Transcript
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
A CABANAGEM
entre a liberdade do trabalho e o mercado da liberdade
Rio de Janeiro
2003
12
MARIA JOSÉ DE SOUZA BARBOSA
A CABANAGEM
entre o mercado da liberdade e a liberdade do trabalho
Rio de Janeiro – RJ
2003
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MARIA JOSÉ DE SOUZA BARBOSA
A CABANAGEM
entre a liberdade do trabalho e o mercado da liberdade
Banca Examinadora
____________________________ Profº. Dr. Giuseppe Mario Cocco
(Doutor em História Social/Université de Paris 1/Panthéon-Sorbonne/França (Orientador)
____________________________ _________________________ Profª Drª Maria de Fátima Cabral Profª Drª Maria Elvira Rocha de Sá (Doutora em Serviço Social/PUC/SP) (Doutora em Serviço Social/UFRJ/RJ)
________________________
Profº Dr. José Maria Gómez (Doutor em Ciências Políticas/Université de Paris 1/Panthéon-Sorbonne/França)
______________________________ P rofª Drª Maria Helena Rauta Ramos
(Doutora em Serviço Social/PUC/SP)
Rio de Janeiro – RJ
2003
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A CABANAGEM
entre a liberdade do trabalho e o mercado da liberdade
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do grau de doutora em Serviço Social. Maria José de Souza Barbosa, orientada pelo Profº Drº Giuseppe Mario Cocco, doutor em História Social.
Rio de Janeiro
2003
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DEDICATÓRIA
À todos aqueles que historicamente disseram e dizem não!
Que em defesa de suas idéias construíram espaços de
rebeldia, fuga e resistência na labuta diária contra a
opressão, a exploração e ao domínio. Àqueles que
constroem o continente da liberdade por não curvarem
jamais aos “poderosos”, porque sabem que o poder
constituído é resultado de séculos de pilhagens,
assassinatos, massacres e extermínio, formas de violências
vis, para impor o privilégio de alguns, fato esse que não é
natural.
Maria José Barbosa
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AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal do Pará pela oportunizar os estudos realizados,
particularmente, à profª Maria Elvira Rocha de Sá. Aos professores do doutorado, em
especial, a profª Maria Helena Rauta Ramos e a profª Maria de Fátima Gomes Cabral.
Aos colegas de doutorado, principalmente, à Gabriela Lema Icassuriaga, pelos
momentos de discussão e de descontração, amigas sempre presentes. Os afetos,
solidariedade, cooperação e críticas muito contribuíram para este trabalho. Ao pessoal
do LABETeC especialmente à Patrícia Daros pela amizade, companheirismo e
fraternidade. Ao Profº Guiseppe Cocco, pelos fóruns de debates sobre o presente, seus
ensinamentos potencializam a rede de cooperação no desejo de produzir o novo, na
crítica radical ao pensamento endurecido, cria novos horizontes, na ausência, o
inesperado!
À mamãe pela atenção dispensada, ao papai (in memoriun) pela força e coragem
de nunca nos curvar aos “poderosos”. À Maria Luiza Barbosa Maciel, minha irmã e
companheira, que contribuiu com abertura de contatos no Curso de História e a
colaboração efetiva na busca de dados nos arquivos públicos de Belém; ao Alan Maciel
e Lorena Gonzaga que também ajudaram nessa tarefa. Às professoras Rosa Acevedo
do NAEA/UFPA e Magda Ricci do Curso de História; ao Carlos Bastos, bolsista de
iniciação científica do Curso de História, que gentilmente cedeu seus fichamentos
sobre a história local, otimizando o processo de interpretação dos dados. Ao João Poça
pela leitura cuidadosa deste texto. Ao Francisco Rodrigues meu companheiro sempre
presente, sua ela atenção e ternura ajudaram-me nesta tarefa arduosa.
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ZUSAMMENFASSUNG
BARBOSA, Maria José de Souza. A CABANAGEM: entre a liberdade do trabalho e o mercado da liberdade. Orientador: Guiseppe Mariao Cocco.
A CABANAGEM: Zwischen Arbeitsfreiheit und freien Markt A Cabanagem: wie analysiert in dieser These, beginnt mit der dunklen Problematik
der modernen Marktkraefte. Der Schluessel zum verstaendnis, anfaenglich entwickelt von Machioavelli sind seine kritischen Paradigmen der Renecance, a virtu (eigenkraft) und die fortuna (transcentalekraft) sind prinzipien welche antagonistisch sind und die krisen der modernen Zeit schaffen. In diesem Wiederspruechen, der Mensch ist das Zentrum der Seinslehre (ontologia), kritisch zur maschienerie des Kapitals, welches versucht die Kreativitaet und interlektuellen Kraefte der Mehrheit zu verstuemmeln, zu gunsten der previligien der Wenigen. Ueber die Sprache der Kolonisation, die Freiheit der Wilderniss wurde gefessel und abgesetzt und durch einen abhaengigen Arbeitsmarkt ersetzt. Zu diesem Zeitraum, der Staat war ein grosser Agent und Modellierer zur kontrolle der Arbeitermobilitaet und die Europaeische Kultur wurde das universale Modell der Konstitution. Die Juristischen Instrumente waren zu gunsten der Kolonisation und der Zerstoerung der Altenativen.Verwandelte die wilde Natur in einen disziplinierten Koerper durch die Doktrine des Evangelismus,in den mechanismus zur formierung eines Arbeitswesen zur produktion des Ueberschusses der Weltekonomie.In Amazonien, diese Gegensaetzte und linearitaet der Kolonisation schaffte einen Antagonismus welcher zur entstehung der Cababagem, eine revolutionaere Bewegung fuehrte,welche einfache Caboclos in subjekte verwandelte,genuegend fuer einen Riss in der regionalen kolonialen domination und kontrolle. Im Zeitraum der liberation, die kraft der Cabanos brach aus in der form von tausenden subordinationen und schaffte einen Markt der Freiheit. Die Cabanos projektierten und schafften auch einen Antagonismus fuer den kommenden Kampf fuer die Freiheit und die Kraft zu leben mit den Sozioekologischen praktiken verbunden mit unabhaengiger produktion. In diesem Sinn, demontierten sie die koloniale Konstitution des soeben geborenen Brasilieanischen Imperiums. Die Regierung der Cabanos bewies sich direckt im Gegensazt zu den kolonialen Praktiken. Der Endpunkt der Cabana Revolution wurde ausgefuehrt durch restorierte dialektik Einer festigung der freien Arbeiter und unabhaengige Arbeitsweisen. Gezwungene Rekrutierung Sklavenarbeit der Eingeborenen, Neger, freie Menschen und arme im Feld oder Stadt karakterisierte die Wut der Menschen in Amazonien. Eine Unterdrueckung dieser Bewegung bekam ein zentrales Objektiv.
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RESUMO
BARBOSA, Maria José de Souza. A CABANAGEM: entre a liberdade do trabalho e o
mercado da liberdade. Orientador: Guiseppe Mariao Cocco.
A Cabanagem é analisada, nesta tese, a partir da problemática negriana sobre as alternativas de poder na modernidade: constituinte e constituído, cuja chave para sua compreensão inicialmente foi desenvolvida por Maquiavel e seu paradigma crítico da Renascença, a virtù (potência imanente) e a fortuna (poder transcendente) princípios que operam o antagonismo que produzem a crise da modernidade. Neste paradigma o homem é o centro da ontologia que faz a crítica da máquina do capital que tenta mutilar a capacidade intelectual e criativa da maioria para impor o privilégio de poucos. Sob a dialética da colonização, se desencadeou a destituição da liberdade do selvagem para se instaurar o mercado de trabalho dependente. Nesse espaço-tempo, o Estado foi o grande agente modelador do controle da mobilidade do trabalho e a cultura européia foi tomada como modelo universal de constituição. Os instrumentos jurídicos favoreceram a colonização e a destruição da alteridade, transformando a natureza selvagem em corpo disciplinar sob a doçura da evangelização, mecanismo de formação de mão-de-obra para a produção de excedentes na economia-mundo. Na Amazônia, a contraposição à linearidade da colonização operou a razão dialética que produziu a Cabanagem, movimento revolucionário que produziu transformou simples caboclos em sujeitos adequados à ruptura regional do controle e da dominação. No espaço-tempo de liberação da potência que rompeu com as mil formas de subordinação, ao criar o mercado de liberdade. Os cabanos se projetaram materializando o antagonismo na imanência da luta pela liberdade de poder viver sob práticas socioeconômicas vinculadas à pequena produção independente. Nesse sentido, eles desmontaram a farsa a constituição do Estado colonial e do Império brasileiro nascente. O governo cabano, em que pese seus limites, mostrou-se frontalmente oposto às práticas colonialistas e imperiais. O termidor da revolução cabana foi orquestrado pela dialética restaurada, com a fixação de trabalhadores livres às formas de trabalho dependente. O recrutamento forçado – escravidão dissimulada da mão-de-obra indígena, negra, de homens livres e pobres no campo ou na cidade – caracteriza a fúria do poder constituído em face do homem amazônida. A repressão a esse movimento teve como objetivo central, consolidar a incorporação do Pará ao Estado brasileiro nascente.
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BARBOSA, Maria José de Souza.
A CABANAGEM: entre a liberdade do trabalho e o mercado da
liberdade. RJ, Brasil/Maria José de Souza Barbosa, Rio de Janeiro:
UFRJ/ESS, 2003. x, p .I L. Tese de doutorado/Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Escola de Serviço Social.
Orientador: Guiseppe Mariao Cocco.
Palavras Chaves: 1. Movimentos Sociais; 2. Cabanagem; 3. Liberdade; 4.
Trabalho; 5. Tese. (ESS/UFRJ). A Cabanagem entre a liberdade do trabalho
e o mercado da liberdade.
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EPÍGRAFE
Quero tentar uma forma de leitura do
passado que me permita, no caso, localizar os elementos passíveis de comporem, juntos, a definição de uma fenomenologia da prática revolucionária constitutiva do futuro. Tentar uma leitura do passado que me permita sobretudo (que nos obrigue a isso) acertar as contas com toda aquela confusão culpada, com todas aquelas mistificações que – de Bobbio a Della Volpe e seus últimos produtos – nos ensinaram desde a tenra infância a santa doutrina que reza que a democracia é Estado de direito, que o interesse geral “sublima” o interesse particular sob a forma da lei, que os órgãos constitucionais são responsáveis diante do povo em sua totalidade, que o Estado dos partidos é uma magnífica mediação política entre o uno e múltiplo, e tantas outras facetas do gênero.
Negri.
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Sumário
Folha de Rosto .......................................................................................................... ii
Folha de Apresentação .............................................................................................. iii
Folha de Aprovação ...................................................................................................iv
Ficha Catalográfica .....................................................................................................v
Dedicatória ...............................................................................................................vi
Agradecimentos .........................................................................................................vii
Epígrafe...................................................................................................................viii
Resumo..................................................................................................................... ix
Zusammenfassung ......................................................................................................x
Introdução Poder Constituinte e Cabanagem _____________________________ 22 I Parte As Alternativas da Modernidade ______________________________ 31
I.1 Poder X Potência_______________________________________32
I.2 Revolução X Contra-revolução____________________________44
I.3 Constituição Atlântica e Cabanagem_______________________52
I.4 Entre a liberdade do selvagem e a liberdade selvagem ________65 II Parte A constituição do trabalho dependente _______________________ 100
II.1 A quebra da liberdade indígena _________________________ 101
II.2 Resistência e fuga do trabalho regulado __________________ 114
II.3 O trabalho exógeno: ativo de equilíbrio na liberdade indígena 137
II.4 O termidor da Cabanagem _____________________________150 III Considerações finais_____________________________________171 IV Referências ___________________________________________ 179 V Bibliografia Complementar _______________________________ 183
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Introdução Poder Constituinte e Cabanagem
A aplicação do conceito de poder constituinte à Cabanagem remete-nos as
duas alternativas de poder na modernidade – poder constituinte versos poder
constituído. Para Negri (2002), essas alternativas de poder são tributárias do
pensamento de Maquiavel1 e sua noção sobre a capacidade inovadora do “Homem
da Renascença”2.
Essa matriz ontológica da política dá conta da ação imanente ao desmonte
das noções teocêntricas e naturais de organização da sociedade feudal3, inaugurando
uma abordagem antijuridicista, que ultrapassou as fronteiras italianas e se difundiu
nos séculos XV a XVIII, ganhando novos traços com Espinosa e força material
1 As interpretações de Maquiavel romperam com a filosofia política clássica, especialmente quando ele pensou a ação das massas. Nesse sentido, Maquiavel realizou uma revolução no pensamento político, até então centrado na “razão para lhe revelar, graças à contemplação, as hierarquias eternas de uma ordem imutável, no seio da qual lhe estava destinado um lugar fixo, remetendo o mundo da contingência e da particularidade histórica para o irracional, de onde convinha se retirar, o partidário do humanismo cívico, ao mesmo tempo em que operava um deslocamento da vida contemplativa para a vida ativa, descobria uma nova figura da razão, suscetível, pela ação, de criar uma ordem humana, política, dando uma forma ao caos do universo da contingência e da particularidade. Orientando para uma tomada de decisão em comum, esse novo modo de existência cívica reconhecia a natureza linguageira do homem, e tendia a conceber o acesso à verdade como fruto de trocas livres nas quais a retórica, tão presente na cidade antiga, retomava seu papel” (Abensur, 1998, p.25). 2 O “Homem da Renascença” “é uma expressão amplamente utilizada que se encontra na literatura e na historiografia e é ligada à interpretação corrente do período histórico determinado, precisamente, pela Renascença. Aquele que se situa entre o século XIV até o fim do século XVI; tomando suas origens nas Cidades-estados italianas, de onde se difundirá por toda a Europa, como se essa época tivesse visto circular um número importante de tipos humanos que teriam características especiais, de dons e atitudes particulares e funções novas (...). A difusão das idéias e dos temas da Renascença italiana, fora da Itália, seria prolongada e teria tomado formas diferentes, além dos limites cronológicos habituais durante todo o século XVII” (Garin, 1990, p.7). Ver também Maravall, Antiguos y Modernos, 1998; França, Portugal na Época da Restauração, 1997. 3 No campo crítico do Renascentismo a mutatio surgiu da atitude necessária da prática política efetiva que foi identificada por Maquiavel como paradigma político da modernidade, sob a mitologia utópica da virtù e da fortuna. Esses mitos paradigmáticos são expressões da “religião civil” difundida nos séculos XVI e XVII: uma abertura da ética laica que alimentou, de um lado, o projeto político e o Estado da revolução burguesa e, de outro, a crise e a necessidade de superação imanente à novidade revolucionária. A reflexão maquiaveliana visou apreender a potência constituinte que inovou e expandiu a dinâmica revolucionária. A fortuna – o passado – e, por definição, o acaso, revelou a acumulação capitalista originada pela apropriação privada, por meios violentos como saques, rapina e pilhagens, para a submissão da potência, sob uma totalidade articulada pela concentração de poder. A matriz histórica de análise das constituições reais de liberação do trabalho colocou a virtù como elemento da crise que desmontou o corpo da constituição mista e mostrou a dinâmica da constituição material aberta pela liberdade. Essa problematização do poder acabou com a noção de equilíbrio difundida pelo paradigma polibiano. A crítica maquiaveliana confrontou os princípios polibianos com a crise e não resistiu aos elementos estruturantes da Revolução Renascentista. O princípio da liberdade se ergue contra a corrupção. A virtù revolucionou o discurso da filosofia política e deslocou o falso princípio de equilíbrio entre poderes de natureza diversa, colocando o desejo de liberdade como eixo das transformações contínuas na expansão da constituição material. A ação humana tornou-se fonte dos acontecimentos políticos econômicos e sociais na ultrapassagem da Velha Europa e estendeu as alternativas de poder em terras além-mar.
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com Marx. Esses autores, ao colocarem o poder constituinte no centro da produção
e reprodução da vida, definiram a potência que se projeta “constituindo o social na
materialidade aleatória de um informe universal, na possibilidade de liberdade”
(Negri, 1994, p.33) como avessa a pré-constituições e finalidades, rompendo com a
análise transcendental da constituição.
A noção de poder constituinte desenvolvida por Negri busca a potência
imanente dos movimentos revolucionários como origem de toda mutação
democrática. Nesse sentido, a teoria do poder constituinte desvenda o efeito do
poder constituído, ou seja, a redução do princípio material da ação das massas
contra as estruturas políticas, econômicas e sociais da dominação. Como já
enfatizamos, a redução e a expansão do poder constituinte aparecem na linha de
continuidade do paradigma inaugurado por Maquiavel. O poder constituinte é
pensado como imanente às práticas sociais inovadoras. O próprio Novo Mundo
tornou-se um dos elementos de expansão da violência, mas também, da inovação. O
capitalismo, com sua racionalidade instrumental expandiu a configuração
antidemocrática na tensão dialética entre Colônia e Império, onde a ilusão histórica
da liberdade do mercado aparece como sendo a única alternativa de produção da
vida moderna. Para desfazer a imagem do projeto capitalista ilustrado é necessário
colocá-lo no centro da crise entre as duas alternativas inconciliáveis do poder na
modernidade: o poder constituinte e o poder constituído.
É a partir desta análise que vamos desvendar o problema histórico do poder
no espaço amazônico: tentaremos apreendê-lo enquanto paradoxo das alternativas
de poder (constituinte e constituído). A Cabanagem, nesse sentido, surge como um
movimento de luta e resistência aos mecanismos de controle da mobilidade do
trabalho. Ela pode ser enxergada como um passo além que chamaremos de “marcha
pela liberdade”4. É o antagonismo à expropriação que forjou os espaços de
liberdade. A ruptura do controle da mobilidade do trabalho evidenciou a crise da
relação entre produção e constituição. Isto pode ser visto a partir de dois níveis:
4 “A marcha da libertação abre caminho para o mercado da liberdade e para o direito de propriedade” (Moulier Boutang apud COCCO& HOPSTEIN, 2002, p. 55-56). O mercado da liberdade é pensado por Moulier Boutang a partir da busca da libertação, de poder circular livremente. O escravo e o servo fazem secessão política e econômica e, agindo assim, rompem o contrato de serviço, exatamente como o povo judeu no Egito, no Êxodo. Eles conferem com vis activa a eficácia do mercado pela mobilidade
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− O primeiro está relacionado às formas de lutas que passaram de ações
individuais (fugas e deserções isoladas) ao acúmulo da potência de liberação das
práticas sociais que deram origem à revolta dos cabanos – a Cabanagem. No
Pará, as lutas pela Independência do Brasil traduziram-se num momento de
quebra do domínio português. Mas a redução desse projeto através do
rechaçamento da constituição das massas produziu as revoltas regionais. Como
no caso dos cabanos, a oposição descobre o manto jurídico que vestia a
colonização e que passou vestir o Império brasileiro. Mais tarde, com a revolta
de Canudos, são as mesmas lutas regionais que se erguem contra a República
enquanto novo projeto de fundação mística do Estado e de seu “povo”. A
análise da Cabanagem (1835-1840) sob este ponto de vista assenta-se na difícil
tarefa de elucidar as relações submersas às múltiplas determinações históricas e
naturais que passaram a operar dinâmicas específicas na configuração singular da
potência constituinte da Amazônia. A formação colonial é traspassada, de um
lado, pela emergência de sujeitos adequados a constituição material e, de outro,
pela inversão desse movimento real, ambos processos imanentes às alternativas
de poder na modernidade. Nesse movimento paradoxal ocorreram a
estratificação e a segregação como formas de redução produzidas para a
subordinação da potência constituinte na contraface da máquina que buscou
alavancar as mil formas de dependência do trabalho (selvagem, servil, escravo,
assalariado etc.) no processo de colonização da Amazônia.
− O segundo nível refere-se à violência do processo de constituição do trabalho
dependente5, isto é, o controle da circulação do trabalho nômade e o
antagonismo entre colonizadores e povos autóctones. Os conflitos aparecem
com a implementação das diversas formas de regimentos e institucionalização da
dependência e subordinação do trabalho. A criação de uma oferta de mão-de-
obra no Pará teve como arcabouço institucional o Regimento das Missões, o
Diretório de Índio e os Corpos de Trabalhadores, instituições criadas para
quebrar a liberdade de homens livres a fim de reduzi-los à condição de
5 “O trabalho dependente compreende não somente os assalariados, mas todas as formas de atividade do trabalhador em que haja um empregador que o utilize sob sua autoridade e sob sua subordinação” (Moulier Boutang, 1998).
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trabalhadores dependentes. No entanto, essas tentativas de redução do trabalho
vivo às formas mais vis de organização da produção colonial não resolveram o
problema da oferta de mão-de-obra. A escravidão aparece no bojo das políticas
de controle da mobilidade do trabalho para a colonização da Amazônia como
sendo funcional à expansão da economia-mundo. A introdução do trabalho
exógeno6 (do negro africano) contornava o obstáculo constituído pela liberdade
selvagem, isto é, a resistência e a recusa dos povos autóctones que lutaram até
quase seu extermínio contra as diversas formas de trabalho regulado. O trabalho
exógeno surgiu como solução temporária para os conflitos entre colonizadores e
povos indígenas, tornando-se assim, um dispositivo especial para criar uma
oferta de trabalho dependente, mas o custo disso foi a introdução do trabalho
compulsório.
Desta forma, no contexto amazônico as regras de transação capital/trabalho
foram fundadas a partir da coerção brutal sobre os homens livres para reduzi-los à
condição de trabalhadores dependentes na ordenação jurídica do Estado colonial. A
brutalidade e a violência tornaram-se legais. Ao mesmo tempo, a redução dos
homens livres à condição de engrenagem da máquina do Estado colonial visava
quebrar os pilares pré-capitalistas de produção e reprodução da vida na floresta.
As relações não mercantis e as práticas nômades dos cabanos gravitam em
torno das duas problemáticas que marcaram as disputas entre colonizados e
colonizadores. A potência dos cabanos (que chamaremos de biopolítica7) ergue-se
nas ações contra todas as formas de subordinação da vida (biopoder8). As
necessidades de preservação da vida e de sua reprodução (biopolítica)
potencializaram as lutas contra o despotismo, a expropriação e a dependência. Os
cabanos tornaram-se, assim, sujeitos que desestruturaram o sistema de dominação
colonial no Pará, cujas ações forjavam-se nos espaços de rebeldia, autonomia e
6 Para Moulier Boutang (1998), o trabalho exógeno é entendido como fluxo das migrações sobre suas várias formas para economias desenvolvidas ou em via de desenvolvimento. 7 “O conceito de biopolítica deve compreender não apenas os processos biológicos da espécie, mas essa vida a-orgânica que está em origem, e também na origem do vivente no mundo. (...) Um virtualismo temporal e não mais apenas orgânico, um virtualismo que remete ao virtual e não exclusivamente aos processos biológicos” (Lazzarato, 1998, p. 82). 8 Conforme Foucault (1993), o biopoder emerge da normalização do direito de decidir sobre a vida ou a morte, quando se tem o poder de controlar, e decidir sobre a vida ou a morte. Aqui, a morte não é o homicídio direto, mas qualquer ação indireta que exponha a vida a riscos de morte, a política, a prisão, o exílio etc.
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independência. Suas conquistas abarcaram o longo percurso das lutas de resistências
contra a subordinação no espaço amazônico. Assim, eles aparecem na trajetória dos
povos autóctones, como sujeitos que engendraram a marcha rumo a liberação
política e econômica do trabalho.
Os cabanos escaparam ao controle imperial e instalaram o poder das massas.
O governo exercido por meio de Conselho Popular se contrapôs às formas do
poder colonial, abrindo um espaço completamente novo. O desejo de liberdade foi
colocado num patamar jamais esperado, expressão de um governo popular absoluto.
Os “facínoras, anarquistas, arruaceiros, vagabundos, vadios, sanguinários etc.”
tornaram-se “soldados da liberdade”. Eles exortavam os descendentes dos
Ajuricabas9 e Anagaíbais10 à liberdade: “Vivam os paraenses livres! Viva o Pará”11!
Os cabanos e suas lutas mostram o contra-poder, o continente da liberdade
que as interpretações oficiais visam obscurecer e escrevem uma outra história
produzida pelo antagonismo das massas. A potência de seu movimento denuncia a
história dos dominadores, isto é, a naturalização dos massacres de índios, negros e
brancos pobres oculta na constituição do trabalho vivo. Essa naturalização afirma
apenas o Estado como única alternativa de organização na modernidade.
O poder constituído (do colonizador) alterou os códigos de vida selvagem,
mas não conseguiu submeter os povos autóctones e torná-los simples engrenagens
da máquina colonial. A redução dos indígenas à condição de mão-de-obra dos
empreendimentos coloniais não foi tarefa fácil. Embora tecnicamente mais frágeis,
eles não sucumbiram à disciplina e ao controle do colonizador.
A Cabanagem, portanto, é um movimento social contra a subordinação à
Coroa portuguesa e o Estado brasileiro nascente. Ela traduz o antagonismo às leis e
regulamentos que buscavam enquadrar índios, negros e brancos pobres nos regimes
9 As revoltas indígenas eram lembradas como exemplos de luta, aproximando os cabanos de suas raízes histórico-culturais. 10 Os Nhengaíbas, e não os Anagaíbais, aparecem como uns dos primeiros protagonistas dos conflitos dessa etnia com os portugueses. Em 1616 eles viviam na ilha do Marajó, e naquele ano, com a penetração dos portugueses na Amazônia, iniciava-se a construção do Forte do Presépio, que deu origem à cidade de Belém (hoje capital do Pará). Para que essa ocupação pudesse se realizar, os Nhengaíbas foram escravizados, depois de terem sido derrotados em “uma batalha em que morreram cerca de mil índios Nhengaíbas e da escravização de trezentos sobreviventes dessa guerra” (Carvalho, 1998, pp. 43-44). Esse grupo demonstra uma linha de continuidade da resistência que veio se expandindo até a constituição dos cabanos, que produziram as lutas mais intensas em toda a história do Pará. 11 Eduardo Angelim, Belém, 23 de agosto de 1835. Ele faz uma alusão aos povos indígenas que enfrentaram os colonizadores portugueses no alto Amazonas.
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de fixação do trabalho. As formas de redução ao trabalho escravo, ao trabalho
compulsório e ao assalariamento constrangido12 encontraram desde os primeiros
momentos o obstáculo da resistência, da fuga, da deserção e da recusa ao trabalho
regulado.
Nesse sentido, a análise de Moulier Boutang (1998) ajuda-nos a entender
como a mobilidade do trabalho endógeno (na relação com o trabalho exógeno)
afirmou a fuga e as deserções na garantia da liberdade do trabalho nômade em
oposição ao trabalho regulado, como fonte constituinte da mutação da colônia.
Da mesma maneira que a catequização de índios foi uma condição para a
criação de uma oferta de trabalho, a institucionalização da propriedade e da
cidadania portuguesa formal para os povos autóctones (com a substituição do
trabalho indígena pelo trabalho de negros escravizados) buscava constituir o
mercado de trabalho dependente, necessário à expansão da economia-mundo na
Amazônia.
A longa transição da economia natural para a economia mercantil fez aflorar
contradições e antagonismos no âmbito urbano e rural. A mistura das diferentes
raças e culturas projetou-se nas experiências compartilhadas e repercutiu nas lutas
constituintes das massas. A radicalidade dos cabanos rechaçou o domínio e o
controle de uns sobre os muitos. Nesses termos, o poder cabano pode ser
considerado como tendo sido um corpo sem órgãos (Deleuze e Guattari, 1995)13,
que operou um corte brutal no espaço-tempo da colonização.
O desejo de desvendar as lutas constituintes dos cabanos fez avançar a
hipótese de que a resistência do trabalho vivo (em suas várias formas de rebeldia)
produziu o mercado da liberdade e a liberdade do trabalho contra a liberdade do
mercado (de vender a força de trabalho pela melhor oferta) (Moulier Boutang,
1998).
12 Em Moulier Boutang (1998) o assalariamento constrangido decorre de toda a forma de relação contratual de trabalho que limite a mobilidade ou “liberdade do trabalhador”, seja através de coerção pura ou a simples dissuasão em seu ciclo da vida, seja político, profissional ou social. 13 Espaço de plenitude e vazio, estado de consciência do não-ser, o corpo sem órgãos é o que Antonin Artaud denomina corpo puro, corpo transfigurado, corpo não oprimido, corpo glorioso. Na definição de Deleuze, o corpo sem órgãos é o desejo, mas também é, ao mesmo tempo, o não desejo. É o que mantém o homem vivo, o desejo desejando o desejo. A sua produção supõe, antes de tudo, energia, vida e sua busca é eterna e permanente. Quando se pensa que se chegou até ele, quando se imagina que se tenha encontrado o corpo sem órgãos, depara-se com o limite (Daniel Lins, Antonin Artaud. O artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p.47-48). Cf. para mais detalhes Deleuze & Guattari, Mil Platôs (1995).
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O cenário de lutas por todo o Pará, nos anos de 1835-1840, mostra a unidade
entre os grupos sociais de dominados. O antagonismo entre as práticas sócio-
econômicas dos cabanos e as práticas colonialistas de redução da liberdade produziu
a resistência dos cabanos em oposição às diversas formas de subordinação e redução
do trabalho.
A hibridação (de hábitos e de costumes) na mistura de raças, ou seja, a
miscigenação14, contribuindo para o surgimento do cabano. Estes homens livres
constituídos nos processos de desarticulação da identidade indígena produziram o
contra-poder popular. No desencaixe de identidades e culturas, a miscigenação
possibilitou a mutação de práticas sociais que se tornavam amálgama de novos
traços culturais, dando origem a relações de parentela, amizade, solidariedade, graus
de cooperação, conflitos e tragédias. A autonomia do cabano passava a configurar
uma nova identidade sócio-cultural, justamente vinculada à vida nas cabanas15.
A destruição da alteridade é uma prática elementar para a subordinação do
diferente. Na dialética restaurada, essa destruição aparece sob a auréola romântica
do homem civilizado, ou seja, da forma de vida no capitalismo. A relação de capital
emerge como propulsora da liberação burguesa-colonial do trabalho, quando é
exatamente o contrário: o capital age no sentido de reduzir indivíduos livres à
condição de trabalho abstrato. A liberdade do mercado se opõe à marcha da
liberdade.
Em contraposição, no mercado da liberdade, o trabalho vivo (índios, negros
e brancos pobres) combate a redução capitalista. A história dos cabanos explicita o
prisma do poder constituinte, isto é, a constituição do trabalho na marcha da
liberdade. O trabalho vivo luta para não se tornar simples engrenagem na máquina
de produção de valor, o estatuto particular do trabalho qualquer que seja ele:
escravo, servo, assalariado etc. A recusa ao assujeitamento do trabalho dependente
materializa-se nas fugas, deserções e revoltas, passos firmes de resistência na marcha
pela liberdade contra o domínio e o mando colonial.
14 A problemática da liberação por processos de miscigenação é tratada por Moulier Boutang (1998) em seu livro De l’eclavage au salariat, particularmente o capítulo 17, no qual é abordada a realidade brasileira. 15 Nas cabanas, casebres rústicos sem qualquer ornamentação e com poucos utensílios, construídos em taipa e cobertos com palha de árvores da Amazônia, a produção da vida era livre e nômade.
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A potência do trabalho surge na interrogação crítica da bibliografia produzida
sobre a Cabanagem, a partir da análise de leis, ofícios, relatórios e correspondências
entre instâncias do governo; da leitura de jornais da época e crônicas de viajantes.
Neste material há o testemunho da inovação das massas experimentada na profusão
e na mistura entre europeus, africanos e ameríndios.
As dimensões das lutas constituintes do trabalho contra sua dependência e
subordinação aparecem distribuídas nas duas partes desta tese.
Na primeira parte são apresentados os elementos para se entender as
alternativas do poder na modernidade: constituinte e constituído. A teoria negriana
do poder constituinte torna-se chave para se compreender a crise entre a potência
(movimento imanente) e o poder (movimento transcendente) presentes na
Cabanagem.
O espaço-tempo da ação ontológica de autoconstituição histórica é expresso
pela massa. É nesse espaço que pensamos a Cabanagem na marcha da liberdade
contra a liberdade do mercado, crise insolúvel da modernidade. A potência
constituinte dos cabanos rompeu o comando colonial, tornando-se o centro da
mutação colonial na Amazônia. Nesse sentido, a Cabanagem é a criação permanente
no espaço-tempo da mutação, onde os cabanos liberam a potência da autonomia do
trabalho. O desejo de liberdade, mesmo sob a mais pura dilaceração do ser, é a
condição da mutação colonial.
Na segunda parte, especificam-se momentos diferenciados de constituição do
trabalho dependente, ou seja, o longo percurso das políticas do Estado colonial para
o controle da mobilidade do trabalho nômade. A destribalização indígena é o
primeiro momento de produção de uma oferta de mão-de-obra, na qual os
instrumentos jurídicos do Estado funcionaram como dispositivos eficazes de
redução da natureza selvagem. A construção de aldeias quebrou a liberdade do
trabalho dos povos autóctones, fazendo surgir a constituição do mercado de
trabalho dependente. Essa política visava a formação disciplinar dos índios que eram
repartidos para os empreendimentos coloniais.
Um outro instrumento jurídico eram os Corpos de Trabalhadores, uma
espécie de regime de trabalho compulsório (assalariamento constrangido) que se
30
configurava uma anomalia do pensamento liberal. Este regimento marca o termidor
da Cabanagem, um mecanismo de controle da mobilidade dos cabanos, massa de
trabalhadores livres no intervalo entre a escravidão moderna e a constituição do
trabalho assalariado. Com os Corpos de Trabalhadores, a marcha da liberdade é
freada e um novo ciclo de dependência, de acumulação e de concentração de
riquezas passa a ser organizado pelo Estado brasileiro nascente. No Pará, o
desmonte da organização popular dos cabanos só foi possível pela instalação desse
regimento de controle específico para quebrar a mobilidade do trabalho livre.
31
I Parte
As Alternativas da Modernidade
“A potência humana determina um deslocamento contínuo do desejo, aprofunda a ausência em que o evento inovador tem lugar. A expansividade da potência e a sua produtividade baseiam-se num vazio de limitações, numa ausência de determinações positivas, nesta plenitude da ausência”.
A. Negri
32
I.1 Poder X Potência Em Negri (2002), a matriz teórica-metafísica para explicar a relação entre
potência e poder tem sua gênese na longa trama da metafísica desenvolvida desde
Maquiavel até Marx, passando por Espinosa. Esses pensadores operaram uma
ruptura concreta com a análise transcendental da constituição e afirmaram o poder
constituinte na imanência material da produção e reprodução da vida.
A potência do ser é justamente o movimento contínuo que rechaça o
domínio e a subordinação. Nesse movimento imanente o social é constituído a
partir do indeterminado, do desejo que se nutre de modo contínuo, ou seja, o
movimento da potência e da ação capaz de produzir o novo na ausência de pré-
constituições e finalidades, de todo tipo de transcendência.
O poder constituinte é irredutível, pois se vincula à ação transformadora do
trabalho vivo, manifestando-se “como expansão revolucionária da capacidade de
construir a história, como ato fundacional de inovação e, portanto, como
procedimento absoluto” (Negri, 2002, p.40). É nesse sentido que Negri interpreta
Maquiavel e sua definição de ação política das massas como força viva capaz de
mover a sociedade e arrancá-la do passado.
Negri deslocou a temática do poder constituinte do pensamento jurídico e da
filosofia política para considerá-la no âmbito da práxis social. Com isso, ele
procurou destituí-la das funções de representação e de soberania que bloqueiam e
regulam as inovações. As leis estruturadas no arcabouço jurídico do Estado são
esfaceladas e o princípio constituinte derruba o molde hierarquizado e desvitalizado
do movimento imanente à mutação.
A noção de poder constituinte é usada por Negri (1993, 2002, Hardt &
Negri, 2002) para apreender, na modernidade, os processos revolucionários como a
“(...) ‘constituição’ ontológica (...) que se opõe ao contrato jurídico” (Deleuze apud
Negri, 1993, p.7). Trata-se de uma perspectiva antijurídica que surge em antítese à
33
visão da modernidade interpretada sob a chave da racionalidade instrumental do
capitalismo-mundo16.
Segundo Negri, o poder constituinte faz explodir a crise e acaba por liberar o
antagonismo reduzido na constituição formal – entendida como o ordenamento
jurídico das relações sociais de dominação. Nesse sentido, a dinâmica do poder
constituinte se descreve nas lutas sociais (constituintes), edificando a constituição
material tecida pela ação do trabalho vivo como fundamento e motor de toda
produção, de todo desenvolvimento, de toda inovação e, portanto, da construção de
novos tempos.
Assim, sob o ponto de vista do poder constituinte, instala-se a crise no
centro de toda mutação, pois o desejo revolucionário latente nas formas de rebeldia
implica uma cooperação social que suscita novas práticas sócio-econômicas,
relacionando trabalho a revolução, ou seja, a autocriação da natureza humana em
expansão a partir do momento em que decifra sua capacidade de inovação intensiva.
Na cooperação, essa capacidade encontra sua expressão máxima, alimentando a
democracia sob o par produção-constituição17.
Ao longo de toda a modernidade, o poder constituinte se ergue contra a
transcendentalização do poder e visa restabelecer a unidade da relação entre
produção-constituição: “a tensão criadora que ao mesmo tempo é política e
econômica, produtora de novas estruturas civis, sociais e políticas” (Negri, 2002,
p.54). Nesse sentido, essa abordagem apresenta-se como uma crítica radical ao
processo de naturalização da separação entre economia e sociedade na constituição
do Estado moderno e passa a enfrentar a questão da origem das desigualdades
sociais, tendo no Estado e em seu poder constituído um ator fundamental. A
desconstrução da autonomia entre o econômico, o político e o social é a base de
uma política da imanência, da potência democrática.
16 A constituição sob a perspectiva de ordenação repressiva da produção e, conseqüentemente, reprodução do trabalho. 17 Para Negri, “Spinoza funda uma forma não mistificada de democracia. Pode-se dizer que Spinoza coloca o problema da democracia no terreno do materialismo, criticando então como mistificação toda concepção jurídica de Estado. A fundação materialista do constitucionalismo democrático se inscreve em Spinoza no problema da produção. O pensamento spinozista une a relação produção-constituição num nexo unitário. Não é possível ter uma concepção justa do político sem unir desde o início esses dois termos” (Negri, 1993, p.23-24).
34
A noção de poder em Negri desdobra-se, portanto, nas alternativas: potência
e poder, nunca resolvidas, que atravessam toda a modernidade. Ele mostra que o
esforço da teoria jurídica em buscar a conciliação entre essas duas alternativas é
inútil. O enigma proposto pela doutrina do direito acaba no paradoxo de limitar o
princípio material (poder constituinte) sob a forma de seu resultado (poder
constituído): por isso, a modernidade só pode ser pensada como crise. Assim, o
poder pode nutrir-se da potência, e sua negação enquanto fonte constituinte sempre
coloca a crise como seu inevitável horizonte.
O poder constituinte expande o desejo no vazio de determinações, ele se
projeta e produz o novo numa totalidade aberta ao infinito como um procedimento
absoluto que nasce da ausência e do desejo de liberdade e de igualdade. Em seu
trajeto não há espaço para uma prefiguração dos acontecimentos, mas somente para
inovações historicamente revolucionárias, pois sua história evidencia as lutas como
motor das mutações sociais, como princípio das transformações. Por isso é que as
lutas de rebeldia e as demais formas de resistência constituem sua ação efetiva e
fundam a práxis democrática das novas constituições. Nesses momentos, as
contradições sociais atingem alto grau de saturação e destroem as estruturas vigentes
do poder constituído, abrindo espaço para que a força motriz se projete e novas
relações sociais sejam estabelecidas. Nesse sentido, as velhas estruturas e conteúdos
sociais18 são superados.
Negri (2002) enfatiza ainda que o poder constituinte não é apenas a contra-
face do poder constituído (a crise), mas é também e, sobretudo, a fonte sem a qual o
próprio poder constituído não existiria. A liberdade de criar e propor novidades
ilumina e inaugura, de modo absoluto, os novos horizontes, derrotando, assim, as
tramas do poder constituído e suas velhas estruturas, pois “tudo que é sólido se
desmancha no ar”19.
A expansão revolucionária destrói as instituições garantidoras do poder
constituído, e com elas o corpo institucional das ciências jurídicas e do aparato do
direito constitucional, como tentativas de uma possível reconciliação entre poder
constituinte e poder constituído, de uma possível legitimação de subordinação.
18 Na ciência, na cultura, na arte, nas forças produtivas e nos meios de produção etc. 19 Marx no Manifesto do Partido Comunista.
35
A ciência jurídica é identificada como um campo de conhecimento voltado
ao fracionamento e à limitação do poder constituinte, mesmo quando esta absorve
alguns de seus elementos ativos na máquina do Estado. A transmutação do poder
constituinte é realizada por meio de leis, normas e decretos que regulam a dinâmica
do trabalho. Nas esferas da política, essa prática de dilaceração desdobra-se nas
diversas formas de representação, implicando a negação da própria gênese do poder
constituinte ao traçar a fragmentação da relação produção-constituição. O Estado
moderno quebra a dinâmica da igualdade e da liberdade, exatamente, quando limita
o poder constituinte a formas prefiguradas20.
Neste sentido, o poder constituinte permeia, de modo ativo, toda a vida
constitucional, mesmo que o paradigma jurídico o desmonte pelo processo de
transcendentalização e impossibilite o seu reconhecimento como fonte de toda a
inovação constitucional. Esse poder não se fixa no tempo nem no espaço,
tampouco se fecha na formalização da máquina constitucional do Estado, pois a
potência constituinte permanece em sua essência e reaparece na concretização das
novas relações sociais, uma vez que é a origem de toda mutação. É por isso que,
implícita ou explicitamente, o Estado tende a negá-la e integrá-la como princípio
dialético.
A incapacidade da teoria jurídica de resolver o enigma do poder constituinte
evidencia sua essência, isto é a necessidade que o Estado tem de controlar e regular
a massa. O ordenamento jurídico nega as lutas sociais como fundamento da
Constituição e através dela opera-se a transcendentalização do poder constituinte,
isto é, a separação da fonte de seu resultado; o sujeito da soberania do exercício do
poder. A soberania do Estado funda-se na limitação da força expansiva do poder
constituinte pela multiplicação dos mecanismos de controle do aparato jurídico. As
normas constitucionais reguladas pelo ordenamento jurídico buscam a limitação do
sujeito constituinte.
O arcabouço normativo tem por objetivo esvaziar o poder constituinte e seu
caráter democrático, ao envolvê-lo no sistema jurídico através do estabelecimento
de graus de sua absorção. Portanto, ele se afirma ao assegurar graus diferenciados e
20 As regras do jogo eleitoral, através do sufrágio, são sobretudo antidemocráticas, já que deslocam a ação do poder constituinte de seu fundamento.
36
determinados do poder constituinte, dirimindo os conflitos de classe ao estabelecer
a democracia formal.
Negri (2002) destaca que a teoria jurídica, a vida factual e a jurisprudência são
absorvidas pelo processo normativo de modo dialético. Essas instâncias de poder
não são autônomas, como pretendem a teoria jurídica e o paradigma jusnaturalista21.
A desfiguração do poder constituinte, enquanto gênese de todo o sistema
constitucional, é realizada pelo aparato do direito formal. Nesse âmbito, ocorre a
redução do conceito de poder constituinte ao se promover a soberania do poder
constituído. A afirmação, pelo poder constituinte, de uma democracia absoluta é
negada pelos procedimentos do poder constituído que visa limitar a democracia:
democracia ilimitada. A limitação da democracia está justamente na separação entre
o princípio (constituinte) e o exercício (constituído) de soberania que existe na base
da criação do Estado e de sua transcendência.
Instala-se dessa forma a transcendentalização do poder constituinte e
estruturam-se diferentes níveis de fragmentação pelos aparelhos do Estado22. A
absorção do poder constituinte pelo aparelho estatal é um mecanismo de desmonte
das forças que operam a mutação.
O trabalho vivo, como centro da mutação social, foi identificado por Marx.
A sua visão não-juridicista aparece nitidamente na Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel, quando afirma que o conceito de poder usado por Hegel é transcendental,
pois este poder aparece deslocado da sua fonte originária como Espírito Absoluto
do Estado. Assim, o soberano assume a feição do poder e a potência constituinte
(sua força vital – o trabalho vivo) é desvirtualizada.
Para Marx, o Estado moderno é estruturado pelas relações sociais
capitalistas, o que Negri também enfatiza em sua obra Poder constituinte – ensaios sobre
as alternativas da modernidade. Isso significa, portanto, que no Estado do capital as
21 Segundo Fassò (1986), é “doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer” (op. cit., p. 655-656). 22 O sistema jurídico-constitucional arranca o poder constituinte de sua base constitutiva, processo que se observa também em diversas áreas de conhecimento, como por exemplo a filosofia política, as ciências sociais e as diversas disciplinas que têm como inspiração teórica o direito natural, cujos autores seminais são Hobbes, Locke e Rousseau. Nesses autores, o poder constituinte é incorporado à máquina estatal.
37
transformações são geradas a partir do antagonismo entre trabalho e capital.
Antagonismo esse que determina ainda o desenvolvimento das forças produtivas.
As alternativas da modernidade (potência versos poder) pressupõem
dinâmicas inovadoras do trabalho vivo nas relações sociais de produção e
reprodução da vida ao transpor continuamente os limites impostos pelo poder
constituído do Estado.
O paradoxo da dinâmica liberação/exploração do trabalho recoloca na
ordem do dia a tensão que se estabelece sob o estado de coisas presente. A
capacidade criativa materializa a novidade que surge da crise da relação social entre
produção social e apropriação privada. A noção de poder constituinte emerge na
ruptura com as formas de idealização do presente, expressando-se como contra-
poder em face dos desafios das desigualdades sociais.
Nessa perspectiva, a Revolução Francesa evidenciou-se como um “assalto ao
poder constituído”, como uma possibilidade efetiva de liberação do trabalho. Nela,
o trabalho vivo se constituiu de modo independente da burguesia. Os proletários
construíram a democracia, quando ergueram a Comuna em 1871 como condição da
liberdade e a autonomia do trabalho.
