Viajar notempo
septimus heap[ TERCEIRO LIVRO ]
ANGIE SAGEILUSTRAÇÕES DE MARK ZUG
TraduçãoWaldéa Barcellos
Viajar notempo
Título originalSEPTIMUS HEAP
Book ThreePHYSIK
Copyright © 2007 by Angie SageCopyright das ilustrações © 2007 by Mark Zug
Todos os direitos reservados.Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por
qualquer forma sem a permissão escrita do editor.
Publicado mediante acordo com HarperCollins Children’s Books,uma divisão da HarperCollins Publishers Inc.
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Printed in Brazil/Impresso no Brasil
preparação de originaisLAURA VAN BOEKEL CHEOLA
CIP-Brasil. Catalogação na fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
S136v Sage, AngieViajar no tempo / Angie Sage; ilustrações de Mark Zug; tradução de WaldéaBarcellos. – Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2009 – Primeira edição.
il. – (Septimus heap; v.3)Tradução de: Septimus heap, book three: PhysikISBN 978-85-61384-77-71. Magos – Literatura infantojuvenil. 2. Magia – Literatura infantojuvenil. 3. Literatura infantojuvenil inglesa. I. Zug, Mark. II. Barcellos, Waldéa. III. Título. IV. Série.
09-4286 CDD – 028.5 CDU – 087.5
O texto deste livro obedece às normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Para Rhodri...
meu Alquimista,
com amor.
TERCEIRO LIVRO
Prólogo: O Retrato no Sótão ...................................................... 13
1 • Snorri Snorrelssen............................................................ 17
2 • A Feira dos Mercadores .................................................... 27
3 • Uma Visita Inconveniente ................................................ 38
4 • A Taberninha Secreta ....................................................... 52
5 • A Rainha Etheldredda ...................................................... 64
6 • O Caminho de Fora ......................................................... 75
7 • A Rampa da Cobra ........................................................... 82
8 • Fogo por Baixo da Água ................................................... 91
9 • Prática de Previsão ........................................................... 99
10 • O Quarto de Vestir da Rainha........................................... 109
11 • O Espelho ........................................................................ 121
12 • Jillie Djinn........................................................................ 130
13 • A Lata de Navegação ........................................................ 137
14 • Marcellus Pye................................................................... 148
15 • O Velho Caminho ............................................................ 154
16 • O Palácio Vazio ................................................................ 164
17 • Fantasmas do Palácio ....................................................... 175
18 • O Abrigo do Dragão......................................................... 182
19 • Os Estranguladores de Ratos ............................................ 195
20 • Fogo e Busca................................................................... 205
21 • Resgate de Piloto ............................................................ 213
22 • A Alfrún ........................................................................... 220
23 • Vidente de Espíritos ......................................................... 228
24 • A Abordagem................................................................... 236
25 • O Eu, Marcellus ............................................................... 247
26 • A Torre dos Magos ........................................................... 261
27 • Hugo Tenderfoot.............................................................. 272
28 • Apreendida ...................................................................... 284
29 • Armazém Número Nove .................................................. 296
30 • Carneiros Sagrados........................................................... 306
31 • O Tesouro de Drago ......................................................... 318
32 • O Lago Escuro ................................................................. 328
33 • A Princesa Esmeralda ....................................................... 335
34 • O Diário da Princesa Esmeralda ....................................... 347
35 • Cavaleiros ........................................................................ 354
36 • Broda Pye......................................................................... 361
37 • O Banquete ...................................................................... 374
38 • A Casa de Verão ............................................................... 388
39 • O Rio Subterrâneo ........................................................... 403
40 • A Grande Câmara de Alquimia e Cura............................. 413
41 • O Pequeno Frasco............................................................ 420
42 • O Rio ............................................................................... 428
43 • As Grandes Portas do Tempo ........................................... 433
44 • A Descoberta .................................................................. 443
45 • O Baú de Cura................................................................. 452
46 • O Sanatório...................................................................... 465
47 • Ratos do Palácio ............................................................... 472
48 • O Envio ........................................................................... 483
49 • A Fogueira ...................................................................... 494
Coisas que Vocês Talvez Queiram Saber... ................................... 509
SEPTIMUS HEAP: VIAJAR NO TEMPO
Viajar notempo
Prólogo: O Retrato no Sótão
Silas Heap e Gringe, o guarda-portão do Portão Norte, estão
num canto escuro e empoeirado do sótão do Palácio. Diante
deles está uma pequena porta que dá para um quarto Lacrado,
que Silas Heap, Mago Ordinário, está prestes a DesLacrar.
