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  • Ficha TcnicaTtulo: Vinte e Zinco

    Autor: Mia CoutoEditora: Caminho

    Capa: Pedro ProenaISBN: 9789722123648

    Uma editora do grupo LeyaEditorial Caminho

    Rua Cidade de Crdova, n. 22610-038 Alfragide Portugal

    www.caminho.leya.com

  • PatrciaVinte e cinco para vocs

    que vivem nos bairros de cimento.Para ns, negros pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia ainda est por vir

    Fala da adivinhadora Jessumina

  • O Homem nunca cruel e injusto comimpunidade: a ansiedade que crescenaqueles que abusam do poder frequentementetoma a forma de terroresimaginrios e obsesses dementes.Nas plantaes de cana-de-acar, osenhor maltratava o escravo, mas receavao dio deste.Ele tratava-o como besta de carga, mastemia os ocultos poderes que lhe eramimputados.Quanto maior era a subjugao dosnegros, mais eles lhe inspiravam medo.[] Talvez alguns escravos se tenhamrealmente vingado sobre os seus tiranos mas o medo que reinava nas plantaestinha origem em mais profundascamadas da alma era a feitiaria eo mistrio de frica que perturbavam osono dos senhores da casa grande.Voodoo in Haiti,Alfred Metraux, 1959

  • 19 de Abril

    O torturador necessita da vtima paracriar verdade nesse jogo a duas mosque a fabricao do medoDos cadernos de Irene

    Loureno de Castro entra em casa, mesma hora de sempre, essa hora em que a luz adoece,cansada de tanto dia. Roda o manpulo da porta com cuidado como se o mundo se pudessedesconjuntar a partir daquele gesto. E logo a voz da me, lamparinando o fundo do corredor: voc, meu filho?Dona Margarida comparece na entrada da velha casa colonial. Cobre as costas do filho com umcasaquinho, feito por suas mos. fim de Vero, mas as noites j arrefecem no litoral. Lourenode Castro encolhe os ombros, a jeito de ela estender o casaco. Outra vez cansado, mais mortoque peixe. Ningum avalia o custo de ser inspector da PIDE, em pleno mato africano, l onde op de branco nunca assentou. A vila de Moebase tem outros brancos, sim, mas poucos. Os dedosdas mos sobram se os quisermos contar. H quem? O padre Ramos, o mdico Peixoto, oadministrador Marques e o agente Diamantino. Mais as duas mulheres de casa, a me e a tiaIrene. Mas as mulheres no contam. Assim se dizia em casa dos Castros. Maior parte das vezesat descontam, acrescentavam.A chegada de Loureno de Castro a casa um ritual, sempre igual. A me, infalvel, exerce oamparo que devido a um guerreiro. Mas este guerreiro, de espduas circunflexas, no exalaglria. O inspector Loureno arrasta-se para a casa de banho e lava as mos. A gua corre comose no bastasse um rio para o limpar. Por que no confessam? Custava alguma coisaO sangue vai gotinhando na bacia. Ele estende os braos, ainda hmidos. A me enxuga-os, comterno vigor. Lavou bem, querido? Agora, venha. J preparei a sua caminha.O pide vai cozinha e volta a passar as mos por gua. Cheira os dedos como se quisesseconfirmar a teimosia de alguma ndoa. A velha me pega-lhe nos braos, beija-lhe os dedosfinos. Bonitas mos, fazem lembrar... Estou cansado me, quero dormir. Onde est o pano? O pano foi para lavar. Estava cheio de baba.Voc est-se a babar muito, fico preocupada,no ser dessas maleitas africanas Eu no durmo sem o pano, a me j sabe. Est outro pano j lavadinho debaixo da sua almofadinha.O pide deita-se. A me, na cabeceira, lhe aconchega o lenol. O filho, inquieto, espreita o quarto: O cavalinho? J lhe chego o cavalo, no se preocupe.Ela arrasta um cavalinho de madeira, coloca-o a jeito de Loureno tocar a sua crina. O pidecrispa os dedos na garupa do cavalinho e f-lo balanar.

  • E a tia Irene?A me desvia os olhos. Sempre na mesma, essa Irene. Que vergonha, uma branca procederdaquela maneira, desapossuda de juzo. E pior que ter perdido a razo: ela perdera o pudor. Que sina a nossa, meu filho!Pausa. Suspiros. O polcia pra de balanar o cavalo. Soergue-se para olhar melhor o rosto deDona Margarida. Ela voltou a sair hoje? Voltou, pois. Veio outra vez toda suja? Suja?! Aquilo argila, coisa limpa. Argila? Matope o que aquilo . Temos que acabar com isto, me. A tia Irene compromete-nos e ns temos um nome a defender. Tenha pacincia, Loureno. Irene a nossa nica famlia. No se esquea: no temos maisningum.O silncio que se instala faz pensar em culpa. Alguma punio divina. Quem sabe, artesanato dodiabo. O quarto parece ter ficado abafado. O inspector examina os braos, como se procurasseum desarrumado detalhe. Isto aqui no sangue? No, filho, no . Pegue no pano e durma. Dormir? Se a me soubesse o dio que eu tenho a esses pretos. No diga isso, filho. H bons, h maus.A me retira-se, costas dobradas, arredondadas como o dorso do corvo. O corredor recebe-acomo se ela pertencesse s trevas. E tudo se escoa, silncio e escurido.Passam-se horas e as luzes de novo se acendem, interrompendo a noite. Os gritos de Lourenoecoam no corredor. A me acorre, sem pressa. Traz um copo de leite na mo. J sabe o que sepassa quando se debrua sobre o filho. Outra vez o pesadelo?Loureno nem responde, ocupado em respirar. O suor desenrola-se, um lquido lenol o recobre. Os tambores. No os ouve? Era um batuque, mas j parou h algum tempo. Mas eu continuo a ouvir, me.Ela senta-se na cabeceira, limpa-lhe o suor e estende-lhe o leite morno. O filho recusa. H umaraiva que ele no consegue guardar. A me corrige a porta, ainda que no haja aragem nenhuma.Se no corre brisa por que razo a bandeira portuguesa tombou da parede onde estavapendurada? esse cego, eu ainda vou dar cabo desse gajo. O cego Tchuvisco? Deus ainda o castiga. Que mal pode fazer esse pobre diabo? Esse gajo que faz isto tudo, me. Disparate, filho. Acredite em mim, eu conheo essa gente. Voc anda agitado, Loureno. Prometa-me:amanh vamos ver o doutor Peixoto. Eu no estou doente, me. Mas ele j anda a tratar a tia Irene, no custa nada No vou, j disse que no vou.

  • A me acaricia os cabelos do filho. A respirao desofega, os olhos esto suspensos no infinitodo tecto. A me pode espreitar-me? Outra vez o umbigo, Lourencinho? Est-me a crescer, me. A srio, desta vez a srio. At j estou a sentir o cordo umbilicala sair-me. Deixe que eu lhe fao uma massagem e isso j passa.A me senta-se na cama e esconde as mos por baixo dos lenis. Seus olhos agasalham muitaternura. V, me? Eu no dizia? J vai passar, filho. Isto s pode ser feitio da pretalhada. esse cego, me.A me volta a ensaiar uma retirada. porta, ainda ganha coragem e pergunta: Est tanto calor. No quer mesmo a ventoinha? Nunca! Ventoinha, nunca! Pronto, pronto! Era s uma ideia. Durma, filho. Durma.