A unidade entre produção-constituição é evidente nas medidas formuladas
pelo poder constituinte da massa. O programa de governo dos revolucionários
franceses visava abolir as formas de subordinação e recolocar o poder de dispor dos
instrumentos de trabalho e de crédito sem intermediação dos dominadores. Marx
lembra que os representantes da Comuna eram quase todos operários e que seus
planos se distinguiam radicalmente dos planos da burguesia republicana. As massas
projetavam assim uma nova organização da sociedade, articulando a economia à
política de libertação do trabalho23.
Nas lutas intensas entre nobreza e burguesia ligadas à crise da sociedade
feudal afirmou-se a ação política das massas e sua potência efetiva de emancipação
do trabalho explorado. Assim, as massas forjaram seu projeto na ruptura da aliança
com a burguesia, e a sua sociabilidade expressou-se no gosto pelo exercício direto
do poder constituinte.
23 Ver Marx, La Guerra Civil en Francia, 1973, p.82-103.
38
No interior da alternância de poder, o proletariado constituiu-se como classe
social que se lançou num salto histórico, tendo um fim trágico na intensa violência
antidemocrática. Para Marx, a república democrática foi afogada no sangue do
proletariado de Paris, mas seu espectro (poder constituinte) ronda anunciando os
atos subseqüentes de uma peça que anuncia seu evento (Marx, 1978, p.110).
A burguesia “rebelou-se contra o domínio do proletariado trabalhador”
(ibidem, p.111) ao separar a economia da política, e não se esqueceu do fantasma
que rondava a relação entre produção-constituição e entre Estado e sociedade civil.
Estabeleceu-se ainda de modo preciso a ruptura entre a organização do trabalho e a
constituição democrática, instaurando a representação política como princípio de
controle da massa. Assim, o poder constituído afirmou-se como redução da
democracia imanente ao poder constituinte das massas, desenvolvendo-se,
progressivamente, pela negação de sua potência onipotente.
O capitalismo ergue sua forma política – o Estado moderno24 – contra o
poder constituinte. A transcendentalização da potência é efetivada na “perpetuação”
do poder na Constituição do Estado25 para sustentar os interesses particulares da
burguesia na forma de interesse geral.
O Estado plasma o poder constituído e fixa os interesses diferenciados sob
formas organizacionais que desqualificam o poder constituinte. Nesse sentido,
ocorre a externalização das relações imanentes à produção social e à criação de
formas independentes de coordenação racional das necessidades sociais.
A transcendentalização do poder constituinte é estabelecida pela organização
do Estado moderno como única alternativa, cuja função é o deslocamento de seu
24 “A revolução política suprimiu (...) o caráter político da sociedade civil. Rompeu a sociedade civil em partes integrantes mais simples: de um lado, os indivíduos; do outro, os elementos materiais e espirituais que formam o conteúdo de vida, a situação civil destes indivíduos. Libertou de suas cadeias o espírito político, que se encontrava cindido, dividido e detido nos diversos compartimentos da sociedade feudal; unindo os frutos dispersos do espírito político e despojando-o de sua perplexidade diante da vida civil (…). Contudo, a consagração do idealismo do Estado era, simultaneamente, a consagração do materialismo da sociedade civil. Ao sucumbir o jugo político, romperam-se, ao mesmo tempo, as cadeias que aprisionavam o espírito egoísta da sociedade civil. Daí, a emancipação política ter sido a emancipação política da sociedade civil em relação à política, sua emancipação até mesmo da aparência de um conteúdo geral” (...). A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral” (Marx, 1969, p. 48-51). 25 “O Estado é a realidade em acto da Idéia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, realiza o que sabe e porque sabe” (Hegel, s/d). A concepção hegeliana de Estado supõe que este universaliza uma identidade entre forma e conteúdo, numa unidade absoluta.
39
princípio fundador. A descaracterização desse princípio faz sobressair os interesses
particulares dos quais se ocupa o Estado. Essa transcendentalização é qualificada
pelos indivíduos políticos – membros do Estado – que são, antes de tudo, membros
da classe social que, por um lado, domina as estruturas de produção e, por outro,
reproduz na esfera política a cisão já realizada com a apropriação dos meios de
produção e alienação do trabalho. O poder constituído é a universalização da
transcendentalização do poder constituinte.
A burguesia, ao erguer o Estado moderno sobre a sociedade, impõe seus
interesses particulares como interesse geral. Os aparatos do poder constituído
revestem a essência absoluta de toda a mutação na realização do Estado que se
manifesta, em sentido filosófico, nas ações da burguesia, ao universalizar seus
interesses e penetrar os interstícios da vida social.
Marx mostrou que o Estado afirma o papel das massas somente como um
vínculo externo e acidental, portanto, deslocado de seu fundamento real. Essa
transcendentalização quebra os elos da vida material com o trabalho vivo. Nesse
movimento, ocorre o obscurecimento das relações de apropriação arbitrária dos
meios de produção e reprodução, além de cindir a relação entre objetividade e
subjetividade imanentes às experiências compartilhadas entre indivíduos em
sociedade.
A sociedade burguesa corresponde a um estágio específico da história
humana, resultando da apropriação privada das forças produtivas humanas e
materiais e foi estruturada a partir da cisão entre economia e sociedade. Essa forma
de ser se sustenta em uma estrutura jurídico-política, correspondendo a formas
sociais também determinadas. “O modo de produção da vida material condiciona o
processo geral da vida social, política e espiritual” (Marx, 1997, p.36-137).
A soberania do Estado pauta-se pelo domínio (e não pela vontade de todos)
e supõe o poder constituído como única constituição racional. Sua força está não
nas instituições atualizadas pelas forças produtivas, mas na homogeneização do
passado. A soberania opera a “determinação real das partes pela idéia da totalidade
(...)” (Marx, s/d, p.38). A idéia de Estado soberano é baseada num pressuposto
abstrato que transcende as relações entre indivíduo e sociedade civil. O Estado,
40
enquanto “poder superior”, estaria vinculado a grupos de indivíduos que
supostamente detêm, em sua essência, a chave de universalização dos direitos dos
indivíduos em sociedade. Essa perspectiva acaba erguendo a Constituição do Estado
como uma efetividade antidemocrática, porque se funda na participação de alguns,
isto é, nos membros do Estado político.
Para Hegel, o direito de participação direta de todos revelar-se-ia um
“elemento democrático sem qualquer forma racional” (Hegel, s/d, p.318). De
acordo com sua concepção, a figura do monarca encerra a identidade absoluta entre
indivíduos e Estado. O monarca, nessa hipótese, representaria o fato de que todos
são efetivamente membros do Estado. Aí, a possibilidade democrática existiria
apenas em nível formal, uma vez que a representação (e não a participação) é o
elemento dinâmico da sociedade civil. O entendimento é que o Estado concentra
não somente individualidades atômicas, mas interesses dos diferentes grupos sociais
constituídos. A participação de todos, em Hegel, é relacionada ao espaço da opinião
pública, deslocada da esfera do Estado. Da mesma maneira, o poder constituinte é
externalizado nessa constituição.
Já Marx, afirmando que o elemento democrático é imanente à participação de
todos, é contrário à fragmentação do poder constituinte nas esferas da política, dos
tribunais e da administração. Para esse pensador, a representação no interior do
Estado não é exercida pela “sociedade civil, [que vigia] em si mesma e através de si
mesma o seu próprio interesse comum, mas sim [por] representantes do Estado,
encarregados de o administrar contra a sociedade civil” (Marx, s/d, p.77).
A separação entre “sociedade civil” e “sociedade política” é conseqüência da
cisão entre as classes sociais em oposição no interior da sociedade, uma vez que essa
organização funda e perpetua as desigualdades sociais. A participação de todos
demanda a dissolução das classes sociais e das estruturas de poder deslocadas das
relações imanentes à produção-constituição.
A visão hegeliana de identidade absoluta entre Estado e sociedade toma a
sociedade burguesa como o “fim da história”, ao entendê-la como forma absoluta
de constituição. Hegel identifica, na verdade, a consolidação do Estado moderno,
unidade fictícia entre sociedade política e sociedade civil. A constituição do Estado
41
como espaço de mediação, uma “força (supostamente) acima da sociedade”, resulta
da divisão da sociedade em classes sociais e das lutas nas estruturas do poder
constituído (Estado).
A crescente complexificação da sociedade faz aparecer novas contradições
internalizadas nas estruturas do Estado. Nessa perspectiva, o Estado não deixa de
ser exclusivo da burguesia (“Comitê Executivo da Burguesia”)26, uma vez que é o
espaço por excelência de redução da potência, de transcendentalização das relações
sociais de produção.
O Estado, para conter a marcha da inovação democrática, coloca em jogo
seus aparelhos. O conteúdo das revoltas e demandas dos de baixo penetra as esferas
do Estado, mas aparece dissociado da unidade entre produção-constituição. O
caráter da produção social é restrito nessa engenharia de poder para a apropriação
privada. O ponto de inflexão do embate entre poder (constituído) e potência
(constituinte) se insere na questão da revolução e da própria superação do Estado,
enquanto autonomização do político em face do social, da liberdade vis-à-vis a
igualdade do poder constituído vis-à-vis a potência constituinte.
Na sociedade civil as contradições sociais ganham uma dimensão vital e seus
conteúdos são cotidianamente renovados, à medida que as relações de
produção/reprodução constróem o novo e ganham centralidade no trabalho vivo –
potência que move a sociedade.
A sociedade política é apreendida por Marx como o núcleo duro da
dominação burguesa, ou como já foi dito anteriormente, como Comitê Executivo;
em face disso a sociedade civil é vista como imanente à base material das relações
sociais: “As formas de intercâmbios condicionadas pelas forças da produção
existentes em todas as fases históricas anteriores (...) condicionam a sociedade civil
(...)” (Marx, 1974, p.38), sendo a sociedade civil o cenário de toda a história da
humanidade.
Na sociedade civil ocorre a cooperação entre os indivíduos, condicionando o
desenvolvimento das forças produtivas em sua autoprodução, na imanência da vida
social, que é ao mesmo tempo comercial, industrial e está sempre em contínua
26 Concepção de Estado tratada por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista.
42
mutação. Nesse espaço, cria-se a ciência, a tecnologia, a arte etc27. Ao contrário
disso, a transcendentalização é produzida pelo ordenamento da máquina do Estado,
para controlar e dominar a criação em seu processo de contínua expansão.
A liberdade do trabalho vivo é, portanto, reduzida ao espaço da produção,
para que esta possa fluir e se expandir via liberdade do mercado. O efeito da
nacionalidade cria obstáculo à livre circulação dos homens. A troca de mercadorias
entre os diferentes espaços nacionais desvenda em sua essência a prisão de corpos,
mesmo quando suas idéias conseguem ultrapassar as fronteiras e fazer circular a
novidade.
A sociedade capitalista, em seu berço, inverteu as relações sociais de
produção, restringindo o poder constituinte às estruturas do Estado, visando
naturalizar as desigualdades sociais. No entanto, a potência constituinte não se
anula, pois ela é o princípio, manifestação que se dá somente na crise. Ao contrário,
ela opera na imanência das ações de resistência em face do poder constituído,
resultando num devir: o devir histórico é produzido na tensão entre o poder
constituído e a potência da mutação.
A formulação concreta de alternativas inovadoras se dá pelos movimentos
sociais que operam no espaço da produção-constituição, ou seja, pela resistência que
se dá na sociedade civil. A revolução permanente das relações sociais traduz uma
contínua atualização das estruturas civis que arranca o presente do passado, isto é,
da burguesia, força de bloqueio da inovação político-econômica do trabalho vivo.
As revoluções sociais são momentos de afirmação da potência constituinte,
na oposição à cisão existente entre Estado e sociedade civil, e de constituição de um
absoluto democrático. A potência se torna constituição material e rompe os
interesses particulares supostamente universais – exerce-se diretamente o poder
constituinte. O contra-poder nasce de maneira imanente: do confronto com as
estruturas do Estado e suas formas de representação, exigindo a liberação da
potência e, portanto, a supressão de todas as formas de dominação.
27 Espinosa, em seu livro Ética, parte V, mostra a liberdade como fonte imanente a toda produção da ciência, da arte, da beleza, ao expandir a vida para além dos limites exteriores, transcendentais, da relação corpo-mente/natureza em mutação (Espinosa, 1992, p.443).
43
A Constituição do Estado Moderno tem como arranjo o Estado político
(autônomo de sua base real), como transcendentalização da sociedade civil
(infraestrutura econômica). Esse fenômeno concretiza-se como unidade formal
entre poderes de natureza diversa. Para Negri, o aparato jurídico-institucional e a
Constituição de Estado são formas de redução do poder constituinte.
O poder constituinte não se restringe às normas criadas, à medida que
expande continuamente as relações sociais, extrapolando as estruturas condensadas
das normas instituídas e revolucionando continuamente a vida social. Desse modo,
o poder constituinte, na estrutura da sociedade civil, produz a ultrapassagem das
condições sociais presentes, transformando e qualificando os sujeitos históricos em
direção a uma nova constituição social. Esse movimento contínuo de mutação é
relativo às lutas sociais do trabalho vivo que dão consistência à potência das massas;
suas proposições e alternativas determinam o devir histórico de supressão dos
estágios civilizatórios.
44
I.2 Revolução X Contra-revolução
Para entender a noção de revolução em Negri (2002) é necessário
dimensioná-la a partir de um conceito de poder constituinte ancorado na capacidade
de contínua expansão da natureza humana. Negri abre as alternativas de poder
(constituinte e constituído) que marcam a modernidade em distintos períodos
revolucionários. Nesse sentido, as guerras e violências têm a ver com o desejo e a
paixão próprios do desenvolvimento da natureza humana em diferentes estágios
históricos. Segundo Negri (1993), referenciado em Espinosa, os homens seguem
princípios comuns à natureza, uma vez que não estão fora dela, e, portanto, natureza
e homens estão em constante mutação.
Nessa linha de pensamento, o ser humano está aberto de maneira absoluta
ao infinito, buscando de maneira contínua sua autodeterminação, que é operada
pela capacidade da razão humana de conhecer e alterar constantemente a própria
história.
A ontologia política do poder constituinte é imanente a esse
desenvolvimento da natureza humana, isto é, às relações de produção da vida e do
trabalho, que forjam a constituição material nesse movimento constante de
mutação revolucionária.
A revolução e a contra-revolução surgem, assim, como duas alternativas da
modernidade, cujo antagonismo é expressão da mutação contínua do poder
constituinte contra a redução imposta pelo poder constituído que põe freio ao
movimento revolucionário. O resultado desse embate paradoxal é o fato do poder
(constituído) só funcionar na medida em que limita e bloqueia a potência
(constituinte), isto é, seu próprio fundamento.
A revolução da natureza humana (sua contínua expansão) renova
cotidianamente esse embate, pois o poder constituinte não se deixa aprisionar na
constituição formal. O poder na modernidade aparece, portanto, como crise, ou
seja, como uma tentativa de absolutizar as ações estratégicas de comando.
O movimento infinito da expansão do poder constituinte é a linha de
continuidade que revoluciona constantemente a política, a economia e a sociedade
45
como um todo, adequando-as ao próprio desenvolvimento material da sociedade. O
problema político central dessa constituição passa a ser a práxis social imanente a
expansão da natureza humana em sua efetividade. Nesse cenário, a crise é imanente
e necessária para a mutação da vida, isto é, do ser em seu movimento contínuo de
auto-constituição ou, em outras palavras, fruição da potência (o devir). O ser em si e
para si alimenta-se das inovações.
Nesse contexto, o próprio Estado (poder constituído) é determinado como
uma forma específica de organização social dada num determinado nível de
desenvolvimento da natureza humana e suas forças produtivas. Isto não significa a
finitude do processo, mas ao contrário, no espaço-tempo de abertura da natureza
humana o Estado é somente um resultado temporário, na dinâmica do poder
constituinte (potência), como espaço fértil da paixão e da razão.
A natureza humana em contínua expansão torna-se auto-constituição, de “tal
modo que [se] os homens vivessem de acordo com os ditames unicamente da razão
e não procurassem outra coisa, o direito natural, enquanto próprio ao gênero
humano, seria constituído só pela potência da razão” (Negri, 1993, p.250); mas,
como seguem ainda o desejo e as paixões, acabam erguendo o Estado como um
organismo criado para conservar privilégios.
O desenvolvimento social e não a mensuração gerou o Estado no “esforço
universal de todos os homens para a própria conservação – esforço que se manifesta
em cada homem, seja ignorante ou sábio” (Negri, 1993, p.255), não importa como
os homens são considerados, se escravos das paixões ou se vivendo segundo a
razão, sua dimensão constituinte é sempre revolucionária.
Assim, o Estado, sob a dinâmica do poder constituinte, apresenta-se “em
toda sua ambigüidade, reino de mistificação e de realidade, de imaginação e desejo
coletivo. Realmente o pensamento negativo se tornou o projeto de constituição”
(idem). O paradoxo revolução/contra-revolução está relacionado à própria questão
do Estado (poder constituído), mais precisamente na noção de fundamento e não de
constituição. A tradição contratual é contra-revolucionária por se afirmar no e pelo
deslocamento da origem de toda constituição – que é sempre revolucionária.
46
O Estado deve sua existência à expansão da potência constituinte e foi
modelado como efeito de um embate entre forças de naturezas sócio-históricas
diversas, mas sempre renovadas. As condições que levam a uma nova constituição
ou à manutenção do Estado são postas no centro da tensão antagonista entre
alternativas de poder de ordem diversa, da revolução e da conservação.
Nessa expansão contínua do ser, a legitimação do exercício do poder é
imanente pela atualização revolucionária e não pelas ações de regulação que são
geridas por aparelhos de transcendentalização. O Estado político, efeito da
obstaculização da condição da guerra de todos contra todos, ergue o direito civil,
criando um consenso artificial. Trata-se na realidade de uma fundação abstrata, de
desencaixe dos nexos imanentes à sua formação, isto é, um modo de ser que
distorce o desenvolvimento contínuo da potência ao restringir a dinâmica da
produção-constituição.
A capacidade que o homem tem de romper com as formas de
aprisionamento só é possível pela inventividade e pelo seu movimento contínuo de
abertura, isto é, na oposição ao domínio e à submissão. O poder constituinte
constrói o novo ao desconstruir a máquina dominante. A desarticulação do presente
é imediatamente relacionada a uma ação criadora de um devir totalmente novo.
Dessa forma, o poder constituinte lança-se no espaço vazio. Sua potência não pode
aprisionada e acaba corroendo as bases das instituições de representação.
As inovações resultam da revolução contínua da natureza humana e das
forças produtivas, que desloca o sistema de representações do presente. A
capacidade de mutação do poder constituinte retoma constantemente sua potência
colocando-a na perspectiva do real, sob uma forma originária. As lutas
revolucionárias potencializam a capacidade de restituição da força vital como o
“lugar de recomposição das resistências e do espaço público” (Negri, 2002, p.46).
Por não se prender a determinações prefiguradas, os sujeitos, nesse espaço,
transformam-se em ações e procedimentos absolutos, carregando em si mesmos a
potência de constituição do tempo. Eles imprimem a crítica destrutiva do poder
constituído e, ao mesmo tempo, tornam-se capazes de inovar continuamente o
político.
47
Colocar o político nessa perspectiva é rechaçar as tradições do pensamento
moderno que presumem os direitos dos homens fundados pelo princípio do
contratualismo. A revolução é gênese da vida e é imanente à expansão contínua do
ser.
Esse paradigma da revolução permanente é reconstituído por Negri (2002) a
partir de Maquiavel, de Espinosa e de Marx. Esses pensadores afirmaram que o
direito natural é uma abstração e embora se tenha tornado a base do estatuto da
ciência jurídica e da filosofia política, não passa de uma ilusão.
Os direitos (no sistema jurídico) aparecem deslocados dos sujeitos
produtivos quando mantêm o velho e, portanto, o passado, afirmando o
individualismo burguês, anti-revolucionário, como único e verdadeiro ator político-
econômico da sociedade moderna. O sofisma do direito natural sustenta, na
realidade, as práticas anti-revolucionárias, que encobrem a constituição real em
permanente mutação.
A materialização dos direitos só pode se dar à medida que são inscritos nas
lutas sociais, isto é, a potência operada no espaço-tempo da oposição a todas as
formas de subordinação. Crítica radical ao poder constituído e à exploração do
trabalho, como identificou Marx. É nesse intervalo que o poder constituinte faz a
sua história em oposição frontal a todas as formas de transcendentalização,
representação e institucionalização de seus elementos.
Para Negri, a passagem do conceito de poder constituinte, sua efetividade, foi
definida no contexto da crítica marxiana do poder e do trabalho. Marx fez um
enorme esforço teórico-empírico em A Sagrada Família e na Questão Judaica para a
desmistificar o conceito de igualdade. Ele mostrou que a emancipação política da
sociedade burguesa resultou na juridicização das relações sociais, em que os direitos
do homem aparecem deslocados das forças produtivas e das condições de produção
e reprodução da vida em sociedade.
Na Ideologia Alemã, Marx identificou o poder constituinte a partir de duas
perspectivas opostas: a primeira, desenvolvida pela burguesia para adequar a
constituição material ao domínio de classe, como universalização da consciência do
indivíduo burguês e, simultaneamente, a divisão social e técnica do trabalho; na
48
segunda perspectiva, mostrou que o próprio desenvolvimento das forças produtivas
colocou os proletários e seu autodesenvolvimento no centro da cooperação social.
Nesta problematização do poder, a revolução permanente torna-se o eixo do
governo absoluto dimensionado pela oposição incessante contra a exploração e o
domínio de classe. O trabalho vivo e suas lutas contra a apropriação privada
recolocam continuamente a necessidade da radicalização democrática, que combina
emancipação política e trabalho livre, isto é, o fantasma que ronda e pressagia o
além do moderno – a dissolução do Estado político.
O núcleo da crise da sociedade moderna e suas alternativas de poder – poder
constituinte e poder constituído – está centrado na oposição entre trabalho vivo e
trabalho morto, enquanto antagonismo entre constituição material e constituição
formal. O trabalho vivo é o fundamento e o motor não somente da produção e do
desenvolvimento das forças produtivas, mas também de sua auto-constituição.
Eis aí o simulacro da teoria burguesa do trabalho que, ao destituir o trabalho
vivo como mobilizante de toda mutação, opera o seu deslocamento para erguer o
trabalho morto como fonte da riqueza social, escondendo a exploração e a
expropriação da criatividade do trabalho vivo e sua cooperação expansiva. Ou seja,
o trabalho vivo é quem promove a unidade entre o político e o econômico, numa
relação de abertura que produz (revolucionariamente) as novas estruturas civis –
sociais, econômicas e políticas –, deixando para trás as velhas estruturas.
O privilégio e as desigualdades sociais na sociedade capitalista são
legitimados pela ficção da igualdade abstrata no sistema constitucional. O atual
sistema de ordenamento das relações de produção e reprodução da vida é resultado
da redução da racionalidade criativa imanente à revolução contínua e infinita da
natureza humana, como observou Espinosa.
Essa dinâmica constituinte confronta-se permanentemente com a
racionalidade instrumental desenvolvida pelo poder constituído sob as formas de
dominação. No entanto, para quebrar essas amarras, o trabalho vivo vem se
deslocando historicamente das relações de domínio e expropriação. A potência do
novo reaparece continuamente no movimento concreto de mutação.
A igualdade e a liberdade expandem a ontologia do ser em sua constante
mutação, expressando a riqueza da relação individualidade-coletividade. A igualdade
49
e a liberdade são base da criatividade que se tornaram condição imperativa da força
criativa como anunciou Espinosa em A Ética.
A cooperação entre indivíduo–coletividade impõe uma nova racionalidade
que surge na contraface da modernidade instrumental, sob uma rede de relações que
produz simultaneamente valor e liberdade. Hoje a cooperação social produtiva
aparece em redes territorialmente dispersas. A constituição dessas redes é o móvel
material não somente da nova racionalidade, mas também das novas contradições da
relação capital/trabalho. A cooperação (des)territorializada articula uma rede que
pode ser observada a partir de procedimentos absolutamente inovadores. No
entanto, seus princípios parecem ainda não revelar sua potência constituinte, isto é,
os sujeitos adequados à instauração do absolutamente novo, mas operam uma
revolução silenciosa, cuja essência criativa é potencializada pelas novas forças
produtivas e vice-versa.
A cooperação como autoprodução do ser questiona as bases legais da
apropriação e estabelece como bandeira de luta o salário social universal, a cidadania
global, recolocando a mobilidade do trabalho para além das fronteiras do Estado-
nação.
No entanto, o comando do capital em nível do mercado global, buscando
desfigurar essa lógica da racionalidade criativa, tenta restabelecer o controle a partir
da fragmentação da produção por diferentes territorialidades. Nesse contexto, a
produção e a reprodução do trabalho e da vida são despotencializadas por formas de
fragmentação e segregação sócio-espacial.
A cooperação é a forma pela qual se produz o novo, reproduzindo a própria
vida sob o ambiente da novidade e da criação. A racionalidade inscrita pela potência
da cooperação é a força que produz ontologicamente a construção da novidade.
Para Negri (2002), é o poder constituinte que produz a nova racionalidade,
isto é, a base da oposição político-econômico-social da ordem que estabelece o
Império28 como única alternativa da modernidade. A matriz ontológica do presente
ergue-se no processo criativo, ou seja, na cooperação que destrói as formas de
mediação e, conseqüentemente, a separação entre o agir e o pensar. Na atualidade, o
28 Negri e Hardt (2001).
50
político na imanência da cooperação produtiva e da capacidade empresarial co-
extensiva ainda não é reconhecido como nexo que opera a unidade entre
constituição-produção29.
Na cooperação o poder constituinte encontra sua massificação criadora. O
trabalho vivo é evidenciado na tensão criativa unindo o político e o econômico
numa relação social de abertura para novas estruturas civis, sociais e as políticas
revolucionárias. Assim, ele corrói o arcabouço jurídico-político anti-revolucionário,
imprimindo ao mesmo tempo a dinâmica da liberdade e da igualdade como faces de
um todo que mobiliza a inovação do presente.
Em face da transcendentalização do poder, a potência apresenta-se como
alternativa na abertura provocada por “um conjunto de resistências que engendram
uma capacidade de liberação absoluta, longe de qualquer finalismo que não seja a
expressão da própria vida e da sua reprodução” (Negri, 2002, p.45).
A habilidade de liberar a vida de qualquer aprisionamento e romper barreiras
aparentemente intransponíveis foi identificada por Foucault (1993). A resistência, as
fugas, as deserções etc. são ações de abertura em oposição ao domínio e à
submissão impostas pelo poder constituído.
O homem constrói o novo ao desconstruir a máquina da dominação ou seja,
a resistência constrói o novo pela política que destrói o poder constituído. A
desarticulação das formas de domínio e exploração é imediatamente criadora de
condições que preenchem o vazio de liberdade. A produção da vida é, portanto,
revolução permanente. E quando “se fala em revolução, fala-se em poder
constituinte: figuras de rebelião, de resistência, de transformação, de construção do
tempo (...)” (Negri, 2002, p.40). A revolução é espontaneidade criativa do trabalho
vivo que decifra sua própria capacidade de inovação.
Na perspectiva da revolução permanente, a potência formativa da natureza
humana agrega forças sempre inovadas e forja os sujeitos e seus procedimentos
constitucionais absolutos.
A teoria negriana do poder constituinte, isto é, da revolução permanente,
torna-se uma alternativa central nos dias atuais, em face da crise das formas de 29 Produção-constituição entendida a partir da unidade entre as relações de produção e reprodução da vida em continua expansão do ser, portanto, princípios ontológicos fundados na centralidade do trabalho e sua constante mutação.
51
organização da produção e do trabalho. Com efeito, o devir histórico dos tempos
está latente na potência do trabalho vivo e, portanto, nos sujeitos que vêm
produzindo experiências revolucionárias na interface entre singularidade-
coletividade. As dimensões inovadoras do presente exprimem determinações ao
mesmo tempo singulares e universais, as quais engrandecem o gênero humano em
sua marcha histórica de liberação do trabalho rotineiro.
52
I.3 Constituição Atlântica e Cabanagem
A constituição atlântica30, na perspectiva do poder constituinte, expressa o
movimento de apropriação territorial que marcou o processo de colonização, sob a
tensão entre potência e poder. No Atlântico Norte, o poder constituinte
experimenta o desenvolvimento em dimensões continentais, pois a apropriação
territorial materializa as relações sociais no plano da liberdade de conquistar novas
fronteiras, como ausência de condicionamentos, de decretos e leis impostas pela
monarquia inglesa.
Nesse espaço, a potência desloca-se das fronteiras européias (do velho
mundo) e produz o continente americano, ou seja, constitui o novo mundo. A
dinâmica de apropriação do continente americano se expressa para além dos limites
do fetichismo constitucional31, uma vez que a expansão continental é dada pela
liberdade de apropriação de seu território. Nesse sentido, o termo utópico da
proposição de Maquiavel é reformulado na prática, ou seja, a virtù (ruptura) aparece
como princípio material da crise e da revolução.
O poder constituinte, na história atlântica, “(...) nasce como poder que se
opõe à constituição gótica do capitalismo nascente” (Negri, 2002, p.167) por isso
Negri o identifica nas práticas políticas de construção do Novo Mundo, no longo
trajeto da constituição das massas.
O trabalho da potência orienta o contrapoder na linha da constituição
democrática tornada paradigma da história mundial. O significado laico e
democrático passou a interrogar as alternativas de poder que se estendem como
crise no espaço da Colônia.
As inspirações florentinas tornam-se concretas na liberdade de imersão no
espaço continental americano. Neste espaço, a ruptura da Renascença reatualiza-se
30 Modelo usado e criticado por Negri, para explicar a inovação da potência constituinte na passagem de
Florença ao Atlântico, isto é, a crítica ontológica do político (visto a partir do modelo natural de constituição). Ainda, para Negri, a Constituição Atlântica é um modelo paradigmático de estruturação das relações do capitalismo incipiente e da formação do Estado de Acumulação primitiva. 31 Isso significa dizer que a constituição americana mostra-se no movimento concreto de apropriação do Atlântico Norte, sem a mediação das instituições de representação, presente das formações sociais européias. Na realidade, ela é organizada na ruptura do domínio estabelecido pelas perseguições impostas devido a intolerância religiosa.
53
como princípio da liberdade. A crítica radical à subordinação manifesta-se de forma
intensa no desenvolvimento das forças produtivas que se materializaram na
autonomia da Colônia, e, conseqüentemente, potencializaram a dinâmica da
constituição dos Tártaros32 que romperam as relações colonialistas inglesas. Esse
movimento deslocou o mito e fez despontar o agravamento da crise na expansão
continental da liberdade em que o desenvolvimento da potência constituinte
mobilizou os colonos da América do Norte contra o controle da metrópole.
No entanto, esse deslocamento, ou seja, a autonomia por parte dos colonos,
não foi aceito pelos ingleses da metrópole, uma vez que estes estabeleceram
operações hostis e sistemáticas de redução da liberdade. As restrições impostas por
leis e atos tarifários marcaram esse momento, mas, posteriormente, perderam força
quando os colonos livres – os Tártaros ingleses – desvencilharam-se de seu passado.
A máquina constituinte dos Tártaros inovou e qualificou o poder, pois a liberdade
de apropriação do espaço territorial sustentou e ditou as regras da autonomia
americana, tornando-se a chave de sua constituição material. Nesse espaço, a
abertura do poder constituinte põe em jogo outra organização social, distanciada do
modelo de poder na Inglaterra pós-revolucionária.
A gênese material da democracia americana é o amor à liberdade de
governar-se de acordo com sua natureza e não pela força de idéias abstratas do
direito33. Dessa maneira, na expansão da liberdade o poder constituinte mostra-se
por inteiro34. A apropriação do espaço imanente ao desenvolvimento dos colonos e
a extensão da fronteira produziram o continente da liberdade dos americanos onde a
política clássica foi radicalmente deslocada.
A democracia radical inova a relação entre instituições espontâneas e
governo, entre povo, armas e exércitos, momentos estes decisivos na resistência dos
Tártaros aos ingleses. A revolução em ato transforma simples associações em
corpos políticos. Nesse movimento, uma nova forma de Estado e de nação é
32 Expressão utilizada por Burke para identificar os colonos radicados na América do Norte.
33 Para Burke, o poder constituinte dos americanos foi reconhecido “em 22 de março de 1775, ao apresentar sua moção de conciliação com as Colônias” (Negri, 2002, p.211). 34 As regras constituídas pelos cidadãos políticos se difundem na unidade federativa, uma atividade de apropriação que ganha espaço e constitui a nação. “Estamos instalados bem no centro do poder constituinte, do processo revolucionário democrático através do qual a liberdade se configura como fronteira” (Negri, 2002, p.218).
54
definida: “o direito precede a constituição, a autonomia do povo vem antes de sua
formalização. É o Tártaro quem funda a liberdade na experiência de seu próprio
direito” (Negri, 2002, p.221).
A Declaração da Independência Americana rompeu com a legitimidade
britânica e colocou a emancipação política como condição de relacionamento entre
nações autônomas. No entanto, essa inovação é transfigurada e o poder
constituinte, baluarte da democracia americana, vê-se limitado no sistema
constitucional. Neste espaço o poder passa a ser delegado no espaço da
confederação e da união, criando poderes distintos da sociedade. O pluralismo
torna-se um efeito perverso no modelo de democracia americana e a sociedade é
colocada como contrapoder. O homo politicus construído pela Constituição
Americana torna-se apenas um referencial “em que a liberdade transforma-se em
igualdade, e a igualdade interrompe a tendência à liberdade e acaba por invertê-la”
(Negri, 2002, p.261). O indivíduo jurídico esquece a capacidade criadora dos
Tártaros que produziram o continente da liberdade. Nessa engenharia do poder,
ocorreu o recuo da expansão democrática e da liberdade espacial transformando,
novamente, o povo numa abstração.
Ora, se no Atlântico Norte os tártaros produziram a emancipação política, no
Atlântico Sul, o que está em jogo é a apropriação da liberdade selvagem, pois o
capitalismo precisava organizar a divisão social do trabalho. O conflito, neste
âmbito, dá-se entre práticas de natureza diversa: a liberdade do trabalho selvagem e
a formação de um mercado de trabalho regional dependente marcaram o
desenvolvimento das lutas constituintes na Amazônia.
A dinâmica do poder constituinte no Atlântico Sul expande-se nas diferentes
práticas de resistência ao controle do trabalho nômade, isto é, dos povos autóctones
contra a subordinação dos colonizadores portugueses. A colonização, ao frear a
liberdade selvagem, deu início às diversas formas de regulação jurídica da
mobilidade do selvagem, fazendo surgir em sua contraface as formas de resistência,
fugas, deserções e revoltas contra o domínio e a exploração. A via do êxodo aparece
no antagonismo da constituição histórica da dependência do trabalho.
55
Na Amazônia, as alternativas de poder são imanentes às disputas entre
portugueses da metrópole e os povos autóctones. A liberação da vida flui dos
espaços do cativeiro e opera a defecção em face dos mecanismos de redução da
liberdade selvagem para criar uma oferta de mão-de-obra. O trabalho vivo e a
liberdade, nesse sentido, são o ponto de partida e o ponto de chegada do
antagonismo às diversas formas de expropriação e dominação da natureza selvagem.
As formas de organização pré-capitalistas eram baseadas no trabalho
nômade, essencial à vida na floresta. Desta maneira, o confronto com o colonizador
produziu os conflitos com os filhos da terra que não aceitavam, de modo algum, a
condição de subordinados. Assim, a tentativa de fixação do trabalho foi
constantemente bloqueada pela recusa ao trabalho dependente. No entanto, o
movimento interno de resistência do dominado é, muitas vezes, obscurecido para
mostrar apenas o lado positivo da expansão colonialista no Novo Mundo.
A materialidade das relações de constituição do trabalho livre no Pará
aparece no espaço de transação entre capital/trabalho nômade, como sendo
originado pelo lado “doce” do liberalismo econômico. O lado negativo,
representado pela escravidão, massacres e quase extinção dos povos autóctones é
obscurecido, pois empana a retórica humanitária do capitalista e traz à luz a
contínua brutalidade impressa pela exploração e redução da liberdade selvagem.
A alternativa colonialista buscava a superação da identidade selvagem,
portanto, suprimir a liberdade de ir e vir, criando um obstáculo colossal que
somente o milagre dos métodos “civilizados” do colonizador podia ultrapassar. A
cooperação exigida pela empresa colonial aos povos autóctones era impraticável,
pois para estruturar a economia política do colonizador era preciso ultrapassar o
modus vivendi da vida na floresta. O Estado colonial produziu o milagre de
“conversão” da liberdade selvagem dos indígenas à liberdade vinculada à cidadania
formal dos portugueses, mas isso se deu após um longo percurso.
Nesse sentido, a experiência dos cabanos foi de uma luta contra os processos
de regulação e subordinação do trabalho em face da redução da liberdade e da
mercantilização da vida na floresta amazônica. Eles produziram estruturas civis
inesperadas, construídas em oposição às velhas práticas de dominação
aparentemente inabaláveis, e despontaram para um mundo absolutamente novo.
56
As idéias revolucionárias no Grão-Pará35 começaram a ganhar corpo em
1820, com a Revolução do Porto em Portugal36 e, neste sentido, pode-se dizer que
essa década aparece como um período de aceleração das lutas constitucionalistas
desdobradas por um intenso debate sobre a Independência do Brasil e o seu
resultado, ou seja, a redução dos desejos de liberdade e autonomia das massas em
face do monopólio dos portugueses na província do Pará.
Os portugueses estabelecidos na colônia eram contra a ruptura dos laços
com Portugal, pois queriam manter o domínio do poder colonial português,
enquanto os paraenses nativistas inspirados na Revolução do Porto desejavam a
abertura e entendiam que o apoio a Independência do Brasil favorecia sua causa.
Esses dois grupos passaram a se enfrentar e suas disputas ultrapassaram o campo
constitucional. Nesse âmbito a ação constituinte dos nativos – partidários da
independência – resultou na expansão da dinâmica revolucionária que alguns anos
depois produziu a Cabanagem, com o povo em armas.
Tratar essas lutas como um dado específico, ligado exclusivamente ao
processo de anexação do Grão-Pará ao Império Brasileiro, obscurece o movimento
real e deixa de lado a dinâmica das lutas do trabalho, base material que sustentou o
antagonismo contra a aristocracia imperial (luso-brasileira e seus dependentes, no
Estado do Pará). Os nativos (frutos da miscigenação entre índios, negros e brancos),
nesse espaço-tempo, identificaram as linhas de continuidade da política da Coroa
Brasileira37com as de Portugal, levando-os a traçar uma nova linha de ação.
A influência da Revolução do Porto fez desencadear um processo de
abertura, cujo desfecho foi o estabelecimento do 1º governo constitucionalista na
província, em contraposição ao despotismo da metrópole portuguesa. O padre
Romualdo Antônio de Seixas foi empossado na presidência por aclamação popular
– este governo tinha caráter provisório e durou de 01 de março de 1821 a 01 março
35 Umas das principais figuras de articulação foi Filipe Patroni, estudante de Direito na universidade de Coimbra que, em 1820, aos 22 anos, abandona a universidade para se dedicar ao movimento constitucionalista no Pará, sob a influência da Revolução do Porto, desencadeando a aceitação da Nova Constituição Portuguesa, cuja abertura liberal-democrática ele considerava importante para o Brasil. 36 Trata-se de uma revolução liberal que visava restringir os poderes do rei, que passaria a ser partilhado. 37 A relação entre as Colônias portuguesas no Atlântico Sul – Maranhão/Grão-Pará e Brasil – começa a se desenvolver somente com a transferência da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, momento em que houve a elevação destas à condição de Reino Unido de Portugal e Algarves. Até esse momento elas se relacionavam diretamente com Portugal, e seus vínculos eram extremamente tênues.
57
de 1822 –, mas suas bases questionavam sua posição contrária ao movimento de
Independência do Brasil.
No segundo governo constitucionalista, o Dr. Antonio Correa Lacerda
assumiu a presidência e todos os cargos públicos foram preenchidos por
portugueses – seu caráter também era provisório e teve a duração de 01 de março de
1822 a 01 de março de 1823 – que não aceitavam a possibilidade de anexação do
Pará ao Brasil. Assim, ancorados no poder, opuseram-se ao movimento de apoio à
Independência, dando origem a uma série de conflitos e tensões. No entanto, os
nativistas, coordenados por Batista Campos, ganharam espaço e conseguiram a
destituição dos portugueses dos cargos administrativos. Diante de tal situação, os
portugueses romperam com o constitucionalismo liberal.
Conforme Di Paolo (1990), os portugueses desfecharam um golpe em 1º de
março de 182338, com intuito de manter sua hegemonia no Pará e sustentar “o
absolutismo português na Amazônia para impedir que o processo de lutas evoluísse
na adesão à Independência do Brasil” (idem, p.99), gerando assim, uma alternância
de poder entre os paraenses defensores da Independência e os portugueses
colonizadores. Nesse movimento tinha início a marcha da Cabanagem e as disputas
“nacionais” envolvendo a população local, os portugueses instalados na colônia e os
brasileiros duraram duas décadas até explodir nas lutas sociais.
Não satisfeitos com os rumos da dinâmica constituinte, os portugueses
estruturaram uma Junta Governista de caráter “ético-nativista”, colocando como
presidente o padre Romualdo Antônio de Seixas. Mas isto era somente uma farsa.
Os primeiros atos deste governo foram: perseguição aos adeptos da Independência
do Brasil; criação da Guarda Cívica Voluntária de Cavalaria da Cidade para reprimir
a difusão das idéias da Independência; e abolição da liberdade de imprensa, através
da criação do Decreto de Deportação dos líderes defensores da Independência,
resultando na desapropriação do jornal “O Paraense39”, divulgador das idéias
republicanas e de apoio à Independência do Brasil. Os equipamentos gráficos
expropriados foram utilizados para fundar o jornal “Luso-Paraense”, que passava a
38 Essa eleição teve por base o decreto de 29.09.1821. 39 Esse jornal era de propriedade de Batista Campos que, na sua origem, estava comprometido com as lutas republicanas e constitucionalistas.
58
constituir um órgão oficial e, com estas medidas estava desmontada a farsa
constitucionalista.
De acordo com Di Paolo, “no Movimento Pró-Independência começou a
prevalecer a idéia de que não bastava a luta política, jurídica ou jornalística, tão
brilhantemente levada pelo admirado cônego Batista Campos; era necessário
recorrer à luta armada” (1990, pp.102-103). Desta forma, os nativos que lutaram
pelos ideais da independência passaram a defender o uso de armas como
instrumento para a tomada do poder, pois acreditavam que somente com o povo
em armas era possível alterar a dinâmica da exploração colonial.
No dia 14 de abril de 1823 iniciaram-se os cabanos iniciaram conflitos
armados, com uma “força de cem homens pouco mais ou menos40” (Raiol, 1970,
p.31), que chegaram a tomar o quartel e o parque de artilharia e dar vivas à
Independência. No entanto, o final do confronto foi desastroso devido à fragilidade
dessa ação. Posteriormente, no dia 15 de abril, o governo reuniu em seu Palácio, um
grande conselho para deliberar sobre os insurretos. Nesse episódio, os militares que
participaram do movimento foram encaminhados à Fortaleza do Forte, os civis
enviados à cadeia pública, e os que conseguiram escapar refugiaram-se no interior
do Estado ou fugiram para os Estados Unidos da América do Norte.
No dia 16 de maio de 1823, segundo Di Paolo, os 271 republicanos
partidários da Independência que haviam sido presos e condenados à morte pela
Junta de Justiça tiveram sua condenação revista por Dom Romualdo Coelho,
presidente da província, que determinou o exílio dos condenados para Lisboa. Com
esse procedimento, estava encerrada a luta pela Independência na cidade de Belém.
A perseguição aos partidários da Independência havia-se tornado brutal, mas
mesmo assim a dinâmica constituinte se estendeu para o interior da província e
espalhou-se com a mobilização das massas. Os revoltosos refugiados da sede da
província juntaram-se à população interiorana imprimindo um novo impulso ao
tempo das massas. Na Vila de Muaná41, em 28 de maio de 1823, eles proclamaram a
40 Esse dado não é preciso, pois mais adiante se fala em julgamento de 271 presos neste episódio. 41 Cidade situada na ilha do Marajó.
59
Independência do Brasil42, fato que não ficou sem resposta por parte dos
governantes da província. Novos combates foram travados e os insurretos foram
derrotados e levados presos à Belém.
Com a dissolução das Cortes Portuguesas e o retorno ao Antigo Regime em
Portugal, a Junta Provisória da província, reunida extraordinariamente, em 5 de
agosto de 182343, estava sob o dilema de ter que decidir sobre o sistema político a
ser adotado no Pará. Dom Romualdo de Souza Coelho44 decidiu permanecer com
as mesmas regras até que lhe fossem repassadas ordens de Portugal. Mas o clima de
tensão em Belém aumentou quando em 10 de agosto de 1823, o tenente inglês, John
Pascoe Greenfell45 chegou à cidade de Belém para garantir a Adesão do Pará à
Independência. A Junta governativa reuniu seu conselho mais uma vez em 11 de
agosto de 1823 e decidiu acatar a posição de Adesão. Assim, “no dia 15 de agosto de
1823 foi oficialmente proclamada a Adesão do Pará à Independência do Brasil. Foi
um dia sem glória, foi um ato compulsório e formal, pregno de equívocos políticos”
(Di Paolo, 1990, p.107).
