrapassam a possibilidade de tratamento por meio de urna justira punitiva Ainda que essa justira seja necessaacuteria nao haacute sistema judicial capaz de fazer frente a crimes tao monstruosos e em massa E nao eacute somente urna questao de disponibilidade de meios e de poder para aplicaacute-Ios mas tambeacutem urna questao de adequarao dos meios a realidade Como encontrar e aplicar um castigo proporcional Eacute possiacutevel restabelecer dessa maneira um equiliacutebrio entre diacutevida e compensarao Mais ainda urna justilta focada na puniltao do culpashydo concede um valor secundaacuterio as viacutetimas relegando-as a um papel de instrumento probatoacuterio de meros testemunhos da culpabilidade do violador mas nao como testemunhas de seu proacuteprio sofrimento da verdadeira dimensao do crime das exigencias de repararao e da projerao de um futuro sob urna perspectiva diferente lO Diante disso torna-se claro que nao eacute possiacutevel abordar as questoes da Justira Transhysicional sem colocar as viacutetimas no centro

Os limites da justira punitiva contudo nao se fazem evidentes apenas em relarao aos violadores e as viacutetimas Quando nos deparamos com um genoddio os crimes de urna ditadura ou ao horror de urna guerra civil nao apenas ternos de trataacute-Ios como urna violencia direta (violarao aos direitos humanos tortura explorarao selvagem assassishynatos sistemaacuteticos aniquilarao em massa etc) mas tambeacutem como urna violencia estrutural e culturalll Nao basta castigar judicialmente ou

~ retoacuterica do perdiio enquanto amaacutelgama metafoacuterica difiacutecilmente passiacutevel de descriltiio histoacuterica se encarna como urna retoacuterica pela reconcilialtiio da fratemidade nacionaL Nesta loacutegica inserem-se os processos de anistia em favor de perpetradores violadores e responsaacuteveis acompanhados pela exigencia de um bem comum supremo o patriotismo nacional enraizado em fundamentos de seguranlta estatal [MARTIacuteNEZ DE BRIN GAS A De la ausencia de recuerdos y otros olvidos intencionados una lectura poliacutetica de los secuestros de la memoria In GOacuteMEZ ISA F (Dir) El derecho a la memoria lruacuten Alberdania 2006 p 275] S Lefranc sublinha a pluralidade de retoacutericas pelo perdao segundo os atores que participam dos processos de Justi~a Transicional (Poliacuteticas del perdoacuten Madrid Caacutetedra

10 Sobre urna justilta centrada nas viacutetimas (cL MATE R Memoria de AuschwifZ actualidad moral y poliacutetica Madrid Trotta 2003 p 241 et seq) Cf GALTUNG J Tras la violencia 3R Reconstruccioacuten Reconciliacioacuten Resolucioacuten afronshytando los efectos visibles de la guerra y la violencia Bilbao Bazeak 1998

iexclOSEacute A ZAMORA

HISTOacuteRlA MEMOacuteRIA E JUSTlltA - DA JUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacutenCA

se for o caso conceder anistia aos responsaacuteveis pela violencia direta Como abordar as cumpliddades omissoes e indiferenras medrosas Como propiciar um processo de transformarao profunda que alcance tambeacutem essa rede intrincada de cumplicidades De onde nasceu a forra regeneradora capaz de produzir urna quebra das dinamicas de violencia e abertura ao novo Como impedir a continuidade da cultura (antissemitismo racismo classismo) que tornou possiacutevel a violencia direta

Se o conceito de Justira Transicional deve ser algo mais do que o equivalente a urna justuumla especial excepcional e transitoacuteria com o objetivo de reciclar o peso do passado de alcanrar pela via mais raacutepida e menos custosa urna estabilidade social e poliacutetica poacutesshytraumaacutetica entao devemos repensar sob a luz da experiencia social e poliacutetica do seacuteculo dos genociacutedios12 a significarao poliacutetica do sofrishymento a centralidade moral e poliacutetica das viacutetimas e a relarao entre memoacuteria e histoacuteria13

1 Significacao poliacutetica do sofrimento

O sofrimento se encontra nas raIacutezes da poliacutetica e do direito Essa afirmarao surpreendente e impactante de A Madrid exige assushymir urna perspectiva nao habitual sobre referidas construroes sociais que acostumamos ver mais sob a perspectiva da comunidade que as produz e eacute ao mesmo tempo produzida por elas e portanto a partir de urna necessidade de coesao ou de regularao do conflito essa perspecshytiva eacute encaberada a partiacuter da modernidade pela ideia reguladora do contrato social e de todos os componentes que o determinam (genese legitimidade garantiacuteas extensao etc) Mas o que essa afirmarao nos provoca eacute que olhemos qualquer modelo poliacutetico e juriacutedico examinado a partir dos criteacuterios que oferecem para encaminhar urna questao decisiva que fazer com o sofrimento - e pela maneira como se impoem ditos criteacuterios

Por vezes nos relacionamos com determinadas praacuteticas sociais sem atentar para as premissas que lhe servem de fundamento e com freq4encia tampouco refletimos sobre as consequencias que sao derivadas destas Naturalizamos determinados usos da dor ou

l Cf BRUNETEAU B El siglo de los genocidios violencias masacres y procesos genocidas desde Armenia a Ruanda Madrid Alianza 2005

13 Cf MATE R Tratado de la injusticia Rubiacute Barcelona Anthropos 2011 p 261 et seq MADRID A La poliacutetica y la justicia del sufrimiacuteento Madrid Trotta 2010 p 194

28 29 JOSE CARLOS MOREIRA DA SILVA F1UIO PAULa ABRAOMARCELO D TORELLY (COORD)

JUS11ltA DE TRANSJltAO NAS AMEacuteRlCAS-OLHARES INTERDISCIPUNARES fUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVACAo

certas uti1iza~oes do sofrimento como urna medida que o Estado pode aplicar servindo-se do marco juriacutedico do aparato judicial e das for~as de seguran~a Por outro lado tambeacutem existem sofrimentos e danos qualificados socialmente como injustos e em certa medida reparaacuteveis ou compensaacuteveis A mesma constru~ao do Estado de Direito pode ser vista como processo de limita~ao do dano e do sofrimento na mesma medida em que estes sao construiacutedos como injustos indevidos ou evishytaacuteveis E um passo mais adiante o Estado Social de Direito avaniexclou por este caminho nao apenas penalizando ou proibindo a produ~ao de determinados sofrimentos como tambeacutem impondo medidas para evitaacute-Ios reparaacute-Ios ou compensaacute-Ios

A imbricaiexclao entre violencia direito e poliacutetica eacute urna evidencia empiacuterica dificilmente negaacuteveL Urna vez que essa evidencia eacute estabeleshycida acostuma-se habitualmente a dirigir a ateniexclao aos principios sociais que tornam aceitaacutevel este viacutenculo entre poder e violencia a questao de sua legitimidade provenha esta dos procedimentos para estabelecer ditos principios ou dos fins que o poder persegue com o dano - e nao ao efeito de normalizaiexclao juriacutedica do sofrimento e da ordem social de que faz parte O mesmo poderiacuteamos dizer da mobilizaiexclao do direito contra as fontes de padecimento da populaiexclao Todo o aparato do Estado seu regime juriacutedico suas instituiiexcloes e administraiexcloes seus oacutergaos policiais e todos os seus entes estao envolvidos com aquilo que urna sociedade faz com o sofrimento e podem ser analisados a partir deste ponto de vista E bem sabemos que nem todos os sofrimentos e nem todas as pessoas que deles padecem sao reconhecidos da mesma maneira e na mesma medida O direito eacute um mecanismo fundamental de reconhecimento da dor e por outro lado eacute tambeacutem um mecanisshymo da sua invisibilizaiexclao ou perda de relevancia social Eacute evidente que na aiexclaO de diferenciar sao revelados o modelo sociopoliacutetico em que a diferenciaiexclao eacute baseada e por meio disso as estruturas de domishynaiexclao que imperam

Por outro lado tambeacutem resulta evidente que o sofrimento possui um caraacuteter fundante da ordem poliacutetica eacute dizer um papel de genese e sustentaiexclao dos viacutenculos da comunidade poliacutetica o que permite situaacute-Io como um dos fundamentos simboacutelicos dessa ordem A rela~ao entre genese e sustenta~ao dos viacutenculos eacute avalizada pela capacidade dos sacrificios passados em ativar a estrutura obrigacional eacute dizer a necessidade atual de assumir os sacrifiacutecios que a ordem social impoe Que os sofrimentos passados foram sofrimentos substitutivos serve de fundamento para a perpetuaiexclaO do caraacuteter substitutivo do sofrimento no presente Mas isso exige praticar urna seleiexclao e urna discrimina~ao

JOSEacute A ZAMORA

HlSTOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSnltA - DA iexclUSTI(A TRANSICIONAL AiexclUSTl(A ANAMNEacuteTICA

entre os sofrimentos que sao significativos e os que sao despreziacuteveis ou indiferentes para a ordem poliacutetica instituiacuteda A poliacutetica administra essa discrimina~ao entre o sofrimento dos nossos e o dos oUtros entre o sofrimento que haacute de proteger ou que se pode exigir como sacrifiacutecio daquele que se pode impor a outros ou perante o qual nao se assume qualquer responsabilidade Esclarecer essa 11 gestao dos sofrimentos supoe revelar e questionar ao mesmo tempo as rela~oes de poder entre vencedores e vencidos as rela~oes sociais de domina~ao A poliacutetica entre oUtras coisas eacute gestao do sofrimento que comeiexcla por determinar quais sofrimentos possuem um significado central e quais sao colocashydos a margem da organizaiexclao poliacutetica Isto concede a memoacuteria do sofrimento um caraacuteter eminentemente poliacutetico e urna enorme capashycidade de questionar o poder

Nenhum outro pensador demonstrou de forma tao aguda como Theodor W Adorno que o sofrimento produzido socialmente eacute o sinal de que a totalidad e social se impoe cegamente aos sujeitos singulares e ao mesmo tempo que eacute da experiencia do sofrimento que surge a possibilidade de se opor a totalidade social15 Por essa raza o o sofrimento eacute sempre um fenoacutemeno bifronte no qual o que eacute mais objetivo e o que eacute mais subjetivo resultam como duas caras de urna mesma moeda sofrimento eacute objetividade que pesa sobre o sujeito oque experimenta como o que eacute mais subjetivo dele sua expressao estaacute mediado objetivamente16 O sofrimento eacute a consequencia da esshycassez da repressao da pulsao da domina~ao de classe da explorashyiexclaO da violencia e da vontade de destruiiexclao Nao estamos pois ante urna invariante da condi~ao humana senao frente ao produto de urna sociedade falsa e de urna emancipa~ao fracassada O sofrimento eacute o resultado de urna coa~ao social objetiva mas ao mesmo tempo eacute urna experiencia absolutamente singular e singularizante eacute o mais subjetivo no sentido de que afeta o sujeito em sua mais extrema indishyvidualidade Isso concede ao sujeito que sofre urna relevancia objeshytiva na medida em que sua experiencia de sofrimento individual eacute ao mesmo tempo urna alavanca com a qual se abre urna brecha na totashylidade social coativa desmascarando a violencia social em seu caraacuteter coativo e destrutorf nomeando-a como violencia injusta

Theodor WAdorno encontra na literatura de Kafka um modelo do que pode ser essa criacutetica da COaiexclaO social a partir da experiencia

15 Cf ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 6 Hrsg von R Tiedemann Frankfurt aM Suhrkamp 1973 p 148

6 Id p 29

JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAo MARCELO D TORELLY (COORD)

30 I iexclUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDlSOPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

do sofrimento as feridas que a sociedade inflige ao indiviacuteduo sao lidas por ele como sinais cifrados da falsidade social como nega~6es a verdade [] Ele derruba a fachada tranquilizadora ante o excesso de sofrimento a qual se acomoda continuamente o controle racional 17 O valor das feridas sofridas pelo indiviacuteduo para penetrar a nega~ao e reconhed~-la como tal mostra a relevancia da enerva~ao corporal para o conhecimento Dita enerva~ao se comporta como um sismoacutegrafo que registra a negatividade da sociedade nas experiencias do sofrishymento Sem embargo isto nao quer dizer que ditas experiencias sejam urna garantia para a criacutetica da coa~ao social e da violencia estrutural ou poliacutetica pois a mesma sociedade desenvolve mecanismos para garantir seu esquecimento Como o proacuteprio Adorno reconhece forma parte do mecanismo de domina~ao proibir o conhecimento do sofrishymento por ele produzido18 A induacutestria cultural tem aqui urna de suas fun~6es especiacuteficas Disso vem o desespero de Adorno frente ao desaparecimento da consciencia da opressao e do sofrimento Como se pode reagir ante o fato de que o mundo realmente se transformou de tal maneira que jaacute nao se chega a ter consciencia do sofrimento [ ]19 A extin~ao da experiencia amea~a tambeacutem a experiencia da extin~ao da experiencia (do sofrimento)

Apesar de tudo a persistencia da experiencia do sofrimento da ferida que nao se pode estancar da memoacuteria da dor injusta abre permanentemente a possiblidade de nominar e combater o horror Eacutepor isso que o testemunho das viacutetimas de quem padeceu de um sofrishymento produzido socialmente um sofrimento evitaacutevel e injusto tem um valor poliacutetico de primeira ordem e um valor certamente criacutetico Tomar eloquente politicamente o sofrimento injusto eacute a forma mais poderosa de questionar as estrateacutegias de esquecimento e silenciamento que sao cuacutemplices das formas de violencia e domina~ao as quais ajudam a se reproduzir e se perpetuar Assim se tudo o que ternos dito ateacute aqui acerca da significa~ao poliacutetica do sofrimento estaacute correto entao se tem que defender e possibilitar urna centralidade moral e poliacuteshytica das viacutetimas Eacute somente por meio do reconhecimento dos direitos

17 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 10 [Aufzeichnungen zu Kafka] Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1977 p 262

18 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Negative DialektikJ Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 68

19 ADORNO TW et al Diskussion aus einem Seminar uumlber die Theorie der Beduumlrfnisse 1942 In HORKHEIMER M Gesammelte Schriften Bd 12 Hsrg von G Schmid-Noerr Frankfurt aM Fischer 1985 p 573

JOSEacute A ZAMORA I 31 HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E jUSTIltA - DA jUSTlltA TRANSIOONAL Aacute JUSTlltA ANAMNEacuteTICA

pendentes da viacutetima que se pode escapar da loacutegica de domina~ao que mascara ideologicamente seu hito histoacuterico como universalidade lograda para seguir produzindo viacutetimas destinadas a cair no po~o do esquecimento

2 Centralidade das viacutetimas

Toda pretensao de defini~ao acabada sobre o que ou quem eacute urna viacutetima estaacute condenada ao fracasso Nos conflitos em que eacute gerada a violencia estrutural ou singular sao colocados em praacutetica ao mesmo tempo discursos que legitimam dita violencia e que tambeacutem negam as viacutetimas a sua condi~ao A proacutepria condi~ao de viacutetima eacute urna condi~ao controvertida e em disputa tambeacutem porque existe a autovitimiza~ao ilegiacutetima Sem embargo isso nao retira todo o sentido e a efetividade da tentativa de reclamar centralidade as viacutetimas Na realiza~ao dessa reclama~ao tem-se que colocar em praacutetica necessariamente os argushymentos pelos quais se esclarece a condi~ao de viacutetima E para colocar esse processo em movimento basta urna condi~ao necessaacuteria para se falar de viacutetimas seu viacutenculo com a injusti~a Viacutetimas sao aquelas pessoas a quem se inflige injustamente um sofrimento produzido socialmente Evidentemente que isso pode parecer como um argumento circular sem saiacuteda em vez de ajudar Mas em realidade o que vem a ressaltar esse viacutenculo eacute a prioridade da experiencia da injusti~a que sempre eacute histoacuterica e concreta no momento de formular discursivamente as exishygencias de justi~a E se quem tem prioridade eacute a experiencia da injusti~a esta somente se pode fazer valer a partir das viacutetimas e por elas

Em todo o caso referir-se a centralidade das viacutetimas sup6e propor urna desloca~ao histoacuterica e poliacutetica de difiacutecil realiza~ao poi s a condi~ao de viacutetima parece estar associada justamente por um desshylocamento a periferia social seja porque sao convertidas em sacrifiacutecio necessaacuterio a constitui~ao sustenta~ao ou regenera~ao da comunidade poliacutetica - as viacutetimas proacuteprias seja para realizar e salvaguardar os interesses de dita comunidade frente a inimigos reais ou potenciais - as viacutetimas alheias Como destacou com implacaacutevel honestidade intelectual W BenjaIl)IacuteiacuteIacute em sua Teses sobre o conceito da histoacuteria tampouco os mortos estarao seguros ante o inimigo quando este ven~a E este inimigo nao tenha cessado de vencer 20 A histoacuteria costuma ser escrita pelos vencedores e pelos que tem poder para negociar os

20 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 1 [Uumlber den Begriff der GeschichteJ Hrsg von R H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p 695

I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILvA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

32 jUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

novos pactos poacutes-conflito nos quais viacutetimas passadas ou presentes raramente possuem poder para se fazer ouvir A vitimizaltao primaacuteria resultante da violeacutencia exercida diretamente se une a vitimizaltao secundaacuteria proveniente do desamparo do maltrato da alienaltao por parte daqueles convocados a servir em sua causa21 Que se pode dizer entao da centralidade das viacutetimas Em primeiro lugar dita centralidade tem um significado epistemoloacutegico O olhar da viacutetima tem urna capacidade proacutepria de verdade de revelaltao do existente e de penetraltao na loacutegica que o preside da qual carece a visao que comunga com o poder dos vencedores ou que se deixa ofuscar por seu fulgor Existe pois um mais de verdade experiencial pela proximidade aos efeitos destrutivos do poder aniquilador que imuniza tanto frente aos enganos de um ideal de objetividade cuacutemplice ao horror como frente a cegueira que se alimenta da frieza e da indiferenlta perante o destino infeliz dos outros Isto nao quer dizer que a viacutetima esteja livre de ofuscamentos e distorlt6es como a de contemplar a si mesma com os olhos de seus carrascos Mas haacute outra forma de quebrar o feitilto dessa perspectiva a qual pode sucumbir ateacute mesmo a proacutepria viacutetima O sofrimento experimentado de modo direto como visto eacute capaz de (voltar a) instaurar a distancia a visao que comunga com a injustilta e legitima a violeacutencia contra a viacutetima Ao menos para esta por meio da experieacutencia do sofrimento abre-Ihe a possibilidade de romper com o feitilto de legitimaltao de toda a injustilta

Essa perspectiva nao apenas possui um valor epistemoloacutegico como tambeacutem tem urna dimensao eacutetica e poliacutetica A partir dela as categorias da autonomia liberdade igualdade dignidade direitos humanos justilta etc que servem de fundamento para a ordem moral e poliacutetica da modernidade sao colocadas a prova e adquirem novo significado A poliacutetica eacute instada a fazer frente a tantas vidas frustradas a tanta violeacutencia gerada a tantos inocentes mortos mas tambeacutem a reclamar urna universalidade que nao se limita no presente daqueles que possuem voz e poder para negociar pactos entre os formalmente livres e iguais As viacutetimas sao quem pode oferecer a chave para se enfrentar o problema central da relaltao entre poliacutetica e violeacutencia sem cuja abordagem eacute ilusoacuterio pensar em um futuro de paz e de reconcilialtao Elas sao quem nos permite reconhecer a desigualdad e social como injustilta que nao nascemos iguais e livres

21 Cf VALLADOLID T Los derechos de las viacutectimas In MARDONES J M MATE R (Ed) La eacutetica ante las viacutectimas Rubiacute Barcelona Anthropos 2003 p 156 et seq

jOSEacuteAZAMORA I HISTOacuteRIA MEMOacuteRlA E jUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICJONAL Aacute jUSTIltA ANAMNEacuteTICA 33

que sao inumeraacuteveis os que se sobrecarregam com diacutevidas acumuladas com eXclus6es e marginalizalt6es herdadas e que nao haacute verdadeira igualdade e justilta a nao ser como resposta as injustiltas e desigualshydades existentes e persistentes no tempo

W Benjamin destacou com acuidade penetrante essa mudanlta de perspectiva a tradiltao dos oprimidos nos ensina que a regra eacute o estado de exceltao na qual vivemos22 A possibilidade de pensar conjuntamente regra e exceltao depende da adoltao da perspectiva dos oprimidos das viacutetimas da histoacuteria e nao simplesmente por solishydariedade a elas ainda que isto seja louvaacutevel sob urna perspectiva moral mas sim em honra a verdade desta histoacuteria Benjamin pretendia demonstrar o caraacuteter catastroacutefico de um horror que decorre de um modo regular e conforme a lei e para isso destacou as circunstancias nas quais o poder se impoacutes por meio do estado de exceltao que se conshyverteu em regra Trata-se pois de acentuar a conscieacutencia da excepshycionalidade do horror que seus defensores qualificam como estabilidade e legalidade

Mas para se levar em consideraltao a provocaltao das viacutetimas eacute preciso reconhecer o significado das contas em aberto com o passado e as exigeacutencias de justilta pendentes enquanto condiltao para quebrar a loacutegica da dominaltao que segue produzindo viacutetimas destinadas a cair no polto do esquecimento Urna mudanlta dessa natureza passa pelo enfrentamento do desafio que representam cataacutestrofes sociais e poliacuteticas desde a produltao industrial da morte nos campos de extershymiacutenio realizada com a pretensao de apagar qualquer tralto que pudesse recordaacute-Ia ateacute a produltao de milh6es de vidas tratadas como se fossem supeacuterfluas prescindiacuteveis ou descartaacuteveis presas da exclusao social ou da fome passando por inumeraacuteveis viacutetimas da violeacutencia beacutelica que as reduz a danos colaterais ou da violeacutencia poliacutetica que as convershyte em inimigo a eliminar para sustentar urna ordem considerada inquestionaacutevel ou imutaacutevel ou ainda para impor os interesses de um grupo ou de urna comunidade poliacutetica inteira contra aqueles que se pretende dominar ou conquistar

~

Na centralidade das viacutetimas se inspira um novo conceito de jusshytilta que se interpela pelos direitos negados no passado pela vigeacutencia do dano que elas sofreram pelos viacutenculos entre a injustilta presente e passada Fazer justilta nao consiste apenas em castigar o culpado mas tambeacutem em adotar a perspectiva das viacutetimas Isso sup6e em

22 BENJAMIN p 697

35

----------------------11 34 iexcl JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIo PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORIJ)

INfFRDlaIgtUlAiRES FUNIJAMENT05 E PADRUumlES DE EFETIVAltAO

primeiro lugar nao suplantar a realidade por um marco abstrato de regras pactuadas segundo criteacuterios de universalidade formal Os oprimidos e aqueles que sofreram injustiiexcla experimentaram com clara evideacutencia que sua singularidade nunca encontra guarida nessa universalidade Para eles a opressao e dominaiexclao nao sao situaiexcloes excepcionais de urna ordem garantida pelo direito mas sim a regra que perenemente se confirma Adotar a perspectiva das viacutetimas Iacutemshypede qualquer relativizaiexclao de seu sofrimento toda subordinaiexclao instrumental a sustentaiexclaO de urna ordem precipitadamente qualificada como justa Ademais existe um nexo tomado invisiacutevel entre aqueles que na histoacuteria foram privados de seus direitos sofreram injustamente e foram aniquilados sua contiacutenua postergaiexclao Para que haja justiiexcla eacute preciso in verter os papeacuteis As viacutetimas teacutem de passar ao primeiro plano sua visao sobre a realidade suas exigeacutencias suas esperaniexclas sua singular contribuiiexclao a um futuro projetado de costas para elas ou as suas costas Inclusive o significado do que parece irreparaacutevel tem de ser devolvido ao cenaacuterio da justiiexcla se eacute que queremos reivindicar com sentido o direito de todos a urna existeacutencia efetiva Para construir um mundo baseado na justiiexcla eacute imprescindiacutevel a memoacuteria

3 Memoacuteria e histoacuteria

A atualidade poliacutetica e cultural da memoacuteria nao deveria nos enganar sobre a dureza e as dificuldades associadas a determinadas memoacuterias Perante alguns crimes nao haacute nada que pareiexcla tao natushyral como o desejo ao esquecimento de virar a paacutegina2-1 se nao fosse pelas proacuteprias viacutetimas de cataacutestrofes sociais e poliacuteticas as quais nos atribuiacuteram o encargo de nao esquecer e nos responsabilizou com o dever de manter viva a memoacuteria das injustiiexclas acometidas Em seu

23 A op~o pelo esquecimento tem sido a preferencia no passar dos seacuteculos Somente a partir da Primeiacutera Guerra Mundial eacute que se produziu urna mudanca na cultura poliacutetica para dar espa~o a conviuumlao de que apenas a rernemoracao detalhada e nao maquiada dos crimes corridos e dos castigos aos autores responsaacuteveis pelos mesmos eacute capaz de quebrar o poder da violeacutencia sofrida no passado (d MEIER C Das Cebot zu vergessen urul die Unabweisbarkeit des Erinnems vorn offentlichen Umgang mit schlimmer VergangenheiL

Siedler 2010) O Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional firmado em 1945 entre Franca Estados Unidos Reino Unido e a Uniacuteao Sovieacutetica que fixou os princiacutepios e procedimentos pelos quais foram regidos os Julgamentos de Nuremberg e a eriaao da Corte Penal internacional representam duas referencias fundamentais dessa mudanca na cultura poliacutetica e apontam para o desenvolvimento de memoacuteriacuteas poacutesshynacionais inclinadas a integra~ao dos acontecimentos histoacutericos de caraacuteter negativo e vergonhosos a autoimagem dos Estados Sem embargo isto nao aplacou em absoluto o debate em tomo da relaao entre o dever da mernoacuteria e o direito ao esquecimento Id FERENCZI T (Dir) Devoir de meacutemoire droit aIoubli Brexelles Complexe 2002]

Ji

iexclOSriAZAMORA HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL A fUSTIltA ANAMNEacuteTICA

imaginaacuterio o esquecimento representa uma segunda injustiiexcla que se soma a jaacute sofrida sancionando-a Isso parece corresponder como se fosse a outra cara de uma mesma moeda com a inteniexclao de impor o esquecimento reconheCIacutevel aos perpetradores em seu afa de apagar os traiexclos do crime Nada resulta mais eloquente no caso extremo de Auschwitz do que a pretensao dos nazistas de nao apenas assassinar a todos os judeus mas tambeacutem de nao deixar rastro algum nem de suas viacutetimas nem do crime praticado24

A dificuldade da memoacuteria sobre acontecimentos traumaacuteticos produzidos pela violeacutencia extrema proveacutem do fato de que sua origem se encontra nao em urna recordaiexclao integrada ou integraacutevel mas sim em urna recordaiexclao deslocada urna recordaiexclao que dolorosashymente transmite o nuacutecleo da experieacutencia interna do trauma e ao mesmo tempo eacute incapaz de tornaacute-Io acessiacutevel como se tornam partiacutecipes e acessiacuteveis outras experieacutencias humanas Trata-se de uma dificuldade que os testemunhos revelam aquele que esteja disposto a escutar Essa recordaiexclao somente pode ser comunicada e ter significado para a memoacuteria individual e coletiva daqueles que nao tenham sido viacutetimas ou testemunhas diretas da violeacutencia caso estejam dispostos a pagar o preiexclo que acompanha esse SI dote Esse preiexclo comeiexcla com a atribuiiexclao de centralidade a viacutetima Assumir a responsabilidade desta difiacutecil

memoacuteria eacute indissociaacutevel da mudaniexcla radical epistemoloacutegica eacutetica poliacutetica e esteacutetica que passa pela referida centralidade Nada expressa melhor o novo imperativo categoacuterico poacutes-Auschwitz formulado por Theodor W Adorno na Dialeacutetica negativa de ordenar o pensamento e a aiexclao tomando como ponto de inflexao essa cataacutestrofe de forma que o que se diga pense e aja seja para evitar que algo semelhante possa ocorrer O sofrimento dos outros se converte assim no criteacuterio derrashydeiro da verdade da justiiexcla do gozo nao disciplinado do bem25 Essa

24 Essa intencao de eliminar todos os rastros de nao deixar prava eacute o traco que define para P Vidal-Naquet a verdadeira singularidade de Auschwitz o que ele charna de negacao do crime dentro do crime (Les jui[s la meacutemoiacutere el le preacutesenllI Pariacutes La Decouverte 1991 p 416) Tarnbeacutem nesse mesmo sentido K Mate (Tratado sobre la injusticia Rubiacute Barcelona Anthrapos 2010 p 191et seq)

25 Evidentemente isto suscita exigencias associadas dirigidas ateoriacutea e apraacutexis Mio se trata de gerar urna metafiacutesica negativa a partir daquilo que alguns chamam de mal radical ou de uma espeacutecie de religiao civil na qual inevitavelmente as viacutetimas sao novamente instrumentalizadas (er TRAVERSO K El passado instrucciones de uso tistoria memoria

Madrid Barcelona Marcial Pons 2007 p 69-74) A rnudan~a epistemoloacutegica poliacutetica e esteacutetica exigida pela memoacuteria das viacutetimas passa por urna teoria do conheshy

cimento da racionalidade e da verdade asua altura e tambeacutem por urna teoria da socieshydade urna filosofia moral e poliacutetica urna teoria esteacutetica etc que partam da quebra que representa a violencia exerciacuteda contra elas

37 iexclOSEacute CARLOS MOIEIRA l)A SILVA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (CCXlRD) 36 iexclUSTIltA DE TRANSlltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDISClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADR)E5 DE EFETIVAltAo

seria a condiltao de possibilidade da comunicabilidade da recordaltao deslocada dos traumas histoacutericos Aqui estaacute a chave de urna razao anamneacutetica dificilmente instrumentalizaacutevel pelas poliacuteticas da memoacuteria a servilto da legitimaltao de determinadas ordens sociais ou de atores que competem pela hegemonia dentro destas O que resulta definitivo para essa razao anarnneacutetica eacute a difiacutecil recordaltao do sofrimento alheio26

Por outro lado a memoacuteria que se responsabiliza pela recordaltao deslocada dos testemunhos da violeacutencia poliacutetica extrema eacute urna memoacuteria perigosa pois nela se quebra a ordem que permitiu e na qual ocorreu o horror Dita memoacuteria interrompe o curso normal do tempo contradiz seu avanlto calcado em um fundo de injustiltas acushymuladas reclama o direito do possiacutevel e mio realizado frente ao que se impos em uacuteltima instancia denuncia o constituiacutedo revelando seus custos Nessa memoacuteria podem ser realizadas pois os potenciais criacuteticos inscritos de maneira gerat na recordaltao do passado que corno apontara H Marcuse pode fazer surgir pontos de vista perigosos o que explicariacutea segundo ele por que a sociedade estabelecida parece temer os conteuacutedos subversivos da memoacuteria [ ]27 Mas eacute imshyportante destacar aqui que tampouco o sujeito dessa memoacuteriacutea estaacute a salvo do perigo que ela representa O sujeito que se constitui por meio da memoacuteria do sofrirnento alheio nao emerge corno urna totashylidade ideacutentica consigo mesmo mas siacutem corno um eu quebradilto e problemaacutetico Sua debilidade se torna patente desde o princiacutepio na figura da indisponibilidade da recordaltao deslocada No caso da memoacuteria traumaacutetica da viacuteoleacutencia extrema a soberaniacutea do sujeito sobre as recordaltoes eacute muito limitada Assistimos em muitos casos a sofriacutementos de pessoas que quiseram se desprender das recordaltoes que as atormentam e das quais nao conseguem se afastar Isso nada tem a ver com a nostalgia de um passado saudoso ou com a exaltaltao de um passado glorioso Sao recordaltoes que tomam de assalto o sujeito e nao quando ele quer mas siacutem quando as recordaltoes querem se assim for possiacutevel falar

26 A razao anamneacutetica adquire seu caraacuteter ilustrado e sua legiacutetima uruversalidade graas ao reconhecimento de que eacute guiada por urna determinada recordaltao em concreto pela recordaao do sofriacutemento pela memoria passionis Mas nao como a recordaao do sofrimento referido a um mesmo (a raiz de todos os conflitos) senao como a recordaao do sofrimento de outros como rememoraao puacuteblica do sofrimento alhcio incorporada de urna tal maneira ao uso puacuteblico da razao que Ihe imprima sua nota distintiva (METZ JB Memariacutea passiacuteonis una evocacioacuten provocadora en una sociedad pluralista Santander Sal Terrae 2007 p 214)

27 MARCUSE H Der eindimensionale Mensch Neuwid Berliacuten Luchterhand 1967 p 117

lOSEacute A ZAMORA A ANAMNFl1CA

W Benjamin tornando corno ponto de partida a meacutemoire involuntaire de Proust mas indo mais aleacutem em sua reflexao

R reivindishy

cou o papel das recordaltoes involuntaacuterias para ter acesso a verdade de acontecimentos e etapas largamente esquecidas Daiacute eacute que se tem seu iacutenteresse pela memoacuteria nao corno depoacutesito e registro senao corno rememoraltao corno atualizaltao iacutenstantanea corno fagulha Essa forma de memoacuteria nao vem a confirmar o poder do sujeito ou a reforltar o marco de convicltOes e representaltoes compartilhadas com um grupo Diferentemente da memoacuteria voluntaacuteria na qual o passado jaacute foi cravado e integrado na recordaltao normalizada na memoacuteriacutea involuntaacuteria o sofriacutemento aparece corno algo que vem de fora corno acrescido a conscieacutencia corno o concorrente do pensamento Isto eacute o que constituiacute a diacutealeacutetica da rememorariio Theodor W Adorno a formulou corno a exigeacutencia de tornar eloquente o sofrimento e para ele essa eacute a condiacuteltao de toda verdade Por isso Ita esperanlta nao eacute a recordaltao fixada senao o retomo do esquecido29 O esquecimento eacute corno urna espeacutecie de negativo fotograacutefico obscuro e produtivo da memoacuteria e da recordaltao Na dialeacutetica da rememoraltao trata-se de traduziacuter essa memoacuteria preacute-reflexiva as recordaltoes coletivas sem liquidaacute-Ia coiacutesa que ocorre quando ela eacute convertida em mero material de entretenimento ou de elaboraltao cientiacutefica

Longe dos clicheacutes positivos e negativos do passado com os quaiacutes nos acostumamos a encontrar na maioria dos debates sobre a memoacuteria a dial eacutetica da rememoraltao a que nos referirnos aquiacute tenta perceber e se reapropriar de um passado quebrado e tornaacute-Io precisamente naquele que foi subtraiacutedo da transmiacutessao na hiacutestoacuteria ou na memoacuteria cultural30 Corno nos mostrou W Benjamiacuten a histoacuteria dos sofrimentos somente se toma legiacutevel e experimentaacutevel corno hiacutestoacuterIacutea de esperanlta ao se romper com a continuidade histoacuterica tornando distaacutencia frente a tradiltao dos vencedores na qual se perpetuam os sofrimentos sob a figura do progresso implacaacutevel3l Daqui proveacutem o iacutempeto criacutetico

28 Cf SCHOTTKER D Erinnern In OPITZ M WIZISLA E (Ed) Benjamins Begriffe Bd 1

Frankfurt aM Suhrkamp 2000 p 262 et seq 29 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 11 [Zur Sch1ussszene des Faustl Hrsg von R

Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p138 AA nA rememoraltilo organizada aniquila aquilo que perdura precisamente ao conservaacute-lo

O instante fugaz somente eacute capaz de viver no esquecimento sussurrante sobre o qual urna vez que se projeta o raio que o faz acender querer possuir o instante jaacute se o perdeu (ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Miniacutema moralia) Hrsg von K Tiedemann el al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 127)

31 CE ZAMORA Joseacute A Diacutealeacutectica mesiaacutenica tiempo e interrupcioacuten en Walter Benjamin AMENGUAL G CABOT M VERMAL JL (Ed) Ruptura de la tradicioacuten estudios sobre Walter Benjamin y Martiacuten Heidegger Madrid Trotta 2008 p 114 et seq

I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

JOSEacute A ZAMORA

HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

j05Eacute A ZAMORA

HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

6 Ibid p 491

45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

iexclOSEacute A ZAMORA

HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

TRAUMAS SOCIAIS

MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

Realiza~ao

Faculdade de Direito da PUCRS

Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

COlECAo FORUM

JUSTI~A E DEMOCRACIA

Coordenador da Cole~ao

PauloAbrao

JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

MARCELO D TORELLY

Coordenadores

JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

14 1

LJ Belo Horizonte

jI r EDITORA ~ -orum

2013

r

COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

Conselho Editorial Conselho Editorial

Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

Pereira Marques Nelo

Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

Fernando Rossi Seacutergio Guerra

liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

Presidente e Editor

Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

Diagramatao Luiz Piacutementa

Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

-auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

1 Crirncs contra a Humanidade

Moreira da U

Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

SUMAacuteRIO

JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

PARTEI

HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

Referencias 59

EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

  • JAZam-Texto56
  • JAZam-Texto56b

    23 iexclOSEacute CARLOS MORJRA DA SILVA FILHO PAULOABRAO MARCELOD TORELLY (COORD) 22 1 jUSTIltA DE TIltAN5[ltAo NAS AMEacuteRICASmiddotmiddot OLIARESINTERDISCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROES DE RFFTIVAltAacuteO

    Um dos acontecimentos indubitavelmente extremo que mais influenciou nas transforma~Oes ocorridas no discurso juriacutedico-poliacutetico que confluiu na proposta de Justi~a Transicionat foi o do genociacutediacuteo4

    Por meio do extermIacutenio genocida pretende-se a aniquiacutela~ao fiacutesica dos indiviacuteduos em razao de seu pertencimento a um dado grupo seja este real ou arbitrariamente estabelecido de forma que todos os membros deste estejam automaticamente amea~ados sem que qualquer decisao de seus membros possa lhes salvar dessa amea~a No genociacutedio realiza-se urna redu~ao massiva dos membros da espeacutecie humana a puros objetos carentes de humanidade a meros objetos que podem ser liquidados e feiacutetos desaparecer sem que o seu olhar remeta a perten~a comum a espeacutecie e ao imperativo moral de nao indiferen~a que a sela

    Talvez nenhum genociacutedio tenha alcan~ado as dimensoes da Shoah5 Sua singularidade se encontra nao apenas no seu nuacutemero de viacutetimas e meacutetodos burocraacuteticos e industriais de aniquila~ao que foram empregados mas tambeacutem na decisao sem precedentes e respaldada com toda a autoridade de um Estado de eliminar completamente um grupo humano inc1uindo idosos mulheres e crian~as se possiacutevel sem deixar rastros e de liberar todos os recursos estatais disponiacuteveis para executar essa decisao Como afrontar um acontecimento tao descomunal de violencia e horror

    Cf FEIERSTEIN D El genocidio como praacutectica social entre el nazismo y la experiencia argentina Buenos Aires FCE 2007 Esse autor dassifica o genocidio moderno a partir de sua concepoao corno novo paradigma da violencia poliacutetica em constituiacutente (estaacute a servilto da garantiacutea da homogeneidade da populaao por meio da aniquilaao daqueles grupos sociais excluiacutedos do pacto poliacutetico fundamental do ente estatal) colonialisla (estaacute a servio da apropriaao dos recursos naturais e da garantiacutea no seu caso do dominio sobre a populaltao aut6ctone sobrevivente visa a aniquilaoiio da populaao indiacutegena) poacutesshycolonial (emprega-se na luta contra os movimentos de emancipaao colonial) reorganizador (o exterminio estaacute a servio da redefiniao das rela5es sociais em um dado marco estatal com vistas a impedir sua transformaltiio cm um sentido emancipador) Este caraacuteter parashydigmaacutetico do genociacutedio tambeacutem se fez notar em sua significaltiio para a construiio de urna cultura poliacutetica cosmopolita da memoacuteria a partir da confrontaao com a cataacutestrofe de Auschwitz Referida cultura caminha em conjunto com o crescente valor simboacutelico da Declaraao Universal dos Direitos Humanos ou na universaliza30 do ~Onceito de crimes contra a humanidade Trata-se de urna nova sensibilidad e frente aperseguioao humilhaao oacutedio por razoes eacutetnicas religiosas ou polfticas frente aos crimes e injustias do passado frente asignificaao poliacutetica da responsabilidade e da culpa em relaao a esse passado Isso abriu urna brecha importante na concepao do direito e das relaltuumles entre os Estados Os Estados soberanos jaacute nao podem ser o fundamento uacutenico do direito e da justia As viola6es dos direitos humanos se transformaram em um assunto de interesse de todos (d LEVY D SZNAlDER N Erinnerung im globaler Zeitalter der Holocaust Frankfurt aM Suhrkamp 2007) Em sentido parecido mas mais criacutetico em relaao a esse processo (cf HUYSSEN A En busca defuturo perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten Meacutexico FCE 2002 p 17 el seq) Holocausto do povo judeu (NT)