  • 20 de Abril

    Ningum nasce desta ou daquela raa.S depois nos tornamos pretos, brancosou de outra qualquer raaExtracto do dirio de Irene, parafraseando Simone de BeauvoirIrene sacode as pernas. Em vo. O matope, j seco, se agarrara ao corpo como se fosse uma outrapele. A irm, Margarida, espera-a porta. Francamente, Irene. So horas de voltar? So horas de tudo, mana. E onde estiveste, posso saber? Nas lagoas. V o que eu trouxe.Da blusa ela retira um frasco velho. Suspende-o no alto para que se veja transparncia. Sabes o que ? uma aguinha tratada. Voltaste bruxa! Em frica no h bruxas. Jessumina uma mulher com poderes. Tu sabes, Guida, mas tensmedo de aceitar.Irene dana em volta da irm. A diferena de idades, na circunstncia, se evidencia ainda mais.Irene, mais moa, dessas mulheres bravias, vivas de nascena. Ela tem corpo e rosto, tudo emestado desejvel. Se no fosse louca ainda havia esperana de se lhe arranjar pretendente.Irene viera para frica depois que seu cunhado Joaquim de Castro morrera. A viuvez demasiado pesada para se suportar em solido. Por isso, Margarida requereu a presena de Irenee lhe pediu o pleno exerccio da irmandade. Em vo. Em Moambique, a jovem Irene sedescaminhara, exilada do juzo e das maneiras. Se misturara com os negros, dera licena arumores e vergonhas. Procedimentos que despergaminhavam a honra familiar. J seu maridoJoaquim de Castro havia sido agente da PIDE. O filho Loureno imitara-lhe as pisadas.Esperava-se da famlia Castro que emanasse o exemplo. No acontecia, devido a Irene. Afinal,onde a noite mais escurece em volta do pirilampo.Margarida quase sente pena de Irene quando a olha agora, danando com o frasco entre os dedos.Quase podia ser compaixo. Mas inveja. Assim, bela e feliz, Irene escapava cinzenturadaquela casa, vergada sob silncios e suspiros. Em tudo que fazia, Irene se acendia em fogo dedentro. Enquanto ela no passava da cepa morta. A moa usufrua do lugar, sem fronteira demedo. Passeava sozinha nos bairros dos negros. Sentava-se com eles. Bebia e comia com eles.Pelas tardes, escapava ao tempo nos lagos de Nkuluine. Estava proibida, mas quem pode mandarem loucura? C para mim ela no est to louca como parece.Loureno desconfiava da autenticidade da tia. Pode-se enlouquecer assim, em to breve tempo?Se ele prprio, vivido nas durezas de frica, se mantinha lcido e pronto para dar a sua vida poressa lucidez? Os horrores que eu vi e no perdi a razo.Referia-se, todos sabiam, morte de seu pai, Joaquim de Castro. Ele assistira a tudo nohelicptero. O pai estava fardado e mantinha-se de p, lutando contra o balano. Seus gritos,speros, sobrepunham-se ao rudo do motor. Mandava que os presos, de mos atadas, se

  • chegassem porta aberta do aparelho. Depois, com um pontap ele os fazia despenhar sobre ooceano.Daquela vez, o pai decidira que Loureno o devia acompanhar para ver esse espectculo. Dizia:experincias daquelas que endurecem o verdadeiro homem. Voc vai ver, filho: os cabres esbracejam no ar como se quisessem ganhar asas.Anichado no canto do aparelho, Loureno sofria de enjoo. Mas ele no podia confessar essafraqueza quase feminina. Passava-se ali prova to macha e ele esverdeava, na iminncia dovmito? Forte, ser forte que os fracos no gozam a Histria. Palavras do velho Castroesconjurando os mimos de Margarida. Mariquices, isso que d cabo de um homem. Lourenoansiava comprovar suas habilidades para bravezas. Por isso, ali no helicptero, ele se esforavapor no dar parte de frouxo.De repente, um emaranhado de pernas se cruzou em redor de Joaquim de Castro. Como tesourasde carne os membros inferiores dos presos enredaram o corpo do portugus. Os prisioneiroslutavam, arrumados em prvia combinao. Cairiam eles, mas o Castro iria junto. O portugusgritou, pediu ajuda ao filho. Mas este nem se mexeu. Olhos esbugalhados, viu o pai ser ejectadodo helicptero. Sbito, lhe pareceu eclodir um pssaro, composto em asas e plumas. Mas nadatombava sobre o mar. Flutuavam penas dispersas como sadas de um buraco de nuvem. Essasplumas embaladas em hesitante brisa eram a nica memria que lhe restara daquele momento.Para alm do barulho das hlices, sobre a cabea. Nunca mais haveria de suportar ventoinha.Fizesse calor de torrar, a ventoinha estava interdita.Desde ento, Loureno tinha um nico propsito em sua existncia. S uma ideia se trancara emsua testa. Ele no era de falas, muito menos risos. Seco, mas artimanhoso. Sua ascenso napolcia poltica se fez rpida, fora de muito servio mostrado. E de muito mais servio queno podia mostrar.Sua me Margarida receava pelo estado de seu nico filho. Porque ele nem pensava em mais. Desua vida no se despontava prazer, mulher, diverso. s vezes, quando o via aparar com maiscuidado o bigode, uma breve esperana se acendia. Logo frustrada, quando ele se refugiava nosolitrio escritrio. Assim, s e triste, se convocam as temveis doenas. E, quem sabe, os mausespritos? Sabe-se l foi por isso que Irene contrara aquele desjuzo dela. Irene no nossa famlia, me.Toda aquela raiva de Loureno contra a tia afligia Dona Margarida. Porque, ao mesmo tempo, napenumbra da sala onde o filho se fechava, sobrava sempre o lbum de fotografias da famlia. Namanh seguinte, as fotos da tia amanheciam fora do lbum. E a me, em silncio, voltava aguardar as imagens da adolescncia de sua irm. Como se reordenasse o tempo e corrigisse opresente.O rodar da maaneta faz despertar Margarida. Irene continua danando, volteando-se pela sala.Loureno, entrado na sala, estremece. Irene passa rodando, pernas deixadas nuas pelo arregaarda saia na cintura. Se percebe que aquela dana no europeia. ritmo africano. A mulherbranca se balana como se seu corpo albergasse o mundo dos outros. Dona Margarida seapercebe da afronta. Urge criar desateno. Ela se empenha em ser me: cumpre o ritual, casacoem riste para abrigar o filho. Um gesto brusco fez saltar o casaco. Ela foi outra vez s lagoas!Sempre embalada por uma inaudvel msica, Irene vai de encontro ao sobrinho e lhe mostra ofrasquinho. Margarida, em vo, gesticula. Recomenda recato irm. Mas Irene desafia o