– Veja só, Gringe, este é o lugar perfeito. Minhas Peças não
vão conseguir escapar dali nunca. Basta que eu as Lacre aí dentro.
Gringe não tem tanta certeza. Até ele sabe que é melhor dei-
xar em paz aposentos Lacrados em sótãos.
– Não gosto da ideia, Silas. Parece estranho. Seja como for,
só porque ‘ocê teve a sorte de encontrar uma Colônia nova
debaixo das tábuas do ‘soalho aqui em cima num quer dizer que
as Peças vão ficar aqui.
– Vão ficar, sim, se eu as Lacrar, Gringe – diz Silas, agarra-
do à caixa das preciosas Peças recém-encontradas, que ele aca-
bou de capturar. – Você está agindo desse jeito só porque não vai
conseguir atrair o grupo inteiro para você.
– E o último grupo eu também num atraí, Silas Heap. Elas
vieram porque quiseram. Num teve nada que eu pudesse fazer.
Silas não dá atenção a Gringe. Está tentando se lembrar de
como se faz um Encantamento de DesLacrar.
– Depressa, Silas – diz Gringe, batendo o pé, impaciente. –
Preciso voltar p’ro portão. Lucy anda muito esquisita, e eu num
quero deixar ela sozinha muito tempo.
Silas Heap fecha os olhos para poder pensar melhor. Entre
dentes, para que Gringe não ouça o que está dizendo, Silas entoa
o Sortilégio de Trancar de trás para a frente, três vezes, encer-
rando com o de DesLacrar. Abre os olhos. Não aconteceu nada.
– Vou ‘mbora – diz Gringe. – Num posso ficar parado feito
um poste o dia inteiro. Tem gente que tem trabalho a fazer.
De repente, com uma pancada forte, a porta do quarto
Lacrado se abre com violência. Silas exulta com o sucesso.
– Viu? Eu sei o que estou fazendo. Eu sou um Mago, Gringe.
Epa! O que foi isso? – Uma rajada gelada de ar viciado passa
veloz por Silas e Gringe, arrancando o fôlego do fundo dos pul-
mões e fazendo com que os dois caiam em ataques de tosse.
14 SEPTIMUS HEAP: VIAJAR NO TEMPO
– Que frio! – Gringe treme, com arrepios subindo e descen-
do por seus braços. Silas não responde. Já está dentro do quar-
to DesLacrado, decidindo qual é o melhor lugar para guardar
sua Colônia de Peças. A curiosidade domina Gringe, e ele entra
hesitante. O quarto é minúsculo, pouco mais do que um armá-
rio. Fora a luz da vela de Silas, tudo está escuro porque a única
janela que ele teve no passado acabou tapada com tijolos. Não
passa de um espaço vazio, com o assoalho empoeirado e pare-
des nuas de reboco rachado. Mas não está totalmente vazio,
como Gringe percebe de repente. Na penumbra mais escura, do
outro lado do pequeno quarto, está encostado na parede um
quadro grande com a pintura a óleo de uma Rainha, em tama-
nho natural.
Silas olha para o retrato. É uma pintura primorosa de uma
Rainha do Castelo, de muito tempo atrás. Ele pode garantir que
é antigo, porque ela está usando a Coroa Verdadeira, a que foi
perdida há muitos séculos. A Rainha tem um nariz pontudo e
agressivo, e usa o cabelo enrolado de cada lado da cabeça como
um par de protetores de orelhas. Agarrado às suas saias está um
Aiai – um animalzinho horrível com cara de rato, garras afiadas
e rabo comprido como uma serpente. Seus olhos vermelhos,
redondos, olham com raiva para Silas como se o bicho quisesse
mordê-lo com seu único dente comprido e fino como uma agu-
lha. Também a Rainha direciona seu olhar para fora, mas sua
expressão é arrogante, de censura. Ela mantém a cabeça alta,
PRÓLOGO: O RETRATO NO SÓTÃO 15
sustentada por uma gola de tufos engomados por baixo do quei-
xo, e seus olhos penetrantes se refletem na luz da vela de Silas,
parecendo acompanhá-los por toda parte.