    JOSEacute A 7AMORA

    HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E jUSTI(A DA JUSTI(A TRANSIOONAL A jUsmA ANAMNEacuteTICA

    A justi~a poacutes-guerra (Julgamento de Nuremberg) centrou-se nos altos dirigentes da Alemanha nazista (611 pessoas encarceradas das quais apenas tres dirigentes mostraram arrependimento Albert Speer Hans Frank e Baldur von Schirach) Mas seria possiacutevel dar-se a questao por resolvida diante de um nuacutemero reduzido de execu~Oes O que dizer da responsabilidade de outros setores sociais os quais com suas condutas individuais ou coletivas toleraram sustentaram ou colaboraram com o extermiacutenio O processo de desnazifica~ao tamshypouco se apresentou como urna resposta adequada a essa rede intrinshycada de complexidad es Foram identificados cerca de 100000 nazistas dos quais foram julgados 6487 condenados 6197 por assassinato ou cumplicidade mas apenas 163 penas perpeacutetuas foram cominadas Estaacute mais que justificada a suspeita de que o processo de desnazifica~ao atuou como um mecanismo de expia~ao do resto da popula~ao cuja incapacidade para o luto logo foiacute associada ao chamado milagre ecoshynomico alemao A forma~ao de um tribunal internacional apareceu como a medida mais adequada ao tipo de crime perpetrado e as suas dimenshysoes mas este contribuiu para que se percebesse que sua atua~ao foi a de urna justi~a organizada pelos vencedores e portanto cega diante de suas proacuteprias cumplicidades seus possiacuteveis atos criminais seus proacuteprios excessos tomando-se assim incapaz de envolver a popula~ao alema na busca pela verdade e pela assun~ao de responsabilidades6

    Ademais a Shoah permaneceu esfumada no conjunto de horror dos crimes de guerra As viacutetimas judias quase passaram despercebidas como viacutetimas

    As coisas nao sao muito mais faacuteceis quando nos referimos a comunidades fraturadas pela violencia e pela viola~ao sistemaacutetica dos direitos humanos Na maioria dos casos apoacutes a finaliza~ao dos conflitos armados ou apoacutes a transi~ao de regimes ditatoriais em demoshycracias mais ou menos fraacutegeis foram apresentadas exigencias semeshylhantes de conhecer o passado em sua integridade de que o conjunto da sociedade adquira plena consciencia dos crimes perpetrados de impedir a impunidade dos executores e responsaacuteveis pelo horror de que as viacutetimas recebam o reconhecimento social e se admita publishycamente o caraacuteter injusto da viola~ao a que padeceram e em alguns casos que sejam compensadas materialmente por isso

    A importancia de conhecer a verdade do que aconteceu se justishyfica pelo fato de que muito frequentemente o crime eacute acompanhado por

    CL REICHEL P Vergangenheitsbewiiacuteltigung in Deutschland die Auseinandersetzung mit der NS-Diktatur von 1945 bis heure Munique Beck 2001

    JOSEacute CARIOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUWABRAO MARCEW D TORELLY (CClORD) 24 jUSl1ltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS - OIRARES INTERDTSClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROacuteILS DE EFE1IVAltAO

    praacuteticas de ocultaao e esquecimento que asseguram sua impunidade desvalorizar ou criminalizar a memoacuteria infundir o medo e obrigar o esquecimento para poder sobreviver ocultar fatos e destruir provas escrever a histoacuteria pela perspectiva dos violadores etc Por isso o que as viacutetimas reclamam em primeiro lugar eacute que a verdade seja conheshycida Conhecer os fatos em sua integridade eacute o primeiro passo para possibilitar a requalificaltao moral da injustia sofrida e uma revisao dos julgamentos morais sobre viacutetimas e violadores

    As viacutetimas demandam apoacutes o reconhecimento da verdade que haja o fim da impunidade que se falta justi-a Os violadores obtiveram vantagens por meio do crime construiacuteram seu presente sobre a injusshyti-a cometida e pretendem assegurar um futuro que os permita seguir vivendo corno se nada houvesse ocorrido A condena-ao dos fatos e dos responsaacuteveis eacute imprescindiacutevel para assegurar a verdade do crime Sem essa condena-ao a verdade revelada se toma refeacutem de negocialtoes pautadas em interesses ou em indiferen-as relativizadoras Pensar em uma recomposiao eacutetica da sociedade fragilizada pela violencia em urna convivencia fundamentada na igualdade e na justi-a em uma ordem que rompa com as tramas sociais do crime etc eacute impossiacutevel sem que haja o seu tratamento judicial Sem isso tampouco eacute possiacutevel pensar em urna reintegra-ao social dos violadores

    Tao relevante corno acabar com a impunidade eacute a compensaao das viacutetimas Um conceito de justia que nao seja meramente punitishyvo que nao esteja centrado exclusivamente no castigo dos violadores deve estar acompanhado de medidas ativas que contribuam para melhorar a situa-ao das viacutetimas Estas exigem sair do buraco social e histoacuterico no qual seus carrascos pretenderam enterraacute-Ias Eacute necessaacuterio que sua visibilidade seja possibilitada bem corno seu protagonismo social eacute necessaacuterio criar condiacuteoes que tomem possiacutevel que refaam seus projetos de vida Sem essa reabilitaltao das viacutetimas eacute impossiacutevel reconciliaacute-las as sociedades e construir esse futuro distinto que ressoa na sensaltao de nunca mais tantas vezes repetida Para construir um futuro comum toma-se necessaacuterio afirmar a centralidade das viacutetimas reconhecer a importancia do que foi negado pela violencia e pelo crime Mas nao se trata apenas de urna reabilitaao das pessoas que foram viacutetimas de dano Toma-se necessaacuterio remover as causas estruturais e culturais da violencia7

    7 Nao se deve esquecer que as grandes matamas modernas foram organizadas gratas ao juridicismo burocraacutetico e realizadas por pessoas comuns e honestas Como afirma P Legendre Ha criminalidade burocraacutetica pesteia a honestidade (O imperdoaacutevel

    JOSEacute A ZAMORA I 25 HISTOacuteRlA MEMOacuteR1A E jUS11ltA DA jUSTIltA TRANSIC10NAL A jtJS11ltA ANAMNfTlCA

    Vimos a servilto dessas exigencias a constituiltao de comissoes ad hoc em diversos paiacuteses cujos resultados estiveram condicionados a muacuteltiplos fatores caracteriacutesticos das respectivas transioes poliacuteticas e dos equiliacutebrios de poder entre as partes em litiacutegio Na maioria dos casos as JI cornissoes da verdade foram produzidas em um contexto poliacutetico em que os antigos violadores e os grupos sociais beneficiados ou responsaacuteveis pela violencia mantinham urna importante capacidade de influencia e ameaa Por vezes eram transiltoes mais ou menos acordadas pelos quais as for-as poliacuteticas que sustentavam a ditadura pretendiam assegurar sua impunidade em troca de urna retirada parcial do poder ou de mudan-as moderadas na ordem existente Em outros casos as partes contestadoras e as responsaacuteveis pelos delitos e vulnera-oes aos direitos humanos pactuavam urna impunidade muacutetua Nao pode parecer estranho pois que as recomenda-oes dessas comissoes raramente se fizeram cumprir ou que inclusive tenham sido limitadas por leis indultos ou anistias concedidas aos delitos e crimes perpetrados8

    Nos processos de transiao poliacutetica a correlaao de foras impede que exigencias radicais pela verdade justilta e reabilitaao das viacutetimas se faam valer A fragilidade do poder decorrente da transiltao poliacutetica dificulta a aplica-ao rigorosa de urna justia punitiva Os violadores seguem detendo poder e exigem quea paacutegina seja virada para ceder parte desse poder para que as violaltOes dos direitos sejam cessadas ou para que a convivencia seja reconstruiacuteda O pre-o pela cessao do poder eacute o perdao na forma de esquecimento o qual nao eacute mais do que urna forma de se assegurar a impunidade Outras vezes eacute a falta de meios para investigar julgar ou cominar penas que conduz a busca por caminhos alternativos Em outras situaltoes se trata de urna questao de prudencia poliacutetica Os violadores formam parte da sociedade talvez urna parte numericamente significativa A sociedade nao pode prescindir de suas capacidades e recursos caso queira evitar o colapso Assim torna-se necessaacuterio que eles sejam implicados na

    InABEL O (Ed) [l perdoacuten quebrar la deuda y el olvido Madrid Caacutetedra 1992 p 26) f possiacutevel responsabilizar judicialmente as burocracias criminosas Estaacute claro que a justilta e o perdao nao podem ser urn retomo a normalidade porque essa normalidade estaacute comprometida corn a violencia e com o crime de urna forma radical Eacute preciso acabar com a neutralizaao moral das burocracias e da estrutura institucional dos Estados

    8 Cf MARTIN BERISTAIN C Justicia y reconciliacioacuten el papel de la verdad y la justicia en la reconstruccioacuten de sociedades fracturadas por la violencia Bilbao Hegoa 2000 p 12 el seq SCHABAS WA Comisiones de la verdad y memoria In GOacuteMEZ ISA F (Dir) [ derecho a la memoria Iruacuten Alberdania 2006 p 101-112

    27 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIO IAULOABRAO MARCELOD TORELLY (COORD)

    26 I iexclUSTIltA DETRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRlCAS-OLHARES INTERDlSCIPLlNARES fUNDAMENTOS E PADROacuteES DE FFETIVAltAO

    constrwao de um futuro compartilhado Eacute assim que se apela de forma instrumental a reconciliarao e ao perdao como componente de urna Justira Transicional ou reconstrutiva Em realidade estariacuteamos perante urna retoacuterica poliacutetica do perdao9

    Junto a essas razoes estrateacutegicas encontramos outras razoes mais profundas que tambeacutem devem ser levadas em considerarao Os acontecimentos processos situaroes e periacuteodos histoacutericos em considerarao ultrapassam a possibilidade de tratamento por meio de urna justira punitiva Ainda que essa justira seja necessaacuteria nao haacute sistema judicial capaz de fazer frente a crimes tao monstruosos e em massa E nao eacute somente urna questao de disponibilidade de meios e de poder para aplicaacute-Ios mas tambeacutem urna questao de adequarao dos meios a realidade Como encontrar e aplicar um castigo proporcional Eacute possiacutevel restabelecer dessa maneira um equiliacutebrio entre diacutevida e compensarao Mais ainda urna justilta focada na puniltao do culpashydo concede um valor secundaacuterio as viacutetimas relegando-as a um papel de instrumento probatoacuterio de meros testemunhos da culpabilidade do violador mas nao como testemunhas de seu proacuteprio sofrimento da verdadeira dimensao do crime das exigencias de repararao e da projerao de um futuro sob urna perspectiva diferente lO Diante disso torna-se claro que nao eacute possiacutevel abordar as questoes da Justira Transhysicional sem colocar as viacutetimas no centro

    Os limites da justira punitiva contudo nao se fazem evidentes apenas em relarao aos violadores e as viacutetimas Quando nos deparamos com um genoddio os crimes de urna ditadura ou ao horror de urna guerra civil nao apenas ternos de trataacute-Ios como urna violencia direta (violarao aos direitos humanos tortura explorarao selvagem assassishynatos sistemaacuteticos aniquilarao em massa etc) mas tambeacutem como urna violencia estrutural e culturalll Nao basta castigar judicialmente ou

    ~ retoacuterica do perdiio enquanto amaacutelgama metafoacuterica difiacutecilmente passiacutevel de descriltiio histoacuterica se encarna como urna retoacuterica pela reconcilialtiio da fratemidade nacionaL Nesta loacutegica inserem-se os processos de anistia em favor de perpetradores violadores e responsaacuteveis acompanhados pela exigencia de um bem comum supremo o patriotismo nacional enraizado em fundamentos de seguranlta estatal [MARTIacuteNEZ DE BRIN GAS A De la ausencia de recuerdos y otros olvidos intencionados una lectura poliacutetica de los secuestros de la memoria In GOacuteMEZ ISA F (Dir) El derecho a la memoria lruacuten Alberdania 2006 p 275] S Lefranc sublinha a pluralidade de retoacutericas pelo perdao segundo os atores que participam dos processos de Justi~a Transicional (Poliacuteticas del perdoacuten Madrid Caacutetedra

    10 Sobre urna justilta centrada nas viacutetimas (cL MATE R Memoria de AuschwifZ actualidad moral y poliacutetica Madrid Trotta 2003 p 241 et seq) Cf GALTUNG J Tras la violencia 3R Reconstruccioacuten Reconciliacioacuten Resolucioacuten afronshytando los efectos visibles de la guerra y la violencia Bilbao Bazeak 1998

    iexclOSEacute A ZAMORA

    HISTOacuteRlA MEMOacuteRIA E JUSTlltA - DA JUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacutenCA

    se for o caso conceder anistia aos responsaacuteveis pela violencia direta Como abordar as cumpliddades omissoes e indiferenras medrosas Como propiciar um processo de transformarao profunda que alcance tambeacutem essa rede intrincada de cumplicidades De onde nasceu a forra regeneradora capaz de produzir urna quebra das dinamicas de violencia e abertura ao novo Como impedir a continuidade da cultura (antissemitismo racismo classismo) que tornou possiacutevel a violencia direta

    Se o conceito de Justira Transicional deve ser algo mais do que o equivalente a urna justuumla especial excepcional e transitoacuteria com o objetivo de reciclar o peso do passado de alcanrar pela via mais raacutepida e menos custosa urna estabilidade social e poliacutetica poacutesshytraumaacutetica entao devemos repensar sob a luz da experiencia social e poliacutetica do seacuteculo dos genociacutedios12 a significarao poliacutetica do sofrishymento a centralidade moral e poliacutetica das viacutetimas e a relarao entre memoacuteria e histoacuteria13

    1 Significacao poliacutetica do sofrimento

    O sofrimento se encontra nas raIacutezes da poliacutetica e do direito Essa afirmarao surpreendente e impactante de A Madrid exige assushymir urna perspectiva nao habitual sobre referidas construroes sociais que acostumamos ver mais sob a perspectiva da comunidade que as produz e eacute ao mesmo tempo produzida por elas e portanto a partir de urna necessidade de coesao ou de regularao do conflito essa perspecshytiva eacute encaberada a partiacuter da modernidade pela ideia reguladora do contrato social e de todos os componentes que o determinam (genese legitimidade garantiacuteas extensao etc) Mas o que essa afirmarao nos provoca eacute que olhemos qualquer modelo poliacutetico e juriacutedico examinado a partir dos criteacuterios que oferecem para encaminhar urna questao decisiva que fazer com o sofrimento - e pela maneira como se impoem ditos criteacuterios

    Por vezes nos relacionamos com determinadas praacuteticas sociais sem atentar para as premissas que lhe servem de fundamento e com freq4encia tampouco refletimos sobre as consequencias que sao derivadas destas Naturalizamos determinados usos da dor ou

    l Cf BRUNETEAU B El siglo de los genocidios violencias masacres y procesos genocidas desde Armenia a Ruanda Madrid Alianza 2005

    13 Cf MATE R Tratado de la injusticia Rubiacute Barcelona Anthropos 2011 p 261 et seq MADRID A La poliacutetica y la justicia del sufrimiacuteento Madrid Trotta 2010 p 194

    28 29 JOSE CARLOS MOREIRA DA SILVA F1UIO PAULa ABRAOMARCELO D TORELLY (COORD)

    JUS11ltA DE TRANSJltAO NAS AMEacuteRlCAS-OLHARES INTERDISCIPUNARES fUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVACAo

    certas uti1iza~oes do sofrimento como urna medida que o Estado pode aplicar servindo-se do marco juriacutedico do aparato judicial e das for~as de seguran~a Por outro lado tambeacutem existem sofrimentos e danos qualificados socialmente como injustos e em certa medida reparaacuteveis ou compensaacuteveis A mesma constru~ao do Estado de Direito pode ser vista como processo de limita~ao do dano e do sofrimento na mesma medida em que estes sao construiacutedos como injustos indevidos ou evishytaacuteveis E um passo mais adiante o Estado Social de Direito avaniexclou por este caminho nao apenas penalizando ou proibindo a produ~ao de determinados sofrimentos como tambeacutem impondo medidas para evitaacute-Ios reparaacute-Ios ou compensaacute-Ios

    A imbricaiexclao entre violencia direito e poliacutetica eacute urna evidencia empiacuterica dificilmente negaacuteveL Urna vez que essa evidencia eacute estabeleshycida acostuma-se habitualmente a dirigir a ateniexclao aos principios sociais que tornam aceitaacutevel este viacutenculo entre poder e violencia a questao de sua legitimidade provenha esta dos procedimentos para estabelecer ditos principios ou dos fins que o poder persegue com o dano - e nao ao efeito de normalizaiexclao juriacutedica do sofrimento e da ordem social de que faz parte O mesmo poderiacuteamos dizer da mobilizaiexclao do direito contra as fontes de padecimento da populaiexclao Todo o aparato do Estado seu regime juriacutedico suas instituiiexcloes e administraiexcloes seus oacutergaos policiais e todos os seus entes estao envolvidos com aquilo que urna sociedade faz com o sofrimento e podem ser analisados a partir deste ponto de vista E bem sabemos que nem todos os sofrimentos e nem todas as pessoas que deles padecem sao reconhecidos da mesma maneira e na mesma medida O direito eacute um mecanismo fundamental de reconhecimento da dor e por outro lado eacute tambeacutem um mecanisshymo da sua invisibilizaiexclao ou perda de relevancia social Eacute evidente que na aiexclaO de diferenciar sao revelados o modelo sociopoliacutetico em que a diferenciaiexclao eacute baseada e por meio disso as estruturas de domishynaiexclao que imperam

    Por outro lado tambeacutem resulta evidente que o sofrimento possui um caraacuteter fundante da ordem poliacutetica eacute dizer um papel de genese e sustentaiexclao dos viacutenculos da comunidade poliacutetica o que permite situaacute-Io como um dos fundamentos simboacutelicos dessa ordem A rela~ao entre genese e sustenta~ao dos viacutenculos eacute avalizada pela capacidade dos sacrificios passados em ativar a estrutura obrigacional eacute dizer a necessidade atual de assumir os sacrifiacutecios que a ordem social impoe Que os sofrimentos passados foram sofrimentos substitutivos serve de fundamento para a perpetuaiexclaO do caraacuteter substitutivo do sofrimento no presente Mas isso exige praticar urna seleiexclao e urna discrimina~ao

    JOSEacute A ZAMORA

    HlSTOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSnltA - DA iexclUSTI(A TRANSICIONAL AiexclUSTl(A ANAMNEacuteTICA

    entre os sofrimentos que sao significativos e os que sao despreziacuteveis ou indiferentes para a ordem poliacutetica instituiacuteda A poliacutetica administra essa discrimina~ao entre o sofrimento dos nossos e o dos oUtros entre o sofrimento que haacute de proteger ou que se pode exigir como sacrifiacutecio daquele que se pode impor a outros ou perante o qual nao se assume qualquer responsabilidade Esclarecer essa 11 gestao dos sofrimentos supoe revelar e questionar ao mesmo tempo as rela~oes de poder entre vencedores e vencidos as rela~oes sociais de domina~ao A poliacutetica entre oUtras coisas eacute gestao do sofrimento que comeiexcla por determinar quais sofrimentos possuem um significado central e quais sao colocashydos a margem da organizaiexclao poliacutetica Isto concede a memoacuteria do sofrimento um caraacuteter eminentemente poliacutetico e urna enorme capashycidade de questionar o poder

    Nenhum outro pensador demonstrou de forma tao aguda como Theodor W Adorno que o sofrimento produzido socialmente eacute o sinal de que a totalidad e social se impoe cegamente aos sujeitos singulares e ao mesmo tempo que eacute da experiencia do sofrimento que surge a possibilidade de se opor a totalidade social15 Por essa raza o o sofrimento eacute sempre um fenoacutemeno bifronte no qual o que eacute mais objetivo e o que eacute mais subjetivo resultam como duas caras de urna mesma moeda sofrimento eacute objetividade que pesa sobre o sujeito oque experimenta como o que eacute mais subjetivo dele sua expressao estaacute mediado objetivamente16 O sofrimento eacute a consequencia da esshycassez da repressao da pulsao da domina~ao de classe da explorashyiexclaO da violencia e da vontade de destruiiexclao Nao estamos pois ante urna invariante da condi~ao humana senao frente ao produto de urna sociedade falsa e de urna emancipa~ao fracassada O sofrimento eacute o resultado de urna coa~ao social objetiva mas ao mesmo tempo eacute urna experiencia absolutamente singular e singularizante eacute o mais subjetivo no sentido de que afeta o sujeito em sua mais extrema indishyvidualidade Isso concede ao sujeito que sofre urna relevancia objeshytiva na medida em que sua experiencia de sofrimento individual eacute ao mesmo tempo urna alavanca com a qual se abre urna brecha na totashylidade social coativa desmascarando a violencia social em seu caraacuteter coativo e destrutorf nomeando-a como violencia injusta

    Theodor WAdorno encontra na literatura de Kafka um modelo do que pode ser essa criacutetica da COaiexclaO social a partir da experiencia

    15 Cf ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 6 Hrsg von R Tiedemann Frankfurt aM Suhrkamp 1973 p 148

    6 Id p 29

    JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAo MARCELO D TORELLY (COORD)

    30 I iexclUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDlSOPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

    do sofrimento as feridas que a sociedade inflige ao indiviacuteduo sao lidas por ele como sinais cifrados da falsidade social como nega~6es a verdade [] Ele derruba a fachada tranquilizadora ante o excesso de sofrimento a qual se acomoda continuamente o controle racional 17 O valor das feridas sofridas pelo indiviacuteduo para penetrar a nega~ao e reconhed~-la como tal mostra a relevancia da enerva~ao corporal para o conhecimento Dita enerva~ao se comporta como um sismoacutegrafo que registra a negatividade da sociedade nas experiencias do sofrishymento Sem embargo isto nao quer dizer que ditas experiencias sejam urna garantia para a criacutetica da coa~ao social e da violencia estrutural ou poliacutetica pois a mesma sociedade desenvolve mecanismos para garantir seu esquecimento Como o proacuteprio Adorno reconhece forma parte do mecanismo de domina~ao proibir o conhecimento do sofrishymento por ele produzido18 A induacutestria cultural tem aqui urna de suas fun~6es especiacuteficas Disso vem o desespero de Adorno frente ao desaparecimento da consciencia da opressao e do sofrimento Como se pode reagir ante o fato de que o mundo realmente se transformou de tal maneira que jaacute nao se chega a ter consciencia do sofrimento [ ]19 A extin~ao da experiencia amea~a tambeacutem a experiencia da extin~ao da experiencia (do sofrimento)

    Apesar de tudo a persistencia da experiencia do sofrimento da ferida que nao se pode estancar da memoacuteria da dor injusta abre permanentemente a possiblidade de nominar e combater o horror Eacutepor isso que o testemunho das viacutetimas de quem padeceu de um sofrishymento produzido socialmente um sofrimento evitaacutevel e injusto tem um valor poliacutetico de primeira ordem e um valor certamente criacutetico Tomar eloquente politicamente o sofrimento injusto eacute a forma mais poderosa de questionar as estrateacutegias de esquecimento e silenciamento que sao cuacutemplices das formas de violencia e domina~ao as quais ajudam a se reproduzir e se perpetuar Assim se tudo o que ternos dito ateacute aqui acerca da significa~ao poliacutetica do sofrimento estaacute correto entao se tem que defender e possibilitar urna centralidade moral e poliacuteshytica das viacutetimas Eacute somente por meio do reconhecimento dos direitos

    17 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 10 [Aufzeichnungen zu Kafka] Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1977 p 262

    18 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Negative DialektikJ Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 68

    19 ADORNO TW et al Diskussion aus einem Seminar uumlber die Theorie der Beduumlrfnisse 1942 In HORKHEIMER M Gesammelte Schriften Bd 12 Hsrg von G Schmid-Noerr Frankfurt aM Fischer 1985 p 573

    JOSEacute A ZAMORA I 31 HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E jUSTIltA - DA jUSTlltA TRANSIOONAL Aacute JUSTlltA ANAMNEacuteTICA

    pendentes da viacutetima que se pode escapar da loacutegica de domina~ao que mascara ideologicamente seu hito histoacuterico como universalidade lograda para seguir produzindo viacutetimas destinadas a cair no po~o do esquecimento

    2 Centralidade das viacutetimas

    Toda pretensao de defini~ao acabada sobre o que ou quem eacute urna viacutetima estaacute condenada ao fracasso Nos conflitos em que eacute gerada a violencia estrutural ou singular sao colocados em praacutetica ao mesmo tempo discursos que legitimam dita violencia e que tambeacutem negam as viacutetimas a sua condi~ao A proacutepria condi~ao de viacutetima eacute urna condi~ao controvertida e em disputa tambeacutem porque existe a autovitimiza~ao ilegiacutetima Sem embargo isso nao retira todo o sentido e a efetividade da tentativa de reclamar centralidade as viacutetimas Na realiza~ao dessa reclama~ao tem-se que colocar em praacutetica necessariamente os argushymentos pelos quais se esclarece a condi~ao de viacutetima E para colocar esse processo em movimento basta urna condi~ao necessaacuteria para se falar de viacutetimas seu viacutenculo com a injusti~a Viacutetimas sao aquelas pessoas a quem se inflige injustamente um sofrimento produzido socialmente Evidentemente que isso pode parecer como um argumento circular sem saiacuteda em vez de ajudar Mas em realidade o que vem a ressaltar esse viacutenculo eacute a prioridade da experiencia da injusti~a que sempre eacute histoacuterica e concreta no momento de formular discursivamente as exishygencias de justi~a E se quem tem prioridade eacute a experiencia da injusti~a esta somente se pode fazer valer a partir das viacutetimas e por elas

    Em todo o caso referir-se a centralidade das viacutetimas sup6e propor urna desloca~ao histoacuterica e poliacutetica de difiacutecil realiza~ao poi s a condi~ao de viacutetima parece estar associada justamente por um desshylocamento a periferia social seja porque sao convertidas em sacrifiacutecio necessaacuterio a constitui~ao sustenta~ao ou regenera~ao da comunidade poliacutetica - as viacutetimas proacuteprias seja para realizar e salvaguardar os interesses de dita comunidade frente a inimigos reais ou potenciais - as viacutetimas alheias Como destacou com implacaacutevel honestidade intelectual W BenjaIl)IacuteiacuteIacute em sua Teses sobre o conceito da histoacuteria tampouco os mortos estarao seguros ante o inimigo quando este ven~a E este inimigo nao tenha cessado de vencer 20 A histoacuteria costuma ser escrita pelos vencedores e pelos que tem poder para negociar os

    20 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 1 [Uumlber den Begriff der GeschichteJ Hrsg von R H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p 695

    I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILvA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

    32 jUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

    novos pactos poacutes-conflito nos quais viacutetimas passadas ou presentes raramente possuem poder para se fazer ouvir A vitimizaltao primaacuteria resultante da violeacutencia exercida diretamente se une a vitimizaltao secundaacuteria proveniente do desamparo do maltrato da alienaltao por parte daqueles convocados a servir em sua causa21 Que se pode dizer entao da centralidade das viacutetimas Em primeiro lugar dita centralidade tem um significado epistemoloacutegico O olhar da viacutetima tem urna capacidade proacutepria de verdade de revelaltao do existente e de penetraltao na loacutegica que o preside da qual carece a visao que comunga com o poder dos vencedores ou que se deixa ofuscar por seu fulgor Existe pois um mais de verdade experiencial pela proximidade aos efeitos destrutivos do poder aniquilador que imuniza tanto frente aos enganos de um ideal de objetividade cuacutemplice ao horror como frente a cegueira que se alimenta da frieza e da indiferenlta perante o destino infeliz dos outros Isto nao quer dizer que a viacutetima esteja livre de ofuscamentos e distorlt6es como a de contemplar a si mesma com os olhos de seus carrascos Mas haacute outra forma de quebrar o feitilto dessa perspectiva a qual pode sucumbir ateacute mesmo a proacutepria viacutetima O sofrimento experimentado de modo direto como visto eacute capaz de (voltar a) instaurar a distancia a visao que comunga com a injustilta e legitima a violeacutencia contra a viacutetima Ao menos para esta por meio da experieacutencia do sofrimento abre-Ihe a possibilidade de romper com o feitilto de legitimaltao de toda a injustilta

    Essa perspectiva nao apenas possui um valor epistemoloacutegico como tambeacutem tem urna dimensao eacutetica e poliacutetica A partir dela as categorias da autonomia liberdade igualdade dignidade direitos humanos justilta etc que servem de fundamento para a ordem moral e poliacutetica da modernidade sao colocadas a prova e adquirem novo significado A poliacutetica eacute instada a fazer frente a tantas vidas frustradas a tanta violeacutencia gerada a tantos inocentes mortos mas tambeacutem a reclamar urna universalidade que nao se limita no presente daqueles que possuem voz e poder para negociar pactos entre os formalmente livres e iguais As viacutetimas sao quem pode oferecer a chave para se enfrentar o problema central da relaltao entre poliacutetica e violeacutencia sem cuja abordagem eacute ilusoacuterio pensar em um futuro de paz e de reconcilialtao Elas sao quem nos permite reconhecer a desigualdad e social como injustilta que nao nascemos iguais e livres

    21 Cf VALLADOLID T Los derechos de las viacutectimas In MARDONES J M MATE R (Ed) La eacutetica ante las viacutectimas Rubiacute Barcelona Anthropos 2003 p 156 et seq

    jOSEacuteAZAMORA I HISTOacuteRIA MEMOacuteRlA E jUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICJONAL Aacute jUSTIltA ANAMNEacuteTICA 33

    que sao inumeraacuteveis os que se sobrecarregam com diacutevidas acumuladas com eXclus6es e marginalizalt6es herdadas e que nao haacute verdadeira igualdade e justilta a nao ser como resposta as injustiltas e desigualshydades existentes e persistentes no tempo

    W Benjamin destacou com acuidade penetrante essa mudanlta de perspectiva a tradiltao dos oprimidos nos ensina que a regra eacute o estado de exceltao na qual vivemos22 A possibilidade de pensar conjuntamente regra e exceltao depende da adoltao da perspectiva dos oprimidos das viacutetimas da histoacuteria e nao simplesmente por solishydariedade a elas ainda que isto seja louvaacutevel sob urna perspectiva moral mas sim em honra a verdade desta histoacuteria Benjamin pretendia demonstrar o caraacuteter catastroacutefico de um horror que decorre de um modo regular e conforme a lei e para isso destacou as circunstancias nas quais o poder se impoacutes por meio do estado de exceltao que se conshyverteu em regra Trata-se pois de acentuar a conscieacutencia da excepshycionalidade do horror que seus defensores qualificam como estabilidade e legalidade

    Mas para se levar em consideraltao a provocaltao das viacutetimas eacute preciso reconhecer o significado das contas em aberto com o passado e as exigeacutencias de justilta pendentes enquanto condiltao para quebrar a loacutegica da dominaltao que segue produzindo viacutetimas destinadas a cair no polto do esquecimento Urna mudanlta dessa natureza passa pelo enfrentamento do desafio que representam cataacutestrofes sociais e poliacuteticas desde a produltao industrial da morte nos campos de extershymiacutenio realizada com a pretensao de apagar qualquer tralto que pudesse recordaacute-Ia ateacute a produltao de milh6es de vidas tratadas como se fossem supeacuterfluas prescindiacuteveis ou descartaacuteveis presas da exclusao social ou da fome passando por inumeraacuteveis viacutetimas da violeacutencia beacutelica que as reduz a danos colaterais ou da violeacutencia poliacutetica que as convershyte em inimigo a eliminar para sustentar urna ordem considerada inquestionaacutevel ou imutaacutevel ou ainda para impor os interesses de um grupo ou de urna comunidade poliacutetica inteira contra aqueles que se pretende dominar ou conquistar

    ~

    Na centralidade das viacutetimas se inspira um novo conceito de jusshytilta que se interpela pelos direitos negados no passado pela vigeacutencia do dano que elas sofreram pelos viacutenculos entre a injustilta presente e passada Fazer justilta nao consiste apenas em castigar o culpado mas tambeacutem em adotar a perspectiva das viacutetimas Isso sup6e em

    22 BENJAMIN p 697

    35

    ----------------------11 34 iexcl JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIo PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORIJ)

    INfFRDlaIgtUlAiRES FUNIJAMENT05 E PADRUumlES DE EFETIVAltAO

    primeiro lugar nao suplantar a realidade por um marco abstrato de regras pactuadas segundo criteacuterios de universalidade formal Os oprimidos e aqueles que sofreram injustiiexcla experimentaram com clara evideacutencia que sua singularidade nunca encontra guarida nessa universalidade Para eles a opressao e dominaiexclao nao sao situaiexcloes excepcionais de urna ordem garantida pelo direito mas sim a regra que perenemente se confirma Adotar a perspectiva das viacutetimas Iacutemshypede qualquer relativizaiexclao de seu sofrimento toda subordinaiexclao instrumental a sustentaiexclaO de urna ordem precipitadamente qualificada como justa Ademais existe um nexo tomado invisiacutevel entre aqueles que na histoacuteria foram privados de seus direitos sofreram injustamente e foram aniquilados sua contiacutenua postergaiexclao Para que haja justiiexcla eacute preciso in verter os papeacuteis As viacutetimas teacutem de passar ao primeiro plano sua visao sobre a realidade suas exigeacutencias suas esperaniexclas sua singular contribuiiexclao a um futuro projetado de costas para elas ou as suas costas Inclusive o significado do que parece irreparaacutevel tem de ser devolvido ao cenaacuterio da justiiexcla se eacute que queremos reivindicar com sentido o direito de todos a urna existeacutencia efetiva Para construir um mundo baseado na justiiexcla eacute imprescindiacutevel a memoacuteria

    3 Memoacuteria e histoacuteria

    A atualidade poliacutetica e cultural da memoacuteria nao deveria nos enganar sobre a dureza e as dificuldades associadas a determinadas memoacuterias Perante alguns crimes nao haacute nada que pareiexcla tao natushyral como o desejo ao esquecimento de virar a paacutegina2-1 se nao fosse pelas proacuteprias viacutetimas de cataacutestrofes sociais e poliacuteticas as quais nos atribuiacuteram o encargo de nao esquecer e nos responsabilizou com o dever de manter viva a memoacuteria das injustiiexclas acometidas Em seu

    23 A op~o pelo esquecimento tem sido a preferencia no passar dos seacuteculos Somente a partir da Primeiacutera Guerra Mundial eacute que se produziu urna mudanca na cultura poliacutetica para dar espa~o a conviuumlao de que apenas a rernemoracao detalhada e nao maquiada dos crimes corridos e dos castigos aos autores responsaacuteveis pelos mesmos eacute capaz de quebrar o poder da violeacutencia sofrida no passado (d MEIER C Das Cebot zu vergessen urul die Unabweisbarkeit des Erinnems vorn offentlichen Umgang mit schlimmer VergangenheiL

    Siedler 2010) O Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional firmado em 1945 entre Franca Estados Unidos Reino Unido e a Uniacuteao Sovieacutetica que fixou os princiacutepios e procedimentos pelos quais foram regidos os Julgamentos de Nuremberg e a eriaao da Corte Penal internacional representam duas referencias fundamentais dessa mudanca na cultura poliacutetica e apontam para o desenvolvimento de memoacuteriacuteas poacutesshynacionais inclinadas a integra~ao dos acontecimentos histoacutericos de caraacuteter negativo e vergonhosos a autoimagem dos Estados Sem embargo isto nao aplacou em absoluto o debate em tomo da relaao entre o dever da mernoacuteria e o direito ao esquecimento Id FERENCZI T (Dir) Devoir de meacutemoire droit aIoubli Brexelles Complexe 2002]

    Ji

    iexclOSriAZAMORA HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL A fUSTIltA ANAMNEacuteTICA

    imaginaacuterio o esquecimento representa uma segunda injustiiexcla que se soma a jaacute sofrida sancionando-a Isso parece corresponder como se fosse a outra cara de uma mesma moeda com a inteniexclao de impor o esquecimento reconheCIacutevel aos perpetradores em seu afa de apagar os traiexclos do crime Nada resulta mais eloquente no caso extremo de Auschwitz do que a pretensao dos nazistas de nao apenas assassinar a todos os judeus mas tambeacutem de nao deixar rastro algum nem de suas viacutetimas nem do crime praticado24

    A dificuldade da memoacuteria sobre acontecimentos traumaacuteticos produzidos pela violeacutencia extrema proveacutem do fato de que sua origem se encontra nao em urna recordaiexclao integrada ou integraacutevel mas sim em urna recordaiexclao deslocada urna recordaiexclao que dolorosashymente transmite o nuacutecleo da experieacutencia interna do trauma e ao mesmo tempo eacute incapaz de tornaacute-Io acessiacutevel como se tornam partiacutecipes e acessiacuteveis outras experieacutencias humanas Trata-se de uma dificuldade que os testemunhos revelam aquele que esteja disposto a escutar Essa recordaiexclao somente pode ser comunicada e ter significado para a memoacuteria individual e coletiva daqueles que nao tenham sido viacutetimas ou testemunhas diretas da violeacutencia caso estejam dispostos a pagar o preiexclo que acompanha esse SI dote Esse preiexclo comeiexcla com a atribuiiexclao de centralidade a viacutetima Assumir a responsabilidade desta difiacutecil

    memoacuteria eacute indissociaacutevel da mudaniexcla radical epistemoloacutegica eacutetica poliacutetica e esteacutetica que passa pela referida centralidade Nada expressa melhor o novo imperativo categoacuterico poacutes-Auschwitz formulado por Theodor W Adorno na Dialeacutetica negativa de ordenar o pensamento e a aiexclao tomando como ponto de inflexao essa cataacutestrofe de forma que o que se diga pense e aja seja para evitar que algo semelhante possa ocorrer O sofrimento dos outros se converte assim no criteacuterio derrashydeiro da verdade da justiiexcla do gozo nao disciplinado do bem25 Essa

    24 Essa intencao de eliminar todos os rastros de nao deixar prava eacute o traco que define para P Vidal-Naquet a verdadeira singularidade de Auschwitz o que ele charna de negacao do crime dentro do crime (Les jui[s la meacutemoiacutere el le preacutesenllI Pariacutes La Decouverte 1991 p 416) Tarnbeacutem nesse mesmo sentido K Mate (Tratado sobre la injusticia Rubiacute Barcelona Anthrapos 2010 p 191et seq)

    25 Evidentemente isto suscita exigencias associadas dirigidas ateoriacutea e apraacutexis Mio se trata de gerar urna metafiacutesica negativa a partir daquilo que alguns chamam de mal radical ou de uma espeacutecie de religiao civil na qual inevitavelmente as viacutetimas sao novamente instrumentalizadas (er TRAVERSO K El passado instrucciones de uso tistoria memoria

    Madrid Barcelona Marcial Pons 2007 p 69-74) A rnudan~a epistemoloacutegica poliacutetica e esteacutetica exigida pela memoacuteria das viacutetimas passa por urna teoria do conheshy

    cimento da racionalidade e da verdade asua altura e tambeacutem por urna teoria da socieshydade urna filosofia moral e poliacutetica urna teoria esteacutetica etc que partam da quebra que representa a violencia exerciacuteda contra elas