  • sobrinho. A moa o que fazia? Abria janelas em noite de tempestade? Sabe o que isto, sobrinho? Foi outra vez porcaria das lagoas?! Dentro deste frasquinho est uma gua que me deu Jessumina.Pra, afogueada. E explica com corao nas palavras: aquele era o lquido em que os abutreslavavam os olhos. Aquela gua apurava vises de quem delas carecia. E ela pedira aquelelquido para lavar os olhos de Tchuvisco, o cego seu amigo. No quero ouvir falar desse nome. Quem, Tchuvisco? E porqu, Loureno? Esse nome no volta a ser pronunciado nestacasa. Eu no lhe disse que no a queria vermais com esse preto?Irene ergue o queixo, em afronta. Sua voz solavanqueia entre agudos e rouquezas, entornandofrases nos flegos. H ali o confronto deslocado de uma outra guerra. Nesse conflito, a voz deIrene se engatilha, s vezes, fio tremente, outras vezes, espantada com sua prpria grandeza. Loureno, o menino no entendeu uma coisa: voc no manda, voc s d ordens.Entendeu? Pois eu lhe mando uma coisa: cubra essas pernas imediatamente.Irene, em desafio, desabotoa a saia. A roupa lhe tomba, em suspiro, a seus ps. Depois, de umpuxo ela faz saltar os botes da blusa. Assim, em vasta nudez, se antepe perante o sobrinho. Ohomem reage com disparada violncia. Arranca-lhe das mos o frasco e arremessa-o de encontroao cho: Veja o que fao merda das suas mezinhas!Os olhos de Irene se inflamam. Aos poucos seu rosto se lhe despertence. A mulher, v-se, vaiperdendo a matria e o volume do juzo. Levanta o cabelo com as duas mos como se entendessedomar a alma que lhe escapa. Com um spero sibilo ela faz gelar a sala: Pois, eu vos digo: esta casa vai definhar, at nela apodrecer o esprito desse monstro quefoi esse teu pai.Ali h s o tempo, enredado em silncio. A um canto, Margarida se resume a lgrimas. Ireneprossegue, desdobrando a fala com lentido: Haveis de enterrar mil vezes esse falecido. E ser sempre enterro falso. Que esta terranunca,mas nunca o ir aceitar.Despida e desfigurada, Irene se aproxima do cadeiro onde, em vida, Castro celebrava asrefeies. O lugar do falecido se conservara ali, intocvel. Na mesa posta, talheres, pratos ecopo encenavam presena. O nome de Joaquim de Castro jamais se pronunciava, aps seufalecimento. Mas a cadeira se guardava como se aguardasse ressurgncia. Em fria, Ireneenfrenta o lugar do morto. Derruba a cadeira, atira o guardanapo ao cho. O sobrinho se erguecom deciso de violncia. O brao de Margarida lhe impede o gesto. Loureno fraqueja no fazer,incompetente no calar. De novo, Irene lhe faz frente: Pensas que tens o poder de matar? Pois esta gente, os pretos como tu lhes chamas, tempoderes que desconheces. Esses que mataste ainda esto por aqui, deste lado da vida. Smatas os que eles deixam morrer.

  • 21 de Abril

    Cegueira ver o nada. O no ver nada a morte.Dos cadernos de IreneO cego Andar Tchuvisco: o que ele via eram futuros. Nada em actual presena. Sabia de suastintas, seus pincis. Ele, pintor de um nico objecto: a cadeia da PIDE. Andar pintava erepintava apenas as paredes da priso. As gentes se duvidavam: como alcanava esse moopintar, ele que no via nem nariz nem palmo. Na verdade, Tchuvisco conhecia a priso de cor esalteado. Do mais, ele desconhecia acerto. Poltica? Ignorava. Cegos que fossem, seus olhos seguardavam no cho. Tchuvisco dizia: os vivos tm sombras que se desenham no tempo. Vocs no vem essas sombras?O cego no via para crer. Se os visuais enxergavam luzes, como no distinguiam penumbras quese sucedem? Cada ser tem duas margens, uma em cada lado do tempo. Os senhores apenas avistam a primeira margem.S o inspector Loureno de Castro deitava suspeio no cego. Os outros o credenciavam, ele emais seu estado sem atestado. E riam, acreditando as palavras de Tchuvisco serem poesia,doena de irrealizar o mundo. Pobre do Tchuvisco, que outras compensaes ele ganhava? Diz-se que ele cegou logo cedo, na poscedncia do parto. Estava o pai aguardando osquenquelequezs, a apresentao do menino Lua. A criana repousava num cesto, resguardadodesses maus cacimbos que impedem o encerramento da cabea. As doenas entram pelamoleirinha, essa fresta onde no somos nem corpo nem alma.Foi ento que ele foi mordido. Mais rasteira que poeira, veio essa cobra, a tal que rasteja s peloluar. No que nocturna, no. bicho luadeiro. Morde doce, quase uma ternura de dois canos. o que se diz, verdades: neste mundo, s inspiram medo os aucarosos venenos. A serpente lhefincou os dentes e, no imediato, seus olhos se azularam, opacos de porcelana. E nunca mais eleleu em nossa visibilidade.Outros avanavam outra verso. Seu caso tinha sido um prprio, de vida e morte. Acontecera quea morte visitara Andar mesmo antes de ele nascer. O ventre de sua me ainda o fabricavaquando a morte com ele fez encontro. E disse: Venho roubar o seu moya. Mas to cedo? perguntou o antenascido. para no chegar a haver tempo. Mas, assim, sem que eu devidamente tenha nascido? para, desta vez, no me acusarem. Estou cansada de ser maldioada na voz das gentes.E a morte iniciou suas inactividades para anular naquele ser o milagre de estar vivo. Mas, nisto,um estranho som se aventurou pelos ares. Era a me de Andar que cantava. sabido: a morteno suporta canto de me. E assim, atrapalhoadamente, a morte levantou voo e se retirou. Mas jseus malefcios se haviam praticado: os olhos do menino nunca mais descortinariam a luz.A famlia Castro sabia bem que tudo isso no passava de fantasices. A verdade sobre AndarTchuvisco era outra. O moo tinha vindo com eles de Pebane, onde o pai Joaquim de Castrocomeara a sua misso em frica. O moo, nessa altura, no era cego. Fora contratado comopintor. Joaquim de Castro tinha essa obsesso: as paredes brancas deveriam permanecer assim,alvas e puras, sem vestgio de sangue. O cho da priso tinha sido encerado de vermelho. Justo

  • para que no se detectasse o sangue dos torturados. No cho, sim. Nas paredes, nunca. De ondevinha esse medo de as paredes revelarem as vermelhas ndoas? Quem sabe o sangue mais vivoque o prprio corpo?Andar era um jovem educado em escola, recomendado pelos padres que o escolarizaram.Trabalhou ali durante uma meia dzia de anos. E biscateava na oficina de Custdio Juma, ondelabutava o mulato Marcelino. Nos intervalos das pinturas, Andar sempre comparecia paraavaliar as paredes da priso. Espreitava e tacteava, anotava o desluz de um vermelhinho. A maismnima ndoa e j ele repincelava.A certa altura, porm, o moo adoeceu das vistas. Seus olhos comearam a desbotar, mais e maisazulecidos. Estaria o moo consumindo desses lcoois que roubam a luz dos viventes? O certo que, para ele, o mundo escureceu, dissolto em trevas. Ele pensou ter sua ocupao chegado aofim. Mas o inspector Castro condescendeu: o homem continuasse em seu ofcio, dispensado deviso.A famlia Castro se moveu de Pebane para Moebase e o cego os acompanhou. Se instalou emrecanto to discreto, que os brancos no ousavam visitar. Diz-se que apenas Irene se aproximavado lugar de sua vivncia.Quando o velho Castro morreu no houve funeral. Nem podia haver, sem resgate do corpodespenhado no oceano. O cego Tchuvisco trouxe uma mo-cheia de terra e depositou-a junto residncia do falecido. Foi poeira varrida no exacto seguinte. A vassoura limpasse o cho dessep contaminado de espritos: era mando de Loureno que nunca gostou do pintor. O cego sepermitia altivez que nenhum outro negro exibia. E os brancos aceitavam, enfraquecidos pela suadeficincia.Para o inspector da PIDE, Andar Tchuvisco merecia espessas dvidas polticas. Porque ali, emMoe-base, havia o desoculto rabo de um gato. Alguma mo ajudava os negros a escapar alm-fronteira e a juntarem-se aos guerrilheiros que atacavam os interesses portugueses. No sevislumbrava quem. Esse subversivo devia ser um incapaz de levantar suspeita. Para Castro, alicabia bem o cego. Faltavam, no entanto, todas as provas. Porque, at ao presente, o cegoTchuvisco seguia em sossegada existncia. E mais no se sabia. E que outra veracidade se podiapeneirar? Um cego semelha uma ilha: navegante espera de viagem, um silncio frente aoespelho. Indiferente a tudo, Tchuvisco se dava a metafsicas: Vocs vem os vivos, eu vejo a vida.E ria com todas as slabas. A horas certas ele se afastava do passeio onde se esbanjavam asvendedeiras. E partia sem aparncia de rumo, seus passos gaguejando pelas bermas. Masavanava com estudada elegncia. Como se o p no apenas andasse, mas saboreasse o espao. Sou ntimo do nada. Por isso, chego a arredores onde vocs nunca tocaro.Por onde ia nesses poentes? D azar seguir um cego. Mesmo Loureno de Castro, carregado desuspeitas, nunca ousou perseguir o homem. E quando perguntava sobre os destinos de Tchuvisco,nunca recebia nenhuma resposta. Ningum nunca conferira onde ele se ocultava, nos acasosdesses ocasos. A perdiz esgaravata a areia num lugar onde ningum a conhece. Mas nem no sonhoo povo se permitia invocar o cego. Que os azuis olhos de Tchuvisco no sossegavam quem oscontemplasse. Como quem trouxesse o cu no rosto s para nos fazer cair do voo abaixo.Mas, certa vez, algum encontrou Tchuvisco por baixo da grande maaniqueira, rabiscandodesenhos na areia. A rvore se plantara onde se cruzam os caminhos do este e do oeste. Alitinham sido enterrados Marcelino e seu tio Custdio. Suas sepulturas olhavam o poente, como