– Eu é que num ia querer dar com ela sozinho numa noite
escura – diz Gringe, estremecendo.
Silas acha que Gringe tem razão. Ele também não ia querer
encontrá-la numa noite escura – nem suas preciosas Peças.
– Ela não pode ficar – diz Silas. – Não quero que ela per-
turbe minha Colônia de Contrapeças antes mesmo que elas se
instalem.
Mas o que Silas não sabe é que ela já se foi. Assim que ele
DesLacrou o quarto, os fantasmas da Rainha Etheldredda e de
seu bichinho deixaram o retrato, abriram a porta e, com narizes
pontudos para o alto, saíram depressa dali – passando direto por
Silas e Gringe. A Rainha e seu Aiai não lhes deram a menor aten-
ção, pois tinham coisas mais importantes a fazer – e por fim
estavam livres para fazê-las.
16 SEPTIMUS HEAP: VIAJAR NO TEMPO
1SNORRI SNORRELSSEN
Snorri Snorrelssen conduziu
sua barcaça mercante rio
acima, pelas águas tranquilas, na
direção do Castelo. Era uma tarde
enevoada de outono, e Snorri sen-
tia alívio por ter deixado para trás as
águas turbulentas do Porto, sujeitas
às marés. O vento tinha diminuído,
mas uma brisa suficiente
enfunava a enorme vela da
barcaça – chamada Alfrún, em homenagem à sua mãe, que era a
proprietária da embarcação – permitindo que Snorri a guiasse
com segurança ao contornar a Rocha do Corvo e se dirigisse
para o cais logo depois da Cervejaria e Casa de Chá de Sally
Mullin.
18 SEPTIMUS HEAP: VIAJAR NO TEMPO
Dois jovens pescadores, não muito mais velhos que a pró-
pria Snorri, acabavam de retornar de um dia de sucesso na pesca
do arenque, e foi com enorme prazer que apanharam os pesados
cabos de cânhamo que Snorri jogou para a terra. Decididos a
mostrar sua capacidade, eles amarraram os cabos em torno de
dois grandes pilares no cais, deixando a Alfrún bem presa. Os
pescadores também se dispuseram prontamente a dar todos os
tipos de conselhos sobre como descer a vela e a melhor forma de
recolher o cordame, aos quais ela não deu atenção, em parte
porque mal entendia o que estavam dizendo, mas principal-
mente porque ninguém dizia a Snorri Snorrelssen o que fazer –
ninguém, nem mesmo sua mãe. Muito menos sua mãe.
Snorri, alta para a idade, era esguia, resistente e surpreen-
dentemente forte. Com a prática de quem tinha passado as duas
últimas semanas no mar, navegando sozinha, ela baixou a enor-
me vela de lona e enrolou as grandes dobras de pano pesado;
depois arrumou os cabos em rolos benfeitos e travou o timão.
Consciente de estar sendo observada pelos pescadores, Snorri
trancou o alçapão de acesso ao porão, que estava repleto de
pesados fardos de tecido grosso de lã, sacas de temperos para
conservas, enormes barris de peixe salgado e algumas botas
excelentes, de pele de rena. Por fim, ignorando mais ofereci-
mentos de ajuda, Snorri empurrou a prancha de desembarque e
veio para a terra, deixando Ullr, seu pequeno gato laranja com a
ponta do rabo negra, a rondar o convés para manter os ratos
longe dali.