    37 iexclOSEacute CARLOS MOIEIRA l)A SILVA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (CCXlRD) 36 iexclUSTIltA DE TRANSlltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDISClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADR)E5 DE EFETIVAltAo

    seria a condiltao de possibilidade da comunicabilidade da recordaltao deslocada dos traumas histoacutericos Aqui estaacute a chave de urna razao anamneacutetica dificilmente instrumentalizaacutevel pelas poliacuteticas da memoacuteria a servilto da legitimaltao de determinadas ordens sociais ou de atores que competem pela hegemonia dentro destas O que resulta definitivo para essa razao anarnneacutetica eacute a difiacutecil recordaltao do sofrimento alheio26

    Por outro lado a memoacuteria que se responsabiliza pela recordaltao deslocada dos testemunhos da violeacutencia poliacutetica extrema eacute urna memoacuteria perigosa pois nela se quebra a ordem que permitiu e na qual ocorreu o horror Dita memoacuteria interrompe o curso normal do tempo contradiz seu avanlto calcado em um fundo de injustiltas acushymuladas reclama o direito do possiacutevel e mio realizado frente ao que se impos em uacuteltima instancia denuncia o constituiacutedo revelando seus custos Nessa memoacuteria podem ser realizadas pois os potenciais criacuteticos inscritos de maneira gerat na recordaltao do passado que corno apontara H Marcuse pode fazer surgir pontos de vista perigosos o que explicariacutea segundo ele por que a sociedade estabelecida parece temer os conteuacutedos subversivos da memoacuteria [ ]27 Mas eacute imshyportante destacar aqui que tampouco o sujeito dessa memoacuteriacutea estaacute a salvo do perigo que ela representa O sujeito que se constitui por meio da memoacuteria do sofrirnento alheio nao emerge corno urna totashylidade ideacutentica consigo mesmo mas siacutem corno um eu quebradilto e problemaacutetico Sua debilidade se torna patente desde o princiacutepio na figura da indisponibilidade da recordaltao deslocada No caso da memoacuteria traumaacutetica da viacuteoleacutencia extrema a soberaniacutea do sujeito sobre as recordaltoes eacute muito limitada Assistimos em muitos casos a sofriacutementos de pessoas que quiseram se desprender das recordaltoes que as atormentam e das quais nao conseguem se afastar Isso nada tem a ver com a nostalgia de um passado saudoso ou com a exaltaltao de um passado glorioso Sao recordaltoes que tomam de assalto o sujeito e nao quando ele quer mas siacutem quando as recordaltoes querem se assim for possiacutevel falar

    26 A razao anamneacutetica adquire seu caraacuteter ilustrado e sua legiacutetima uruversalidade graas ao reconhecimento de que eacute guiada por urna determinada recordaltao em concreto pela recordaao do sofriacutemento pela memoria passionis Mas nao como a recordaao do sofrimento referido a um mesmo (a raiz de todos os conflitos) senao como a recordaao do sofrimento de outros como rememoraao puacuteblica do sofrimento alhcio incorporada de urna tal maneira ao uso puacuteblico da razao que Ihe imprima sua nota distintiva (METZ JB Memariacutea passiacuteonis una evocacioacuten provocadora en una sociedad pluralista Santander Sal Terrae 2007 p 214)

    27 MARCUSE H Der eindimensionale Mensch Neuwid Berliacuten Luchterhand 1967 p 117

    lOSEacute A ZAMORA A ANAMNFl1CA

    W Benjamin tornando corno ponto de partida a meacutemoire involuntaire de Proust mas indo mais aleacutem em sua reflexao

    R reivindishy

    cou o papel das recordaltoes involuntaacuterias para ter acesso a verdade de acontecimentos e etapas largamente esquecidas Daiacute eacute que se tem seu iacutenteresse pela memoacuteria nao corno depoacutesito e registro senao corno rememoraltao corno atualizaltao iacutenstantanea corno fagulha Essa forma de memoacuteria nao vem a confirmar o poder do sujeito ou a reforltar o marco de convicltOes e representaltoes compartilhadas com um grupo Diferentemente da memoacuteria voluntaacuteria na qual o passado jaacute foi cravado e integrado na recordaltao normalizada na memoacuteriacutea involuntaacuteria o sofriacutemento aparece corno algo que vem de fora corno acrescido a conscieacutencia corno o concorrente do pensamento Isto eacute o que constituiacute a diacutealeacutetica da rememorariio Theodor W Adorno a formulou corno a exigeacutencia de tornar eloquente o sofrimento e para ele essa eacute a condiacuteltao de toda verdade Por isso Ita esperanlta nao eacute a recordaltao fixada senao o retomo do esquecido29 O esquecimento eacute corno urna espeacutecie de negativo fotograacutefico obscuro e produtivo da memoacuteria e da recordaltao Na dialeacutetica da rememoraltao trata-se de traduziacuter essa memoacuteria preacute-reflexiva as recordaltoes coletivas sem liquidaacute-Ia coiacutesa que ocorre quando ela eacute convertida em mero material de entretenimento ou de elaboraltao cientiacutefica

    Longe dos clicheacutes positivos e negativos do passado com os quaiacutes nos acostumamos a encontrar na maioria dos debates sobre a memoacuteria a dial eacutetica da rememoraltao a que nos referirnos aquiacute tenta perceber e se reapropriar de um passado quebrado e tornaacute-Io precisamente naquele que foi subtraiacutedo da transmiacutessao na hiacutestoacuteria ou na memoacuteria cultural30 Corno nos mostrou W Benjamiacuten a histoacuteria dos sofrimentos somente se toma legiacutevel e experimentaacutevel corno hiacutestoacuterIacutea de esperanlta ao se romper com a continuidade histoacuterica tornando distaacutencia frente a tradiltao dos vencedores na qual se perpetuam os sofrimentos sob a figura do progresso implacaacutevel3l Daqui proveacutem o iacutempeto criacutetico

    28 Cf SCHOTTKER D Erinnern In OPITZ M WIZISLA E (Ed) Benjamins Begriffe Bd 1

    Frankfurt aM Suhrkamp 2000 p 262 et seq 29 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 11 [Zur Sch1ussszene des Faustl Hrsg von R

    Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p138 AA nA rememoraltilo organizada aniquila aquilo que perdura precisamente ao conservaacute-lo

    O instante fugaz somente eacute capaz de viver no esquecimento sussurrante sobre o qual urna vez que se projeta o raio que o faz acender querer possuir o instante jaacute se o perdeu (ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Miniacutema moralia) Hrsg von K Tiedemann el al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 127)

    31 CE ZAMORA Joseacute A Diacutealeacutectica mesiaacutenica tiempo e interrupcioacuten en Walter Benjamin AMENGUAL G CABOT M VERMAL JL (Ed) Ruptura de la tradicioacuten estudios sobre Walter Benjamin y Martiacuten Heidegger Madrid Trotta 2008 p 114 et seq

    I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

    38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

    da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

    Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

    32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

    33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

    l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

    JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

    Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

    A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

    repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

    36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

    p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

    Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

    Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

    41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

    JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

    Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

    Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

    39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

    JOSEacute A ZAMORA

    HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

    contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

    Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

    Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

    Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

    41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

    bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

    43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

    42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

    mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

    Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

    43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

    j05Eacute A ZAMORA

    HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

    bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

    Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

    mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

    44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

    45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

    6 Ibid p 491

    45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

    44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

    enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

    A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

    4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

    As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

    47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

    4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

    iexclOSEacute A ZAMORA

    HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

    Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

    Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

    da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

    49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

    et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

    ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

    46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

    jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

    qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

    Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

    ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

    51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

    DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

    POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

    TRAUMAS SOCIAIS

    MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

    Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

    Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

    ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

    Realiza~ao

    Faculdade de Direito da PUCRS

    Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

    Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

    COlECAo FORUM

    JUSTI~A E DEMOCRACIA

    Coordenador da Cole~ao

    PauloAbrao

    JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

    MARCELO D TORELLY

    Coordenadores

    JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

    OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

    14 1

    LJ Belo Horizonte

    jI r EDITORA ~ -orum

    2013

    r

    COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

    Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

    Conselho Editorial Conselho Editorial

    Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

    Pereira Marques Nelo

    Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

    Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

    Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

    Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

    Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

    Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

    Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

    Fernando Rossi Seacutergio Guerra

    liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

    Presidente e Editor

    Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

    catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

    Diagramatao Luiz Piacutementa

    Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

    wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

    J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

    -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

    1 Crirncs contra a Humanidade

    Moreira da U

    Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

    SUMAacuteRIO

    JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

    PARTEI

    HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

    HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

    DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

    Referencias 59

    EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

    Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

    enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

    da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

    • JAZam-Texto56
    • JAZam-Texto56b

      JOSEacute CARIOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUWABRAO MARCEW D TORELLY (CClORD) 24 jUSl1ltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS - OIRARES INTERDTSClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROacuteILS DE EFE1IVAltAO

      praacuteticas de ocultaao e esquecimento que asseguram sua impunidade desvalorizar ou criminalizar a memoacuteria infundir o medo e obrigar o esquecimento para poder sobreviver ocultar fatos e destruir provas escrever a histoacuteria pela perspectiva dos violadores etc Por isso o que as viacutetimas reclamam em primeiro lugar eacute que a verdade seja conheshycida Conhecer os fatos em sua integridade eacute o primeiro passo para possibilitar a requalificaltao moral da injustia sofrida e uma revisao dos julgamentos morais sobre viacutetimas e violadores

      As viacutetimas demandam apoacutes o reconhecimento da verdade que haja o fim da impunidade que se falta justi-a Os violadores obtiveram vantagens por meio do crime construiacuteram seu presente sobre a injusshyti-a cometida e pretendem assegurar um futuro que os permita seguir vivendo corno se nada houvesse ocorrido A condena-ao dos fatos e dos responsaacuteveis eacute imprescindiacutevel para assegurar a verdade do crime Sem essa condena-ao a verdade revelada se toma refeacutem de negocialtoes pautadas em interesses ou em indiferen-as relativizadoras Pensar em uma recomposiao eacutetica da sociedade fragilizada pela violencia em urna convivencia fundamentada na igualdade e na justi-a em uma ordem que rompa com as tramas sociais do crime etc eacute impossiacutevel sem que haja o seu tratamento judicial Sem isso tampouco eacute possiacutevel pensar em urna reintegra-ao social dos violadores

      Tao relevante corno acabar com a impunidade eacute a compensaao das viacutetimas Um conceito de justia que nao seja meramente punitishyvo que nao esteja centrado exclusivamente no castigo dos violadores deve estar acompanhado de medidas ativas que contribuam para melhorar a situa-ao das viacutetimas Estas exigem sair do buraco social e histoacuterico no qual seus carrascos pretenderam enterraacute-Ias Eacute necessaacuterio que sua visibilidade seja possibilitada bem corno seu protagonismo social eacute necessaacuterio criar condiacuteoes que tomem possiacutevel que refaam seus projetos de vida Sem essa reabilitaltao das viacutetimas eacute impossiacutevel reconciliaacute-las as sociedades e construir esse futuro distinto que ressoa na sensaltao de nunca mais tantas vezes repetida Para construir um futuro comum toma-se necessaacuterio afirmar a centralidade das viacutetimas reconhecer a importancia do que foi negado pela violencia e pelo crime Mas nao se trata apenas de urna reabilitaao das pessoas que foram viacutetimas de dano Toma-se necessaacuterio remover as causas estruturais e culturais da violencia7

      7 Nao se deve esquecer que as grandes matamas modernas foram organizadas gratas ao juridicismo burocraacutetico e realizadas por pessoas comuns e honestas Como afirma P Legendre Ha criminalidade burocraacutetica pesteia a honestidade (O imperdoaacutevel

      JOSEacute A ZAMORA I 25 HISTOacuteRlA MEMOacuteR1A E jUS11ltA DA jUSTIltA TRANSIC10NAL A jtJS11ltA ANAMNfTlCA

      Vimos a servilto dessas exigencias a constituiltao de comissoes ad hoc em diversos paiacuteses cujos resultados estiveram condicionados a muacuteltiplos fatores caracteriacutesticos das respectivas transioes poliacuteticas e dos equiliacutebrios de poder entre as partes em litiacutegio Na maioria dos casos as JI cornissoes da verdade foram produzidas em um contexto poliacutetico em que os antigos violadores e os grupos sociais beneficiados ou responsaacuteveis pela violencia mantinham urna importante capacidade de influencia e ameaa Por vezes eram transiltoes mais ou menos acordadas pelos quais as for-as poliacuteticas que sustentavam a ditadura pretendiam assegurar sua impunidade em troca de urna retirada parcial do poder ou de mudan-as moderadas na ordem existente Em outros casos as partes contestadoras e as responsaacuteveis pelos delitos e vulnera-oes aos direitos humanos pactuavam urna impunidade muacutetua Nao pode parecer estranho pois que as recomenda-oes dessas comissoes raramente se fizeram cumprir ou que inclusive tenham sido limitadas por leis indultos ou anistias concedidas aos delitos e crimes perpetrados8

      Nos processos de transiao poliacutetica a correlaao de foras impede que exigencias radicais pela verdade justilta e reabilitaao das viacutetimas se faam valer A fragilidade do poder decorrente da transiltao poliacutetica dificulta a aplica-ao rigorosa de urna justia punitiva Os violadores seguem detendo poder e exigem quea paacutegina seja virada para ceder parte desse poder para que as violaltOes dos direitos sejam cessadas ou para que a convivencia seja reconstruiacuteda O pre-o pela cessao do poder eacute o perdao na forma de esquecimento o qual nao eacute mais do que urna forma de se assegurar a impunidade Outras vezes eacute a falta de meios para investigar julgar ou cominar penas que conduz a busca por caminhos alternativos Em outras situaltoes se trata de urna questao de prudencia poliacutetica Os violadores formam parte da sociedade talvez urna parte numericamente significativa A sociedade nao pode prescindir de suas capacidades e recursos caso queira evitar o colapso Assim torna-se necessaacuterio que eles sejam implicados na

      InABEL O (Ed) [l perdoacuten quebrar la deuda y el olvido Madrid Caacutetedra 1992 p 26) f possiacutevel responsabilizar judicialmente as burocracias criminosas Estaacute claro que a justilta e o perdao nao podem ser urn retomo a normalidade porque essa normalidade estaacute comprometida corn a violencia e com o crime de urna forma radical Eacute preciso acabar com a neutralizaao moral das burocracias e da estrutura institucional dos Estados

      8 Cf MARTIN BERISTAIN C Justicia y reconciliacioacuten el papel de la verdad y la justicia en la reconstruccioacuten de sociedades fracturadas por la violencia Bilbao Hegoa 2000 p 12 el seq SCHABAS WA Comisiones de la verdad y memoria In GOacuteMEZ ISA F (Dir) [ derecho a la memoria Iruacuten Alberdania 2006 p 101-112

      27 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIO IAULOABRAO MARCELOD TORELLY (COORD)

      26 I iexclUSTIltA DETRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRlCAS-OLHARES INTERDlSCIPLlNARES fUNDAMENTOS E PADROacuteES DE FFETIVAltAO

      constrwao de um futuro compartilhado Eacute assim que se apela de forma instrumental a reconciliarao e ao perdao como componente de urna Justira Transicional ou reconstrutiva Em realidade estariacuteamos perante urna retoacuterica poliacutetica do perdao9

      Junto a essas razoes estrateacutegicas encontramos outras razoes mais profundas que tambeacutem devem ser levadas em considerarao Os acontecimentos processos situaroes e periacuteodos histoacutericos em considerarao ultrapassam a possibilidade de tratamento por meio de urna justira punitiva Ainda que essa justira seja necessaacuteria nao haacute sistema judicial capaz de fazer frente a crimes tao monstruosos e em massa E nao eacute somente urna questao de disponibilidade de meios e de poder para aplicaacute-Ios mas tambeacutem urna questao de adequarao dos meios a realidade Como encontrar e aplicar um castigo proporcional Eacute possiacutevel restabelecer dessa maneira um equiliacutebrio entre diacutevida e compensarao Mais ainda urna justilta focada na puniltao do culpashydo concede um valor secundaacuterio as viacutetimas relegando-as a um papel de instrumento probatoacuterio de meros testemunhos da culpabilidade do violador mas nao como testemunhas de seu proacuteprio sofrimento da verdadeira dimensao do crime das exigencias de repararao e da projerao de um futuro sob urna perspectiva diferente lO Diante disso torna-se claro que nao eacute possiacutevel abordar as questoes da Justira Transhysicional sem colocar as viacutetimas no centro

      Os limites da justira punitiva contudo nao se fazem evidentes apenas em relarao aos violadores e as viacutetimas Quando nos deparamos com um genoddio os crimes de urna ditadura ou ao horror de urna guerra civil nao apenas ternos de trataacute-Ios como urna violencia direta (violarao aos direitos humanos tortura explorarao selvagem assassishynatos sistemaacuteticos aniquilarao em massa etc) mas tambeacutem como urna violencia estrutural e culturalll Nao basta castigar judicialmente ou

      ~ retoacuterica do perdiio enquanto amaacutelgama metafoacuterica difiacutecilmente passiacutevel de descriltiio histoacuterica se encarna como urna retoacuterica pela reconcilialtiio da fratemidade nacionaL Nesta loacutegica inserem-se os processos de anistia em favor de perpetradores violadores e responsaacuteveis acompanhados pela exigencia de um bem comum supremo o patriotismo nacional enraizado em fundamentos de seguranlta estatal [MARTIacuteNEZ DE BRIN GAS A De la ausencia de recuerdos y otros olvidos intencionados una lectura poliacutetica de los secuestros de la memoria In GOacuteMEZ ISA F (Dir) El derecho a la memoria lruacuten Alberdania 2006 p 275] S Lefranc sublinha a pluralidade de retoacutericas pelo perdao segundo os atores que participam dos processos de Justi~a Transicional (Poliacuteticas del perdoacuten Madrid Caacutetedra

      10 Sobre urna justilta centrada nas viacutetimas (cL MATE R Memoria de AuschwifZ actualidad moral y poliacutetica Madrid Trotta 2003 p 241 et seq) Cf GALTUNG J Tras la violencia 3R Reconstruccioacuten Reconciliacioacuten Resolucioacuten afronshytando los efectos visibles de la guerra y la violencia Bilbao Bazeak 1998

      iexclOSEacute A ZAMORA

      HISTOacuteRlA MEMOacuteRIA E JUSTlltA - DA JUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacutenCA

      se for o caso conceder anistia aos responsaacuteveis pela violencia direta Como abordar as cumpliddades omissoes e indiferenras medrosas Como propiciar um processo de transformarao profunda que alcance tambeacutem essa rede intrincada de cumplicidades De onde nasceu a forra regeneradora capaz de produzir urna quebra das dinamicas de violencia e abertura ao novo Como impedir a continuidade da cultura (antissemitismo racismo classismo) que tornou possiacutevel a violencia direta

      Se o conceito de Justira Transicional deve ser algo mais do que o equivalente a urna justuumla especial excepcional e transitoacuteria com o objetivo de reciclar o peso do passado de alcanrar pela via mais raacutepida e menos custosa urna estabilidade social e poliacutetica poacutesshytraumaacutetica entao devemos repensar sob a luz da experiencia social e poliacutetica do seacuteculo dos genociacutedios12 a significarao poliacutetica do sofrishymento a centralidade moral e poliacutetica das viacutetimas e a relarao entre memoacuteria e histoacuteria13

      1 Significacao poliacutetica do sofrimento

      O sofrimento se encontra nas raIacutezes da poliacutetica e do direito Essa afirmarao surpreendente e impactante de A Madrid exige assushymir urna perspectiva nao habitual sobre referidas construroes sociais que acostumamos ver mais sob a perspectiva da comunidade que as produz e eacute ao mesmo tempo produzida por elas e portanto a partir de urna necessidade de coesao ou de regularao do conflito essa perspecshytiva eacute encaberada a partiacuter da modernidade pela ideia reguladora do contrato social e de todos os componentes que o determinam (genese legitimidade garantiacuteas extensao etc) Mas o que essa afirmarao nos provoca eacute que olhemos qualquer modelo poliacutetico e juriacutedico examinado a partir dos criteacuterios que oferecem para encaminhar urna questao decisiva que fazer com o sofrimento - e pela maneira como se impoem ditos criteacuterios

      Por vezes nos relacionamos com determinadas praacuteticas sociais sem atentar para as premissas que lhe servem de fundamento e com freq4encia tampouco refletimos sobre as consequencias que sao derivadas destas Naturalizamos determinados usos da dor ou

      l Cf BRUNETEAU B El siglo de los genocidios violencias masacres y procesos genocidas desde Armenia a Ruanda Madrid Alianza 2005

      13 Cf MATE R Tratado de la injusticia Rubiacute Barcelona Anthropos 2011 p 261 et seq MADRID A La poliacutetica y la justicia del sufrimiacuteento Madrid Trotta 2010 p 194

      28 29 JOSE CARLOS MOREIRA DA SILVA F1UIO PAULa ABRAOMARCELO D TORELLY (COORD)

      JUS11ltA DE TRANSJltAO NAS AMEacuteRlCAS-OLHARES INTERDISCIPUNARES fUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVACAo

      certas uti1iza~oes do sofrimento como urna medida que o Estado pode aplicar servindo-se do marco juriacutedico do aparato judicial e das for~as de seguran~a Por outro lado tambeacutem existem sofrimentos e danos qualificados socialmente como injustos e em certa medida reparaacuteveis ou compensaacuteveis A mesma constru~ao do Estado de Direito pode ser vista como processo de limita~ao do dano e do sofrimento na mesma medida em que estes sao construiacutedos como injustos indevidos ou evishytaacuteveis E um passo mais adiante o Estado Social de Direito avaniexclou por este caminho nao apenas penalizando ou proibindo a produ~ao de determinados sofrimentos como tambeacutem impondo medidas para evitaacute-Ios reparaacute-Ios ou compensaacute-Ios

      A imbricaiexclao entre violencia direito e poliacutetica eacute urna evidencia empiacuterica dificilmente negaacuteveL Urna vez que essa evidencia eacute estabeleshycida acostuma-se habitualmente a dirigir a ateniexclao aos principios sociais que tornam aceitaacutevel este viacutenculo entre poder e violencia a questao de sua legitimidade provenha esta dos procedimentos para estabelecer ditos principios ou dos fins que o poder persegue com o dano - e nao ao efeito de normalizaiexclao juriacutedica do sofrimento e da ordem social de que faz parte O mesmo poderiacuteamos dizer da mobilizaiexclao do direito contra as fontes de padecimento da populaiexclao Todo o aparato do Estado seu regime juriacutedico suas instituiiexcloes e administraiexcloes seus oacutergaos policiais e todos os seus entes estao envolvidos com aquilo que urna sociedade faz com o sofrimento e podem ser analisados a partir deste ponto de vista E bem sabemos que nem todos os sofrimentos e nem todas as pessoas que deles padecem sao reconhecidos da mesma maneira e na mesma medida O direito eacute um mecanismo fundamental de reconhecimento da dor e por outro lado eacute tambeacutem um mecanisshymo da sua invisibilizaiexclao ou perda de relevancia social Eacute evidente que na aiexclaO de diferenciar sao revelados o modelo sociopoliacutetico em que a diferenciaiexclao eacute baseada e por meio disso as estruturas de domishynaiexclao que imperam

      Por outro lado tambeacutem resulta evidente que o sofrimento possui um caraacuteter fundante da ordem poliacutetica eacute dizer um papel de genese e sustentaiexclao dos viacutenculos da comunidade poliacutetica o que permite situaacute-Io como um dos fundamentos simboacutelicos dessa ordem A rela~ao entre genese e sustenta~ao dos viacutenculos eacute avalizada pela capacidade dos sacrificios passados em ativar a estrutura obrigacional eacute dizer a necessidade atual de assumir os sacrifiacutecios que a ordem social impoe Que os sofrimentos passados foram sofrimentos substitutivos serve de fundamento para a perpetuaiexclaO do caraacuteter substitutivo do sofrimento no presente Mas isso exige praticar urna seleiexclao e urna discrimina~ao

      JOSEacute A ZAMORA

      HlSTOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSnltA - DA iexclUSTI(A TRANSICIONAL AiexclUSTl(A ANAMNEacuteTICA

      entre os sofrimentos que sao significativos e os que sao despreziacuteveis ou indiferentes para a ordem poliacutetica instituiacuteda A poliacutetica administra essa discrimina~ao entre o sofrimento dos nossos e o dos oUtros entre o sofrimento que haacute de proteger ou que se pode exigir como sacrifiacutecio daquele que se pode impor a outros ou perante o qual nao se assume qualquer responsabilidade Esclarecer essa 11 gestao dos sofrimentos supoe revelar e questionar ao mesmo tempo as rela~oes de poder entre vencedores e vencidos as rela~oes sociais de domina~ao A poliacutetica entre oUtras coisas eacute gestao do sofrimento que comeiexcla por determinar quais sofrimentos possuem um significado central e quais sao colocashydos a margem da organizaiexclao poliacutetica Isto concede a memoacuteria do sofrimento um caraacuteter eminentemente poliacutetico e urna enorme capashycidade de questionar o poder

      Nenhum outro pensador demonstrou de forma tao aguda como Theodor W Adorno que o sofrimento produzido socialmente eacute o sinal de que a totalidad e social se impoe cegamente aos sujeitos singulares e ao mesmo tempo que eacute da experiencia do sofrimento que surge a possibilidade de se opor a totalidade social15 Por essa raza o o sofrimento eacute sempre um fenoacutemeno bifronte no qual o que eacute mais objetivo e o que eacute mais subjetivo resultam como duas caras de urna mesma moeda sofrimento eacute objetividade que pesa sobre o sujeito oque experimenta como o que eacute mais subjetivo dele sua expressao estaacute mediado objetivamente16 O sofrimento eacute a consequencia da esshycassez da repressao da pulsao da domina~ao de classe da explorashyiexclaO da violencia e da vontade de destruiiexclao Nao estamos pois ante urna invariante da condi~ao humana senao frente ao produto de urna sociedade falsa e de urna emancipa~ao fracassada O sofrimento eacute o resultado de urna coa~ao social objetiva mas ao mesmo tempo eacute urna experiencia absolutamente singular e singularizante eacute o mais subjetivo no sentido de que afeta o sujeito em sua mais extrema indishyvidualidade Isso concede ao sujeito que sofre urna relevancia objeshytiva na medida em que sua experiencia de sofrimento individual eacute ao mesmo tempo urna alavanca com a qual se abre urna brecha na totashylidade social coativa desmascarando a violencia social em seu caraacuteter coativo e destrutorf nomeando-a como violencia injusta

      Theodor WAdorno encontra na literatura de Kafka um modelo do que pode ser essa criacutetica da COaiexclaO social a partir da experiencia

      15 Cf ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 6 Hrsg von R Tiedemann Frankfurt aM Suhrkamp 1973 p 148

      6 Id p 29

      JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAo MARCELO D TORELLY (COORD)

      30 I iexclUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDlSOPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

      do sofrimento as feridas que a sociedade inflige ao indiviacuteduo sao lidas por ele como sinais cifrados da falsidade social como nega~6es a verdade [] Ele derruba a fachada tranquilizadora ante o excesso de sofrimento a qual se acomoda continuamente o controle racional 17 O valor das feridas sofridas pelo indiviacuteduo para penetrar a nega~ao e reconhed~-la como tal mostra a relevancia da enerva~ao corporal para o conhecimento Dita enerva~ao se comporta como um sismoacutegrafo que registra a negatividade da sociedade nas experiencias do sofrishymento Sem embargo isto nao quer dizer que ditas experiencias sejam urna garantia para a criacutetica da coa~ao social e da violencia estrutural ou poliacutetica pois a mesma sociedade desenvolve mecanismos para garantir seu esquecimento Como o proacuteprio Adorno reconhece forma parte do mecanismo de domina~ao proibir o conhecimento do sofrishymento por ele produzido18 A induacutestria cultural tem aqui urna de suas fun~6es especiacuteficas Disso vem o desespero de Adorno frente ao desaparecimento da consciencia da opressao e do sofrimento Como se pode reagir ante o fato de que o mundo realmente se transformou de tal maneira que jaacute nao se chega a ter consciencia do sofrimento [ ]19 A extin~ao da experiencia amea~a tambeacutem a experiencia da extin~ao da experiencia (do sofrimento)

      Apesar de tudo a persistencia da experiencia do sofrimento da ferida que nao se pode estancar da memoacuteria da dor injusta abre permanentemente a possiblidade de nominar e combater o horror Eacutepor isso que o testemunho das viacutetimas de quem padeceu de um sofrishymento produzido socialmente um sofrimento evitaacutevel e injusto tem um valor poliacutetico de primeira ordem e um valor certamente criacutetico Tomar eloquente politicamente o sofrimento injusto eacute a forma mais poderosa de questionar as estrateacutegias de esquecimento e silenciamento que sao cuacutemplices das formas de violencia e domina~ao as quais ajudam a se reproduzir e se perpetuar Assim se tudo o que ternos dito ateacute aqui acerca da significa~ao poliacutetica do sofrimento estaacute correto entao se tem que defender e possibilitar urna centralidade moral e poliacuteshytica das viacutetimas Eacute somente por meio do reconhecimento dos direitos

      17 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 10 [Aufzeichnungen zu Kafka] Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1977 p 262

      18 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Negative DialektikJ Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 68

      19 ADORNO TW et al Diskussion aus einem Seminar uumlber die Theorie der Beduumlrfnisse 1942 In HORKHEIMER M Gesammelte Schriften Bd 12 Hsrg von G Schmid-Noerr Frankfurt aM Fischer 1985 p 573

      JOSEacute A ZAMORA I 31 HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E jUSTIltA - DA jUSTlltA TRANSIOONAL Aacute JUSTlltA ANAMNEacuteTICA

      pendentes da viacutetima que se pode escapar da loacutegica de domina~ao que mascara ideologicamente seu hito histoacuterico como universalidade lograda para seguir produzindo viacutetimas destinadas a cair no po~o do esquecimento

      2 Centralidade das viacutetimas

      Toda pretensao de defini~ao acabada sobre o que ou quem eacute urna viacutetima estaacute condenada ao fracasso Nos conflitos em que eacute gerada a violencia estrutural ou singular sao colocados em praacutetica ao mesmo tempo discursos que legitimam dita violencia e que tambeacutem negam as viacutetimas a sua condi~ao A proacutepria condi~ao de viacutetima eacute urna condi~ao controvertida e em disputa tambeacutem porque existe a autovitimiza~ao ilegiacutetima Sem embargo isso nao retira todo o sentido e a efetividade da tentativa de reclamar centralidade as viacutetimas Na realiza~ao dessa reclama~ao tem-se que colocar em praacutetica necessariamente os argushymentos pelos quais se esclarece a condi~ao de viacutetima E para colocar esse processo em movimento basta urna condi~ao necessaacuteria para se falar de viacutetimas seu viacutenculo com a injusti~a Viacutetimas sao aquelas pessoas a quem se inflige injustamente um sofrimento produzido socialmente Evidentemente que isso pode parecer como um argumento circular sem saiacuteda em vez de ajudar Mas em realidade o que vem a ressaltar esse viacutenculo eacute a prioridade da experiencia da injusti~a que sempre eacute histoacuterica e concreta no momento de formular discursivamente as exishygencias de justi~a E se quem tem prioridade eacute a experiencia da injusti~a esta somente se pode fazer valer a partir das viacutetimas e por elas

      Em todo o caso referir-se a centralidade das viacutetimas sup6e propor urna desloca~ao histoacuterica e poliacutetica de difiacutecil realiza~ao poi s a condi~ao de viacutetima parece estar associada justamente por um desshylocamento a periferia social seja porque sao convertidas em sacrifiacutecio necessaacuterio a constitui~ao sustenta~ao ou regenera~ao da comunidade poliacutetica - as viacutetimas proacuteprias seja para realizar e salvaguardar os interesses de dita comunidade frente a inimigos reais ou potenciais - as viacutetimas alheias Como destacou com implacaacutevel honestidade intelectual W BenjaIl)IacuteiacuteIacute em sua Teses sobre o conceito da histoacuteria tampouco os mortos estarao seguros ante o inimigo quando este ven~a E este inimigo nao tenha cessado de vencer 20 A histoacuteria costuma ser escrita pelos vencedores e pelos que tem poder para negociar os

      20 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 1 [Uumlber den Begriff der GeschichteJ Hrsg von R H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p 695

      I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILvA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

      32 jUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

      novos pactos poacutes-conflito nos quais viacutetimas passadas ou presentes raramente possuem poder para se fazer ouvir A vitimizaltao primaacuteria resultante da violeacutencia exercida diretamente se une a vitimizaltao secundaacuteria proveniente do desamparo do maltrato da alienaltao por parte daqueles convocados a servir em sua causa21 Que se pode dizer entao da centralidade das viacutetimas Em primeiro lugar dita centralidade tem um significado epistemoloacutegico O olhar da viacutetima tem urna capacidade proacutepria de verdade de revelaltao do existente e de penetraltao na loacutegica que o preside da qual carece a visao que comunga com o poder dos vencedores ou que se deixa ofuscar por seu fulgor Existe pois um mais de verdade experiencial pela proximidade aos efeitos destrutivos do poder aniquilador que imuniza tanto frente aos enganos de um ideal de objetividade cuacutemplice ao horror como frente a cegueira que se alimenta da frieza e da indiferenlta perante o destino infeliz dos outros Isto nao quer dizer que a viacutetima esteja livre de ofuscamentos e distorlt6es como a de contemplar a si mesma com os olhos de seus carrascos Mas haacute outra forma de quebrar o feitilto dessa perspectiva a qual pode sucumbir ateacute mesmo a proacutepria viacutetima O sofrimento experimentado de modo direto como visto eacute capaz de (voltar a) instaurar a distancia a visao que comunga com a injustilta e legitima a violeacutencia contra a viacutetima Ao menos para esta por meio da experieacutencia do sofrimento abre-Ihe a possibilidade de romper com o feitilto de legitimaltao de toda a injustilta

      Essa perspectiva nao apenas possui um valor epistemoloacutegico como tambeacutem tem urna dimensao eacutetica e poliacutetica A partir dela as categorias da autonomia liberdade igualdade dignidade direitos humanos justilta etc que servem de fundamento para a ordem moral e poliacutetica da modernidade sao colocadas a prova e adquirem novo significado A poliacutetica eacute instada a fazer frente a tantas vidas frustradas a tanta violeacutencia gerada a tantos inocentes mortos mas tambeacutem a reclamar urna universalidade que nao se limita no presente daqueles que possuem voz e poder para negociar pactos entre os formalmente livres e iguais As viacutetimas sao quem pode oferecer a chave para se enfrentar o problema central da relaltao entre poliacutetica e violeacutencia sem cuja abordagem eacute ilusoacuterio pensar em um futuro de paz e de reconcilialtao Elas sao quem nos permite reconhecer a desigualdad e social como injustilta que nao nascemos iguais e livres

      21 Cf VALLADOLID T Los derechos de las viacutectimas In MARDONES J M MATE R (Ed) La eacutetica ante las viacutectimas Rubiacute Barcelona Anthropos 2003 p 156 et seq

      jOSEacuteAZAMORA I HISTOacuteRIA MEMOacuteRlA E jUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICJONAL Aacute jUSTIltA ANAMNEacuteTICA 33

      que sao inumeraacuteveis os que se sobrecarregam com diacutevidas acumuladas com eXclus6es e marginalizalt6es herdadas e que nao haacute verdadeira igualdade e justilta a nao ser como resposta as injustiltas e desigualshydades existentes e persistentes no tempo

      W Benjamin destacou com acuidade penetrante essa mudanlta de perspectiva a tradiltao dos oprimidos nos ensina que a regra eacute o estado de exceltao na qual vivemos22 A possibilidade de pensar conjuntamente regra e exceltao depende da adoltao da perspectiva dos oprimidos das viacutetimas da histoacuteria e nao simplesmente por solishydariedade a elas ainda que isto seja louvaacutevel sob urna perspectiva moral mas sim em honra a verdade desta histoacuteria Benjamin pretendia demonstrar o caraacuteter catastroacutefico de um horror que decorre de um modo regular e conforme a lei e para isso destacou as circunstancias nas quais o poder se impoacutes por meio do estado de exceltao que se conshyverteu em regra Trata-se pois de acentuar a conscieacutencia da excepshycionalidade do horror que seus defensores qualificam como estabilidade e legalidade

      Mas para se levar em consideraltao a provocaltao das viacutetimas eacute preciso reconhecer o significado das contas em aberto com o passado e as exigeacutencias de justilta pendentes enquanto condiltao para quebrar a loacutegica da dominaltao que segue produzindo viacutetimas destinadas a cair no polto do esquecimento Urna mudanlta dessa natureza passa pelo enfrentamento do desafio que representam cataacutestrofes sociais e poliacuteticas desde a produltao industrial da morte nos campos de extershymiacutenio realizada com a pretensao de apagar qualquer tralto que pudesse recordaacute-Ia ateacute a produltao de milh6es de vidas tratadas como se fossem supeacuterfluas prescindiacuteveis ou descartaacuteveis presas da exclusao social ou da fome passando por inumeraacuteveis viacutetimas da violeacutencia beacutelica que as reduz a danos colaterais ou da violeacutencia poliacutetica que as convershyte em inimigo a eliminar para sustentar urna ordem considerada inquestionaacutevel ou imutaacutevel ou ainda para impor os interesses de um grupo ou de urna comunidade poliacutetica inteira contra aqueles que se pretende dominar ou conquistar

      ~

      Na centralidade das viacutetimas se inspira um novo conceito de jusshytilta que se interpela pelos direitos negados no passado pela vigeacutencia do dano que elas sofreram pelos viacutenculos entre a injustilta presente e passada Fazer justilta nao consiste apenas em castigar o culpado mas tambeacutem em adotar a perspectiva das viacutetimas Isso sup6e em

      22 BENJAMIN p 697

      35

      ----------------------11 34 iexcl JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIo PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORIJ)

      INfFRDlaIgtUlAiRES FUNIJAMENT05 E PADRUumlES DE EFETIVAltAO

      primeiro lugar nao suplantar a realidade por um marco abstrato de regras pactuadas segundo criteacuterios de universalidade formal Os oprimidos e aqueles que sofreram injustiiexcla experimentaram com clara evideacutencia que sua singularidade nunca encontra guarida nessa universalidade Para eles a opressao e dominaiexclao nao sao situaiexcloes excepcionais de urna ordem garantida pelo direito mas sim a regra que perenemente se confirma Adotar a perspectiva das viacutetimas Iacutemshypede qualquer relativizaiexclao de seu sofrimento toda subordinaiexclao instrumental a sustentaiexclaO de urna ordem precipitadamente qualificada como justa Ademais existe um nexo tomado invisiacutevel entre aqueles que na histoacuteria foram privados de seus direitos sofreram injustamente e foram aniquilados sua contiacutenua postergaiexclao Para que haja justiiexcla eacute preciso in verter os papeacuteis As viacutetimas teacutem de passar ao primeiro plano sua visao sobre a realidade suas exigeacutencias suas esperaniexclas sua singular contribuiiexclao a um futuro projetado de costas para elas ou as suas costas Inclusive o significado do que parece irreparaacutevel tem de ser devolvido ao cenaacuterio da justiiexcla se eacute que queremos reivindicar com sentido o direito de todos a urna existeacutencia efetiva Para construir um mundo baseado na justiiexcla eacute imprescindiacutevel a memoacuteria

      3 Memoacuteria e histoacuteria

      A atualidade poliacutetica e cultural da memoacuteria nao deveria nos enganar sobre a dureza e as dificuldades associadas a determinadas memoacuterias Perante alguns crimes nao haacute nada que pareiexcla tao natushyral como o desejo ao esquecimento de virar a paacutegina2-1 se nao fosse pelas proacuteprias viacutetimas de cataacutestrofes sociais e poliacuteticas as quais nos atribuiacuteram o encargo de nao esquecer e nos responsabilizou com o dever de manter viva a memoacuteria das injustiiexclas acometidas Em seu

      23 A op~o pelo esquecimento tem sido a preferencia no passar dos seacuteculos Somente a partir da Primeiacutera Guerra Mundial eacute que se produziu urna mudanca na cultura poliacutetica para dar espa~o a conviuumlao de que apenas a rernemoracao detalhada e nao maquiada dos crimes corridos e dos castigos aos autores responsaacuteveis pelos mesmos eacute capaz de quebrar o poder da violeacutencia sofrida no passado (d MEIER C Das Cebot zu vergessen urul die Unabweisbarkeit des Erinnems vorn offentlichen Umgang mit schlimmer VergangenheiL