No entanto, a frustração com esse ato fez recrudescer a dinâmica constituinte
alterando a atitude das massas. No dia 15 de outubro de 1823 irrompeu um levante
militar, o qual foi imediatamente apoiado pelas massas, que estavam insatisfeitas
com o direcionamento político da província. As massas exigiam reformas radicais,
destituíram o comandante de armas, um representante da aristocracia portuguesa, e
com armas em punho aclamaram Batista Campos presidente da província que estava
foragido por seis meses em virtude de perseguições políticas. No dia 16 de outubro
42 “O governador das armas, apenas informado desta ocorrência, fez logo marchar para ali uma força (...) o qual só depois de quatro horas de renhido fogo pôde sufocar a rebelião (...). Estes foram sem demora conduzidos para a capital, onde os portugueses receberam a tropa em triunfo, conduzindo-a até ao quartel entre arcos de murtas e flores. Os presos foram recolhidos à cadeia pública, sendo no trânsito escarnecidos e apupados pelos partidários da metrópole, alguns dos quais chegaram até a expor ao público palmatórias e chicotes dependurados das janelas de suas casas, não só nesta ocasião, como no dia 14 de abril e np embarque dos condenados para Lisboa” (Raiol, 1970, pp.37-38). 43 A Junta Provisória que governava a Província do Grão-Pará informa que as Cortes de Lisboa haviam sido dissolvidas e Portugal voltava ao absolutismo. Tal fato exigia decisão quanto aos rumos do Grão-Pará, tendo em vista a gravidade da situação política em função dos fatos reais que impossibilitavam o retorno imediato da estrutura do Estado Português devido à mobilização popular. Assim, os portugueses que se encontravam no poder mantêm a farsa do constitucionalismo, aguardando ordens do novo Rei de Portugal. 44 Bispo e tio do Presidente anterior, pois este último havia sido convidado a assumir o cargo de Conselheiro de Estado em Lisboa. 45 Greenfell era comandante do brigue de guerra Maranhão e, a mando do chefe das forças armadas do imperador do Brasil, Dom Pedro I, aportou em Belém ameaçando de bloqueio a cidade, pelas esquadras do almirante Lord Cockrane, se a proposta de adesão não fosse aceita.
60
de 1823 Batista Campos assumiu a presidência do Grão-Pará; entretanto, não
correspondeu a expectativa das massas pois, para estabelecer a ordem na cidade,
solicitou ajuda do comandante Greenfell. O erro tático de Batista Campos46 – um
dos principais líderes das lutas cabanas – e a falta de articulação interna do
movimento, abriu espaço para que o aparato repressivo do Império brasileiro
desarmasse as massas e desencadeasse uma onda de violência e repressão que atingiu
até o próprio presidente, que permaneceu neste cargo por um único dia. E preso em
sua residência foi acusado de promover o levante militar e popular e o “amanhecer
do dia 17 de outubro se apresentava lúgubre” (Di Paolo, 1990, p.111).
A farsa montada pelos portugueses em termos da Adesão formal do Pará à
Independência conseguiu reduzir os reais partidários desse movimento à condição
de desordeiros em face do governo brasileiro. Com esse episódio, o Partido
Português retornava ao poder no dia 17 de outubro 1823 buscando desvitalizar o
poder constituinte e sua fonte produtiva. Essa manobra política levou à perseguição
justamente dos partidários da Independência brasileira e à obstrução do movimento
de liberação das forças populares. Assim, instalou-se um governo de terror que
passou a abafar o movimento aberto no campo constitucional, freando a marcha da
liberdade e fechando o ciclo das reformas constitucionalistas no Grão-Pará.
A restauração do poder é ativada pela “Guarda Cívico-Voluntária de
Cavalaria”. Sem o poder das armas cinco partidários da Independência foram
fuzilados em praça pública. O governo dirigido pela aristocracia portuguesa tratou
de tomar medidas em relação aos 256 paraenses, soldados e civis, presos no dia 16
de outubro de 1823, que se encontravam na cadeia pública. Segundo Raiol, (1970,
p.51) estes foram levados no dia 21 de outubro de 1823 para os porões do navio
brigue “Diligente” (conhecido como “Palhaço”), onde a falta de ar, de água, o calor
intenso e o envenenamento ocasionaram a morte de todos. Esse massacre resultou
de um ato intempestivo e equivocado de Batista Campos, que assume,
46 O presidente foi levado ao Largo do Palácio e colocado “à boca de uma peça de artilharia com o morrão aceso: nestas condições, o sacerdote-patriota paraense recebeu a intimação para confessar-se diante do tristemente famoso mercenário inglês. O clima de choque saturou-se: os companheiros de Junta de Batista Campos e outros cidadãos presentes conseguiram remover o cinismo de Grenfell. Graças a esta interferência, o cônego foi levado para o brigue ‘Maranhão’ e depois remetido para o Rio. Na capital brasileira ficou recolhido na Fortaleza de Santa Cruz até iniciar o processo e, pela sua brilhante defesa, não foi absolvido, mas nomeado Cavaleiro da Ordem de Cristo” (Di Paolo, 1990, p.111).
61
historicamente, o ônus de supressão sumária de seus companheiros de luta, pois o
“movimento revolucionário não estava monopolizado nas mãos de alguns líderes.
Havia várias frentes: intelectual, militar e popular. O objetivo era comum, mas as
estratégias eram diferentes. Havia mobilização, mas sem articulação” (Di Paolo,
p.110).
A partir desses acontecimentos ocorre um deslocamento do movimento
imanente ao desejo de liberdade no centro da dinâmica constituinte, fazendo
avançar as lutas constitutivas contra o Estado brasileiro em formação, pois a
repressão aos possíveis atos de levante popular, como tentativa de redução
constante do poder constituinte revertia em maior revolta, acelerando o movimento
de resistência e a luta armada.
A potência constituinte das massas foi capaz de enfrentar as barbaridades e
acelerar a disposição de luta que se estendia pelo interior da província. Na vila de
Cametá47 as massas resistiram ao governo despótico e em 21 de agosto de 1823
aderiram à Independência do Brasil. Esta vila “tornou-se aos poucos um centro de
refugiados políticos, uma base de defesa nativista, um baluarte da Independência em
pleno interior da Amazônia” (Di Paolo, 1990, p.113).
Em Belém os rumores do interior da província incomodavam o governo que,
em 30 de outubro de 1823, bombardeou Cametá48. No entanto, a resistência da
população levou essa operação ao fracasso, pois mesmo com o bloqueio da cidade,
muito tempo depois, em 19 de fevereiro de 1824, os enfrentamentos não haviam
cessado. Em 28 de março de 1824, através da resistência, os cametaenses tiveram
suas reivindicações aceitas pelo governo da província: a “legalização dos atos da
Câmara, regularização econômico-financeira, moratória de quatro anos para os
repatriados, demissão dos oficiais portugueses ou filoportugueses e defesa militar no
Tocantins” (idem, p.114).
47 Além desta Vila, outras localidade como: “Baião, Oueiras, Portel, Melgaço, Anapu, Igarape-Miri, Moju, Conde, Breja e Marajó, também resistiram a este governo. A região do Tocantis em pouco tempo estava em armas: o fogo revolucionário das tabas, semi-apagado debaixo das cinzas, aflorava” (Di Paolo, 1990, p.113). 48 “Assim foi premiada a 1ª cidade do interior da Amazônia a aderir a Independência do Brasil” (Di Paolo, 1990, p.114). Embora treze anos depois tenha se constituindo em baluarte da contra-revolução das massas cabanas.
62
Nesses conflitos, a alternância de poder foi identificada a partir de dois
blocos antagonistas: o primeiro relacionado à aristocracia portuguesa radicada no
Grão-Pará, que via na Independência a possibilidade de perder os privilégios da
cidadania portuguesa; o segundo constituído em maioria, pelos cabanos os quais
eram considerados majoritariamente cidadãos de segunda categoria. Para estes
últimos a Independência significava a liberdade de disporem de suas próprias vidas,
pois sobre eles recaíam todas as formas de subordinação e de trabalho forçado.
Nestas disputas, a força repressiva do Estado imperial brasileiro aparece como mais
um ator político-militar que busca incorporar o Grão-Pará ao seu território, sob a
dinâmica da subordinação.
Desta forma, o poder constituinte se expandiu nas bordas da repressão, pois
o resultado desse processo estava aquém do desejo de liberdade e de igualdade dos
nativos. Diferentemente do que os cabanos haviam projetado, a Independência do
Brasil não se traduziu em autonomia das massas, mas ao contrário, na continuidade
da subordinação sob a clivagem entre o conteúdo de velhas práticas colonialistas e
os privilégios de uma Corte recém inaugurada. A força do conteúdo constituinte que
lhe havia sido favorável questionou esse resultado e nem mesmo a violência brutal
contra esse movimento o pode conter.
Neste sentido, a construção do Estado brasileiro foi uma alternativa do
poder constituído, que destituiu as massas do centro da mutação, promovendo a
reforma do aparelho de poder e de dominação colonial, através de massacres e
extermínios de grandes contingentes de nativos. A usurpação do poder constituinte
das massas, assim como a instauração do terror como prática de manutenção do
privilégio foram instaurados como condição de sustentação do poder constituído
traduzido na máquina coercitiva do aparato estatal.
A percepção desse processo fez nascer as lutas populares contra o Estado
imperial brasileiro que havia se afirmado como um poder central em oposição ao
poder constituinte das massas: se a aristocracia portuguesa na colonização havia-lhes
negado a identidade nativa, a aristocracia brasileira desconhecia sua autonomia e
liberdade ao dar continuidade ao despotismo e privilégios da Corte portuguesa.
63
Neste contexto, as demandas iniciais em favor da Independência do Brasil
foram deslocadas pelas massas expandindo a própria liberdade das lutas
independentistas para promover a ultrapassagem das lutas constitucionalistas para a
ruptura da manutenção das formas atrozes de trabalho. O entendimento de que o
direito à liberdade (de independência do trabalho) só era possível com o movimento
nômade, levaram os cabanos à desobediência civil em face da negação do direito de
gerir seus próprios negócios, em suas práticas sociais modeladas pela pequena
produção, pela mobilidade espacial.
As lutas constitucionalistas de Portugal e as lutas pela Independência do
Brasil contribuíram paradoxalmente para rearticular e recombinar entre elas as
categorias sociais geradas no processo de colonização. Raiol, em seu livro “Motins
Políticos: ou história dos principais acontecimentos políticos da Província do Pará desde o ano de
1821 até 1835”, descreve 35 revoltas populares em antecipação à Cabanagem.
Nessas, as massas se impuseram como motor das mutações coloniais. Assim, é
impossível deslocar as lutas cabanas da linha de continuidade das formas de
resistência, fugas e deserções de índios, negros e pequenos produtores rurais em
face da limitação da mobilidade imposta pelos agentes da colonização.
O desejo da potência migrou, dessa maneira, da luta constitucional, jurídica e
jornalística·para a luta armada, isto é, a luta antijuridicista dos cabanos cuja
constituição material estava vinculada à produção de subsistência na unidade entre
economia, política e sociedade. Este é a alternativa cabana operada pela expansão da
liberdade das massas na imersão da vida na floresta. A não aceitação do papel
imposto aos cabanos levou-os a escaparem da juridicização de suas lutas. Nesse
processo, o poder constituinte transformou o governo, baseado na representação,
em ação direta das massas. Podemos dizer que a democracia cabana se fez contra a
transcendentalização do poder constituinte nos moldes do poder constituído.
Nesse âmbito, a Cabanagem – lutas sociais no Grão Pará dos anos
1835−1840 – pode ser identificada como a marcha da liberdade, uma vez que foi
produzida pelas camadas populares49: pequenos produtores rurais, índios, negros
escravos, libertos e forros, e escravos fugitivos. Essa camada social era composta 49 No interior de suas casas tinha apenas alguns pertences (rede, algum utensílio doméstico, fogão a lenha
etc.), no entanto, eles eram livres para circular pelas florestas e produzir sua própria condição de subsistência.
64
por diversas categorias de trabalhadores, livres e dependentes que criaram uma
forma original de cooperação entre os subordinados, contra a exploração e domínio.
A Cabanagem evidencia, assim, a centralidade da resistência, das fugas e deserções
em face das tentativas de redução da liberdade; trata-se de uma ação efetiva das
massas contra as mil formas de subordinação do trabalho e o falso princípio da
liberdade sob a tutela do Estado. As massas cabanas mostraram o contínuo
deslocamento do trabalho vivo e seu movimento concreto de mobilização, apesar
das rígidas regras de controle de sua mobilidade do trabalho nômade.
65
I.4 Entre a liberdade do selvagem e a liberdade selvagem A Cabanagem é a culminância da resistência que forjou o poder constituinte
das massas na marcha da liberdade. Quando se analisa minuciosamente sua potência
e sua estrutura imanente, isto é, as formas de rebeldia produzidas pela liberdade
selvagem, o movimento dos cabanos não pode ser pensado num espaço-tempo
fechado.
No Pará, a redução do projeto econômico-social de igualdade e liberdade que
agitou as massas nas lutas pela Independência do Brasil levou os cabanos a se
organizarem de modo independente, tendo em vista as insatisfações coletivas e a
necessidade de uma alternativa concreta de oposição ao status quo vigente,
acelerando, desta forma, a marcha da liberdade. Eles entenderam que as resistências
isoladas não eram capazes de superar as políticas de controle e fixação do trabalho,
mas somente a cooperação entre os subordinados e seus desejos de liberdade podia
organizar o combate contra os privilégios da aristocracia portuguesa.
Os cabanos são portadores de novos tempos. Eles levaram a crise do poder
ao limite. As lutas contínuas contra a violação do direito de mobilidade do trabalho
nômade dissolveram a ordem colonial. Ao mesmo tempo, a Cabanagem não foi
uma onda de anarquismo, desorganização social, guerra entre raças, lutas separatistas
e descontrole do Estado ou de uma “contenda entre grupos da elite local, sobre a
nomeação do presidente da província” (Fausto, 1996, p.166).
A Cabanagem resultou do antagonismo que fez emergir a desobediência civil
ao poder constituído. “Os cabanos, assumindo o pensamento revolucionário da
época, produziram uma verdadeira cultura revolucionária da Amazônia (Di Paolo, 1990,
p.377)” e, apesar da derrota, fizeram avançar a marcha da liberdade, quando
quebraram o domínio dos portugueses ao destruírem seus monopólios políticos e
econômicos. Eles os expulsaram do poder formando uma (embora efêmera)
república das massas. Na Cabanagem as lutas contra o trabalho dependente
encerraram as práticas sociais de aprisionamento por dívidas e as obrigações para
com as autoridades locais ou com os fazendeiros50, libertaram ainda os escravos que
50 Weinstein, p.59.
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participaram das lutas cabanas51. E, embora não tenham conseguido impor,
definitivamente, a república democrática como era o desejo das massas, suas lutas
são uma realidade inquestionável, à medida que abalaram a estrutura do poder
constituído daquela época e fizeram ecoar os gritos de liberdade do trabalho
dependente.
A “religião civil52” dos cabanos produziu um nativismo radical que
potencializou as lutas em face das aberrações produzidas na continuidade dos
privilégios estruturados pelo Estado imperial brasileiro. Ela criou a Cabanagem
como tempo de constituição das massas que potencializou a liberdade selvagem no
Pará. O desejo de liberdade aparece sob determinado pela “religião civil” que se
tornara o conteúdo político das massas, fazendo avançar as lutas dos cabanos sob
um misto de fé e liberdade no sonho da construção de um novo tempo em que a
liberdade era a única medida.
A Cabanagem portava assim um viés de messianismo que clamava pela
república, entendendo-a como espaço de liberdade em face da crise e instabilidade
do poder constituído dentro do processo de consolidação do capitalismo nas
metrópoles. As formas de vida locais negavam a máquina capitalista do Estado
como forma legítima de estruturação da sociedade, e indicavam a rearticulação das
instituições políticas e econômicas como continuidade das estruturas do passado,
isto é, de redução da liberdade do trabalho.
A Cabanagem põe em xeque as manobras do poder constituído. Os cabanos
negaram ainda a transcendentalização do poder: tomando as armas e assaltando o
poder na madrugada de 7 de janeiro de 1835, destituindo assim o governo de
Bernardo Lobo de Souza para instalar o poder constituinte das massas.
Os preparativos para essa ação inusitada vinham se acumulando desde as
lutas constitucionalistas, quando as idéias republicanas foram difundidas por todo o
interior da província pelo jornal Publicador Amazonenze53. Esse jornal era de
propriedade do padre Batista Campos que, embora foragido devido a perseguições
51 “De fato o último navio negreiro que aportou em Belém, trazendo escravos africanos para a Amazônia, foi antes da explosão revolucionária, em 1834” (Di Paolo, 1999, pp.377-378). 52 Ver Maquiavel, 1999 . 53 Com a perseguição a Batista Campos o jornal passou a ser editado por Lavor Papagaio, um ardoroso ativista político que já tinha sido expulso do Ceará e do Maranhão por difundir os ideais republicanos.
67
políticas, liderava o movimento de liberação das massas. A divulgação diária das
idéias de “revolta por meio de papéis incendiários, colocados à parede das ruas e
esquinas, espalhadas pelas praças e lugares de maior trânsito” (Raiol, 1970, p.495) e
que também eram difundidas pelo jornal Sentinela Maranhense na Guarita do Pará,
traziam como teor: as “liberdades pátrias, paladino sincero dos direitos do povo! (...)
Sem rei existe um povo. Sem povo não há nação: os brasileiros só querem Federal
constituição” (Idem, 496). Essas idéias se propagaram como rastilho de pólvora nas
vilas e lugarejos, provocando descontentamento em relação ao governo da
província.
As idéias libertárias e a crítica diária às autoridades provinciais vinham
incomodando o governo, e a afronta a Lobo de Souza, no dia 10 de outubro de
1834, passou a ser enfrentada como questão de guerra civil na província do Pará. O
estopim da Cabanagem foi aceso com a provocação de Lavor Papagaio ao
governador do Estado, ao gritar: “Viva a federação norte-americana brasileira!
Morra o malhado!54” (Raiol, 1970, p.501). Era a oportunidade esperada pelo o
governador para combater à propaganda política adversária. Segundo informantes
do governador, o número do jornal Sentinela que seria distribuído no dia 22 de
outubro de 1834 trazia uma convocação explicita à revolta popular, haja vista tratar-
se de uma matéria para lembrar a chacina no brigue Palhaço55.
Para coibir esse ato, no dia 13 de outubro foram decretadas a prisão de Lavor
Papagaio e uma devassa na casa de Batista Campos, onde funcionava o Sentinela. No
entanto, lá restavam apenas os exemplares do jornal, uma vez que Lavor Papagaio
não foi alcançado, pois havia fugido para a casa do Padre Joaquim Varjão Rolim,
cujo quintal dava passagem para o rio Guamá, de onde conseguiu escapar para a o
54 Essa mesma expressão já havia sido gritada no dia 04 de outubro por ocasião da divulgação do Ato Institucional aprovado no Rio de Janeiro, em 12 de agosto de 1834, onde se alterava a Constituição Federal outorgada por Dom Pedro I em 1824, devido às insatisfações populares decorrentes da concentração de poder. Essa ofensa foi o estopim dos fatos que passaram a caracterizar a Cabanagem, pois deu origem a uma portaria para a prisão de Lavor Papagaio, mas que acabou se estendendo para os demais agitadores das idéias republicanas no Pará. Na portaria o governador se refere à necessidade de parar a propaganda incendiária que difundia “princípios falsos, calúnias e ofensas ao governo supremo da nação, ao da província e até aos gabinetes estrangeiros. (...) [Como as do] Sentinela, publicado em 4 do corrente mês, concita diretamente aos povos à revolta contra o sistema jurado, por procurar exacerbar os ânimos dos habitantes da província, forçar a opinião e por meios revolucionários obter a decantada Federação Republica” (Raiol, 1970, p.501-502). 55 O jornal seria distribuído no dia 22 de outubro de 1834, data da Chacina de 256 cabanos que lutaram pela Independência do Brasil. Esse dia passou a ser lembrando anualmente pelos partidários das lutas republicanas.
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interior da província, precisamente, para a fazenda Concussão de Pedras56. O
fracasso dessa operação produziu os primeiros passos para a irrupção da
Cabanagem.
Cada derrota do governo para prender seus adversários políticos revertia em
revolta, gerando até mesmo a recusa de algumas autoridades em garantir a repressão
contra Lavor Papagaio, Batista Campos e Félix Malcher. A expedição para o
aprisionamento dos libertários deu início à marcha dos cabanos. As notícias da
expedição para a prisão dos refugiados chegaram à fazenda Concussão de Pedras, de
propriedade de Batista Campos, onde supostamente estavam os refugiados. Estes,
na realidade, se deslocavam de um lugar para outro, fazendo proliferar o germe da
revolta. No entanto, os primeiros combates entre os cabanos e as forças do governo
aconteceram durante a expedição destas à fazenda Acará-açu de propriedade de
Félix Malcher, onde encontravam-se os líderes republicanos. Sabedores da
perseguição partiram novamente para outros lugares, deixando para Eduardo
Angelim57 a responsabilidade de organizar a defesa a fazenda. Em face do iminente
confronto, Eduardo Angelim juntamente com seu irmão Geraldo Gavial recrutou
vários cabanos, recebendo apoio dos irmãos Vinagre (Francisco, Antonio e Miguel)
e do alferes João Pedro Gonçalves Campos, cabendo a este último o fornecimento
de armas. Assim, estava formado o núcleo central das lideranças que
protagonizaram a Cabanagem.
Organizados os preparativos para aguardar o momento do combate, os
cabanos Angelim, Antonio Vinagre e Geraldo Gavião resolveram atacar de surpresa
as forças do governador, derrotando-as no dia 22 de outubro de 193458. Uma nova
expedição foi organizada minuciosamente por James Inglis, mercenário inglês,
comandante da fragata de Guerra Defensora da Marinha Brasileira, que decidiu
reforçar o seu arsenal repressivo levando para o combate o brigue Cacique, a escuna
Bela Maria e três lanchões de artilharia; a infantaria foi organizada por Martinho
56 O mesmo havia fugido para o interior da província, precisamente para a fazenda Concussão de Pedras. Esta fazenda estava situada no município de Barcarena e era de propriedade de Batista Campos. No entanto, como se tratava de endereço conhecido, o mesmo foi refugiar na fazenda Acará-açu, de propriedade de Félix, um dos partidários das idéias republicanas, que também se encontrava na clandestinidade. E diante da situação de busca eles resolveram se refugiar em outras localidades. 57 Foreiro de Malcher. 58 O governador atribuiu o fracasso dessa operação ao seu secretário, que passava informações para os cabanos, destituindo-o do cargo por isso.
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Falcão, comandante superior da Guarda Nacional. De início eles tiveram
dificuldades para a montagem dessa expedição, pois “alguns se declararam sem
reservas infensos ao governo dizendo que não marchariam contra seus irmãos!”
(Raiol, 1970, p.517). Após o impasse da recusa, partia a expedição no dia 24 de
outubro de 1834, sendo no dia seguinte abordada por um grupo de 40 cabanos
comandados por Francisco Vinagre. Estes haviam se localizado na parte mais
estreita do rio e perguntaram para onde a esquadra estava se dirigindo, não obtendo
resposta descarregaram uma rajada de mosquetaria, uma vez que estavam protegidos
pelas matas. O resultado deste confronto foi dez feridos e a morte de três legalistas,
dentre estes o comandante da infantaria.
Para continuar a expedição veio o comandante Monte Rozo com mais
reforços militares. Atento para a situação, o Conselho Cabano descartou a
possibilidade de uma resistência armada, ao perceber que não tinha condições de
destruir a esquadrilha, decidindo assim, abandonar a fazenda de Félix Malcher. No
dia 28 de outubro, quando a expedição chegou àquele local e o encontrou deserto,
ateou fogo em toda a propriedade.
Todavia, a caçada aos fugitivos continuou pelos furos e rios da região e no
dia 3 de novembro conseguiram prender Malcher e enviá-lo para a Fortaleza da
Barra59. Os irmãos Angelim escaparam, enquanto outros cabanos foram presos e
levados para a cadeia comum, entre eles Raimundo Vinagre. As forças legalistas
continuaram a busca para prender Batista Campos, os irmãos Angelim e os irmãos
Vinagre. No entanto, esses cabanos eram conhecidos e respeitados pela população
local, que consideraram a perseguição aos mesmos uma injustiça, favorecendo a
fuga dos procurados e se revoltando contra o despotismo do presidente da
província. Até mesmo as bases da repressão iniciaram um processo de cooperação
através da “deserções de soldados e as demissões de oficiais, sobretudo no interior”
(Di Paolo, 1990, p.159). Em Abaetetuba mais de 500 soldados deixaram de
comparecer ao quartel e os demais declararam desobediência ao comandante. A
recusa dos soldados levou o presidente da província ao desespero, mandando
59 Ele seria assassinado por José Honorato da Silveira Miranda, juiz de paz do Acará, mas a interferência de Rozo impediu que isso acontecesse. A mesma sorte não teve Manoel Vinagre que vinha se aproximando com uma caça nos ombros e foi atingido em cheio.
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recrutar compulsória e indiscriminadamente todos os homens que se encontravam
na festa de Santa Luzia. Esse fato desencadeou uma grita geral contra o governo.
Para complicar ainda mais a situação do presidente da província, no dia 31 de
dezembro de 1834 morria Batista Campos60 na fazenda Boa Vista, fato que
contribuiu para antecipar o assalto de Belém pelos cabanos em arma. Com isso o
movimento antagonista tornava-se majoritariamente de pequenos produtores rurais.
Para Di Paolo (1990), não se tratava de uma luta racial, nem religiosa ou mesmo
nativista, pois nas bases cabanas constavam indivíduos dos mais diversos matizes. A
base da Cabanagem era composta de “lavradores, ou também foreiros e pescadores,
que moravam nas ‘cabanas’ na própria terra onde trabalhavam, sendo
economicamente explorados por uma estrutura muito parecida com os futuros
arrendamentos” (ibidem, p.162).
Os cabanos não aceitavam mais vender seus produtos a preços baixíssimos
para os comerciantes portugueses. A questão do trabalho começava a ganhar
sentido nesse movimento de luta contra o monopólio comercial e contra a política
de expropriação.
Mas as insatisfações com os portugueses da província ampliavam-se com a
cooperação dos escravos fugitivos, dos negros libertos, dos mestiços, dos índios,
dos funcionários públicos, além de setores progressistas do clero. Esses grupos
sociais criaram um arco de alianças, cujas bandeiras centravam-se na expulsão dos
portugueses, na implantação de um regime democrático, na libertação dos escravos
e nas reformas sociais.
A organização do Conselho Cabano ganhou corpo em 1º de janeiro de 1835,
quando Francisco e Antonio Vinagre61, os irmãos Angelim62, Padre Casemiro
Pereira de Souza63, João Miguel de Souza Leal Aranha64 e outros, reunindo-se no
60 A causa mortis oficial, foi a gangrena de uma espinha carnal, que Batista Campos cortou ao fazer a barba, quando estava de passagem na fazenda Amanajás; ele não pode receber o tratamento adequado devido ao fato de estar foragido. Uma outra versão é de que Batista Campos recusou-se a se entregar à escolta que se aproximava do sítio Miriteua, conseguiu fugir, mas se feriu e esse ferimento resultou na gangrena. 61 Lideranças fundamentais da Cabanagem. Francisco Vinagre tornou-se o 2º presidente cabano. 62 Juntamente com os irmãos Vinagre, eles constituíam as principais figuras do movimento cabano. Eduardo Angelim foi aclamado o 3º presidente cabano. 63 Secretário do movimento cabano e dos dois últimos presidentes cabanos. De sua pena eram escritos os proclames dos cabanos. 64 Filho de lavrador de São Miguel do Guamá, que estudou cinco anos nos Estados Unidos e de volta à Belém tornou-se guarda-livros do inglês Samuel Filips. Em sua estada naquele país pode ver de perto a experiência
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sítio Nazaré – de propriedade de João Pedro Gonçalves Campos65 – elaboraram o
plano de assalto à cidade. Localizado na Ilha das Onças, em frente à Belém, o sítio
Nazaré era um ponto estratégico, por facilitar o contato com a cidade e o interior66.
Na reunião os cabanos decidiram pela deposição do presidente da província e do
comandante das armas.
Outros locais estratégicos da cidade foram ocupados: o sítio denominado
Cacoalinho, localizado no subúrbio próximo à sede do governo de Belém e que fora
colocado à disposição dos cabanos por João Miguel Aranha; o sítio Murutucu de
propriedade dos Vinagres que ficava no outro extremo da cidade; uma casa antiga
de Tenreiro Aranha, situada na estrada Nazaré, no Largo da Memória e no Bacuri
onde funcionava o arraial de São Tomé. Desses pontos saíram as quatro colunas
cabanas que cercaram a cidade e marcharam, na madrugada de 7 de janeiro de 1835,
para assumir o poder67 e implementar a liberação sócieo-econômica dos nativos:
− A primeira coluna era comandada por Antonio Vinagre e veio do Murutucu para
ocupar o Quartel do Corpo de Caçadores e de Artilharia;
− A segunda coluna, comandada por João Miguel Aranha, veio do Cacoalinho e
seu objetivo era ocupar o palácio do governo;
− A terceira coluna foi comandada Angelim e veio do Bacuri para ajudar na
tomada do palácio de governo;
− Finalmente, a quarta coluna foi comandada por Geraldo Gavião e veio do Largo
da Memória. Tinha como alvo o ataque ao palácio do governo junto com João
Aranha que deveria tomar ainda o Arsenal.
A primeira coluna, além de tomar o Quartel a partir de uma ação relâmpago,
recebeu adesão dos soldados ali existentes. Assim, João Aranha mostrou que toda a
cidade estava em poder dos cabanos e negociou a vida de todos em troca da
democrática americana. Recebeu ajuda de seu irmão Germano Máximo de Souza Aranha, primeiro-tenente da Guarda Nacional e dos corpos municipais permanentes, que colocou ainda à disposição dos cabanos o sítio de sua propriedade. 65 Primo de Batista Campos. 66 O meio de transporte mais utilizados na província era o fluvial. 67 No dia 6 de janeiro todas as autoridades e famílias abastadas da cidade estavam presentes no Teatro Providência. No momento da apresentação do espetáculo, o presidente da província foi informado que havia preparativos de revoltas e mandou o comandante da guarda municipal verificar a denúncia e tomar as providências. Este movimento foi detectado por membros dos cabanos que chegaram antes e avisaram João Miguel para dispersar seu grupo.
72
rendição. Cada coluna se dividia em grupos de assalto com tarefas específicas e suas
armas eram mosquetes e espadas. Com o sucesso no assalto e controle da cidade, os
cabanos içaram a flâmula vermelha no Forte do Castelo, como símbolo da luta
popular contra o despotismo.
A tomada do poder pelo “exército cabano” concretizou-se simbolicamente
quando, já clareando o dia, o presidente da província68 Lobo de Souza, ao subir as
escadarias do palácio, encontrou-se com João Miguel Aranha que gritou: “Aí está o
malhado!” Neste instante, Domingos Onça deu-lhe um tiro mortal. Era o fim do
domínio português na província do Pará.
Com a tomada do poder restava o problema de quem assumiria o governo.
João Aranha foi empossado interinamente pelo Conselho Cabano até que se
decidissem pela aclamação de Félix Antonio Clemente Malcher. Assim, o coronel
José Bernardino Nunes foi enviado para libertar Malcher (que se encontrava
prisioneiro na Fortaleza da Barra) e nomeá-lo primeiro presidente pelo Conselho
Cabano69.
O programa de governo dos cabanos consagrado na ata de posse de Félix
Malcher tinha como teor a eliminação da hegemonia portuguesa; a promoção da
liberdade local e a autonomia do Pará até a maioridade de Dom Pedro II. Na
composição do governo encontravam-se: João Miguel Aranha (secretário),
Francisco Vinagre (Comandante das Armas), João Pedro Gonçalves Campos
(ajudante de ordens), Germano Aranha (inspetor do Arsenal de Marinha), Caetano
Malcher (juiz de Alfândega) e Antonio Vinagre (Comandante da Guarda Nacional
da capital).
Ao tomar posse, Félix Malcher iniciou uma política de isolamento, criando
atrito com as lideranças cabanas. Por esse motivo, em 12 de janeiro de 1835,
conclamou a massa de cabanos a deixarem suas armas e voltarem para os campos,
68 Os cabanos seguiram para a casa de Maria Amália, viúva portuguesa e amante do presidente. Ao perceber o movimento dos cabanos, Lobo de Souza fugiu, passando de casa em casa sem saber o que fazer, até que resolveu voltar ao palácio do governo, onde teria fim trágico. 69 Às oito horas da manhã o Dr. Gentil Augusto de Carvalho, juiz de direito, convocou uma reunião com autoridades civis, militares e eclesiásticas para providenciar o protocolo de posse e às onze horas o juiz de paz José dos Passos Travassos apresentou Malcher para a massa que se encontrava reunida em frente ao palácio e, com a concordância de todos, foi aclamado presidente da província. Cinco dias após, ele prestou juramento à Câmara Municipal.
73
medida que foi justificada pela necessidade de cuidarem da indústria e do comércio
(Raiol, 1970, p.556). Este apelo, entretanto, não foi aceito, uma vez que os cabanos
perceberam que o presidente estava querendo se desviar das bases cabanas que lhe
haviam lhe dado a presidência da província.
Malcher foi se isolando das bases de seu governo e passou a reunir-se apenas
com José Eduardo Wandenkolk (comandante do porto), os irmãos Aranhas e o
alferes Gonçalves Campos. Sua atitude era de negação do poder constituinte das
massas, o que passou a gerar impasse interno em seu governo. Os cabanos não
aceitavam essa política discriminatória. Com isso, Lavor Papagaio iniciou um
questionamento do governo Malcher o qual mandou deportá-lo para o Maranhão
junto com seus ajudantes Jacarecanga e Francisco Silva.
As ações isolacionistas de Malcher ficaram mais evidentes quando ele
mandou invadir a casa do vice-cônsul francês Diniz Crouan sem autorização de
Francisco Vinagre (comandante das armas), provocando, além do desrespeito a seu
comandante, um problema diplomático internacional. Os conflitos entre Malcher e
Francisco Vinagre foram aumentando até que no dia 20 de janeiro de 1835 o
primeiro ordenou a prisão do segundo. Francisco Vinagre foi avisado a tempo e,
juntando sua tropa com a de Antonio Vinagre marchou para o palácio do governo
para enfrentar a situação. No entanto, a interferência de Eduardo Angelim evitou o
embate.
Em fevereiro, apesar da deportação de Lavor Papagaio, os conflitos
ressurgiram e os pasquins de oposição ao presidente não lhe davam trégua. Malcher
atribuiu as críticas a suas ações a Eduardo Angelim, abrindo mais uma área interna
de conflito. Outras disputas também dificultaram a continuidade do governo de
Malcher, como a tentativa de destituição do comandante das Armas, Francisco
Vinagre que, não aceitando a situação, convocou o exército cabano para marchar até
o palácio. A ordem dada pelo presidente era de atear fogo nos rebeldes, mas o chefe
da guarda não a acatou, já que era irmão do comandante rebelado. Esta
desobediência levou ao confronto físico entre Francisco Vinagre e Francisco
Malcher, apartado por Antonio Vinagre e Eduardo Angelim. Após este incidente
74
Antonio Vinagre deixou a guarda do palácio e a maioria de seus comandados o
seguiram.
Iniciava-se dessa maneira a primeira defecção no governo cabano: os
conflitos e dissonâncias internas estavam destruindo o 1º governo e evidenciando
tendências divergentes no interior do bloco de alianças que havia garantido o
comando da província. As defecções continuaram até que, em 19 de fevereiro,
Eduardo Angelim e seus irmãos Geraldo e Manoel Nogueira receberam ordem de
prisão. Esta ordem também não foi aceita, os insurretos exigindo saber do
presidente do que estavam sendo acusados. Eduardo Angelim acusava Malcher de
déspota e, mais uma vez, o presidente reagiu desembainhando sua espada. Manoel
Vinagre e outros presentes conseguiram mais uma vez evitar o confronto físico
entre os mesmos. Malcher ordenou que sua guarda matasse Eduardo Angelim, que
se encontrava preso. Novamente os soldados não atenderam a ordem do presidente,
levando Angelim ileso para o brigue Cacique. No trajeto, Eduardo Angelim
convocou a massa a depor o presidente.
Com a segunda baixa no comando dos cabanos, Malcher foi pessoalmente ao
Quartel para recrutar pessoal e fazer novas prisões. Seu objetivo era, dentre outras
coisas, prender Geraldo Nogueira e os irmãos Vinagre. Francisco Vinagre, avisado
da prisão de Eduardo Angelim, foi procurar o presidente, mas no caminho ficou
sabendo que Malcher tinha ido justamente ao Quartel buscar reforços para efetuar
novas prisões, inclusive a sua. Francisco Vinagre retornou então imediatamente ao
Quartel, chegando a tempo de deter e interpelar o presidente, o qual retrucou
afirmando ser a autoridade máxima da província e que por esse motivo não
precisava dar satisfação a Francisco Vinagre. Contudo, os soldados atenderam o
apelo de Francisco Vinagre e se recolherem, enquanto Malcher retornou ao palácio
para juntar soldados de sua confiança para prender o comandante de Armas.
Malcher e João Aranha haviam fechado o Arsenal de Guerra para que
Francisco Vinagre não conseguisse entrar e distribuir armas para o exército cabano,
mas a força ali estabelecida, que havia anteriormente prendido Eduardo Angelim,
aderiu ao grupo de Vinagre, e fez prisioneiro seu comandante. Com essa operação, o
presidente ficou completamente isolado e, no dia 19 de fevereiro de 1835, foi
75
deposto pelo “exército cabano”. A guarda no palácio foi desertando, restando ao
presidente deposto, além de João Miguel Aranha e João Pedro Gonçalves Campos,
apenas a esquadra da Armada Brasileira, a partir da qual Malcher “ordenou um
recrutamento forçado por todos os navios mercantes e pequenas embarcações;
também os estrangeiros foram obrigados a pegar em armas! (...) Malcher à Esquadra
Imperial: o bombardeio de Belém” (Di Paolo, 1990, p.177).
O ataque à cidade por três dias consecutivos repercutiu em favor de Vinagre,
que havia assumido provisoriamente a presidência da província, nomeando como
secretário Padre Casimiro Pereira de Souza, juiz de paz do terceiro distrito de
Belém.
No dia 21 de fevereiro o Conselho da Armada reconhecia a mudança de
governo, exigindo que o deputado mais votado para o Conselho de Governo fosse
empossado presidente da província. Mas nesse mesmo dia, às 11:00, um amplo
Conselho Popular, em reunião no palácio do governo, decidiu aclamar Francisco
Vinagre como o 2º presidente dos cabanos, cabendo a ele também o comando das
armas, enquanto Malcher foi demitido devido às atrocidades cometidas (Raiol, 1970,
p.580). Assim, as decisões do Conselho Cabano foram encaminhadas à Armada pelo
capitão da guarda nacional Bento Manoel de Oliveira70, junto com as exigências de
libertar Geraldo Nogueira e de mandar Malcher de volta para a Fortaleza da Barra,
de onde havia saído para assumir o governo. Mas, quando estava a caminho da
Fortaleza, Malcher foi interceptado por Quintiliano Barbosa, que lhe desferiu um
tiro mortal71.
Francisco Vinagre72 ao tomar posse como 2º presidente cabano tratou de
organizar seu governo, composto pelo seguinte quadro: Eduardo Angelim
(comandante dos municipais permanentes e a 1ª companhia), Antonio Vinagre
(comandante do Forte do Castelo), Guilherme Ribeiro (inspetor do Arsenal de
Marinha) e Pedro Figueiredo (africano, assumiu o comando do Arsenal de Guerra).
Ao assumir o governo, em 22 de fevereiro de 1835, explicou os motivos da
70 Segundo Di Paolo, um dos indutores dos conflitos entre os cabanos foi o Alm. Wandenkolk, que se tornou consultor efetivo do 1º governo cabano. Wandenkolk buscou mais uma vez desarticular as bases cabanas do 2º governo mas, como esta era homogênea, estrategicamente voltou-se para a Câmara Municipal. 71 No mesmo dia ele foi enterrado na Igreja do Carmo. 72 Francisco Vinagre era um “proprietário-lavrador”.
76
destituição de Malcher. E na reunião do dia 23 de fevereiro, o Conselho Cabano
deliberou pelo desarmamento de todos aqueles que não tivessem mandato popular
para fazer uso das armas.
No dia 27, mais uma vez Vinagre, ao reconhecer que a fonte de seu poder
vinha das ruas e matas, publicou um relato sobre os 45 dias do governo Malcher.
Como novo presidente afirmou lutar contras as “barreiras para construir uma nova
sociedade baseada na ‘promoção dos interesses dos lavradores com justiça e
equidade’” (Di Paolo, 1990, p.183), pois estava a serviço deles. E na ata da reunião
do Conselho de Cidadãos havia sido determinado que Vinagre assumisse a
presidência até que a Regência encaminhasse um substituto para Lobo de Souza.
Assim, ele prestou juramento na Câmara Municipal no dia 2 de março e divulgou
um proclame aos habitantes do Alto e Baixo Amazonas.:
O “país Amazonas não era tão querido, mas que se tornaria feliz e livre, sob a união
e a lealdade de seus naturais, mostrando ao mundo e (...) em todas as épocas, que
não ama nem teme a escravidão e que só preza a paz com a liberdade” (Raiol, 1990,
p.625). Neste documento Francisco Vinagre comprometia-se a “salvar as instituições
liberais e fazer impossível a volta do despotismo” (idem). Esse proclame evidencia a
marcha da liberdade cabana!
A capacidade de governo de Vinagre foi testada quando houve a ameaça de
dois navios franceses de guerra que haviam sido enviados à província devido ao
incidente com o cônsul francês provocado por Malcher. Vinagre resolveu a tensão
afirmando que aquele tinha sido um ato isolado do governo anterior que tinha sido
solucionado com a destituição do presidente, o qual havia pago com a própria vida
por seus atos despóticos.
A segundadificuldadedo governo de Vinagre decorreu do não
reconhecimento do governo cabano pela marinha imperial73, a qual criou sérios
problemas para sua gestão. No dia 25 de março chegou informação ao Conselho
Cabano sobre uma expedição punitiva contra a província. No dia 27 de março
deliberou-se que Vinagre deveria evitar hostilidades, mas que, em caso de agressão,
poderia empregar todos os meios para defender a cidade. Outro problema
73 Nesse movimento estava Wandenkolke que pregava a não obediência ao presidente cabano.
77
enfrentado por este presidente, está associado à ingerência da Marinha Imperial no
processo eleitoral para a Regente do Império brasileiro (sendo o mais votado na
província Manoel Carvalho de Paes – senador) e para a Assembléia provincial (o
mais votado foi Ângelo Custódio Correa74), que deveria assumir a vice-presidente da
província, segundo a lei imperial de 3 de outubro de 1834.
A expedição de Pedro Cunha75 à Belém acabou gerando uma desestabilização
de dimensões estruturais para quebrar a governabilidade dos cabanos. No dia 18 de
abril de 1835 Cunha enviou ofício afirmando ter vindo “pacificar os ânimos e fazer
viver o império da lei e os direitos individuais” (Di Paolo, 1990, p.202). O
presidente cabano respondeu que agradecia pela disposição em ajudar, mas
dispensava a ajuda, uma vez que a província vivia em tranqüilidade. Assim,
determinou que Pedro da Cunha se retirasse com seus navios, criticando-o por fazer
despontar a força armada em solo paraense sem que a mesma tivesse sido
demandada pela localidade ou pela Regência.
O comandante, no entanto, agindo de modo contrário à orientação dada por
Francisco Vinagre, assumiu a tarefa de garantir a posse de Ângelo Custodio Correa
na vice-presidência, reconhecendo-o como única autoridade legal na província.
Visando desestabilizar o governo cabano, Pedro Cunha, em 20 de abril de 1835,
solicitou o apoio da Câmara Municipal de Cametá, vila natal de Ângelo Custódio,
para garantir sua posse, ao mesmo tempo em que trocava correspondência com
Francisco Vinagre como estratagema em face da tensão e de um possível combate.
Mas a intermediação do comandante da Marinha Guilherme Cipriano Ribeiro
(integrado ao governo cabano) forçou uma trégua e promoveu o encontro entre
Francisco Vinagre e Pedro Cunha. Apesar disso, após negociações que duraram 20
dias, Pedro Cunha continuou sua articulação para empossar Ângelo Custódio. Para
complicar a situação entre as partes, uma patrulha de cabanos impediu que uma
74 “Ângelo Custódio Correia (...) aos dezessete anos seguira para a França e em Paris recebeu o grau de bacharel em direito. Assistiu com entusiasmo a última fase da revolução francesa e acompanhou com vivo interesse a revolução do Porto e o drama político do Brasil durante a independência. Seu pai, negociante português, tinha sido vítima do primeiro movimento cabano de 23 de abril de 1823 (...) fora fuzilado à porta da igreja no dia marcado para o casamento de sua filha. Esse trauma familiar e os interesses geo-políticos tocantinos apagaram no jovem advogado o ardor revolucionário, vendo o movimento cabano exclusivamente dentro dos parâmetros policiais” (Di Paolo, 1990, p.203). 75 Ele era um oficial enviado pelo Governador do Maranhão não tendo, portanto, ordem da Regência e, tampouco, havia sido solicitado pelo governo cabano.
78
fragata, que trazia um ofício para Vinagre, atracasse. Embora o presidente cabano
tivesse punido seus comandados, Pedro Cunha explorou politicamente esse
incidente.
A tensão aumentava e Francisco Vinagre, em 24 de abril de 1835,
respondendo a última correspondência de Pedro Cunha, ironizava o comandante,
dizendo-se admirado pelo fato de que justamente quem alegava defender a lei e
ordem da nação estivesse preparando a posse de Ângelo Custódio sem a
participação do presidente. No documento Vinagre dizia ainda que Pedro Cunha
tivesse consciência da gravidade do problema que estavam criando sob o risco de
“cooperar para que o Pará se não elimine das províncias do Brasil” (Raiol, 1970,
p.648). Aparece no documento a ameaça de separação do Pará do território
brasileiro. A resposta veio no dia 25 de abril de 1835, sob a forma de uma carta
particular que sugeria que Vinagre rasgasse o ofício anterior e que não cogitasse a
separação da província.
Desconsiderando esta última correspondência, Vinagre autorizou a vinda de
Ângelo Custódio no dia 26 de abril de 1835, embora continuasse cuidando dos
preparativos para o confronto, o que também estava sendo feito por Pedro Cunha.