SNORRI SNORRELSSEN 19
Snorri estava no mar havia mais de duas semanas e estava
louca para pisar em terra firme de novo; mas, quando ia andan-
do pelo chão, teve a impressão de que ainda estava a bordo da
Alfrún, pois o chão parecia se mexer debaixo de seus pés exata-
mente como a velha barcaça fazia. Os pescadores, que já deve-
riam ter ido para casa, cada um para sua respectiva mãe, estavam
sentados numa pilha de armadilhas vazias de pegar lagostas.
– B’a noite, moça – gritou um deles.
Snorri não lhe deu atenção. Dirigiu-se para a ponta do cais
e seguiu pelo caminho bastante trilhado que levava a um gran-
de e novo cais flutuante, no qual tinha sido construído um café
bem movimentado. Era um prédio de madeira de dois andares,
muito elegante, com janelas baixas e extensas com vista para o
rio. A taberna parecia convidativa na friagem do ar do anoitecer,
com uma luz amarela aconchegante proveniente dos lampiões,
pendentes do teto. Enquanto atravessava a passarela de madeira
que subia ao cais flutuante, Snorri mal conseguia acreditar que,
por fim, estava aqui: na célebre Cervejaria e Casa de Chá de Sally
Mullin. Empolgada, mas muito nervosa, Snorri abriu as portas
duplas da taberna e quase tropeçou numa longa fila de baldes
para incêndio, cheios de areia e de água.
Havia sempre um burburinho de conversa amistosa na
taberna de Sally Mullin; mas, assim que Snorri cruzou a soleira,
o burburinho parou de repente, como se alguém tivesse aperta-
do um interruptor. Quase simultaneamente, todos os clientes
20 SEPTIMUS HEAP: VIAJAR NO TEMPO
deixaram a bebida na mesa e olharam espantados para a jovem
desconhecida que usava os trajes característicos da Liga
Hanseática, à qual pertenciam todos os Mercadores do Norte.
Sentindo que enrubescia, e desejando furiosamente que isso não
acontecesse, Snorri avançou na direção do bar, determinada a
pedir um dos bolos de cevada de Sally e um caneco pequeno da
cerveja Springo Special, da qual muito tinha ouvido falar.
Sally Mullin, mulher baixa e roliça, com as bochechas salpi-
cadas tanto de sardas quanto de farinha de cevada, saiu ataba-
lhoada da cozinha. Quando viu os trajes vermelho-escuros de
um Mercador do Norte, e a típica tira de couro na cabeça, ela
amarrou a cara.
– Não sirvo Mercadores do Norte aqui – informou ela com
azedume.
Snorri ficou confusa. Não tinha certeza de ter entendido
direito o que Sally dissera, apesar de poder ver que ela não esta-
va exatamente lhe dando uma boa acolhida.
– Você viu o cartaz na porta – disse Sally quando Snorri não
deu sinal de sair. – Mercadores do Norte, não. Vocês não são
bem-vindos aqui, não no meu café.
– É só uma mocinha, Sal – gritou alguém. – Dê uma opor-
tunidade para a garota.
Houve um murmúrio geral de concordância dos outros fre-
gueses. Sally Mullin deu uma olhada mais atenta em Snorri, e
sua expressão se abrandou. Era verdade. Ela não passava de uma
garota – talvez com dezesseis anos no máximo, pensou Sally.
Tinha o típico cabelo louro esbranquiçado e olhos azuis claros,
quase translúcidos, da maioria dos Mercadores, mas não tinha
aquele ar inflexível do qual Sally tinha passado a se lembrar com
um calafrio.
– Bem... – disse Sally, voltando atrás – acho que está come-
çando a escurecer e não sou dessas que mandam uma menina de
volta para a noite escura sozinha. O que vai ser, mocinha?
– Eu quero... – hesitou Snorri enquanto se esforçava para
lembrar da gramática certa. Seria Eu quero ou Eu queria? – Eu
queria uma fatia do seu delicioso bolo de cevada e um caneco
pequeno da cerveja Springo Special, por favor.
– Ei! Springo Special? – gritou alguém. – A mocinha é das
minhas.