      Siedler 2010) O Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional firmado em 1945 entre Franca Estados Unidos Reino Unido e a Uniacuteao Sovieacutetica que fixou os princiacutepios e procedimentos pelos quais foram regidos os Julgamentos de Nuremberg e a eriaao da Corte Penal internacional representam duas referencias fundamentais dessa mudanca na cultura poliacutetica e apontam para o desenvolvimento de memoacuteriacuteas poacutesshynacionais inclinadas a integra~ao dos acontecimentos histoacutericos de caraacuteter negativo e vergonhosos a autoimagem dos Estados Sem embargo isto nao aplacou em absoluto o debate em tomo da relaao entre o dever da mernoacuteria e o direito ao esquecimento Id FERENCZI T (Dir) Devoir de meacutemoire droit aIoubli Brexelles Complexe 2002]

      Ji

      iexclOSriAZAMORA HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL A fUSTIltA ANAMNEacuteTICA

      imaginaacuterio o esquecimento representa uma segunda injustiiexcla que se soma a jaacute sofrida sancionando-a Isso parece corresponder como se fosse a outra cara de uma mesma moeda com a inteniexclao de impor o esquecimento reconheCIacutevel aos perpetradores em seu afa de apagar os traiexclos do crime Nada resulta mais eloquente no caso extremo de Auschwitz do que a pretensao dos nazistas de nao apenas assassinar a todos os judeus mas tambeacutem de nao deixar rastro algum nem de suas viacutetimas nem do crime praticado24

      A dificuldade da memoacuteria sobre acontecimentos traumaacuteticos produzidos pela violeacutencia extrema proveacutem do fato de que sua origem se encontra nao em urna recordaiexclao integrada ou integraacutevel mas sim em urna recordaiexclao deslocada urna recordaiexclao que dolorosashymente transmite o nuacutecleo da experieacutencia interna do trauma e ao mesmo tempo eacute incapaz de tornaacute-Io acessiacutevel como se tornam partiacutecipes e acessiacuteveis outras experieacutencias humanas Trata-se de uma dificuldade que os testemunhos revelam aquele que esteja disposto a escutar Essa recordaiexclao somente pode ser comunicada e ter significado para a memoacuteria individual e coletiva daqueles que nao tenham sido viacutetimas ou testemunhas diretas da violeacutencia caso estejam dispostos a pagar o preiexclo que acompanha esse SI dote Esse preiexclo comeiexcla com a atribuiiexclao de centralidade a viacutetima Assumir a responsabilidade desta difiacutecil

      memoacuteria eacute indissociaacutevel da mudaniexcla radical epistemoloacutegica eacutetica poliacutetica e esteacutetica que passa pela referida centralidade Nada expressa melhor o novo imperativo categoacuterico poacutes-Auschwitz formulado por Theodor W Adorno na Dialeacutetica negativa de ordenar o pensamento e a aiexclao tomando como ponto de inflexao essa cataacutestrofe de forma que o que se diga pense e aja seja para evitar que algo semelhante possa ocorrer O sofrimento dos outros se converte assim no criteacuterio derrashydeiro da verdade da justiiexcla do gozo nao disciplinado do bem25 Essa

      24 Essa intencao de eliminar todos os rastros de nao deixar prava eacute o traco que define para P Vidal-Naquet a verdadeira singularidade de Auschwitz o que ele charna de negacao do crime dentro do crime (Les jui[s la meacutemoiacutere el le preacutesenllI Pariacutes La Decouverte 1991 p 416) Tarnbeacutem nesse mesmo sentido K Mate (Tratado sobre la injusticia Rubiacute Barcelona Anthrapos 2010 p 191et seq)

      25 Evidentemente isto suscita exigencias associadas dirigidas ateoriacutea e apraacutexis Mio se trata de gerar urna metafiacutesica negativa a partir daquilo que alguns chamam de mal radical ou de uma espeacutecie de religiao civil na qual inevitavelmente as viacutetimas sao novamente instrumentalizadas (er TRAVERSO K El passado instrucciones de uso tistoria memoria

      Madrid Barcelona Marcial Pons 2007 p 69-74) A rnudan~a epistemoloacutegica poliacutetica e esteacutetica exigida pela memoacuteria das viacutetimas passa por urna teoria do conheshy

      cimento da racionalidade e da verdade asua altura e tambeacutem por urna teoria da socieshydade urna filosofia moral e poliacutetica urna teoria esteacutetica etc que partam da quebra que representa a violencia exerciacuteda contra elas

      37 iexclOSEacute CARLOS MOIEIRA l)A SILVA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (CCXlRD) 36 iexclUSTIltA DE TRANSlltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDISClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADR)E5 DE EFETIVAltAo

      seria a condiltao de possibilidade da comunicabilidade da recordaltao deslocada dos traumas histoacutericos Aqui estaacute a chave de urna razao anamneacutetica dificilmente instrumentalizaacutevel pelas poliacuteticas da memoacuteria a servilto da legitimaltao de determinadas ordens sociais ou de atores que competem pela hegemonia dentro destas O que resulta definitivo para essa razao anarnneacutetica eacute a difiacutecil recordaltao do sofrimento alheio26

      Por outro lado a memoacuteria que se responsabiliza pela recordaltao deslocada dos testemunhos da violeacutencia poliacutetica extrema eacute urna memoacuteria perigosa pois nela se quebra a ordem que permitiu e na qual ocorreu o horror Dita memoacuteria interrompe o curso normal do tempo contradiz seu avanlto calcado em um fundo de injustiltas acushymuladas reclama o direito do possiacutevel e mio realizado frente ao que se impos em uacuteltima instancia denuncia o constituiacutedo revelando seus custos Nessa memoacuteria podem ser realizadas pois os potenciais criacuteticos inscritos de maneira gerat na recordaltao do passado que corno apontara H Marcuse pode fazer surgir pontos de vista perigosos o que explicariacutea segundo ele por que a sociedade estabelecida parece temer os conteuacutedos subversivos da memoacuteria [ ]27 Mas eacute imshyportante destacar aqui que tampouco o sujeito dessa memoacuteriacutea estaacute a salvo do perigo que ela representa O sujeito que se constitui por meio da memoacuteria do sofrirnento alheio nao emerge corno urna totashylidade ideacutentica consigo mesmo mas siacutem corno um eu quebradilto e problemaacutetico Sua debilidade se torna patente desde o princiacutepio na figura da indisponibilidade da recordaltao deslocada No caso da memoacuteria traumaacutetica da viacuteoleacutencia extrema a soberaniacutea do sujeito sobre as recordaltoes eacute muito limitada Assistimos em muitos casos a sofriacutementos de pessoas que quiseram se desprender das recordaltoes que as atormentam e das quais nao conseguem se afastar Isso nada tem a ver com a nostalgia de um passado saudoso ou com a exaltaltao de um passado glorioso Sao recordaltoes que tomam de assalto o sujeito e nao quando ele quer mas siacutem quando as recordaltoes querem se assim for possiacutevel falar

      26 A razao anamneacutetica adquire seu caraacuteter ilustrado e sua legiacutetima uruversalidade graas ao reconhecimento de que eacute guiada por urna determinada recordaltao em concreto pela recordaao do sofriacutemento pela memoria passionis Mas nao como a recordaao do sofrimento referido a um mesmo (a raiz de todos os conflitos) senao como a recordaao do sofrimento de outros como rememoraao puacuteblica do sofrimento alhcio incorporada de urna tal maneira ao uso puacuteblico da razao que Ihe imprima sua nota distintiva (METZ JB Memariacutea passiacuteonis una evocacioacuten provocadora en una sociedad pluralista Santander Sal Terrae 2007 p 214)

      27 MARCUSE H Der eindimensionale Mensch Neuwid Berliacuten Luchterhand 1967 p 117

      lOSEacute A ZAMORA A ANAMNFl1CA

      W Benjamin tornando corno ponto de partida a meacutemoire involuntaire de Proust mas indo mais aleacutem em sua reflexao

      R reivindishy

      cou o papel das recordaltoes involuntaacuterias para ter acesso a verdade de acontecimentos e etapas largamente esquecidas Daiacute eacute que se tem seu iacutenteresse pela memoacuteria nao corno depoacutesito e registro senao corno rememoraltao corno atualizaltao iacutenstantanea corno fagulha Essa forma de memoacuteria nao vem a confirmar o poder do sujeito ou a reforltar o marco de convicltOes e representaltoes compartilhadas com um grupo Diferentemente da memoacuteria voluntaacuteria na qual o passado jaacute foi cravado e integrado na recordaltao normalizada na memoacuteriacutea involuntaacuteria o sofriacutemento aparece corno algo que vem de fora corno acrescido a conscieacutencia corno o concorrente do pensamento Isto eacute o que constituiacute a diacutealeacutetica da rememorariio Theodor W Adorno a formulou corno a exigeacutencia de tornar eloquente o sofrimento e para ele essa eacute a condiacuteltao de toda verdade Por isso Ita esperanlta nao eacute a recordaltao fixada senao o retomo do esquecido29 O esquecimento eacute corno urna espeacutecie de negativo fotograacutefico obscuro e produtivo da memoacuteria e da recordaltao Na dialeacutetica da rememoraltao trata-se de traduziacuter essa memoacuteria preacute-reflexiva as recordaltoes coletivas sem liquidaacute-Ia coiacutesa que ocorre quando ela eacute convertida em mero material de entretenimento ou de elaboraltao cientiacutefica

      Longe dos clicheacutes positivos e negativos do passado com os quaiacutes nos acostumamos a encontrar na maioria dos debates sobre a memoacuteria a dial eacutetica da rememoraltao a que nos referirnos aquiacute tenta perceber e se reapropriar de um passado quebrado e tornaacute-Io precisamente naquele que foi subtraiacutedo da transmiacutessao na hiacutestoacuteria ou na memoacuteria cultural30 Corno nos mostrou W Benjamiacuten a histoacuteria dos sofrimentos somente se toma legiacutevel e experimentaacutevel corno hiacutestoacuterIacutea de esperanlta ao se romper com a continuidade histoacuterica tornando distaacutencia frente a tradiltao dos vencedores na qual se perpetuam os sofrimentos sob a figura do progresso implacaacutevel3l Daqui proveacutem o iacutempeto criacutetico

      28 Cf SCHOTTKER D Erinnern In OPITZ M WIZISLA E (Ed) Benjamins Begriffe Bd 1

      Frankfurt aM Suhrkamp 2000 p 262 et seq 29 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 11 [Zur Sch1ussszene des Faustl Hrsg von R

      Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p138 AA nA rememoraltilo organizada aniquila aquilo que perdura precisamente ao conservaacute-lo

      O instante fugaz somente eacute capaz de viver no esquecimento sussurrante sobre o qual urna vez que se projeta o raio que o faz acender querer possuir o instante jaacute se o perdeu (ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Miniacutema moralia) Hrsg von K Tiedemann el al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 127)

      31 CE ZAMORA Joseacute A Diacutealeacutectica mesiaacutenica tiempo e interrupcioacuten en Walter Benjamin AMENGUAL G CABOT M VERMAL JL (Ed) Ruptura de la tradicioacuten estudios sobre Walter Benjamin y Martiacuten Heidegger Madrid Trotta 2008 p 114 et seq

      I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

      38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

      da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

      Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

      32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

      33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

      l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

      JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

      Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

      A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

      repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

      36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

      p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

      Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

      Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

      41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

      JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

      Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

      Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

      39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

      JOSEacute A ZAMORA

      HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

      contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

      Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

      Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

      Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

      41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

      bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

      43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

      42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

      mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

      Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

      43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

      j05Eacute A ZAMORA

      HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

      bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

      Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

      mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

      44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

      45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

      6 Ibid p 491

      45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

      44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

      enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

      A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

      4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

      As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

      47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

      4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

      iexclOSEacute A ZAMORA

      HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

      Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

      Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

      da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

      49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

      et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

      ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

      46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

      jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

      qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

      Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

      ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

      51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

      DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

      POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

      TRAUMAS SOCIAIS

      MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

      Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

      Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

      ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

      Realiza~ao

      Faculdade de Direito da PUCRS

      Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

      Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

      COlECAo FORUM

      JUSTI~A E DEMOCRACIA

      Coordenador da Cole~ao

      PauloAbrao

      JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

      MARCELO D TORELLY

      Coordenadores

      JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

      OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

      14 1

      LJ Belo Horizonte

      jI r EDITORA ~ -orum

      2013

      r

      COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

      Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

      Conselho Editorial Conselho Editorial

      Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

      Pereira Marques Nelo

      Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

      Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

      Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

      Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

      Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

      Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

      Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

      Fernando Rossi Seacutergio Guerra

      liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

      Presidente e Editor

      Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

      catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

      Diagramatao Luiz Piacutementa

      Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

      wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

      J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

      -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

      1 Crirncs contra a Humanidade

      Moreira da U

      Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

      SUMAacuteRIO

      JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

      PARTEI

      HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

      HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

      DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

      Referencias 59

      EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

      Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

      enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

      da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

      • JAZam-Texto56
      • JAZam-Texto56b

        27 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIO IAULOABRAO MARCELOD TORELLY (COORD)

        26 I iexclUSTIltA DETRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRlCAS-OLHARES INTERDlSCIPLlNARES fUNDAMENTOS E PADROacuteES DE FFETIVAltAO

        constrwao de um futuro compartilhado Eacute assim que se apela de forma instrumental a reconciliarao e ao perdao como componente de urna Justira Transicional ou reconstrutiva Em realidade estariacuteamos perante urna retoacuterica poliacutetica do perdao9

        Junto a essas razoes estrateacutegicas encontramos outras razoes mais profundas que tambeacutem devem ser levadas em considerarao Os acontecimentos processos situaroes e periacuteodos histoacutericos em considerarao ultrapassam a possibilidade de tratamento por meio de urna justira punitiva Ainda que essa justira seja necessaacuteria nao haacute sistema judicial capaz de fazer frente a crimes tao monstruosos e em massa E nao eacute somente urna questao de disponibilidade de meios e de poder para aplicaacute-Ios mas tambeacutem urna questao de adequarao dos meios a realidade Como encontrar e aplicar um castigo proporcional Eacute possiacutevel restabelecer dessa maneira um equiliacutebrio entre diacutevida e compensarao Mais ainda urna justilta focada na puniltao do culpashydo concede um valor secundaacuterio as viacutetimas relegando-as a um papel de instrumento probatoacuterio de meros testemunhos da culpabilidade do violador mas nao como testemunhas de seu proacuteprio sofrimento da verdadeira dimensao do crime das exigencias de repararao e da projerao de um futuro sob urna perspectiva diferente lO Diante disso torna-se claro que nao eacute possiacutevel abordar as questoes da Justira Transhysicional sem colocar as viacutetimas no centro

        Os limites da justira punitiva contudo nao se fazem evidentes apenas em relarao aos violadores e as viacutetimas Quando nos deparamos com um genoddio os crimes de urna ditadura ou ao horror de urna guerra civil nao apenas ternos de trataacute-Ios como urna violencia direta (violarao aos direitos humanos tortura explorarao selvagem assassishynatos sistemaacuteticos aniquilarao em massa etc) mas tambeacutem como urna violencia estrutural e culturalll Nao basta castigar judicialmente ou

        ~ retoacuterica do perdiio enquanto amaacutelgama metafoacuterica difiacutecilmente passiacutevel de descriltiio histoacuterica se encarna como urna retoacuterica pela reconcilialtiio da fratemidade nacionaL Nesta loacutegica inserem-se os processos de anistia em favor de perpetradores violadores e responsaacuteveis acompanhados pela exigencia de um bem comum supremo o patriotismo nacional enraizado em fundamentos de seguranlta estatal [MARTIacuteNEZ DE BRIN GAS A De la ausencia de recuerdos y otros olvidos intencionados una lectura poliacutetica de los secuestros de la memoria In GOacuteMEZ ISA F (Dir) El derecho a la memoria lruacuten Alberdania 2006 p 275] S Lefranc sublinha a pluralidade de retoacutericas pelo perdao segundo os atores que participam dos processos de Justi~a Transicional (Poliacuteticas del perdoacuten Madrid Caacutetedra

        10 Sobre urna justilta centrada nas viacutetimas (cL MATE R Memoria de AuschwifZ actualidad moral y poliacutetica Madrid Trotta 2003 p 241 et seq) Cf GALTUNG J Tras la violencia 3R Reconstruccioacuten Reconciliacioacuten Resolucioacuten afronshytando los efectos visibles de la guerra y la violencia Bilbao Bazeak 1998

        iexclOSEacute A ZAMORA

        HISTOacuteRlA MEMOacuteRIA E JUSTlltA - DA JUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacutenCA

        se for o caso conceder anistia aos responsaacuteveis pela violencia direta Como abordar as cumpliddades omissoes e indiferenras medrosas Como propiciar um processo de transformarao profunda que alcance tambeacutem essa rede intrincada de cumplicidades De onde nasceu a forra regeneradora capaz de produzir urna quebra das dinamicas de violencia e abertura ao novo Como impedir a continuidade da cultura (antissemitismo racismo classismo) que tornou possiacutevel a violencia direta

        Se o conceito de Justira Transicional deve ser algo mais do que o equivalente a urna justuumla especial excepcional e transitoacuteria com o objetivo de reciclar o peso do passado de alcanrar pela via mais raacutepida e menos custosa urna estabilidade social e poliacutetica poacutesshytraumaacutetica entao devemos repensar sob a luz da experiencia social e poliacutetica do seacuteculo dos genociacutedios12 a significarao poliacutetica do sofrishymento a centralidade moral e poliacutetica das viacutetimas e a relarao entre memoacuteria e histoacuteria13

        1 Significacao poliacutetica do sofrimento

        O sofrimento se encontra nas raIacutezes da poliacutetica e do direito Essa afirmarao surpreendente e impactante de A Madrid exige assushymir urna perspectiva nao habitual sobre referidas construroes sociais que acostumamos ver mais sob a perspectiva da comunidade que as produz e eacute ao mesmo tempo produzida por elas e portanto a partir de urna necessidade de coesao ou de regularao do conflito essa perspecshytiva eacute encaberada a partiacuter da modernidade pela ideia reguladora do contrato social e de todos os componentes que o determinam (genese legitimidade garantiacuteas extensao etc) Mas o que essa afirmarao nos provoca eacute que olhemos qualquer modelo poliacutetico e juriacutedico examinado a partir dos criteacuterios que oferecem para encaminhar urna questao decisiva que fazer com o sofrimento - e pela maneira como se impoem ditos criteacuterios

        Por vezes nos relacionamos com determinadas praacuteticas sociais sem atentar para as premissas que lhe servem de fundamento e com freq4encia tampouco refletimos sobre as consequencias que sao derivadas destas Naturalizamos determinados usos da dor ou

        l Cf BRUNETEAU B El siglo de los genocidios violencias masacres y procesos genocidas desde Armenia a Ruanda Madrid Alianza 2005

        13 Cf MATE R Tratado de la injusticia Rubiacute Barcelona Anthropos 2011 p 261 et seq MADRID A La poliacutetica y la justicia del sufrimiacuteento Madrid Trotta 2010 p 194

        28 29 JOSE CARLOS MOREIRA DA SILVA F1UIO PAULa ABRAOMARCELO D TORELLY (COORD)

        JUS11ltA DE TRANSJltAO NAS AMEacuteRlCAS-OLHARES INTERDISCIPUNARES fUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVACAo

        certas uti1iza~oes do sofrimento como urna medida que o Estado pode aplicar servindo-se do marco juriacutedico do aparato judicial e das for~as de seguran~a Por outro lado tambeacutem existem sofrimentos e danos qualificados socialmente como injustos e em certa medida reparaacuteveis ou compensaacuteveis A mesma constru~ao do Estado de Direito pode ser vista como processo de limita~ao do dano e do sofrimento na mesma medida em que estes sao construiacutedos como injustos indevidos ou evishytaacuteveis E um passo mais adiante o Estado Social de Direito avaniexclou por este caminho nao apenas penalizando ou proibindo a produ~ao de determinados sofrimentos como tambeacutem impondo medidas para evitaacute-Ios reparaacute-Ios ou compensaacute-Ios

        A imbricaiexclao entre violencia direito e poliacutetica eacute urna evidencia empiacuterica dificilmente negaacuteveL Urna vez que essa evidencia eacute estabeleshycida acostuma-se habitualmente a dirigir a ateniexclao aos principios sociais que tornam aceitaacutevel este viacutenculo entre poder e violencia a questao de sua legitimidade provenha esta dos procedimentos para estabelecer ditos principios ou dos fins que o poder persegue com o dano - e nao ao efeito de normalizaiexclao juriacutedica do sofrimento e da ordem social de que faz parte O mesmo poderiacuteamos dizer da mobilizaiexclao do direito contra as fontes de padecimento da populaiexclao Todo o aparato do Estado seu regime juriacutedico suas instituiiexcloes e administraiexcloes seus oacutergaos policiais e todos os seus entes estao envolvidos com aquilo que urna sociedade faz com o sofrimento e podem ser analisados a partir deste ponto de vista E bem sabemos que nem todos os sofrimentos e nem todas as pessoas que deles padecem sao reconhecidos da mesma maneira e na mesma medida O direito eacute um mecanismo fundamental de reconhecimento da dor e por outro lado eacute tambeacutem um mecanisshymo da sua invisibilizaiexclao ou perda de relevancia social Eacute evidente que na aiexclaO de diferenciar sao revelados o modelo sociopoliacutetico em que a diferenciaiexclao eacute baseada e por meio disso as estruturas de domishynaiexclao que imperam

        Por outro lado tambeacutem resulta evidente que o sofrimento possui um caraacuteter fundante da ordem poliacutetica eacute dizer um papel de genese e sustentaiexclao dos viacutenculos da comunidade poliacutetica o que permite situaacute-Io como um dos fundamentos simboacutelicos dessa ordem A rela~ao entre genese e sustenta~ao dos viacutenculos eacute avalizada pela capacidade dos sacrificios passados em ativar a estrutura obrigacional eacute dizer a necessidade atual de assumir os sacrifiacutecios que a ordem social impoe Que os sofrimentos passados foram sofrimentos substitutivos serve de fundamento para a perpetuaiexclaO do caraacuteter substitutivo do sofrimento no presente Mas isso exige praticar urna seleiexclao e urna discrimina~ao

        JOSEacute A ZAMORA

        HlSTOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSnltA - DA iexclUSTI(A TRANSICIONAL AiexclUSTl(A ANAMNEacuteTICA

        entre os sofrimentos que sao significativos e os que sao despreziacuteveis ou indiferentes para a ordem poliacutetica instituiacuteda A poliacutetica administra essa discrimina~ao entre o sofrimento dos nossos e o dos oUtros entre o sofrimento que haacute de proteger ou que se pode exigir como sacrifiacutecio daquele que se pode impor a outros ou perante o qual nao se assume qualquer responsabilidade Esclarecer essa 11 gestao dos sofrimentos supoe revelar e questionar ao mesmo tempo as rela~oes de poder entre vencedores e vencidos as rela~oes sociais de domina~ao A poliacutetica entre oUtras coisas eacute gestao do sofrimento que comeiexcla por determinar quais sofrimentos possuem um significado central e quais sao colocashydos a margem da organizaiexclao poliacutetica Isto concede a memoacuteria do sofrimento um caraacuteter eminentemente poliacutetico e urna enorme capashycidade de questionar o poder

        Nenhum outro pensador demonstrou de forma tao aguda como Theodor W Adorno que o sofrimento produzido socialmente eacute o sinal de que a totalidad e social se impoe cegamente aos sujeitos singulares e ao mesmo tempo que eacute da experiencia do sofrimento que surge a possibilidade de se opor a totalidade social15 Por essa raza o o sofrimento eacute sempre um fenoacutemeno bifronte no qual o que eacute mais objetivo e o que eacute mais subjetivo resultam como duas caras de urna mesma moeda sofrimento eacute objetividade que pesa sobre o sujeito oque experimenta como o que eacute mais subjetivo dele sua expressao estaacute mediado objetivamente16 O sofrimento eacute a consequencia da esshycassez da repressao da pulsao da domina~ao de classe da explorashyiexclaO da violencia e da vontade de destruiiexclao Nao estamos pois ante urna invariante da condi~ao humana senao frente ao produto de urna sociedade falsa e de urna emancipa~ao fracassada O sofrimento eacute o resultado de urna coa~ao social objetiva mas ao mesmo tempo eacute urna experiencia absolutamente singular e singularizante eacute o mais subjetivo no sentido de que afeta o sujeito em sua mais extrema indishyvidualidade Isso concede ao sujeito que sofre urna relevancia objeshytiva na medida em que sua experiencia de sofrimento individual eacute ao mesmo tempo urna alavanca com a qual se abre urna brecha na totashylidade social coativa desmascarando a violencia social em seu caraacuteter coativo e destrutorf nomeando-a como violencia injusta

        Theodor WAdorno encontra na literatura de Kafka um modelo do que pode ser essa criacutetica da COaiexclaO social a partir da experiencia

        15 Cf ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 6 Hrsg von R Tiedemann Frankfurt aM Suhrkamp 1973 p 148

        6 Id p 29

        JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAo MARCELO D TORELLY (COORD)

        30 I iexclUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDlSOPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

        do sofrimento as feridas que a sociedade inflige ao indiviacuteduo sao lidas por ele como sinais cifrados da falsidade social como nega~6es a verdade [] Ele derruba a fachada tranquilizadora ante o excesso de sofrimento a qual se acomoda continuamente o controle racional 17 O valor das feridas sofridas pelo indiviacuteduo para penetrar a nega~ao e reconhed~-la como tal mostra a relevancia da enerva~ao corporal para o conhecimento Dita enerva~ao se comporta como um sismoacutegrafo que registra a negatividade da sociedade nas experiencias do sofrishymento Sem embargo isto nao quer dizer que ditas experiencias sejam urna garantia para a criacutetica da coa~ao social e da violencia estrutural ou poliacutetica pois a mesma sociedade desenvolve mecanismos para garantir seu esquecimento Como o proacuteprio Adorno reconhece forma parte do mecanismo de domina~ao proibir o conhecimento do sofrishymento por ele produzido18 A induacutestria cultural tem aqui urna de suas fun~6es especiacuteficas Disso vem o desespero de Adorno frente ao desaparecimento da consciencia da opressao e do sofrimento Como se pode reagir ante o fato de que o mundo realmente se transformou de tal maneira que jaacute nao se chega a ter consciencia do sofrimento [ ]19 A extin~ao da experiencia amea~a tambeacutem a experiencia da extin~ao da experiencia (do sofrimento)

        Apesar de tudo a persistencia da experiencia do sofrimento da ferida que nao se pode estancar da memoacuteria da dor injusta abre permanentemente a possiblidade de nominar e combater o horror Eacutepor isso que o testemunho das viacutetimas de quem padeceu de um sofrishymento produzido socialmente um sofrimento evitaacutevel e injusto tem um valor poliacutetico de primeira ordem e um valor certamente criacutetico Tomar eloquente politicamente o sofrimento injusto eacute a forma mais poderosa de questionar as estrateacutegias de esquecimento e silenciamento que sao cuacutemplices das formas de violencia e domina~ao as quais ajudam a se reproduzir e se perpetuar Assim se tudo o que ternos dito ateacute aqui acerca da significa~ao poliacutetica do sofrimento estaacute correto entao se tem que defender e possibilitar urna centralidade moral e poliacuteshytica das viacutetimas Eacute somente por meio do reconhecimento dos direitos

        17 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 10 [Aufzeichnungen zu Kafka] Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1977 p 262

        18 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Negative DialektikJ Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 68

        19 ADORNO TW et al Diskussion aus einem Seminar uumlber die Theorie der Beduumlrfnisse 1942 In HORKHEIMER M Gesammelte Schriften Bd 12 Hsrg von G Schmid-Noerr Frankfurt aM Fischer 1985 p 573

        JOSEacute A ZAMORA I 31 HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E jUSTIltA - DA jUSTlltA TRANSIOONAL Aacute JUSTlltA ANAMNEacuteTICA

        pendentes da viacutetima que se pode escapar da loacutegica de domina~ao que mascara ideologicamente seu hito histoacuterico como universalidade lograda para seguir produzindo viacutetimas destinadas a cair no po~o do esquecimento

        2 Centralidade das viacutetimas

        Toda pretensao de defini~ao acabada sobre o que ou quem eacute urna viacutetima estaacute condenada ao fracasso Nos conflitos em que eacute gerada a violencia estrutural ou singular sao colocados em praacutetica ao mesmo tempo discursos que legitimam dita violencia e que tambeacutem negam as viacutetimas a sua condi~ao A proacutepria condi~ao de viacutetima eacute urna condi~ao controvertida e em disputa tambeacutem porque existe a autovitimiza~ao ilegiacutetima Sem embargo isso nao retira todo o sentido e a efetividade da tentativa de reclamar centralidade as viacutetimas Na realiza~ao dessa reclama~ao tem-se que colocar em praacutetica necessariamente os argushymentos pelos quais se esclarece a condi~ao de viacutetima E para colocar esse processo em movimento basta urna condi~ao necessaacuteria para se falar de viacutetimas seu viacutenculo com a injusti~a Viacutetimas sao aquelas pessoas a quem se inflige injustamente um sofrimento produzido socialmente Evidentemente que isso pode parecer como um argumento circular sem saiacuteda em vez de ajudar Mas em realidade o que vem a ressaltar esse viacutenculo eacute a prioridade da experiencia da injusti~a que sempre eacute histoacuterica e concreta no momento de formular discursivamente as exishygencias de justi~a E se quem tem prioridade eacute a experiencia da injusti~a esta somente se pode fazer valer a partir das viacutetimas e por elas

        Em todo o caso referir-se a centralidade das viacutetimas sup6e propor urna desloca~ao histoacuterica e poliacutetica de difiacutecil realiza~ao poi s a condi~ao de viacutetima parece estar associada justamente por um desshylocamento a periferia social seja porque sao convertidas em sacrifiacutecio necessaacuterio a constitui~ao sustenta~ao ou regenera~ao da comunidade poliacutetica - as viacutetimas proacuteprias seja para realizar e salvaguardar os interesses de dita comunidade frente a inimigos reais ou potenciais - as viacutetimas alheias Como destacou com implacaacutevel honestidade intelectual W BenjaIl)IacuteiacuteIacute em sua Teses sobre o conceito da histoacuteria tampouco os mortos estarao seguros ante o inimigo quando este ven~a E este inimigo nao tenha cessado de vencer 20 A histoacuteria costuma ser escrita pelos vencedores e pelos que tem poder para negociar os

        20 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 1 [Uumlber den Begriff der GeschichteJ Hrsg von R H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p 695

        I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILvA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

        32 jUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

        novos pactos poacutes-conflito nos quais viacutetimas passadas ou presentes raramente possuem poder para se fazer ouvir A vitimizaltao primaacuteria resultante da violeacutencia exercida diretamente se une a vitimizaltao secundaacuteria proveniente do desamparo do maltrato da alienaltao por parte daqueles convocados a servir em sua causa21 Que se pode dizer entao da centralidade das viacutetimas Em primeiro lugar dita centralidade tem um significado epistemoloacutegico O olhar da viacutetima tem urna capacidade proacutepria de verdade de revelaltao do existente e de penetraltao na loacutegica que o preside da qual carece a visao que comunga com o poder dos vencedores ou que se deixa ofuscar por seu fulgor Existe pois um mais de verdade experiencial pela proximidade aos efeitos destrutivos do poder aniquilador que imuniza tanto frente aos enganos de um ideal de objetividade cuacutemplice ao horror como frente a cegueira que se alimenta da frieza e da indiferenlta perante o destino infeliz dos outros Isto nao quer dizer que a viacutetima esteja livre de ofuscamentos e distorlt6es como a de contemplar a si mesma com os olhos de seus carrascos Mas haacute outra forma de quebrar o feitilto dessa perspectiva a qual pode sucumbir ateacute mesmo a proacutepria viacutetima O sofrimento experimentado de modo direto como visto eacute capaz de (voltar a) instaurar a distancia a visao que comunga com a injustilta e legitima a violeacutencia contra a viacutetima Ao menos para esta por meio da experieacutencia do sofrimento abre-Ihe a possibilidade de romper com o feitilto de legitimaltao de toda a injustilta

        Essa perspectiva nao apenas possui um valor epistemoloacutegico como tambeacutem tem urna dimensao eacutetica e poliacutetica A partir dela as categorias da autonomia liberdade igualdade dignidade direitos humanos justilta etc que servem de fundamento para a ordem moral e poliacutetica da modernidade sao colocadas a prova e adquirem novo significado A poliacutetica eacute instada a fazer frente a tantas vidas frustradas a tanta violeacutencia gerada a tantos inocentes mortos mas tambeacutem a reclamar urna universalidade que nao se limita no presente daqueles que possuem voz e poder para negociar pactos entre os formalmente livres e iguais As viacutetimas sao quem pode oferecer a chave para se enfrentar o problema central da relaltao entre poliacutetica e violeacutencia sem cuja abordagem eacute ilusoacuterio pensar em um futuro de paz e de reconcilialtao Elas sao quem nos permite reconhecer a desigualdad e social como injustilta que nao nascemos iguais e livres

        21 Cf VALLADOLID T Los derechos de las viacutectimas In MARDONES J M MATE R (Ed) La eacutetica ante las viacutectimas Rubiacute Barcelona Anthropos 2003 p 156 et seq

        jOSEacuteAZAMORA I HISTOacuteRIA MEMOacuteRlA E jUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICJONAL Aacute jUSTIltA ANAMNEacuteTICA 33

        que sao inumeraacuteveis os que se sobrecarregam com diacutevidas acumuladas com eXclus6es e marginalizalt6es herdadas e que nao haacute verdadeira igualdade e justilta a nao ser como resposta as injustiltas e desigualshydades existentes e persistentes no tempo

        W Benjamin destacou com acuidade penetrante essa mudanlta de perspectiva a tradiltao dos oprimidos nos ensina que a regra eacute o estado de exceltao na qual vivemos22 A possibilidade de pensar conjuntamente regra e exceltao depende da adoltao da perspectiva dos oprimidos das viacutetimas da histoacuteria e nao simplesmente por solishydariedade a elas ainda que isto seja louvaacutevel sob urna perspectiva moral mas sim em honra a verdade desta histoacuteria Benjamin pretendia demonstrar o caraacuteter catastroacutefico de um horror que decorre de um modo regular e conforme a lei e para isso destacou as circunstancias nas quais o poder se impoacutes por meio do estado de exceltao que se conshyverteu em regra Trata-se pois de acentuar a conscieacutencia da excepshycionalidade do horror que seus defensores qualificam como estabilidade e legalidade

        Mas para se levar em consideraltao a provocaltao das viacutetimas eacute preciso reconhecer o significado das contas em aberto com o passado e as exigeacutencias de justilta pendentes enquanto condiltao para quebrar a loacutegica da dominaltao que segue produzindo viacutetimas destinadas a cair no polto do esquecimento Urna mudanlta dessa natureza passa pelo enfrentamento do desafio que representam cataacutestrofes sociais e poliacuteticas desde a produltao industrial da morte nos campos de extershymiacutenio realizada com a pretensao de apagar qualquer tralto que pudesse recordaacute-Ia ateacute a produltao de milh6es de vidas tratadas como se fossem supeacuterfluas prescindiacuteveis ou descartaacuteveis presas da exclusao social ou da fome passando por inumeraacuteveis viacutetimas da violeacutencia beacutelica que as reduz a danos colaterais ou da violeacutencia poliacutetica que as convershyte em inimigo a eliminar para sustentar urna ordem considerada inquestionaacutevel ou imutaacutevel ou ainda para impor os interesses de um grupo ou de urna comunidade poliacutetica inteira contra aqueles que se pretende dominar ou conquistar

        ~

        Na centralidade das viacutetimas se inspira um novo conceito de jusshytilta que se interpela pelos direitos negados no passado pela vigeacutencia do dano que elas sofreram pelos viacutenculos entre a injustilta presente e passada Fazer justilta nao consiste apenas em castigar o culpado mas tambeacutem em adotar a perspectiva das viacutetimas Isso sup6e em

        22 BENJAMIN p 697

        35

        ----------------------11 34 iexcl JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIo PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORIJ)

        INfFRDlaIgtUlAiRES FUNIJAMENT05 E PADRUumlES DE EFETIVAltAO

        primeiro lugar nao suplantar a realidade por um marco abstrato de regras pactuadas segundo criteacuterios de universalidade formal Os oprimidos e aqueles que sofreram injustiiexcla experimentaram com clara evideacutencia que sua singularidade nunca encontra guarida nessa universalidade Para eles a opressao e dominaiexclao nao sao situaiexcloes excepcionais de urna ordem garantida pelo direito mas sim a regra que perenemente se confirma Adotar a perspectiva das viacutetimas Iacutemshypede qualquer relativizaiexclao de seu sofrimento toda subordinaiexclao instrumental a sustentaiexclaO de urna ordem precipitadamente qualificada como justa Ademais existe um nexo tomado invisiacutevel entre aqueles que na histoacuteria foram privados de seus direitos sofreram injustamente e foram aniquilados sua contiacutenua postergaiexclao Para que haja justiiexcla eacute preciso in verter os papeacuteis As viacutetimas teacutem de passar ao primeiro plano sua visao sobre a realidade suas exigeacutencias suas esperaniexclas sua singular contribuiiexclao a um futuro projetado de costas para elas ou as suas costas Inclusive o significado do que parece irreparaacutevel tem de ser devolvido ao cenaacuterio da justiiexcla se eacute que queremos reivindicar com sentido o direito de todos a urna existeacutencia efetiva Para construir um mundo baseado na justiiexcla eacute imprescindiacutevel a memoacuteria

        3 Memoacuteria e histoacuteria

        A atualidade poliacutetica e cultural da memoacuteria nao deveria nos enganar sobre a dureza e as dificuldades associadas a determinadas memoacuterias Perante alguns crimes nao haacute nada que pareiexcla tao natushyral como o desejo ao esquecimento de virar a paacutegina2-1 se nao fosse pelas proacuteprias viacutetimas de cataacutestrofes sociais e poliacuteticas as quais nos atribuiacuteram o encargo de nao esquecer e nos responsabilizou com o dever de manter viva a memoacuteria das injustiiexclas acometidas Em seu

        23 A op~o pelo esquecimento tem sido a preferencia no passar dos seacuteculos Somente a partir da Primeiacutera Guerra Mundial eacute que se produziu urna mudanca na cultura poliacutetica para dar espa~o a conviuumlao de que apenas a rernemoracao detalhada e nao maquiada dos crimes corridos e dos castigos aos autores responsaacuteveis pelos mesmos eacute capaz de quebrar o poder da violeacutencia sofrida no passado (d MEIER C Das Cebot zu vergessen urul die Unabweisbarkeit des Erinnems vorn offentlichen Umgang mit schlimmer VergangenheiL

        Siedler 2010) O Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional firmado em 1945 entre Franca Estados Unidos Reino Unido e a Uniacuteao Sovieacutetica que fixou os princiacutepios e procedimentos pelos quais foram regidos os Julgamentos de Nuremberg e a eriaao da Corte Penal internacional representam duas referencias fundamentais dessa mudanca na cultura poliacutetica e apontam para o desenvolvimento de memoacuteriacuteas poacutesshynacionais inclinadas a integra~ao dos acontecimentos histoacutericos de caraacuteter negativo e vergonhosos a autoimagem dos Estados Sem embargo isto nao aplacou em absoluto o debate em tomo da relaao entre o dever da mernoacuteria e o direito ao esquecimento Id FERENCZI T (Dir) Devoir de meacutemoire droit aIoubli Brexelles Complexe 2002]

        Ji

        iexclOSriAZAMORA HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL A fUSTIltA ANAMNEacuteTICA

        imaginaacuterio o esquecimento representa uma segunda injustiiexcla que se soma a jaacute sofrida sancionando-a Isso parece corresponder como se fosse a outra cara de uma mesma moeda com a inteniexclao de impor o esquecimento reconheCIacutevel aos perpetradores em seu afa de apagar os traiexclos do crime Nada resulta mais eloquente no caso extremo de Auschwitz do que a pretensao dos nazistas de nao apenas assassinar a todos os judeus mas tambeacutem de nao deixar rastro algum nem de suas viacutetimas nem do crime praticado24