Este último mandou, no dia 28 de abril de 1835, que os navios de sua esquadra
estivessem em prontidão para iniciar o bombardeio à Belém. No dia 30 de abril de
1835 Cunha enviou por carta à Câmara de Cametá um plano de ataque à Belém, mas
a correspondência foi interceptada pelos cabanos que entenderam a farsa da
legalidade e que a contra-revolução estava organizada76. Pedro Cunha informou aos
cônsules e aos comandantes de navios estrangeiros o iminente ataque aos
“assassinos”, pois “se tivéssemos cá o vice-presidente, já teríamos feito a contra-
revolução” (Di Paolo, 1990, p.209). A crise estava evidente; a população
amedrontada buscava refúgio no interior da província e a elite na esquadra de Pedro
Cunha. Para complicar mais a situação e desestabilizar o governo cabano, em 1º de
maio Wandenkolke espalhou a notícia de que Francisco Vinagre ia fugir de Belém e
76 O comandante da esquadra, na correspondência interceptada, afirmava que Ângelo Custódio era o único cidadão capaz de satisfazer a expectativa pública, pois “a crise que os indignos filhos da pátria nos preparam está iminente e eu conservo minha gente a postos com morrões acesos, e uma outra com gente pronta para desembarcar” (Raiol, 1970, p.663). Além da cidade de Cametá, também a cidade de Abaetetuba estava alinhada na colaboração a Pedro Cunha.
79
entregar a cidade às forças inimigas. A resposta do presidente veio em forma de
proclame: “será mais fácil retrocederam as águas do Guajará do que eu deixar de
trabalhar a prol de vossa felicidade e interesses (...), e como tal de nenhum modo
poderei sobreviver à vossa ruína e felicidades” (Raiol, 1970, p.657).
A assembléia provincial para a posse dos deputados estava marcada para o
dia 10 de maio de 1835 e Ângelo Custódio chegou no dia 9 de maio de 1835,
ficando a bordo da esquadra. Mas quando foi convidado a desembarcar para
assumir o governo da província, Custódio exigiu que os cabanos depusessem suas
armas, os quais responderam imediatamente, pois temiam represálias, como havia
acontecido com o episódio do brigue “Palhaço”, em 1823.
Ângelo Custódio, face a decisão dos cabanos, planejou o desembarque com o
apoio da Marinha na madrugada do dia 12 de maio de 1835. Neste ínterim os
cabanos deliberaram não mais entregar o poder a Ângelo Custódio e convidaram o
terceiro colocado dos eleitos para assumir a presidência, já que o segundo da lista
não se encontrava na capital. No dia 12 de maio de 1835 os cabanos içaram sua
bandeira vermelha no Forte do Castelo e lançaram fogo contra a Armada,
recebendo artilharia de todos os navios; após duas horas de fogo cruzado, não havia
mais sinal dos cabanos. Diante do silêncio, os “contra revolucionários”
desembarcaram, dando início a luta corpo a corpo. Os cabanos conseguiram se
recuperar e saíram vitoriosos. A coluna comandada por Eduardo Angelim, junto
com outras duas, conseguiu avançar sobre as forças contra-revolucionárias,
prejudicadas pelas deserções. Para Di Paolo (1990), esse fato devia-se ao exercício
colegiado do poder dos cabanos que era reconhecido politicamente por seu grupo
social.
Ângelo Custódio, com o fracasso de sua força contra revolucionária no
assalto à cidade de Belém, estabeleceu seu governo paralelo em 14 de maio de 1835
na vila de Cametá, prestando juramento na Câmara Municipal no dia 22 de maio de
1835. No dia 29 de maio de 1835 determinou o bloqueio continental de Belém77,
iniciando assim uma política de asfixia aos cabanos por falta de abastecimento de
77 Com a fragata Imperatriz em frente à Fortaleza da Barra (foz do rio Maguari) a corveta Defensora, na confluência do rio Moju com o rio Guamá a brigue Cacique e na Pedreira a corveta Bela Maria (Di Paolo, p.1990).
80
produtos e gêneros alimentícios na capital, os quais foram se tornando escassos na
cidade. Para solucionar a situação, Francisco Vinagre ordenou o transporte de todo
o gado das fazendas nacionais, situados na Ilha do Marajó, para a capital, a fim de
suprir a falta de carne. Sem recursos orçamentários para arcar com as despesas
adicionais “Vinagre mandava trocar na tesouraria da fazenda a moeda de cobre cuja
circulação autorizava por papel moeda provincial, e assim supria as necessidades
mais urgentes da situação” (Raiol, 1970, p.718).
A fragilidade dos cabanos devido à dificuldade para organizar um novo
sistema econômico-social tornou-se evidente, apesar da hegemonia exercida pela
soberania coletiva. Com isso os cabanos tornaram-se incapazes de estabelecer uma
base produtiva regular que possibilitasse a independência econômico-social da
Amazônia. Para complicar a situação, ao ouvir a notícia de que a Regência estava
encaminhando um presidente, os comerciantes passaram a rejeitar as transações
comerciais com o governo cabano além de recusar “a moeda de cobre ponçada na
Tesouraria desta província, no valor correspondente ao peso legal” (ibidem, p.718).
Para sanar o problema, em 11 de junho de 1835 Francisco Vinagre ordenou à
Câmara que publicasse edital para punir com multa de cinqüenta mil-réis qualquer
nacional ou estrangeiro que rejeitasse aquela moeda, além determinar a prisão dos
mesmos por um prazo de oito dias.
Para a transição do governo cabano, o Ministro de Guerra José Feliz Pereira
de Burgos Corte, o qual já havia sido presidente da província por duas vezes
(1825/28 e 1830/31), teve o apoio de Dom Romualdo de Seixas78. Convocado na
Bahia para contribuir com a “pacificação” da província, Dom Romualdo escreveu
uma pastoral com data de 1º de maio de 1835, que foi divulgada na Amazônia e em
todo o Brasil, invocando a religiosidade do povo e conclamando à deposição das
armas e à obediência ao governo supremo da nação, a fim de evitar a guerra civil.
Com tais credenciais o Marechal Jorge Rodrigues, que havia sido nomeado em 1º de
abril de 1835 novo presidente e comandante das armas, chegou a Belém somente no
dia 20 de junho daquele ano, sendo saudado pelos cabanos com 21 tiros de canhão e
78 Dom Romualdo de Souza Coelho era paraense e exercia a função de Primaz do Brasil, com influência na cidade e na província, pois era sobrinho do bispo de Belém e havia participado do 1º governo constitucionalista (1821/22) e do governo que montou a farsa nacionalista em 1º de março de 1823.
81
com a bandeira brasileira içada (o Conselho Cabano reunido havia decidido
renunciar ao governo e convidar o novo presidente a desembarcar). Entretanto, ao
exigir a deposição de armas dos cabanos levantaram-se suspeitas de que o novo
presidente faria ressuscitar as comissões militares79. Francisco Vinagre fez então sua
última proclamação aos cabanos, solicitando a deposição de armas e divulgando a
pastoral.
Com isso instalava-se uma crise interna na base cabana devido à pressão que
vinha do clero, da legalidade e dos próprios cabanos que não desejavam entregar o
poder. O Padre Casimiro, secretário de Vinagre, deixou sua função no dia 23 de
junho de 1835, por discordar da possibilidade de continuidade da luta, embora as
discussões acabassem resultando na posição de entrega do governo. A partir de
então os nomes de Francisco Vinagre, Eduardo Angelim, Padre Casemiro que
retornou a seu cargo, o juiz de paz e outros cidadãos foram escolhidos para negociar
as bases da transição de governo.
A exigência unânime dos cabanos era de que permanecessem com as armas
até que pudessem perceber as intenções do novo presidente. Uma vez aceita a
proposta dos cabanos, a data do desembarque foi marcada para o dia 25. O novo
presidente colocou como condição que Vinagre o fosse buscar pessoalmente, no
que foi atendido. A comitiva do novo presidente era composta de 460 pessoas, as
quais passaram a substituir as funções públicas que haviam sido exercidas pelas
forças cabanas na tarde daquele mesmo dia. À noite o marechal Manoel Jorge
Rodrigues reuniu-se com algumas lideranças cabanas para que estas lhe ajudassem a
manter a ordem pública; no 26 de junho de 1935 o marechal Rodrigues toma posse
na Câmara Municipal.
A tática do presidente foi apoiar o retorno dos cabanos aos seus lugarejos.
Por esse motivo distribuiu dinheiro para facilitar o regresso dos cabanos ao campo,
visando reestruturar a economia da província, implantando uma política neo-
colonialista. Ele criou o corpo intitulado Voluntários de Pedro II, formado
basicamente por portugueses, cuja finalidade era a manter a legalidade e o
desarmamento dos cabanos.
79 Tribunais sumários de condenação à forca utilizada contra os líderes dos movimentos pernambucanos de 1817 e 1824.
82
Após os primeiros impactos da transição de governo dos cabanos para o
representante do Império brasileiro, o novo presidente iniciou sua política anti-
cabana, resolvendo, de imediato, expulsar os cabanos da capital. Assim, no dia 27 de
junho de 1835 ordenou prisões sumárias das lideranças do movimento, isto é,
Francisco Vinagre, Eduardo Angelim e seus irmãos, além dos demais líderes
cabanos. John Taylor, inglês mercenário e comandante das armas, prendeu mais de
duzentos cabanos, entre eles Francisco Vinagre e João Leal Aranha (que havia sido
secretário de Malcher), proibindo ainda qualquer forma de associação dos nativos –
apenas os portugueses tinham o direito se reunir.
Antonio Vinagre e Eduardo Angelim, entretanto, inconformados com a
renúncia do governo cabano, deixaram a cidade na noite do dia 26 de junho de
1835, levando consigo suas armas80, já que só aceitariam entregar as armas se
houvesse anistia de todos os cabanos. Assim, refugiaram-se no interior província,
embora continuassem acompanhando os acontecimentos na cidade; logo que
souberam da prisão de Francisco Vinagre reorganizaram o “exército cabano”.
Primeiro enviaram mensageiros a diversos rios da região (Guamá, Acará, Capim,
Mojú) e seus afluentes, para mobilização dos cabanos. Essa campanha se espalhou
ainda por Conde, Marajó, Beja, Barcarena, Muaná, Caraparu, Guajará, Ourém,
Benfica, Colares. Já no dia 29 de junho de 1835 o “exército cabano” estava formado.
Esse exército se reuniu na vila do Conde sob o comando de Eduardo Angelim para
avaliar a ação do governo e denunciar a prisão de Francisco Vinagre.
Deste encontro resultou um proclame revolucionário, pois os cabanos
achavam inadmissível que a província fosse comandada por batalhões de
estrangeiros, enquanto os verdadeiros patriotas eram presos nos porões dos navios
de Guerra. Lamentavam terem favorecido a posse do presidente que pedia a cabeça
dos demais cabanos e, em face disso, Eduardo Angelim apela: “briosos brasileiros,
comprometidos na revolução (...), amados patrícios meus, soldados da liberdade (...)
80 No interior, os cabanos contrários à política da capital, sob a liderança de Bento Ferrão, tomaram Vigia, no final de maio. Mas no dia 6 de junho foram surpreendidos por um ataque surpresa dos legalistas que inicialmente haviam simulado aceitar os cabanos para depois armarem um assalto para a retomada do comando da vila. Os cabanos, ao serem informados da prisão de Bento Ferrão, arquitetaram um plano para sua libertação. Os vigienses, informados da aproximação dos cabanos resolveram atacar primeiro, mas os cabanos conseguiram levar vantagem e retomar a vila, agora sob o comando de Portinho e Bonifácio Roque. Neste confronto morreram 60 legalistas e dezessete cabanos.
83
a Pátria geme ao peso da mais vil escravidão!” (Raiol, 1970, p.815) e mais exortava
os cabanos a correr “sem perda de tempo às armas, que abandonem os campos, as
suas famílias, o seu lar: unam-se a mim (...), voemos se tanto for possível para
libertar nossa pátria do jugo aviltante” (idem). Os paraenses são conclamados a
provar que não eram escravos e sim homens livres, capazes de se bater contra o
presidente da província e o comandante das armas.
O presidente mandou vasculhar todas as casas e comércios considerados
suspeitos, com o objetivo de desarmar a população. Ele pagava por armas
encontradas e ameaçava que, em casos de reincidência, os infratores seriam punidos
com pena de guerra.
A campanha anti-cabana difundia que os cabanos eram “monstros
anarquistas” que haviam fugido para espalhar o terror e como resposta a essa
situação Antonio Vinagre enviou um ultimato ao presidente em 2 de agosto de
1835. Sua carta denunciava a quebra do acordo realizado no momento da transição
de governo e solicitava a libertação de seu irmão (Francisco Vinagre) e dos demais
presos políticos. Ao mesmo tempo responsabilizava-o por prejuízos, perdas e danos
à província, caso tivesse que marchar sobre a cidade com o exército de 4.000 mil
cabanos.
O Marechal, entendendo a gravidade da crise, reuniu no dia 7 de agosto de
1835 no palácio do governo um conselho formado por comandantes de navios de
guerra nacionais e estrangeiros, comandantes de batalha e voluntários, além de
agentes consulares. O resultado dessa reunião foi a rejeição da proposta dos cabanos
e a organização da defesa da cidade. O presidente também escreveu ao ministro de
guerra, informando a crise na província e sua possível derrota. Ele esperava que as
forças de apoio solicitadas ao Maranhão, Ceará e Pernambuco chegassem a tempo.
Para desespero do presidente da província, o padre Prudêncio, que
comandava as forças contra-revolucionárias de Cametá, informava ainda no dia 7 de
agosto de 1836 que os cabanos estavam acampados na vila do Conde sob o
comando de Eduardo e Geraldo Angelim, o padre Casimiro e um batalhão de
homens armados (entre eles encontravam-se “mamelucos, cafuzos e tapuios”).
Enquanto Antonio Vinagre encontrava-se com o seu “exército” na margem direita
84
do rio Moju, precisamente na Fazenda Real de Itaboca (de propriedade do lavrador
Antonio Siqueira Queiros, comandante do “exército cabano”), enquanto Eduardo
Angelim passava à condição de subcomandante. Criaram ainda uma estrutura de
suboficiais e uniram-se num só corpo ao tingirem suas camisas e calças com cascas
de macuxi, tornando-as vermelhas.
Ainda nessa convenção foi traçado o plano para o 2º segundo assalto à
Belém. Desta vez o “exército cabano” dividiu-se em três colunas: a primeira,
comandada por Antonio Vinagre, tomaria o Arsenal de guerra e os pontos
fortificados do bairro da Campina; a segunda, sob a responsabilidade de Eduardo
Angelim, atacaria o palácio do governo e, finalmente, a terceira, sob a organização
de Geraldo Nogueira, avançaria sobre o Arsenal de marinha e as fortalezas do bairro
da cidade. Para cada coluna os cabanos haviam organizado uma força reserva e
assim saíram em batelões para acampar na fazenda Murutucu, de onde partiram, no
dia 14 de agosto de 1835, em direção a Nazaré, numa tentativa de libertação dos
presos sem o emprego do exército cabano.
Na madrugada do dia 14 de agosto de 1835, ainda em Murutucu, os cabanos
acampados antes de iniciar sua nova marcha da liberdade, ouviram o proclame de
Antonio Vinagre: “defensores das liberdades pátrias! Aproximam-se os momentos e
as horas que temos que nos medir as nossas forças com os vândalos, que se
intitulam legais, quando eles não são mais do que vis escravos do poder que
servem!” (Raiol, 1970, p.832).
O nativismo dos cabanos mais uma vez potencializava as lutas constituintes
de sua liberdade. Na realidade eles identificavam no “estrangeiro” o domínio e a
exploração dos nativos, daí os rechaçarem, a medida que estes gozam das honras de
brasileiros adotivos! (...) Infeliz país! Desditosa nação! (...) Vivam os defensores da
Pátria e da Liberdade! Guerra aos déspotas e tiranos! Viva o rico e majestoso Pará”
(idem).
A negociação para uma solução pacífica foi mediada por agentes consulares,
mas foi sustada pela precipitação da oficialidade que, em resposta ao ofício de
Antonio Vinagre, enviou um pelotão com 200 soldados alemães comandado pelo
filho do general-presidente. Diante de tal afronta, Eduardo Angelim coordenou o
85
combate dividindo o exército cabano em três colunas, aguardou até que seus
inimigos estivessem sob sua mira e mandou fogo. A primeira rajada fez a força
legalista parar e a segunda os fez recuar, sendo logo depois perseguidos pelos
cabanos. Entretanto, um segundo piquete dos legalistas veio em auxílio dos
retirantes conseguindo desacelerar a marcha dos cabanos que a esta altura já se
encontravam próximos ao palácio do governo. Mas, ao se darem conta do risco do
fogo cruzado, os cabanos recuaram e deslocaram-se para tomar o quartel de assalto.
Já a coluna de Geraldo Gavião não enfrentou resistência na tomada do Arsenal de
Marinha, rumando em seguida para o convento do Carmo, que também foi
conquistado sem dificuldade.
A tarefa mais complicada fora destinada a Antonio Vinagre: justamente a
tomada do Arsenal de Guerra, bem em frente de onde estava ancorada a fragata
Imperatriz que dava cobertura para as forças inimigas e transmitia informações
sobre o avanço dos cabanos. Mas, para sua desgraça, Vinagre recebeu um tiro
mortal, disparado traiçoeiramente de uma das casas das proximidades no momento
em que se encontrava isolado à frente de sua coluna. Os comandados começaram a
se desorganizar até que Eduardo Angelim, informado por Raimundo Vinagre,
entrou em ação e assumiu o comando geral, exatamente como havia sido
combinado na convenção de Itaboca. O presidente, ao ser informado sobre a morte
do líder cabano, enviou seu filho Jerônimo Rodrigues para retomar o quartel, mas
este teve o mesmo destino de Antonio Vinagre.
No acampamento provisório dos cabanos Eduardo Angelim foi aclamado
comandante-chefe do “exército cabano” e fez um proclame para unificá-lo e dar
continuidade à luta na marcha pela liberdade: por amor à liberdade, por amor a
nossas esposas e filhos (...), pelo sangue inocente que se está derramando (...). Vivam
os paraenses que preferem a morte a uma fuga ou retirada vergonhosa (...). Vivam
os paraenses livres!” (Raiol, 1970, p.844).
Após esse reordenamento, o “exército cabano” retornou ao quartel, mas este
havia sido retomado pelas forças da legalidade. Já era noite e Eduardo Angelim
tratou de organizar o funeral de Antonio Vinagre e dos demais cabanos mortos em
combate para em seguida comandar as novas operações de retomada da cidade.
86
Angelim orientou que suas forças estrategicamente se apropriassem de casas
próximas ao palácio do governo e ao Arsenal de Guerra para facilitar o combate.
Assim, no dia 15 de agosto os cabanos haviam se espalhado por diversos
pontos da cidade e, protegidos pelos quintais das casas ocupadas, abriram fogo para
dispersar as forças legalistas. Com essa manobra foram obtendo vitórias sucessivas
e, após nove dias de luta árdua, conseguiram obter o controle do Palácio,
precisavando ainda se apossar do Arsenal de guerra para ter acesso a munições.
Diante dessa necessidade, lançaram-se de corpo aberto num ataque fratricida – sob
o fogo cruzado da artilharia e de granadas os cabanos tombavam uns sobre os
outros, mas mesmo assim não recuavam. Às dez horas da noite Eduardo Angelim
recolheu-se com o grupo de sobreviventes e feridos recolheu-se ao Quartel de
Infantaria onde, após analisar que o ataque direto não estava dando resultado,
resolveu retomar a guerra de guerrilha desenvolvida por entre os quintais, tática que
já lhes tinha favorecido na identificação do inimigo e na cobertura dos ataques, as
cercas servindo de trincheira. No nono dia de luta as forças estrangeiras, que até
então auxiliavam o presidente da província, começaram a desertar e acabaram
deixando o palácio do governo. Os navios de guerra estrangeiros, ao verem a
carnificina e a matança dos cabanos, pararam de ajudar as forças legalistas, enquanto
as famílias abastadas fugiam da cidade.
O presidente da província, diante do enfraquecimento de sua base de apoio,
convocou o Conselho de Guerra no dia 22 de agosto e decidiu se retirar da cidade
na madrugada do dia 23 de agosto, para se refugiar na fragata Campista. Da fragata
o presidente enviou escaleres e lanchas para todos os cidadãos que quisessem deixar
a cidade e abandonou o Arsenal de Guerra, que logo foi ocupado pelos cabanos. A
superioridade e a persistência do desejo de liberdade dos cabanos ficaram evidentes
nessa batalha. Os cabanos mais uma vez saíram vencedores e Eduardo Angelim foi
aclamado o 3º terceiro presidente cabano, permanecendo no governo de 23 de
agosto de 1835 a 13 de maio de 1836.
A reconquista da cidade foi obtida após nove dias de fogo cruzado, sob
crises de toda ordem, mas mesmo assim a população festejou durante três dias, com
fogos, festas e cantorias pelas ruas e igrejas da cidade. Segundo Raiol, ocorreram
87
também atos de violência e saques, devido ao ódio que índios, negros e mestiços
guardavam contra seus exploradores. Para conter o vandalismo Angelim, sob
determinação do Conselho de Guerra, instituiu a pena de morte para casos de
matança indiscriminada lançando, além disso, um proclame (ainda na condição de
comandante do exército cabano) para acalmar a fúria dos cabanos: “Seja cada um de
vós o pai, um protetor da inocência desvalida! Procedendo assim bem teremos
merecido da Pátria e das gerações futuras” (Raiol, 1970, p.926).
No dia 26 de agosto Eduardo Angelim, com o exército cabano e alguns
padres simpatizantes das lutas cabanas, reuniram-se em frente ao palácio do
governo. A pauta da reunião era a eleição do presidente e, após falar à massa, o
comandante indicou o nome dos padres Jerônimo e Picanço, os quais declinaram do
convite por não se consideram capazes de assumir a presidência da província na
conjuntura de crise em que se encontrava. Diante da recusa dos padres, a massa
aclamou Eduardo Angelim, aos 21 anos de idade, o 3º terceiro presidente cabano.
Seu gabinete foi formado pelo padre Casimiro Pereira de Sousa (secretário, o
mesmo cargo ocupado no governo de Francisco Vinagre); Rufino Antônio da Silva
Campos Jacareacanga (ajudante de ordens da presidência); Manoel José Cavalcante
(capitão de cavalaria); Ezequiel José de França (capitão de infantaria); Manoel
Antonio Nogueira (seu irmão), Manoel Sabino e Manoel José da Silva Paraense
(tenentes-coronéis comandantes de guerrilhas); Geraldo Francisco Vinagre e José
Pereira Pestana (tenentes-coronéis comandantes de expedições); Francisco
Fernandes de Macedo (capitão reformado, diretor do Arsenal de Guerra).
Angelim também criou um corpo de polícia com três comandantes –
Geraldo Gavião, João Antônio de Faria e Isidoro José Pereira –; implantou um
esquadrão de cavalaria vinculado ao palácio; um corpo de artilharia; um batalhão de
caçadores e um batalhão de guardas nacionais (sob seu próprio comando);
estabeleceu guardas em três pontos estratégicos da cidade e destacou piqueteiros
para fazer a ronda a fim de evitar o caos; guarneceu todos os barcos e canoas de
artilharia e fundou uma fábrica de pólvora. Foram enviados agentes ao interior da
província a fim de consolidar sua autoridade. Os agentes recebiam patente de
tenentes-coronéis e algumas localidades escolhiam seus próprios agentes. “Tudo era
88
burlesco (...). Denominavam assim os encarregados de avisar e aliciar gente pelos
sítios e povoados. Eram quase todos analfabetos; mal sabiam escrever os que se
presumiam mais instruídos” (Raiol, 1970, p.929). Angelim deu continuidade à
prática de carimbar as moedas de cobre que Malcher havia iniciado (ibidem, p.930).
Para dissolver as lutas fratricidas que começavam a surgir no interior da base
cabana, Eduardo Angelim solicitou ajuda do bispo que encaminhou os padres
Francisco de Pinho de Castilho, Raimundo Antonio Fernandes e Jerônimo
Pimentel, para aconselhamento de respeito mútuo e segurança individual, além de
respeito à propriedade. As ordens de Angelim eram de que ninguém fizesse justiça
com as próprias mãos, para que não se desrespeitassem as famílias. Quando esta
determinação era contrariada “viu-se obrigado a prender e muitas vezes aplicar
castigos de chibata aos mais turbulentos, entre os quais figuravam os escravos que se
alistavam como livres” (Raiol, 1970, p.934).
A polícia secreta de Angelim conseguiu captar sentimentos de insatisfação e
tentativas de derrubar seu comando. Alguns chegaram a traçar planos para sua
destituição e até mesmo seu assassinato, mas os planos foram desmontados e seus
autores receberam pena de morte por fuzilamento81. Essa insatisfação poderia ser
atribuída a determinados cabanos que se sentiram preteridos82 ou que haviam sido
expulsos das hostes cabanas por praticarem “costumes libertinos e depravados”.
A gestão de governo de Eduardo Angelim não foi fácil, pois teve que
enfrentar, além dos cabanos insatisfeitos, Manoel Jorge Rodrigues, ex-presidente da
província, que comandou o bloqueio à Belém instaurando a contra-revolução,
depois de instalar um governo paralelo na ilha de Tatuoca. A crise de abastecimento
da cidade tornou-se crítica e, para piorar a situação, houve uma epidemia de varíola
que ceifou muitas vidas, inclusive do secretário e do comandante de Armas do 81 Di Paolo, com base em Raiol, afirma que houve “intervenções punitivas, inclusive a pena de morte, para os líderes escravos ou livres, que conspiravam ou desafiavam com as armas o Governo Revolucionário, eram realizadas colegialmente pelo Conselho de Guerra e dentro de critérios estritamente revolucionário” (Di Paolo, 1990, p.293). 82 As conspirações contra Angelim foram aos poucos arrefecendo. “O prêto João do Espírito Santo, mais conhecido por Diamante, homem de mau coração e rancoroso, quis vingar-se de contrariedades que imputara àquele, e reunindo seus comparsas, organizou clandestinamente um corpo que denominou de guerrilheiros. O ponto do Porto do Sal foi escolhido para as conferências noturnas. Como comandante que era desse ponto, podia, sem causar suspeita, congregar aí, os conspiradores e transmitir-lhes as suas sinistras inspirações. Não pode porém, levar a efeito o plano que delineara: um de seus cúmplices, embriagando-se, foi denunciá-lo. E no dia seguinte ele embarcou com alguns companheiros em comissão especial para fora da capital, sendo mudada a guarnição do Porto do Sal” (Raiol, 1970, p.935).
89
governo de Eduardo Angelim. Porém, um dos maiores problemas para Eduardo
Angelim era vencer a fome. Para isso, ele implantou uma padaria com distribuição
gratuita de pão (que funcionou até acabar o estoque de trigo dos armazéns da
cidade) e um açougue que, após abastecer a força armada, os hospitais e o colégio,
distribuía gratuitamente à população a carne verde do gado, que mandava buscar das
fazendas nacionais no Marajó.
Para contornar o problema da falta de mantimentos e desabastecimento
mandava aplicar castigos aos comerciantes que se negassem a negociar seus gêneros
alimentícios. Mas mesmo assim, as forças de apoio do ex-presidente dificultavam a
chegada dos produtos à capital e até mesmo os navios estrangeiros não passavam da
baia de Santo Antonio, o que tornava cada vez mais difícil a vida na capital.
O bloqueio ao continente e a varíola enfraqueciam a gestão cabana. Em dois
meses de governo, a fome e a mortandade complicavam a situação dos cabanos, que
“não tinham mais pão, nem farinha, nem peixe ou carne com que pudessem prover
sua subsistência (...). Comiam frutas e ervas agrestes de quintais abandonados, raízes
de certos arbustos (...)” (Raiol, 1970, p.942).
A agricultura e o comércio, atividades centrais da província, estavam
praticamente paralisados.
Após dois meses de governo Angelim lançou um manifesto protestando
contra o bloqueio e enfatizando as conquistas dos cabanos. Este manifesto tinha
por objetivo revigorar as forças cabanas. O apelo garantiu a tranqüilidade nos meses
de novembro e dezembro. No entanto, com a chegada de reforço militar para o ex-
presidente – mais dez navios de guerra que vieram de Pernambuco, Ceará e Rio de
Janeiro, 505 praças, 3 navios mercantes, o brigue Pirajá, o paquete Constança, a
Charrua Carioca, mantimentos e armamentos – continuaram as ações de bloqueio à
cidade e combate aos cabanos pelo interior da província. Primeiramente houve a
retomada do posto do Chapéu-Virado83 em 10 de fevereiro de 1836. De lá
avançaram para Vigia84 e foram destruindo a rede cabana, deslocando-se para o
83 Ilha de Mosqueiro, próxima à cidade de Belém. 84 Nessa localidade a população, favorável ao legalismo, rejeitava os cabanos. O seguinte trecho poético demonstra bem a visão elitista dos legalistas: “os vigienses não querem ser governados por chefes com pé no chão”.
90
Acará, Moju, Abaeté, Marajó, Amazonas e Macapá, no Alto e Baixo Amazonas. As
forças inimigas, entretanto, encontraram resistência; em Santarém os legalistas
tiveram que abandonar a vila, pois os cabanos conseguiram adesão da Vila de
Tapajós que, ainda em 9 de março de 1836 reuniu a Câmara Municipal para anunciar
o reconhecimento do governo cabano.
No Baixo Amazonas a questão dos escravos abriu uma cunha no movimento
revolucionário, pois os cabanos reconheciam a liberdade somente dos escravos que
estavam sob suas fileiras. Em Baruará os escravos haviam formado um grupo
independente, comandado por Manoel Pedro dos Anjos, que tinha como objetivo
conquistar a Vila de Santarém. Mas os legalistas conseguiram retomar Santarém
devido à ação do padre Manoel Sanches de Brito, que arregimentou forças e
restabeleceu a oficialidade também em Juriti, Faro, Alenquer, Silves, Atuaná,
Pacoval, Andirá, Luzéia, Arapixi e outras. Mas foi em Cametá que o padre
Prudêncio José das Mercês organizou uma forte campanha contra os cabanos,
matando mais de 100 deles.
O governo cabano encontrava-se acuado e, com a chegada de Francisco José
de Souza Andréa85 (brigadeiro português, nomeado presidente da província) a
Regência desferiu um duro golpe contra os paraenses. Em 9 de abril de 1836, Souza
Andréa tomou posse do governo e colocou no comando das armas o capitão-de-
fragata João Frederico Mariath. A tarefa de Andréa era combater os cabanos e para
isso contou com o apoio de um exército de 400 recrutas formado por presos e
sentenciados retirados das cadeias da corte e das províncias por onde passava, além
de 7 navios de guerra (o patacho Januária, o brigue Brasileiro, o brigue-escuna Dois
de Março e as escunas Pelotas, Porto Alegre e Riograndense), reforçando ainda mais
as forças contra-revolucionárias. O bloqueio continental à cidade e a luta armada no
interior foram intensificados, ações que já haviam sido iniciadas pelo marechal Jorge
Rodrigues.
O exército contra-revolucionário localizava-se na ilha de Arapiranga,
estrategicamente mais próxima da capital. Enquanto as forças anteriores rumavam 85 O brigadeiro já conhecia a província, pois havia assumido o comando militar de Belém em 1830, quando o presidente era José Félix de Burgos, Barão de Itapicuru-Mirim. Durante sua gestão anterior ele centralizou o sistema policial e constitui sua equipe com cidadãos portugueses, desencadeando o protesto de Batista Campos.
91
para o Alto e Baixo Amazonas, Andréa seguia em direção às vilas de Igarapé-Mirim
e Muaná, no nordeste de Belém, sendo que a primeira fora incendiada pelas forças
legalistas, já que era uma das principais fontes de abastecimentos da capital. A
vitória dos legalistas sobre Muaná, no final de abril de 1836, foi significativa por ter
interrompido o abastecimento de carne, imprimindo à população de Belém um
regime de fome insuportável.
Mesmo contando com dezoito navios de guerra, os legalistas não se
arriscavam a combater o “exército cabano” no seu núcleo constituinte, apesar da
fome e miséria que as forças legalistas haviam imposto. Em face do visível colapso
na capital, o bispo Dom Romualdo Coelho propôs a retirada pacífica e a solicitação
de anistia dos cabanos para a Regência, oferecendo-se para mediador das
negociações entre os cabanos e os legalistas. Entretanto os cabanos, insatisfeitos
com a proposta e com a aceitação de Angelim, decidiram incendiar a cidade. Eles
chegaram a iniciar o incêndio, mas foram interpelados pelo bispo, que usou de
todos os seus argumentos religiosos, para convencer os cabanos a apagarem o fogo
ateado na cidade.
Angelim havia reunido o Conselho dos Oficiais em 26 de abril de 1836 e
avaliado que eles não teriam forças para resistir ao bloqueio e à armada, decidindo
então negociar com as forças legais. No ofício redigido pelo Conselho encontram-se
as seguintes solicitações: primeiro, que fosse publicada a anistia geral dos presos que
estavam a bordo; segundo, a não-ofensa a qualquer revolucionário, pois o Alto e
Baixo Amazonas ainda estavam sob o comando dos cabanos.
A comissão de negociação formada pelo cônego Antônio de Azevedo Santos
e Manoel Pereira Dutra encaminhou a Andréa no dia 28 de abril de 1836 dois
ofícios em nome de Angelim e do bispo, cujo teor era a anistia para os cabanos.
Andréa respondeu no mesmo dia aos dois documentos. Aos cabanos, declarou que
a anistia era da alçada da Assembléia Geral, e que ele poderia apenas empenhar sua
palavra, mas não poderia libertar os presos. Mas, apesar disso, afirmava que tinha
melhorado a sorte de alguns cabanos mandando-os para o Rio de Janeiro, como era
o caso dos familiares do próprio Angelim, afirmando ainda que, como bom
cumpridor da lei, evitaria o derramamento de sangue.
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No dia 30 de abril de 1836 Angelim reuniu o Conselho Cabano outra vez e
enviou outro ofício em nome de seus oficiais. Neste documento solicitava que o
primeiro ofício (solicitando a anistia geral) fosse encaminhado à Assembléia Geral,
que se reuniria do dia 3 de maio de 1836; solicitava ainda um armistício para que
ambas as partes suspendessem as hostilidades permitindo a retirada dos cabanos da
cidade. Angelim enviou uma carta particular em anexo ao ofício agradecendo o bom
tratamento dispensado a seus familiares e a outros cabanos. Lembrando seus
princípios filantrópicos, afirmava: “Um governo livre e filantrópico morre rodeado
de amor (...) que por todos os princípios dever-se-ia ter constituído a república do
grande mestre Aristóteles” (Raiol, 1970, p.952).
A resposta que veio em 1º de maio de 1836 era lacônica. Andréa não estava
disposto a negociar com os cabanos, ao contrário, firmava que (...) não estava
autorizado para a suspender as hostilidades que fossem necessárias para vencer a
desobediência; nem era caso de armistício, visto que não se tratava de nação para
nação” (ibidem, p.953).
No entanto, colocava como “abertura” para os cabanos a possibilidade de
escolher um local para aguardar a anistia impetrada, mas que este local não servisse
para novas insubordinações. Continuando sua resposta, informava que não estava
para fazer reflexões, mas somente para fazer cumprir as leis do império. De um lado
havia a desobediência civil altiva e, de outro, a “autoridade da lei para restituir a
ordem e a paz da província” (idem). Assim, concluía Andréa, podia tão somente
encaminhar a solicitação de anistia para a Assembléia Geral, respeitando o resultado.
Diante dessa abertura, Angelim reuniu-se mais uma vez a seus liderados para decidir
sobre o lugar para a retirada dos cabanos, escolhendo a região do Amazonas. Foi
solicitado um prazo de 20 dias e que Andréa retirasse as embarcações do rio Guamá
para embarcar as famílias que desejassem retornar para as suas localidades. Andréa
respondeu que o lugar precisaria ser acertado entre as partes e não deveria ser tão
longe. Assim, o lugar escolhido por Andréa, sem direito a nova argumentação, foi a
fazenda Carnapijó, de propriedade do próprio Angelim, pois (...) está em posição
vantajosa, militarmente falando (...), podendo passar com suas armas e conservar-se
93
naquele lugar sem invadir outros distritos, nem passar além do rio Barcarena e do
furo Atitéua ” (Raiol, 1970, p.955).
Andréa solicitava ainda uma lista com o nome de todas as pessoas que
partiriam com Angelim, sendo que as pessoas listadas não poderiam sair da referida
fazenda. Ele também afirmava que não manteria o boicote de alimentos aos
cabanos, reduzindo também o número de dias para a retirada uma vez que, como
afirmava, a fazenda encontrava-se próxima da cidade de Belém.
Angelim reuniu seu Conselho no dia 4 de maio de 1836 para se posicionar a
respeito da proposição da fazenda Carnapijó. Redargüiu à proposta afirmando que a
fazenda era insuficiente para acomodar 4 ou 5 mil homens, que não existiam as
condições necessárias para isso, além de estar situada muito próximo da capital. Mas
a resposta veio imediatamente, reafirmando que seria a fazenda Carnapijó ou tudo
ficava como dantes. Assim os cabanos solicitaram mais uma vez a intervenção do
bispo que, apesar de não acreditar no sucesso de sua tentativa de negociação, assim
o fez. Como apelo, aludiu ao fato de os cabanos poderem incendiar a cidade, como
as forças legais haviam feito em Igarapé-Mirim. Andréa respondeu dizendo que não
era a ele que o bispo devia fazer apelo, mas aos próprios cabanos. “Quem pretende
ser anistiado dobra-se à presença da lei e sujeita-se ao que é justo” (Raiol, 1970,
957).
Os cabanos reuniram-se pela última vez e decidiram pela retirada, mesmo
sob a ostensiva força inimiga, pois a cidade enfrentava um bloqueio serrado. A fome
e a falta de munição obrigavam a uma saída não muito favorável. Mas, mesmo
diante dessa dificuldade Angelim mostrou sua coragem, em mais um proclame aos
cabanos. Nesse documento ele reafirma sua disposição de defesa dos direitos, dando
“provas de amor, que vos consagro, encarando sem horror a morte. A salvação de
vossas vidas me é mais amável que a minha própria” (Raiol, 1970, p.958). Angelim
recomenda a saída, não como demandava Andréa, mas como condição para
poderem se espalhar pelo interior da província e aguardar pelo período de três
meses a anistia. Caso a anistia não chegasse, sitiariam a cidade, então sitiada pelas
forças legais. A partir desse momento, Angelim passou a organizar os comandantes
dos grupos e os lugares em que deveriam se fixar: Geraldo Gavião (seu irmão) se
94
deslocaria com seu “exército” para o Capim; Agostinho de Souza Moreira para o
Guamá; Manuel (também seu irmão) iria se juntar ao major José Agostinho de
Oliveira para assegurar as posições nos rios Acará e Moju, recomendando,
finalmente, que aguardassem suas orientações.
Os preparativos para a retirada estavam organizados e Angelim foi até o
bispo para se despedir e repassar noventa contos de réis e algumas frações a serem
entregues a Andréa, deixando ainda oito contos para Henrique Dickson e dezesseis
contos, que eram seus, confiou ao cônego Raimundo Severino de Matos. Esse
dinheiro foi todo recolhido aos cofres públicos como tendo sido roubado pelos
cabanos. Em 10 de maio de 1836, Angelim mandou um último ofício a Andréa
afirmando que ia para o Guamá, mas recebeu como resposta que deveria ir para
Carnapijó. Contudo, no dia 13 de maio de 1836, os cabanos tiveram que se retirar de
forma precipitada, pois Andréa havia indicado ao comandante da escuna Rio da
Prata que observasse o movimento no rio Guamá e na volta fundeasse na Pedreira,
lugar escolhido pelos cabanos para a retirada. No entanto, chegou a informação no
acampamento de Andréa de que a escuna havia encalhado e que estava cercada
pelos cabanos; assim, Andréa mandou mais duas escunas para apoio.
As notícias eram falsas, mas acabaram complicando o plano dos cabanos,
que tiveram de abrir fogo que foi revidado pelas escunas, além de terem de enfrentar
o desembarque de uma tropa que veio rendê-los. Mas os cabanos conseguiram
recuar até a cidade e avisaram com alarde os fatos, o que ocasionou a precipitação
da retirada. Os cabanos acabaram saindo da cidade pelo porto do Arsenal. No
entanto, o grande número de canoas que seguiam o barco artilhado de Angelim logo
foi avistado e os navios lançaram fogo, dispersando grande parte de barcos por rios
e furos da baia do Guajará. A copiosa chuva dificultou a operação de perseguição
dos cabanos pelos legalistas.
O navio que guardava o rio Acará conseguiu, entretanto, aprisionar um
número considerável de cabanos, mas Angelim conseguiu escapar e seguir o fluxo
do rio Acará. No dia 14 de maio de 1836, Andréa assumia o comando da capital da
província, com poderes para suspender por seis meses as garantias constitucionais
individuais e domiciliares; prender sem culpa formada; manter em prisão por igual
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tempo sem precisar abrir processo. Posteriormente o prazo foi prorrogado para os
indiciados por crimes de rebeldia, conspiração sedição, rebelião etc. Ele podia ainda
exilar os presos que fossem considerados de risco para a segurança pública. Sua lei
de exceção proibia reuniões secretas e considerava sedição qualquer ajuntamento
com mais de cinco pessoas. Instituí a pena de morte, sem a ordenação da Regência,
para os crimes cometidos na província depois de 6 de janeiro de 1835, véspera da
primeira tomada de Belém pelos cabanos.
Colocadas as condições, Andréa enviou expedição ao Amazonas e Marajó e
combateu o inimigo cabano a partir da institucionalização do “estado de guerra”, o
que prescindia de formalidades legais. Sob esta lei, as casas eram revistas a qualquer
hora e as buscas eram realizadas sem qualquer aparato legal. Esse “estado de guerra”
era intensificado para as localidades de Gurupá para cima devido à continuidade das
lutas cabanas.
Para combater melhor os cabanos, Soares Andréa dividiu a província em
nove comandos militares, os quais eram responsáveis pela segurança e conservação
da ordem, atribuíndo-lhes poderes para recrutar guardas e trabalhadores, alistando
todos indivíduos entre 10 a 50 anos. Os comandos foram subdivididos em duas
partes: uns formariam o corpo de soltados para enfrentar os rebeldes e prendê-los e
matá-los, em casos de resistência ou recusa em entregar as armas, e outros
constituindo os Corpos de Trabalhadores. Com essa medida Soares Andréa cooptou
os melhores auxiliares dos rebeldes (Raiol, 1970, p.988).
A Cabanagem constituiu assim um movimento social de ruptura com o
poder constituído; nela o tempo das massas elevou a capacidade crítica do poder
constituinte e fez avançar a marcha da liberdade em face da subordinação e do
domínio. As lutas cabanas colocam-se na mesma linha das formas de resistência,
fugas e deserções de índios, negros e pequenos produtores rurais frente às
limitações impostas pelos agentes da colonização nas várias fases da constituição do
Pará. Nesse processo de auto-constituição, os cabanos tornaram-se uma força
política independente em contraposição às políticas de fixação do trabalho nômade.
O caminho da rebelião popular foi traçado pelos cabanos e, apesar das
deficiências de sua organização, pode quebrar os laços com a metrópole portuguesa.
96
A dinâmica das lutas cabanas estava ancorada nas conquistas de liberdade e
igualdade, cujo ideário nativista produziu os sujeitos sociais que promoveram a
insurreição. A desobediência civil era a chave da ruptura do domínio na passagem da
Coroa portuguesa à Coroa brasileira, uma marcha da liberdade por todo o território
da província.
Nesse sentido, a teoria negriana sobre as duas alternativas da modernidade
pode servir como referência para explicar a política cabana enquanto crise insolúvel
entre o poder constituinte das massas e o poder constituído do Estado. A
Cabanagem não foi uma onda de anarquismo, desorganização social, guerra entre
raças, lutas separatistas e descontrole do Estado, uma “contenda entre grupos da
elite local, sobre a nomeação do presidente da província” (Fausto, 1996, p.166), mas
uma ação efetiva das massas, cujo antagonismo, conflitos e revoltas populares
emergiram na forma de desobediência civil em face de sua negação como base da
liberdade imanente à independência do Brasil.
A rebelião dos cabanos se inscreve, assim, na oposição à continuidade das
formas de subordinação das relações sociais de produção e reprodução vigentes. Ela
busca a autonomia do trabalho. Os cabanos, na imanência do poder constituinte,
deram passos firmes nas lutas pela liberdade, à semelhança do que já se havia
desenhado na Europa e nos Estados Americanos em termos de revoluções civis,
políticas e do trabalho.
Os índios sem aldeia, os negros e os pequenos produtores rurais submetidos
à redução de seus direitos quebraram, num curto espaço de tempo, a ordem
estabelecida pelos fazendeiros ou pelo Estado e possibilitaram avanços concretos na
marcha da liberdade contra a escravidão e o assalariamento constrangido.
O primeiro governo cabano, sob Félix Antônio Clemente Malcher, foi um
equívoco. Malcher, na realidade, era um ex-fazendeiro nacionalista, que se aliara aos
cabanos na última hora, depois de ter sido arruinado por ordem do governador da
província, em represália ao apoio das ações cabanas. Essa situação não o colocava
no mesmo patamar de radicalidade das massas. Seu afastamento das bases que lhe
haviam conferido o poder provocou a sua destituição e assassinato pelos próprios
97
cabanos, após um mês e dez dias de governo. O trágico desfecho do primeiro
governo popular da base cabana não impediu a marcha do poder constituinte.
Isso fica evidente na consolidação dos Corpos de Trabalhadores86, um
regime de trabalho que tinham como função o controle da mobilidade de mais
60.000 indivíduos do sexo masculino residente no Pará, pois o processo de liberação
dessa massa se dava efetivamente com as lutas cabanas, espaço em que os
trabalhadores abandonavam seus senhores e, de um modo geral, engrossavam as
fileiras do “exército cabano”, criando e recriando o continente da liberdade. Com os
Corpos de Trabalhadores – termidor da Cabanagem – o trabalho mostra-se como
anomalia, um regime compulsório destinado a quebrar a mobilidade dos cabanos.