– Cale-se, Tom – ralhou Sally. – Seria melhor você experi-
mentar a Springo comum primeiro – disse ela a Snorri. A taber-
neira serviu a cerveja num caneco grande de porcelana e o
empurrou por cima do balcão para a menina. Snorri tomou um
gole hesitante, e seu rosto se enrugou todo de nojo. Sally não
ficou surpresa. A Springo tinha um sabor que exigia que as pes-
soas se acostumassem a ele, e a maioria dos jovens o considera-
va repugnante. Na verdade, havia ocasiões em que até a
proprietária achava o gosto péssimo. Sally serviu um caneco de
limão com mel para a forasteira e o pôs numa bandeja com uma
grossa fatia de bolo de cevada. A garota dava a impressão de
SNORRI SNORRELSSEN 21
22 SEPTIMUS HEAP: VIAJAR NO TEMPO
estar precisando de uma boa refeição. Snorri deu a Sally um flo-
rim inteiro de prata, para grande surpresa da taberneira, e rece-
beu de troco uma pilha enorme de moedinhas. Depois, ela foi se
sentar a uma mesa vazia junto da janela e ficou olhando para o
rio cada vez mais escuro.
A conversa na taberna foi retomada, e a menina deu um sus-
piro de alívio. Entrar sozinha na taberna de Sally Mullin tinha
sido a coisa mais difícil que ela fizera na vida inteira. Mais difí-
cil do que levar a Alfrún para mar aberto sozinha pela primeira
vez; mais difícil do que comprar toda a mercadoria que agora
estava no porão da Alfrún, negociando com o dinheiro que tinha
poupado anos a fio; e muito, muito mais difícil do que atraves-
sar o grande mar do norte que separava a terra dos Mercadores
do Norte da terra da Cervejaria e Casa de Chá de Sally Mullin.
Mas tinha conseguido. Snorri Snorrelssen estava seguindo as
pegadas de seu pai, e ninguém poderia impedi-la. Nem mesmo
sua mãe.
Mais tarde naquela noite, Snorri voltou para a Alfrún. Foi
recebida por Ullr em sua aparência noturna. O gato emitiu um
ronco longo e grave de boas-vindas e acompanhou sua dona ao
longo do convés. Sentindo-se tão cheia de bolo de cevada que
mal conseguia se mexer, a jovem sentou no seu lugar preferido
na proa, afagando o UllrNoturno, uma pantera macia e podero-
sa, negra como a noite, com olhos verde-mar e a ponta do rabo
laranja.
SNORRI SNORRELSSEN 23
Snorri estava emocionada demais para dormir. Ficou ali sen-
tada com um braço pousado no pelo sedoso e quentinho de Ullr,
olhando por sobre a largura escura do rio, para a beira das Terras
Cultivadas, na margem do outro lado. Mais tarde, quando a
noite começou a esfriar, ela se enrolou numa amostra do grosso
tecido de lã que planejava vender – e por um bom preço, ainda
por cima – na Feira dos Mercadores, que começava dentro de
duas semanas. No seu colo estava um mapa do Castelo, mos-
trando como chegar à feira. No verso do mapa, havia instruções
detalhadas sobre como obter uma licença para uma barraca,
bem como todos os tipos de normas e regulamentos sobre com-
pra e venda. A mercadora acendeu um lampião que trouxera de
sua pequena cabine abaixo e se pôs a ler as regras e regulamen-
tos. Agora, o vento tinha parado, e o chuvisco fino do início da
noite já tinha passado. O ar estava fresco e limpo, e Snorri ins-
pirou para sentir os cheiros da terra – tão exóticos e diferentes
daquele ao qual estava acostumada.
À medida que a noite ia passando, pequenos grupos de fre-
gueses começaram a deixar a taberna de Sally, até que pouco
depois da meia-noite Snorri viu a taberneira apagar as lâmpadas
e trancar a porta por dentro. Snorri sorriu, feliz. Agora tinha o
rio só para si mesma, só ela, Ullr e a Alfrún, sozinhos na noite.
Enquanto a barcaça balançava delicadamente com a baixa da
maré, Snorri sentiu que seus olhos se fechavam. Ela largou a lista
entediante de pesos e medidas permitidas, enrolou-se melhor no
24 SEPTIMUS HEAP: VIAJAR NO TEMPO
pano de lã e olhou para o outro lado do rio só mais uma vez
antes de descer para sua cabine. Foi quando ela o viu.