        A dificuldade da memoacuteria sobre acontecimentos traumaacuteticos produzidos pela violeacutencia extrema proveacutem do fato de que sua origem se encontra nao em urna recordaiexclao integrada ou integraacutevel mas sim em urna recordaiexclao deslocada urna recordaiexclao que dolorosashymente transmite o nuacutecleo da experieacutencia interna do trauma e ao mesmo tempo eacute incapaz de tornaacute-Io acessiacutevel como se tornam partiacutecipes e acessiacuteveis outras experieacutencias humanas Trata-se de uma dificuldade que os testemunhos revelam aquele que esteja disposto a escutar Essa recordaiexclao somente pode ser comunicada e ter significado para a memoacuteria individual e coletiva daqueles que nao tenham sido viacutetimas ou testemunhas diretas da violeacutencia caso estejam dispostos a pagar o preiexclo que acompanha esse SI dote Esse preiexclo comeiexcla com a atribuiiexclao de centralidade a viacutetima Assumir a responsabilidade desta difiacutecil

        memoacuteria eacute indissociaacutevel da mudaniexcla radical epistemoloacutegica eacutetica poliacutetica e esteacutetica que passa pela referida centralidade Nada expressa melhor o novo imperativo categoacuterico poacutes-Auschwitz formulado por Theodor W Adorno na Dialeacutetica negativa de ordenar o pensamento e a aiexclao tomando como ponto de inflexao essa cataacutestrofe de forma que o que se diga pense e aja seja para evitar que algo semelhante possa ocorrer O sofrimento dos outros se converte assim no criteacuterio derrashydeiro da verdade da justiiexcla do gozo nao disciplinado do bem25 Essa

        24 Essa intencao de eliminar todos os rastros de nao deixar prava eacute o traco que define para P Vidal-Naquet a verdadeira singularidade de Auschwitz o que ele charna de negacao do crime dentro do crime (Les jui[s la meacutemoiacutere el le preacutesenllI Pariacutes La Decouverte 1991 p 416) Tarnbeacutem nesse mesmo sentido K Mate (Tratado sobre la injusticia Rubiacute Barcelona Anthrapos 2010 p 191et seq)

        25 Evidentemente isto suscita exigencias associadas dirigidas ateoriacutea e apraacutexis Mio se trata de gerar urna metafiacutesica negativa a partir daquilo que alguns chamam de mal radical ou de uma espeacutecie de religiao civil na qual inevitavelmente as viacutetimas sao novamente instrumentalizadas (er TRAVERSO K El passado instrucciones de uso tistoria memoria

        Madrid Barcelona Marcial Pons 2007 p 69-74) A rnudan~a epistemoloacutegica poliacutetica e esteacutetica exigida pela memoacuteria das viacutetimas passa por urna teoria do conheshy

        cimento da racionalidade e da verdade asua altura e tambeacutem por urna teoria da socieshydade urna filosofia moral e poliacutetica urna teoria esteacutetica etc que partam da quebra que representa a violencia exerciacuteda contra elas

        37 iexclOSEacute CARLOS MOIEIRA l)A SILVA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (CCXlRD) 36 iexclUSTIltA DE TRANSlltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDISClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADR)E5 DE EFETIVAltAo

        seria a condiltao de possibilidade da comunicabilidade da recordaltao deslocada dos traumas histoacutericos Aqui estaacute a chave de urna razao anamneacutetica dificilmente instrumentalizaacutevel pelas poliacuteticas da memoacuteria a servilto da legitimaltao de determinadas ordens sociais ou de atores que competem pela hegemonia dentro destas O que resulta definitivo para essa razao anarnneacutetica eacute a difiacutecil recordaltao do sofrimento alheio26

        Por outro lado a memoacuteria que se responsabiliza pela recordaltao deslocada dos testemunhos da violeacutencia poliacutetica extrema eacute urna memoacuteria perigosa pois nela se quebra a ordem que permitiu e na qual ocorreu o horror Dita memoacuteria interrompe o curso normal do tempo contradiz seu avanlto calcado em um fundo de injustiltas acushymuladas reclama o direito do possiacutevel e mio realizado frente ao que se impos em uacuteltima instancia denuncia o constituiacutedo revelando seus custos Nessa memoacuteria podem ser realizadas pois os potenciais criacuteticos inscritos de maneira gerat na recordaltao do passado que corno apontara H Marcuse pode fazer surgir pontos de vista perigosos o que explicariacutea segundo ele por que a sociedade estabelecida parece temer os conteuacutedos subversivos da memoacuteria [ ]27 Mas eacute imshyportante destacar aqui que tampouco o sujeito dessa memoacuteriacutea estaacute a salvo do perigo que ela representa O sujeito que se constitui por meio da memoacuteria do sofrirnento alheio nao emerge corno urna totashylidade ideacutentica consigo mesmo mas siacutem corno um eu quebradilto e problemaacutetico Sua debilidade se torna patente desde o princiacutepio na figura da indisponibilidade da recordaltao deslocada No caso da memoacuteria traumaacutetica da viacuteoleacutencia extrema a soberaniacutea do sujeito sobre as recordaltoes eacute muito limitada Assistimos em muitos casos a sofriacutementos de pessoas que quiseram se desprender das recordaltoes que as atormentam e das quais nao conseguem se afastar Isso nada tem a ver com a nostalgia de um passado saudoso ou com a exaltaltao de um passado glorioso Sao recordaltoes que tomam de assalto o sujeito e nao quando ele quer mas siacutem quando as recordaltoes querem se assim for possiacutevel falar

        26 A razao anamneacutetica adquire seu caraacuteter ilustrado e sua legiacutetima uruversalidade graas ao reconhecimento de que eacute guiada por urna determinada recordaltao em concreto pela recordaao do sofriacutemento pela memoria passionis Mas nao como a recordaao do sofrimento referido a um mesmo (a raiz de todos os conflitos) senao como a recordaao do sofrimento de outros como rememoraao puacuteblica do sofrimento alhcio incorporada de urna tal maneira ao uso puacuteblico da razao que Ihe imprima sua nota distintiva (METZ JB Memariacutea passiacuteonis una evocacioacuten provocadora en una sociedad pluralista Santander Sal Terrae 2007 p 214)

        27 MARCUSE H Der eindimensionale Mensch Neuwid Berliacuten Luchterhand 1967 p 117

        lOSEacute A ZAMORA A ANAMNFl1CA

        W Benjamin tornando corno ponto de partida a meacutemoire involuntaire de Proust mas indo mais aleacutem em sua reflexao

        R reivindishy

        cou o papel das recordaltoes involuntaacuterias para ter acesso a verdade de acontecimentos e etapas largamente esquecidas Daiacute eacute que se tem seu iacutenteresse pela memoacuteria nao corno depoacutesito e registro senao corno rememoraltao corno atualizaltao iacutenstantanea corno fagulha Essa forma de memoacuteria nao vem a confirmar o poder do sujeito ou a reforltar o marco de convicltOes e representaltoes compartilhadas com um grupo Diferentemente da memoacuteria voluntaacuteria na qual o passado jaacute foi cravado e integrado na recordaltao normalizada na memoacuteriacutea involuntaacuteria o sofriacutemento aparece corno algo que vem de fora corno acrescido a conscieacutencia corno o concorrente do pensamento Isto eacute o que constituiacute a diacutealeacutetica da rememorariio Theodor W Adorno a formulou corno a exigeacutencia de tornar eloquente o sofrimento e para ele essa eacute a condiacuteltao de toda verdade Por isso Ita esperanlta nao eacute a recordaltao fixada senao o retomo do esquecido29 O esquecimento eacute corno urna espeacutecie de negativo fotograacutefico obscuro e produtivo da memoacuteria e da recordaltao Na dialeacutetica da rememoraltao trata-se de traduziacuter essa memoacuteria preacute-reflexiva as recordaltoes coletivas sem liquidaacute-Ia coiacutesa que ocorre quando ela eacute convertida em mero material de entretenimento ou de elaboraltao cientiacutefica

        Longe dos clicheacutes positivos e negativos do passado com os quaiacutes nos acostumamos a encontrar na maioria dos debates sobre a memoacuteria a dial eacutetica da rememoraltao a que nos referirnos aquiacute tenta perceber e se reapropriar de um passado quebrado e tornaacute-Io precisamente naquele que foi subtraiacutedo da transmiacutessao na hiacutestoacuteria ou na memoacuteria cultural30 Corno nos mostrou W Benjamiacuten a histoacuteria dos sofrimentos somente se toma legiacutevel e experimentaacutevel corno hiacutestoacuterIacutea de esperanlta ao se romper com a continuidade histoacuterica tornando distaacutencia frente a tradiltao dos vencedores na qual se perpetuam os sofrimentos sob a figura do progresso implacaacutevel3l Daqui proveacutem o iacutempeto criacutetico

        28 Cf SCHOTTKER D Erinnern In OPITZ M WIZISLA E (Ed) Benjamins Begriffe Bd 1

        Frankfurt aM Suhrkamp 2000 p 262 et seq 29 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 11 [Zur Sch1ussszene des Faustl Hrsg von R

        Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p138 AA nA rememoraltilo organizada aniquila aquilo que perdura precisamente ao conservaacute-lo

        O instante fugaz somente eacute capaz de viver no esquecimento sussurrante sobre o qual urna vez que se projeta o raio que o faz acender querer possuir o instante jaacute se o perdeu (ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Miniacutema moralia) Hrsg von K Tiedemann el al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 127)

        31 CE ZAMORA Joseacute A Diacutealeacutectica mesiaacutenica tiempo e interrupcioacuten en Walter Benjamin AMENGUAL G CABOT M VERMAL JL (Ed) Ruptura de la tradicioacuten estudios sobre Walter Benjamin y Martiacuten Heidegger Madrid Trotta 2008 p 114 et seq

        I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

        38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

        da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

        Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

        32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

        33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

        l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

        JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

        Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

        A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

        repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

        36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

        p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

        Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

        Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

        41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

        JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

        Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

        Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

        39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

        JOSEacute A ZAMORA

        HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

        contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

        Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

        Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

        Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

        41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

        bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

        43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

        42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

        mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

        Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

        43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

        j05Eacute A ZAMORA

        HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

        bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

        Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

        mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

        44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

        45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

        6 Ibid p 491

        45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

        44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

        enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

        A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

        4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

        As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

        47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

        4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

        iexclOSEacute A ZAMORA

        HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

        Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

        Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

        da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

        49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

        et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

        ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

        46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

        jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

        qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

        Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

        ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

        51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

        DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

        POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

        TRAUMAS SOCIAIS

        MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

        Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

        Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

        ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

        Realiza~ao

        Faculdade de Direito da PUCRS

        Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

        Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

        COlECAo FORUM

        JUSTI~A E DEMOCRACIA

        Coordenador da Cole~ao

        PauloAbrao

        JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

        MARCELO D TORELLY

        Coordenadores

        JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

        OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

        14 1

        LJ Belo Horizonte

        jI r EDITORA ~ -orum

        2013

        r

        COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

        Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

        Conselho Editorial Conselho Editorial

        Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

        Pereira Marques Nelo

        Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

        Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

        Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

        Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

        Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

        Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

        Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

        Fernando Rossi Seacutergio Guerra

        liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

        Presidente e Editor

        Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

        catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

        Diagramatao Luiz Piacutementa

        Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

        wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

        J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

        -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

        1 Crirncs contra a Humanidade

        Moreira da U

        Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

        SUMAacuteRIO

        JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

        PARTEI

        HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

        HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

        DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

        Referencias 59

        EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

        Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

        enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

        da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

        • JAZam-Texto56
        • JAZam-Texto56b

          28 29 JOSE CARLOS MOREIRA DA SILVA F1UIO PAULa ABRAOMARCELO D TORELLY (COORD)

          JUS11ltA DE TRANSJltAO NAS AMEacuteRlCAS-OLHARES INTERDISCIPUNARES fUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVACAo

          certas uti1iza~oes do sofrimento como urna medida que o Estado pode aplicar servindo-se do marco juriacutedico do aparato judicial e das for~as de seguran~a Por outro lado tambeacutem existem sofrimentos e danos qualificados socialmente como injustos e em certa medida reparaacuteveis ou compensaacuteveis A mesma constru~ao do Estado de Direito pode ser vista como processo de limita~ao do dano e do sofrimento na mesma medida em que estes sao construiacutedos como injustos indevidos ou evishytaacuteveis E um passo mais adiante o Estado Social de Direito avaniexclou por este caminho nao apenas penalizando ou proibindo a produ~ao de determinados sofrimentos como tambeacutem impondo medidas para evitaacute-Ios reparaacute-Ios ou compensaacute-Ios

          A imbricaiexclao entre violencia direito e poliacutetica eacute urna evidencia empiacuterica dificilmente negaacuteveL Urna vez que essa evidencia eacute estabeleshycida acostuma-se habitualmente a dirigir a ateniexclao aos principios sociais que tornam aceitaacutevel este viacutenculo entre poder e violencia a questao de sua legitimidade provenha esta dos procedimentos para estabelecer ditos principios ou dos fins que o poder persegue com o dano - e nao ao efeito de normalizaiexclao juriacutedica do sofrimento e da ordem social de que faz parte O mesmo poderiacuteamos dizer da mobilizaiexclao do direito contra as fontes de padecimento da populaiexclao Todo o aparato do Estado seu regime juriacutedico suas instituiiexcloes e administraiexcloes seus oacutergaos policiais e todos os seus entes estao envolvidos com aquilo que urna sociedade faz com o sofrimento e podem ser analisados a partir deste ponto de vista E bem sabemos que nem todos os sofrimentos e nem todas as pessoas que deles padecem sao reconhecidos da mesma maneira e na mesma medida O direito eacute um mecanismo fundamental de reconhecimento da dor e por outro lado eacute tambeacutem um mecanisshymo da sua invisibilizaiexclao ou perda de relevancia social Eacute evidente que na aiexclaO de diferenciar sao revelados o modelo sociopoliacutetico em que a diferenciaiexclao eacute baseada e por meio disso as estruturas de domishynaiexclao que imperam

          Por outro lado tambeacutem resulta evidente que o sofrimento possui um caraacuteter fundante da ordem poliacutetica eacute dizer um papel de genese e sustentaiexclao dos viacutenculos da comunidade poliacutetica o que permite situaacute-Io como um dos fundamentos simboacutelicos dessa ordem A rela~ao entre genese e sustenta~ao dos viacutenculos eacute avalizada pela capacidade dos sacrificios passados em ativar a estrutura obrigacional eacute dizer a necessidade atual de assumir os sacrifiacutecios que a ordem social impoe Que os sofrimentos passados foram sofrimentos substitutivos serve de fundamento para a perpetuaiexclaO do caraacuteter substitutivo do sofrimento no presente Mas isso exige praticar urna seleiexclao e urna discrimina~ao

          JOSEacute A ZAMORA

          HlSTOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSnltA - DA iexclUSTI(A TRANSICIONAL AiexclUSTl(A ANAMNEacuteTICA

          entre os sofrimentos que sao significativos e os que sao despreziacuteveis ou indiferentes para a ordem poliacutetica instituiacuteda A poliacutetica administra essa discrimina~ao entre o sofrimento dos nossos e o dos oUtros entre o sofrimento que haacute de proteger ou que se pode exigir como sacrifiacutecio daquele que se pode impor a outros ou perante o qual nao se assume qualquer responsabilidade Esclarecer essa 11 gestao dos sofrimentos supoe revelar e questionar ao mesmo tempo as rela~oes de poder entre vencedores e vencidos as rela~oes sociais de domina~ao A poliacutetica entre oUtras coisas eacute gestao do sofrimento que comeiexcla por determinar quais sofrimentos possuem um significado central e quais sao colocashydos a margem da organizaiexclao poliacutetica Isto concede a memoacuteria do sofrimento um caraacuteter eminentemente poliacutetico e urna enorme capashycidade de questionar o poder

          Nenhum outro pensador demonstrou de forma tao aguda como Theodor W Adorno que o sofrimento produzido socialmente eacute o sinal de que a totalidad e social se impoe cegamente aos sujeitos singulares e ao mesmo tempo que eacute da experiencia do sofrimento que surge a possibilidade de se opor a totalidade social15 Por essa raza o o sofrimento eacute sempre um fenoacutemeno bifronte no qual o que eacute mais objetivo e o que eacute mais subjetivo resultam como duas caras de urna mesma moeda sofrimento eacute objetividade que pesa sobre o sujeito oque experimenta como o que eacute mais subjetivo dele sua expressao estaacute mediado objetivamente16 O sofrimento eacute a consequencia da esshycassez da repressao da pulsao da domina~ao de classe da explorashyiexclaO da violencia e da vontade de destruiiexclao Nao estamos pois ante urna invariante da condi~ao humana senao frente ao produto de urna sociedade falsa e de urna emancipa~ao fracassada O sofrimento eacute o resultado de urna coa~ao social objetiva mas ao mesmo tempo eacute urna experiencia absolutamente singular e singularizante eacute o mais subjetivo no sentido de que afeta o sujeito em sua mais extrema indishyvidualidade Isso concede ao sujeito que sofre urna relevancia objeshytiva na medida em que sua experiencia de sofrimento individual eacute ao mesmo tempo urna alavanca com a qual se abre urna brecha na totashylidade social coativa desmascarando a violencia social em seu caraacuteter coativo e destrutorf nomeando-a como violencia injusta

          Theodor WAdorno encontra na literatura de Kafka um modelo do que pode ser essa criacutetica da COaiexclaO social a partir da experiencia

          15 Cf ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 6 Hrsg von R Tiedemann Frankfurt aM Suhrkamp 1973 p 148

          6 Id p 29

          JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAo MARCELO D TORELLY (COORD)

          30 I iexclUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDlSOPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

          do sofrimento as feridas que a sociedade inflige ao indiviacuteduo sao lidas por ele como sinais cifrados da falsidade social como nega~6es a verdade [] Ele derruba a fachada tranquilizadora ante o excesso de sofrimento a qual se acomoda continuamente o controle racional 17 O valor das feridas sofridas pelo indiviacuteduo para penetrar a nega~ao e reconhed~-la como tal mostra a relevancia da enerva~ao corporal para o conhecimento Dita enerva~ao se comporta como um sismoacutegrafo que registra a negatividade da sociedade nas experiencias do sofrishymento Sem embargo isto nao quer dizer que ditas experiencias sejam urna garantia para a criacutetica da coa~ao social e da violencia estrutural ou poliacutetica pois a mesma sociedade desenvolve mecanismos para garantir seu esquecimento Como o proacuteprio Adorno reconhece forma parte do mecanismo de domina~ao proibir o conhecimento do sofrishymento por ele produzido18 A induacutestria cultural tem aqui urna de suas fun~6es especiacuteficas Disso vem o desespero de Adorno frente ao desaparecimento da consciencia da opressao e do sofrimento Como se pode reagir ante o fato de que o mundo realmente se transformou de tal maneira que jaacute nao se chega a ter consciencia do sofrimento [ ]19 A extin~ao da experiencia amea~a tambeacutem a experiencia da extin~ao da experiencia (do sofrimento)

          Apesar de tudo a persistencia da experiencia do sofrimento da ferida que nao se pode estancar da memoacuteria da dor injusta abre permanentemente a possiblidade de nominar e combater o horror Eacutepor isso que o testemunho das viacutetimas de quem padeceu de um sofrishymento produzido socialmente um sofrimento evitaacutevel e injusto tem um valor poliacutetico de primeira ordem e um valor certamente criacutetico Tomar eloquente politicamente o sofrimento injusto eacute a forma mais poderosa de questionar as estrateacutegias de esquecimento e silenciamento que sao cuacutemplices das formas de violencia e domina~ao as quais ajudam a se reproduzir e se perpetuar Assim se tudo o que ternos dito ateacute aqui acerca da significa~ao poliacutetica do sofrimento estaacute correto entao se tem que defender e possibilitar urna centralidade moral e poliacuteshytica das viacutetimas Eacute somente por meio do reconhecimento dos direitos

          17 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 10 [Aufzeichnungen zu Kafka] Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1977 p 262

          18 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Negative DialektikJ Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 68

          19 ADORNO TW et al Diskussion aus einem Seminar uumlber die Theorie der Beduumlrfnisse 1942 In HORKHEIMER M Gesammelte Schriften Bd 12 Hsrg von G Schmid-Noerr Frankfurt aM Fischer 1985 p 573

          JOSEacute A ZAMORA I 31 HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E jUSTIltA - DA jUSTlltA TRANSIOONAL Aacute JUSTlltA ANAMNEacuteTICA

          pendentes da viacutetima que se pode escapar da loacutegica de domina~ao que mascara ideologicamente seu hito histoacuterico como universalidade lograda para seguir produzindo viacutetimas destinadas a cair no po~o do esquecimento

          2 Centralidade das viacutetimas

          Toda pretensao de defini~ao acabada sobre o que ou quem eacute urna viacutetima estaacute condenada ao fracasso Nos conflitos em que eacute gerada a violencia estrutural ou singular sao colocados em praacutetica ao mesmo tempo discursos que legitimam dita violencia e que tambeacutem negam as viacutetimas a sua condi~ao A proacutepria condi~ao de viacutetima eacute urna condi~ao controvertida e em disputa tambeacutem porque existe a autovitimiza~ao ilegiacutetima Sem embargo isso nao retira todo o sentido e a efetividade da tentativa de reclamar centralidade as viacutetimas Na realiza~ao dessa reclama~ao tem-se que colocar em praacutetica necessariamente os argushymentos pelos quais se esclarece a condi~ao de viacutetima E para colocar esse processo em movimento basta urna condi~ao necessaacuteria para se falar de viacutetimas seu viacutenculo com a injusti~a Viacutetimas sao aquelas pessoas a quem se inflige injustamente um sofrimento produzido socialmente Evidentemente que isso pode parecer como um argumento circular sem saiacuteda em vez de ajudar Mas em realidade o que vem a ressaltar esse viacutenculo eacute a prioridade da experiencia da injusti~a que sempre eacute histoacuterica e concreta no momento de formular discursivamente as exishygencias de justi~a E se quem tem prioridade eacute a experiencia da injusti~a esta somente se pode fazer valer a partir das viacutetimas e por elas

          Em todo o caso referir-se a centralidade das viacutetimas sup6e propor urna desloca~ao histoacuterica e poliacutetica de difiacutecil realiza~ao poi s a condi~ao de viacutetima parece estar associada justamente por um desshylocamento a periferia social seja porque sao convertidas em sacrifiacutecio necessaacuterio a constitui~ao sustenta~ao ou regenera~ao da comunidade poliacutetica - as viacutetimas proacuteprias seja para realizar e salvaguardar os interesses de dita comunidade frente a inimigos reais ou potenciais - as viacutetimas alheias Como destacou com implacaacutevel honestidade intelectual W BenjaIl)IacuteiacuteIacute em sua Teses sobre o conceito da histoacuteria tampouco os mortos estarao seguros ante o inimigo quando este ven~a E este inimigo nao tenha cessado de vencer 20 A histoacuteria costuma ser escrita pelos vencedores e pelos que tem poder para negociar os

          20 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 1 [Uumlber den Begriff der GeschichteJ Hrsg von R H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p 695

          I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILvA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

          32 jUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

          novos pactos poacutes-conflito nos quais viacutetimas passadas ou presentes raramente possuem poder para se fazer ouvir A vitimizaltao primaacuteria resultante da violeacutencia exercida diretamente se une a vitimizaltao secundaacuteria proveniente do desamparo do maltrato da alienaltao por parte daqueles convocados a servir em sua causa21 Que se pode dizer entao da centralidade das viacutetimas Em primeiro lugar dita centralidade tem um significado epistemoloacutegico O olhar da viacutetima tem urna capacidade proacutepria de verdade de revelaltao do existente e de penetraltao na loacutegica que o preside da qual carece a visao que comunga com o poder dos vencedores ou que se deixa ofuscar por seu fulgor Existe pois um mais de verdade experiencial pela proximidade aos efeitos destrutivos do poder aniquilador que imuniza tanto frente aos enganos de um ideal de objetividade cuacutemplice ao horror como frente a cegueira que se alimenta da frieza e da indiferenlta perante o destino infeliz dos outros Isto nao quer dizer que a viacutetima esteja livre de ofuscamentos e distorlt6es como a de contemplar a si mesma com os olhos de seus carrascos Mas haacute outra forma de quebrar o feitilto dessa perspectiva a qual pode sucumbir ateacute mesmo a proacutepria viacutetima O sofrimento experimentado de modo direto como visto eacute capaz de (voltar a) instaurar a distancia a visao que comunga com a injustilta e legitima a violeacutencia contra a viacutetima Ao menos para esta por meio da experieacutencia do sofrimento abre-Ihe a possibilidade de romper com o feitilto de legitimaltao de toda a injustilta

          Essa perspectiva nao apenas possui um valor epistemoloacutegico como tambeacutem tem urna dimensao eacutetica e poliacutetica A partir dela as categorias da autonomia liberdade igualdade dignidade direitos humanos justilta etc que servem de fundamento para a ordem moral e poliacutetica da modernidade sao colocadas a prova e adquirem novo significado A poliacutetica eacute instada a fazer frente a tantas vidas frustradas a tanta violeacutencia gerada a tantos inocentes mortos mas tambeacutem a reclamar urna universalidade que nao se limita no presente daqueles que possuem voz e poder para negociar pactos entre os formalmente livres e iguais As viacutetimas sao quem pode oferecer a chave para se enfrentar o problema central da relaltao entre poliacutetica e violeacutencia sem cuja abordagem eacute ilusoacuterio pensar em um futuro de paz e de reconcilialtao Elas sao quem nos permite reconhecer a desigualdad e social como injustilta que nao nascemos iguais e livres

          21 Cf VALLADOLID T Los derechos de las viacutectimas In MARDONES J M MATE R (Ed) La eacutetica ante las viacutectimas Rubiacute Barcelona Anthropos 2003 p 156 et seq

          jOSEacuteAZAMORA I HISTOacuteRIA MEMOacuteRlA E jUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICJONAL Aacute jUSTIltA ANAMNEacuteTICA 33

          que sao inumeraacuteveis os que se sobrecarregam com diacutevidas acumuladas com eXclus6es e marginalizalt6es herdadas e que nao haacute verdadeira igualdade e justilta a nao ser como resposta as injustiltas e desigualshydades existentes e persistentes no tempo

          W Benjamin destacou com acuidade penetrante essa mudanlta de perspectiva a tradiltao dos oprimidos nos ensina que a regra eacute o estado de exceltao na qual vivemos22 A possibilidade de pensar conjuntamente regra e exceltao depende da adoltao da perspectiva dos oprimidos das viacutetimas da histoacuteria e nao simplesmente por solishydariedade a elas ainda que isto seja louvaacutevel sob urna perspectiva moral mas sim em honra a verdade desta histoacuteria Benjamin pretendia demonstrar o caraacuteter catastroacutefico de um horror que decorre de um modo regular e conforme a lei e para isso destacou as circunstancias nas quais o poder se impoacutes por meio do estado de exceltao que se conshyverteu em regra Trata-se pois de acentuar a conscieacutencia da excepshycionalidade do horror que seus defensores qualificam como estabilidade e legalidade

          Mas para se levar em consideraltao a provocaltao das viacutetimas eacute preciso reconhecer o significado das contas em aberto com o passado e as exigeacutencias de justilta pendentes enquanto condiltao para quebrar a loacutegica da dominaltao que segue produzindo viacutetimas destinadas a cair no polto do esquecimento Urna mudanlta dessa natureza passa pelo enfrentamento do desafio que representam cataacutestrofes sociais e poliacuteticas desde a produltao industrial da morte nos campos de extershymiacutenio realizada com a pretensao de apagar qualquer tralto que pudesse recordaacute-Ia ateacute a produltao de milh6es de vidas tratadas como se fossem supeacuterfluas prescindiacuteveis ou descartaacuteveis presas da exclusao social ou da fome passando por inumeraacuteveis viacutetimas da violeacutencia beacutelica que as reduz a danos colaterais ou da violeacutencia poliacutetica que as convershyte em inimigo a eliminar para sustentar urna ordem considerada inquestionaacutevel ou imutaacutevel ou ainda para impor os interesses de um grupo ou de urna comunidade poliacutetica inteira contra aqueles que se pretende dominar ou conquistar

          ~

          Na centralidade das viacutetimas se inspira um novo conceito de jusshytilta que se interpela pelos direitos negados no passado pela vigeacutencia do dano que elas sofreram pelos viacutenculos entre a injustilta presente e passada Fazer justilta nao consiste apenas em castigar o culpado mas tambeacutem em adotar a perspectiva das viacutetimas Isso sup6e em

          22 BENJAMIN p 697

          35

          ----------------------11 34 iexcl JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIo PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORIJ)

          INfFRDlaIgtUlAiRES FUNIJAMENT05 E PADRUumlES DE EFETIVAltAO

          primeiro lugar nao suplantar a realidade por um marco abstrato de regras pactuadas segundo criteacuterios de universalidade formal Os oprimidos e aqueles que sofreram injustiiexcla experimentaram com clara evideacutencia que sua singularidade nunca encontra guarida nessa universalidade Para eles a opressao e dominaiexclao nao sao situaiexcloes excepcionais de urna ordem garantida pelo direito mas sim a regra que perenemente se confirma Adotar a perspectiva das viacutetimas Iacutemshypede qualquer relativizaiexclao de seu sofrimento toda subordinaiexclao instrumental a sustentaiexclaO de urna ordem precipitadamente qualificada como justa Ademais existe um nexo tomado invisiacutevel entre aqueles que na histoacuteria foram privados de seus direitos sofreram injustamente e foram aniquilados sua contiacutenua postergaiexclao Para que haja justiiexcla eacute preciso in verter os papeacuteis As viacutetimas teacutem de passar ao primeiro plano sua visao sobre a realidade suas exigeacutencias suas esperaniexclas sua singular contribuiiexclao a um futuro projetado de costas para elas ou as suas costas Inclusive o significado do que parece irreparaacutevel tem de ser devolvido ao cenaacuterio da justiiexcla se eacute que queremos reivindicar com sentido o direito de todos a urna existeacutencia efetiva Para construir um mundo baseado na justiiexcla eacute imprescindiacutevel a memoacuteria

          3 Memoacuteria e histoacuteria

          A atualidade poliacutetica e cultural da memoacuteria nao deveria nos enganar sobre a dureza e as dificuldades associadas a determinadas memoacuterias Perante alguns crimes nao haacute nada que pareiexcla tao natushyral como o desejo ao esquecimento de virar a paacutegina2-1 se nao fosse pelas proacuteprias viacutetimas de cataacutestrofes sociais e poliacuteticas as quais nos atribuiacuteram o encargo de nao esquecer e nos responsabilizou com o dever de manter viva a memoacuteria das injustiiexclas acometidas Em seu

          23 A op~o pelo esquecimento tem sido a preferencia no passar dos seacuteculos Somente a partir da Primeiacutera Guerra Mundial eacute que se produziu urna mudanca na cultura poliacutetica para dar espa~o a conviuumlao de que apenas a rernemoracao detalhada e nao maquiada dos crimes corridos e dos castigos aos autores responsaacuteveis pelos mesmos eacute capaz de quebrar o poder da violeacutencia sofrida no passado (d MEIER C Das Cebot zu vergessen urul die Unabweisbarkeit des Erinnems vorn offentlichen Umgang mit schlimmer VergangenheiL

          Siedler 2010) O Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional firmado em 1945 entre Franca Estados Unidos Reino Unido e a Uniacuteao Sovieacutetica que fixou os princiacutepios e procedimentos pelos quais foram regidos os Julgamentos de Nuremberg e a eriaao da Corte Penal internacional representam duas referencias fundamentais dessa mudanca na cultura poliacutetica e apontam para o desenvolvimento de memoacuteriacuteas poacutesshynacionais inclinadas a integra~ao dos acontecimentos histoacutericos de caraacuteter negativo e vergonhosos a autoimagem dos Estados Sem embargo isto nao aplacou em absoluto o debate em tomo da relaao entre o dever da mernoacuteria e o direito ao esquecimento Id FERENCZI T (Dir) Devoir de meacutemoire droit aIoubli Brexelles Complexe 2002]

          Ji

          iexclOSriAZAMORA HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL A fUSTIltA ANAMNEacuteTICA

          imaginaacuterio o esquecimento representa uma segunda injustiiexcla que se soma a jaacute sofrida sancionando-a Isso parece corresponder como se fosse a outra cara de uma mesma moeda com a inteniexclao de impor o esquecimento reconheCIacutevel aos perpetradores em seu afa de apagar os traiexclos do crime Nada resulta mais eloquente no caso extremo de Auschwitz do que a pretensao dos nazistas de nao apenas assassinar a todos os judeus mas tambeacutem de nao deixar rastro algum nem de suas viacutetimas nem do crime praticado24

          A dificuldade da memoacuteria sobre acontecimentos traumaacuteticos produzidos pela violeacutencia extrema proveacutem do fato de que sua origem se encontra nao em urna recordaiexclao integrada ou integraacutevel mas sim em urna recordaiexclao deslocada urna recordaiexclao que dolorosashymente transmite o nuacutecleo da experieacutencia interna do trauma e ao mesmo tempo eacute incapaz de tornaacute-Io acessiacutevel como se tornam partiacutecipes e acessiacuteveis outras experieacutencias humanas Trata-se de uma dificuldade que os testemunhos revelam aquele que esteja disposto a escutar Essa recordaiexclao somente pode ser comunicada e ter significado para a memoacuteria individual e coletiva daqueles que nao tenham sido viacutetimas ou testemunhas diretas da violeacutencia caso estejam dispostos a pagar o preiexclo que acompanha esse SI dote Esse preiexclo comeiexcla com a atribuiiexclao de centralidade a viacutetima Assumir a responsabilidade desta difiacutecil

          memoacuteria eacute indissociaacutevel da mudaniexcla radical epistemoloacutegica eacutetica poliacutetica e esteacutetica que passa pela referida centralidade Nada expressa melhor o novo imperativo categoacuterico poacutes-Auschwitz formulado por Theodor W Adorno na Dialeacutetica negativa de ordenar o pensamento e a aiexclao tomando como ponto de inflexao essa cataacutestrofe de forma que o que se diga pense e aja seja para evitar que algo semelhante possa ocorrer O sofrimento dos outros se converte assim no criteacuterio derrashydeiro da verdade da justiiexcla do gozo nao disciplinado do bem25 Essa

          24 Essa intencao de eliminar todos os rastros de nao deixar prava eacute o traco que define para P Vidal-Naquet a verdadeira singularidade de Auschwitz o que ele charna de negacao do crime dentro do crime (Les jui[s la meacutemoiacutere el le preacutesenllI Pariacutes La Decouverte 1991 p 416) Tarnbeacutem nesse mesmo sentido K Mate (Tratado sobre la injusticia Rubiacute Barcelona Anthrapos 2010 p 191et seq)

          25 Evidentemente isto suscita exigencias associadas dirigidas ateoriacutea e apraacutexis Mio se trata de gerar urna metafiacutesica negativa a partir daquilo que alguns chamam de mal radical ou de uma espeacutecie de religiao civil na qual inevitavelmente as viacutetimas sao novamente instrumentalizadas (er TRAVERSO K El passado instrucciones de uso tistoria memoria

          Madrid Barcelona Marcial Pons 2007 p 69-74) A rnudan~a epistemoloacutegica poliacutetica e esteacutetica exigida pela memoacuteria das viacutetimas passa por urna teoria do conheshy

          cimento da racionalidade e da verdade asua altura e tambeacutem por urna teoria da socieshydade urna filosofia moral e poliacutetica urna teoria esteacutetica etc que partam da quebra que representa a violencia exerciacuteda contra elas

          37 iexclOSEacute CARLOS MOIEIRA l)A SILVA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (CCXlRD) 36 iexclUSTIltA DE TRANSlltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDISClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADR)E5 DE EFETIVAltAo

          seria a condiltao de possibilidade da comunicabilidade da recordaltao deslocada dos traumas histoacutericos Aqui estaacute a chave de urna razao anamneacutetica dificilmente instrumentalizaacutevel pelas poliacuteticas da memoacuteria a servilto da legitimaltao de determinadas ordens sociais ou de atores que competem pela hegemonia dentro destas O que resulta definitivo para essa razao anarnneacutetica eacute a difiacutecil recordaltao do sofrimento alheio26

          Por outro lado a memoacuteria que se responsabiliza pela recordaltao deslocada dos testemunhos da violeacutencia poliacutetica extrema eacute urna memoacuteria perigosa pois nela se quebra a ordem que permitiu e na qual ocorreu o horror Dita memoacuteria interrompe o curso normal do tempo contradiz seu avanlto calcado em um fundo de injustiltas acushymuladas reclama o direito do possiacutevel e mio realizado frente ao que se impos em uacuteltima instancia denuncia o constituiacutedo revelando seus custos Nessa memoacuteria podem ser realizadas pois os potenciais criacuteticos inscritos de maneira gerat na recordaltao do passado que corno apontara H Marcuse pode fazer surgir pontos de vista perigosos o que explicariacutea segundo ele por que a sociedade estabelecida parece temer os conteuacutedos subversivos da memoacuteria [ ]27 Mas eacute imshyportante destacar aqui que tampouco o sujeito dessa memoacuteriacutea estaacute a salvo do perigo que ela representa O sujeito que se constitui por meio da memoacuteria do sofrirnento alheio nao emerge corno urna totashylidade ideacutentica consigo mesmo mas siacutem corno um eu quebradilto e problemaacutetico Sua debilidade se torna patente desde o princiacutepio na figura da indisponibilidade da recordaltao deslocada No caso da memoacuteria traumaacutetica da viacuteoleacutencia extrema a soberaniacutea do sujeito sobre as recordaltoes eacute muito limitada Assistimos em muitos casos a sofriacutementos de pessoas que quiseram se desprender das recordaltoes que as atormentam e das quais nao conseguem se afastar Isso nada tem a ver com a nostalgia de um passado saudoso ou com a exaltaltao de um passado glorioso Sao recordaltoes que tomam de assalto o sujeito e nao quando ele quer mas siacutem quando as recordaltoes querem se assim for possiacutevel falar

          26 A razao anamneacutetica adquire seu caraacuteter ilustrado e sua legiacutetima uruversalidade graas ao reconhecimento de que eacute guiada por urna determinada recordaltao em concreto pela recordaao do sofriacutemento pela memoria passionis Mas nao como a recordaao do sofrimento referido a um mesmo (a raiz de todos os conflitos) senao como a recordaao do sofrimento de outros como rememoraao puacuteblica do sofrimento alhcio incorporada de urna tal maneira ao uso puacuteblico da razao que Ihe imprima sua nota distintiva (METZ JB Memariacutea passiacuteonis una evocacioacuten provocadora en una sociedad pluralista Santander Sal Terrae 2007 p 214)

          27 MARCUSE H Der eindimensionale Mensch Neuwid Berliacuten Luchterhand 1967 p 117

          lOSEacute A ZAMORA A ANAMNFl1CA

          W Benjamin tornando corno ponto de partida a meacutemoire involuntaire de Proust mas indo mais aleacutem em sua reflexao

          R reivindishy

          cou o papel das recordaltoes involuntaacuterias para ter acesso a verdade de acontecimentos e etapas largamente esquecidas Daiacute eacute que se tem seu iacutenteresse pela memoacuteria nao corno depoacutesito e registro senao corno rememoraltao corno atualizaltao iacutenstantanea corno fagulha Essa forma de memoacuteria nao vem a confirmar o poder do sujeito ou a reforltar o marco de convicltOes e representaltoes compartilhadas com um grupo Diferentemente da memoacuteria voluntaacuteria na qual o passado jaacute foi cravado e integrado na recordaltao normalizada na memoacuteriacutea involuntaacuteria o sofriacutemento aparece corno algo que vem de fora corno acrescido a conscieacutencia corno o concorrente do pensamento Isto eacute o que constituiacute a diacutealeacutetica da rememorariio Theodor W Adorno a formulou corno a exigeacutencia de tornar eloquente o sofrimento e para ele essa eacute a condiacuteltao de toda verdade Por isso Ita esperanlta nao eacute a recordaltao fixada senao o retomo do esquecido29 O esquecimento eacute corno urna espeacutecie de negativo fotograacutefico obscuro e produtivo da memoacuteria e da recordaltao Na dialeacutetica da rememoraltao trata-se de traduziacuter essa memoacuteria preacute-reflexiva as recordaltoes coletivas sem liquidaacute-Ia coiacutesa que ocorre quando ela eacute convertida em mero material de entretenimento ou de elaboraltao cientiacutefica