  • mandam os antigamentes. Hoje, no restava sinal de seus tmulos. Apenas o vago entrelao dedois panos brancos, suspensos dos ramos da rvore. E, agora, os rabiscos do cego AndarTchuvisco. Como, desenhos? No seria coisa por de mais inacontecvel? E quem sabe doimpossvel? Pode a mo de um cego apurar vises de um pintor de artes? Uma coisa pintar alisura da parede. Outra desenhar o trao e encher o volume de belezas. Quero ver isso com meus prprios olhos! exclamou o pide.Dia seguinte, Loureno de Castro foi espreitar essa grande tela que era o cho onde sombreava arvore sagrada. E surpresa: os desenhos eram de belezas tamanhas, pareciam nem caber na terra.Os traos abraavam os olhos de quem os tocasse, as cores eram certeiras, as formas emdelicada pontiagudeza. Os temas no variavam. Eram sempre mulheres, corpos talmenteverdadeiros que semelhavam mover-se, em iluso de dana. Como as danarinas do tufo, essadana das dengosas damas que se saracoteiam sem sair do stio.Figurinhas assim arredondosas, essas mulheres curvilindas despertando febres: tudo semaravilhava na moldura do cho. A Loureno surgiu, em flagrante viso, que aquelas esculturasinsinuavam ser Irene, todas elas inspiradas em sua tia. O corao dele se enregelou, avedesninhada. E saiu, afastando-se em largas e urgentes passadas.E logo ali se juntou um corrupio de povo. Tantos ali vinham espreitar, que os desenhos seesvaneceram, de pisados e poeirados. E as vozes, bazarinhadas: Eh p! J apagaram a merda dos desenhos! Foi o inspector! No foi, foram vocs mesmo. Vocs, caraas, so mesmo populao. Calcaram essasbelezas, parece esto a pisar cascas do amendoim Vamos mas daqui, que isto vai chamar azaresAos poucos, os nimos esmoreceram e a praa vazou de gente e de vozes. Mas, a partir daqueleepisdio, no era s Loureno a duvidar do real obscurecimento do cego. A suspeita alastrou-se.Como pode um cego autenticado produzir tais desenhaes? Afinal, o tipo fingia de conta que novia. S para lhe devotarem caridades, autorizarem as controversteis manias dele?Irrefutveis, porm, eram os olhos azuis de Andar. Aquela era a contraprova, a inconstestveldescolorao em seu rosto negro. E os viventes se arrependiam de alguma vez terem duvidado.S o pide Castro dava deferimento a suas antigas suspeitas.Regressando a casa na sua viatura Loureno percorre, lento, a velha estrada. Os olhos so dalouva-a-deus. E se espetam na mulher do passeio, essa que assa e vende maaroca. Lourenopra o carro e fala com ela. Tudo em autoritria confidncia. Ela que fingisse ofertar a espiga aocego. Mas, ao invs, lhe estendesse a ponta do ferro e, nela espetado, um carvo aceso. Avendedora no diz sim nem no. Castro lhe pergunta se entendeu. A mulher acenaafirmativamente.Seu plano era de um mais um. Caso Andar evitasse pegar o carvo era sinal que a to propaladacegueira no passava de uma mentira. E eis que o cego se chega vendedeira. Trocam invisveispalavras. Depois, ele estende a mo e aceita pegar a acha em brasa. Longe, entre as moitas, oportugus escuta o grito lancinante. Mas ningum mais, seno ele, ouve o lamento de AndarTchuvisco. Porque, se diz, nem um som saiu da boca do cego.

  • 22 de Abril

    A vida infinita. Mas nada to enorme quanto a morte.Dos cadernos de IreneAndar Tchuvisco sacudiu as cinzas de sua mo. Depois, soprou os dedos com esmero de quemdesperta um filho. O cego demorava-se em cada acto, sabendo que carecia de tempo pararegressar a seu corpo.E se sentou a derivar memrias, ondas s de chegar. A cegueira aditava valor a essa caixa delembranas do tempo em que ainda podia ver. Recordava Irene com seu mulato Marcelino.Atrevimento desses sempre se paga com corao. O tempero da alma de Irene se revelara desdeque ela desembarcara em Moambique. Irene chegara a Pebane sem modos de ocupadora, ela emsi requerendo apenas o espreitar respeitoso de quem no quer posse nem domnio. Secomportava como era: estrangeira, vivendo em territrio colonial.Nessa altura, Irene conhecera Marcelino. Como ela se despertou nele assunto de no seentender. A portuguesa era aucarosa, capaz de arredondar micaia. J o mecnico era homem deafiar existncia, sem pacincia para mornices, nem fio para meios panos. O universo, para ele,era simples: o bicho era hiena ou coelho. Revoltado e revolteado. Marcelino vivia com sua me,Dona Graa, em casa de seu tio Custdio. O tio era dono da oficina, especialista em engrenagense viaturas. A me se dizia viva. Mentira de sua aparncia. Todos sabiam que o marido, esse quehouve, nunca chegou realmente de existir. Era um portugus que se desbandeirara por rumos efumos. Fez-lhe um filho. E, depois, mais nada e nunca mais. Dona Graa amealhava seu prpriosustento: vendia amijoa no bazar da vila, de modo a no pesar no irmo.Tudo decorria no bom sossego familiar no fossem os tempos. Se no mundo tudo eradesentendimento como podia uma famlia resistir. Muito-muito era Marcelino quem sofria dasinjustias alheias. Foi ele quem meteu Irene nas polticas. Ela era branca, cunhada de um agenteda PIDE. Como podiam suspeitar dela?Andar Tchuvisco costumava parar por aquelas bandas da oficina, escutar os sons dasferramentas, o bater nas chapas. Na altura, Andar ainda gozava das boas vistas. O mundo semobilava de luminosidade. Quem estava de marimbas para essas alegrias era Marcelino, sempreapto a recolher motivos de zanga e ofensa. Tudo isso o mulato traduzia em suas pregaespolticas. S o tio Custdio desconhecia motivos para indisposies. Melhor era ignorar. Afinal,quem no sabe viver no sabe sofrer. O sobrinho bem tentava convenc-lo dos assuntos daRevoluo. O mundo precisa de ser cambalhotado, o invs do vis, dizia o jovem. Mas o tioesguelhava, suspeitoso: No me venha com essas ideias de poltica. A poltica desses incndios que se acendem nacasa do outro e quem arde a nossa casa. A poltica, caro tio, s perigosa quando a vida ainda mais perigosa.No havia meio. Custdio se esquivava das razes do fraco contra o forte. Valia a pena tentarmudar este nosso mundo? O cu nunca pousar na terra nem a montanha descer ao vale. Eargumentava: um patro sofre mas de inveja do criado. Sim, veja o caso do cavalo, dizia. Umcavalo sabe que o dono lhe deve tratar bem. Fosse ele no tinha dono e passava pior. Ser abusado a vida inteira, tio? Fazemos como o cavalo, p. Faz conta que obedece, mas basta ele querer e o cavaleiro se