No espaço da Cabanagem, a insurreição das massas traduziu o social num
movimento que se espraiou como as águas caudalosas dos rios amazônicos
imprimindo um ritmo às mutações. Os furos e ribanceiras dos rios amazônicos
expandidos sobre retículos contínuos e sem formas prévias, pareciam inspirar a
oposição frontal diante das atrocidades impostas pelas aristocracias lusitana e
brasileira, o que fez ruir as estruturas do poder constituído e pulsar novas fronteiras,
germinadas pelas lutas cabanas, como formas topográficas de uma nova ordem.
Assim, pode-se dizer que a Cabanagem foi um movimento de mutação
vinculado à capacidade de expansão da natureza humana, aparecendo como
horizonte de constituição de uma classe social. Na expansão do capitalismo-mundo
as forças produtivas na tensão entre imanência e transcendência colocaram
alternativas diferenciadas de estruturação da sociedade, as quais foram trasladadas
junto com a crise oriunda da modernidade. As lutas de libertação da servidão feudal
acabaram por implantar as relações capitalistas e abrir alternativas de poder
imanente aos sujeitos antagonistas em face da “maldição do trabalho livre”, isto é,
livre dos meios de produção, mas dependente da relação de capital. 86 “A lei de criação dos Corpos de Trabalhadores pode ser encontrada na: Collecção das Leis Provinciaes do Pará promulgadas na Primeira Secção que teve principio no dia 2 de março, e findou no dia 13 de maio de 1838. Na Falla dirigida pelo Exmº Snr. Jeronimo Francisco Coelho, Presidente da Provínciado Graõ-Pará a Assemblea Legislativa Provincial na Abertura da Segunda Sessão Ordinaria da Sexta Legislatura. No dia 1º de Outubro de 1849, pode-se encontrar um exemplo da preocupação com a necessidade de manter sob sujeição a população livre e pobre da província: ‘Lembro-vos porém, que a adoção desta medida [extinção dos Corpos de Trabalhadores], vos imporá a obrigação rigorosa de dar destino a perto de 60 mil indivíduos do sexo masculino, que privados pela lei do uso de direitos políticos, sem espécie alguma de sujeição sistemático, desempregado e entregues a si mesmos, e a uma vida indolente, e desobrigada, viveriam flutuantes no seio do resto da população útil, e laboriosa, que é em” desproporcionada minoria’” (Fuler, 1999, p.2).
98
A cooperação existente entre os trabalhadores constituiu o projeto de liberdade e
autonomia que prosperou, simultaneamente, a partir da criação de uma rede de lutas
que se difundiu pelas diversas municipalidades da província do Grão-Pará87. Os
cabanos, herdeiros da sociedade comunal, em sua maioria oriundos da miscigenação
e da liberação dos indígenas, tornaram-se uma massa de trabalhadores formalmente
livres, segundo o estatuto jurídico do Estado Imperial, mas que era subordinada
pelas estruturas jurídico-políticas que amarravam a liberdade dos nômades. Eles
formavam um grupo social sob a unidade indivisível das relações econômico-sociais
endógenas; tratava-se de uma “classe dos homens livres pobres, constituída por
índios destribalizados, negros alforriados, camponeses sem terra, habitantes de
casebres miseráveis e insalubres, localizados na periferia das cidades e das vilas”
(Souza Junior, 1997, p.42). Permanecer no texto, pois tem apenas três linhas.
As lutas fizeram-se no contra-fluxo da ação dominante, reivindicado em
outro horizonte – a liberdade e a igualdade – e no antagonismo à subordinação do
trabalho. A oposição ao trabalho regulado criou os sujeitos antagonistas na tensão
entre os produtores e apropriadores e suas alternativas político-econômicas
diferenciadas. A potência verificada na Cabanagem faz parte de conjunto múltiplo
de lutas e revoltas nativistas que se opunham a todas as formas de dominação e
controle do Estado – de suas leis férreas impostas pela transcendentalização da
constituição material dos produtores para erguer a constituição formal dos
apropriadores.
As lutas de índios, escravos e demais trabalhadores rurais e urbanos mostram
a capacidade de autopromoção dos sujeitos sociais na imanência de suas estruturas
produtivas em constante mutação.
A linha de continuidade da estrutura de privilégios e de segregação social e
racial do Estado brasileiro termidorizou o movimento das massas para impor a
dinâmica de fechamento do sistema jurídico-constitucional e a irreversibilidade da
alternativa das massas como fonte de liberação das formas de dominação no Pará. O
87 Não se tem notícia de outro movimento que tenha conseguido atingir toda a região amazônica. Nem as dificuldades de acesso e insuficiência de transportes que fizessem circular as informações com rapidez foram capazes de barrar a dinâmica do poder constituinte. É admirável o alcance do movimento cabano, que conseguiu se expandir da capital para os interiores mais longínquos da Amazônia, numa extensão continental ainda hoje quase intrafegável.
99
tempo da Cabanagem expressa, assim, o paradigma do poder constituinte, em sua
potência máxima de auto-constituição. Nele, simples indivíduos isolados
territorialmente na grande floresta amazônica tornaram-se sujeitos coletivos e se
colocaram no centro da crise do poder como núcleo do desejo de liberdade do
trabalho. Os cabanos, ao constituírem um espaço político-econômico organizado
sob a estrutura de governo com a participação da massa e não como sistema de
representação, conseguiram superar o instrumento clássico de transcendentalização
do poder.
Os massacres coletivos de cabanos e medidas de punição violentas, como
banimento e exílio – processos utilizados no Grão-Pará no período compreendido
entre 1820-1840, dentre tantos outros mecanismos de repressão – tiveram como
função bloquear o movimento de liberação e de destruição do poder constituinte.
Mas sua potência não se dobrou aos procedimentos de fechamento do poder
constituído e continuou abrindo espaços para os direitos civis, políticos e sociais. A
potência do trabalho vivo e seu desejo de liberação nutriu-se no campo da rebeldia e
demais formas de resistência. Nesse sentido, as lutas cabanas deixam de ter uma
conotação exclusivamente regional para se inscrever como uma particularidade da
potência constituinte que fez ecoar na Amazônia os gritos revolucionários que
tiveram início na revolução da Renascença, ilustrando a resistência à constituição do
trabalho dependente na Amazônia.
A cooperação intensiva e extensiva do trabalho (de índio, de negro e de
pequenos produtores rurais) contra a fragmentação do poder constituinte só foi
freada quebrada pela institucionalização dos Corpos de Trabalhores – termidor da
revolução cabana.
100
II Parte
A constituição do trabalho dependente
[A] acumulação primitiva desempenha na economia política um papel análogo ao pecado original na teologia (…). Como os meios de produção e os de subsistência, dinheiro e mercadoria em si mesmos não são capital. Tem de haver antes uma transformação que só pode ocorrer em determinadas circunstâncias (…).
Marx
101
II.1 A quebra da liberdade indígena
O processo de colonização do Novo Mundo foi, sem dúvida, um momento
decisivo na história da construção da economia-mundo. O colonizador, para
apropriar-se do continente americano, precisou negar o outro, o não europeu,
suplantando sua identidade local, banindo seus hábitos e costumes a fim de expandir
à civilização européia. Nesse movimento dialético de apropriação e destruição do
outro (não europeu) ocorreu a quebra da liberdade selvagem dos povos autóctones.
A colonização da América foi o palco de uma luta aguerrida entre duas
identidades em busca da manutenção/superação. O colonizador buscava introduzir
seu padrão de “vida civilizada”, cujo esplendor era o homem metropolitano. Este,
por sua vez, comandava um processo específico de negação dos povos autóctones,
capturando-os, aprisionando-os e reduzido-os à força de trabalho por meio da
escravidão. Nesse contexto, a negação do outro se tornou condição da própria
identidade do colonizador em face do colonizado.
Os princípios da virtù (criatividade expansiva) e a fortuna (violência conta os
povos autóctones) determinaram a colonização do Novo Mundo. Os instrumentos
jurídicos do Estado colonial buscavam disciplinar e controlar os indígenas para
subjugá-los ao colonizador, mas foram obstaculizados pela luta, pela resistência e
pelas revoltas – germes da ontologia política de ruptura com os regimentos que
visavam a exploração do colonizado, isto é, negação absoluta da mobilidade do
trabalho nômade e de sua capacidade de destruir as diversas formas de engajamento
forçado.
A colonização foi, assim, um momento crucial da máquina capitalista para a
apropriação além-mar. Foram criados nesse movimento um conjunto de normas,
leis, decretos e regras para suplantar o diferente e construir a homogeneização da
civilização européia a partir da submissão do outro. Este conjunto de normas
constitui um ponto central na organização das instituições e das políticas de
regulação da força de trabalho no contexto da economia colonial na Amazônia.
Os povos autóctones foram dessa maneira interceptados em sua liberdade
selvagem. As suas lutas de resistência, no entanto, deram início a um movimento de
102
abertura na economia colonial. A transação capital/trabalho precisava levar em
consideração as fugas e deserções como elementos de custos extremamente
elevados.
As relações sociais colonizadoras tornaram-se operações brutais de redução,
repressão e coerção do gentio no sentido de desestruturar os laços comunais e
remover os vestígios étnico-culturais dos povos autóctones (hábitos e costumes no
seu modo de viver e de morar). Mas os custos financeiro-institucionais tornaram a
economia colonial cada vez mais insustentável. A ruptura do padrão de vida
selvagem estabeleceu a ordem colonial e seus instrumentos jurídicos88. As aldeias
tornaram-se “o centro por excelência de destribalização e de homogeneização de
cultura daqueles ‘restos de nações menos bravias’, concentrados nos aldeamentos
catequéticos” (Moreira Neto, 1988, p.23).
Neste sentido, apenas em aparência a evangelização estava fora da economia
colonial; tratava-se, na realidade, de uma “auréola romântica” – de “civilização” de
índios – que trás em si um brutal modelo de organização da produção colonial na
Amazônia. Ela serviu como meio eficaz em face aos métodos de torturas e
violências praticados na “doçura” da educação religiosa dos indígenas, aparecendo,
portanto, como uma condição fundamental para a expansão da economia-mundo.
O objetivo real era a destribalização dos povos autóctones, dando início a um
processo de aculturação, isto é, de destruição da identidade étnica daqueles povos
para fixá-los como força de trabalho a fim de garantir a auto-sustentação das aldeias
e do próprio processo de colonização. Essa política de desarticulação das tribos
facilitou a penetração e a captura de índios pelos missionários (agentes econômico-
culturais da metrópole portuguesa), colocando-os como principais atores na
dissolução das relações não capitalistas na região.
A implantação das aldeias (uma nova organização social) foi assim estratégica
na redução da liberdade indígena. O aldeamento era um tipo de organização sócio-
88 O Regimento das Missões para o Estado do Maranhão e do Grão-Pará foi instituído em 1º de Dezembro de 1686 e permaneceu em vigor por setenta e nove anos. Neste período a Igreja detinha posição hegemônica na destituição da liberdade indígena favorecendo o processo descolonização portuguesa no Norte, mas as disputas acirradas entre colonizadores e missionários provocaram a expulsão dos jesuítas, força-tarefa da dinâmica produtiva da colonização.
103
econômico-cultural originado nas práticas de descimento89 e era regulado por um
método de isenção de repartição indígena por um período de dois anos90. Esse
tempo destinava-se ao processo de formação disciplinar da população autóctone
para atender à demanda de mão-de-obra a ser distribuída entre os diversos setores
da Colônia.
Todos os meios foram empregados para alcançar esse objetivo, já que os
índios precisavam ser treinados e utilizados nas diferentes empresas da colonização.
Desta forma, os descimentos e a demarcação de terrenos para a localização de novas
aldeias seguiam um modelo padrão. Antes de qualquer descimento fazia-se um
levantamento para verificar o número de índios necessários a cada tipo de trabalho
comandado; posteriormente, havia o re-agrupamento das pequenas aldeias e, em
seguida, realizavam-se as expedições ao sertão, em busca de mais índios. Para
facilitar essa operação, as aldeias eram organizadas próximas às residências dos
padres, o que facilitava a “assistência social” e o doutrinamento cristão dos índios,
os quais precisavam ser regidos pelas leis jurídico-econômicas do Estado colonial91.
A organização das aldeias enlaçou toda a vida social do indígena e quebrou a
racionalidade das sociedades pré-capitalistas que foram invadidas pela economia-
mundo, destituindo a esfera do não valor, isto é, o escambo, como principal prática
de troca das comunidades indígenas. Nesse âmbito, houve a redefinição da troca,
que passou a ser efetivada pela transação comercial em escala ampliada, criando
assim uma estrutura social garantidora do trabalho dependente para a produção de
superávits.
Na Amazônia, a estratégia de conquista passava pela catequização, prática
que foi intensificada na segunda metade do século XVII, estendendo-se
praticamente por todo o século XVIII. O papel preponderante das ordens religiosas
pode ser visto no domínio e ocupação da região amazônica no período que vai de 89 Os descimentos eram expedições comandadas pelos missionários na captura de índios para formação das aldeias. 90 A redução da liberdade territorial do indígena expressou-se no confinamento por dois anos nas aldeias, tempo esse necessário para a redução brutal de sua identidade, uma manifestação explícita das barbaridades da “civilização” na violação dos direitos naturais. 91 Os descimentos sem essas condições eram considerados “violação do direito natural e civil”, contrariando os pactos fictícios celebrados entre missionários, índios e o Rei, tendo em vista a evangelização. Cabia aos padres fazê-los aceitar a Igreja, o que representava entregarem-se de corpo e alma à colonização, ou seja, para que fossem organizados em aldeias, juntando-se às freguesias nos distritos residenciais dos padres, salvaguardando o processo de colonização.
104
1516 até 1775, a partir da influência dos missionários no Maranhão e Grão-Pará. Os
aldeamentos por todo o espaço amazônico garantiram a expansão do domínio
territorial português, que se estendeu para territórios espanhóis, já que praticamente
nada havia sido feito em termos da colonização no Norte.
No entanto, desde 1645, os missionários assumiram a organização das
atividades coloniais, através do padre Antonio Vieira92, que, em 1652, era o principal
emissário da Coroa na redução do gentio. Sob seu comando foi traçado um
diagnóstico das condições da região em mínimos detalhes: “do ponto de vista de
seus recursos, de sua gente, de sua configuração fisiográfica e de suas possibilidades
econômicas (...)” (Reis, 1942, pp.19-20). Os missionários realizaram ainda
explorações geográficas por regiões desconhecidas, estudaram os costumes dos
índios e desenharam mapas sobre as áreas de seus domínios, tornando-se exímios
conhecedores da região. Eles ergueram templos e edificaram povoações, abriram
oficinas, teceram, pintaram, esculpiram e ensinaram a doutrina cristã, as artes
mecânicas e as primeiras letras para os índios nas aldeias. As missões religiosas
penetraram os chamados sertões e “declararam guerras sem tréguas à escravidão dos
índios” (Azevedo, 1999, p.12), colocando-se frontalmente contra os demais agentes
da colonização.
A atuação dos jesuítas marcou a história dessa região. No entanto, a
necessidade de mão-de-obra para desenvolver os empreendimentos coloniais, ou
seja, construção de fortificações, abertura de trilhas na floresta, descobertas de rios,
acabou predominando e fez relaxar as políticas indigenistas da colônia. Os índios
foram colocados no centro da colonização por serem exímios conhecedores da
região, mas também por serem excelentes remadores, pescadores e caçadores e
deterem as técnicas de extração e coleta das chamadas drogas do sertão. A
importância dessas atividades levou os portugueses a perseguir e caçar
incansavelmente os índios, com o intuito de através do aprisionamento e fixação de
sua mão-de-obra, fomentar a econômica política da colonização portuguesa do
Norte. O resultado dessa política fica aparente em “meados do século XVIII
92 A influência da Companhia de Jesus na história de colonização da Amazônia deve-se à intervenção do padre Antonio Vieira, uma das principais expressões do comando da metrópole de Lisboa na incorporação das populações nativas ao desenvolvimento econômico-social da colônia portuguesa do Norte. Sua ordem religiosa tornou-se uma das maiores forças políticas e econômicas na região.
105
[quando] havia, em toda região amazônica, mais de meia centena de missões
religiosas, espalhadas por todo o vale” (Silveira, 1994, p.98), ou mais precisamente
65 aldeias missionárias93.
Por todas essas razões, os missionários eram privilegiados com o acesso à
mão-de-obra disponível, o que contribuiu decisivamente para quebrar os códigos de
vida dos nativos. A redução de índios e a restrição da liberdade selvagem no Estado
do Maranhão e Grão-Pará decorriam do ordenamento segundo os padrões da
cultura portuguesa. Neste sentido, a evangelização foi uma medida necessária para
balancear as perdas relativas à taxa de fuga e de mobilidade do trabalho nômade, à
medida que as aldeias freavam a cultura indígena. A evangelização funcionava como
elemento de mensuração (minimização) dos custos da transação capital
mercantil/trabalho indígena. Com a fixação destes, ainda que de modo precário,
criou-se um sistema econômico-social baseado no trabalho indígena e que garantiu o
enriquecimento das missões. Apesar da luta contra a escravidão esse procedimento
tornou os missionários agentes estratégicos da colonização portuguesa na
Amazônia, permitindo a fixação e a exploração da mão-de-obra indígena e fazendo
fortunas colossais94.
A tarefa de redução dos índios em cristãos era a base do
“aportuguesamento” dos nativos. A catequização era uma política do Estado
colonial português e garantiu a conquista territorial, funcionando como via de
extensão do domínio português e, ao mesmo tempo, como controle disciplinar da
população indígena. O nomadismo e a mobilidade dos mesmos eram considerados
entraves à sua formação disciplinar.
As aldeias tinham de dispor da metade dos índios para remar as canoas
destinadas aos descimentos, enquanto que os moradores arcavam com a outra
metade. Isso se justificava tendo em vista o alto salário pago para essa atividade, já
que os riscos de fuga dos índios durante o trabalho eram muito grandes. Nesse 93 A colaboração da Igreja foi fundamental, pois a catequese do gentio era realizada pelos missionários de diversas ordens religiosas, tornando-se uma política patrocinada pelo Estado colonial português a partir das seguintes ordens religiosas: Santo Antonio, Jesuítas, Carmelitas, Mercedários, Capuchos da Piedade, Frades da Conceição da Beira e Minho. As aldeias eram assim distribuídas: 24 para os Jesuítas, 21 para os Capuchos, 17 para os Carmelitas, e 3 para os Mercedários. Os Carmelitas foram os primeiros que se instalaram em Belém, em 1627, mas antes haviam prestado serviços em São Luiz do Maranhão. 94 Fortunas essas que mais tarde, com a expulsão dos jesuítas, vão ser distribuídas para os funcionários burocráticos do Estado colonial português.
106
sistema, os padres eram responsáveis pelo convencimento dos índios a não recusar
o trabalho e nem mesmo abandonar suas atividades nas entradas para os sertões95.
No entanto, essa prática era constantemente questionada pelos demais
colonizadores, que viam nela um obstáculo à obtenção e acesso direto à mão-de-
obra indígena e, conseqüentemente, a acumulação no Novo Mundo.
O questionamento quanto à escravização dos indígenas produziu um amplo
debate na metrópole: de um lado, os colonizadores privados a defendiam como
recurso necessário à manutenção da Colônia, e de outro, os intelectuais negavam
essa prática uma vez que se pautavam nos valores e discursos humanistas colocados
pela modernidade. Esse debate repercutiu nos instrumentos jurídicos do Estado
colonial português e dá mostra das disputas ocorridas entre os diferentes setores
sociais (colonizadores, a Igreja e o Estado colonial). Seu conteúdo era estruturado a
partir da política intervencionista do Estado colonialista na estruturação da
economia-mundo, ao institucionalizar o processo brutal de destruição da liberdade
selvagem e reduzí-la à condição de capital variável na colonização portuguesa do
Norte.
A tensão entre os interesses dos colonizadores e das missões religiosas para o
controle da mão-de-obra indígena era constante, pois estes últimos eram o ativo
permanente gerador de riquezas na Amazônia e os missionários haviam se
transformado em “colonos, caçadores de escravos, lavradores, artífices, mestres,
historiadores, geógrafos, negociantes, e generais (...) e navegadores no Amazonas”
(Azevedo, 1999, p.12), tornando-se os agentes mais expressivos do processo de
dominação do gentio. De defensores da liberdade indígena, passaram a fazer
concorrência com os colonizadores pelo monopólio da mão-de-obra dos índios,
uma vez que a obtenção de índios era quase impossível sem a chancela dos
missionários.
Os colonizadores questionavam nos regimentos jurídicos o não acesso direto
aos indígenas, dando origem a uma disputa entre colonizadores privados e as
95 Para as entradas nos sertões os missionários recebiam cobertura dos governadores que auxiliavam no processo de redução de homens livres à medida que as guerras nos sertões eram legalizadas como medidas de exceção, o que permitia uma margem de manobra para facilitar a apreensão e a escravização de índios que oficialmente era proibida e considerada prática criminosa.
107
autoridades do Estado colonial. A crítica dos colonizadores centrava-se no
monopólio dos missionários da mão-de-obra dos indígenas desde o início da
colonização, o que provocou a revolta dos colonizadores civis e militares96,
resultando em embates constantes entre os missionários e os demais colonos. Mas a
força política dos jesuítas foi notória, permanecendo sob sua responsabilidade a
gestão da mão-de-obra dos indígenas através do Regimento das Missões. As
reivindicações dos colonos foram absorvidas e novas regras aplicadas para refrear os
custos elevados da produção.
A quebra da liberdade selvagem passou a ser um dos fatores centrais na
política de Estado e precisava ser consumada rapidamente. Os excessos quanto à
escravização de índios eram coibidos para não haver o risco de extenuá-los.
Algumas medidas foram tomadas nesse sentido, tais como: a proibição da moradia
de brancos e mamelucos nas aldeias; a proibição de retirada de índios das aldeias
sem a licença concedida pelos missionários; a atribuição de pena para casamentos e
adultérios com o fim de obter escravos e serviços de índios e de índias.
Mas o desrespeito contínuo às prerrogativas dos missionários criou conflitos
e ambigüidades na legislação colonial, já que o desenvolvimento dos
empreendimentos coloniais dependia do acesso à mão-de-obra do indígena. Assim,
desde os primeiros tempos da colonização da região Norte os conflitos foram
conseqüência da subjugação e subordinação do indígena. Os instrumentos jurídicos
não foram capazes de impedir as investidas dos colonizadores e nem mesmo os
desvios das práticas catequistas para aquelas de natureza especificamente econômica,
como é o caso da escravidão aberta de índios na vigência da colonização.
Para os colonizadores, o atraso econômico do Grão-Pará decorria da falta de
acesso à mão-de-obra indígena, isto é, sua oferta era limitada devido ao controle dos
missionários, o que prejudicava a circulação de “capital variável” nos
empreendimentos coloniais e emperrava a ação da máquina colonialista. Assim, a
restrição da oferta de mão-de-obra indígena mostra a marcha histórica da
acumulação capitalista em solo amazônico. Os colonizadores não aceitavam a 96 A força das missões religiosas foi contraposta a constantes conflitos e revoltas, como a dos colonos do Maranhão comandada por Beckmann em 1684. Nessa revolta, os colonos expulsaram os jesuítas para terem acesso direto à mão-de-obra barata (índios). Os colonos se opunham ao monopólio das ordens religiosas sobre os indígenas.
108
mediação da Igreja, que organizava os descimentos para o aldeamento e a divisão
dos índios, sob as normas contidas no Regimento das Missões que regulava a
movimentação da transição capital/mão-de-obra indígena. Eles exigiam a ampla e
contínua caça aos indígenas para reduzí-los diretamente à condição de trabalhadores
dependentes. A transação entre missionários e colonizadores era a condição que
gerava um mercado limitado e desigual de distribuição da força de trabalho indígena.
O “trabalho de Sísifo” de reduzir o índio a mão-de-obra regular exigiu a
intervenção decisiva do Estado colonial, pois suas regras jurídicas precisavam operar
o milagre de “converter” a liberdade selvagem, isto é, o ativo das fugas e defecções
em formas de cooperação social.
Surgiu, dessa maneira, o Regimento das Missões97, que instituía uma política
específica para estabelecer os padrões de vida da civilização européia. A restituição
do comando dos missionários sobre os indígenas foi garantida inclusive aos jesuítas
que haviam sido expulsos da Colônia justamente por causa dos conflitos em torno
do acesso à mão-de-obra nativa.
No Regimento o rei reconhecia a necessidade de formação de reserva
(mercado) de mão-de-obra como condição para frear as constantes disputas entre
colonos e missionários. Essa regulação visava resolver as disputas pela abertura da
legislação, possibilitando o estabelecimento de normas para os descimentos e para as
guerras contra os índios, tornadas atividades legais, como medida cautelar e de
exceção.
Nesse sentido, o Regimento das Missões foi um dos instrumentos que deu
início ao processo de transmutação da natureza selvagem, traçando as condições da
transação comercial relacionada à mutação do modus vivendi da floresta.
Esse instrumento passou a possibilitar uma oferta regular de mão-de-obra
para a formação do mercado de trabalho dependente, além de rebaixar os custos e
os riscos da produção no contexto da recusa do indígena ao trabalho e ao mando
desse mecanismo de regulação98.
97 O poder dos jesuítas em face aos demais foi demonstrado nesse instrumento jurídico, que manteve o poder dos missionários no controle ao acesso à mão-de-obra indígena para os empreendimentos coloniais. 98 Os índios que se recusavam ao trabalho eram considerados ociosos, sendo seus nomes informados ao Governador do Estado, através de uma relação anual da qual constavam as causas e os motivos do não
109
Além disso, o Regimento das Missões formava uma reserva de mão-de-obra
indispensável à concorrência intercapitalista no conjunto das metrópoles coloniais.
A superação dos riscos da transação capital/trabalho transformou-se, assim,
em objetivo financeiro diante das deserções e fugas. Foram introduzidas alterações
das regras iniciais de pagamento dos salários aos indígenas. Os pagamentos
passaram a ser realizados em dois momentos: a metade era concedida no momento
de afirmação do contrato de trabalho e a outra metade somente na conclusão das
tarefas contratadas. Tal medida visava diminuir os custos da operação, uma vez que
o salário pago integralmente no momento da retirada dos índios das aldeias não
assegurava a realização do contrato.
O pagamento de salários por trabalho realizado foi um dos elementos para
tentar garantir a normalidade do sistema, pois este era utilizado como um
mecanismo para bloquear os excessos em relação à exploração da força de trabalho
indígena. No entanto, seu efeito foi ínfimo em relação ao esvaziamento dos
contratos de trabalho, face ao mecanismo de recusa do indígena, que não aceitava a
redução de sua liberdade e tampouco reconhecia esses instrumentos “civilizados” de
produção e reprodução da vida. O salário foi introduzido, nesse ordenamento,
como elemento que expressava o movimento de racionalização na formação de
preços de compra e de venda dos produtos indígenas, seguindo as mesmas regras da
metrópole.
O Regimento foi um instrumento legal que buscou não somente quebrar a
liberdade, mas representou um mecanismo efetivo para a acumulação capitalista da
metrópole, como resultado do controle disciplinar e da fixação do indígena. Eram
favorecidas as formas de organização do trabalho que iam desde a quebra de
mobilidade – para instalar a escravidão das chamadas “peças vermelhas” –, passando
pelo trabalho forçado até o assalariamento constrangido. As formas de escravidão e
semi-escravidão mostram que a liberdade indígena era apenas um recurso de
retórica, à medida que o ideário liberal estava em voga na metrópole. Contudo, a
exercício obrigatório do cultivo. Havia outra listagem com o nome dos lavradores e suas respectivas roças plantadas, os respectivos gêneros e qualidade, tendo em vista a distribuição das honrarias aos trabalhadores e o castigo dos ociosos e negligentes, que rejeitavam a prática obrigatória da cultura de suas terras.
110
ampliação do tempo de engajamento e do tempo de duração das limitações
impostas à mobilidade indígena mostrava exatamente o contrário.
Os investimentos feitos por essa instituição específica na formação do
mercado de trabalho e de sua constituição permanente exigiram um sistema de
regras para criar condições de regulamentação do regime de trabalho dependente. A
utilização do trabalho escravo visava assegurar a continuidade do processo
produtivo, sob o risco de fazer fenecer o próprio sistema colonial. Os indígenas –
“agentes não livres” – eram contratados sob a exigência de uma duração de trabalho
correspondente à necessidade de extração dos produtos, mas para assegurar ao
máximo a relação de dependência tornava-se também fundamental manter o
cativeiro do indígena, ou seja, a obstrução de sua liberdade. O paradoxo do contrato
de trabalho entre índios e colonizadores era vinculado ao fato de ser um
instrumento alheio ao indígena, embora fosse o centro da transação comercial no
Novo Mundo. A dialética perversa da transição capital/trabalho indígena mostra
ainda, no seio da acumulação, o índio reduzido e submetido ao trabalho por meio de
normas e técnicas de produção exógenas. A escravidão foi apenas uma das formas
malditas de redução da liberdade selvagem.
O Regimento das Missões alterou as regras de repartição de índios para
aumentar o número dos aptos ao trabalho. Com isso, a repartição passou a ser
realizada em duas partes: uma metade para os colonos e a outra para serviços e
obras infraestruturais do Estado colonial99. O tempo de trabalho dos indígenas antes
desse instrumento normativo era contabilizado em meses,100 devido ao tempo
necessário para a exploração e trato das drogas do sertão.
99 Pela legislação anterior, os índios eram divididos em três partes: a primeira ficava a serviço das aldeias; a segunda era destinada aos colonos; e a terceira ficava a serviço dos padres e das missões. Mas a exigência dos colonos e a necessidade de controle do processo de repartição provocaram a alteração dessa regra, determinando que a divisão fosse reduzida a duas partes: a primeira ficava nas aldeias até que fosse completado o período de “treinamento” e “adestramento” do trabalho e a parte disciplinada era destinada à repartição para o desenvolvimento das atividades privadas e das obras públicas do Estado. Essa nova regra de repartição deixou de fora os padres, pois cabia aos mesmos utilizarem os índios em adestramento. Essa era a questão central das disputas entre colonos e missionários da Companhia de Jesus e, naquele momento, os colonos haviam conseguido impor uma derrota aos jesuítas. Aos padres cabia ainda usufruir dos serviços de determinadas aldeias para atender suas necessidades. Além de índios dos descimentos, exclusivos para os serviços dos padres, eram encaminhados para essas aldeias os índios fugitivos, que se recusam ao trabalho compulsório. 100
A Lei de 1º de abril de 1680 que estipulava o tempo de extração das drogas estava em descompasso com o tempo de trabalho de índios. O tempo maior concedido para o Pará correspondia às dificuldades de penetração nos rios e a distância entre os sertões e sua sede administrativa. Com a institucionalização do
111
Um outro papel atribuído a esse regimento era a administração da norma que
visava garantir a duração da transação comercial justamente por estabelecer uma
troca extremamente desigual. O capital mercantil encontrava-se numa encruzilhada:
seu “projeto de civilização humanitária” em face da economia natural dos indígenas
jogava um papel decisivo para a aceleração e a ultrapassagem desse estágio; as regras
impostas pelo Regimento correspondiam às exigências de expansão da produção, de
composição de relações estáveis, a partir do hiato da força de trabalho, isto é, da
redução dos custos de transação no contexto de expansão da economia-mundo. Daí
a necessidade da supressão da liberdade selvagem. A repartição de índios, por
exemplo, só era efetuada quando os riscos de fuga fossem menos prejudiciais. Nesse
sentido, a doutrina cristã funcionava como um dos instrumentos mais eficazes para
a redução de índios em trabalhadores nas roças privadas e nos empreendimentos do
Estado. Não lhes era permitido deixar as terras onde habitavam enquanto não se
tornassem cristãos, ou seja, até o momento em que estivessem preparados para
exercer as atividades para as quais haviam sido destribalizados.
As aldeias e os povoados assinalaram a presença da Igreja e do Estado como
fonte do poder colonial e como instituições reguladoras que serviam para conter a
liberdade selvagem. A floresta para os indígenas era o espaço da liberdade e a fuga
constituía uma estratégia de saída da regulação, prática de resistência típica no meio
natural. No período da colonização, a fuga passou a figurar como uma condição ex
ante a liberdade da vida na floresta, uma ação efetiva de resistência ao próprio
extermínio, um gesto viril que contrastava com o uso da palavra e das tentativas de
conversão do gentio ao modus vivendi do branco, como veremos a seguir.
O significado econômico da política de formação de uma oferta de mão-de-
obra para a constituição do mercado dependente é contraposto ao significado dos
modus operandi da floresta. Isso nos remete, necessariamente, aos fundamentos das
normas jurídicas que foram produzidas e aplicadas como meios de conversão das
populações indígenas em massa de trabalhadores. As diversas formas de controle de
sua mobilidade tiveram que enfrentar o problema da fuga e da recusa ao trabalho.
Regimento das Missões, esse tempo foi prolongado em mais quatro meses, passando para seis meses no Grão-Pará e quatro meses no Maranhão, excetuando o caso de São Luiz, que correspondia ao mesmo tempo dispensado ao Pará.
112
Para os colonizadores esse problema era considerado um dado extremamente
negativo, devido o alto índice de rejeição ao trabalho regulado, o que perturbava o
comando estatal ao elevar os custos de operação da economia-mundo. A fuga e a
recusa ao trabalho obstruíam as empresas coloniais, ao mesmo tempo em que
abriram espaço para a liberdade formal do indígena, constituindo o começo de uma
longa trajetória de oposição às formas vis de trabalho regulado. A potência
selvagem, em sua imanência, marchou contra o controle e a subordinação.
A análise dos custos de passagem da liberdade selvagem ao trabalho regulado
precisa levar em consideração não somente as receitas contábeis, mas também as
fugas e deserções e o extermínio de nações inteiras de índios. A dinâmica de
constituição material foi provocada na extensão, paradoxal, entre o confisco
imanente entre a apropriação privada da natureza amazônica e a dissolução da
liberdade selvagem no curso histórico da redução do trabalho indígena à condição
de trabalho livre. Porém, na passagem da economia natural para a economia de
mercado, o capitalismo mercantil, via Estado colonial, assegurou a tutela do
indígena para reduzi-lo à condição de trabalho dependente, o que torna mal contada
a história da resistência e das lutas, pois os indígenas jamais se renderam e buscaram
na experiência da fuga o retorno a sua origem, isto é, a liberdade da vida na floresta,
seu espaço habitual.
Como conseqüência desses conflitos houve a reestruturação das aldeias, que
passaram a ser administradas por civis. Essa alteração ocorreu após a expulsão mais
uma vez dos missionários, criando-se uma inflexão na política indigenista tendo em
vista assegurar práticas arrojadas para dinamização do comércio. Findava assim o
período marcado pelo comando dos missionários e iniciava-se uma nova engenharia
político-econômica do poder constituído para expandir a apropriação territorial e, ao
mesmo tempo, intensificar a extração de produtos naturais sob domínio do Estado
colonial português, que passou a agir diretamente na oferta de mão-de-obra.
Com a extinção do Regimento das Missões houve uma nova organização
social: as fazendas dos missionários foram confiscadas e transformadas em
povoações e vilas, mas as melhores fazendas de gado que pertenciam às ordens
113
religiosas foram distribuídas para os servidores do Estado colonial101 e os índios das
aldeias obtiveram a condição de libertos.
101 Essa distribuição seguiu critérios hierárquicos: primeiro para os oficiais que desejassem se estabelecer naquela localidade, depois para homens considerados dignos, que haviam empobrecido e se tornado miseráveis.
114
II.2 Resistência e fuga do trabalho regulado
O domínio do Estado colonial não deixou outra saída aos indígenas a não ser
a conquista da liberdade por via da defecção102. As fugas e deserções produziram o
“mercado da liberdade” na contraface do processo de institucionalização do
trabalho regulado, em que a utilização de instrumentos brutais gerou um campo de
lutas entre colonizados e colonizadores. Os índios foram os próprios sujeitos da
quebra dessa dinâmica da regulação do trabalho, uma vez que a liberdade para o
Estado colonial não era outra coisa senão um projeto meticuloso de inserção dos
povos autóctones à economia-mundo.
A política de quebra da liberdade indígena continha, desde sua origem, um
movimento bipolar: de um lado a ação de controle da vida do índio e de outro a
reação contrária a esse processo de ruptura da liberdade selvagem. Os agentes da
colonização produziram expedientes de apropriação que geraram um efeito
bumerangue na estruturação da economia-mundo, ao erguê-la a partir da
estruturação do padrão de trabalho escravo.
Nesse processo, a história oficial esquece-se de que foram os índios que
produziram as primeiras experiências de liberação em face da tentativa de
subordinação da liberdade selvagem. Esse deslocamento provocado pela resistência
indígena ainda precisa ser mostrado103, pois a valentia selvagem de cada cabano
102 A liberdade dos povos autóctones foi fruto das lutas que foram ganhando espaço até explodirem na Cabanagem. 103 A legislação do processo de liberação do indígena é uma temática que precisa ser estudada, pois ela pode evidenciar o processo contínuo de disputas entre colonizados e colonizadores e mostrar ainda o ativo da fuga como elemento de liberação definitiva. Isto pode ser visto nas leis contra a escravidão de índios. Podemos citar, por exemplo, a lei de 10 de setembro de 1611, através da qual o espaço da liberdade foi sendo ampliado e as exceções para a escravidão do indígena abolidas: “Hoy por bem, e mando, que assim os ditos Gentios, como outros quaisquer, que até á publicação desta Ley forem cativos, sejão livre, e postos em sua liberdade” (Moreira Neto, 1988, p. 58). Já a lei de 1647 reforça a liberdade dos indígenas, isentando-os de toda escravidão: os índios passavam a ter status de cidadãos portugueses, “sem distinção, ou exceção alguma, para gozarem de todos as honras, privilégios, e liberdade, de que meus Vassalos gozam, conforme as devidas graduações e cabedais” (idem). No entanto, a lei de 9 de abril de 1655, retoma as restrições já previstas na lei de 1570 e a proibição do cativeiro de índios começava a ser novamente relaxada. As exceções regulamentam a prática de escravidão indígena sob o espectro dos prisioneiros de guerra, dos índios que não permitissem pregação religiosa e aqueles que praticassem o canibalismo, além dos rendidos em guerras justas. Essas medidas revelam a necessidade de recorrência ao cativeiro como prática de subordinação dos índios, sempre desejada, uma vez que não eram atingidos os índices de oferta de trabalho indígena. Essa contradição aparece ainda na lei de 1º de abril de 1680, que retoma a preocupação com a escravidão indígena ao reconhecer a injustiça do cativeiro e os meios ilícitos pelos quais os moradores do Maranhão vinham escravizando os índios.
115
(“índio sem memória” de seu passado), é registrada como fato menor, haja vista a
destruição de sua identidade.
Como afirma Moulier Boutang (1998), o trabalho livre, sob a forma
assalariada desconhece sua origem, pois na história dos vencedores são enaltecidos
os feitos heróicos dos dominadores. Os extermínios, massacres, cárceres, escravidão
e torturas tornaram-se formas banais de destruição da alteridade. Esses métodos de
domínio tiveram como função fechar o caminho da rebeldia – móvel concreto das
mutações. No entanto, a liberdade dos indígenas e sua potência selvagem
registraram a força constituinte que tramou os primeiros passos da autonomia em
solo amazônico.
No plano da história universal, os sujeitos majoritários das lutas contra a
redução e a opressão não são considerados pelos méritos que tiveram em abolir
cotidianamente as formas de obstrução do domínio; muito pelo contrário, são
considerados “rústicos”, “vândalos”, “bárbaros” e, mais tarde (os cabanos)
“facínoras” e “criminosos”. Nesse sentido, no campo estreito da mobilidade do
trabalho dependente, foi sendo construída a pulsão da vida na superação da
violência, da brutalidade e da dor. Em situações de extrema falta de liberdade
gestou-se a resistência como recurso essencial produzida na via do êxodo, da fuga
que se torna rebeldia – muitas vezes a única condição para a criação de novas
possibilidades.
Na marcha da liberdade, a resistência dos indígenas em tornarem-se imagem
e semelhança do outro (cidadão formal de direitos português) levou-os quase à
extinção. As formas de aprisionamento e destruição de seus corpos, de seus hábitos
e costumes, geraram ações desesperadas e, ao mesmo tempo, revolucionárias, por
mobilizarem o desejo de liberdade. Eles jamais se ajustaram às formas de contenção
de suas vidas, apesar das mil formas de redução da potência selvagem. Para a
expansão da colonização portuguesa no Norte foi preciso bloquear a liberdade
selvagem, ou seja, a resistência determinada pela mobilidade do trabalho nômade
dos povos indígenas. Nesse caso, as fugas e as deserções eram o passaporte de saída
do aprisionamento e para o retorno à vida na floresta.
116
A tentativa de subordinação dos indígenas resultou nas práticas de recusa ao
trabalho regulado, expressando-se nas próprias alterações dos padrões de trabalho
dependente. Os diversos mecanismos de redução e controle tentavam apagar, a todo
custo, a identidade do homem da floresta. As evasões, fugas e deserções tornaram-
se estratégias vitais de manutenção da vida em face das mutações de seus padrões
culturais. Nesse aspecto, os índios foram extremamente hábeis e produziram a
defecção do próprio sistema colonial. A fuga renitente provou ser uma alternativa
viável na reconversão da liberdade, pelo menos em períodos temporários, uma vez
que os índios descidos, aldeados e repartidos entre os colonizadores não se
contentaram com as promessas da vida civilizada.
Assim, a resistência dos indígenas ao mando dos colonizadores exigiu a “mão
forte” e efetiva do Estado colonial, pois o índio desertor, o escravo fugitivo e o
homem livre – “vagabundo” – precisavam ser enquadrados pelas leis firmes, isto é,
os regimentos de constituição do mercado de trabalho.
Com a institucionalização do Diretório de Índios104, as antigas aldeias foram
transformadas em centros urbanos e vilas105 e as mais populosas passaram a
funcionar como base de controle106. O comando civil exercido diretamente por
funcionários do governo condicionava a administração das vilas e povoados, como
uma política de racionalização do Estado. Nas vilas havia a exigência de Juízes 104 “Directorio, que se deve observar nas povoaçoens dos indios do Pará, e Maranhaõ, em quanto su Magestade naõ mandor o contrario”. Alvará com força de lei de 7 de junho de 1755. 105 Na condição de Governador Geral da Colônia Portuguesa do Norte, Francisco Xavier de Mendonça Furtado enfrentou as exigências dos colonos e provocou o relaxamento da legislação relativa à liberação do trabalho indígena, pois havia o risco de falência da Colônia. Desta forma, ele postergou a liberdade formal dos indígenas e permitiu o retorno à escravização destes por meio de exceções. Para fazer progredir sua política de aportuguesamento, alterou os nomes indígenas dos aldeamentos para nomes de língua portuguesa, escolhidos “em concordância com as Vilas da Casa Imperial de Bragança, da Coroa, das Terras da Rainha, do Infantado e da Ordem de Christo” (Carta de 13 de junho de 1757, Anais do Arquivo Público do Pará). Os jesuítas foram expulsos e as demais ordens religiosas é que passaram a ser responsáveis pela educação espiritual dos indígenas. Os 65 aldeamentos criados pelos missionários tornaram-se vilas e povoados, recebendo denominação de cidades de Portugal. As concentrações populacionais maiores, como as aldeias de Bragança, Chaves, Vila Nova D’El Rei, São José de Macapá, Alenquer, Almerim, Óbidos, Santarém, Ourém, Portel, Melgaço, Porto de Móz, Soure, Souzel, Faro, Thomar, Moura, Silves, Serpa, Ega, São Paulo de Olivença e São José de Javary, passaram a ser governadas por seus respectivos Principais. Esse Alvará determinou um Diretor para cada povoação, uma vez que considerava os índios como indivíduos incapazes de se autogovernarem. 106 Nesses espaços existiam os aparatos jurídicos de coerção para moldar as nações indígenas. A catalogação de etnias diferenciadas registrava as diversidades culturais, visando estabelecer o controle a partir do conhecimento de cada grupo específico e da criação de regras para a redução nos povoamentos compulsórios. Os Diretórios de Índios comandavam esses processos e contavam com o apoio de Juízes Ordinários, Vereadores, Oficiais de Justiça e Principais. Esse corpo burocrático era responsável pela vigilância e fornecimento de índios às povoações. Os descimentos passaram a ser realizados sob as custas da Fazenda Real e a religião passou a ter papel coadjuvante nas atividades de persuasão ao trabalho.
117
Ordinários, Vereadores e Oficiais de Justiça e, nas aldeias, as autoridades
constituídas eram os Principais107. Os índios não tinham, até esse momento,
adquirido o estatuto de cidadãos portugueses, nem mesmo o direito de propriedade,
o que passou a ocorrer formalmente a partir desse instrumento jurídico que se
orientava pela centralidade da comunicação e do comércio. Para isso, o indígena
precisava ser integrado às normas legais do Estado colonial, passando assim a ser
admitidos como súditos do rei. Todavia, essa era mais uma política do Estado
colonialista de redução de índios devido à necessidade de aumento de suas funções
burocráticas na colônia.
O Diretório de Índios garantiu a laicização da organização social do trabalho
indígena e acelerou o processo de racionalização do sistema mercantil, isto é, da
transação capital mercantil/trabalho dependente, o que na gestão dos missionários
não foi obtido do modo desejável. O poder temporal dos índios passou a ser
exercido pelo Estado através de métodos de regulação da vida dos indígenas nas
cidades, vilas e povoados. Com esse regimento buscava-se incorporar os índios
diretamente às atividades comerciais, a partir de um rígido esquema de controle
ditado pelas regras das relações comerciais – atividade econômica central no regime
de acumulação colonial. Assim, uma nova racionalidade foi sendo constituída como
método de transação capital mercantil/trabalho indígena, em que a liberdade
aparece no contexto de desfiguração étnica do indígena. A fusão de culturas tão
diferenciadas foi potencializada na constituição do próprio cabano, um novo
homem que foi sendo forjado no cadinho da miscigenação, da resistência ao
trabalho e ao modus vivendi em vilas e povoados108. Neste tipo de aglomeração
experimentava-se um ambiente social em que tudo era novo, apesar dos limites
colocados pela continuidade da política de descimentos que procurava aumentar as
povoações e, conseqüentemente, o número de trabalhadores. O estímulo ao
trabalho era efetivado por meio de incentivos oficiais para as pequenas propriedades
familiares.