          Longe dos clicheacutes positivos e negativos do passado com os quaiacutes nos acostumamos a encontrar na maioria dos debates sobre a memoacuteria a dial eacutetica da rememoraltao a que nos referirnos aquiacute tenta perceber e se reapropriar de um passado quebrado e tornaacute-Io precisamente naquele que foi subtraiacutedo da transmiacutessao na hiacutestoacuteria ou na memoacuteria cultural30 Corno nos mostrou W Benjamiacuten a histoacuteria dos sofrimentos somente se toma legiacutevel e experimentaacutevel corno hiacutestoacuterIacutea de esperanlta ao se romper com a continuidade histoacuterica tornando distaacutencia frente a tradiltao dos vencedores na qual se perpetuam os sofrimentos sob a figura do progresso implacaacutevel3l Daqui proveacutem o iacutempeto criacutetico

          28 Cf SCHOTTKER D Erinnern In OPITZ M WIZISLA E (Ed) Benjamins Begriffe Bd 1

          Frankfurt aM Suhrkamp 2000 p 262 et seq 29 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 11 [Zur Sch1ussszene des Faustl Hrsg von R

          Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p138 AA nA rememoraltilo organizada aniquila aquilo que perdura precisamente ao conservaacute-lo

          O instante fugaz somente eacute capaz de viver no esquecimento sussurrante sobre o qual urna vez que se projeta o raio que o faz acender querer possuir o instante jaacute se o perdeu (ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Miniacutema moralia) Hrsg von K Tiedemann el al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 127)

          31 CE ZAMORA Joseacute A Diacutealeacutectica mesiaacutenica tiempo e interrupcioacuten en Walter Benjamin AMENGUAL G CABOT M VERMAL JL (Ed) Ruptura de la tradicioacuten estudios sobre Walter Benjamin y Martiacuten Heidegger Madrid Trotta 2008 p 114 et seq

          I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

          38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

          da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

          Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

          32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

          33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

          l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

          JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

          Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

          A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

          repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

          36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

          p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

          Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

          Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

          41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

          JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

          Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

          Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

          39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

          JOSEacute A ZAMORA

          HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

          contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

          Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

          Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

          Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

          41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

          bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

          43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

          42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

          mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

          Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

          43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

          j05Eacute A ZAMORA

          HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

          bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

          Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

          mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

          44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

          45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

          6 Ibid p 491

          45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

          44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

          enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

          A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

          4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

          As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

          47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

          4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

          iexclOSEacute A ZAMORA

          HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

          Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

          Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

          da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

          49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

          et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

          ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

          46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

          jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

          qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

          Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

          ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

          51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

          DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

          POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

          TRAUMAS SOCIAIS

          MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

          Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

          Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

          ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

          Realiza~ao

          Faculdade de Direito da PUCRS

          Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

          Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

          COlECAo FORUM

          JUSTI~A E DEMOCRACIA

          Coordenador da Cole~ao

          PauloAbrao

          JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

          MARCELO D TORELLY

          Coordenadores

          JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

          OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

          14 1

          LJ Belo Horizonte

          jI r EDITORA ~ -orum

          2013

          r

          COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

          Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

          Conselho Editorial Conselho Editorial

          Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

          Pereira Marques Nelo

          Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

          Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

          Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

          Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

          Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

          Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

          Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

          Fernando Rossi Seacutergio Guerra

          liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

          Presidente e Editor

          Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

          catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

          Diagramatao Luiz Piacutementa

          Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

          wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

          J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

          -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

          1 Crirncs contra a Humanidade

          Moreira da U

          Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

          SUMAacuteRIO

          JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

          PARTEI

          HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

          HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

          DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

          Referencias 59

          EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

          Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

          enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

          da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

          • JAZam-Texto56
          • JAZam-Texto56b

            JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAo MARCELO D TORELLY (COORD)

            30 I iexclUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDlSOPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

            do sofrimento as feridas que a sociedade inflige ao indiviacuteduo sao lidas por ele como sinais cifrados da falsidade social como nega~6es a verdade [] Ele derruba a fachada tranquilizadora ante o excesso de sofrimento a qual se acomoda continuamente o controle racional 17 O valor das feridas sofridas pelo indiviacuteduo para penetrar a nega~ao e reconhed~-la como tal mostra a relevancia da enerva~ao corporal para o conhecimento Dita enerva~ao se comporta como um sismoacutegrafo que registra a negatividade da sociedade nas experiencias do sofrishymento Sem embargo isto nao quer dizer que ditas experiencias sejam urna garantia para a criacutetica da coa~ao social e da violencia estrutural ou poliacutetica pois a mesma sociedade desenvolve mecanismos para garantir seu esquecimento Como o proacuteprio Adorno reconhece forma parte do mecanismo de domina~ao proibir o conhecimento do sofrishymento por ele produzido18 A induacutestria cultural tem aqui urna de suas fun~6es especiacuteficas Disso vem o desespero de Adorno frente ao desaparecimento da consciencia da opressao e do sofrimento Como se pode reagir ante o fato de que o mundo realmente se transformou de tal maneira que jaacute nao se chega a ter consciencia do sofrimento [ ]19 A extin~ao da experiencia amea~a tambeacutem a experiencia da extin~ao da experiencia (do sofrimento)

            Apesar de tudo a persistencia da experiencia do sofrimento da ferida que nao se pode estancar da memoacuteria da dor injusta abre permanentemente a possiblidade de nominar e combater o horror Eacutepor isso que o testemunho das viacutetimas de quem padeceu de um sofrishymento produzido socialmente um sofrimento evitaacutevel e injusto tem um valor poliacutetico de primeira ordem e um valor certamente criacutetico Tomar eloquente politicamente o sofrimento injusto eacute a forma mais poderosa de questionar as estrateacutegias de esquecimento e silenciamento que sao cuacutemplices das formas de violencia e domina~ao as quais ajudam a se reproduzir e se perpetuar Assim se tudo o que ternos dito ateacute aqui acerca da significa~ao poliacutetica do sofrimento estaacute correto entao se tem que defender e possibilitar urna centralidade moral e poliacuteshytica das viacutetimas Eacute somente por meio do reconhecimento dos direitos

            17 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 10 [Aufzeichnungen zu Kafka] Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1977 p 262

            18 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Negative DialektikJ Hrsg von R Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 68

            19 ADORNO TW et al Diskussion aus einem Seminar uumlber die Theorie der Beduumlrfnisse 1942 In HORKHEIMER M Gesammelte Schriften Bd 12 Hsrg von G Schmid-Noerr Frankfurt aM Fischer 1985 p 573

            JOSEacute A ZAMORA I 31 HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E jUSTIltA - DA jUSTlltA TRANSIOONAL Aacute JUSTlltA ANAMNEacuteTICA

            pendentes da viacutetima que se pode escapar da loacutegica de domina~ao que mascara ideologicamente seu hito histoacuterico como universalidade lograda para seguir produzindo viacutetimas destinadas a cair no po~o do esquecimento

            2 Centralidade das viacutetimas

            Toda pretensao de defini~ao acabada sobre o que ou quem eacute urna viacutetima estaacute condenada ao fracasso Nos conflitos em que eacute gerada a violencia estrutural ou singular sao colocados em praacutetica ao mesmo tempo discursos que legitimam dita violencia e que tambeacutem negam as viacutetimas a sua condi~ao A proacutepria condi~ao de viacutetima eacute urna condi~ao controvertida e em disputa tambeacutem porque existe a autovitimiza~ao ilegiacutetima Sem embargo isso nao retira todo o sentido e a efetividade da tentativa de reclamar centralidade as viacutetimas Na realiza~ao dessa reclama~ao tem-se que colocar em praacutetica necessariamente os argushymentos pelos quais se esclarece a condi~ao de viacutetima E para colocar esse processo em movimento basta urna condi~ao necessaacuteria para se falar de viacutetimas seu viacutenculo com a injusti~a Viacutetimas sao aquelas pessoas a quem se inflige injustamente um sofrimento produzido socialmente Evidentemente que isso pode parecer como um argumento circular sem saiacuteda em vez de ajudar Mas em realidade o que vem a ressaltar esse viacutenculo eacute a prioridade da experiencia da injusti~a que sempre eacute histoacuterica e concreta no momento de formular discursivamente as exishygencias de justi~a E se quem tem prioridade eacute a experiencia da injusti~a esta somente se pode fazer valer a partir das viacutetimas e por elas

            Em todo o caso referir-se a centralidade das viacutetimas sup6e propor urna desloca~ao histoacuterica e poliacutetica de difiacutecil realiza~ao poi s a condi~ao de viacutetima parece estar associada justamente por um desshylocamento a periferia social seja porque sao convertidas em sacrifiacutecio necessaacuterio a constitui~ao sustenta~ao ou regenera~ao da comunidade poliacutetica - as viacutetimas proacuteprias seja para realizar e salvaguardar os interesses de dita comunidade frente a inimigos reais ou potenciais - as viacutetimas alheias Como destacou com implacaacutevel honestidade intelectual W BenjaIl)IacuteiacuteIacute em sua Teses sobre o conceito da histoacuteria tampouco os mortos estarao seguros ante o inimigo quando este ven~a E este inimigo nao tenha cessado de vencer 20 A histoacuteria costuma ser escrita pelos vencedores e pelos que tem poder para negociar os

            20 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 1 [Uumlber den Begriff der GeschichteJ Hrsg von R H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p 695

            I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILvA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

            32 jUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

            novos pactos poacutes-conflito nos quais viacutetimas passadas ou presentes raramente possuem poder para se fazer ouvir A vitimizaltao primaacuteria resultante da violeacutencia exercida diretamente se une a vitimizaltao secundaacuteria proveniente do desamparo do maltrato da alienaltao por parte daqueles convocados a servir em sua causa21 Que se pode dizer entao da centralidade das viacutetimas Em primeiro lugar dita centralidade tem um significado epistemoloacutegico O olhar da viacutetima tem urna capacidade proacutepria de verdade de revelaltao do existente e de penetraltao na loacutegica que o preside da qual carece a visao que comunga com o poder dos vencedores ou que se deixa ofuscar por seu fulgor Existe pois um mais de verdade experiencial pela proximidade aos efeitos destrutivos do poder aniquilador que imuniza tanto frente aos enganos de um ideal de objetividade cuacutemplice ao horror como frente a cegueira que se alimenta da frieza e da indiferenlta perante o destino infeliz dos outros Isto nao quer dizer que a viacutetima esteja livre de ofuscamentos e distorlt6es como a de contemplar a si mesma com os olhos de seus carrascos Mas haacute outra forma de quebrar o feitilto dessa perspectiva a qual pode sucumbir ateacute mesmo a proacutepria viacutetima O sofrimento experimentado de modo direto como visto eacute capaz de (voltar a) instaurar a distancia a visao que comunga com a injustilta e legitima a violeacutencia contra a viacutetima Ao menos para esta por meio da experieacutencia do sofrimento abre-Ihe a possibilidade de romper com o feitilto de legitimaltao de toda a injustilta

            Essa perspectiva nao apenas possui um valor epistemoloacutegico como tambeacutem tem urna dimensao eacutetica e poliacutetica A partir dela as categorias da autonomia liberdade igualdade dignidade direitos humanos justilta etc que servem de fundamento para a ordem moral e poliacutetica da modernidade sao colocadas a prova e adquirem novo significado A poliacutetica eacute instada a fazer frente a tantas vidas frustradas a tanta violeacutencia gerada a tantos inocentes mortos mas tambeacutem a reclamar urna universalidade que nao se limita no presente daqueles que possuem voz e poder para negociar pactos entre os formalmente livres e iguais As viacutetimas sao quem pode oferecer a chave para se enfrentar o problema central da relaltao entre poliacutetica e violeacutencia sem cuja abordagem eacute ilusoacuterio pensar em um futuro de paz e de reconcilialtao Elas sao quem nos permite reconhecer a desigualdad e social como injustilta que nao nascemos iguais e livres

            21 Cf VALLADOLID T Los derechos de las viacutectimas In MARDONES J M MATE R (Ed) La eacutetica ante las viacutectimas Rubiacute Barcelona Anthropos 2003 p 156 et seq

            jOSEacuteAZAMORA I HISTOacuteRIA MEMOacuteRlA E jUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICJONAL Aacute jUSTIltA ANAMNEacuteTICA 33

            que sao inumeraacuteveis os que se sobrecarregam com diacutevidas acumuladas com eXclus6es e marginalizalt6es herdadas e que nao haacute verdadeira igualdade e justilta a nao ser como resposta as injustiltas e desigualshydades existentes e persistentes no tempo

            W Benjamin destacou com acuidade penetrante essa mudanlta de perspectiva a tradiltao dos oprimidos nos ensina que a regra eacute o estado de exceltao na qual vivemos22 A possibilidade de pensar conjuntamente regra e exceltao depende da adoltao da perspectiva dos oprimidos das viacutetimas da histoacuteria e nao simplesmente por solishydariedade a elas ainda que isto seja louvaacutevel sob urna perspectiva moral mas sim em honra a verdade desta histoacuteria Benjamin pretendia demonstrar o caraacuteter catastroacutefico de um horror que decorre de um modo regular e conforme a lei e para isso destacou as circunstancias nas quais o poder se impoacutes por meio do estado de exceltao que se conshyverteu em regra Trata-se pois de acentuar a conscieacutencia da excepshycionalidade do horror que seus defensores qualificam como estabilidade e legalidade

            Mas para se levar em consideraltao a provocaltao das viacutetimas eacute preciso reconhecer o significado das contas em aberto com o passado e as exigeacutencias de justilta pendentes enquanto condiltao para quebrar a loacutegica da dominaltao que segue produzindo viacutetimas destinadas a cair no polto do esquecimento Urna mudanlta dessa natureza passa pelo enfrentamento do desafio que representam cataacutestrofes sociais e poliacuteticas desde a produltao industrial da morte nos campos de extershymiacutenio realizada com a pretensao de apagar qualquer tralto que pudesse recordaacute-Ia ateacute a produltao de milh6es de vidas tratadas como se fossem supeacuterfluas prescindiacuteveis ou descartaacuteveis presas da exclusao social ou da fome passando por inumeraacuteveis viacutetimas da violeacutencia beacutelica que as reduz a danos colaterais ou da violeacutencia poliacutetica que as convershyte em inimigo a eliminar para sustentar urna ordem considerada inquestionaacutevel ou imutaacutevel ou ainda para impor os interesses de um grupo ou de urna comunidade poliacutetica inteira contra aqueles que se pretende dominar ou conquistar

            ~

            Na centralidade das viacutetimas se inspira um novo conceito de jusshytilta que se interpela pelos direitos negados no passado pela vigeacutencia do dano que elas sofreram pelos viacutenculos entre a injustilta presente e passada Fazer justilta nao consiste apenas em castigar o culpado mas tambeacutem em adotar a perspectiva das viacutetimas Isso sup6e em

            22 BENJAMIN p 697

            35

            ----------------------11 34 iexcl JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIo PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORIJ)

            INfFRDlaIgtUlAiRES FUNIJAMENT05 E PADRUumlES DE EFETIVAltAO

            primeiro lugar nao suplantar a realidade por um marco abstrato de regras pactuadas segundo criteacuterios de universalidade formal Os oprimidos e aqueles que sofreram injustiiexcla experimentaram com clara evideacutencia que sua singularidade nunca encontra guarida nessa universalidade Para eles a opressao e dominaiexclao nao sao situaiexcloes excepcionais de urna ordem garantida pelo direito mas sim a regra que perenemente se confirma Adotar a perspectiva das viacutetimas Iacutemshypede qualquer relativizaiexclao de seu sofrimento toda subordinaiexclao instrumental a sustentaiexclaO de urna ordem precipitadamente qualificada como justa Ademais existe um nexo tomado invisiacutevel entre aqueles que na histoacuteria foram privados de seus direitos sofreram injustamente e foram aniquilados sua contiacutenua postergaiexclao Para que haja justiiexcla eacute preciso in verter os papeacuteis As viacutetimas teacutem de passar ao primeiro plano sua visao sobre a realidade suas exigeacutencias suas esperaniexclas sua singular contribuiiexclao a um futuro projetado de costas para elas ou as suas costas Inclusive o significado do que parece irreparaacutevel tem de ser devolvido ao cenaacuterio da justiiexcla se eacute que queremos reivindicar com sentido o direito de todos a urna existeacutencia efetiva Para construir um mundo baseado na justiiexcla eacute imprescindiacutevel a memoacuteria

            3 Memoacuteria e histoacuteria

            A atualidade poliacutetica e cultural da memoacuteria nao deveria nos enganar sobre a dureza e as dificuldades associadas a determinadas memoacuterias Perante alguns crimes nao haacute nada que pareiexcla tao natushyral como o desejo ao esquecimento de virar a paacutegina2-1 se nao fosse pelas proacuteprias viacutetimas de cataacutestrofes sociais e poliacuteticas as quais nos atribuiacuteram o encargo de nao esquecer e nos responsabilizou com o dever de manter viva a memoacuteria das injustiiexclas acometidas Em seu

            23 A op~o pelo esquecimento tem sido a preferencia no passar dos seacuteculos Somente a partir da Primeiacutera Guerra Mundial eacute que se produziu urna mudanca na cultura poliacutetica para dar espa~o a conviuumlao de que apenas a rernemoracao detalhada e nao maquiada dos crimes corridos e dos castigos aos autores responsaacuteveis pelos mesmos eacute capaz de quebrar o poder da violeacutencia sofrida no passado (d MEIER C Das Cebot zu vergessen urul die Unabweisbarkeit des Erinnems vorn offentlichen Umgang mit schlimmer VergangenheiL

            Siedler 2010) O Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional firmado em 1945 entre Franca Estados Unidos Reino Unido e a Uniacuteao Sovieacutetica que fixou os princiacutepios e procedimentos pelos quais foram regidos os Julgamentos de Nuremberg e a eriaao da Corte Penal internacional representam duas referencias fundamentais dessa mudanca na cultura poliacutetica e apontam para o desenvolvimento de memoacuteriacuteas poacutesshynacionais inclinadas a integra~ao dos acontecimentos histoacutericos de caraacuteter negativo e vergonhosos a autoimagem dos Estados Sem embargo isto nao aplacou em absoluto o debate em tomo da relaao entre o dever da mernoacuteria e o direito ao esquecimento Id FERENCZI T (Dir) Devoir de meacutemoire droit aIoubli Brexelles Complexe 2002]

            Ji

            iexclOSriAZAMORA HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL A fUSTIltA ANAMNEacuteTICA

            imaginaacuterio o esquecimento representa uma segunda injustiiexcla que se soma a jaacute sofrida sancionando-a Isso parece corresponder como se fosse a outra cara de uma mesma moeda com a inteniexclao de impor o esquecimento reconheCIacutevel aos perpetradores em seu afa de apagar os traiexclos do crime Nada resulta mais eloquente no caso extremo de Auschwitz do que a pretensao dos nazistas de nao apenas assassinar a todos os judeus mas tambeacutem de nao deixar rastro algum nem de suas viacutetimas nem do crime praticado24

            A dificuldade da memoacuteria sobre acontecimentos traumaacuteticos produzidos pela violeacutencia extrema proveacutem do fato de que sua origem se encontra nao em urna recordaiexclao integrada ou integraacutevel mas sim em urna recordaiexclao deslocada urna recordaiexclao que dolorosashymente transmite o nuacutecleo da experieacutencia interna do trauma e ao mesmo tempo eacute incapaz de tornaacute-Io acessiacutevel como se tornam partiacutecipes e acessiacuteveis outras experieacutencias humanas Trata-se de uma dificuldade que os testemunhos revelam aquele que esteja disposto a escutar Essa recordaiexclao somente pode ser comunicada e ter significado para a memoacuteria individual e coletiva daqueles que nao tenham sido viacutetimas ou testemunhas diretas da violeacutencia caso estejam dispostos a pagar o preiexclo que acompanha esse SI dote Esse preiexclo comeiexcla com a atribuiiexclao de centralidade a viacutetima Assumir a responsabilidade desta difiacutecil

            memoacuteria eacute indissociaacutevel da mudaniexcla radical epistemoloacutegica eacutetica poliacutetica e esteacutetica que passa pela referida centralidade Nada expressa melhor o novo imperativo categoacuterico poacutes-Auschwitz formulado por Theodor W Adorno na Dialeacutetica negativa de ordenar o pensamento e a aiexclao tomando como ponto de inflexao essa cataacutestrofe de forma que o que se diga pense e aja seja para evitar que algo semelhante possa ocorrer O sofrimento dos outros se converte assim no criteacuterio derrashydeiro da verdade da justiiexcla do gozo nao disciplinado do bem25 Essa

            24 Essa intencao de eliminar todos os rastros de nao deixar prava eacute o traco que define para P Vidal-Naquet a verdadeira singularidade de Auschwitz o que ele charna de negacao do crime dentro do crime (Les jui[s la meacutemoiacutere el le preacutesenllI Pariacutes La Decouverte 1991 p 416) Tarnbeacutem nesse mesmo sentido K Mate (Tratado sobre la injusticia Rubiacute Barcelona Anthrapos 2010 p 191et seq)

            25 Evidentemente isto suscita exigencias associadas dirigidas ateoriacutea e apraacutexis Mio se trata de gerar urna metafiacutesica negativa a partir daquilo que alguns chamam de mal radical ou de uma espeacutecie de religiao civil na qual inevitavelmente as viacutetimas sao novamente instrumentalizadas (er TRAVERSO K El passado instrucciones de uso tistoria memoria

            Madrid Barcelona Marcial Pons 2007 p 69-74) A rnudan~a epistemoloacutegica poliacutetica e esteacutetica exigida pela memoacuteria das viacutetimas passa por urna teoria do conheshy

            cimento da racionalidade e da verdade asua altura e tambeacutem por urna teoria da socieshydade urna filosofia moral e poliacutetica urna teoria esteacutetica etc que partam da quebra que representa a violencia exerciacuteda contra elas

            37 iexclOSEacute CARLOS MOIEIRA l)A SILVA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (CCXlRD) 36 iexclUSTIltA DE TRANSlltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDISClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADR)E5 DE EFETIVAltAo

            seria a condiltao de possibilidade da comunicabilidade da recordaltao deslocada dos traumas histoacutericos Aqui estaacute a chave de urna razao anamneacutetica dificilmente instrumentalizaacutevel pelas poliacuteticas da memoacuteria a servilto da legitimaltao de determinadas ordens sociais ou de atores que competem pela hegemonia dentro destas O que resulta definitivo para essa razao anarnneacutetica eacute a difiacutecil recordaltao do sofrimento alheio26

            Por outro lado a memoacuteria que se responsabiliza pela recordaltao deslocada dos testemunhos da violeacutencia poliacutetica extrema eacute urna memoacuteria perigosa pois nela se quebra a ordem que permitiu e na qual ocorreu o horror Dita memoacuteria interrompe o curso normal do tempo contradiz seu avanlto calcado em um fundo de injustiltas acushymuladas reclama o direito do possiacutevel e mio realizado frente ao que se impos em uacuteltima instancia denuncia o constituiacutedo revelando seus custos Nessa memoacuteria podem ser realizadas pois os potenciais criacuteticos inscritos de maneira gerat na recordaltao do passado que corno apontara H Marcuse pode fazer surgir pontos de vista perigosos o que explicariacutea segundo ele por que a sociedade estabelecida parece temer os conteuacutedos subversivos da memoacuteria [ ]27 Mas eacute imshyportante destacar aqui que tampouco o sujeito dessa memoacuteriacutea estaacute a salvo do perigo que ela representa O sujeito que se constitui por meio da memoacuteria do sofrirnento alheio nao emerge corno urna totashylidade ideacutentica consigo mesmo mas siacutem corno um eu quebradilto e problemaacutetico Sua debilidade se torna patente desde o princiacutepio na figura da indisponibilidade da recordaltao deslocada No caso da memoacuteria traumaacutetica da viacuteoleacutencia extrema a soberaniacutea do sujeito sobre as recordaltoes eacute muito limitada Assistimos em muitos casos a sofriacutementos de pessoas que quiseram se desprender das recordaltoes que as atormentam e das quais nao conseguem se afastar Isso nada tem a ver com a nostalgia de um passado saudoso ou com a exaltaltao de um passado glorioso Sao recordaltoes que tomam de assalto o sujeito e nao quando ele quer mas siacutem quando as recordaltoes querem se assim for possiacutevel falar

            26 A razao anamneacutetica adquire seu caraacuteter ilustrado e sua legiacutetima uruversalidade graas ao reconhecimento de que eacute guiada por urna determinada recordaltao em concreto pela recordaao do sofriacutemento pela memoria passionis Mas nao como a recordaao do sofrimento referido a um mesmo (a raiz de todos os conflitos) senao como a recordaao do sofrimento de outros como rememoraao puacuteblica do sofrimento alhcio incorporada de urna tal maneira ao uso puacuteblico da razao que Ihe imprima sua nota distintiva (METZ JB Memariacutea passiacuteonis una evocacioacuten provocadora en una sociedad pluralista Santander Sal Terrae 2007 p 214)

            27 MARCUSE H Der eindimensionale Mensch Neuwid Berliacuten Luchterhand 1967 p 117

            lOSEacute A ZAMORA A ANAMNFl1CA

            W Benjamin tornando corno ponto de partida a meacutemoire involuntaire de Proust mas indo mais aleacutem em sua reflexao

            R reivindishy

            cou o papel das recordaltoes involuntaacuterias para ter acesso a verdade de acontecimentos e etapas largamente esquecidas Daiacute eacute que se tem seu iacutenteresse pela memoacuteria nao corno depoacutesito e registro senao corno rememoraltao corno atualizaltao iacutenstantanea corno fagulha Essa forma de memoacuteria nao vem a confirmar o poder do sujeito ou a reforltar o marco de convicltOes e representaltoes compartilhadas com um grupo Diferentemente da memoacuteria voluntaacuteria na qual o passado jaacute foi cravado e integrado na recordaltao normalizada na memoacuteriacutea involuntaacuteria o sofriacutemento aparece corno algo que vem de fora corno acrescido a conscieacutencia corno o concorrente do pensamento Isto eacute o que constituiacute a diacutealeacutetica da rememorariio Theodor W Adorno a formulou corno a exigeacutencia de tornar eloquente o sofrimento e para ele essa eacute a condiacuteltao de toda verdade Por isso Ita esperanlta nao eacute a recordaltao fixada senao o retomo do esquecido29 O esquecimento eacute corno urna espeacutecie de negativo fotograacutefico obscuro e produtivo da memoacuteria e da recordaltao Na dialeacutetica da rememoraltao trata-se de traduziacuter essa memoacuteria preacute-reflexiva as recordaltoes coletivas sem liquidaacute-Ia coiacutesa que ocorre quando ela eacute convertida em mero material de entretenimento ou de elaboraltao cientiacutefica

            Longe dos clicheacutes positivos e negativos do passado com os quaiacutes nos acostumamos a encontrar na maioria dos debates sobre a memoacuteria a dial eacutetica da rememoraltao a que nos referirnos aquiacute tenta perceber e se reapropriar de um passado quebrado e tornaacute-Io precisamente naquele que foi subtraiacutedo da transmiacutessao na hiacutestoacuteria ou na memoacuteria cultural30 Corno nos mostrou W Benjamiacuten a histoacuteria dos sofrimentos somente se toma legiacutevel e experimentaacutevel corno hiacutestoacuterIacutea de esperanlta ao se romper com a continuidade histoacuterica tornando distaacutencia frente a tradiltao dos vencedores na qual se perpetuam os sofrimentos sob a figura do progresso implacaacutevel3l Daqui proveacutem o iacutempeto criacutetico

            28 Cf SCHOTTKER D Erinnern In OPITZ M WIZISLA E (Ed) Benjamins Begriffe Bd 1

            Frankfurt aM Suhrkamp 2000 p 262 et seq 29 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 11 [Zur Sch1ussszene des Faustl Hrsg von R

            Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p138 AA nA rememoraltilo organizada aniquila aquilo que perdura precisamente ao conservaacute-lo

            O instante fugaz somente eacute capaz de viver no esquecimento sussurrante sobre o qual urna vez que se projeta o raio que o faz acender querer possuir o instante jaacute se o perdeu (ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Miniacutema moralia) Hrsg von K Tiedemann el al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 127)

            31 CE ZAMORA Joseacute A Diacutealeacutectica mesiaacutenica tiempo e interrupcioacuten en Walter Benjamin AMENGUAL G CABOT M VERMAL JL (Ed) Ruptura de la tradicioacuten estudios sobre Walter Benjamin y Martiacuten Heidegger Madrid Trotta 2008 p 114 et seq

            I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

            38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

            da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

            Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

            32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

            33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

            l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

            JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

            Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

            A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

            repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

            36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

            p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

            Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

            Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

            41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

            JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

            Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

            Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

            39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

            JOSEacute A ZAMORA

            HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

            contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

            Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

            Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

            Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

            41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

            bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

            43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

            42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

            mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

            Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

            43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

            j05Eacute A ZAMORA

            HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

            bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

            Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

            mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

            44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

            45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

            6 Ibid p 491

            45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

            44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

            enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

            A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

            4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

            As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

            47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

            4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

            iexclOSEacute A ZAMORA

            HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

            Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

            Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

            da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

            49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

            et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

            ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

            46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

            jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

            qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

            Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

            ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

            51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

            DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

            POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

            TRAUMAS SOCIAIS

            MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

            Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

            Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

            ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

            Realiza~ao

            Faculdade de Direito da PUCRS

            Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

            Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

            COlECAo FORUM

            JUSTI~A E DEMOCRACIA

            Coordenador da Cole~ao

            PauloAbrao

            JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

            MARCELO D TORELLY

            Coordenadores

            JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

            OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

            14 1

            LJ Belo Horizonte

            jI r EDITORA ~ -orum

            2013

            r

            COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

            Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

            Conselho Editorial Conselho Editorial

            Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

            Pereira Marques Nelo

            Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

            Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

            Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

            Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

            Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

            Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

            Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

            Fernando Rossi Seacutergio Guerra

            liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

            Presidente e Editor

            Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

            catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

            Diagramatao Luiz Piacutementa

            Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

            wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

            J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

            -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

            1 Crirncs contra a Humanidade

            Moreira da U

            Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

            SUMAacuteRIO

            JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

            PARTEI

            HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

            HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

            DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

            Referencias 59

            EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

            Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

            enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

            da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

            • JAZam-Texto56
            • JAZam-Texto56b

              I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILvA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

              32 jUSTIltA DE TRANSIltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAo

              novos pactos poacutes-conflito nos quais viacutetimas passadas ou presentes raramente possuem poder para se fazer ouvir A vitimizaltao primaacuteria resultante da violeacutencia exercida diretamente se une a vitimizaltao secundaacuteria proveniente do desamparo do maltrato da alienaltao por parte daqueles convocados a servir em sua causa21 Que se pode dizer entao da centralidade das viacutetimas Em primeiro lugar dita centralidade tem um significado epistemoloacutegico O olhar da viacutetima tem urna capacidade proacutepria de verdade de revelaltao do existente e de penetraltao na loacutegica que o preside da qual carece a visao que comunga com o poder dos vencedores ou que se deixa ofuscar por seu fulgor Existe pois um mais de verdade experiencial pela proximidade aos efeitos destrutivos do poder aniquilador que imuniza tanto frente aos enganos de um ideal de objetividade cuacutemplice ao horror como frente a cegueira que se alimenta da frieza e da indiferenlta perante o destino infeliz dos outros Isto nao quer dizer que a viacutetima esteja livre de ofuscamentos e distorlt6es como a de contemplar a si mesma com os olhos de seus carrascos Mas haacute outra forma de quebrar o feitilto dessa perspectiva a qual pode sucumbir ateacute mesmo a proacutepria viacutetima O sofrimento experimentado de modo direto como visto eacute capaz de (voltar a) instaurar a distancia a visao que comunga com a injustilta e legitima a violeacutencia contra a viacutetima Ao menos para esta por meio da experieacutencia do sofrimento abre-Ihe a possibilidade de romper com o feitilto de legitimaltao de toda a injustilta

              Essa perspectiva nao apenas possui um valor epistemoloacutegico como tambeacutem tem urna dimensao eacutetica e poliacutetica A partir dela as categorias da autonomia liberdade igualdade dignidade direitos humanos justilta etc que servem de fundamento para a ordem moral e poliacutetica da modernidade sao colocadas a prova e adquirem novo significado A poliacutetica eacute instada a fazer frente a tantas vidas frustradas a tanta violeacutencia gerada a tantos inocentes mortos mas tambeacutem a reclamar urna universalidade que nao se limita no presente daqueles que possuem voz e poder para negociar pactos entre os formalmente livres e iguais As viacutetimas sao quem pode oferecer a chave para se enfrentar o problema central da relaltao entre poliacutetica e violeacutencia sem cuja abordagem eacute ilusoacuterio pensar em um futuro de paz e de reconcilialtao Elas sao quem nos permite reconhecer a desigualdad e social como injustilta que nao nascemos iguais e livres

              21 Cf VALLADOLID T Los derechos de las viacutectimas In MARDONES J M MATE R (Ed) La eacutetica ante las viacutectimas Rubiacute Barcelona Anthropos 2003 p 156 et seq

              jOSEacuteAZAMORA I HISTOacuteRIA MEMOacuteRlA E jUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICJONAL Aacute jUSTIltA ANAMNEacuteTICA 33

              que sao inumeraacuteveis os que se sobrecarregam com diacutevidas acumuladas com eXclus6es e marginalizalt6es herdadas e que nao haacute verdadeira igualdade e justilta a nao ser como resposta as injustiltas e desigualshydades existentes e persistentes no tempo

              W Benjamin destacou com acuidade penetrante essa mudanlta de perspectiva a tradiltao dos oprimidos nos ensina que a regra eacute o estado de exceltao na qual vivemos22 A possibilidade de pensar conjuntamente regra e exceltao depende da adoltao da perspectiva dos oprimidos das viacutetimas da histoacuteria e nao simplesmente por solishydariedade a elas ainda que isto seja louvaacutevel sob urna perspectiva moral mas sim em honra a verdade desta histoacuteria Benjamin pretendia demonstrar o caraacuteter catastroacutefico de um horror que decorre de um modo regular e conforme a lei e para isso destacou as circunstancias nas quais o poder se impoacutes por meio do estado de exceltao que se conshyverteu em regra Trata-se pois de acentuar a conscieacutencia da excepshycionalidade do horror que seus defensores qualificam como estabilidade e legalidade

              Mas para se levar em consideraltao a provocaltao das viacutetimas eacute preciso reconhecer o significado das contas em aberto com o passado e as exigeacutencias de justilta pendentes enquanto condiltao para quebrar a loacutegica da dominaltao que segue produzindo viacutetimas destinadas a cair no polto do esquecimento Urna mudanlta dessa natureza passa pelo enfrentamento do desafio que representam cataacutestrofes sociais e poliacuteticas desde a produltao industrial da morte nos campos de extershymiacutenio realizada com a pretensao de apagar qualquer tralto que pudesse recordaacute-Ia ateacute a produltao de milh6es de vidas tratadas como se fossem supeacuterfluas prescindiacuteveis ou descartaacuteveis presas da exclusao social ou da fome passando por inumeraacuteveis viacutetimas da violeacutencia beacutelica que as reduz a danos colaterais ou da violeacutencia poliacutetica que as convershyte em inimigo a eliminar para sustentar urna ordem considerada inquestionaacutevel ou imutaacutevel ou ainda para impor os interesses de um grupo ou de urna comunidade poliacutetica inteira contra aqueles que se pretende dominar ou conquistar

              ~

              Na centralidade das viacutetimas se inspira um novo conceito de jusshytilta que se interpela pelos direitos negados no passado pela vigeacutencia do dano que elas sofreram pelos viacutenculos entre a injustilta presente e passada Fazer justilta nao consiste apenas em castigar o culpado mas tambeacutem em adotar a perspectiva das viacutetimas Isso sup6e em

              22 BENJAMIN p 697

              35

              ----------------------11 34 iexcl JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIo PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORIJ)

              INfFRDlaIgtUlAiRES FUNIJAMENT05 E PADRUumlES DE EFETIVAltAO

              primeiro lugar nao suplantar a realidade por um marco abstrato de regras pactuadas segundo criteacuterios de universalidade formal Os oprimidos e aqueles que sofreram injustiiexcla experimentaram com clara evideacutencia que sua singularidade nunca encontra guarida nessa universalidade Para eles a opressao e dominaiexclao nao sao situaiexcloes excepcionais de urna ordem garantida pelo direito mas sim a regra que perenemente se confirma Adotar a perspectiva das viacutetimas Iacutemshypede qualquer relativizaiexclao de seu sofrimento toda subordinaiexclao instrumental a sustentaiexclaO de urna ordem precipitadamente qualificada como justa Ademais existe um nexo tomado invisiacutevel entre aqueles que na histoacuteria foram privados de seus direitos sofreram injustamente e foram aniquilados sua contiacutenua postergaiexclao Para que haja justiiexcla eacute preciso in verter os papeacuteis As viacutetimas teacutem de passar ao primeiro plano sua visao sobre a realidade suas exigeacutencias suas esperaniexclas sua singular contribuiiexclao a um futuro projetado de costas para elas ou as suas costas Inclusive o significado do que parece irreparaacutevel tem de ser devolvido ao cenaacuterio da justiiexcla se eacute que queremos reivindicar com sentido o direito de todos a urna existeacutencia efetiva Para construir um mundo baseado na justiiexcla eacute imprescindiacutevel a memoacuteria

              3 Memoacuteria e histoacuteria

              A atualidade poliacutetica e cultural da memoacuteria nao deveria nos enganar sobre a dureza e as dificuldades associadas a determinadas memoacuterias Perante alguns crimes nao haacute nada que pareiexcla tao natushyral como o desejo ao esquecimento de virar a paacutegina2-1 se nao fosse pelas proacuteprias viacutetimas de cataacutestrofes sociais e poliacuteticas as quais nos atribuiacuteram o encargo de nao esquecer e nos responsabilizou com o dever de manter viva a memoacuteria das injustiiexclas acometidas Em seu

              23 A op~o pelo esquecimento tem sido a preferencia no passar dos seacuteculos Somente a partir da Primeiacutera Guerra Mundial eacute que se produziu urna mudanca na cultura poliacutetica para dar espa~o a conviuumlao de que apenas a rernemoracao detalhada e nao maquiada dos crimes corridos e dos castigos aos autores responsaacuteveis pelos mesmos eacute capaz de quebrar o poder da violeacutencia sofrida no passado (d MEIER C Das Cebot zu vergessen urul die Unabweisbarkeit des Erinnems vorn offentlichen Umgang mit schlimmer VergangenheiL

              Siedler 2010) O Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional firmado em 1945 entre Franca Estados Unidos Reino Unido e a Uniacuteao Sovieacutetica que fixou os princiacutepios e procedimentos pelos quais foram regidos os Julgamentos de Nuremberg e a eriaao da Corte Penal internacional representam duas referencias fundamentais dessa mudanca na cultura poliacutetica e apontam para o desenvolvimento de memoacuteriacuteas poacutesshynacionais inclinadas a integra~ao dos acontecimentos histoacutericos de caraacuteter negativo e vergonhosos a autoimagem dos Estados Sem embargo isto nao aplacou em absoluto o debate em tomo da relaao entre o dever da mernoacuteria e o direito ao esquecimento Id FERENCZI T (Dir) Devoir de meacutemoire droit aIoubli Brexelles Complexe 2002]

              Ji

              iexclOSriAZAMORA HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL A fUSTIltA ANAMNEacuteTICA

              imaginaacuterio o esquecimento representa uma segunda injustiiexcla que se soma a jaacute sofrida sancionando-a Isso parece corresponder como se fosse a outra cara de uma mesma moeda com a inteniexclao de impor o esquecimento reconheCIacutevel aos perpetradores em seu afa de apagar os traiexclos do crime Nada resulta mais eloquente no caso extremo de Auschwitz do que a pretensao dos nazistas de nao apenas assassinar a todos os judeus mas tambeacutem de nao deixar rastro algum nem de suas viacutetimas nem do crime praticado24