  • despenha da montagem.E Custdio conclua: a felicidade um instante, um relmpago fora da tempestade. Quem d achvena no d a colher. E quando nos do luz, l vem junto o tnel. Eu vos digo, vocs que so miudagens: um criado esperto nunca quer deixar de ser criado.Dona Graa, passando de raspo, se encolhia nos ombros. Ela desistia do irmo, teimosia igualnem havia. Onde est a dignidade da pessoa?, perguntava. E suspirava: Este meu irmo mesmo um gajo.Andar no atentasse nas palavras do mano Custdio. Aquilo era como chifres de caracol: saamno da boca mas da testa. Por dentro, ele concordava que a injustia devia terminar. O dono daoficina era cmplice da grande revolta, Dona Graa assegurava. E ilustrava o exemplo de elenunca querer usar sapato. Sabe por que motivo Custdio no coloca sapato? No, no sei.O sapato, neste nosso mundo, explicava Dona Graa, no s coisa de pr e tirar. O dito sapatono compe apenas o p mas concede eminncia ao homem todo inteiro. O calado umpassaporte para ser reconhecido pelos brancos, entrar na categoria dos assimilados. Existe dois tipos de pretos: os calados e os pretos.Tio Custdio se vangloriava da sua descalcido. O mato estava sempre renascendo sob seus ps.Isto era seu dito. E mais se atribua: onde seu p tocasse o cho, se apagaria a obra dessesbrancos. O passo dele punha o mundo a andar para trs. Portanto, sentenciava Graa, o seu irmoestava concludo e perdoado: ele dedicava igual amor sua terra. Simplesmente, no queriademonstrar. Afinal, a rvore alta que apanha com todas as ventanias.Dona Graa dizia isso para desculpar o irmo? Talvez, devido da sua bondade. Ou fossem outrosmotivos. Dois irmos so como duas abboras: podem chocar mas nunca quebram. A ameijoeirasaa cedo, desocupava sua presena na casa e partia entre os cacimbos. A senhora padecia dedefeito seus olhos no pariam lgrimas. Eram infrteis de gua: ela no chorava. Quanto mais eu quero chorar mais estou seca. J tentou uma tristeza graudona? perguntava Andar. Quer maior tristeza que essa de aturar meu irmo Custdio? No vale a pena: no deitolgrima.Quem ria era Custdio. A mana queria transitar na contramo da vida? Que ele at a podia ajudara circular por vias da tristeza. E receitava: Beba esta aguardente, mulher: vai ver que at mija lgrima!S Andar Tchuvisco sabia dos segredos da vendedeira. O que ela obscuramente fazia paravazar suas tristezas era deitar-se, l fora, em noites de chuva. Ficava amparada no cho e deixavao rosto se inundar de gotas, aos cordes. Eram essas suas lgrimas, aquelas, lhe rosariando pelasfaces.Seu irmo desconhecia o propsito daquela conduta. Custdio se aventurava pelos interstcios dachuva e apanhava Graa do cho. A mana estava encharcada, pesada como terra molhada. Lheocorria que, caso demorasse, sua irm se converteria em mero charco, toda chopinhada.Tudo isto sucedia na casa dos mecnicos de Pebane. A vila, em seu doce sossego, mentia sobre oestado do mundo. O tio Custdio, s vezes, convidava Andar a sentarem juntos na esplanada daCervejaria Minhota. O garagista ficava ali, faceando a rua, farejando as inocorrncias. De vezem quando fechava os olhos e dizia:

  • Faa de contas que sou cego. Agora, me descreva essa mulher que est passando.Ficava assim tardes inteiras, olhos cerrados a adivinhar mulheres. Nunca Andar soube comoele, de plpebras descidas, acertava se os passantes eram homens ou mulheres. Batoteava, comoem todo o resto? Mas fosse o que viesse, Andar Tchuvisco lhe inventava umas quantas belezas,exemplares de abastecer salivas. E ele sorria, satisfeito. O moo interrompia aquela jigajoga eperguntava: Tio Custdio, o senhor nunca sonhou em ver Moambique independente? Essa mulher que se apritcima agora, me diga como ela . Agora no vem nenhuma mulher. Me responda: nunca sonhou? Sonhei o qu? Nisso que Marcelino sempre fala, ns a mandar na nossa terra. Sabe uma coisa? pena. pena o qu? pena no haver mulher passando.Tchuvisco se espantava com o fintar de assunto. Aquele homem em nada era como o sobrinhoMarcelino. Um sara do ovo, outro da casca.Agora, em sua lembrana, aquela encenao da cegueira lhe parecia um pressgio. As palavrasde Custdio pareciam vaticinar o futuro de Andar Tchuvisco. Sabia ele que, amanh, o moo seiria encerrar em autntica cegueira? Sabe, meu filho? Eu at havia gostar de ser cego. No diga isso. Estou a falar. Havia de me custar no ver o Sol, no ver a rvore nem as belezas voadorascomo essa gara. E no ver as mulheres? No lhe havia de custar? verdade, mas as mulheres voc me havia decontar. Mas se fosse eu era cego uma coisame deixaria muito feliz. E era o qu? Era no ter de olhar mais para as trombas decertos alguns.E havia mais vantagem na cegueira, insistia Custdio. Voc, se cego, todos lhe tratam, h sempre uma mo para te segurar. E no isso quetodos queremos? Algum que nos trate sem que a gente precise pedir?Aquela falao toda parecia consolo de vspera. Custdio preparava o desfecho do destino doTchuvisco? Ou era apenas conversa a crdito? Aquilo, se sabia, era desvio nas seriedades domundo. Marcelino estivesse presente, e a conversa no escorregava naquelas lenga-lengaes.Tudo se tornava grave, cada palavra com seu peso, cada ideia sem nenhuma medida. Voc quer fazer a revoluo, Marcelino, est certo. Mas para qual finalidade? Para dar melhor vida a meus filhos. Pois eu tenho meu plano mais simples para esse mesmo fim. Veja a Martinha, exemplo. Voucasar essa minha neta com um branco. E logo ela, num instante, transita numa melhoria dasqualidades. Isso o meu socialismo, est-me entender? Rpido e acertadeiro como flecha.Quando estava com Marcelino, o tio Custdio acabava sempre por beber. Comeava pormergulhar os beios na espuma da cerveja, ficava assim parecia adormecido sobre o copo. Isto no beber. Estou s a tirar a escama a esta cervejinha.Descamava garrafa aps garrafa. Deus criou a bebida, o homem fez o copo. Nesses pequenos