107 Tratava-se de índios “aportuguesados”, que utilizavam a língua do dominador como instrumento de aceleração do processo de transformação de sua própria cultura. 108 Essas vilas deveriam ter um número mínimo de 150 habitantes.
118
Na administração civil das cidades, vilas e lugarejos, as relações entre
portugueses e índios davam-se no sentido de uma autonomia reduzida109, pois os
índios eram considerados incapazes de gerir seus próprios negócios, devido a sua
“rusticidade” e “ignorância”. Nesse novo regimento de controle da mobilidade do
trabalho nômade, o Estado colonial jogava um papel essencial no estabelecimento
de novas regras jurídicas para elevar a oferta de produtos naturais. As mudanças
visavam baixar os índices de perdas por deserção e fuga dos indígenas.
Os índios passaram a ser submetidos às novas regras de transação
capital/trabalho dependente e a resistência tornou-se vital para sua liberação. Eles
rejeitaram a condição de engrenagem da máquina colonial, mostrando-se assim
como uma peça que não se moldava e, ao contrário, promovia a defecção na luta
infanticida pela liberdade, fenômeno esse que desnorteou o mercado de trabalho
enlutado pela infatigável defesa da liberdade selvagem.
O indígena, na condição de agente da transação capital/trabalho, arrastou as
políticas de controle do Estado colonial e endogeneizou os custos crescentes da
produção colonial ao desestabilizar o mercado de trabalho. Assim, a dificuldade de
garantir controle total gerou modificações constantes nas estruturas organizacionais
da Colônia, tais como as freqüentes alterações de regras para a manutenção do
contrato de trabalho constrangido, bem como das normas de regulação da própria
vida na Colônia. Estas mutações visavam contrabalançar os efeitos da fuga em todo
o sistema colonial e reduzir os custos de transação da economia-mundo, para
garantir o capital variável nas fronteiras das terras conquistadas.
Por essas razões, tratar o índio como cidadão português tornou-se um
dispositivo de fixação do trabalho dependente, uma exigência da economia-mundo,
que reconhecia na prática sua impossibilidade de reduzir a liberdade selvagem à
escravização. O colonizador foi compelido a manter a rigidez das normas de
redução nas povoações, mas sobre outros moldes, ou seja, fixando o indígena e
tornando-o dependente até que nenhuma mobilidade geográfica fosse possível.
Nessa relação ocorreu uma estreita ligação entre as formas de ordenamento dos
contratos e as condições gerais da sociedade colonial. A destituição da etnia indígena
109 Com a liberdade formal dos índios era proibida qualquer prática de escravização, até mesmo aquelas produzidas por meio de exceções.
119
e a construção de uma identidade cívica foram articuladas formalmente de acordo
com os padrões da metrópole, havendo inclusive o re-ordenamento da política
salarial. As atividades de comércio foram introduzidas nas povoações remanescentes
das aldeias como mais um mecanismo de “civilidade”, condição primordial para a
identificação do indígena com o colonizador.
Nesse estágio, os casamentos mistos ou inter-raciais entre brancos e índios110
foram reforçados e acabaram favorecendo paradoxalmente a burla da escravidão e a
aceleração da constituição dos cabanos, pois funcionavam como uma prática de
identificação do indígena ao português111, mas também como fomento à liberdade
de fato e de direito. Pelo casamento o Estado oferecia “dotes” em terras e
instrumentos de trabalho e outros auxílios. As crianças nascidas desses enlaces –
índios/portugueses – dotavam seus pais de um estatuto específico, pois abriam
espaço para a mudança de suas residências das povoações e recebiam até mesmos
favores para que erguessem suas casas e para o estabelecimento de suas famílias112.
As casas unifamiliares passaram a ser construídas sob os moldes da
arquitetura portuguesa e tinham como função destruir os costumes de vida nas
aldeias, pois estas últimas não preservavam a privacidade das famílias indígenas,
consideradas como elemento de incivilidade113. Essa política visava criar uma
semelhança entre índios e portugueses114, porque o procedimento de dar nomes e
sobrenomes de famílias portuguesas aos índios aprofundava o processo de
110 Nas aldeias essa prática era proibida e, com o novo regimento, passou a ser incentivada. 111 Os civis que se relacionassem com os índios davam mostras exemplares de honra e privilégio. 112 O Diretório de Índio intervinha até mesmo na questão do vestuário, tendo em vista criar o hábito da vestimenta, uma vez que a nudez na cultura indígena era algo natural. Para os colonizadores, esse costume levava não ao cultivo da virtude, mas à manutenção da rusticidade. Os novos hábitos e costumes mostravam a condição de não diferença qualitativa entre as duas raças. Na condição de súditos do rei não era permitido que índios ou índias andassem nus, especialmente as mulheres, o que ocorria em quase todas as povoações, para escândalo da razão e horror dos brancos. 113 O Diretor tinha, portanto, a função de agir sobre o problema e superar a promiscuidade que reinava nos espaços de moradia dos índios, trazendo-os à decência. O hábito de coabitarem diversas famílias em um mesmo ambiente levava-os a serem comparados aos brutos. 114 Pelo Diretório de Índios nenhum civil podia se apossar das terras distribuídas a eles. A ordem era pacificá-los e, por isso, não se podia destratá-los nem mesmo por meios lícitos, de dívida ou a título de contrato, doação etc. Os civis habitantes das povoações eram obrigados a viver em paz e em concórdia com os índios de acordo com as leis de civilidade. A igualdade era proclamada, pois os índios eram considerados vassalos e deveriam ser honrados por suas qualidades e por desenvolveram funções de Estado. Os empregos honoríficos eram ofertados aos índios que tivessem alguma habilidade especial ou que fossem capazes de desenvolver as atividades vinculadas ao governo colonial, mas a preferência era dos homens brancos; estes últimos eram admitidos nas povoações com o intuito de civilizar os índios e incentivá-los à cultura das terras que lhes haviam sido distribuídas, pois o trabalho manual passava a ser recompensado com honras, por constituir algo importante para o bem público.
120
“aportuguesamento”. Através dessa prática os índios eram facilmente identificados
nas povoações, configurando-se mais uma política de controle. O aprendizado do
idioma português obrigatório também fez parte dessa política de aportuguesamento
dos indígenas nos povoamentos.
Nesta mesma perspectiva, para consolidar o “projeto de civilização” junto ao
indígena, foram criadas duas escolas públicas fundadas sob princípio da
escolarização sexista, considerada básica para a civilidade das crianças indígenas em
cada povoado. A escola sexista foi organizada, obrigatoriamente, para que houvesse
professores do sexo masculino e do sexo feminino115. O ensino passou a ser
realizado de modo separado: para as meninas116, o ensino da leitura e da escrita era
acompanhado do adestramento na fiação, feitura de renda e de conhecimentos
acerca da cultura portuguesa; e, os meninos, além da leitura e da escrita, deveriam
aprender as operações matemáticas. Para ambos era difundida a doutrina cristã. Na
formação de meninos e meninas indígenas era proibido o uso de sua língua-mãe,
considerada a causa da ruína espiritual e temporal da Colônia Portuguesa do
Norte117. Essa prática era caracterizada como “perniciosíssimo abuso”, que
precisava ser definitivamente desterrado118. A identidade do outro – do colonizador
– era assimilada, para favorecer a apropriação desejada pelos portugueses.
Com esse novo Regimento, a cristianização tornara-se um dispositivo
coadjuvante, pois as Dioceses auxiliavam os Diretores nas tarefas de formação da
civilidade dos indígenas, através de cuidados especiais, como a introdução da prática
do idioma do conquistador considerado um meio eficaz “para desterrar dos povos
rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes119”. A língua do colonizador era
uma condição sine qua non para se garantir, conforme enfatiza Maquiavel (1999), a 115 O pagamento dos salários desses professores era obrigação dos seus próprios pais, ou seja, dos índios, ou por “pessoas, em cujo poder elles viverem, concorrendo cada hum delles com a porção, que se lhes arbitrar, ou em dinheiro, ou em effeitos, que será sempre com atençaõ á grande miséria, e pobreza, a que elles presentemente se achaõ reduzidos” (Diretório, §§7-8). 116 “No caso, porém de naõ haver nas Povoaçoens Pessoa alguma, que possa ser Mestra de Meninas, poderáõ estas até á idade de dez annos serem instruidas na Escola dos Meninos, onde aprenderáõ a Doutrina Christãa, a ler, e escrever, para que juntamente com as infalliveis verdades da nossa Sagrada Religiaõ adquiraõ com maior facilidade de uso da Língua Portugueza” (idem). 117 Essa instrução, embora já tivesse sido repassada aos missionários, não era cumprida, mas ao contrário, buscavam apreender a língua local como princípio para o processo de evangelização dos índios. 118 A língua tupi, difundida pelos missionários, como língua geral foi abolida, pois era considerada uma prática abominável e diabólica, uma vez que privava os índios dos meios de civilidade, mantendo-os sob rústica e bárbara sujeição. 119 Diretório de Índio.
121
conquista do príncipe, e não o afeto, como pensava os humanistas da época. A
veneração e a obediência, nesse caso, eram frutos de uma forte redução do indígena
às instituições coloniais.
Por essa política, os índios tornaram-se vassalos úteis e honrados, o que
significava assumir os padrões de comportamento impostos pela ideologia
portuguesa. Eles foram incentivados ao cultivo de suas terras, tendo como modelo a
economia-mundo comandada pela metrópole portuguesa. O princípio divulgado era
de que a venda dos produtos cultivados aumentava a capacidade de aquisição de
bens na mesma proporção das lavouras cultivadas, o que tornava o trabalho
indígena uma necessidade para o sustento das casas e famílias e para a riqueza do
Estado colonial. Para o convencimento dos indígenas e como mais uma tentativa de
obter sua colaboração designava-se cargos e funções burocráticas. No entanto, os
empregos honoríficos eram também impostos pela própria realidade, uma vez que
não havia homens brancos suficientes para ocuparem os cargos inerentes ao
funcionamento do Estado. Isso se tornava evidente nas medidas como a que
estabelecia regras amenas para os índios assentados em suas próprias terras.
Segundo essas regras, os índios não seriam recrutados para os serviços do Estado,
pois eram considerados cidadãos colaboradores.
Essas variáveis institucionais e comportamentais enriqueceram o universo da
miscigenação. O Diretório de Índio visava, com todas essas normas e regras, criar
uma nova organização social, promovendo a quebra definitiva dos laços das
sociedades pré-capitalistas e das orientações dos missionários, implementando a
laicização e, ao mesmo tempo, a racionalização do trabalho. A administração civil
das vilas e povoações favoreceu o desenvolvimento da agricultura e do comércio
como elementos chaves para a acumulação sob a base do capitalismo mercantil.
Nesse contexto, o comércio era considerado fonte da riqueza dos povos, da
civilização das nações e do poder das monarquias. Assim, a agricultura corroborava
a apropriação dos produtos naturais da região e as drogas do sertão eram colocadas
como produtos de exportação da Colônia Portuguesa do Norte. Era preciso, no
entanto, estabelecer graus de racionalização nesse tipo de atividade econômica em
contraposição às práticas de coleta indígena que empregavam técnicas rudimentares.
122
Os índios não se preocupavam com a produção de excedentes, mas o cultivo da
terra tornava-se obrigatório, uma vez que a simples coleta não seria suficiente para
atingir índices satisfatórios de produtividade.
Os Diretores de Índios faziam um exame para saber se as terras cultiváveis120
eram suficientes para a produção de excedentes e para a garantia do sustento das
famílias indígenas. Quando as terras não eram suficientes para atingir a meta pré-
estabelecida, recorria-se àquelas adjacentes às povoações; e se estivessem sob o
regime de sesmaria, os Diretores providenciavam uma nova distribuição de terras
para atender as demandas do Estado colonial português. Diante desse diagnóstico,
eram incentivadas as plantações e lavouras, que eram comercializadas em benefício
do Estado colonial e da garantia de sobrevivência do próprio povoado121.
As terras que compunham a Colônia Portuguesa do Norte eram consideradas
excelentes produtoras de frutos para a venda. Entretanto, a falta de manejo
adequado do trabalho indígena estava levando seus moradores a miséria, sendo
necessário dinamizar o comércio para se obter abundância em pão e víveres
fundamentais para a conservação da vida humana. De acordo com as normas do
Diretório de Índios, para alterar essa situação era preciso superar dois obstáculos
básicos: o primeiro diz respeito à ociosidade, “vício quase inseparável e congênito a
todas as nações incultas, que sendo educadas nas densas trevas da sua rusticidade
não tinham o hábito do trabalho (...)” (Diretório § 20); o segundo, se relaciona à
forma como até então se fazia uso do trabalho indígena: o tratamento a eles
dispensado precisava ser alterado, com a aplicação de novas formas de controle para
extrair cada vez mais excedentes, pois do contrário, a resistência indígena destruiria
o próprio império colonial.
A administração do Estado colonial buscava assim superar o obstáculo da
recusa, introduzindo novos métodos de adesão ao trabalho indígena. A agricultura e
as drogas do sertão tornaram-se atividades independentes, criando ramos específicos
de comércio que eram controlados pelos Diretores de Índios que também
monitoravam a produção agrícola. O trabalho indígena tornava-se uma prática
120 De acordo com essa lei, a ociosidade era prejudicial, sendo incentivado o cultivo das terras situadas em torno das povoações. 121 A produção é estruturada a partir da organização unifamiliar.
123
autônoma e não mais subordinada a terceiros. Para o Estado, os índios eram
capazes de produzir de modo independente, mas precisavam ser tutorados no labor
de suas próprias terras para que não houvesse prejuízo irreparável à comercialização.
Este trabalho, via de regra, era acompanhado pelo Diretor de Índio, pois, do
contrário, ocorria o risco da recusa do trabalho.
A formação e a diversificação dos ramos de produção em cada povoado
eram uma exigência, pois a existência de um único produto reduziria a atividade do
comércio interno e impossibilitaria a troca de gêneros entre as povoações. O
incentivo à plantação de lavouras tornou-se central para a produção diversificada
necessária ao incremento das atividades comerciais. Foram criadas regras específicas,
de acordo com a localização das povoações: aquelas mais próximas ao mar ou às
margens de rios deviam se dedicar à produção de peixes salgados, a fim de constituir
um ramo de produção específico.
A decorrência dessa organização estrutural foi a constituição de ramos de
produção que favorecessem o controle e o processo de comercialização. As drogas
do sertão eram consideradas um ramo econômico importante e, por isso, os
Principais ofereciam lucros aos índios interessados, de acordo com a quantidade de
produtos extraídos. Na falta de mão-de-obra para essa atividade, os próprios
Principais, Capitães-mor, Sargentos-mor e Oficiais – funcionários do governo do
Império nas povoações – se envolviam na extração dos produtos para que os
mesmos não faltassem. A extração era uma das razões do próprio Estado colonial
no Norte, por isso os ocupantes desses cargos oficiais abandonavam suas próprias
honrarias para se dedicarem à extração das drogas do sertão e conseqüentemente à
sustentação do Estado122.
O tabaco era outro gênero comercializável, e seu cultivo já havia sido
experimentado em outras partes da América do Sul. Esse produto servia ao mercado
interno, mas tinha possibilidade de ampliação para a metrópole. A venda e a troca 122 Na falta de trabalhadores para esse tipo de atividade comercial, os Principais recrutavam “seis índios por sua conta, naõ havendo mais que dous Principaes na povoaçaõ: E excedendo este numero, poderaõ mandar até quatro indios cada hum; os capitaens mores, sargentos mores quatro; e mais officeaes dous; os quaes devem ser extrahidos do numero da repartição do povo; ficando os sobrediotos officeaes com a obrigaçaõ de lhe satisfazerem os seus salários na forma das Reaes ordens de Sua Magestade. E querendo os ditos principaes, capitaens mores, e sargentos mores, voluntariamente ir com os indios, que se lhes distribuírem, á extracçaõ daquellas drogas, o poderaõ fazer alternativamente, ficando sempre metade dos officeaes na povoaçaõ” (Diretório, § 50).
124
desse gênero agora começava a ser assentada na população local. Por ser
considerada uma lavoura laboriosa, também eram oferecidas honrarias aos índios
que se dedicassem a essa produção, como empregos e privilégios pelas arrobas que
entrassem na Casa de Inspeção.
O aumento das atividades cultivadas, produzidas ou extraídas em cada vila ou
povoação era garantido pelas Câmaras ou pelos Principais. No caso das drogas do
sertão, eles encarregavam-se das providências como canoas e mantimentos,
instrumentos e material necessário às expedições, tendo em vista que tais drogas
precisavam ser colhidas em tempo hábil para que as safras não fossem perdidas.
Com o Diretório de Índio, as regras de organização da produção relativas às leis da
natureza foram substituídas pelas leis da razão instrumental, que criava a unidade
entre o corpo físico do índio ao corpo social do Estado; e isto só foi possível pelo
milagre que tornou a população local membro do Estado. Essa união, muitas vezes
carnal, foi capaz de garantir a redução da liberdade selvagem em súditos do Estado
português, a despeito de todas as adversidades.
Havia uma determinação aos Diretores de Índios: “fabricar-se mais em
menos tempo, com menor número de trabalhadores123”, característica central da
economia capitalista, já que reduzia os custos de produção. Outro elemento
importante para a comercialização era o interesse/utilidade que os produtos
despertavam, isto é, sua dupla qualidade: valor de uso/valor de troca, o que
contribuía para a realização do circuito comercial na Colônia.
Por isso o transporte tornou-se um ramo estratégico a fim de dinamizar a
rotatividade do mercado, um elemento vital para o incremento da produção e do
escoamento de produtos, pois a prática comercial na Colônia era a chave para a
acumulação na metrópole. O transporte de mercadorias passou assim a ser uma
atividade vital. As leis da economia dos transportes foram estabelecidas por parte da
Coroa para garantir a circulação interna das mercadorias na Colônia, sem prejuízo
para o Estado colonial.
A dificuldade para o transporte de gêneros pelos diversos rios da região
deslocou grande parte da responsabilidade do Estado para os próprios índios que,
123 Diretório de Índio, § 20.
125
mais uma vez, passaram a arcar com os riscos da transação comercial. Eles além de
dar conta de conduzir seus próprios produtos para serem vendidos nas vilas e
povoados foram também responsabilizados pelos prejuízos acarretados durante o
trajeto dos produtos comercializáveis.
A Coroa passou a exigir a seletividade na escolha dos Cabos que
comandavam as canoas para o transporte dos produtos comercializáveis, peça
central na engrenagem da colonização, tendo em vista que deles dependia toda a
produção colonial. A melhor canoa, bem como a pessoa mais preparada para a
execução de tal tarefa era destinada para o transporte e qualquer problema seria
imputado aos descuidos do Diretor de Índios, que arcaria com o custo dos danos à
Fazenda Real.
Assim, a aceitação dos Cabos passava ainda pelo crivo do Estado e a seleção
dos mesmos recaía sobre os índios menos dados aos vícios124. Os comportamentos
ditavam as regras para o estabelecimento desse cargo, uma vez que a perda da
produção por deserção dos Cabos ou desvio de produtos acarretava grandes
prejuízos ao Estado. A nomeação de Cabos para o comando das canoas passou a ser
uma das funções especiais de Diretores e Principais, que precisavam acertar em sua
escolha. As virtudes exigidas para esse tipo de trabalho eram a fidelidade e a lealdade
aos membros do Estado colonial. Essas virtudes eram registradas no termo de
aceitação da tarefa. Esse documento obrigava os mesmos a penhorarem seus
bens125, a fim de que dessem conta da atividade recebida para o bem da expedição.
Com essas medidas, a incerteza da entrega das cargas aos seus destinatários
era um fator de risco que não cabia mais ao Estado, pois os custos gerados pelas
perdas eram repassados aos índios. Suas habilidades deviam corresponder a: a) uma
conduta racional para otimizar a função da produção e conseqüentemente do lucro
referente a essa atividade econômica intermediária e b) um meio para determinar e
executar essa atividade sem riscos para o Estado ou para os Diretores de índios. O
124 O uso de bebida alcoólica (como a cachaça) foi considerado um vício adquirido com os portugueses, e devia ser proibido, pois concorria para a incivilidade dos mesmos. A abolição desse hábito era uma das condições para que os índios pudessem se tornar membros do Estado. O Cabo da canoa que fosse encontrado com esse produto era preso e encaminhado ao Governador do Estado, enquanto a bebida voltava para a povoação, mas para outros destinatários. 125 A penhora tinha com função ressarcir os possíveis prejuízos por ato de negligência na operação encarregada.
126
desvio de carga era punido com a prisão dos Cabos, o que resguardava Diretores,
Câmaras e Principais dos prejuízos que porventura ocorressem no trajeto dos
produtos do sertão para as vilas e povoados.
Os custos da produção e do transporte das cargas do sertão passaram a ser
imputados aos índios, uma vez que a vigilância era cerrada. A economia dos
transportes apresentava-se assim como um dispositivo para internalizar os custos da
produção das drogas do sertão, deixando para os indígenas mais uma sobrecarga de
compromissos, não importando se essas decisões acabariam destruindo a frágil
economia doméstica, construída sob pressão ou mesmo coerção. Essa decisão
estava relacionada às perdas constantes da Coroa portuguesa e aos custos das
transações dos produtos, principalmente do sertão, cujo questionamento era ditado
pelas fugas e deserções. O transporte de cargas era promovido a partir de uma
política econômica cínica centrada no cálculo racional.
A “liberdade” que os índios tinham para transportar seus produtos126 não
correspondia ao usufruto na mesma proporção, ou seja, para vendê-los os índios
eram vigiados e sua produção era registrada à parte. Os Diretores de índios
desenvolveram técnicas especificas para determinar a qualidade e a quantidade dos
produtos gerados. Essas medidas de controle visavam à racionalização da produção
para reduzir os custos das operações.
O suposto desinteresse dos índios sobre as práticas comerciais levava os
moradores a tirarem vantagens. As transações econômicas fraudulentas garantiam
superávits comerciais, pois os negócios convencionados entre as partes eram
realizados sob o princípio da desigualdade real entre comerciantes. O escambo que
os índios praticavam não tinha por base o valor abstrato de cada gênero, mas
simplesmente o uso dos mesmos. Por esse motivo, era proibida a realização de
qualquer negócio sem a assistência dos Diretores, justamente para evitar que os
comerciantes praticassem o dolo na troca mercadoria/mercadoria efetuada com os
índios.
126 Esses produtos consistiam em drogas do sertão, manteiga de tartaruga, peixe salgado, óleo de copaíba e azeite de andiroba, os quais eram fabricados pelos indígenas. Eles detinham as técnicas de manuseio e preparação desses produtos, mas o Estado exigia-lhes qualidade.
127
Os índios tinham o direito de comercializar seus próprios produtos devido às
prerrogativas de cidadãos portugueses e vassalos da Coroa, e assim não podia ser-
lhes negada a oportunidade e a liberdade de venderem ou trocarem seus gêneros.
No entanto, essa liberdade era restrita. Os Diretores, de modo algum, deixavam-nos
realizar essas atividades sem o acompanhamento do Estado. Outro limite dessa
liberdade era determinado em função do fato de as trocas serem realizadas mais
entre produtos, facilitando a comercialização de mercadorias da metrópole. Por
exemplo, os tecidos eram muito utilizados nessas trocas, pode-se dizer que serviam
como equivalente geral (Marx, 1994), pois o dinheiro-moeda era escasso e o tecido
tinha ainda a utilidade de servir para a criação do hábito cultural da vestimenta entre
os índios e índias.
A partir da exigência da mensuração dos produtos e gêneros em todos as
povoações, o uso de instrumentos como pesos, medidas e balanças tornara-se uma
prática elementar para o estabelecimento do comércio. Apesar destes instrumentos
serem necessários à transação com métodos racionais nas trocas comerciais, eles não
eram compreendidos pelos índios-comerciantes e esse desconhecimento acabava
prejudicando as atividades comerciais dos indígenas, que eram constantemente
lesados.
A prática de escambo mercadoria/mercadoria continuava a ser uma forma
costumeira de transação adotada pelos índios. No lugar dos pesos e medidas, eles
utilizavam paneiros, que tinham a função principal de ser utensílios de embalagem
de mercadorias como farinha, arroz e feijão e não eram unidades de mensuração
propriamente dita. Nesse sentido, o controle indígena sobre seus negócios era
complicado. A diferenciação no padrão de mensuração entre índio e branco
dificultava a aferição das mercadorias, resultando, muitas vezes, em impasses sobre
o estabelecimento do dízimo obrigatório à Coroa127. Esse processo de aferição para
127 A forma de pagamento de dízimo era diferenciada por mercadoria para que não houvesse dúvida quanto às regras. Para produtos como cacau, café, cravo, salsa, manteiga de tartaruga e todas as espécies de peixes, óleo de copaíba, azeite de andiroba e demais mercadorias extraídas do sertão, o pagamento dos dízimos era realizado logo após sua conferência, no momento do embarque. Para os frutos e produtos da terra, gerados por meio de cultivo, o pagamento era feito nas cidades. Esse trabalho era realizado pelo Tesoureiro geral que, após a conferência, fazia a divisão do dinheiro. No entanto, a cota destinada aos índios – considerados indivíduos rústicos e ignorantes – recebia um tratamento particular. A administração do dinheiro dos mesmos cabia ao Tesoureiro geral que, a seu arbítrio, mas na presença dos índios, destinava-o à compra de fazendas para o fabrico de suas novas vestes, uma vez que isso não era prioridade dos índios, mas um hábito imposto
128
a extração do dízimo era acompanhado pelos Diretores e pelas Câmaras que
controlavam a transação comercial do indígena. Após a aferição, os paneiros eram
guardados para que não houvesse falsificação dos produtos.
Essa organização social da produção garantiu o estabelecimento dos
dízimos128, pois desde os primeiros momentos da colonização os índios haviam sido
tratados exclusivamente como mão-de-obra, o que os destituía de qualquer
obrigatoriedade direta de contribuição com os custo da Coroa. O modo de vida que
levavam não era destinado a produzir quaisquer excedentes que pudessem ser
tributados. Para que a prática do dízimo fosse implantada foi preciso antes criar as
condições necessárias e tornar as povoações domínio supremo da Coroa
Portuguesa, o que imputava aos indígenas o repasse gratuito de parte dos produtos
obtidos por meio da prática de cultivo da terra ao Estado colonial. Assim, ao torná-
los membros do Estado, sujeitos de direitos civis, passaram a ter o dever de
contribuir para as despesas do Estado. O dízimo era a forma de tributo que restituía
os custos relativos à alocação do trabalho indígena independente, mediante um
método racional e fixo de extração direta da mais-valia do trabalho indígena.
Os Diretores que dessem conta das atividades decorrentes de seu cargo
(cultura das terras, plantações de gêneros, cobrança de dízimos e transporte das
mercadorias) eram recompensados com uma sexta parte de todos os frutos que os
índios cultivassem e de todos os gêneros não comestíveis que os mesmos
adquirissem. Dos produtos comestíveis era retirado o mesmo percentual da parte
que os índios vendessem ou com os quais fizessem negócio. Essa dádiva era um
pelos portugueses. Essa prática evidencia a efetiva subordinação dos índios para assimilar os costumes europeus, particularmente os dos portugueses. As cargas eram entregues ao Tesoureiro geral, mas acompanhadas das guias referentes aos produtos para conferência da qualidade dos mesmos. O Tesoureiro tinha o papel de distribuir o dinheiro relativo aos produtos entregues de acordo com a regra estabelecida pelo Diretório de Índio: “em primeiro lugar os dízimos à Fazenda Real; em segundo as despezas, que se fizeraõ naquella expedição; em terceiro a porçaõ, que se arbitrar ao Cabo da mesma canôa; em quarto, a sexta parte pertence aos Directores; distribuindo-se finalmente o remanescente em partes iguaes por todos os Índios interessados”. As despesas e as demais providências eram registradas no livro das Câmaras, que também computava o número de índios necessários para essa atividade e mais uma cota de 10 a 16 índios (reserva) para substituição em caso de fuga, doença ou falecimento dos titulares, pois isso não podia prejudicar a operação. 128 O dízimo era um fisco que todos deviam pagar. A Coroa considerava escandalosa a rusticidade com que os índios tinham sido educados pelos missionários, sem a obrigação do pagamento de tributos, que além de serem importantes para garantir a manutenção do Estado constituíam fonte de acumulação, pois tratava-se de um direito não prescritível. Esse instrumento de captação de recursos exigia, sem exceção, a décima parte das lavouras e de todos os frutos e gêneros adquiridos ou cultivados pelos indígenas.
129
incentivo ao desempenho de suas obrigações, servindo de estímulo ao controle do
trabalho indígena.
A divisão “equânime” da lavoura era justificada pela pobreza dos povoados.
A distribuição dos lucros, das rendas e dos produtos, após o processo de avaliação e
cálculo dos produtos indígenas, era realizada com base na projeção dos Diretores
em relação à produtividade da terra. A distribuição entre os diversos agentes
econômicos era processada a partir da produtividade de cada alqueire cultivado. Em
caso de discordância de avaliação, cabia às Câmaras das povoações e aos Principais
de cada lugarejo chamar um terceiro, a quem uma nova avaliação era solicitada a fim
de proceder ao registro dos possíveis tributos a serem pagos à Coroa.
Os produtos referentes aos dízimos eram registrados juntamente com o
termo de despesa ao serem embarcados, quando era declarada a receita, já que havia
o perigo de extravio da carga devido à insegurança no traslado. A quitação geral das
cotas referentes ao dízimo de cada povoação era encaminhada ao Governador do
Estado para que o resultado de todo esse movimento fosse compensado de acordo
com o estabelecido pelo regimento do Diretório de Índio. O provedor da Fazenda
Real encarregava-se dos produtos e os destinava ao almoxarifado, declarando o
nome da vila de origem e o Diretor que havia feito a remessa. Após isso,
entregavam a certidão de recebimento ao Cabo da Canoa que, por sua vez,
retornava ao Diretor responsável por tais suprimentos, devendo prestar contas à
Provedoria das cotas líquidas que incidiam sobre cada produto remetido.
As normas imanentes ao Diretório de Índio passaram a recobrir não somente
o direito da execução de contratos relativos à vida nas povoações sob as regras de
direito civil, mas também o direito exercido pelos instrumentos de mutação de
hábitos culturais dos grupos conquistados, pois agora os índios eram cidadãos
portugueses. O que caracterizava o objeto dessa política particular era a liberdade
formal das populações indígenas as quais, por meio de diferentes investidas,
concorriam para a produção e a execução da norma, cujos meios específicos eram
apanágios do Estado que detinha o monopólio da vida na Colônia.
Nesse contexto, surgiu a necessidade de se criar o dízimo à Coroa, pois os
moradores da colônia não tinham mais “operários de que necessitavam” para erguer
130
o comércio e fortalecer o Estado e isto exigia a admissão de medidas capazes de
garantir a distribuição das obrigações para gerar fundos para o Estado. A lavoura,
portanto, tinha que produzir não somente excedentes para os comerciantes
privados, mas também para cobrir as despesas do próprio Estado. Assim, a
introdução da prática de cultivo das terras era uma medida que precisava ser bem
sucedida para a assimilação dos indígenas à cultura do branco, à medida que eram
elevados ao patamar dos povos “civilizados”, isto é, cidadãos contributivos, ato que
correspondia ao pagamento de tributos à Coroa.
Na concepção do Diretório, a não aceitação de pagamento dos tributos à
Coroa era fruto da “rusticidade” e da “vileza” às quais os índios estavam
submetidos. Na qualidade de senhores de sua própria liberdade, os índios preferiam
destruir suas roças e se lançarem à bebida alcoólica129 a arcar com mais este encargo.
O efeito da recusa do trabalho havia chegado ao centro do poder colonial levando à
escassez dos produtos da economia extrativista e, conseqüentemente, à ruína deste
Estado.
Por esse motivo, a racionalização do trabalho e das atividades do Estado
colonial centrava-se nesse novo regulamento. No entanto, a religião continuou a ser
um instrumento importante no processo de “domesticação” dos índios, pois, como
o próprio documento expressa, a necessidade de torná-los peças essenciais à
engrenagem colonial não era tarefa fácil, exigindo um aparato extremamente
envolvente, para que se pudesse desterrar a cultura indígena fundada em práticas
comunais.
A reforma dos costumes e a transformação dos índios em “homens
civilizados” tornavam-se fatores de contenção da violência em face da resistência
indígena e do auto-extermínio, como alternativa à saída da subjugação. Já era difícil
reduzir os índios a trabalhadores, mas fazê-los pagar os dízimos da Coroa como um 129 O acompanhamento das transações comerciais de compra e venda dos indígenas passou a ser mais uma prática articulada ao controle da liberdade. A troca de produtos dos indígenas por aguardente ou outra bebida forte foi proibida, pois era considerada uma prática abominável, um desserviço ao Estado, à medida que o alcoolismo podia causar “arruaças”, além de debilitar os trabalhadores e provocar iniqüidades, perturbações e desordens. Criou-se assim um mercado ilícito lucrativo. A venda de bebida alcoólica para índios era considerada uma falta grave. Aquele que introduzisse essa mercadoria nas povoações era penalizado com perda de sua carga. A vigilância das canoas ou de qualquer outra embarcação que chegasse aos portos era efetuada, diretamente, pelo Diretor de Índio acompanhado do Principal e do escrivão da Câmara. Essa era uma reação ao processo de redução. Eles ignoravam a censura eclesiástica e o controle da fiscalização de suas roças.
131
“interesse público” tornou-se uma tarefa hercúlea. A organização social da produção
no tempo das missões não estabelecia os dízimos, pois os índios ainda passavam
pelo processo de redução por métodos disciplinares para formar uma oferta de
mão-de-obra para as próprias missões, seja nos empreendimentos particulares ou do
Estado. Eles não eram proprietários e, nessa condição não havia obrigatoriedade
direta com o fisco da Coroa. Os produtos gerados pelo trabalho indígena eram
apropriados integralmente pelos colonizadores, pela Igreja e pelo Estado.
Os dispositivos jurídicos relacionados à contratação do trabalho no Diretório
aparecem, portanto, no coração da política de constituição de uma oferta de mão-
de-obra, mas também de sujeitos de direito formais, pois os índios passaram à
condição de súditos da Coroa. O elemento mais característico dessa política, em
matéria de mão-de-obra, foi a produção de normas prescritivas quanto à igualdade
da população indígena aos europeus. No entanto, essa equiparação não implicava os
tornar agentes econômicos independentes. Novas regras de contratação do trabalho
indígena foram necessárias e passaram a levar em conta a condição de libertos e, ao
mesmo tempo, a deserção dos serviços contratados.
No momento da transação dinheiro/trabalho indígena, os moradores
consideravam que a contratação favorecia o desertor ao mesmo tempo em que era
danosa à povoação, que perdia o período da semeadura, da colheita ou do cultivo
dos produtos que apodreciam, levando o comércio à ruína. Assim, o dinheiro do
contratante retornaria caso o trabalho não fosse executado, mas se os contratantes
fossem responsáveis pela deserção, além de perderem a quantia já contratada, teriam
de pagar o dobro aos índios; e, se houvesse morte do contratado, seus herdeiros
seriam os beneficiários do dinheiro referente ao trabalho contratado.
As instruções do Diretório de Índio garantiram tanto a formação de um
sistema cultural, quanto à organização do trabalho, que foi sendo adaptado pela
necessidade do colonizador ou pela pressão da população indígena em processo de
miscigenação. A necessidade de impor medidas rigorosas para vencer os obstáculos
e remover a “torpeza” indígena fez surgir métodos de moderação e abrandamento
dos castigos para a adoção de procedimentos permanentes e graduais de
racionalização. Na realidade, essa reforma visava à abolição de hábitos e costumes
132
comunais dos indígenas. O Estado mostrou ser um sistema eficaz para arrancar o
fruto do trabalho indígena ao estruturar políticas em mínimos detalhes, da educação
à fiscalização dos índios (lavradores) nas operações econômicas130.
Por essas razões, a estruturação de instituições de controle acompanha o
próprio desenvolvimento e deslocamento do trabalho vivo. As funções dos
Diretores e dos Principais compunham efetivamente tarefas relativas ao
ordenamento do trabalho dos índios e sua distribuição131. A busca da racionalidade
econômica visava diminuir as incertezas inerentes à relação de trabalho, à medida
que não havia concordância do indígena. A distribuição de índios era a condição
para o funcionamento da máquina colonial, a defesa do Estado e as demais
diligências do serviço real eram garantidas pelos indígenas – o trabalho vivo
necessário à produção e ao transporte de mercadorias na colônia.
O significado econômico dessa política de mão-de-obra tornou-se
fundamento para as normas produzidas e aplicadas em relação às populações
indígenas, devido à constituição destes como potência efetiva da Colônia. A
resistência e as fugas eram combatidas com medidas claras de incorporação dos
índios à cultura portuguesa, sendo a destituição de sua identidade a chave para essa
mutação. Assim, a crise da Colônia Portuguesa do Norte era atribuída à
desobediência civil dos indígenas, que não aceitavam a disciplina e as ordens do
comando colonial, produzindo, na contraface da colonização, a fuga do dependente
apesar da “docilidade” do trato com o indígena.
Esse ordenamento levava em conta a necessidade de prudência na execução
das normas estabelecidas, pois a reforma dos costumes e vícios dos autóctones não
podia ser feita com violência, já que isto os faria desertar. A coibição dos excessos
cometidos evidenciava a racionalização do Estado cuja finalidade era a redução e,
130
A Fazenda Real agia em conjunto com dois lavradores de confiança para assegurar que os tributos fossem pagos. Esses agentes avaliavam cada roça pelo período de um ano e projetavam sua produtividade, tendo em vista garantir que a partilha dos produtos fosse feita de acordo com as normas estabelecidas para a cobrança dos dízimos. 131 Essa distribuição era registrada em dois livros, que eram rubricados pelo Desembargador Juiz de Fora, com o intuito de conhecer os índios capazes de trabalho, ou seja, aqueles que estivessem na faixa etária entre treze e sessenta anos de idade. Um desses livros ficava com o Governador do Estado e o outro com o Desembargador Juiz de Fora (Presidente da Câmara), no qual eram listados os índios que atingiam a idade para o trabalho e eram retirados os índios que faleciam ou que estivessem incapacitados para o trabalho. As listas com esses dados eram encaminhadas anualmente, até o mês de agosto, para o Governador do Estado, de acordo com a certidão dos párocos das referidas povoações.
133
conseqüentemente, a manutenção de um padrão de produtividade, mas também a
garantia um fluxo de mão-de-obra. A própria destruição da reprodução da força de
trabalho por meio da violência ou mesmo as práticas que levavam à exaustão do
trabalho eram punidas com medidas diferenciadas, de acordo com a posição dos
infratores: com açoites públicos pelas ruas da cidade, quando realizadas por peões;
degredo para Angola por um período de cinco anos, quando realizadas por nobres e
não cabia apelação.
O Diretório de Índio foi um regimento para a racionalização do trabalho
indígena. Uma engenharia minuciosa que reconheceu a liberdade do gentio e
estruturou sua cidadania formal. Essa política de controle visou superar o ativo
relacionado à resistência, fuga e deserção do selvagem. E, nesse regimento, o
trabalho exógeno aparece como elemento de equilíbrio para garantir a transação
capital/trabalho dependente. As fugas e deserções intervieram no processo de
reformulação da política de controle e organização social do trabalho. Mesmo que
não fossem atos políticos conscientes, os indígenas produziram, ao longo do tempo,
parâmetros para a política colonial e prepararam terreno para as lutas em torno de
novos padrões de trabalho. A deserção e a fuga construíram, neste sentido, o
mercado da liberdade em face das disputas que atingiram o mercado de trabalho
nascente. Dessa forma, as políticas do Estado colonial foram confrontadas com a
liberdade selvagem e o freio da mobilidade dos povos autóctones teve como
contrapartida a fuga dos mesmos que produziram os passos da liberdade, ainda que
na condição de índios aportuguesados.
A fuga foi a via de êxodo do trabalho nômade aprisionado sob mecanismos
severos de controle, uma estratégia de defecção na marcha da liberdade, o que
muitas vezes estava fora do conjunto das abordagens sobre a dinâmica de
constituição da liberdade do trabalho independente, apesar de ser eixo das
transações capital/trabalho na empresa colonial. Quando se interconecta o
movimento contínuo da deserção ao da produção regulada percebe-se a fuga como
elemento de ruptura do contrato de trabalho. Neste trajeto, a fuga alheia-se
continuamente dos determinantes da formação social capitalista, tornando-se um
134
dado estrutural que contraria as tentativas de estabilização do funcionamento do
mercado de trabalho dependente no sistema colonial.
Na perspectiva de Negri (2002) e de Moulier Boutang (1998), o controle da
fuga desses trabalhadores é o elemento central do poder constituído no nascimento
da especulação e da troca na origem das diversas formas de trabalho não livre e da
gênese da proteção social que posteriormente assegurou o estatuto do assalariado
livre e protegido, tal como é edificado no código inscrito pela Revolução Industrial,
nos países desenvolvidos. Para esses dois autores, a fuga do trabalho dependente
livre ou não livre é o mobile não somente da criação das instituições históricas do
mercado de trabalho, mas também da deformação dessas instituições e sua própria
destruição em face do antagonismo entre capital/trabalho na dinâmica da
acumulação em geral.
O papel da desordem provocada pela generalização da fuga do trabalho no
espaço da colonização transformou a própria dinâmica do mercado, pois os índios
eram um elemento desestabilizador do mercado colonial. As próprias leis de
organização do trabalho dependente evoluíram desde os primeiros momentos da
colonização, visando impedir o risco da fuga e da deserção do trabalho.
Ainda para esses dois autores, a via da fuga produziu a liberdade e os regimes
constitucionais, sem o que o contrato de trabalho seria apenas a duração da lei da
escravidão. Portanto, não foi a voz que operou o milagre do trabalho livre, mas sim
a resistência que produziu a liberdade. A fuga constitui, quase que exclusivamente, o
processo de desarticulação da escravidão moderna, como podemos observar nesse
longo percurso da constituição do trabalho dependente. Desta forma, não se pode
deixar de lado os caminhos da liberdade do trabalho dependente dos índios aos
cabanos. Estes caminhos estão encobertos pelos dispositivos jurídicos que foram
capazes de assegurar a cooperação dos dependentes que se recusavam às imposições
alheias a sua condição natural. A liberdade do indígena, nesses termos, tornou-se um
dado não natural, mas a potência de ruptura o “pacto colonial” nos trópicos.
A escravidão indígena, força motora do capitalismo-mundo localizado na
colônia portuguesa do Norte, foi desarticulada pela fuga que fez germinar a potência
constituinte e a experiência da liberdade de viver na floresta sem as normas e regras
135
do Estado colonial, mas ela produziu ainda o novo status de liberdade dos índios que
se tornaram súditos do rei, passando a ser regidos pelas mesmas leis dos cidadãos
portugueses e não podendo, portanto, ser escravizados. Essa lei abriu espaço para a
liberdade formal dos indígenas, ainda que sobre o paradoxo da escravidão do
trabalho exógeno do negro africano.
O desejo de liberdade vinculada ao trabalho nômade foi o passaporte para
superação do aprisionamento do corpo e da alma indígena ao projeto de
colonização. Os diversos mecanismos de subordinação visavam obscurecer os
comportamentos de evasão, fuga e deserção presentes na origem da mutação do
sistema colonial. Nesse aspecto, os índios foram hábeis estrategistas ao fugirem para
a floresta, apesar da não consciência de defecção de todo o sistema colonial. Assim
como as aldeias e os povoados assinalavam a presença do poder constituído – da
Igreja e do Estado – e suas instituições de contenção da liberdade selvagem, o
êxodo para as matas constituía uma forma de resistência típica do meio natural, que
não se dava por meio da palavra, mas da ação efetiva, isto é, da fuga e da luta até o
próprio extermínio.
A via da liberdade não se apresenta no “projeto de civilização” mas, ao
contrário, no êxodo. A verdadeira história da liberdade do trabalho indígena aparece
na contramão da história oficial. A quebra da liberdade selvagem e a construção da
cidadania portuguesa não resultaram de um processo da comunicação e de diálogo
entre culturas diferenciadas. O comportamento de fuga dos selvagens abriu espaço
para a liberdade. Nesse espaço, a fuga e a resistência aparecem como práticas sociais
que foram aos poucos possibilitando a constituição da liberdade. A deserção do foi
uma prática efetiva contra o processo de domínio e colonização impostos pelo
capitalismo-mundo, produzindo passos na marcha da liberdade.
Nesse contexto, a valorização da palavra como código de luta, tão conhecida
dos europeus, era letra morta na floresta. Ela tornava-se dissonante frente a
inexistência de acordo entre índios e colonizadores, pois seus códigos de vida eram
diametralmente opostos. A cooperação social entre mundos extremamente
diferentes, no limite, era impossível. A tensão entre “civilização” e “barbárie” abriu
a fronteira para que a potência da liberdade selvagem, fundida no cadinho de
136
culturas diversas, retesasse as relações entre europeus e ameríndios. Assim, a recusa
e a fuga são protoformas de uma nova ontologia política dos povos colonizados na
Amazônia, isto é, do cabano.
A recusa, a fuga e a deserção dos indígenas originaram nesse espaço
conquistas sistemáticas, criando o mercado da liberdade engendrado na e pela
rebeldia contra as formas de redução de sua liberdade e isso foi um problema
essencial para a colonização. Assim, essa recusa criou formas de expressão que
operaram as próprias alterações das regras de controle na relação do trabalho
dependente.