              A dificuldade da memoacuteria sobre acontecimentos traumaacuteticos produzidos pela violeacutencia extrema proveacutem do fato de que sua origem se encontra nao em urna recordaiexclao integrada ou integraacutevel mas sim em urna recordaiexclao deslocada urna recordaiexclao que dolorosashymente transmite o nuacutecleo da experieacutencia interna do trauma e ao mesmo tempo eacute incapaz de tornaacute-Io acessiacutevel como se tornam partiacutecipes e acessiacuteveis outras experieacutencias humanas Trata-se de uma dificuldade que os testemunhos revelam aquele que esteja disposto a escutar Essa recordaiexclao somente pode ser comunicada e ter significado para a memoacuteria individual e coletiva daqueles que nao tenham sido viacutetimas ou testemunhas diretas da violeacutencia caso estejam dispostos a pagar o preiexclo que acompanha esse SI dote Esse preiexclo comeiexcla com a atribuiiexclao de centralidade a viacutetima Assumir a responsabilidade desta difiacutecil

              memoacuteria eacute indissociaacutevel da mudaniexcla radical epistemoloacutegica eacutetica poliacutetica e esteacutetica que passa pela referida centralidade Nada expressa melhor o novo imperativo categoacuterico poacutes-Auschwitz formulado por Theodor W Adorno na Dialeacutetica negativa de ordenar o pensamento e a aiexclao tomando como ponto de inflexao essa cataacutestrofe de forma que o que se diga pense e aja seja para evitar que algo semelhante possa ocorrer O sofrimento dos outros se converte assim no criteacuterio derrashydeiro da verdade da justiiexcla do gozo nao disciplinado do bem25 Essa

              24 Essa intencao de eliminar todos os rastros de nao deixar prava eacute o traco que define para P Vidal-Naquet a verdadeira singularidade de Auschwitz o que ele charna de negacao do crime dentro do crime (Les jui[s la meacutemoiacutere el le preacutesenllI Pariacutes La Decouverte 1991 p 416) Tarnbeacutem nesse mesmo sentido K Mate (Tratado sobre la injusticia Rubiacute Barcelona Anthrapos 2010 p 191et seq)

              25 Evidentemente isto suscita exigencias associadas dirigidas ateoriacutea e apraacutexis Mio se trata de gerar urna metafiacutesica negativa a partir daquilo que alguns chamam de mal radical ou de uma espeacutecie de religiao civil na qual inevitavelmente as viacutetimas sao novamente instrumentalizadas (er TRAVERSO K El passado instrucciones de uso tistoria memoria

              Madrid Barcelona Marcial Pons 2007 p 69-74) A rnudan~a epistemoloacutegica poliacutetica e esteacutetica exigida pela memoacuteria das viacutetimas passa por urna teoria do conheshy

              cimento da racionalidade e da verdade asua altura e tambeacutem por urna teoria da socieshydade urna filosofia moral e poliacutetica urna teoria esteacutetica etc que partam da quebra que representa a violencia exerciacuteda contra elas

              37 iexclOSEacute CARLOS MOIEIRA l)A SILVA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (CCXlRD) 36 iexclUSTIltA DE TRANSlltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDISClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADR)E5 DE EFETIVAltAo

              seria a condiltao de possibilidade da comunicabilidade da recordaltao deslocada dos traumas histoacutericos Aqui estaacute a chave de urna razao anamneacutetica dificilmente instrumentalizaacutevel pelas poliacuteticas da memoacuteria a servilto da legitimaltao de determinadas ordens sociais ou de atores que competem pela hegemonia dentro destas O que resulta definitivo para essa razao anarnneacutetica eacute a difiacutecil recordaltao do sofrimento alheio26

              Por outro lado a memoacuteria que se responsabiliza pela recordaltao deslocada dos testemunhos da violeacutencia poliacutetica extrema eacute urna memoacuteria perigosa pois nela se quebra a ordem que permitiu e na qual ocorreu o horror Dita memoacuteria interrompe o curso normal do tempo contradiz seu avanlto calcado em um fundo de injustiltas acushymuladas reclama o direito do possiacutevel e mio realizado frente ao que se impos em uacuteltima instancia denuncia o constituiacutedo revelando seus custos Nessa memoacuteria podem ser realizadas pois os potenciais criacuteticos inscritos de maneira gerat na recordaltao do passado que corno apontara H Marcuse pode fazer surgir pontos de vista perigosos o que explicariacutea segundo ele por que a sociedade estabelecida parece temer os conteuacutedos subversivos da memoacuteria [ ]27 Mas eacute imshyportante destacar aqui que tampouco o sujeito dessa memoacuteriacutea estaacute a salvo do perigo que ela representa O sujeito que se constitui por meio da memoacuteria do sofrirnento alheio nao emerge corno urna totashylidade ideacutentica consigo mesmo mas siacutem corno um eu quebradilto e problemaacutetico Sua debilidade se torna patente desde o princiacutepio na figura da indisponibilidade da recordaltao deslocada No caso da memoacuteria traumaacutetica da viacuteoleacutencia extrema a soberaniacutea do sujeito sobre as recordaltoes eacute muito limitada Assistimos em muitos casos a sofriacutementos de pessoas que quiseram se desprender das recordaltoes que as atormentam e das quais nao conseguem se afastar Isso nada tem a ver com a nostalgia de um passado saudoso ou com a exaltaltao de um passado glorioso Sao recordaltoes que tomam de assalto o sujeito e nao quando ele quer mas siacutem quando as recordaltoes querem se assim for possiacutevel falar

              26 A razao anamneacutetica adquire seu caraacuteter ilustrado e sua legiacutetima uruversalidade graas ao reconhecimento de que eacute guiada por urna determinada recordaltao em concreto pela recordaao do sofriacutemento pela memoria passionis Mas nao como a recordaao do sofrimento referido a um mesmo (a raiz de todos os conflitos) senao como a recordaao do sofrimento de outros como rememoraao puacuteblica do sofrimento alhcio incorporada de urna tal maneira ao uso puacuteblico da razao que Ihe imprima sua nota distintiva (METZ JB Memariacutea passiacuteonis una evocacioacuten provocadora en una sociedad pluralista Santander Sal Terrae 2007 p 214)

              27 MARCUSE H Der eindimensionale Mensch Neuwid Berliacuten Luchterhand 1967 p 117

              lOSEacute A ZAMORA A ANAMNFl1CA

              W Benjamin tornando corno ponto de partida a meacutemoire involuntaire de Proust mas indo mais aleacutem em sua reflexao

              R reivindishy

              cou o papel das recordaltoes involuntaacuterias para ter acesso a verdade de acontecimentos e etapas largamente esquecidas Daiacute eacute que se tem seu iacutenteresse pela memoacuteria nao corno depoacutesito e registro senao corno rememoraltao corno atualizaltao iacutenstantanea corno fagulha Essa forma de memoacuteria nao vem a confirmar o poder do sujeito ou a reforltar o marco de convicltOes e representaltoes compartilhadas com um grupo Diferentemente da memoacuteria voluntaacuteria na qual o passado jaacute foi cravado e integrado na recordaltao normalizada na memoacuteriacutea involuntaacuteria o sofriacutemento aparece corno algo que vem de fora corno acrescido a conscieacutencia corno o concorrente do pensamento Isto eacute o que constituiacute a diacutealeacutetica da rememorariio Theodor W Adorno a formulou corno a exigeacutencia de tornar eloquente o sofrimento e para ele essa eacute a condiacuteltao de toda verdade Por isso Ita esperanlta nao eacute a recordaltao fixada senao o retomo do esquecido29 O esquecimento eacute corno urna espeacutecie de negativo fotograacutefico obscuro e produtivo da memoacuteria e da recordaltao Na dialeacutetica da rememoraltao trata-se de traduziacuter essa memoacuteria preacute-reflexiva as recordaltoes coletivas sem liquidaacute-Ia coiacutesa que ocorre quando ela eacute convertida em mero material de entretenimento ou de elaboraltao cientiacutefica

              Longe dos clicheacutes positivos e negativos do passado com os quaiacutes nos acostumamos a encontrar na maioria dos debates sobre a memoacuteria a dial eacutetica da rememoraltao a que nos referirnos aquiacute tenta perceber e se reapropriar de um passado quebrado e tornaacute-Io precisamente naquele que foi subtraiacutedo da transmiacutessao na hiacutestoacuteria ou na memoacuteria cultural30 Corno nos mostrou W Benjamiacuten a histoacuteria dos sofrimentos somente se toma legiacutevel e experimentaacutevel corno hiacutestoacuterIacutea de esperanlta ao se romper com a continuidade histoacuterica tornando distaacutencia frente a tradiltao dos vencedores na qual se perpetuam os sofrimentos sob a figura do progresso implacaacutevel3l Daqui proveacutem o iacutempeto criacutetico

              28 Cf SCHOTTKER D Erinnern In OPITZ M WIZISLA E (Ed) Benjamins Begriffe Bd 1

              Frankfurt aM Suhrkamp 2000 p 262 et seq 29 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 11 [Zur Sch1ussszene des Faustl Hrsg von R

              Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p138 AA nA rememoraltilo organizada aniquila aquilo que perdura precisamente ao conservaacute-lo

              O instante fugaz somente eacute capaz de viver no esquecimento sussurrante sobre o qual urna vez que se projeta o raio que o faz acender querer possuir o instante jaacute se o perdeu (ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Miniacutema moralia) Hrsg von K Tiedemann el al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 127)

              31 CE ZAMORA Joseacute A Diacutealeacutectica mesiaacutenica tiempo e interrupcioacuten en Walter Benjamin AMENGUAL G CABOT M VERMAL JL (Ed) Ruptura de la tradicioacuten estudios sobre Walter Benjamin y Martiacuten Heidegger Madrid Trotta 2008 p 114 et seq

              I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

              38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

              da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

              Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

              32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

              33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

              l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

              JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

              Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

              A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

              repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

              36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

              p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

              Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

              Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

              41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

              JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

              Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

              Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

              39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

              JOSEacute A ZAMORA

              HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

              contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

              Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

              Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

              Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

              41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

              bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

              43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

              42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

              mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

              Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

              43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

              j05Eacute A ZAMORA

              HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

              bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

              Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

              mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

              44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

              45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

              6 Ibid p 491

              45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

              44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

              enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

              A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

              4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

              As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

              47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

              4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

              iexclOSEacute A ZAMORA

              HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

              Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

              Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

              da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

              49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

              et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

              ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

              46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

              jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

              qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

              Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

              ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

              51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

              DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

              POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

              TRAUMAS SOCIAIS

              MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

              Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

              Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

              ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

              Realiza~ao

              Faculdade de Direito da PUCRS

              Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

              Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

              COlECAo FORUM

              JUSTI~A E DEMOCRACIA

              Coordenador da Cole~ao

              PauloAbrao

              JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

              MARCELO D TORELLY

              Coordenadores

              JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

              OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

              14 1

              LJ Belo Horizonte

              jI r EDITORA ~ -orum

              2013

              r

              COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

              Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

              Conselho Editorial Conselho Editorial

              Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

              Pereira Marques Nelo

              Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

              Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

              Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

              Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

              Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

              Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

              Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

              Fernando Rossi Seacutergio Guerra

              liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

              Presidente e Editor

              Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

              catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

              Diagramatao Luiz Piacutementa

              Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

              wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

              J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

              -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

              1 Crirncs contra a Humanidade

              Moreira da U

              Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

              SUMAacuteRIO

              JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

              PARTEI

              HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

              HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

              DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

              Referencias 59

              EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

              Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

              enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

              da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

              • JAZam-Texto56
              • JAZam-Texto56b

                35

                ----------------------11 34 iexcl JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FIUIo PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (COORIJ)

                INfFRDlaIgtUlAiRES FUNIJAMENT05 E PADRUumlES DE EFETIVAltAO

                primeiro lugar nao suplantar a realidade por um marco abstrato de regras pactuadas segundo criteacuterios de universalidade formal Os oprimidos e aqueles que sofreram injustiiexcla experimentaram com clara evideacutencia que sua singularidade nunca encontra guarida nessa universalidade Para eles a opressao e dominaiexclao nao sao situaiexcloes excepcionais de urna ordem garantida pelo direito mas sim a regra que perenemente se confirma Adotar a perspectiva das viacutetimas Iacutemshypede qualquer relativizaiexclao de seu sofrimento toda subordinaiexclao instrumental a sustentaiexclaO de urna ordem precipitadamente qualificada como justa Ademais existe um nexo tomado invisiacutevel entre aqueles que na histoacuteria foram privados de seus direitos sofreram injustamente e foram aniquilados sua contiacutenua postergaiexclao Para que haja justiiexcla eacute preciso in verter os papeacuteis As viacutetimas teacutem de passar ao primeiro plano sua visao sobre a realidade suas exigeacutencias suas esperaniexclas sua singular contribuiiexclao a um futuro projetado de costas para elas ou as suas costas Inclusive o significado do que parece irreparaacutevel tem de ser devolvido ao cenaacuterio da justiiexcla se eacute que queremos reivindicar com sentido o direito de todos a urna existeacutencia efetiva Para construir um mundo baseado na justiiexcla eacute imprescindiacutevel a memoacuteria

                3 Memoacuteria e histoacuteria

                A atualidade poliacutetica e cultural da memoacuteria nao deveria nos enganar sobre a dureza e as dificuldades associadas a determinadas memoacuterias Perante alguns crimes nao haacute nada que pareiexcla tao natushyral como o desejo ao esquecimento de virar a paacutegina2-1 se nao fosse pelas proacuteprias viacutetimas de cataacutestrofes sociais e poliacuteticas as quais nos atribuiacuteram o encargo de nao esquecer e nos responsabilizou com o dever de manter viva a memoacuteria das injustiiexclas acometidas Em seu

                23 A op~o pelo esquecimento tem sido a preferencia no passar dos seacuteculos Somente a partir da Primeiacutera Guerra Mundial eacute que se produziu urna mudanca na cultura poliacutetica para dar espa~o a conviuumlao de que apenas a rernemoracao detalhada e nao maquiada dos crimes corridos e dos castigos aos autores responsaacuteveis pelos mesmos eacute capaz de quebrar o poder da violeacutencia sofrida no passado (d MEIER C Das Cebot zu vergessen urul die Unabweisbarkeit des Erinnems vorn offentlichen Umgang mit schlimmer VergangenheiL

                Siedler 2010) O Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional firmado em 1945 entre Franca Estados Unidos Reino Unido e a Uniacuteao Sovieacutetica que fixou os princiacutepios e procedimentos pelos quais foram regidos os Julgamentos de Nuremberg e a eriaao da Corte Penal internacional representam duas referencias fundamentais dessa mudanca na cultura poliacutetica e apontam para o desenvolvimento de memoacuteriacuteas poacutesshynacionais inclinadas a integra~ao dos acontecimentos histoacutericos de caraacuteter negativo e vergonhosos a autoimagem dos Estados Sem embargo isto nao aplacou em absoluto o debate em tomo da relaao entre o dever da mernoacuteria e o direito ao esquecimento Id FERENCZI T (Dir) Devoir de meacutemoire droit aIoubli Brexelles Complexe 2002]

                Ji

                iexclOSriAZAMORA HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL A fUSTIltA ANAMNEacuteTICA

                imaginaacuterio o esquecimento representa uma segunda injustiiexcla que se soma a jaacute sofrida sancionando-a Isso parece corresponder como se fosse a outra cara de uma mesma moeda com a inteniexclao de impor o esquecimento reconheCIacutevel aos perpetradores em seu afa de apagar os traiexclos do crime Nada resulta mais eloquente no caso extremo de Auschwitz do que a pretensao dos nazistas de nao apenas assassinar a todos os judeus mas tambeacutem de nao deixar rastro algum nem de suas viacutetimas nem do crime praticado24

                A dificuldade da memoacuteria sobre acontecimentos traumaacuteticos produzidos pela violeacutencia extrema proveacutem do fato de que sua origem se encontra nao em urna recordaiexclao integrada ou integraacutevel mas sim em urna recordaiexclao deslocada urna recordaiexclao que dolorosashymente transmite o nuacutecleo da experieacutencia interna do trauma e ao mesmo tempo eacute incapaz de tornaacute-Io acessiacutevel como se tornam partiacutecipes e acessiacuteveis outras experieacutencias humanas Trata-se de uma dificuldade que os testemunhos revelam aquele que esteja disposto a escutar Essa recordaiexclao somente pode ser comunicada e ter significado para a memoacuteria individual e coletiva daqueles que nao tenham sido viacutetimas ou testemunhas diretas da violeacutencia caso estejam dispostos a pagar o preiexclo que acompanha esse SI dote Esse preiexclo comeiexcla com a atribuiiexclao de centralidade a viacutetima Assumir a responsabilidade desta difiacutecil

                memoacuteria eacute indissociaacutevel da mudaniexcla radical epistemoloacutegica eacutetica poliacutetica e esteacutetica que passa pela referida centralidade Nada expressa melhor o novo imperativo categoacuterico poacutes-Auschwitz formulado por Theodor W Adorno na Dialeacutetica negativa de ordenar o pensamento e a aiexclao tomando como ponto de inflexao essa cataacutestrofe de forma que o que se diga pense e aja seja para evitar que algo semelhante possa ocorrer O sofrimento dos outros se converte assim no criteacuterio derrashydeiro da verdade da justiiexcla do gozo nao disciplinado do bem25 Essa

                24 Essa intencao de eliminar todos os rastros de nao deixar prava eacute o traco que define para P Vidal-Naquet a verdadeira singularidade de Auschwitz o que ele charna de negacao do crime dentro do crime (Les jui[s la meacutemoiacutere el le preacutesenllI Pariacutes La Decouverte 1991 p 416) Tarnbeacutem nesse mesmo sentido K Mate (Tratado sobre la injusticia Rubiacute Barcelona Anthrapos 2010 p 191et seq)

                25 Evidentemente isto suscita exigencias associadas dirigidas ateoriacutea e apraacutexis Mio se trata de gerar urna metafiacutesica negativa a partir daquilo que alguns chamam de mal radical ou de uma espeacutecie de religiao civil na qual inevitavelmente as viacutetimas sao novamente instrumentalizadas (er TRAVERSO K El passado instrucciones de uso tistoria memoria

                Madrid Barcelona Marcial Pons 2007 p 69-74) A rnudan~a epistemoloacutegica poliacutetica e esteacutetica exigida pela memoacuteria das viacutetimas passa por urna teoria do conheshy

                cimento da racionalidade e da verdade asua altura e tambeacutem por urna teoria da socieshydade urna filosofia moral e poliacutetica urna teoria esteacutetica etc que partam da quebra que representa a violencia exerciacuteda contra elas

                37 iexclOSEacute CARLOS MOIEIRA l)A SILVA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (CCXlRD) 36 iexclUSTIltA DE TRANSlltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDISClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADR)E5 DE EFETIVAltAo

                seria a condiltao de possibilidade da comunicabilidade da recordaltao deslocada dos traumas histoacutericos Aqui estaacute a chave de urna razao anamneacutetica dificilmente instrumentalizaacutevel pelas poliacuteticas da memoacuteria a servilto da legitimaltao de determinadas ordens sociais ou de atores que competem pela hegemonia dentro destas O que resulta definitivo para essa razao anarnneacutetica eacute a difiacutecil recordaltao do sofrimento alheio26

                Por outro lado a memoacuteria que se responsabiliza pela recordaltao deslocada dos testemunhos da violeacutencia poliacutetica extrema eacute urna memoacuteria perigosa pois nela se quebra a ordem que permitiu e na qual ocorreu o horror Dita memoacuteria interrompe o curso normal do tempo contradiz seu avanlto calcado em um fundo de injustiltas acushymuladas reclama o direito do possiacutevel e mio realizado frente ao que se impos em uacuteltima instancia denuncia o constituiacutedo revelando seus custos Nessa memoacuteria podem ser realizadas pois os potenciais criacuteticos inscritos de maneira gerat na recordaltao do passado que corno apontara H Marcuse pode fazer surgir pontos de vista perigosos o que explicariacutea segundo ele por que a sociedade estabelecida parece temer os conteuacutedos subversivos da memoacuteria [ ]27 Mas eacute imshyportante destacar aqui que tampouco o sujeito dessa memoacuteriacutea estaacute a salvo do perigo que ela representa O sujeito que se constitui por meio da memoacuteria do sofrirnento alheio nao emerge corno urna totashylidade ideacutentica consigo mesmo mas siacutem corno um eu quebradilto e problemaacutetico Sua debilidade se torna patente desde o princiacutepio na figura da indisponibilidade da recordaltao deslocada No caso da memoacuteria traumaacutetica da viacuteoleacutencia extrema a soberaniacutea do sujeito sobre as recordaltoes eacute muito limitada Assistimos em muitos casos a sofriacutementos de pessoas que quiseram se desprender das recordaltoes que as atormentam e das quais nao conseguem se afastar Isso nada tem a ver com a nostalgia de um passado saudoso ou com a exaltaltao de um passado glorioso Sao recordaltoes que tomam de assalto o sujeito e nao quando ele quer mas siacutem quando as recordaltoes querem se assim for possiacutevel falar

                26 A razao anamneacutetica adquire seu caraacuteter ilustrado e sua legiacutetima uruversalidade graas ao reconhecimento de que eacute guiada por urna determinada recordaltao em concreto pela recordaao do sofriacutemento pela memoria passionis Mas nao como a recordaao do sofrimento referido a um mesmo (a raiz de todos os conflitos) senao como a recordaao do sofrimento de outros como rememoraao puacuteblica do sofrimento alhcio incorporada de urna tal maneira ao uso puacuteblico da razao que Ihe imprima sua nota distintiva (METZ JB Memariacutea passiacuteonis una evocacioacuten provocadora en una sociedad pluralista Santander Sal Terrae 2007 p 214)

                27 MARCUSE H Der eindimensionale Mensch Neuwid Berliacuten Luchterhand 1967 p 117

                lOSEacute A ZAMORA A ANAMNFl1CA

                W Benjamin tornando corno ponto de partida a meacutemoire involuntaire de Proust mas indo mais aleacutem em sua reflexao

                R reivindishy

                cou o papel das recordaltoes involuntaacuterias para ter acesso a verdade de acontecimentos e etapas largamente esquecidas Daiacute eacute que se tem seu iacutenteresse pela memoacuteria nao corno depoacutesito e registro senao corno rememoraltao corno atualizaltao iacutenstantanea corno fagulha Essa forma de memoacuteria nao vem a confirmar o poder do sujeito ou a reforltar o marco de convicltOes e representaltoes compartilhadas com um grupo Diferentemente da memoacuteria voluntaacuteria na qual o passado jaacute foi cravado e integrado na recordaltao normalizada na memoacuteriacutea involuntaacuteria o sofriacutemento aparece corno algo que vem de fora corno acrescido a conscieacutencia corno o concorrente do pensamento Isto eacute o que constituiacute a diacutealeacutetica da rememorariio Theodor W Adorno a formulou corno a exigeacutencia de tornar eloquente o sofrimento e para ele essa eacute a condiacuteltao de toda verdade Por isso Ita esperanlta nao eacute a recordaltao fixada senao o retomo do esquecido29 O esquecimento eacute corno urna espeacutecie de negativo fotograacutefico obscuro e produtivo da memoacuteria e da recordaltao Na dialeacutetica da rememoraltao trata-se de traduziacuter essa memoacuteria preacute-reflexiva as recordaltoes coletivas sem liquidaacute-Ia coiacutesa que ocorre quando ela eacute convertida em mero material de entretenimento ou de elaboraltao cientiacutefica

                Longe dos clicheacutes positivos e negativos do passado com os quaiacutes nos acostumamos a encontrar na maioria dos debates sobre a memoacuteria a dial eacutetica da rememoraltao a que nos referirnos aquiacute tenta perceber e se reapropriar de um passado quebrado e tornaacute-Io precisamente naquele que foi subtraiacutedo da transmiacutessao na hiacutestoacuteria ou na memoacuteria cultural30 Corno nos mostrou W Benjamiacuten a histoacuteria dos sofrimentos somente se toma legiacutevel e experimentaacutevel corno hiacutestoacuterIacutea de esperanlta ao se romper com a continuidade histoacuterica tornando distaacutencia frente a tradiltao dos vencedores na qual se perpetuam os sofrimentos sob a figura do progresso implacaacutevel3l Daqui proveacutem o iacutempeto criacutetico

                28 Cf SCHOTTKER D Erinnern In OPITZ M WIZISLA E (Ed) Benjamins Begriffe Bd 1

                Frankfurt aM Suhrkamp 2000 p 262 et seq 29 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 11 [Zur Sch1ussszene des Faustl Hrsg von R

                Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p138 AA nA rememoraltilo organizada aniquila aquilo que perdura precisamente ao conservaacute-lo

                O instante fugaz somente eacute capaz de viver no esquecimento sussurrante sobre o qual urna vez que se projeta o raio que o faz acender querer possuir o instante jaacute se o perdeu (ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Miniacutema moralia) Hrsg von K Tiedemann el al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 127)

                31 CE ZAMORA Joseacute A Diacutealeacutectica mesiaacutenica tiempo e interrupcioacuten en Walter Benjamin AMENGUAL G CABOT M VERMAL JL (Ed) Ruptura de la tradicioacuten estudios sobre Walter Benjamin y Martiacuten Heidegger Madrid Trotta 2008 p 114 et seq

                I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

                38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

                da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

                Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

                32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

                33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

                l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

                JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

                Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

                A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

                repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

                36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

                p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

                Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

                Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

                41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

                JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

                Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

                Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

                39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

                JOSEacute A ZAMORA

                HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

                contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

                Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

                Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

                Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

                41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

                bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

                43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

                42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

                mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

                Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

                43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

                j05Eacute A ZAMORA

                HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

                bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

                Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

                mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

                44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

                45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

                6 Ibid p 491

                45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

                44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

                enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

                A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

                4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

                As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

                47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

                4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

                iexclOSEacute A ZAMORA

                HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

                Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

                Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

                da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

                49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

                et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

                ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

                46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

                jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

                qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

                Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

                ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

                51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

                DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

                POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

                TRAUMAS SOCIAIS

                MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

                Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

                Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

                ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

                Realiza~ao

                Faculdade de Direito da PUCRS

                Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

                Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

                COlECAo FORUM

                JUSTI~A E DEMOCRACIA

                Coordenador da Cole~ao

                PauloAbrao

                JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

                MARCELO D TORELLY

                Coordenadores

                JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

                OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

                14 1

                LJ Belo Horizonte

                jI r EDITORA ~ -orum

                2013

                r

                COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

                Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

                Conselho Editorial Conselho Editorial

                Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

                Pereira Marques Nelo

                Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

                Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

                Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

                Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

                Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

                Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

                Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

                Fernando Rossi Seacutergio Guerra

                liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

                Presidente e Editor

                Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

                catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

                Diagramatao Luiz Piacutementa

                Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

                wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

                J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

                -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

                1 Crirncs contra a Humanidade

                Moreira da U

                Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

                SUMAacuteRIO

                JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

                PARTEI

                HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

                HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

                DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

                Referencias 59

                EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

                Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

                enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

                da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

                • JAZam-Texto56
                • JAZam-Texto56b

                  37 iexclOSEacute CARLOS MOIEIRA l)A SILVA FILHO PAULO ABRAO MARCELO D TORELLY (CCXlRD) 36 iexclUSTIltA DE TRANSlltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDISClPLlNARES FUNDAMENTOS E PADR)E5 DE EFETIVAltAo

                  seria a condiltao de possibilidade da comunicabilidade da recordaltao deslocada dos traumas histoacutericos Aqui estaacute a chave de urna razao anamneacutetica dificilmente instrumentalizaacutevel pelas poliacuteticas da memoacuteria a servilto da legitimaltao de determinadas ordens sociais ou de atores que competem pela hegemonia dentro destas O que resulta definitivo para essa razao anarnneacutetica eacute a difiacutecil recordaltao do sofrimento alheio26

                  Por outro lado a memoacuteria que se responsabiliza pela recordaltao deslocada dos testemunhos da violeacutencia poliacutetica extrema eacute urna memoacuteria perigosa pois nela se quebra a ordem que permitiu e na qual ocorreu o horror Dita memoacuteria interrompe o curso normal do tempo contradiz seu avanlto calcado em um fundo de injustiltas acushymuladas reclama o direito do possiacutevel e mio realizado frente ao que se impos em uacuteltima instancia denuncia o constituiacutedo revelando seus custos Nessa memoacuteria podem ser realizadas pois os potenciais criacuteticos inscritos de maneira gerat na recordaltao do passado que corno apontara H Marcuse pode fazer surgir pontos de vista perigosos o que explicariacutea segundo ele por que a sociedade estabelecida parece temer os conteuacutedos subversivos da memoacuteria [ ]27 Mas eacute imshyportante destacar aqui que tampouco o sujeito dessa memoacuteriacutea estaacute a salvo do perigo que ela representa O sujeito que se constitui por meio da memoacuteria do sofrirnento alheio nao emerge corno urna totashylidade ideacutentica consigo mesmo mas siacutem corno um eu quebradilto e problemaacutetico Sua debilidade se torna patente desde o princiacutepio na figura da indisponibilidade da recordaltao deslocada No caso da memoacuteria traumaacutetica da viacuteoleacutencia extrema a soberaniacutea do sujeito sobre as recordaltoes eacute muito limitada Assistimos em muitos casos a sofriacutementos de pessoas que quiseram se desprender das recordaltoes que as atormentam e das quais nao conseguem se afastar Isso nada tem a ver com a nostalgia de um passado saudoso ou com a exaltaltao de um passado glorioso Sao recordaltoes que tomam de assalto o sujeito e nao quando ele quer mas siacutem quando as recordaltoes querem se assim for possiacutevel falar

                  26 A razao anamneacutetica adquire seu caraacuteter ilustrado e sua legiacutetima uruversalidade graas ao reconhecimento de que eacute guiada por urna determinada recordaltao em concreto pela recordaao do sofriacutemento pela memoria passionis Mas nao como a recordaao do sofrimento referido a um mesmo (a raiz de todos os conflitos) senao como a recordaao do sofrimento de outros como rememoraao puacuteblica do sofrimento alhcio incorporada de urna tal maneira ao uso puacuteblico da razao que Ihe imprima sua nota distintiva (METZ JB Memariacutea passiacuteonis una evocacioacuten provocadora en una sociedad pluralista Santander Sal Terrae 2007 p 214)

                  27 MARCUSE H Der eindimensionale Mensch Neuwid Berliacuten Luchterhand 1967 p 117

                  lOSEacute A ZAMORA A ANAMNFl1CA

                  W Benjamin tornando corno ponto de partida a meacutemoire involuntaire de Proust mas indo mais aleacutem em sua reflexao

                  R reivindishy

                  cou o papel das recordaltoes involuntaacuterias para ter acesso a verdade de acontecimentos e etapas largamente esquecidas Daiacute eacute que se tem seu iacutenteresse pela memoacuteria nao corno depoacutesito e registro senao corno rememoraltao corno atualizaltao iacutenstantanea corno fagulha Essa forma de memoacuteria nao vem a confirmar o poder do sujeito ou a reforltar o marco de convicltOes e representaltoes compartilhadas com um grupo Diferentemente da memoacuteria voluntaacuteria na qual o passado jaacute foi cravado e integrado na recordaltao normalizada na memoacuteriacutea involuntaacuteria o sofriacutemento aparece corno algo que vem de fora corno acrescido a conscieacutencia corno o concorrente do pensamento Isto eacute o que constituiacute a diacutealeacutetica da rememorariio Theodor W Adorno a formulou corno a exigeacutencia de tornar eloquente o sofrimento e para ele essa eacute a condiacuteltao de toda verdade Por isso Ita esperanlta nao eacute a recordaltao fixada senao o retomo do esquecido29 O esquecimento eacute corno urna espeacutecie de negativo fotograacutefico obscuro e produtivo da memoacuteria e da recordaltao Na dialeacutetica da rememoraltao trata-se de traduziacuter essa memoacuteria preacute-reflexiva as recordaltoes coletivas sem liquidaacute-Ia coiacutesa que ocorre quando ela eacute convertida em mero material de entretenimento ou de elaboraltao cientiacutefica

                  Longe dos clicheacutes positivos e negativos do passado com os quaiacutes nos acostumamos a encontrar na maioria dos debates sobre a memoacuteria a dial eacutetica da rememoraltao a que nos referirnos aquiacute tenta perceber e se reapropriar de um passado quebrado e tornaacute-Io precisamente naquele que foi subtraiacutedo da transmiacutessao na hiacutestoacuteria ou na memoacuteria cultural30 Corno nos mostrou W Benjamiacuten a histoacuteria dos sofrimentos somente se toma legiacutevel e experimentaacutevel corno hiacutestoacuterIacutea de esperanlta ao se romper com a continuidade histoacuterica tornando distaacutencia frente a tradiltao dos vencedores na qual se perpetuam os sofrimentos sob a figura do progresso implacaacutevel3l Daqui proveacutem o iacutempeto criacutetico

                  28 Cf SCHOTTKER D Erinnern In OPITZ M WIZISLA E (Ed) Benjamins Begriffe Bd 1

                  Frankfurt aM Suhrkamp 2000 p 262 et seq 29 ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 11 [Zur Sch1ussszene des Faustl Hrsg von R

                  Tiedemann et al Frankfurt aM Suhrkamp 1974 p138 AA nA rememoraltilo organizada aniquila aquilo que perdura precisamente ao conservaacute-lo

                  O instante fugaz somente eacute capaz de viver no esquecimento sussurrante sobre o qual urna vez que se projeta o raio que o faz acender querer possuir o instante jaacute se o perdeu (ADORNO TW Gesammelte Schriften Bd 4 [Miniacutema moralia) Hrsg von K Tiedemann el al Frankfurt aM Suhrkamp 1980 p 127)

                  31 CE ZAMORA Joseacute A Diacutealeacutectica mesiaacutenica tiempo e interrupcioacuten en Walter Benjamin AMENGUAL G CABOT M VERMAL JL (Ed) Ruptura de la tradicioacuten estudios sobre Walter Benjamin y Martiacuten Heidegger Madrid Trotta 2008 p 114 et seq

                  I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

                  38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

                  da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

                  Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

                  32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

                  33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

                  l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

                  JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

                  Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

                  A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

                  repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

                  36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

                  p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

                  Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

                  Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

                  41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

                  JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

                  Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

                  Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

                  39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

                  JOSEacute A ZAMORA

                  HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

                  contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

                  Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

                  Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

                  Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

                  41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

                  bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

                  43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

                  42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

                  mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

                  Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

                  43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

                  j05Eacute A ZAMORA

                  HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

                  bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

                  Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

                  mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

                  44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

                  45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

                  6 Ibid p 491

                  45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

                  44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

                  enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

                  A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

                  4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

                  As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

                  47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

                  4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

                  iexclOSEacute A ZAMORA

                  HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

                  Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

                  Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

                  da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

                  49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

                  et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

                  ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

                  46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

                  jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

                  qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

                  Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

                  ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

                  51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

                  DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

                  POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

                  TRAUMAS SOCIAIS

                  MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

                  Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

                  Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

                  ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

                  Realiza~ao

                  Faculdade de Direito da PUCRS

                  Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

                  Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

                  COlECAo FORUM

                  JUSTI~A E DEMOCRACIA

                  Coordenador da Cole~ao

                  PauloAbrao

                  JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

                  MARCELO D TORELLY

                  Coordenadores

                  JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

                  OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

                  14 1

                  LJ Belo Horizonte

                  jI r EDITORA ~ -orum

                  2013

                  r

                  COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

                  Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

                  Conselho Editorial Conselho Editorial

                  Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

                  Pereira Marques Nelo

                  Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

                  Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

                  Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

                  Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

                  Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

                  Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

                  Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

                  Fernando Rossi Seacutergio Guerra

                  liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

                  Presidente e Editor

                  Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

                  catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

                  Diagramatao Luiz Piacutementa

                  Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

                  wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

                  J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

                  -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

                  1 Crirncs contra a Humanidade

                  Moreira da U

                  Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

                  SUMAacuteRIO

                  JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

                  PARTEI

                  HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

                  HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

                  DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

                  Referencias 59

                  EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

                  Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

                  enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

                  da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

                  • JAZam-Texto56
                  • JAZam-Texto56b

                    I lOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA FrLAO PAULO ABRA O MARCELO D TOREUY (COORD)

                    38 jUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICASmiddot OLHARES INTERDISCllLlNAR~ FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAO

                    da recorda~ao Isto eacute o que pode converte-lo em urna recorda~ao perigosa O soacutenho utoacutepico frustrado no qual o sofrimento se acumula no passado eacute despertado por meio dessa recorda~ao arriscada que nao mostra a realidade tal corno propriamente ocorreu senao que a convoca no instante do perigo em liga~ao com o presente e o futuro para converter o sofrimento passado em promessa ex negativo para aqueles que no instante presente estao amea~ados e perdidos nA proximidade ao perigo qualifica os sujeitos amea~ados como autoridades da memoacuteria~2 Por isso pretender salvar urna memoacuteria dos horrores histoacutericos na distancia praacutetica e teoacuterica em rela~ao a esses sujeitos amea~ados significa desativar seu potencial criacutetico e integraacute-la nos mecanismos de reprodu~ao cultural dominantes33

                    Sem embargo isso eacute precisamente o que estaacute ocorrendo em uma cultura da presen~a totalizadora dos meios34 uma cultura que reprime e torna invisiacuteveiacutes os vazios que marcam o horror nao represhysentaacutevel dos acontecimentos traumaacuteticos eacute dizer daqueles vazios que nao podem ser ocupados pela recorda~ao aos quais somente a recorda~ao deslocada pode remeter Aquiacute jaacute nao resta praticamenshyte nada da indisponibilidade sobre os sofrimentos passados que corno vimos obriga a racionalidade e o discurso a se dobrar ante as experiencias traumaacuteticas experiencias que precedem a toda forma de vontade ou representa~ao reflexiva que nao sao nunca completamente recuperaacuteveis nem hermeneutica nem analiacutetica nem sequer memoshyrialmente O contraacuterio Os acontecimentos midiaacuteticos se comportam corno reencena~6es do acontecimento traumaacutetico que o substituem de modo perfeito e anulam toda referencia ao nao visualizado ou visualizaacutevel35

                    32 JOHN O Fortschrittskritik und Erinnerung Walter Benjamin ein Zeuge der Gefahr Irl ARENS E JOHN O ROTTLANDER P Erinnerung Befreiacuteung Solidaritiiacutet Uuumlsseldorf Patmos 199L p 67

                    33 Esta criacutetica nao pretende negar o valor de estudos culturais da memoacuteria (Aleida e Jan Assmann A Huyssen) da filosofia da memoacuteriacutea (Paul Ricoeur Hermann Luumlbbe M Zuckermann) da sociologia da memoacuteria (Maurice Halbwachs Harald Welzer) da teoriacutea poliacutetica da memoacuteria (Enzo Tarverso Tzvetan Todorov) da teoria histoacuterica da memoacuteria (Dominick LaCapara Saul Friedlander Hayim Yerushalmi Pierre Nora) etc Simplesshymente pretende dizer onde se situa a exigeacutencia de urna reflexao que pretenda nao se esquivar do desafio da memoacuteria das viacutetimas

                    l4 Cf METZ JB Zwischen Erinnern und Vergessen Die Shoah im Zeitalter der kulturUen Amnesie In METZ JB Zum Begriff der rreuen Politischen Theologie 1967-1997 Mainz Matthias-Grunewald-Verlag 1997 p 149-155 A transmissao ao vivo ou quase ao vivo de qualquer cataacutestrofe bem como da violeacutencia beacutelica ou de atos de terror do Estado sobre as populaoes civis conduz indefectivelshymente a uma identificaao que trunca a funao referencial das imagens e mnverte os acontecimentos em mera condiao previacutea de sua verdadeira ficcionalizaao infinitamente

                    JOSEacute A ZAMORA I 39 HlSTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUSTIltA DA iexclUS11ltA TRANSIClONAL Aacute jlJSTIltA ANA]LIilTCA