  • lugares no h outra religio: o lcool. E nos copos, Custdio punha cobro aos dois dedos dedesconversa.Na oficina tudo mudaria quando, em certa ocasio, Custdio recebeu a encomenda de um servio.Estavam os trs na varanda, o tio, o sobrinho e Andar. O mensageiro trouxe o envelope com asordens. O exrcito colonial requeria que ele se dedicasse, a todo tempo, a reparar as viaturasmilitares. Mudasse seu xitolo l para o quartel, transferisse alma e ferramenta. No diga o tio vai aceitar? Que remdio. So ossos do orifcio.Marcelino se ops, com unhas nos dentes. Se o tio Custdio acedesse em colaborar com a tropaportuguesa ento seria a maior ofensa contra o povo. E que nunca mais perdoaria, nem quereriatrocar vistas com ele. A discusso, essa noite, acendeu at ao rubro. At aqui o senhor foi um cobarde. Agora, ser um traidor.Custdio pareceu pular do prprio corpo. Lanou os braos sobre o sobrinho e lhe cuspiu apergunta: Voce fala de um pas novo? Ento venha ver uma coisaPuxou-o para dentro de casa, arrastou-lhe at o armrio e apontou a fotografia de sua famlia. Alina moldura estavam todos, dos avs aos netos, posando na entrada na garagem. Custdio sacudiuo casaco do sobrinho e perguntou: V o que est nessa foto? V a famlia? Esse que o seu pas.E virou costas. Marcelino ficou s, olhos postos na moldura como se fosse em estreia. Seusolhos, em verdade, faziam como borboleta em flor: tocavam sem pousar. Porque ele contemplavaa ausncia naquele retrato. Ali faltava seu pai. Esse homem branco estava condenado inexistncia, exilado do corpo e da voz.Na semana seguinte, deixou de se ver Custdio. Ele se internara no quartel, com direito a umarmazm que era seu quarto, sua garagem. E pouco mais se soube. Mais tarde chegou notcia queele baixara na enfermaria, adoecido de enfermidade que ningum sabia identificar. No sofria defebre, nem de dor, nem abcesso. Simplesmente deixou de comer, sem apetite nem para gua, luzou ar. Se rumorejou: um estado tal era obra de encomenda. Reenviaram-no para casa, j pele eesqueleto. Nunca mais se levantou. Os outros tinham quase receio de se lhe chegar. Irene seprontificou em cabeceirar o doente. E lhe prestou cuidados e remdios. Mas o homem seencontrava terminando. Convocou a famlia, conforme seu desejo finalista. J em fio de voz, elechamou Marcelino e lhe estendeu a mo como se receasse no ser ouvido e o brao, posto emlinha com outro corpo, desse garantia de ser entendido. Veja Marcelino, quanta famlia h nestas pes soas. Voce fala muito de ptria, acreditandoser coisa de muita dimenso. Mas esta gente, nesta pequena roda, esta a sua nica ptria. Minha famlia outra, tio. Cale-se. Eu j no tenho tempo. Me escute bem: todos esto aqui. Todos, entende? No sei. Cale-se, outra vez. Abra aquela gaveta e tire de l um envelope.Marcelino obedeceu. Ficou segurando o sobrescrito espera de mais esclarecimento. Isso carta de seu pai. H muitos anos ele me pediu para lhe entregar. Porqu s agora me entrega? Seu pai foi quem preferiu assim. Agora, me olhe bem: promete que vai ler.Marcelino prometeu em falso. Ele nunca cumpriu. A carta foi deixada junto da janela. Mais tarde,

  • quando Dona Graa ousou espreitar, j a chuva tinha ensopado o papel e as letras se tinhamesborratado, ilegveis. Aqueles papis haveriam depois de ser enterrados junto com o corpo deCustdio. A letra do portugus, de aguado contorno, estava condenada a apodrecer no ferventecho de frica.Se cumpriam, assim, os derradeiros momentos de Custdio. O moribundo tio aproveitou as suasltimas respiraes. Num sopro pediu a Marcelino que retirasse uns papis de debaixo daalmofada. Veja: eu roubei esses papis l no quartel. So para si. Para mim? Entregue aos camaradas, pode ser que eles sirvam. Desta maneira, pode ser que eu tenhaservido tambm.E j quase inaudvel, ainda solicitou: Diga l aos seus chefes que fui eu, Custdio Juma, que desenrasquei essas papeladas.Custdio faleceu, terminantemente. Marcelino tomou conta da oficina. Irene se tornou maispresente. Mas a casa do garagista nunca mais se recomps. O tempo passou-se com mais mgoasque instantes. Morreu o velho Castro, Andar azulesceu nos olhos. Quando, mais tarde,Marcelino morreu na priso, Dona Graa se afundou como barco sem fundo. E sucedeu oestranho: a viva desapareceu. Entranhou-se nos matos e extinguiu-se em definitivo. Procurou-sepelos lugares e para alm deles, revolveu-se o campo e a selva. Nada, Graa deixara este mundodo modo mais obsceno: sem nunca ter chegado a morrer.

  • 23 de Abril

    Deus fez a rvore para que o Homem no sentisse medo do tempo.Dito do cego AndarMargarida foi varanda e sentiu o cheiro de frica, como se fosse de um corpo de machotranspirado. A terra estalava na insistncia do Sol bem cheio. Mas o rio teimava em segurar overde na paisagem. Longe, o ndico marmurava.A portuguesa esfregou os olhos para afastar a sua fragilidade ante a imensa paisagem. Apoiou-sena maaniqueira que fronteava a casa. A velha rvore lhe dava consolo de vivente. Suas mosacariciavam o tronco, a casca se soltava, lasciva, como cabelos entre os seus dedos. Olhou paracima com receio. Na copa se alojava a morcegagem. Um arrepio a percorreu.Nessa noite, Dona Margarida voltara a ter o mesmo pesadelo: a seca castigara a savana em voltae o verde todo se exilara. A poeira subia como labaredas do cho morto. Na desvastido, mesmoa areia cheirava, fosse do calor ferver as pedras. J no havia rio, nem mar, nem chuva. Nohavia nem rstia de verde. Mesmo o cu se aterrara, em magras pedras e cinzas. No sonho, amaaniqueira no era mais que ramos secos, desgrenhados. Os morcegos se soltavam dasramagens e, logo nas primeiras voaes, se lanavam uns contra os outros, guinchando, dentando-se. A savana estava to morta que h muito no dispensava alimento, nem sombra de sobra. Ocho se desplantara, os insectos se exilaram, em fugitivas nuvens. Ficaram apenas os morcegos,enchendo os ares de seus guinchos. Sem mais alimento, os bichos voadores passaram a comer-seuns aos outros. Se devoravam em pleno ar, consumidos mesmo antes de tombarem. Quandochegavam ao cho eram s ossos mastigados, farelo de esqueleto.Mas o mau sonho no terminava. Pois, dos capins, aparecia um co. Mas era um bicho comaparncias de gente. Cruzes e credo: semelhava, tal igual a cabea de Diamantino, o adjunto daPIDE. Tombava-lhe do pescoo uma trela. Segurando a trela havia uma mo rasgada, avulsa dorestante brao, carnes dependuradas, sangue ainda pingando. O co espreitava os gritos velozes,a baba escorrendo na anteviso de uma refeio carnenta. Depois partia, cheirando o choquente, roendo sobras de ossos, cuspindo plos. At que a desirmanada mo o puxava,encaminhando-o para a vila.No meio daquela desolao, se notava uma pomba. Estava cada, desprovida de voo. No sonho,Margarida se via a si mesma descer a varanda para salvar a pomba da voragem. Trazia-a entre asmos at sombra de casa. A carcia era dupla e recproca: a ela confortava-a o doce tacto dasplumas. De repente, porm, a ave emitia estridncias, desordenados guinchos. E as penas seconvertiam em pelagem escura. O bico amolecia e, ante o olhar estupefacto da mulher, seconvertia em aguados dentes. A pomba, antes de um fechar de olhos, virava morcego.Um grito, como um cortinado brusco, a despertou bruscamente. Sentou-se na cama, farejou oescuro. Ela mesma gritava? No, era a voz de Loureno. A mulher acorreu, atabalhoadamente,consoante a angstia dos berros de seu filho. Nem se lembra de ter aberto a porta. Era como se aviso tivesse vindo chocar com seu espanto: Loureno sentado no cho, chorando como criana.A seu lado, o cavalinho de madeira jazia, destroado. Veja o que lhe fizeram, me!E exibia as pernas quebradas do brinquedo. E ele esfregava os dedos na fralda como se aestivesse limpando.