137
II.3 O trabalho exógeno: ativo de equilíbrio na liberdade indígena
A escravidão moderna para o Atlântico Sul foi uma prática trasladada dos
domínios de Portugal (das ilhas Atlânticas de Canárias, Madeira132, Cabo Verde e
São Tomé133) e, segundo Moulier Boutang134 (1998), suas origens remontam à
República Vienense que recorreu à escravidão do negro em Malta, Chipre e Cecília.
Essa escravidão tem como berço os mercadores e burgueses italianos que utilizavam
a terra como meio de pagamento135, a partir de dois princípios básicos: o primeiro
vinculado ao direito de propriedade que surgiu no século XII com o cristianismo e
introduziu o direito ilimitado de terra para os muçulmanos; o segundo vinculado à
supressão das antecipações indiretas como era o costume feudal.
Em Portugal a disseminação dessa prática teve início com o financiamento
do capital genovês e a orientação de técnicos sicilianos. Para Moulier Boutang, a
escravidão de negros em Portugal existia antes mesmo da expansão ultramarina. Em
1444 já era possível observar a venda pública de negros. A Casa de Escravos de
Lisboa registrava um total de 3.589 escravos nos anos de 1486 e 1493 e nos anos de
1450 e 1500, antes mesmo da ocupação das terras brasileiras, o número de escravos
havia aumentado para 150.000. O movimento de transação comercial de escravos
ganhou força na ultrapassagem das fronteiras européias, no momento em que o
plantio da cana-de-açúcar virou uma das principais atividades econômicas da
metrópole em face da colonização. Nas colônias os negros eram vendidos como
peças, muitas vezes, por encomenda.
Assim, a escravização e as diferentes formas de trabalho subordinado
surgiram no Novo Mundo sob inspiração de instituições européias, que foram
sendo alteradas para se adequarem às condições de expansão do capitalismo-mundo.
A dificuldade de enquadrar a população indígena a esse circuito e a experiência de 132 Nas Ilhas Canárias a cana-de-açúcar foi introduzida em 1455. 133 Essas experiências nas antigas Colônias de Portugal influenciaram a prática de escravização com adaptação à colonização portuguesa no Brasil. 134 No entanto, Moulier Boutang chama atenção para o fato de que tanto negros quantos índios livres utilizavam como trabalho escravo os prisioneiros de guerras intertribais. 135 Em Chipre, os escravos negros foram introduzidos no cultivo da cana-de-açúcar, que era realizado através da irrigação do solo, o que exigia grande quantidade de mão-de-obra. Essa prática foi expandida quando Viena tomou Constantinopla em 1453 e introduziu a mão-de-obra dos negros escravizados em seus domínios açucareiros, em coexistência com trabalhadores livres (Moulier Boutang, 1998).
138
cultivo direto do solo tornou a escravidão uma prática social amplamente difundida
no Brasil colonial, como mostra Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala.
Como já assinalamos anteriormente, a inserção da Amazônia na economia-
mundo estava baseada na extração das drogas do sertão, daí ter sido pouco
expressiva a presença do negro como agente produtivo. Os produtos da floresta
eram majoritariamente extraídos pela força de trabalho do índio, exímio conhecedor
desses produtos. Para Salles (1970), a pequena percentagem de negros pode ser
explicada pela utilização maciça de índios na exploração das drogas do sertão. O
autor assinala ainda: “(...) pode-se até mesmo dizer que somente na Amazônia se
criara um tipo de economia em que o índio tivera papel importante a desempenhar”
(idem). Para garantir a subordinação desse trabalho estruturava-se, em contrapartida,
toda uma organização social baseada na pequena propriedade unifamiliar, em que a
miscigenação entre índios e portugueses garantia privilégios decorrentes da
cidadania portuguesa.
Desta maneira, a introdução do trabalho exógeno do negro escravizado na
Amazônia foi produzida, inicialmente, a partir da liberdade indígena, visando suprir
a falta de trabalhadores. O estatuto jurídico do trabalho exógeno aparece de modo
ambíguo na política de liberação do indígena, um recurso viável para o controle dos
ativos decorrentes da recusa ao trabalho nômade do indígena. Assim, a presença do
escravo negro surgiu somente com a recusa do índio ao trabalho regulado, fazendo
mudar essa realidade, pois foi somente com a exigência de grande contingente de
mão-de-obra no cultivo agrícola para a exportação mercantil que o trabalho do
negro serviu como solução para a substituição do trabalho indígena.
Na Amazônia a oferta de trabalho exógeno para substituir os índios nos
empreendimentos de particulares e em algumas atividades do Estado colonial
passou a ser complementar ao processo de estruturação de uma economia interna
baseada na pequena produção organizada a partir da estruturação do Diretório de
Índios.
Esse regimento foi, portanto, um instrumento jurídico paradoxal que buscava
sanar ao mesmo tempo dois problemas: o primeiro, diz respeito à falta de uma
oferta constante de mão-de-obra, tendo em vista a não domesticação absoluta do
139
“selvagem” que resistiu ao cativeiro e ao trabalho regulado, não deixando alternativa
senão a sua liberdade formal; a segunda, está diretamente relacionada à primeira e
diz respeito à liberdade indígena precedida da introdução do trabalho exógeno
escasso do negro africano para salvaguardar a produção de excedentes na Amazônia.
Nessa região, a estruturação organizacional do trabalho contou com medidas
preventivas de caráter ético-racial para impossibilitar a aproximação e identificação
entre o trabalho exógeno do negro africano e o trabalho do indígena liberto. A
substituição indígena pelo negro africano foi sustentada sob a construção de uma
nova identidade para o indígena. O discurso da diferença racial e do estatuto jurídico
da cidadania portuguesa buscava, na realidade, distanciar esses dois tipos de trabalho
para garantir superávits na produção colonial. Não bastava criar regras de
“aportuguesamenteo” dos índios, era preciso ainda estabelecer padrões culturais
distintos entre os índios-cidadãos e os negros escravizados. Essa prática foi
regulamentada no Diretório de Índios ao abolir o tratamento de negros que até então
os colonizadores davam aos índios. Esse nominativo passou a ser considerado um
“lastimoso e pernicioso abuso136”, tendo em vista destituir a prática de escravização
e estigmatização dos índios. Esse estigma precisava ser esquecido para que os índios
fossem assimilados na condição de “iguais” (aos portugueses)137, reforçando assim a
“nova” identidade, isto é, de cidadãos vassalos do rei. Agora os índios não poderiam
mais ser comparados aos escravos trazidos da África, pois isso prejudicava o esforço
de torná-los colaboradores de Portugal: “daqui por diante [está proibido], que
pessoa alguma chame Negros aos índios, nem que eles mesmos usem entre si deste
nome como até agora praticam” (Diretório de Índios, § 10). Essa determinação foi
necessária para coibir ou dificultar a identificação e colaboração entre os índios com
os negros africanos. A aproximação era desejada somente com a cultura portuguesa,
como uma condição necessária para incorporá-los às funções do Estado colonial,
haja vista a evidente demanda por índios “embranquiçados” para o exercício de
funções e cargos públicos.
136 Ver Diretório de Índios § 10. 137 Conforme a lei da Ordem Terceira, em 9 de março de 1759, foi decidido “que todo índio ou descendente, que não tiver mescla de preto, e se tratar à lei de brancos, possa ser admitido na Ordem” (Salles, 1971, p.139). Essa lei demonstra a necessidade de destituir o índio de sua identidade original; o “embranquiçamento” sendo outra condição para torná-lo membro efetivo de incorporação nas funções do Estado colonial.
140
Observa-se nesse procedimento, a necessidade de se evitar prováveis
cooperações entre índios e negros, uma vez que os últimos começavam a ser
introduzidos em maior número na região. Tornava-se um imperativo da empresa
colonial a organização de uma nova forma de gestão da mão-de-obra indígena, agora
sob os princípios da liberdade formal. A substituição dos índios por negros
escravizados não os retirou da condição de agentes efetivos da colonização. Daí a
razão de dissuadi-los de se assemelharem a outros que não fossem os cidadãos
portugueses.
As primeiras levas de negros da colônia brasileira foram introduzidas pelos
donatários de terras. Eles eram trazidos como recursos necessários e peças chave aos
empreendimentos da colonização. Sua distribuição, nos casos de terras alugadas para
colonos livres, era negociada diretamente com as Companhias de Comércio138, que
detinham acordos de concessão dessa “mercadoria especial”, pois o negro havia se
tornado uma alternativa de valorização comercial no processo de colonização. Cada
peça importada gerava um imposto específico para o reino. Os sobrelucros auferidos
nessas transações comerciais decorriam das formas de sua inserção na Colônia, isto
é, por estanco/estanque139 ou assento140, principais modalidades do trabalho do
negro africano.
A fazenda real efetivava contratos com particulares para as transações
comerciais dessa mão-de-obra. Neste caso, as Companhias de Comércio, como a do
Maranhão, exerceram o monopólio das transações comerciais, importando negros e
exportando produtos como cravo, cacau, salsaparrilha, algodão, açúcar, madeira etc.
No entanto, foi com a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-
Pará e Maranhão, em 1775, que teve início uma forma sistemática de
138 Segundo Nunes (1970), as Companhias de Comércio foram criadas inicialmente na Holanda que possuía uma estrutura republicana e seus organismos mercantis eram associativos e tinham por base o contrato de comenda marítima. 139 Comercialização de negros por companhias de comércio organizadas para suprir as Colônias de mercadorias. O negro tornava-se uma dessas mercadorias introduzidas, inicialmente, pela Companhia de Comércio do Maranhão, que teve duração de dois anos, tendo sido criada pelo alvará de 12 de fevereiro de 1682. A companhia funcionou somente até 1684 e teve pouca penetração na economia do Pará. Outra companhia criada com a mesma finalidade foi a Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão (criada em 1775, teve duração de 23 anos). Sua influência no desenvolvimento da região amazônica foi inquestionável. 140 A introdução de negros sob a responsabilidade da fazenda real, mas com contrato com particulares. No caso o objetivo era acudir as necessidades do próprio Estado em determinadas atividades, como foi o caso da construção das fortificações e de outras atividades onde já não podiam mais contar com a força de trabalho do indígena.
141
comercialização de escravos africanos, de forma relativamente exitosa para a
Amazônia. Essa Companhia quebrou as barreiras da falta de recursos humanos ao
introduzir o trabalho exógeno, como uma mercadoria de importação especial para a
Colônia. Ela fomentava a substituição da mão-de-obra indígena nos
empreendimentos coloniais do Norte.
A Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão foi alvo de
contestação por parte dos colonizadores locais que a consideravam um instrumento
de exploração dos moradores à medida que geravam forte concentração de fluxos
comerciais dos produtos naturais. Para os colonizadores, a Companhia de Comércio
era responsável pelos riscos de empobrecimento e esgotamento da economia local
devido à avidez por produtos e sua extração predatória.
Mas foi essa ampliação na escala de extração dos produtos amazônicos que
possibilitou a substituição da mão-de-obra indígena e o cultivo do cacau, pois sua
extração intensiva juntamente como o algodão (no Maranhão) contava com uma
possante frota para o transporte141, permitindo a comercialização dos gêneros
regionais numa velocidade até então desconhecida. Essa frota garantiu a ampliação
do mercado interno, passando a abastecer a zona mineira de Mato Grosso, por meio
da rota fluvial de navegação no rio Madeira, ao mesmo tempo, que assegurava o
escoamento dos minérios mato-grossenses. Esse movimento de circulação criava
um novo estímulo à valorização dos produtos regionais e introduzia novas
atividades, produzindo com isso o desenvolvimento da sociedade regional.
Segundo Baena (1970), durante o funcionamento da última Companhia
houve a importação de 12.587142 escravos, os quais foram distribuídos pelo
Maranhão, Pará e Mato Grosso, embora ele afirme que a maioria dos escravos
vindos para a região do Pará acabava sendo enviada para as minas de Mato Grosso.
Por outro lado, Reis (1970) afirma que antes da instalação da Companhia Geral de
Comércio do Grão Pará e Maranhão em 1755 já existia negro na região
141 Como foi dito no item anterior, a Coroa portuguesa passou a exigir uma seleção rigorosa para os remadores de canoas que eram responsáveis pelo carregamento dos produtos até as cidades de onde estas embarcadas pela frota da Companhia de Comércio Geral. 142 Para Nunes (1970) o número de negros introduzido por esta última Companhia corresponde à soma de 14.749. Nesse sentido, pode-se perceber que os dados relativos aos negros introduzidos pela Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão não coincidem.
142
amazônica143, mas em iniciativas de particulares. Segundo Salles (1971), os primeiros
negros introduzidos na colônia portuguesa do Norte foram trazidos pela
Companhia de Comércio do Maranhão144 e ficaram restritos ao território
maranhense, particularmente a região do Rio Itapicuru145. Tratava-se em grande
medida de uma oferta da Coroa que, por conta da fazenda real, mandou distribuir
em torno de 200 a 300 negros para os moradores visando garantir as plantações de
cana-de-açúcar e algodão, uma vez que a resistência indígena impossibilitara a
colheita desses produtos.
O baixo percentual de negros no Pará diz respeito ao desenvolvimento tardio
da produção agrícola, que só passou a ter importância no século XVIII, com a
criação da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão. Assim, a liberação dos
indígenas, marcada por variadas formas de resistência – de recusa ao trabalho – e o
crescimento do comércio, impulsionaram o emprego do trabalho exógeno trazido
como escravo, uma mercadoria especial que poucos podiam pagar. Neste sentido, o
reconhecimento da liberdade indígena se fez sob o paradoxo da escravização do
negro.
A introdução do trabalho exógeno sob o regime de escravidão ocorreu com
maior evidência na região depois de 1755, quando houve a libertação dos indígenas
e a necessidade de substituição de sua mão-de-obra. Para Silveira (1994) isso decorre
do fato de a Amazônia ter sido ocupada inicialmente para efeitos de manutenção
das terras conquistadas e não especificamente para a exploração econômica, o que
justifica o retardo na utilização da mão-de-obra exógena nesse território. E isso fez a
diferença em termos do emprego do negro na relação de trabalho e de propriedade
na Amazônia. A “Mercadoria africana não se conhecia, além dos angolezes que
tinham sido encontrados entre os prisioneiros de Orange e Nassau” (Reis, 1993,
p.13).
O trabalho nômade nos moldes pré-capitalistas não combinava com a
acumulação, o que se tornou o centro da problemática do desenvolvimento do
capital mercantil no Novo Mundo. Daí a fixação do trabalho ter-se tornado uma 143 Há indícios da vinda de negros para os empreendimentos holandeses na região. 144
A idéia da Companhia já existia desde o comando do padre Antonio Vieira, que também defendia a introdução do escravo africano em substituição ao índio escravizado. 145 Região que se encontra no Estado do Maranhão.
143
meta a ser conquistada, visto que a condição dependente do trabalho era
indispensável à produção e comercialização em escala ampliada. A queda do
monopólio da mão-de-obra indígena foi efetivada a partir das disputas entre forças
políticas e econômicas sustentadoras do apoio ao imperador de Portugal. A
introdução da mão-de-obra negra não dispensava o trabalho indígena, que
continuava a ser uma força tarefa no desenvolvimento da região.
Desta forma, a institucionalização do trabalho escravo desde os primeiros
momentos da colonização apresenta-se de modo funcional à organização da oferta
de trabalho para atender a demanda do Estado português e de colonizadores na
apropriação do território amazônico. Essa questão é central para a problematização
da escravidão moderna em solo amazônico. A vinculação da escravidão moderna à
inferioridade econômica ou étnica nesse caso torna-se apologética e destituída de
crédito diante do movimento de constituição da oferta de mão-de-obra para o
mercado colonialista.
A sustentação de uma política de produção diante da mobilidade do indígena
tornava-se urgente para arregimentar a mão-de-obra necessária ao desenvolvimento
econômico da Colônia. O problema da fuga e deserção dos indígenas passou a ser
enfrentado como política de Estado. Com o Diretório de Índios, a acumulação do
capitalismo-mundo na Colônia Portuguesa do Norte foi intensificada e o trabalho
exógeno apareceu como uma solução temporária ao se examinar a política de
constituição da mão-de-obra na região.
No Diretório, a questão da oferta de trabalho era transversal aos dispositivos
legais em busca da construção de uma engenharia institucional que garantisse um
certo grau de racionalização e fixação dos dependentes146. Neste sentido, pode-se
perceber um movimento de proto-proletarização dos indígenas libertos sob a
expansão e apropriação da economia-mundo, pois eles passaram a desenvolver a
pequena produção como elemento central do sistema produtivo interno, isto é, a
economia doméstica, responsável por diversos ramos de produção, mas sempre sob
146 Nesse Regimento é possível observar a necessidade de estruturação da população indígena sob um processo de divisão racional do trabalho para inserí-los como pequenos agricultores, remeiros, coletores de drogas do sertão, manufatureiros, artesãos; o trabalho feminino voltado para a feitura da farinha e para os cuidados das prendas do lar etc., enquanto os negros eram destinados basicamente para as plantações, mas também para a construção de fortificações dentre outros.
144
a tutela do Estado. Essa economia beneficiava a Coroa com os dízimos à medida
que o crescimento da população miscigenada gerava um efetivo progresso técnico
traduzido no surgimento de pequenas cidades e vilas, forjado por uma rígida política
de controle da mobilidade do trabalho.
A organização da produção do trabalho exógeno foi estabelecida a partir do
Diretório de Índio que associou a liberdade indígena ao trabalho escravo do negro
africano. Esse fato implicava por um lado, a necessidade de capacitar os índios para
a implantação de uma agricultura policultural (de subsistência) visando à
manutenção do mercado interno e, por outro, o trabalho do negro para a produção
de monocultura voltada ao mercado exterior. Isso foi possível através da
Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão que exerceu papel central ao garantir
uma oferta regular do trabalho exógeno para a construção desses dois pilares da
economia colonial na Amazônia.
Assim, para entender a substituição dos indígenas pelo trabalho exógeno do
negro africano é preciso adentrar a linha de fuga e de deserção empreendida pelas
nações indígenas desde o início da colonização. A Coroa portuguesa achava
problemática a introdução do trabalho exógeno em regiões fronteiriças, pois havia a
possibilidade de fuga para outros domínios, com dificuldades para captura dos
mesmos. Outra dificuldade para a adoção dessa política devia-se ao fato da Colônia
Portuguesa do Norte não estar centrada em grandes plantações, mas na coleta de
produtos extrativistas, o que não gerava um grande fluxo de mão-de-obra para a
extração de produtos que justificasse a necessidade desse tipo de trabalho com a
mesma intensidade que ocorrera nas regiões do Nordeste e Sudeste147.
No entanto, o ativo representado pela taxa de evasão do trabalho indígena
levou à substituição de sua mão-de-obra, apesar de o trabalho exógeno ser
considerado um custo elevado e quase impraticável para os empreendimentos
coloniais do Norte. Assim, a trabalho exógeno passou a compensar as negociações
comerciais, pois dava conta da produção na região amazônica, sem os riscos das
perdas por deserção ou fuga do trabalho. Nestes termos, era mais vantajoso aplicar 147 As plantações de cana-de-açúcar e de café foram desde o início assentadas na mão-de-obra do negro africano e sua utilização evidencia a necessidade de grande contingente de trabalhadores. Assim, o negro passou a substituir o trabalho do indígena, em grande escala e com sucesso, ampliando e ganhando novos traços em diferentes regiões do país, foi ele que sustentou o longo curso da escravidão no Brasil.
145
capital na compra de peças africanas, com o subsídio da Coroa, do que arriscar
recursos na prática de comércio com o emprego do trabalho “gratuito” do
indígena148, uma vez que o desperdício e o prejuízo nessa operação eram iminentes.
Nesse movimento comercial o tráfico negreiro agilizou a transação
dinheiro/capital variável e os negros tornaram-se um negócio lucrativo para os
moradores do Grão-Pará, que passaram a reivindicar essa mão-de-obra, exigindo
participação direta na repartição das peças que eram enviados para o Maranhão. Eles
queixavam-se constantemente da oferta limitada de trabalho indígena e jogaram um
papel central na introdução do trabalho exógeno na economia colonial da
Amazônia. Os colonos reclamavam que essas peças eram caras, pois se tratava de
uma mercadoria de importação e seus preços eram incompatíveis com o volume de
negócios da região, o que tornava os custos elevados para a obtenção desta mão-de-
obra sem subsídios.
As dificuldades decorrentes da frágil economia da região amazônica levaram
o rei de Portugal a abrir mão de direitos relativos à venda de escravos para o Estado
do Grão Pará e Maranhão, tendo em vista baixar os custos dessa transação. Com
isso ele buscava responder às demandas dos colonos que se achavam
impossibilitadas de arcar com tais despesas, pois somente os proprietários mais
abastados tinham acesso a essa mercadoria especial.
A medida tinha como objetivo baixar os preços dos escravos, mas acabou
gerando problemas para a administração local, pois a iniciativa privada passou a
transacionar comercialmente com o trabalho exógeno sob a forma do tráfico
irregular. Tal fato concorreu para o enriquecimento dos mercadores de escravos,
que passaram a introduzir os negros para auferir ganhos diferenciais nessa transação,
expandindo o comércio interno de negros para as praças da Bahia e do Maranhão.
Cabia aos proprietários abastados a responsabilidade de fazer chegar as cargas de
negros, disso resultando o contrabando, já que poucos podiam pagar pelos
encargos. Essa se tornou uma prática usual, que permaneceu por todo o período do
regime de escravidão.
148 Devido ao reduzido número de negros na formação econômico-cultural da região Amazônica para Reis, só restava “o apelo ao gentio, a utilizar também nos misteres domésticos, nos serviços do Estado, nas emprezas militares, nas próprias emprezas sertanistas” (Reis, 19, p.13).
146
No Grão Pará a organização do tráfico oficial de escravos africanos foi
realizada a partir da criação de um mercado – o Ver-o-Pêso149 –, sob a forma de
uma feira livre, onde vários comerciantes podiam vender suas peças para
proprietários de engenhos de produção de açúcar e de cachaça e para grandes
produtores de cacau. Nestes termos, houve uma divisão da produção colonial. De
um lado, os gêneros alimentícios destinados apenas à manutenção da população
local eram desenvolvidos pelos índios recém-libertos, na administração de Francisco
Xavier de Mendonça Furtado150. A população indígena tornara-se uma possibilidade
real de trabalho independente, mas comandado em face da tutela do Estado, pois a
resistência tinha colocado freio aos métodos mais brutais de apropriação de sua
mão-de-obra, havendo assim a alteração dessas regras. Por outro lado, os gêneros de
exportação eram produzidos pelo trabalho do negro escravizado. Com isso, esses
dois setores econômicos tornaram mais eficaz a produção colonial, pois o trabalho
exógeno agia como um anteparo à obstaculização da resistência indígena, que vinha
causando abalos na dinâmica dos fluxos comerciais da Colônia portuguesa do Norte
para a metrópole.
Neste sentido, o sistema colonial ganhou reforços, uma vez que o mercado
interno praticamente inexistia, somente a droga do sertão era apreciada como
produto de exportação oferecida às economias metropolitanas. Para tanto, a
economia foi organizada a partir de uma nova mobilização dos indígenas-cidadãos.
As fugas e as deserções foram solucionadas temporariamente pelo trabalho exógeno
como ativo de equilíbrio diante da liberdade selvagem, funcionando como desvio ao
obstáculo imposto pelo trabalho nômade do indígena e possibilitando a
intensificação da produtividade no sistema colonial do Norte.
O emprego do trabalho exógeno na colônia passou a regular a oferta de mão-
de-obra utilizada na produção das lavouras e engenhos, mas também nos trabalhos
banais no campo e na cidade, através de atividades domésticas e de rua como os
negros de ganhos, de aluguel etc. Moulier Boutang (1998) lembra que a dependência
149 Em 1771 foi saneado o desaguadouro do Rio Piri para a construção de um lagamar a fim de servir para guardar escravos. 150 Governador Geral da Colônia Portuguesa do Norte.
147
social desse tipo de trabalho pode ser constatada quando se registra que o Brasil foi
um dos últimos países a abolir a escravidão moderna.
Neste contexto, a utilização do trabalho exógeno pelo Estado Colonial tinha
como objetivo escapar do custo de fixação do trabalho a partir da escassez da mão-
de-obra branca e do trabalho indígena. Diante da dificuldade de recrutar
trabalhadores livres na metrópole e da recusa do indígena, houve a busca do
trabalho escravo por tráfico, por encomenda e por outros meios.
O negro foi colocado na circulação comercial em função das fugas e
deserções praticadas pelos índios, o que provocava graves perdas e,
conseqüentemente, custos elevados da produção, o que vinha destruindo os
superávits comerciais no contexto da economia-mundo. Apesar do emprego de
mecanismos jurídicos para reduzir os efeitos da recusa indígena, estes não sanaram o
processo de recusa ao trabalho e tampouco os altos índices de deserção.
A endogeneização do trabalho do negro é decorrência da necessidade de
fixação do trabalho, o que só se efetivou a partir de um longo e lento movimento de
hibridação cultural, que tornou os índios e os negros agentes ativos na formação
nacional. O negro passou por um amplo processo de “marronagem” e,
conseqüentemente, de graus efetivos de conquista na marcha da liberdade.
Assim como acontecera com o indígena, o negro constituiu, através da
miscigenação uma nova classe: “(...) produziu-se à margem da escravização uma
classe considerável de mestiços de todos os matizes, escapando progressivamente
do cativeiro – a classe dos libertos” (Salles, 1971, p.135). Um exemplo disso foi a
determinação do rei de Portugal, em 1720, de que os cafuzos151 não fossem
constrangidos, pois eram considerados alforriados, devendo viver em liberdade. Na
Ilha do Marajó, conhecida pela criação de gado vacum, o fenômeno da miscigenação
entre índios e negros foi processado de forma “(...) isenta do mais elementar
preconceito racial, [oferecendo] o atual tipo étnico encontrado na Amazônia, em
cujas veias corre o sangue de brancos, negros e índios” (idem).
Na região Norte, segundo Salles (1971), os trabalhos e serviços
especializados (artesãos) eram desenvolvidos por negros e índios, os quais eram
151 Indivíduos originados no processo de miscigenação entre negros e índios.
148
vinculados a fazendeiros e missionários. Esse autor ressalta que o artesanato estava
concentrado no campo e servia ao comércio e aos lavradores. Nas cidades de Belém
e São Luiz havia artesãos livres, mas a grande maioria era composta por escravos
recrutados e treinados por religiosos para os diferentes misteres (Salles, 1971, p.161).
Eles eram de propriedade de mestres europeus ou de proprietários de fazendas e
engenhos, muitas vezes entregues ainda crianças para um mestre e só retornavam
quando fossem oficiais. Neste âmbito encontram-se ainda os trabalhos artísticos
encontrados em igrejas, palácios, engenhos e fazendas152.
A miscigenação do negro por casamentos inter-raciais
(negros/brancos/índios) potencializou a afirmação do mesmo, além da fuga para os
mocambos que produziram o processo de libertação. Partilhando da análise de
Salles (1983), Silveira (1994), Vergolino e Figueiredo (1990), no Grão Pará a
escravidão do negro não teve a mesma importância observada nas regiões do
Nordeste e Sudeste do Brasil. No Pará, o trabalho exógeno aparece de forma
paralela a política de exploração do trabalho indígena.
O trabalho do índio livre fundou uma categoria de trabalhador independente
constituído no espaço da resistência e da recusa ao trabalho regulado. As fugas e
deserções despontaram como antítese às diversas tentativas de subordinação de seu
trabalho. Essa estratégia também foi seguida pelos negros em busca da liberdade; da
mesma maneira que com os índios a fuga para a mata havia sido o caminho mais
curto para a liberdade, os negros foram formando os mocambos ou quilombos153,
organizações sociais originadas em face da recusa ao trabalho escravo.
O aparecimento da escravidão indígena e do negro na economia moderna
permite situar a oferta limitada de trabalho vivo para cultivar a terra ou coletar os
produtos naturais. Nesse sentido, o capitalismo-mundo, por não dispor de uma
oferta de mão-de-obra, valeu-se de um conjunto de expedientes para assegurar em
períodos distintos a exploração dos produtos apreciados no mercado europeu. Esse
152 Na igreja de Santo Alexandre hoje Museu de Arte Sacra do Pará há um acervo significativo de trabalhos desenvolvidos nas oficinas dos jesuítas e que foram produzidos por índios, como afirma o padre Serafim Leite, em seu livro intitulado Artes e Ofícios dos Jesuítas no Brasil. 153 Organização socioeconônima dos negros fugitivos. Relação dos principais mocambos no Grão Pará com suas devidas localizações: Oiapoque-Calçoene (Amapá), Mazagão (Amapá), Alenquer, no rio Curuá (Pará), Óbidos, rio Trombeta/Cuminá (Pará), Alcobaça/Cametá rio Tocantins (Pará), Caxiú rio Moju/Capim (Pará), Gurupi (Divisa do Pará com o Maranhão), Turiaçu rio Maracassumé (Maranhão), Anajás/ Ilha do Marajó (Pará).
149
elenco de procedimentos evidencia a dinâmica do poder do Estado colonial frente a
mobilidade do trabalho, assim como sua redução pelas políticas de regulação.
A resistência aparece assim, mais uma vez, como elemento chave de
constituição da liberdade do trabalho exógeno, mesmo que a liberdade do mercado
possa parecer como o elemento indutor da mobilidade do trabalho. A intervenção
do Estado colonialista tornou-se a pedra angular da economia-mundo ao comandar
o processo de transação capital/trabalho exógeno, obtendo lucros espetaculares
com a escravidão: venda das peças e o não pagamento de salários. Esse procedimento
em longo prazo gerava lucros aos grandes proprietários, que obtinham trabalho
“gratuito” com o emprego da mão-de-obra escrava, além de terem mais garantias na
fixação dessa mão-de-obra em relação à taxa de fuga do indígena.
150
II.4 O termidor da Cabanagem
A retirada precipitada dos cabanos da cidade de Belém em maio de 1836 não
significou o termidor da Cabanagem. A marcha da liberdade continuou no interior da
província até 1840, quando os últimos rebeldes (800 cabanos) foram presos no alto
Rio Amazonas. Foram cinco anos de lutas cerradas que só foram quebradas pela
intensidade da força repressora do Estado imperial brasileiro. Mas o golpe fatal veio
com a implantação dos Corpos de Trabalhadores, em 25 de abril de 1838154, um
regimento de trabalho criado como meio de controle das massas. Por esse
regimento jurídico toda a população do sexo masculino na faixa etária entre 10 e 60
anos era recrutada para compor o quadro de trabalhadores compulsórios, a partir do
alistamento de “indivíduos índios, mestiços e pretos, que não forem escravos, e não
tiverem propriedades, ou estabelecimentos, a que se apliquem constantemente”155.
Essa lei objetivava o controle da mobilidade do trabalho nômade, isto é, os cabanos
em plena marcha da liberdade no interior do Pará. A Cabanagem aparece
nitidamente como um movimento contra o processo de assalariamento, ou seja,
contra uma liberdade do mercado que na realidade se funda nas mil variações do
constrangimento ao trabalho subordinado.
Assim, os cabanos, que eram trabalhadores livres, passaram a desenvolver
atividades compulsórias, a partir de um conjunto rígido de regras hierárquicas que
visava a sua desmobilização. Os comandantes dos Corpos de Trabalhadores eram
“tirados da classe dos oficiais dos antigos Corpos de Ligeiros ou dentre os cidadãos
mais idôneos, residentes nos respectivos distritos156” onde habitavam, tendo em
vista o constrangimento da liberdade e sua finalidade não era necessariamente “de
suprir a mão-de-obra qualificada, mas a de arregimentar a massa de libertos, sem
154 A lei promulgada em 25 de abril de 1838 instituiu os Corpos de Trabalhadores, um regimento de trabalho compulsório instalado em todos os distritos do Grão-Pará. Sua organização dava-se a partir de nove dos Comandos Militares existentes na província. Esses Corpos de Trabalhadores eram estruturados a partir de Esquadras comandadas por um capitão, apoiado diretamente por um Sargento e pelos Cabos que se ocupavam dos trabalhadores, imprimindo um grau de hierarquização vertical, em que os Corpos de Trabalhadores representavam o último elo da cadeia. (Secretaria do Governo do Pará). 155 Artigos 2º e 6º dos Corpos de Trabalhadores. 156 Artigo 3º dos Corpos de Trabalhadores.
151
terras e sem bens de raiz, que (...) continuava pululando ociosa, ameaçando
reorganizar o desbaratado exército popular” (Salles, 1971, p.169).
A implementação desse instrumento jurídico permitiu, além da termidorização
da Cabanagem, a dinamização de um mercado de trabalho dependente, vinculado
necessariamente ao controle social dos cabanos. Para Raiol (1970), os Corpos de
Trabalhadores eram eficazes instrumentos de controle da rebeldia na província à
medida que determinavam a ocupação integral e sistemática da população livre,
evitando a insubordinação e o desrespeito às autoridades e assegurando ainda a
restauração da ordem e da disciplina.
Salles (1971) enfatiza ainda que os Corpos de Trabalhadores contribuíram
para a repressão do negro livre ou cativo, tornando-se um instrumento que serviu
para concentrar os libertos sob o comando dos militares, um exercício do controle
sobre os trabalhadores pela força das armas. A “implementação dos Corpos de
Trabalhadores pode, num primeiro momento, ter servido como meio de controle da
revolta cabana” (Fuller, 1999, p.3), mas sua continuidade por duas décadas
certamente ofereceu as condições necessárias para a formação de um mercado de
trabalho dependente.
No Pará, os Corpos de Trabalhadores apareceram no processo de transição
do Estado colonialista português para o Império brasileiro nascente. Neste espaço
os cabanos deslancharam sua marcha, um sonho de autonomia e liberdade de
índios, negros e pequenos produtores rurais, para além do poder constituído do
Estado imperial. O estigma da inferioridade de raças embutido neste instrumento
jurídico tinha como objetivo específico o constrangimento dos cabanos a fim de
subordiná-los às normas do Estado brasileiro157. O próprio General Francisco José
de Souza Soares d’Andréa158, ao sancionar essa lei, afirmava que a necessidade de
fixar o trabalho era uma demanda efetiva para criar um ideal de disciplina e garantir
157 Estabelecido a partir da manutenção dos privilégios de proprietários fundiários e do Estado e a privação de direitos de índios, negros e miscigenados. 158 Presidente e Comandante de Armas da Província, em discurso aprovado pela Assembléia Legislativa do Pará em 12 de maio de 1838, é taxativo nesse aspecto ao reprimir os cabanos. (APEP, Collecção de Leis Provinciaes do Pará, volume que contém a legislações dos anos de 1838 a 1842). A repressão aos movimentos sociais é uma característica da passagem do Império à República. As ações específicas dessa política no Pará dão mostra do sistema jurídico-repressivo do Estado Imperial no processo de unificação do território brasileiro.
152
a reconstrução da economia escravista na província, além de eliminar a potência dos
cabanos que havia abalado as estruturas do Estado.
A economia escravista deficitária dependia, mais do que nunca, do trabalho
dos índios, mestiços e negros que compunham o “exército cabano”, o que fez com
que fosse praticamente abolido o tratado da escravidão na Pará. Nesse contexto, a
intervenção do Estado restrito era funcional ao controle da mobilidade do trabalho.
Diante deste quadro, os Corpos de Trabalhadores contiveram o movimento social
das massas populares, mas extrapolaram essa dimensão ao contribuir para a
formação de um mercado de trabalho que supria, em parte, a escassez de mão-de-
obra, uma questão sempre problemática naquela província.
A dupla face dos Corpos de Trabalhadores aparece a partir da intervenção do
Estado imperial, intervenção que era, ao mesmo tempo, conjuntural e estrutural,
tendo como premissa a necessidade de controle da mobilidade do trabalho e da
criação de um fluxo racional da mão-de-obra endógena. Note-se que os
trabalhadores livres da economia paraense do século XIX desempenhavam um
papel central nos aparelhos produtivos locais. No entanto, eles precisavam ser
regulados, sob pena de romper as formas de dominação física e territorial.
Dessa maneira, a rigidez imposta pelos Corpos de Trabalhadores na
formação do mercado de trabalho aparece como freio do mercado da liberdade dos
cabanos e buscava garantir não somente a formação de um mercado de trabalho
dependente, mas também a própria territorialidade da província, uma vez que a
independência do Pará estava em questão. O controle da mobilidade do trabalho se
consistia numa estratégia eficiente que previa que os trabalhadores só podiam
circular pela província portando guias – “passaportes” – expedidos pelos
Comandantes de Trabalhadores. Nestas guias registravam-se os motivos e objetivos
dos deslocamentos, rompendo assim, no Grão-Pará, a mobilidade do nômade, uma
das características principais do trabalho livre e independente.
O artigo 5º dos Corpos de Trabalhadores determinava que os indivíduos
alistados “não poderão sair da vila ou lugar a que pertençam, sem guia de seus
comandantes, que declare o lugar e o fim a que se dirigem”. Estas guias tinham de
ser liberadas pelos juízes de Paz, e aqueles que vagassem por seus distritos e não
153
apresentassem o documento deveriam ser presos e remetidos para seus respectivos
comandantes.
Os contratos de trabalho relacionados a esse regimento em todas as vilas da
província eram claros quanto ao controle da mobilidade de homens livres,
bloqueando assim a dinâmica de mutação empreendida pela massa. Com os
contratos objetivava-se não só fixar os trabalhadores livres e pobres da província,
mas, sobretudo, bloquear a potência da Cabanagem. A massa de cabanos era alistada
obrigatoriamente em “serviços da lavoura, do comércio e de obras públicas”159, por
tempo indeterminado.
Para garantir o cumprimento das normas prescritas nesse instrumento, os
comandantes dos Corpos de Trabalhadores precisavam de uma licença prévia para o
exercício do cargo160”. Tal medida visava coibir a colaboração entre oficiais e
cabanos e, desta forma, evitar o rompimento das normas do contrato, garantindo o
suprimento de mão-de-obra para as lavouras, que tinham sido praticamente
arrasadas no período das lutas cabanas. Uma outra medida visava reconstituir as
bases do mercado de trabalho de acordo com os padrões de assalariamento
constrangido, dessa vez sob a intervenção direta do Estado.
O mercado de trabalho e a natureza desse tipo de contrato foram sendo
constituídos, portanto, à medida que apontavam respostas para a questão da ruptura
da liberdade do trabalho nômade. Em torno desse problema gravita a questão do
bloqueio de uma massa que rompeu efetivamente com o domínio político-
econômico da economia escravocrata no Pará, ruptura que funcionou como uma
cunha no momento em que o movimento cabano acabou com o tráfico de escravos
para essa província.
As alterações do regime de trabalho e suas construções jurídicas da Colônia
ao Império estão marcadas pela dificuldade de se estabelecer contratos com
garantias, uma vez que a ruptura das diversas formas de engajamento, por parte do
trabalho dependente se dá na rejeição da subordinação. A resposta do Estado a essa
ruptura foi sempre a restrição, como demonstra o regimento de assalariamento
159 Corpos de Trabalhadores. 160 Os Corpos de Trabalhadores.
154
compulsório. Em contrapartida, os cabanos produziram a defecção, alternativa que
corroeu as bases da acumulação capitalista, gerando a crise da província.
Essa questão é observada até mesmo no interior dos Corpos de
Trabalhadores, onde a fuga do trabalho dependente continuava sendo uma das
formas de resistência à dominação. A deserção do trabalho nas obras públicas era
uma prática constante; os trabalhadores aproveitavam qualquer oportunidade para
se dedicarem às atividades independentes, o que lhes permitia realizar diversas
atividades no decorrer do ano, mas também favorecia o ócio nas entressafras de
maturação dos frutos e do ciclo natural do pescado. O ritmo de trabalho desses
trabalhadores era imposto pela natureza, ao contrário das regras impostas pelos
Corpos de Trabalhadores. Segundo Bastos (1999), os trabalhadores recrutados nos
Corpos de Trabalhadores apresentavam uma diversidade ocupacional: 68,4% eram
lavradores, 23% dos dedicavam-se a atividades de alfaiate, carpinteiro, ferreiro etc. e
3,5% desenvolviam atividades de controle como feitores e guardas policiais, oficiais
de justiça e um sacristão.
Nos ofícios e correspondências mantidas entre as autoridades provinciais
verifica-se que a maioria dos alistamentos recaía sobre pequenos proprietários ou
posseiros que não tinham como comprovar qualquer vínculo de dependência e
assim eram arregimentados às fileiras desse famigerado mecanismo de bloqueio da
liberdade. A implantação dos Corpos de Trabalhadores implicou, portanto, uma
série de tensões e conflitos envolvendo diferentes setores sociais: autoridades,
fazendeiros, pequenos produtores rurais, trabalhadores e agenciadores do
recrutamento compulsório.
No entanto, verifica-se nesta mesma documentação161 que houve estratégias
dos cabanos no sentido de escapar dos alistamentos compulsórios. Os trabalhadores
criavam alianças com proprietários fundiários, autoridades ou lideranças locais e
utilizavam dois instrumentos principais de burla da lei:
− O primeiro diz respeito aos agregados, ou seja, indivíduos que viviam sob a
tutela de alguém. A situação de agregado era considerada um dos mecanismos
para o não engajamento nos Corpos de Trabalhadores. Os trabalhadores e
161 APEP, SPP, OCT, caixa 95, 1844, documento 45.
155
proprietários rurais de determinadas localidades valiam-se desse artifício para
impedir o alistamento de pessoas que lhes eram próximas. Em 1843 o
comandante de uma Companhia de Trabalhadores “pedia esclarecimentos ao
Comandante Geral sobre como proceder no caso dos agregados que não se
encontravam engajados, uma vez que estes faziam grande falta para os ‘trabalhos
da Nação162’”. Nota-se nesse relato o questionamento desse tipo de relação de
dependência já que os agregados, estando protegidos e não podendo ser
alistados, criavam um óbice às arbitrariedades dos Corpos de Trabalhadores.
Para se tornarem agregados, os trabalhadores livres vinculavam-se a uma relação
com algum grau de dependência e, conseqüentemente, de subordinação aos
proprietários fundiários. Essa situação constituiu-se como uma prática
costumeira e difícil de ser violada pelo novo ordenamento do trabalho, pois os
proprietários fundiários podiam inclusive rever o caso de indivíduos já
recrutados.
− O segundo refere-se aos “Termos de Engajamentos”, outra forma de
comprovação real ou fictícia de vinculação ao trabalho. Nestes Termos eram
estabelecidas relações de obrigações entre patrões e trabalhadores, nas quais
eram determinados antecipadamente os valores a serem pagos por cada tipo de
trabalho contratado. Mas a importância desse documento residia na dispensa de
alistamento obrigatório nos Corpos de Trabalhadores, ao comprovar a
dependência do trabalhador a um determinado proprietário. Na realidade, os
Termos de Engajamentos foram utilizados muitas vezes como estratégia
particular de recusa aos Corpos de Trabalhadores.
Essas duas modalidades de trabalho dependente mantiveram os
trabalhadores longe dos alistamentos nos serviços públicos, possibilitando assim a
manutenção de suas posses e, ainda, a oportunidade de se dedicarem parcialmente
às atividades extrativas163. Na contraface do alistamento compulsório, as
modalidades de dependência relacionam-se à “transações” entre proprietários
162 Idem. 163 Estas atividades eram compostas de coleta de salsaparrilha, cravo, óleos, castanhas, madeiras, cacau, o cultivo da mandioca o preparo do peixe salgado para consumo ou para venda. Esses pequenos produtores também se dedicavam ao comércio de regatões. Esses tipos de trabalho eram vitais para as populações ribeirinhas e para os povoados distantes das cidades porque consistiam na única forma de suprimento de mercadorias que não eram produzidas na localidade.
156
privados e trabalhadores livres, mas constrangidos em sua liberdade. Criavam um
sub-mercado de trabalho que passou a existir na vaga da resistência ao comando do
Estado. No entanto, a relação de dependência sob a agregação espontânea e/ou sob
o Termo de Engajamento enfatizava estatutos de relações diferenciadas: no primeiro
caso de dependência, o tempo era indeterminado, não havendo um tipo específico
de tarefa a ser executada pelo agregado, ficando este totalmente fora das regras do
mercado de trabalho; já no segundo caso há uma relação de dependência com
definição do tempo de permanência no trabalho contratado.
Isto acabou favorecendo o surgimento de um novo padrão de trabalho de
tripla face: primeiro garantia-se a permanência dos trabalhadores próximos a suas
famílias; segundo criava-se uma mão-de-obra que até então não estava disponível,
produzindo uma modalidade específica de trabalho dependente e; terceiro surgiam
novos vínculos de dependência/solidariedade entre trabalhadores, proprietários
fundiários e lideranças locais. Na documentação levantada, as alianças asseguravam
o desenvolvimento desses territórios particulares e funcionavam, na pior das
hipóteses, como salvo-conduto para que os trabalhadores não se distanciassem de
suas localidades podendo assim se dedicar aos seus trabalhos habituais. Os que
possuíam pequenas embarcações e eram exímios condutores praticavam atividades
relacionadas ao transporte de pessoas e gêneros. Eles (populações indígenas, os
mestiços e negros não escravos) eram trabalhadores livres que desenvolviam
atividades vinculadas à subsistência, como o cultivo para consumo próprio e para
pequenas trocas. Mas com a lei dos Corpos de Trabalhadores estavam sujeitos ao
trabalho compulsório em obras públicas164 ou em serviços de particulares, com
contrato firmado através dos juizes de paz165.
Os embates entre os poderes público e privado na província do Pará (1838-
1859) mostram a eficácia dos Corpos de Trabalhadores na adequação da mão-de-
obra exigida, mas também os interesses que estavam em jogo nessa sociedade. As
disputas e alianças eram firmadas sob determinadas condições, não significando
adesão total ao projeto de libertação dos trabalhadores. Esses últimos eram os
164 As obras públicas ou serviços nacionais caracterizavam-se por atividades como: corte e preparo de madeira, abertura de estrada, limpeza de canais, remar embarcações, construção de prédios públicos, trabalho em pedreiras. 165 Collecção das Leis Provinciaes do Pará, Arquivo Público do Pará.
157
verdadeiros portadores da restituição de sua liberdade, condição que os levava a
fazer alianças para escapar da maldição do trabalho forçado.