Um barco descorado e longo, contornado por um clarão
esverdeado, vinha fazendo a curva da Rocha do Corvo. Snorri
ficou parada, observando o barco que avançava lento e silencio-
so pelo meio do rio, aproximando-se cada vez mais da Alfrún.
Quando ele chegou perto, ela viu como refulgia ao luar, e um
calafrio percorreu sua espinha, pois Snorri Snorrelssen, Vidente
de Espíritos, sabia exatamente o que estava vendo – um Barco
Fantasma. Assobiou baixinho, porque nunca tinha visto um
barco como aquele. Ela estava acostumada a ver destroços de
velhos pesqueiros conduzidos por seus capitães afogados, eter-
namente em busca de um porto seguro. De vez em quando,
tinha visto o fantasma de um barco viquingue de guerra, vol-
tando para casa em péssimo estado depois de uma batalha feroz.
E uma vez tinha visto a aparição de um navio de um mercador
rico, com tesouros se derramando de um buraco aberto no cos-
tado, mas nunca tinha visto uma Barcaça Real – completa, com
o fantasma da sua Rainha.
Snorri levantou-se, apanhou sua luneta de ver Espíritos, que
a feiticeira no Palácio de Gelo lhe dera, e focalizou a aparição
que passava ali, deslizando, sem ruído, impelida por oito remos
espectrais. A barcaça estava toda enfeitada com flâmulas que
esvoaçavam a um vento que tinha cessado muito tempo atrás;
estava pintada com espirais de ouro e prata e tinha como cober-
SNORRI SNORRELSSEN 25
tura um rico dossel vermelho, preso a colunas ornadas de ouro.
Debaixo do dossel, estava sentada uma figura alta, empertigada,
com o olhar fixo para a frente. Seu queixo pontudo estava apoia-
do numa gola alta engomada; ela usava uma coroa simples e um
penteado decididamente antiquado: duas tranças enroladas bem
presas em torno das orelhas. Ao seu lado, estava sentada uma
criatura pequena, quase sem pelo, que Snorri tomou por um
cachorro muito feio, até ver seu rabo comprido, semelhante a
uma serpente, enroscado numa das colunas de ouro. Snorri
ficou olhando o barco fantasma passar e estremeceu quando um
calafrio percorreu seu corpo: é que havia algo diferente, algo de
substancial em seus ocupantes.
Snorri guardou a luneta e desceu pelo alçapão para sua cabi-
ne, deixando Ullr de guarda no convés. Ela pendurou o lampião
num gancho no teto, e a suave luz amarela deu à cabine uma
impressão de calor e aconchego. Ela era pequena, pois a maior
parte do espaço numa barcaça de Mercador era ocupada pelo
porão, mas Snorri a adorava. Era toda revestida com a perfuma-
da madeira de macieira que seu pai, Olaf, tinha um dia trazido
para casa como presente para sua mãe e estava primorosamente
instalada, pois seu pai tinha sido um carpinteiro talentoso. A
boreste, havia um leito embutido, que servia de banco durante
o dia. Por baixo do leito, havia armários benfeitos, onde Snorri
guardava toda a bagunça da cabine; e, acima dele, havia uma
prateleira comprida, onde ela mantinha suas cartas náuticas
26 SEPTIMUS HEAP: VIAJAR NO TEMPO
enroladas. A bombordo, havia uma mesa dobrável, um trecho de
gavetas de macieira e um pequeno fogão de ferro, bojudo, do
qual saía uma chaminé que atravessava o teto da cabine. Ela
abriu a porta do fogão, e um clarão vermelho meio fraco veio das
brasas do fogo quase apagado.
Sentindo sono, Snorri pulou na cama, enrolou-se no cober-
tor de pele de rena e se aconchegou para a noite. Deu um sorri-
so feliz. Tinha sido um bom dia – à exceção da visão da Rainha
fantasma. Mas havia apenas um fantasma que Snorri queria ver,
e esse era o de Olaf Snorrelssen.