  • Arrancaram-lhe as pernas. Veja o sangue,me. Veja o sangue escorrendo.Margarida debruou-se sobre ele e passou as mos pela cintura. Queria que ele se levantasse.Mas Loureno era um peso falecido. No sangue, meu filho. Deixe isso, que amanh se arranja.Foi preciso a pacincia do tempo. O pide l aceitou deitar-se de novo, as mos enroladas novelho pano. Ficou de olhos boquiabertos, lenol marginando o duplo queixo. Lhe pareceu ouvir,do outro lado da janela, a estridncia de um morcego. Depois, sentiu que a me se dirigia casade banho. Ouviu a torneira do lavatrio. Me? O que , filho? A me abriu a torneira?Tolerante, a voz regressou, maternal. No era nada, ele que dormisse, tranquilo. No tardaria queamanhecesse. Se no era sangue, ento por que que tenho o pano sujo de vermelho?Agora, lembrando o sucedido, ante a brisa da manh, Margarida ainda pensa que o melhor foino ter respondido. No bastasse o mau sonho dos morcegos. Sorriu, murcha. Triste escolherentre o mau e o pior. Entre a realidade e o sonho, qual deles preferir?Fosse medo, fosse cansao acumulado, o certo que uma fora interior nela se repentinou.Armada de sombrinha, a portuguesa meteu p nos atalhos da savana. Em casa ningum seapercebeu de que partira. Margarida nunca saa. frica comeava logo ali, no sop da varanda.No se podia facilitar.Quem visse Dona Margarida trilhando as incognitudes do mato no acreditava. Ali, nas margensdas lagoas, pisando os ftidos matopes! Resguardada no guarda-chuva, com ares furtivos, maisdiscreta que sombra da cobra-mamba. Caminhava nessa hora em que o Sol j comea a terdvidas. Jessumina se admirou quando a portuguesa se anunciou: Dona Margarida? Que surpresa!Sentaram-se ambas no cho que o lugar de mulher sentar. A portuguesa ensaiou as dvidas e osmtodos de sua descrena. Que aquilo das feitiarias, Deus lhe perdoasse, era imperdovelpecado.A portuguesa se desculpava assim: quem podia garantir os poderes da adivinha? A seus ouvidoschegaram as verses que explicavam as faculdades de Jessumina.Dizia-se que, durante um sonho, ela fora avisada: estava destinada. Em breve, iria receber oesprito do nzuze e desaparecer nas guas do lago Nkuluine. Na semana seguinte, Jessuminaentrou na lagoa e sumiu nas suas guas durante sete anos. Nunca mais ningum soube dela. L nofundo do lago, o povo do lago lhe ensinava os segredos de um outro saber. Ningum chorou porela, ningum mais sequer comentou o assunto.Nkuluine se apetrechava de rumores. Se dizia que o lago se enchia apenas quando o cu seacendia de fasca. Essa gua no provinha das nuvens mas dos relmpagos. Era gua da luz.Quem vivia dentro dessa gua ganhava memria de suas outras vidas. Como ela, a adivinhaJessumina, essa que ganhara poderes enquanto peixara na gua sagrada.E se dizia ainda mais. Que no dia em que a aldeia recebeu o recado do seu regresso, os tamboresdo xigubo soaram a noite inteira. Quando ressurgiu, nada lhe perguntaram. Jessumina era umanyanga. E tudo estava dito, completo e sem retorno. L onde vivi tudo rpido, mas sem nunca ter pressa. Tenho saudade do lago.

  • No tempo em que estivera submersa, ela via passar os pssaros. E parecia no eram aves maspeixes navegando em alto silncio. L em cima deveria haver um rio e as nuvens eram a espumade sua ondeao.Tudo isso se dizia da feiticeira. Margarida sabia dessas explicaes. Mas, naquele momento,esses rumores no passavam de extravagncias. Prtica e ciente do valor do tempo, a portuguesadeitou o seu assunto: Quero saber o que se passa em minha casa. Tenho medo. Em voc, minha senhora, no sei se sou capaz. Estou ficando cega da boca... Voc me estentender? No. ptimo. S quando no me entendem que eu falo coisa acertada. J eu aviso a senhora prosseguiu , posso-lhe enganar, torcer as vidas e as vindas. Eusonho que o mundo precisa de mim, sempre sonhei isso. E agora coisa boa ver a senhorachegar, me precisando. Uma branca de Portugal! Lhe peo, Jessumina: esta uma visita muito privada. Aqui j vieram uns brancos, sim, mas desses brancos das pedras, naturais. Sua irm, Irene,me visita, mas ela diferente. Agora a senhora, uma autntica, de origem. At que enfins mesinto um algum. No tenho tempo, Jessumina. Eu s quero paz para o meu lar. No aguento maisJessumina retomou a fala, riscando de leve a areia enquanto se explicava. Sem palavra, dava oentendimento que ali o tempo era governado por suas pacincias. E d azar avanar directo numassunto. O besouro, antes de entrar, d duas voltas toca. Veja a minha casa, o tudo em volta? V filhos, netos, riquezas?Era isso que ela pretendia: no deixar nenhuma obra. Aprendera assim. Onde estudara primeiro?Na misso, com as freiras. Onde aprendera de verdade? Foi na lagoa, na sua ausncia destemundo. S se aprende nesse desmaio, a sbita perda do sentido. Sua obra era um nada, umdesaparecimento. Para no aborrecer os deuses, se mantinha assim: um desdenho, um ninho deninharias. A senhora sofre por causa desse filho. Mas Loureno foi seu filho. J no .Jessumina reforava: Loureno fora possudo pela sua prpria vida. Sem nunca chegar a ser eleprprio. Causa de tudo: o pai. Era preciso despedirem-se do velho Castro. Urgia trancar aquelaausncia. Enquanto isso no fosse feito, a famlia no teria descanso. Sobretudo Loureno.Aquele pano que ele usava para adormecer: aquilo s servia o corpo. A sua alma no tinhaalmofada onde encostar. s vezes me apetece morrer! No diga isso, Dona Margarida. Que as palavras chamam as sucedncias.A portuguesa rectificou. Morrer, no. Ela queria era ir embora. Mas j no lhe basta ir embora deum lugar. Ela queria ir embora da vida. E voltar depois, quando depois j no houvesse rstiadaquele tempo. O que a senhora tem no saudade: medo do futuro. Tenho medo de tudo. At de si eu tenho medo. A senhora devia era sair, viajar para a sua terra. Eu nunca tive viagem. Agora, j no consigo sair. Cuidado, Dona Margarida. Quem no tem viagem escolhido pela loucura. Veja o que