As correspondências trocadas entre os comandantes de trabalhadores
evidenciam que, embora presos ao trabalho forçado, os indivíduos livres e pobres
encontraram alternativas contra o trabalho compulsório, removendo determinadas
barreiras que os Corpos de Trabalhadores impunham e assim desestruturando o
próprio controle do trabalho. A fuga para as matas continuava sendo uma estratégia
de êxodo e uma prática usual de recusa ao sistema de assalariamento compulsório.
Nessas correspondências, a dificuldade de recrutamento aparece como sendo devida
à própria natureza das atividades destes trabalhadores. A floresta era fonte de
recursos indispensáveis ao modo de vida do cabano: a caça e a extração de óleos
eram atividades comuns aos homens livres e pobres da província166, mas passavam a
configurar formas de refúgio e meios para dificultar seu recrutamento. Essa era uma
alternativa própria dos cabanos em face do trabalho compulsório, uma vez que não
estavam acomodados na situação de servidão e atuavam em oposição ao
ordenamento de suas atividades.
A constituição do mercado de trabalho dependente no Grão-Pará, tal como
falava Marx em O Capital, não corresponde ao modelo de constituição do trabalho
nos países com experiência de industrialização. Aqui, os “candidatos” ao
assalariamento compulsório eram cassados em sua liberdade, como se verifica nos
depoimentos dos diversos comandos dos Corpos de Trabalhadores. No Baixo
Amazonas, precisamente, em Brasília Legal, afirma-se: “(...) em conseqüência de se
acharem internados pelas matas tratando de granjear alguma coisa, por seu tempo
próprio de negócio167”, não se pode engajá-los; o comandante de Vila Franca
também ajuda a elucidar a forma de trabalho ao qual estavam vinculados, pois fala
da dificuldade de recrutamento tendo em vista “(...) estarem não só trabalhadores,
mas sim quase todos os habitantes ocupados no fabrico de peixe168”.
166 APEP. SPP, OCT, caixa 63, 1843, documento 102. 167 APEP. SPP, OCT, caixa 95, 1845, documento 126. 168 APEP. SPP, OCT, caixa 95, 1844, documento 97.
158
Diante desse cenário em que a dificuldade de alistamento de trabalhadores
era constante, o Capitão da Companhia de Alenquer em 1844169 afirma que toda a
população da vila estava em atividade, diferentemente do que se tentava passar. Suas
atividades iam desde a pesca, preparação de peixes desidratados – peixe seco, até
hoje muito utilizado –, como também a caça e a feitura de óleos170 de frutos de
árvores (andiroba e copaíba). Já o Cabo de Esquadra da Companhia de Ourém diz
que a ausência dos trabalhadores em suas casas devia-se ao fato de todos estarem
“para os matos”. Por essas citações171 percebe-se que as atividades extrativistas eram
centrais como meio de vida dos trabalhadores livres e não correspondiam às
exigências de uma mão-de-obra regular e sistemática, a não ser quando praticada sob
o trabalho comandado para a inserção dessa produção na economia-mundo.
Esses depoimentos mostram que o discurso da ociosidade era ideológico,
utilizado para formar uma opinião pública negativa sobre as práticas usuais da
população nativa. A pesca, a preparação de peixes e a coleta de produtos naturais
eram fartamente praticadas como recurso de produção e reprodução da vida da
população livre da província, não justificando, de modo algum, os argumentos sobre
vadiagem. Tratava-se do embate entre dois modelos de constituição da sociedade na
Amazônia, isto é, do modelo de produção do capitalismo-mundo confrontado com
a economia natural.
Em face dessa legislação para o controle da mobilidade do trabalho nômade
dos cabanos, cada localidade desenvolvia suas próprias estratégias para escapar dos
engajamentos ou recrutamentos forçados, estratégias que surgiam devido às
pressões de grupos ou indivíduos. O padre Lino de Vezeu, por exemplo, escreve ao
presidente da província para informar a condição de miséria de seus paroquianos,
afirmando que, após o deslocamento dos homens livres de suas roças para os
serviços públicos, os demais ficavam desamparados, reinando, desta forma, a
escassez de alimentos. Ele alegava ainda que esse era o motivo das fugas dos
recrutados para se juntar aos índios bravios ou a comerciantes da região, pois os
169 APEP. SPP, OCT, caixa 95, 1844, documento 93. 170 APEP. SPP, OCT, caixa 63, 1843, documento 102. 171 Os depoimentos sob os quais foram desenvolvidas essas considerações encontram-se no Arquivo Público do Estado do Pará, na série de Ofícios das Companhias de Trabalhadores (Secretaria da Presidência da Província), caixa 122, 1849.
159
recrutamentos recaiam sobre “arrimos de família”. Padre Lino alertava também que
tais dificuldades, se não fossem superadas, poderiam resultar numa nova rebelião,
como já se cogitava, à medida que novas alianças eram firmadas em oposição ao
processo de submissão, bem como à lei que obrigava ao trabalho forçado. Assim, as
práticas sociais apresentam um contexto de resistência diferente do radicalismo
interno das lutas cabanas, pois ao se vincularem a determinados proprietários e
lideranças locais, fugiam do controle exercido no âmbito dos Corpos de
Trabalhadores. A resistência tornava-se mais sutil, mas nem por isso menos eficaz,
em tempos de repressão.
Nos ofícios manuseados verificou-se ainda que a resistência também se dava
através da articulação entre determinados comandantes dos órgãos de controle e os
trabalhadores, rompendo assim a base da cadeia hierarquizada de coerção exercida
pelos Corpos de Trabalhadores. A recusa de militares em exercer o controle mostra-
se como uma cooperação no interior do próprio aparelho coercitivo do Estado.
Nesses casos era solicitada a substituição de oficiais por “homens de confiança” do
Presidente da província. Os casos de desobediência ocorriam em várias
municipalidades: na cidade de Cametá, os oficiais não entregavam os mapas
semestrais para o conhecimento dos recrutados; em Bragança oficiais e
trabalhadores eram “(...) amigos, conhecidos e mais ou menos aparentados172”, o
que permitia relaxamento das regras de controle. Verifica-se também a existência de
oposição firme por parte de indivíduos influentes das localidades que apoiavam as
fugas de índios recrutados, como afirma Pedro da Cunha, Major Fiscal de Óbidos.
Existe ainda um ofício, enviado em 1855 pelo Comandante da Companhia de Boim
Antonio José Rebello à Presidência da província, relatando a dificuldade de realizar
os alistamentos naquela localidade já que a fuga dos “tapuios” era incentivada por
Feliciano Loureiro173, contrário ao alistamento dos mesmos e muito menos de seus
filhos. Já o comandante do município de Ourém informa sobre fugas de
trabalhadores para a cidade de Bragança motivadas, segundo ele, pelo fato de que
naquela cidade as autoridades não faziam o controle da documentação legal de
172 Esses fatos podem ser comprovados através de periódicos e correspondências oficiais que se encontram no Arquivo Público do Pará. 173 Liderança da localidade de Boim que, segundo o comandante, conseguia que todo o povo seguisse suas orientações.
160
trabalhadores. Loureiro pede assim providências contra as autoridades bragantinas
para que “não mais consentissem refugiados por motivo de serviço em território de
sua jurisdição, remetendo-os presos caso fossem lá encontrados”174.
Desta forma, os Corpos de Trabalhadores exerceram um papel primordial na
construção da disciplina do trabalho, que se fez em oposição às práticas nômades175
moduladas pela produção e reprodução da população nativa. As práticas nômades
eram pautadas na extração da fauna e flora da Amazônia e potencializadas pela
liberdade de ir e vir no tempo desejado, isto é, sem a mediação do capataz. A
recondução da economia escravista no Pará foi pois operada pelos Corpos de
Trabalhadores, o que garantiu o controle de aproximadamente 60 mil indivíduos do
sexo masculino que se viram privados do direito de vagar livremente pelo território
da província, passando por processos sistemáticos de sujeição. Segundo Jerônimo
Coelho, os trabalhadores erguiam suas barracas ou palheiros “à margem de qualquer
desses rios e lagos variadamente piscosos (...) rodeados de matas e florestas virgens,
de frutos, drogas, e especiarias (...) uma infinda variedade de caça vive descansado e
descuidado”176, não precisando assim despender força física no trabalho regulado.
A não fixação da população flutuante era um problema constante, pois os
nativos não “fazem caso [de suas choupanas], e com pouco trabalho fazem outra em
outro distrito, ou nas matas, e ali existem até que tornem a serem puxados”177. A
abundância natural do território, para Jerônimo Francisco Coelho, constituía a
principal causa da ociosidade, e por esse motivo ele defendia a manutenção dos
Corpos de Trabalhadores – órgão administrativo empenhado na execução do
trabalho árduo. A situação de ociosidade não poderia perdurar, o que justificou a
maldição do trabalho compulsório à custa da obrigação e coerção da população livre
e pobre do Estado.
Para Silveira (1994), o aparelho de repressão do Estado foi acionado como
instrumento poderoso para reduzir trabalhadores livres à “servos da gleba”. Nesse
contexto, a mão-de-obra livre aplicada à agricultura familiar de subsistência foi 174 APEP, SPP, OCT, caixa 63, 1843, documento 102. 175 Tratava-se, antes de tudo, de uma produção vinculada à economia natural, baseada na coleta de grãos, frutos e nas chamadas drogas do sertão, atividades individuais ou coletivas que não estavam fundadas na propriedade privada, mas no usufruto e posse de determinados produtos no território livre da floresta. 176 APEP, SPP. OCT, caixa 95, 1844, documento 15. 177 Idem.
161
desmontada, já que a maioria da população era efetivamente produtora de suas
próprias condições de existência e as condições impostas pelo regimento dos
Corpos de Trabalhadores consistiam numa anomalia de assalariamento constrangido
sob a forma de trabalho compulsório.
As críticas a essa organização social começaram a funcionar como elementos
de mobilização social. Os Corpos de Trabalhadores estavam desestruturando as
culturas de subsistência no Pará, já que os recrutados eram em sua maioria pequenos
produtores rurais que não tinham títulos de propriedade de suas terras, sendo por
isso classificados como vadios. Nos depoimentos de capitães, sargentos e cabos
responsáveis pelo controle nos Corpos de Trabalhadores, pode-se perceber a
condição social dos comandados antes do alistamento no trabalho compulsório. Nas
práticas cotidianas desses trabalhadores não havia uma divisão social do trabalho
nem a hierarquização no exercício das diversas modalidades de trabalho; todos
desenvolviam várias funções e dificilmente podiam assegurar uma atividade definida.
O debate político sobre essa instituição foi acirrado quando apareceram as
primeiras denúncias de abusos cometidos por membros do Estado, tais como o
desvio de trabalhadores para exercer atividades em suas terras e propriedades
particulares e também a disputa por trabalhadores entre as várias instâncias do
governo. Nos jornais da época, os Corpos de Trabalhadores eram considerados uma
“instituição excepcional e anti-social”, que concorria para o “medonho retrocesso da
civilização da província” e “aviltamento da dignidade humana devido à ostensiva
coerção sobre os homens livres (jornal O Doutrinário)178”.
Em resposta às críticas e denúncias, Ângelo Custódio179 afirmava que a
abolição desse instrumento de controle da mobilidade do trabalho livre provocaria o
retorno ao caos: primeiro, porque quebraria o respeito ao “princípio de autoridade”
estabelecido pelos Corpos de Trabalhadores; segundo, porque “representaria ainda
um atentado à civilização”, posto que os que defendiam o fim dessa instituição
lançariam uma “corda no próprio pescoço”. Assim, os Corpos de Trabalhadores
cumpriam a função de controle das massas, antes mesmo de constituírem um 178 GLRP. O Doutrinário, Belém, nº 19, 29/04/1848, p.1-2. 179 GLRP. Relatorio feito pelo Exmº Snr. Dr. Angelo Custodio Correa, 1º Vice Presidente desta Provincia, por occasião de dar posse da administração da mesma ao Exmº Snr. Conselheiro Sebastião do Rego Barros, em dia 16 de novembro de 1853. Especialmente páginas 50-52.
162
mercado de trabalho à custa do trabalho compulsório. Na realidade, esses Corpos
foram a forma encontrada de controle dos trabalhadores livres, funcionando como
o termidor da Cabanagem, pois exigiram uma mudança radical das estruturas político-
econômicas baseadas no exercício da liberdade e da igualdade, bandeiras de luta
desse movimento social.
Em face das críticas e da não resolução do problema de fuga do trabalho,
criou-se em 1840 uma lei complementar para reformular os Corpos de
Trabalhadores, além de responder à questão dos alistamentos forçados. Esta última
lei dispensava os oficiais e os aprendizes de ofícios mecânicos, os feitores de
fazendas de agricultura ou de gado, e os varões únicos com família a seu encargo,
além dos menores de 14 anos e maiores de 50. A resistência ao processo de
recrutamento tornara-se um fato evidente para a reestruturação do regimento do
trabalho compulsório.
Os trabalhadores livres do Grão-Pará pós-Cabanagem passaram por um
processo de trabalho que interessava somente às autoridades do Estado e aos
proprietários fundiários, mas não aos trabalhadores, pois atendiam as demandas da
urbanização crescente das cidades, da produção mercantil e da própria infraestrutura
do Estado imperial, formando um mercado de trabalho constrangido na borda da
repressão. Entretanto, a dificuldade de imposição desse modelo de mercado de
trabalho conduziu ao debate sobre a importação de mão-de-obra exógena para
suprir a oferta de mão-de-obra em face da recusa contínua dos trabalhadores nativos
ao trabalho regulado.
O jornal Treze de Maio180, órgão de divulgação oficial, fazia a apologia das
vantagens do trabalho constante e regulado. Segundo os discursos apresentados
nesse jornal, os bens produzidos e adquiridos com o desenvolvimento da indústria
eram devidos à capacidade empreendedora de seus agentes, que lhes possibilitava
acumulação e propriedade. “(...) vê-los-eis contentes com o seu trabalho, e felizes no
meio de suas famílias, a mulher será industriosa, os filhos instruídos, obedientes e
aplicados, as filhas dóceis e virtuosas. Meditem todos, particularmente os
180 Artigo “A Propriedade” de 2.11.1844.
163
casados181”. Essas “vantagens” eram a promessa do liberalismo econômico e
segundo esse discurso, a relação de dependência traria posses de bens; os
trabalhadores não deviam se desesperar porque veriam aumentadas suas
propriedades por esforço próprio e poderiam dizer “enquanto vivo ‘isto é meu’ e na
hora da morte ‘deixo isto para meus filhos’” (idem).
A migração internacional era discutida em periódicos e artigos dos jornais
como fomento à produção de uma mão-de-obra adequada para a dinamização
econômica da província, sendo colocada como alternativa à alteração das práticas
produtivas locais. Os migrantes eram considerados uma força propulsora, não
somente de riquezas materiais, mas também de uma nova mentalidade, pois traziam
em suas bagagens experiências que certamente influenciariam as relações cotidianas
e os “bons hábitos” que faltavam à população local. Eram ainda considerados
empreendedores e industriosos e costumavam ter algum tipo de especialização ou
mesmo capacidade de manuseio da agricultura extensiva.
Nota-se nos discursos em defesa da introdução do trabalho exógeno que o
objetivo era a fixação da mão-de-obra e a alteração dos hábitos culturais dos nativos.
A educação profissionalizante, em paralelo, deveria inculcar na população nativa a
perspectiva do trabalho subordinado, bem como a concepção do “individualismo
possessivo182” como elementos de formação social. Possuir bens ou se estabelecer
indefinidamente em um único lugar para fixar residência não era uma prática usual.
Quando começava a escassez de alimentos naturais, as populações nativas
abandonavam suas pequenas choupanas (em que quase nada existia), deslocando-se
para outros territórios.
Assim, além dos jornais, os presidentes da província através de seus
relatórios idealizavam um novo modelo de trabalho; seus discursos faziam circular
uma batalha de opiniões acerca do trabalho, propondo alternativas e medidas de
substituição dos Corpos de Trabalhadores por um programa de reação à
Cabanagem. Nesse período foi-se constituindo um mercado de trabalho regional
para abafar os conflitos, sob os escombros das lutas cabanas e a imposição do
trabalho compulsório. Nas narrativas dos viajantes percebem-se os lamentos pelos
181 GLRP, Treze de Maio, nº 456, 02/11/1844, p. 3. 182 Ver MacPherson, C.B. Teoria Política e indivíduo possessivo de Hobbes até Locke, 1979.
164
conflitos, perdas e mortes de trabalhadores decorridos da Cabanagem: “Quantas
vidas humanas se perderam durante esses acontecimentos sucessivos! Perdas ainda
mais deploráveis por terem ocorrido justamente em um país onde nada é mais
necessário que o elemento humano e sua indústria”183 (Kidder, p.217).
Esses viajantes apontavam duas soluções para o problema do trabalho na
província, corroborando as críticas aos Corpos de Trabalhadores. Avé-Lallemant,
por exemplo, afirmava que somente os colonos estrangeiros, “apenas a vigorosa
força européia”, seriam capazes de transformar uma terra selvagem e pouco
explorada num exemplo de progresso, geração de riquezas e civilização, pois os
nacionais, devido ao seu caráter indolente e pouco industrioso, não conseguiriam
transformar o Estado em que se encontrava o Norte do Brasil. Ele acreditava na
viabilidade da agricultura e do incremento da produção no momento em que os
indivíduos, “vadios por natureza”, tomassem consciência da importância do
trabalho e de sua própria capacidade para realizá-lo. Era preciso, para isso,
incentivar a educação, especialmente a educação profissional, para transformar
jovens que “perambulavam vagabundeando” em homens e mulheres úteis ao
trabalho. A agricultura era a condição necessária para o desenvolvimento da região e
o cultivo regular do solo poderia ser uma opção de desenvolvimento e civilização
nas terras tropicais.
O “modelo de trabalho instaurado na Europa” era difundido como ideal de
civilização em face do atraso econômico da província. Para superar o atraso
ressaltava-se o princípio do amor ao trabalho, do empreendedorismo e das virtudes
morais, como características vinculadas ao progresso econômico. Esse modelo
traduzia-se no ideal de desenvolvimento da ciência e das técnicas de produção
industrial e cultivo agrícola.
O “estrangeiro” passava a ilustrar a necessidade de adequação da sociedade
local ao novo sistema de produção internacional sob o capitalismo-mundo. O
assalariamento da força de trabalho constituía um ideal tipo weberiano a ser
alcançado no Pará. Neste modelo, o europeu – “estrangeiro”/trabalhador exógeno –
introduziria novos hábitos culturais e contribuiria para a superação de um modelo
183 Segundo os dados levantados sobre a Cabanagem, mais de 40.000 pessoas morreram nesta revolta popular.
165
de produção exclusivamente extrativista e também para a formação de uma
mentalidade de trabalhadores nativos, suprimindo assim a indolência do indígena. O
atraso econômico era associado à falta de “civilidade”.
Esse ideário foi concretizado com a criação do Instituto dos Educandos em
1840, que visava formar “braços fortes com amor ao trabalho”, isto é, uma massa
economicamente ativa em oposição ao “cancro” representado pela escravidão184. A
profissionalização surgiu como um programa destinado à superação da indolência
dos trabalhadores nativos, uma vez que se entendia que a especialização era
necessária para qualificar o trabalho dependente e as técnicas eram tidas como
garantidoras da produtividade185. Tendo em vista que não era suficiente o controle
da força de trabalho, precisava-se ainda criar um “trabalho civilizado”. Reconhecia-
se assim que a simples coerção não conseguiria quebrar a mobilidade do trabalho e
subordinar a população nativa ao trabalho regulado.
No Pará, os ideólogos do trabalho livre apontavam, em meados do século
XIX, três elementos indispensáveis para essa dominação: educação, controle
disciplinar e amor ao trabalho. As polêmicas e disputas em torno dessa questão
retratam as tendências e propostas para a constituição do mercado de trabalho
dependente. Visava-se formar uma capacidade produtiva como condição de
progresso da província, alternativa essa que só seria possível a partir da introdução
do trabalho dependente e regulado pelos critérios do tempo socialmente necessário
à produção de mercadorias. Isso incluiria “amor ao trabalho”, “civilização” dos
trabalhadores e estímulo à propriedade privada, ou seja, os pilares da sociedade
capitalista.
Para Ângelo Custódio Correa186, que reconhecia as arbitrariedades internas
dos Corpos de Trabalhadores, era preciso reformulá-los, adequando o trabalho a
essas condições de proletarização. Para ele, as obras públicas na capital e nos
distritos da província eram realizadas em tempos hábeis, o que facilitava o retorno
dos trabalhadores para suas famílias. A exploração desses indivíduos era considerada
uma “necessidade moral” e algumas normas foram criadas para coibir os abusos, tais
184 GLRP, Treze de Maio, nº 121, 23/08/1851, ou ainda do mesmo jornal o nº 117 de 26/07/1851. 185 GLRP, Treze de Maio, nº18, 25/08/1849. 186 1º vice-presidente do Grão-Pará.
166
como, dentre outras, a fiscalização do pagamento dos salários, uma vez que essa
instituição havia gerado uma escravidão disfarçada.
Assim, esse regimento do trabalho aparece não somente como um
instrumento de punição aos cabanos, mas também como máquina para arregimentar
a força de trabalho na construção do Estado Imperial brasileiro. Trata-se da
constituição de uma massa de trabalhadores como força-tarefa na reconstrução da
economia paraense sob um estado restritivo.
A formação profissionalizante, nesse caso, é mais um elemento da
implantação de um modelo aceitável de exploração e criação de uma oferta de mão-
de-obra para o mercado de trabalho, pois o aprisionamento de trabalhadores
nômades sob o regime de trabalho compulsório – uma espécie de assalariamento
constrangido – já não satisfazia mais as demandas do trabalho em face do modelo
de assalariamento do trabalho livre que se difundia na Europa e vinha influenciando
os debates locais. Assim, os Corpos de Trabalhadores tornavam-se uma anomalia na
estruturação do mercado de trabalho dependente, pois os indivíduos – trabalhadores
livres – não podiam vender sua força de trabalho à melhor oferta; o trabalhador
compulsório não era regido pela lei da oferta e da procura, mas por uma rígida
estrutura forjada pelo Estado imperial brasileiro para conter as massas.
No Pará, a organização dos Corpos de Trabalhadores exercia a coerção da
mão-de-obra livre, freando a potência que havia produzido as lutas socioeconômicas
que ergueram as massas como sujeito de ruptura da colônia. A efervescência e o
radicalismo da massa embalava o sonho de um organismo autônomo que
questionava as práticas imperialistas. Por outro lado, o controle dos cabanos passava
necessariamente pela anulação da mobilidade das práticas nômades. Para Jerônimo
Francisco Coelho, presidente da província do Grão-Pará, esse contingente
populacional visava somente a busca de bens para o próprio consumo e não para a
“grandeza do Estado e ao bem de todos187”. Sua perspectiva era a de acabar com a
economia do Estado e eles eram considerados “(...) verdadeiros vagabundos, porque
nem uma pequena choça tem na Vila para suas Residências, e nos sítios vivem em 187 Jeronimo Francisco Coelho, Presidente da província do Grão-Pará à Assembléia Legislativa da Província, na Abertura da Segunda Sessão Ordinária da Sexta Legislatura, no dia 1º de Outubro de 1849, evidencia esse fato: “Na Europa é esse o desideratum das classes inferiores do povo, (...) para elas, ter trabalho é ter o pão da vida, é a felicidade (...)”.
167
pequenas Cabanas não contendo em Roda delas mais que 4 pés de maniva, lavoura
própria de Trabalhador alistado (...) (idem)”.
Em 1849, um determinado jornalista, criticando o trabalho compulsório dos
Corpos de Trabalhadores, defendia o “trabalho livre!”, afirmando que tratar a
experiência dos Corpos de Trabalhadores como um processo pedagógico em
direção ao amor ao trabalho e à civilização era no mínimo esconder o processo de
subordinação e segregação social e racial contidos de uma lei que visava quebrar a
dinâmica da liberdade para fixar o nômade de modo dependente.
Nesse sentido, a marcha empreendida pelos cabanos, embora não tendo
afirmado o direito à liberdade política com autonomia do trabalho manteve seu
trabalho de mutação social, mesmo que esse efeito apareça como sendo uma dádiva
do capitalismo e do Estado liberal. Contariando essa idéia, entretanto, as lutas do
trabalho na Cabanagem testemunham os passos firmes rumo à liberdade do
nômade. A transição do trabalho foi sendo forjada desde os primeiros momentos de
estruturação do trabalho compulsório, através do controle territorial e dos seus
códigos sociais para produzir corpos dóceis.
Para as autoridades provinciais, a liberdade de deslocamento da população
representava um perigo caracterizado pelo nomadismo dos trabalhadores nativos.
Nesse contexto, colocava-se novamente a redução da mobilidade de índios,
mestiços e negros, pois a livre circulação dos indivíduos pobres quebrava os códigos
impressos pela escravidão moderna e derrubava a estrutura de acumulação do
Estado imperial. A Cabanagem tinha rompido a maldição do trabalho para além do
domínio imperial.
O mecanismo racial, sob a forma da lei, foi talhado para produzir uma linha
divisória entre trabalhadores e proprietários. Já nas primeiras formas de
regulamentação do trabalho, a falsa base da inferioridade racial funcionou como
máquina de constituição projetada para justificar a dominação da população e sua
conseqüente subjugação. A escassez de mão-de-obra era uma questão sempre
presente, tendo em vista a necessidade de fortalecimento do Estado. Essa
problemática está na origem da expansão da escravidão e do trabalho compulsório.
No entanto, a justificativa do controle da massa no curso do movimento cabano
168
visava na verdade a desarticulação dos cabanos em paralelo com a solução do
problema do déficit de mão-de-obra.
Os debates políticos nas décadas de 1840 até meados da década de 1860
ressaltavam a ausência de desenvolvimento da indústria agrícola ou da manufatura
como um problema da falta de mão-de-obra e de recursos econômicos. Na ausência
de tais condições colocava-se como alternativa a colonização do Grão-Pará. Em
1855, o vice-presidente refere-se ao modelo de colonização estabelecido no sul do
Império, destacando a agricultura extensiva em vez das atividades como as
desenvolvidas pela população nativa. Surgiu ainda nesse contexto a alternativa de
uma política de colonização associada ao processo disciplinar do trabalho e o
incentivo à navegação fluvial, devido à importância desse transporte para a
província. As vias fluviais potencializavam o desenvolvimento do comércio local.
Isto se deu através da criação de núcleos civis e militares e sob a urgência de
constituição de um processo de ocupação e tratamento da terra para o cultivo de
produtos agrícolas. As Colônias eram geridas por normas militares e exerciam a
função de disciplinar o trabalho, para a criação de uma mão-de-obra sob os moldes
do trabalho livre dependente.
Pode-se dizer que grande parte dos discursos de “jornalistas” e
“colaboradores em periódicos” da época, quando tratavam do atraso da província,
relacionavam este atraso à questão da falta de mão-de-obra, o que aparece sob
diferentes ângulos: a necessidade de disseminação de povoados como uma exigência
devida a extensão territorial da província; a dificuldade relacionada à ausência de
uma política efetiva de colonização; e, finalmente, a não inserção de grupos
indígenas “não civilizados” à produção. A população livre era exortada a constituir
de uma hora para outra o “exército de trabalhadores” para a reconstrução do
Estado.
As tentativas de atração da mão-de-obra internacional foram frustradas,
tendo em vista que a província não tinha capital suficiente para os custos relativos a
essa alocação. Diante das dificuldades econômicas da província, essa proposta foi
substituída pelo apelo aos trabalhadores de outras províncias, como alternativa tanto
ao trabalho exógeno – “estrangeiro” – bem como ao trabalho dos cabanos. Com
169
referência ao trabalho endógeno, dizia-se em 1849 que uma “desvalida porção da
humanidade que ahi vaguêa pelas nossas brenhas; – são homens, são novos
instrumentos de produção que adquirimos –; são braços livres que veem auxiliar as
industrias do paiz”188. A mão-de-obra sob o controle do capitalismo-mundo era a
condição para a produção agrícola enquanto riqueza da província e não mais a
dedicação ao extrativismo189.
A colonização era colocada não apenas como possibilidade de
desenvolvimento local, mas também de efetivação do domínio da província
enquanto parte do Império Brasileiro. As alterações constantes de administradores
do império difundiam a política de centralização, suplantando os interesses locais.
Os imigrantes eram considerados propulsores do desenvolvimento, à medida que
podiam introduzir novos hábitos em face dos “maus costumes” da população local,
pois a ociosidade enfraquecia a economia da província. Assim, a prosperidade dos
produtores enriqueceria a província e o império. A substituição do padrão de
trabalho compulsório pelo trabalho livre era vista como uma estratégia, não somente
para garantir a produção de excedentes comercializáveis em grande escala, mas
também para a produção de “cidadãos civilizados”.
Nesse contexto, os Corpos de Trabalhadores são apenas mais uma espécie
particular de trabalho dependente, um instrumento privilegiado de controle dos
cabanos para conter sua marcha da liberdade. A constante recusa da população livre
e pobre da província é prova evidente de que esse instrumento jurídico foi
estruturado para refrear a mobilidade do trabalho; por outro lado, as diversas
estratégias de fuga ou de desvio desse instrumento acabaram por enfraquecê-lo na
prática, pondo em risco o processo de acumulação no Pará.
Assim, o controle da fuga dos trabalhadores dependentes está na origem da
especulação e da troca nos marcos da economia capitalista. Na Amazônia é possível
verificar a questão da fuga como um efetivo da ausência de trabalho dependente.
Nos discursos das autoridades e de jornalistas, a fuga e a indolência aparecem como
elementos negativos a que são atribuídos tanto a baixa produtividade quanto o
188 O Doutrinário, nº 79, 16/04/1849. 189 Treze de Maio, nº 204, 07/05/1842.
170
atraso econômico do Pará. Daí o porquê de o trabalho compulsório ter se
constituído como um termo de retenção das do trabalho nômade.
Nesse sentido, os Corpos de Trabalhadores se inscrevem como uma forma
particular de assalariamento, uma forma matricial de controle do nômade na
dimensão histórica da quebra da liberdade dos cabanos, constituindo-se como o
termidor da Cabanagem. Os Corpos de Trabalhadores iniciam o processo de
desconexão da relação direta homem/natureza, para impor um ideal tipo de relação
de trabalho dependente.
171
III Considerações finais
A Cabanagem é um movimento social de constituição da liberdade: um passo
largo da marcha da liberdade vis-à-vis a formação de um mercado de trabalho
dependente. Trata-se de um movimento de abertura em face da escravidão e das
diversas formas de organização do trabalho subordinado. Os cabanos e suas lutas
produziram um corte nas formas de controle do nomadismo do trabalho ao impor o
governo democrático das massas.
O espaço-tempo da Cabanagem mostrou a potência da liberdade dos
cabanos em oposição frontal ao poder constituído e sua racionalidade instrumental
estruturada no longo curso da transição da liberdade selvagem do trabalho nômade
ao trabalho formalmente livre, mas de fato compulsório. Em face da constituição da
liberdade do mercado (do mercado do trabalho dependente), uma outra via, trilhada
pela marcha da liberdade se afirmou na luta cabana.
Desta forma, os cabanos buscaram liberar a vida para além das formas de
estruturação do capitalismo-mundo e do trabalho dependente. A mutação sócio-
histórica era o horizonte da Cabanagem. Nela se vislumbrava uma possível unidade
política entre economia e sociedade. A ultrapassagem do sistema colonial não foi o
resultado linear da engenharia do poder constituído, mas a crise entre a efetividade
das lutas constituintes dos cabanos contra o capitalismo-mundo em solo amazônico.
Em nível macro, pode-se dizer que a expansão do capitalismo-mundo
estendeu o antagonismo dos agentes sociais que suplantaram a velha ordem feudal e
colocou a crise como núcleo da constituição do liberalismo econômico e da
emancipação política, à medida que era a única alternativa de constituição da
modernidade.
Na Amazônia, o desejo de apropriação e acumulação produziu uma inflexão
da ontologia política das razões iluministas e humanitárias, fazendo despontar a crise
das alternativas de poder da modernidade que haviam ultrapassado as fronteiras
européias, colocando-se no centro das mutações do Novo Mundo. Os conflitos
entre potência e poder dimensionaram a capacidade expansiva do poder
constituinte, em que o capitalismo tornou-se apenas uma alternativa de poder, uma
172
produção social erguida sob o princípio da desigualdade, crise irresolúvel e
paradoxal em face da necessidade de expansão absoluta da liberdade do trabalho
vivo frente a limitação que se estrutura a partir do controle do trabalho.
Nesse sentido, a modernidade na Amazônia passou a expressar um tempo de
disputas entre o colonizado (suas lutas constituintes e suas máquinas de produção
mestiça) e o colonizador (seus aparelhos repressivos estruturadores do Estado). A
modernidade como crise do poder – entre o constituinte e o constituído – afirma-se
no Atlântico Sul entre viver em liberdade na floresta ou sucumbir à “civilidade” do
trabalho dependente: trabalho escravo, compulsório e assalariamento constrangido.
Portanto, pensar o poder constituinte na Amazônia remete-nos à potência do
trabalho nômade e sua marcha de libertação dos empreendimentos coloniais. De
maneira mais geral, leva-nos a pensar um outro caminho do trabalho sem a
acumulação dos meios de produção. A luta cabana, à medida que ia desvendando a
linha de continuidade que juntava a escravidão à constituição do mercado do
trabalho, ressignificava a liberdade selvagem: esta era vista não mais como “atraso”,
como estado de natureza, mas como possibilidade de recomposição entre trabalho e
meios de produção dentro da máquina de guerra da revolução cabana. Em face dos
aparelhos repressivos dos colonizadores portugueses e do Império Brasileiro, a
potência do trabalho cabano (pequenos produtores) encontrará no nomadismo a
marcha de uma liberdade que requalifica a floresta como seu espaço constituinte.
A expansão territorial dos colonizadores portugueses da Amazônia se fez a
partir da limitação da liberdade selvagem dos povos autóctones, mas também sobre
a inflexão do projeto revolucionário de constituição da modernidade. Nesse
ambiente rico em potência e limites, a distorção de princípios tornava-se paradoxal:
a liberdade de uns significava o bloqueio ou mesmo o extermínio de muitos. O
desenvolvimento da potência e, ao mesmo tempo, os desvios da virtù,
contraditoriamente, processaram uma luta de vida e morte em torno da apropriação
desenfreada deste território de dimensões continentais.
O privilégio, isto é, a fortuna, se introduziu neste espaço e produziu o
antagonismo entre colonizador e colonizado. Enquanto o primeiro movia-se pela
apropriação e domínio do trabalho nômade e da natureza selvagem, o segundo
173
pautava-se pela liberdade selvagem como elemento essencial da vida na floresta. O
colonizador, considerado não em si mesmo, mas no ambiente da Amazônia
selvagem, precisou dar conta da natureza em sua potência mais pura e processá-la na
ausência da necessidade de um fundamento pré-determinado.
A expansão territorial e a ânsia de conquistar, a qualquer custo, a imensidão
amazônica levaram à “corrupção” da virtù, e à ascenção da fortuna, o que fez alterar
completamente a façanha e os conceitos humanitários da ontologia de mutação
renascentista. As concepções filosóficas e políticas que haviam originado a
modernidade tornaram-se inválidas e problemáticas no espaço amazônico, pois não
davam conta da realidade continental a desbravar. Somente o milagre da aventura
foi capaz de mover obstáculos naturais quase intransponíveis, mas o preço dessa
remoção ainda está para ser analisado.
Na Amazônia, as disputas entre poder constituinte e poder constituído
tornavam as leis e regimentos da metrópole portuguesa mera formalidade. Segundo
Espinosa (1992), o homem quanto mais próximo da natureza é mais potente e
autônomo devido à liberdade de agir diante da necessidade de construir o
inexistente. Numa realidade absolutamente selvagem como a Amazônia, tudo passa
de uma forma a outra, tudo está em mutação constante, já que a natureza é antes de
tudo virtude e potência de agir.
Diante dessa abertura infinita da natureza selvagem, as certezas são
desestruturadas e o diálogo é impossível na conquista de um mundo inexplorado.
Nesse espaço, a constituição formal da Coroa portuguesa era mais abstrata do que
concreta e a potência aparece dramaticamente em duas dimensões: de um lado, a
expansão da liberdade de apropriação do espaço territorial da Amazônia e; de outro,
a liberdade selvagem dos povos autóctones na resistência à subordinação do
trabalho nômade.
A modernidade capitalista ao realizar o milagre de produzir o diferente para
subordiná-lo, produziu o seu próprio questionamento. A abolição da alteridade era a
condição para quebrar a liberdade selvagem. Do ponto de vista histórico, esse
problema precisava ser expurgado, pois os empreendimentos coloniais e o domínio
territorial desdobravam-se na necessidade fundamental de construir uma relação de
174
trabalho capaz de fixar o nômade em escala ampla. Esse elemento é importante para
analisar a constituição do trabalho dependente na região amazônica. A necessidade
de criar uma massa de trabalhadores para transformar a natureza em produto está
no centro da problemática colonial, pois o freio do trabalho nômade aparece como
obstáculo ao gerar as lutas entre colonizados e colonizadores que mais tarde
produziram os cabanos.
Na Amazônia, os regimentos de controle do trabalho tiveram início com a
escravização dos índios, uma prática funcional não somente de apropriação da
natureza selvagem, mas também para criar um fluxo de mão-de-obra necessária ao
domínio territorial daquele espaço pelos portugueses. O trabalho exógeno apareceu
como um elemento de controle do ativo da fuga que estava arruinando a economia
colonial, servindo assim para reduzir os custos da produção colonial.
Assim, o poder constituído buscou, por todos os meios, se apropriar do suor
e sangue dos nativos. O cerco ao trabalho nômade visava garantir sua fixação, na
perspectiva de estruturar o mercado de trabalho dependente e para a garantia da
subordinação da liberdade selvagem dos nômades. A metrópole utilizou métodos
pouco convencionais e mesmo paradoxais, como é o caso do incentivo à
miscigenação via casamento de índios com brancos subordinados e a
“marronagem”. Paradoxais, pois buscavam, por um lado, criar aliados através dos
laços de consangüinidade, e, por outro, abriam a possibilidade concreta de liberação
e autonomia dos dependentes.
Os cabanos são o resultado evidente desse processo de liberação. Ao
questionarem esses condicionantes sócio-histórico-naturais (em mais de duzentos
anos – de 1616 a 1835/40 – de subordinação) deram origem ao contra-poder na
Amazônia. A tensão entre a apropriação privada e as formas de subordinação e
domínio vis-à-vis a liberdade de posse imersa na natureza selvagem produziu o
antagonismo, fazendo emergir a resistência, as fugas, as deserções e as lutas
intestinas no decorrer das diversas tentativas de apropriação e constituição do
trabalho dependente.
O êxito da resistência do trabalho vivo mostra-se na longa trajetória de lutas
isoladas e espaçadas que ganha consistência com a constituição dos cabanos,
175
oriundos dos povos nativos que foram, em grande parte, exterminados ou
miscigenados no processo de formação socioeconômica da Amazônia. Nesta
transição de longo curso, a recusa do trabalho dependente é imanente à liberdade
(teor das lutas cabanas), desde a escravidão de índios e negros até a constituição do
trabalho compulsório de homens livres, mas constrangidos em sua mobilidade. Os
cabanos acalentaram o sonho e o desejo de independência e de liberdade, como
sujeitos opostos às formas de fixação e controle da mobilidade do nômade. Os
cabanos aceleraram a marcha da liberdade, o que pode ser identificado nos
diferentes regimentos de regulação e controle da mobilidade do trabalho.
No entanto, esses diferentes tipos de trabalhos dependentes não são
suficientes para entender o ativo da fuga na transação entre dinheiro-capital/força
de trabalho, uma vez que outros ativos entram nessa relação, tais como: o direito de
propriedade, o direito civil, o direito político, os direitos sociais etc., uma vez que a
produção dos direitos é operada pelos movimentos sociais em oposição às formas
de redução da liberdade. Nesse contexto, a mobilidade do dependente e sua
capacidade de romper com as relações de engajamento legais ou forçadas são o eixo
das mutações sociais. É aí nesse espaço que as diversas linhas de fugas ou obstrução
do trabalho constituem-se como elementos centrais da potência da Cabanagem.
Da escravidão à constituição da pequena produção, passando pelo
assalariamento constrangido (agregados e engajados), a recusa ao trabalho
dependente impossibilitou a economia monocultora e estruturou a economia local
com base na produção familiar de subsistência.
A uniformização da análise da constituição da mão-de-obra no Brasil e
mesmo a ausência de estudos sobre a realidade amazônica têm levado à não
compreensão da dinâmica regional de constituição do trabalho. Diferentemente do
Nordeste e do Sudeste, onde o trabalho exógeno do negro africano foi introduzido
em larga escala nas grandes plantações de cana-de-açúcar e de café, na Amazônia,
predominou a pequena produção associada à economia extrativista. Essa economia
determinou as bases materiais do desenvolvimento regional e, conseqüentemente, as
lutas regionais.
176
Nestes termos, a Cabanagem configura-se como um movimento de negação
do processo de proletarização do trabalho na Amazônia. Essa novidade aparece no
amplo espectro de proto-proletarização da mão-de-obra em função dos diferentes
instrumentos jurídicos de subordinação do trabalho. O antagonismo e a ruptura do
sistema colonial mostra a força dos cabanos, isto é, de posseiros e pequenos
produtores como atores centrais da constituição material dessa província.
A Cabanagem tornou-se a via de êxodo dos nativos na construção de uma
organização social imanente e de um trabalho livre vinculado à economia familiar de
subsistência. Os cabanos não se enquadravam aos padrões de vida estruturados pelo
trabalho marcado pelo olhar do capataz. Assim, o exército cabano alimentou a
chama da liberdade e, capitaneado pelos ecos revolucionários abertos pela
Renascença, desdobrou o mito da virtù para torná-lo realidade no governo absoluto
das massas instalado no coração da Amazônia.
Os cabanos criaram um espaço de liberação democrática, de poder
constituinte das massas espoliadas. As crises sucessivas em face dos processos de
exploração do trabalho ensejaram o desejo de liberdade e produziram as revoltas
populares e o contrapoder na Amazônia.
Os cabanos projetaram-se na oposição à exploração do trabalho endógeno e
se transformaram em potência constituinte, vontade de liberação do controle da
mobilidade do trabalho nômade. Nesse espaço, o contrapoder acelerou a dinâmica
constituinte e rompeu com os padrões de vida ditados pela colonização, afirmando
o mercado da liberdade na província do Pará.
A Cabanagem encerrou o paradoxo estabelecido entre colonizados e
colonizadores, pois os cabanos romperam o comando do capitalismo-mundo. A
razão e a paixão moveram-se nesse espectro, provocando encontros e desencontros
entre poder e potência, num movimento paradoxal de tensões, lutas e embates, mas
também de cooperação, alianças e desencaixes. A potência e autonomia dos cabanos
colocaram o desejo de liberdade no centro da crise colonial e enfrentaram ainda,
com coragem, o aparato repressivo do aparelho imperial do Estado brasileiro
nascente, colocando-se como “um império dentro de outro império190”.
190 Ver Espinosa, 1992.
177
No período da Cabanagem, a ruptura total com os métodos de subordinação
e controle do trabalho gerou uma escassez absoluta de mão-de-obra no setor
agrário, pois a maioria dos trabalhadores engrossava as fileiras do exército cabano.
No pós-Cabanagem, a demanda por trabalho era evidente já que durante as lutas
mais de 40.000 haviam morrido em combate, além das fugas de escravos e dos
diversos engajamentos e incorporações às fileiras das lutas que arruinaram a
economia escravocrata.
Nessa perspectiva, os Corpos de Trabalhadores aparecem como instrumento
de restauração da dialética de subordinação, favorecendo o retorno da máquina
produtiva do capitalismo-mundo centrado, a partir de então, no trabalho
compulsório e no assalariamento constrangido, para quebrar a resistência dos
cabanos e impor a rotinização do trabalho.
Nos documentos produzidos pelas autoridades provinciais entre 1820 e 1860
percebe-se que o trabalho tinha conseguido bloquear a constituição do mercado de
trabalho dependente, além de refrear a economia escravocrata na província, pois a
instauração das formas de assalariamento constrangido é resultado negativo da
marcha da liberdade dos cabanos.
A passagem do trabalho livre dos cabanos para o trabalho compulsório sob a
forma de assalariamento constrangido mostra o fim do sistema escravista nas
décadas de 1830 e 1840, um passo firme do movimento cabano na aceleração da
marcha da liberdade, pois os Corpos de Trabalhadores estabeleciam o
assalariamento como condição de engajamento do trabalho.
Nesse sentido, a Cabanagem dá um passo além na liberação do trabalho
escravo, primeiro porque desmonta a economia escravocrata e segundo porque
antecipa o processo de liberação do trabalho escravo, haja vista que o Estado
imperial, para sanar os vestígios de rebeldia dos cabanos, instituiu no Grão-Pará um
modelo de trabalho centrado no assalariamento, ainda que sob a forma de trabalho
compulsório. Nota-se que mesmo com essa política de sujeição ao trabalho há uma
evidente incapacidade de gerir a massa de trabalhadores nômades em face da
potência imanente a sua constituição.
178
Por outro lado, a implementação dos Corpos de Trabalhadores foi também o
termidor da Cabanagem, ao refrear a mobilização da base cabana. O regime de
trabalho compulsório, diferente daquele do liberalismo econômico, mostra o Estado
no centro das políticas de constituição do mercado de trabalho dependente. Por esse
instrumento jurídico, os homens livres que não comprovassem qualquer vínculo de
dependência passariam a ser obrigatoriamente recrutados e submetidos a atividades
em obras públicas ou ao serviço de particulares, mas o trabalho da potência, que
produziu os cabanos, continuou sua marcha em rumo a liberdade nas diversas
estratégias de fuga dos dependentes. Isso significa que nem mesmo os Corpos de
Trabalhadores foram capazes de barrar a potência dos cabanos, mas somente
arrefecer os passos da liberdade e o mercado da liberdade.
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