                    Isso corresponde ao suposto horizonte de compreensao dos receptores que em seu transitar habitual pelo mundo virtual prefeshyrem o kick midiaacutetico em vez de se verem envolvidos existencialmente com aquilo que escapa acomunicabilidade A recorda~ao individual se eacute assim expropriada pelo domiacutenio das narra~oes clicheacutes modelos interpreta~6es e imagens produzidas pela induacutestria cultural das quais ningueacutem pode escapar A memoacuteria coletiva nao se constitui a partir das difiacuteceis e perigosas recorda~oes do sofrimento alheio estando sim submetida a urna pressao contiacutenua pela memoacuteria puacuteblica na qual conflua a induacutestria cultural e as poliacuteticas da memoacuteria A prolifera~ao dos memoriais e a multiplica~ao dos monumentos comemorativos a transforma~ao midiaacutetica dos acontecimentos traumaacuteticos em eventos e sua explora~ao sensacionalista enquanto dura sua atualidade tudo isso ao inveacutes de um sinal de uma cultura de memoacuteria parece querer exonerar da recorda~ao e facilitar o esquecimento Como destaca A Huyssen muitas dessas memoacuterias comercializadas em massa e que consumimos nao sao nada mais do que memoacuterias imaginadas e por consequencia sao muito mais faacuteceis de serem esquecidas do que as memoacuterias vividas 36

                    A memoacuteria nao eacute o que se entende habitualmente corno urna reprodu~ao fiel do passado A memoacuteria se faz acompanhar da imashygina~ao e mistura entre o vivido em primeira pessoa com experiencias transmitidas pelos outros o real com o imaginado e desejado Os a conshytedmentos nao apenas podem ser confundidos entre si como tambeacutem permitem que o que nao aconteceu pare~a ter ocorrido O material da memoacuteria eacute de natureza muito variada e ademais estaacute submetida permanentemente a reelabora~ao e recomposi~ao a reinterpreta~ao e a novas montagens sempre a partir das exigencias individuais ou coletivas do presente37 As supostas fraquezas da memoacuteria foram desshycritas infinitas vezes desde seu progressivo desvanecimento com o passar do tempo ateacute sua fixa~ao traumaacutetica pass ando pelo caraacuteter seletivo seus bloqueios distor~oes e sugestionamentos ou sua depenshydencia ao desejo38

                    repetiacutevel ateacute que se alcance sua plena irrealizaao tal como pudemos comprovar na transmissao televisiva das acoes de guerra (Iraque) ou na repressao de populacoes civis por parte dos agentes do Estado (Siria)

                    36 HUYSSEN En busca del futuro perdido cultura y memoria en tiempos de globalizacioacuten

                    p22s 37 Cf WELZER H Das kommunikative Gediiacutechtnis Eine Theorie der Erinnerung Munique

                    Beck2002 38 Cl SCHACTER DL The Seven Sins ofMemory Insights From Psychology and Cognitive

                    Neuroscience American Psychologist v 54 n 3 p 182-203 1999

                    41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

                    JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

                    Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

                    Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

                    39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

                    JOSEacute A ZAMORA

                    HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

                    contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

                    Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

                    Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

                    Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

                    41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

                    bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

                    43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

                    42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

                    mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

                    Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

                    43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

                    j05Eacute A ZAMORA

                    HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

                    bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

                    Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

                    mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

                    44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

                    45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

                    6 Ibid p 491

                    45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

                    44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

                    enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

                    A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

                    4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

                    As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

                    47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

                    4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

                    iexclOSEacute A ZAMORA

                    HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

                    Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

                    Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

                    da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

                    49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

                    et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

                    ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

                    46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

                    jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

                    qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

                    Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

                    ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

                    51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

                    DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

                    POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

                    TRAUMAS SOCIAIS

                    MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

                    Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

                    Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

                    ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

                    Realiza~ao

                    Faculdade de Direito da PUCRS

                    Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

                    Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

                    COlECAo FORUM

                    JUSTI~A E DEMOCRACIA

                    Coordenador da Cole~ao

                    PauloAbrao

                    JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

                    MARCELO D TORELLY

                    Coordenadores

                    JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

                    OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

                    14 1

                    LJ Belo Horizonte

                    jI r EDITORA ~ -orum

                    2013

                    r

                    COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

                    Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

                    Conselho Editorial Conselho Editorial

                    Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

                    Pereira Marques Nelo

                    Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

                    Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

                    Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

                    Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

                    Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

                    Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

                    Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

                    Fernando Rossi Seacutergio Guerra

                    liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

                    Presidente e Editor

                    Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

                    catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

                    Diagramatao Luiz Piacutementa

                    Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

                    wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

                    J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

                    -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

                    1 Crirncs contra a Humanidade

                    Moreira da U

                    Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

                    SUMAacuteRIO

                    JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

                    PARTEI

                    HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

                    HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

                    DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

                    Referencias 59

                    EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

                    Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

                    enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

                    da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

                    • JAZam-Texto56
                    • JAZam-Texto56b

                      41 40 I JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAUtO ABRAo MARCELQ D TORELLY (COORD)

                      JU5TIltA DE TRANSltAo NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTFRDlSCIPI JNARF5 FUNDAMENTOS E PADROES DE EFETIVAltAo

                      Eacute bem verdade que o passado em estado bruto tambeacutem nao existe que nao haacute um acontecimento humano que jaacute nao esteja desde o comelto dentro de um marco da memoacuteria e portanto completamente salvo das mencionadas fraquezas O que a histoacuteria nao pode fazer costumam dizer os historiadores eacute tomar tudo aquilo que oferece a memoacuteria como se fosse urna moeda com curso legal Por isso avoshycam para si o trabalho metodologicamente garantido e corroborado capaz de liberar a recordaltiio de sua funcionalizaltao pelo poder ou por interesses particulares com o objetivo de garantir urna fidelidade com o passado tal como este ocorreu Ainda que a maneira pela qual a memoacuteria apresenta o passado seja parcial apaixonada distorcida assistemaacutetica etc a histoacuteria estaacute equipada de todos os avais da cit~ncia imparcialidade distancia objetividade sistematicidade etc O clicheacute dessa contraposiltao se completa quando se caracteriza a memoacuteria como subjetiva enquanto a histoacuteria seria objetiva Sob esta perspectiva a questao da verdade somente pode ser levantada e resolvida por meio do recurso a fontes neutras e metodologicamente garantidas pois somente elas permitem urna versao convincente e contrastaacutevel dos processos e fatos do passado O historiador submete as testemunhas e fontes do passado a urna rigorosa comprovaltao oferece urna explishycaiexclao sobre o acontecido estabelecendo nexos entre os fatos e elabora urna interpretaltao ampla do passado39 Essas contribuiltoes criacuteticas da histoacuteria justificariam seu primado atual sobre a memoacuteria Mais ainda esse primado pode ser interpretado como um sinal de mudanlta histoacuterica que reflete o decliacutenio da memoacuteria seja porque vem a substishytui-la ali onde ela desvanece e perde vigencia por mais que se trate de urna substituiltao nova mente repetida em cada eacutepoca (M Halbwachs) seja porque a histoacuteria tomou definitivamente a substituiltao da memoacuteria nas sociedades poacutes-tradicionais de forma que o debate atual sobre a memoacuteria nao seria senao a prova mais evidente (P Nora) Tem-se aqui a forma mais ou menos convencional de se suscitar a relaltao entre memoacuteria e histoacuteria

                      Sem embargo a histoacuteria possui urna autoimagem que nao reshysiste ao contraste com a realidade Seu caraacuteter cientiacutefico nao a impediu de cumprir funltoes de legitimaltao reconheciacuteveis entre outras coisas nos clamorosos silencios e esquecimentos somente percebidos graltas a contribuicao da memoacuteria daqueles que foram silenciados As fontes nao confirmam nem desmentem sao os historiadores aqueles que se

                      39 Cf RICOEUR P La memoria la hiMoria el olvido Madrid Trotta 2003 p 191 et seq

                      JOSEacute A ZAMORA

                      HlltTOacuteRlA MEMOacuteRlA E JUSTIltA - DA JU5TIltA TRANSIClONAL Aacute JUSTIltA ANAMNEacuteTICA

                      contradizem entre si ou que confirmam apoiando-se no manejo das fontes Eacute tambeacutem na histoacuteria que nos encontramos dentro do universo de infinitas explicaiexcloes e interpretaiexclOes pois os historiadores estao longe de possuir um saber que permita o oferecimento de juiacutezos defishynitivos sobre acontecimentos e processos Sua visao nao estaacute livre de projeiexcloes desejos fantasias e pressuposiltoes Haacute poliacuteticas da memoacuteshyria isso eacute inegaacutevel mas no mesmo sentido pode-se falar tambeacutem na existencia de poliacuteticas da histoacuteria urna vez que a histoacuteria faz parte dos mecanismos de reproducao cultural convocados para prestar servicos de legitimacao e respaldo as ordens sociais vigentes Algo que nao anula eacute verdade toda a capacidade criacutetica da histoacuteria mas explica o lastro ideoloacutegico que ela sofre

                      Por isso o que propornos aqui eacute tomar como ponto de partida as experiencias histoacutericas traumaacuteticas para nos aproximarmos das aporias em que se veem envolvidas as estrateacutegias historiograacuteficas sobre o significado do acontecimento histoacuterico mediante representashyltoes especiacuteficas do curso temporal ou reelaboraltoes da experiencia do tempo40 Jom Ruumlsen um reconhecido historiador alemao c1assificou essas estrateacutegias em quatro tipos ideais tradicional exemplar criacutetico e geneacutetico41 Diacutetas estrateacutegias tem relaiexclao com a crialtao do sentido em relaltao ao passado a fim de que sirva para a vida no presente seja estabelecendo urna continuidad e temporat explicando-o como expresshysao da condicao humana questionando seu sentido e contestando ou desentranhando o seu significado para a construcao do presente assim como derivando dele exigencias eacutetico-poliacuteticas Pois bem as menshycionadas experiencias impoem a essas estrateacutegias da discursividade historiograacutefica um adicional autorreflexivo que eleve a consciencia as consequencias que as interpretaltOes tern para as viacutetimas da cataacutestrofe para os sobreviventes e para a compreensao de urna sociedad e apoacutes a ocorrencia dessa cataacutestrofe Por isso a teoria criacutetica da histoacuteria se nega a destilar um sentido a partir do ocorrido42

                      Eacute verdade que a intenltao da historiografia de adotar a perspectiva das viacutetimas resulta extremamente difiacutecil para nao dizer impossiacuteveL Da maioria dos aniquilados nao sobra qualquer tralto testemunhal da

                      Cf LACAPRA D Escribir la historia escribiacuter el trauma Bm11os Aires Nueva Visioacuten 2005

                      41 RUumlSEN J Die vier typen des historischen Erzahlens In RUumlSEN J Zeiacutet und Siacutenn Stralegien historischen Denkens Frankfurt aM Fischer 1990 p 153-230

                      bull2 Ciacute HARNISCHMACHER l Geschichte und Gedachtnis In GRUSCHKA A OEVERMANN U (Ed) Die Lebendigkeit der Kritischen Gesellschafrntheoriacutee Wetzlar Buumlchse der Pandora 2004 p 319 et seq

                      43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

                      42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

                      mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

                      Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

                      43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

                      j05Eacute A ZAMORA

                      HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

                      bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

                      Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

                      mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

                      44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

                      45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

                      6 Ibid p 491

                      45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

                      44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

                      enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

                      A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

                      4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

                      As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

                      47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

                      4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

                      iexclOSEacute A ZAMORA

                      HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

                      Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

                      Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

                      da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

                      49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

                      et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

                      ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

                      46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

                      jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

                      qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

                      Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

                      ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

                      51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

                      DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

                      POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

                      TRAUMAS SOCIAIS

                      MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

                      Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

                      Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

                      ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

                      Realiza~ao

                      Faculdade de Direito da PUCRS

                      Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

                      Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

                      COlECAo FORUM

                      JUSTI~A E DEMOCRACIA

                      Coordenador da Cole~ao

                      PauloAbrao

                      JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

                      MARCELO D TORELLY

                      Coordenadores

                      JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

                      OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

                      14 1

                      LJ Belo Horizonte

                      jI r EDITORA ~ -orum

                      2013

                      r

                      COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

                      Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

                      Conselho Editorial Conselho Editorial

                      Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

                      Pereira Marques Nelo

                      Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

                      Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

                      Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

                      Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

                      Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

                      Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

                      Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

                      Fernando Rossi Seacutergio Guerra

                      liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

                      Presidente e Editor

                      Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

                      catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

                      Diagramatao Luiz Piacutementa

                      Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

                      wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

                      J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

                      -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

                      1 Crirncs contra a Humanidade

                      Moreira da U

                      Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

                      SUMAacuteRIO

                      JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

                      PARTEI

                      HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

                      HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

                      DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

                      Referencias 59

                      EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

                      Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

                      enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

                      da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

                      • JAZam-Texto56
                      • JAZam-Texto56b

                        43 JOSEacute CARLOS MORElRA DA SILVA Fl HO PAUW ABRAO MARCELO D TORELLY (COORD)

                        42 I jUSTlltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS -OLHARES INTERDlSCIPLlNARES FUNDAMENTOS E PADROE5 DE EFEnVAltAO

                        mesma forma que a memoacuteria dos sobreviven tes apresenta problemas por vezes insanaacuteveis por conta de seu caraacuteter traumaacutetico Despossuir a memoacuteria de sua singularidade traduzindo-a em discursividade hisshytoacuterica compreensiacutevel e supostamente objetiva importa na ameaiexcla de que o testemunho perca sua parte substantiva Sem embargo colocar-se em uma espeacutecie de dualidade entre o discurso historiograacutefico e outras linguagens expressivas - o primeiro centrado em uma construiexclao metodologicamente depurada dos fatos enquanto as outras se devoshytam a veicular o testemunho dos sobreviven tes - pode resultar em linguagens sem valor vinculante e em um discurso historiograacutefico sujeito a pressupostos teoacutericos imbricados com processos histoacutericos que tornaram o genociacutedio possiacuteveL Creio que eacute nesse sentido que deve ser lida a afirmaiexclao de R Koselleck Sao os meacutetodos que mitem a compreensao das experiencias realizadas uma vez e que podem se repetir e eacute a mudaniexcla do meacutetodo que permite novas expeshyriencias e as tornam novamente transmissIacuteveis43 Principalmente porque conforme destaca o proacuteprio Koselleck sao os derrotados e os vencidos que percebem e elaboram as experiencias das viacutetimas assim como eacute o seu caraacuteter de interrupiexclao que questiona radicalmente as construiexcloes histoacutericas constru~6es que sem embargo possuem grande plausibilidade para os vencedores e que sao exigidas por uma necessidade de legiacutetimaiexclao A questao-chave eacute se frente aocupaiexclao e apropriaiexclao do passado para estabilizar e assegurar a estrutura de poder existe uma forma de memoacuteria na qual o passado segue vivo sem ser instrumentalizado A memoacuteria criacutetica eacute oposiiexclao a urna redushy~ao tendenciosa da histoacuteria a qual busca estabelecer urna continuishydade que fundamente a identidade Essa outra forma de memoacuteria seria mais urna forma de praacutexis do que urna teacutecnica ou um meacutetodo nem tanto um programa como uma forma de vida Essa memoacuteria seria interpela~ao protesto contra a identidade e continuidade oposhysiiexclao apossibilidade de eternizar o ocorrido como forma de praacutexis aponta evidentemente para urna transformaiexclao do presente sendo urna memoacuteria essencialmente poliacutetica

                        Essa a preocupa~ao principal de Walter Benjamin resgatar de sua integra~ao niveladora em um curso histoacuterico que supostamente avaniexcla de maneira continuada as quebras e os cortes as injustiiexclas e as opress6es tudo o que em sua singularidad e permanece descumprido

                        43 KOSELLECK R Erfahrungswandel und Methodenwechsel Eiacutene historisch-anthropoloshygische Skizze In MAIER Ch RUumlSEN J STUDIENGRUPPE (Ed) Theone der Geschichte Historiacutesche Methode Munique 1988 p 50 (Beitrage zur Hiacutestorik Bd 5)

                        j05Eacute A ZAMORA

                        HISiexclOacuteRlA MEMOacuteRIA E jUSTlltA DA )lJSI1ltA TlUN5ICIONAL Aacute )lJ5TIltA ANAMNEacutenCA

                        bloqueado e indomaacutevel para dessa maneira faze-Io experimentaacuteveL Isso exige segundo ele nao neutralizar os potenciais de desenvolvishymento da memoacuteria por meio de urna explicaiexclao identificaiexclao e c1asshysificaiexclao que a converta em objeto morto da historiografia Deve-se em vez tornar presente sua singularidade e inclausurabilidade A memoacuteria nao eacute um instrumento para explorar o passado mas sim o seu cenaacuterio no qua1 os sujeitos da recordaiexclao deverao escavar e resgatar fragmentos perdidos da histoacuteria que permitam desentranhar o presente como urna constelaiexclao de periacutegos Isto eacute o que expressa o conceito dedialeacutetica detida (Dialektik im Stillstand) Trata-se de romper com as formas habituais de percepiexclao e interpretaiexclao do tempo que reduz pessoas e coisas a meros elementos de um processo objetivo que nao eacute mais do que a manifestaiexclao do sistema de dominaiexclao que em cada caso oprime e sujeita o singular Esse mascara mento que se autocelebra como evoluiexclao somente pode ser combatido por meio do rompimento do feitiiexclo decorrente da representaiexclao do avaniexclo representaiexclao que domina tanto as filosofiacuteas da histoacuteria como o positivismo historicista44

                        Por isso o historiador materialista estaacute convocado para atrashyvessar o passado com a intensidade de um sonho para experimentar o presente como o mundo em vigiacutelia ao qual se refere o sonho45 Por meio da interpretaiexclao do sonho trata-se de estabelecer corresponshydencias entre o passado e o presente Isto eacute possiacutevel porque os sonhos fantasmagoacutericos do passado possuem um caraacuteter dialeacutetico o de urna reviravolta repentina ao despertar Suas imagens desiderativas conshyteacutem fissuras pelas quais pode irromper o despertar que eacute o telos da rememoraiexclao46 Estamos diante de uma forma singular de tgtv1_

                        mentar a dialeacutetica na qual resta desmentido o caraacuteter aparentemente irreversiacutevel do devir e a evoluiexclao adquire a forma de uma reviravolta No despertar do sonho tem-se a consciencia eacute recordado O sonho passado se constituiacute na recordaiexclao e esta por sua vez se constituiacute na atualidade do sonho O que a iacutenterpretaiexclao poliacutetica do sonho pretende eacute aproveiacutetar de forma revolucionaacuteria os fragmentos histoacutericos que

                        44 Esta concepao da memoacuteria enquanto interrup~iexcliexclo lambeacutem estaacute muiacuteto bem ilustrada pela proximidade que estabelece R Mate sobre a memoacuteria e o conceito de acontecimento de Alaiacuten Badiou a rememora~iio do nao cumprido no passado como o futuro nao antecipaacutevel previsiacutevel ou dedutiacutevcl do curso do acontecer ordinaacuterio (d MATE Tratado de la injusticia p192)

                        45 BENJAMIN W Gesammelte Schriften Bd 7 IDas Passagen-WerkJ Hrsg von R Tiedemann H Schweppenhauser Frankfurt aM Suhrkamp 1972-1989 p 1006

                        6 Ibid p 491

                        45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

                        44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

                        enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

                        A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

                        4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

                        As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

                        47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

                        4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

                        iexclOSEacute A ZAMORA

                        HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

                        Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

                        Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

                        da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

                        49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

                        et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

                        ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

                        46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

                        jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

                        qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

                        Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

                        ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

                        51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

                        DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

                        POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

                        TRAUMAS SOCIAIS

                        MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

                        Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

                        Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

                        ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

                        Realiza~ao

                        Faculdade de Direito da PUCRS

                        Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

                        Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

                        COlECAo FORUM

                        JUSTI~A E DEMOCRACIA

                        Coordenador da Cole~ao

                        PauloAbrao

                        JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

                        MARCELO D TORELLY

                        Coordenadores

                        JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

                        OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

                        14 1

                        LJ Belo Horizonte

                        jI r EDITORA ~ -orum

                        2013

                        r

                        COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

                        Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

                        Conselho Editorial Conselho Editorial

                        Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

                        Pereira Marques Nelo

                        Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

                        Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

                        Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

                        Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

                        Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

                        Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

                        Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

                        Fernando Rossi Seacutergio Guerra

                        liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

                        Presidente e Editor

                        Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

                        catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

                        Diagramatao Luiz Piacutementa

                        Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

                        wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

                        J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

                        -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

                        1 Crirncs contra a Humanidade

                        Moreira da U

                        Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

                        SUMAacuteRIO

                        JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

                        PARTEI

                        HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

                        HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

                        DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

                        Referencias 59

                        EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

                        Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

                        enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

                        da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

                        • JAZam-Texto56
                        • JAZam-Texto56b

                          45 I JOSEacute CARLOS MOREIRA])A SILVA FllJiO PAL10 ABR1 bull o MARCELO D IDREtLY (COORD)

                          44 JUSTIltA DE TRANSI(AO NAS AMEacuteRICAS - OLllARFS lNTERDlSClPUNARE5 ruNDAMENIDS E PA])ROES DE EFETIVAltAacuteO

                          enquanto imagens verdadeiras da histoacuteria resplandecem no instante de despertar

                          A percep~ao do passado pelos que o viveram concretamente nao estava preparada para reconhecer o que a constela~ao com o presente atual revela as possibilidades nao realizadas seus viacutenculos com um futuro nao esperado as semelhan~as e contrastes com outros momentos histoacutericos etc O perturbado historicamente possui urna vida mais aleacutem do passado e de sua transmissao na histoacuteria Mas esta somente pode ser desperta quando se reconhece urna dimensao poliacuteshytica de proximidade que se acende momentaneamente e que possa ser interpretada em urna constela~ao de perigos atuais Com a atualishyza~ao dos momentos histoacutericos do passado reprimido eacute possiacutevel mostrar a descontinuidade da histoacuteria encoberta pelas ideologias dominantes e estabelecer novas continuidades mediante a realizashy~ao atual das possibilidades frustradas e esperan~as descumpridas Poder-se-ia dizer que haacute instantes do passado que esperam por essa oportunidade de configura~ao com o presente que estao mencionados secretamente com o presente para cristalizar urna imagem dialeacutetica que como um clarao confere a esse presente urna plenitude que Walter Benjamiacuten identificava comoo verdadeiramente novo

                          4 Em direcao eacutel justica anamneacutetica

                          As reflexoes apresentadas ateacute o momento sobre a rela~ao entre histoacuteria e memoacuteria permiacutetem que sejam abordadas as carencias da Justi~a Transicional e como o conceito de justi~a anamneacutetica pode afrontaacute-Ias A exigencia dupla de respeitar dentro do possiacutevel o marco juriacutedico tradicional tanto para evitar a impunidade como para evitar um rompimento no marco jurisdicional e de permitir a reconcilia~ao e a paz em sociedades fragmentadas pela violencia poliacutetica e pelas formas de domina~ao autoritaacuteria47 favoreceu a vincula~ao da Justi~a Transicional com a justi~a restaurativa o que amea~a impedir a supeshyra~ao de um conceito de justi~a como repara~ao ou retribui~ao no qual as viacutetimas sao apenas um problema a ser resolvido para fins do restabelecimento da paz ou da reconcilia~ao48 Neste caso as viacutetimas sao levadas em considera~o mas nao adquirem centralidade

                          47 CL RETrBERG A (Org) Entre el perdoacuten y el paredoacuten preguntas y dilemas de la Justicia TransicionaL Bogotaacute Universidad de los Andes 2005

                          4B MATE R Las viacutectimas del pasado In AAVV La voz de las viacutectimas 11105 excluidos Madrid IPC 2002 p 32

                          iexclOSEacute A ZAMORA

                          HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E iexclUST(A ~ DAJUSTIltA TRANSIClONAL Aacute JusnltA ANAMNEacuteTICA

                          Se a situa~ao estaacute envolvida com a injusti~a perpetrada a justi~a nao pode simplesmente pretender o retorno da situa~ao anteshyrior restabelecer um status quo ou recuperar a confian~a em algumas institui~oes renovadas e desvinculadas de praacuteticas violentas ou represshysivas mas sim pretender transformar desde a raiacutez a situa~ao recoshynhecida como estado de exce~ao e estabelecer novas condi~oes que impe~am a reprodu~ao dessa injusti~a Os violadores e as condi~oes que tornaram possiacutevel sua a~ao violenta repressiva ou beacutelica nao devem ser submetidas apenas a a~6es punitivas como tambeacutem devem ser confrontadas com a dor e o sofrimento produzido bem como conshyvocados ao reconhecimento da diacutevida contraiacuteda com as suas viacutetimas E isso sup6e conceder a estas um papel central no processo e nao apeshynas com testemunhos que permitam determinar a culpa dos carrascos ou como destinataacuterios de indeniza~oes mas sim como produtores ativos da reconcilia~ao A poliacutetica nao pode ter prioriacutedade sobre a memoacuteria da injusti~a pois isso suporiacutea de urna forma ou outra urna instrumentaliza~ao das viacutetimas a favor de urna reconcilia~ao for~ada e precipitada que nao seriacutea digna desse nome Se isso haacute de ser evitado entao eacute preciso reinscrever a experiencia das viacutetimas na constru~ao discursiva e praacutetica da comunidade poliacutetica49 Restabelecer o papel poliacutetico da viacutetima eacute a condi~ao para que esta seja algo mais do que urna viacutetima Mas isso implica a memoacuteriacutea ou melhor a justi~a memoshyrial que come~a pelo reconhecimento de diacutevidas com o passado por meio da confronta~ao da viacutetima e do carrasco sem a qual nao eacute possiacutevel pensar em urna nova funda~ao da convivencia

                          Certamente nao se trata de urna confronta~ao isolada mas que teraacute lugar em um espa~o deliberativo no qual deve haver um terceiro a figura deste nos adverte que os espa~os da justi~a nao sao apropriaacuteshyveis legiacutetimamente por ningueacutem que nao haacute nenhuma Unidade que possa reduzir a complexidade muIticeacutentrica que caracteriza o espa~o

                          da justi~a que nao eacute outro que a proacutepria cidade A Justi~a para chegar a ser o que eacute se reconstroacutei constantemente como lugar de reconhecishymento das viacutetimas e consequentemente como espa~o em que se torna puacuteblica a a~ao da injusti~a 50 Este espa~o eacute tambeacutem o lugar privileshygiado da memoacuteria puacuteblica da injusti~a Essa memoacuteriacutea nao oferece

                          49 Cf GARAPON A Des crimes quon ne peut ni punir ni pardonner Paris Odile Jacob p 164

                          et seq 50 VALLADOLID T La justicia reconstructiva presentacioacuten de un nuevo paradigma In

                          ZAMORA JA MATE R (Ed) Justicia y memoria hacia una teoriacutea de la justicia anamneacutetica Barcelona Anthropos 2011 p 232 et seq

                          46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

                          jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

                          qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

                          Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

                          ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

                          51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

                          DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

                          POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

                          TRAUMAS SOCIAIS

                          MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

                          Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

                          Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

                          ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

                          Realiza~ao

                          Faculdade de Direito da PUCRS

                          Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

                          Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

                          COlECAo FORUM

                          JUSTI~A E DEMOCRACIA

                          Coordenador da Cole~ao

                          PauloAbrao

                          JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

                          MARCELO D TORELLY

                          Coordenadores

                          JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

                          OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

                          14 1

                          LJ Belo Horizonte

                          jI r EDITORA ~ -orum

                          2013

                          r

                          COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

                          Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

                          Conselho Editorial Conselho Editorial

                          Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

                          Pereira Marques Nelo

                          Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

                          Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

                          Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

                          Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

                          Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

                          Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

                          Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

                          Fernando Rossi Seacutergio Guerra

                          liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

                          Presidente e Editor

                          Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

                          catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

                          Diagramatao Luiz Piacutementa

                          Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

                          wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

                          J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

                          -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

                          1 Crirncs contra a Humanidade

                          Moreira da U

                          Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

                          SUMAacuteRIO

                          JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

                          PARTEI

                          HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

                          HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

                          DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

                          Referencias 59

                          EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

                          Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

                          enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

                          da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

                          • JAZam-Texto56
                          • JAZam-Texto56b

                            46 JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULO ABRAacuteO MARCELO D TORELLY (COORD)

                            jUSTTltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICAS - OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVAltAacuteO

                            qualquer garantia de que a injustilta nao se repetiraacute mas eacute ariacuteete epistemoloacutegico frente a inviabilizaltao e amortizaltao fictiacutecia de diacutevidas pendentes nao pode oferecer a reversibilidade do tempo e tampouco desfazer o ocorrido mas pode mostrar a vigencia do passado frac ashyssado frustrado e nao redimido e assim impedir a confusao do real com o faacutetico isto eacute com o que acabou sendo imposto e que se saiu vitorioso nao pode garantir urna mudanlta do rumo do curso histoacuterico mas ao reclamar o direito do frustrado e impedido violentamente estaacute contribuindo para que o futuro deixe de ser urna reprodultao do antigo horror que se perpetua sem remissao na histoacuteria Neste conceito de justilta anamneacutetica nao apenas estaacute em jogo nossa relaltao com o passado mas sim como por meio dessa relaltao fazemos frente a demandas do presente O que ocorreria se um dia os homens apenas pudessem se defender da infelicidade presente no mundo utilizando da arma do esquecimento se apenas pudessem construir sua felicishydade sobre o esquecimento inclemente das viacutetimas sobre urna cultura de amneacutesia na qual somente o tempo poderaacute curar as feridas De que se alimentaria entao a rebeliao contra a ausencia de sentido do sofrishymento no mundo o que animaria a continuar prestando atenltao ao sofrimento alheio e a buscar a visa o de urna justilta nova e maior51

                            Informaltao bibliograacutefica deste texto conforme a NBR 60232002 da Associaltiio Brasileira de Normas Teacutecnicas (ABNT)

                            ZAMORA Joseacute A Histoacuteria memoacuteria e justilta da Justilta Transicional a justilta anamneacutetica In SILVA FILHO Joseacute Carlos Moreira da ABRAo Paulo TORELLY Marcelo O (Coord) ]ustifa de Transifiio nas Ameacutericas olliares intershydisciplinares fundamentos e padrees de efetivaiexclao Belo Horizonte Foacuterum 2013 p 21-46 ISBN 978-85-7700-795-0

                            51 METZ JB Gott Wieder den Mythos von der Ewigkeit der Zeit In PETERS TR URBAN e (Ed) Ende der Zeit die Provokation der Rede von Gott Mainz Gruumlnewald 1999 p 40

                            DIREITO POacuteS-F AacuteUSTICO

                            POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS

                            TRAUMAS SOCIAIS

                            MAacuteRCIO SELIGMANN-SILVA

                            Gostaria de apresentar aqui algumas ideias sobre a questao da memoacuteria e do arquivamento em um mundo afundado na hipermneacutesia do universo da web Enfocarei alguns aspectos com relaltao as dificulshydades da rememoraltao e do arquivamento destacando o papel do testemunho como meio de inscriltao da violencia e como canal de busca da justilta Trata-se de introduzir urna consciencia clara da relashyltao entre direito e memoacuteria que revela tambeacutem a necessaacuteria relaltao entre direito e poliacutetica Gostaria tambeacutem de destacar a amneacutesia e a hipomneacutesia como faces nao menos importantes da nossa hipermneacutesia Como lemos em Mal de arquivo de Derrida Nao haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical sem a possibilidade de um esquecimento que nao se limita ao recalcamento (2001 p 32) Esse esquecimento pode ter muitas faces o apagamento a tentativa de borrar da histoacuteria urna amneacutesia provocada por cataacutestrofes naturais ou ainda um esquecimento decretado que no fundo eacute urna contradiltao nos seus proacuteprios termos O testemunho como exerciacutecio de narrar e elaboshyrar traumas sociais na praacutetica poliacutetica conforme veremos eacute urna tentativa de se escovar a histoacuteria a contrapelo abrindo espalto para aquilo que normalmente permanece esquecido recalcado e legado a um segundo (ou uacuteltimo) plano

                            Nossa cultura arquival e da memoacuteria eacute urna cultura onde grandes conflitos e guerras se articulam em tomo da chave de arquivos e de certas interpretalt6es da nossa memoacuteria Podemos ler nas guerras fundamentalistas tentativas de deletar da memoacuteria da humanidade as informalt6es culturais e geneacuteticas contidas nos grupos cuja aniquilashyltao eacute decretada Os genociacutedios as guerras poliacuteticas e as ditaduras que marcaram o continente sul-americano na deacutecada de 1970 ocasionashyram graves conflitos em tomo dos arquivos do terror Em 2006 para

                            ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

                            Realiza~ao

                            Faculdade de Direito da PUCRS

                            Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

                            Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

                            COlECAo FORUM

                            JUSTI~A E DEMOCRACIA

                            Coordenador da Cole~ao

                            PauloAbrao

                            JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

                            MARCELO D TORELLY

                            Coordenadores

                            JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

                            OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

                            14 1

                            LJ Belo Horizonte

                            jI r EDITORA ~ -orum

                            2013

                            r

                            COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

                            Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

                            Conselho Editorial Conselho Editorial

                            Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

                            Pereira Marques Nelo

                            Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

                            Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

                            Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

                            Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

                            Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

                            Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

                            Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

                            Fernando Rossi Seacutergio Guerra

                            liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

                            Presidente e Editor

                            Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

                            catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

                            Diagramatao Luiz Piacutementa

                            Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

                            wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

                            J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

                            -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

                            1 Crirncs contra a Humanidade

                            Moreira da U

                            Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

                            SUMAacuteRIO

                            JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

                            PARTEI

                            HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

                            HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

                            DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

                            Referencias 59

                            EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

                            Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

                            enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

                            da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

                            • JAZam-Texto56
                            • JAZam-Texto56b

                              ~~fL8CNPq lt0 SCanNIho ~t chf DelHmllDlvImMo Cettfif1tOflJc~ CAPES FAPERGS

                              Realiza~ao

                              Faculdade de Direito da PUCRS

                              Programa de Poacutes-Gradualtao em Cieacutencias Criminais da PUCRS Comissao de Anistia do Ministeacuterio da Justilta

                              Apoio e Fomento Programa das Nalt5es Unidas para o Desenvolvimento Fundaltao de Amparo aPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- FAPERGS Coordenaltao de Aperfeiltoamento de Pessoal de Niacutevel Superior - CAPES Conse1ho Nacional de Pesquisa - CNPq

                              COlECAo FORUM

                              JUSTI~A E DEMOCRACIA

                              Coordenador da Cole~ao

                              PauloAbrao

                              JOSEacute CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO PAULOABRAacuteO

                              MARCELO D TORELLY

                              Coordenadores

                              JUSTIltA DE TRANSIltAO NAS AMEacuteRICAS

                              OLHARES INTERDISCIPLINARES FUNDAMENTOS E PADROacuteES DE EFETIVA(AO

                              14 1

                              LJ Belo Horizonte

                              jI r EDITORA ~ -orum

                              2013

                              r

                              COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

                              Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

                              Conselho Editorial Conselho Editorial

                              Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

                              Pereira Marques Nelo

                              Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

                              Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

                              Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

                              Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

                              Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

                              Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

                              Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

                              Fernando Rossi Seacutergio Guerra

                              liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

                              Presidente e Editor

                              Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

                              catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

                              Diagramatao Luiz Piacutementa

                              Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

                              wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

                              J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

                              -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

                              1 Crirncs contra a Humanidade

                              Moreira da U

                              Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

                              SUMAacuteRIO

                              JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

                              PARTEI

                              HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

                              HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

                              DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

                              Referencias 59

                              EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

                              Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

                              enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

                              da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

                              • JAZam-Texto56
                              • JAZam-Texto56b

                                r

                                COLE~Ao FOacuteRUM 111 r EDITORAJUSTICA E DEMOCRACIA rorum copy 2013 Editora Foacuterum Ltda

                                Coordenador Eacute proibida a reprodu~ao tota1 ou pardn1 desta PauloAbrao inclusive por processos xerograacuteficos

                                Conselho Editorial Conselho Editorial

                                Ca rol Proner unJl5rasiJ e Cristinno Paixao

                                Pereira Marques Nelo

                                Gustavo Justino de Oliveira lnes Virgiacutenia Prado Soares

                                Carlus Ayres Brilto Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Deisy Ventura USP Juarez FreitasCarlos Maacuterio da Silva Velloso

                                Eneaacute de Almeida UnB Caacutermen Luacutecia Antunes Rocha Ludano Ferraz James N Greef Brown Universli Cesar Augusto Guimaraes Pereira Luacutecio Delfina

                                Joseacute Carlos Moreira da SUya Clovis Beznoii Marcia Carla Pereiacutera Ribeifo Kaacutetia Kozicki~ PUClR Cristiana Fortini Maacuterdo Cammarosano

                                Katia Matin-Chenut Univ Pariacutes 1 e Dinoraacute Adelaide Musetti Grotti College de France

                                Maria SylVUumll ZanelIa Di Pietro Djogo de Figueiredo Moreira Neto Ney Joseacute de Freias

                                Egon Bockmarm Moreira Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Rosa Maria Zaia Borges PUCRS Emerson Gabarda Paulo ModestoRoberta Baggio UFRGS FabrIacutecio Motiacutea Romeu Felipe BaceIJar Fiacutelho Veram Karan UFPR

                                Fernando Rossi Seacutergio Guerra

                                liA r EDrrORA rorum Luiacutes C1aacuteudio Rodrigues Ferreira

                                Presidente e Editor

                                Supervisao editorial Marcelo Belko Revisao Marilane Casorla

                                catalograacutefiacuteca Tatiana Augusta Duarle - CRB 2842 - 6 RegUlO Capa e projeto graacutefico Walter Santos

                                Diagramatao Luiz Piacutementa

                                Av MOMO Pena 2770 -16 andar - Fundonaacuterios - CEP 30130-007 8010 Horizonte - Minas Gerais - Te (31) 21214900 21214949

                                wwwedituacuteraforumcombr-editoraforumeditoraforumcombr

                                J96 JUstiacute3 de Transi~ao nas AmeacuterlCc1s oihares iacutentcrdisciplinares fundamentos e de cfetiv3ao I Coordenadores Joseacute Carh)S Moreira da SUva Filho

                                -auJO ADraO Marcelo D ToreUy - BeJo Horizonte Foacuteruffi 2013

                                1 Crirncs contra a Humanidade

                                Moreira da U

                                Infonnaoaacuteo bibliograacutefica dese livro de Normas Teacutecnicas (ABlT)

                                SUMAacuteRIO

                                JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO NAS AMEacuteRICASshyUMA INTRODUltAacuteO Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho Paulo Abrao Marcelo D TorelIy 11

                                PARTEI

                                HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E OS FUNDAMENTOS DA JUSTIltA DE TRANSIltAacuteO

                                HISTOacuteRIA MEMOacuteRIA E JUSTIltA - DA JUSTIltA TRANSICIONAL AJUSTIltA ANAMNEacuteTICA Joseacute A Zamora 21 1 Significatao poliacutetica do sofrimento 27 2 Centralidad e das viacutetimas 31 3 Memoacuteria e histoacuteria 34 4 Em diretao ajustita anamneacutetica 44

                                DIREITO POacuteS-FAacuteUSTICO - POR UM NOVO TRIBUNAL COMO ESPAltO DE REMEMORAltAacuteO E ELABORAltAacuteO DOS TRAUMAS SOCIAIS Maacuterdo Seligmann-Silva 47 1 Lete - Necessidade e resisteacutencia 51 2 Trauma negacionismo e o rio da Web 55

                                Referencias 59

                                EacuteTICA E MEMOacuteRIA TRAUMA E TERAPEacuteUTICA HISTOacuteRICA Ricardo Timm de Souza 61

                                Preaacutembulo 61 1 Instrumental I Dois nIacuteveis de argumentos Dois nIacuteveis de

                                enunciados 62 2 Instrumental II O diagnoacutestico soacutecio-histoacuterico 64 3 O factum - O trauma e suas condit6es de acontecimento 68 4 Instrumental III - A Verdriingung histoacuterico-social como estrateacutegia

                                da racionalidad e apologeacutetica da fixatao doentia na presenta 71 Como condusao Da inutilidade de lutar contra o inelutaacutevel A terapeacuteutica histoacuterica 73 Referencias 74

                                • JAZam-Texto56
                                • JAZam-Texto56b

                                  top related