  • sucedeu com sua irm. s vezes at desejo que me suceda o mesmo, Deus me perdoe. Deus no a est escutar, Dona Margarida. Aqui no chega o ouvido de Deus. Bom, o tempo est a passar, eu devo ir. Ah, antes que me esquea: ningum pode saber queestive aqui!A portuguesa a si mesma se enxerga: sentada moda das pretas, pernas dobradas sobre a esteira.Depois, ela se levanta, rectifica a saia, sacode umas poeiras. Roda, lenta, sobre o ptio como sea si mesma se faltasse. Porque ela realiza ter sido a primeira vez que falara com uma mulher deoutra raa. Vinte anos de frica e nunca trocara confidncias com uma negra. Jessuminapermanece sentada, seguindo-a com os olhos. Antes de ir, Dona Margarida, me diga uma coisa: veio por causa de seu filho Loureno? Sim, ele est doente. Para ns, no doena. perda de poderes. Ele diz que lhe aparece o pai. Diz que o meu marido ainda no tombou do cu, anda por apairando. E a senhora nunca v o seu falecido marido? Bom, isso no vem ao caso. Ento porqu at hoje perfuma o lado da cama dele? Foi Irene que lhe disse? Tenho minha maneira de saber. Eu lavo os olhos na mesma gua onde o gato se banha.Assim,vejo de noite. O que me preocupa so as vises de Loureno. Por exemplo, aquela coisa do umbigo acrescer. Que aflio! Dona Margarida, eu pergunto: esses panos com que ele dorme no ser que esto adesaparecer? Sim, verdade. Nunca mais os ponha a secar no jardim. Algum est a usar aquilo contra seu filho. So osmtodos da nossa gente. Bom, devo ir, Dona Jessumina.Se admirou: chamara a outra de dona? Que diria Loureno? Ou pior: como reagiria seufalecido marido? Foi ento que Jessumina lhe endereou o estranhssimo pedido: Dona Margarida, eu tinha uma grande vontade Quer dinheiro? S lhe posso mandar amanh... Eu no quero dinheiro. S queria que a senhora me contasse como a sua terra.A branca pareceu atingida por fulminncia. Falar da sua terra? E por qual motivo? O assunto erade melindre. Pois, a branca senhora h meses que no conseguia sonhar com sua aldeia emPortugal. Ela bem chamava a lembrana para aconchegar seu sono. Mas as imagens sedeslavavam e as formas fugiam como uma tela lanada em fogo.Dona Margarida, voltou a sentar-se, sobrancelha enrugada. Mas a adivinha exibia a mais genunae convincente inocncia. E a portuguesa, hesitante, traou os primeiros rabiscos do retrato da suaterra natal. Aos poucos, ela ganhou mais peito e as suas palavras retocavam o quadro com ternurade pintor. E falou, falou, falou. Nem ela sabe quanto tempo se demorou naquela evocao de suaaldeia.Quando terminou j era noite. E viu-se como em filme, agradecendo num beijo. Esquivo e breve.

  • Mas um beijo. Depois, espreitou os cantos da escurido e se esgueirou entre sombras e escuros,de regresso ao lar. Atravessou os atalhos com a leveza de um novo conforto. Teria sido osimples falar com algum? Um ser de alm-mundo, como Jessumina, pode fazer suportar melhoreste nosso mundo?Ao subir os degraus da varanda, assim esquiva e desobediente, lhe veio a lembrana de umafelicidade adolescente. Se ergueu na ponta dos ps e encostou as palmas das mos no tronco damaaniqueira. A rvore a acariciava? A branca fechou as plpebras como se nela se acendesse,viva, a vida. Ficou assim de olhos fechados, adiando o mais possvel a entrada em casa.

  • 24 de Abril

    J no carecemos de igreja: o mundo inteiro se converteu numa imensa igreja. Dejoelhos,arrebanhados at ao sonho, aceitamos a qualquer preo isso a que chamam deredeno.Dos cadernos de IreneMargarida arruma o quarto da irm. Aquele o seu nico servio nas lides da casa. A portuguesano aceita que nenhum dos tantos empregados execute aquele trabalho. Quer guardar aquelaincumbncia para si mesma: tratar do lugar de Irene, como se entendesse rectificar a infnciadela. Naquele dia, fazia anos sobre a morte de Marcelino. O quarto parece tristonho. Margaridaencontra um caderno no cho. Est aberto na pgina mal rabiscada. um poema. Margarida l,em cada letra uma gua se represa em seus olhos. Est escrito:Que a bala do corpo se retirenum disparo ao avesso se desviree o sangue aberto se arrependae retorne ao leito de onde escorreuQue, enfim, a espingarda seja mortae se escreva na campa deste tempo: Aqui jaz a balasentenciada por mandato da vida contra o Homem.Margarida se senta na borda da cama, caderno abandonado sobre o colo. Lembra esse Marcelino,como pde a irm se apaixonar por um quase-preto? Tudo nele estava errado: a raa, a condio,a poltica. Ainda por cima um injusticeiro, autntico junta-brasas. O homem tinha ingressado nastropas coloniais em vez de cumprir fidelidades ptria lusitana ele encontrou l uma outraptria: Moambique. Veio contaminado por essa doena sonhar com futuros e liberdades.Parecia que ele tivesse presenciado horrores e massacres l nas frentes de batalha. Tambm odoutor Peixoto e o padre Ramos lhe haviam falado de atrocidades. Excessos, protestava seu filhoLoureno, em que guerra no h excessos? O que d estranheza na guerra que ela no nos sai damemria, de tal modo que dela no recordamos exactamente nada. como se a memria fosse,faz conta, um mapa dos stios que no h.Irene, nesse momento, entra no quarto. Parece flutuar, seus olhos andorinham por nuvens terrenas.E antes que a outra a surpreendesse em falta, Margarida estende o caderno: Estive a ler isto. bonito, mas porqu tanta raiva, tanta tristeza? Esqueces que h gente morrendo aqui mesmo, ao lado? Eu tenho que esquecer isso, mana. Por isso vou igreja. No queres vir comigo? Distrais-te.Esperava, quem sabe, um rebate de inconscincia. Mas a irm tinha um corao muitopermanente. Como se a vida s lhe fosse suportvel se ela se desocupasse do pensamento. Eassim, como ela mesmo dizia, amava s as impossveis coisas: dedo de cobra, asa de cgado,bico de crocodilo. Eu quero esquecer Marcelino, mas no consigo. como se desejasse rezar mas, noinstante, me faltasse a orao. Ou como se tivesse orao e me faltasse Deus...

  • Vem, vamos rezar. Juro-te que, desta vez, at rezo por esse Que esse? Por esse Marcelino. Vem comigo missa. No entro naquela igreja enquanto estiver l o canho. Aquilo quartel ou casa de Deus? Deixa-te disso, mana. Tenho outras coisas para fazer. Coisas bem mais importantes. Outras coisas, bem sei. Como que te atreves a andar por a nessas reunies? O que queres, mana? Eu sou uma canhota que s faz coisas bonitas com a mo direita.Irene sai. A irm no sabe mas Irene vai cumprir o ritual dos falecidos. Dirige-se grandemaaniqueira onde esto as campas de Marcelino e Custdio. Irene visita-as maneira dascrenas indgenas. Leva-lhes farinha, panos, bebidas. Senta-se junto tumba e conversa com osmortos. Resta-lhe o conforto daqueles falecidos terem encontrado residncia e no desvairaremsem pouso como esse seu malfadado cunhado, Joaquim de Castro. Quem no tem parentesco coma vida no chega nunca a morrer devidamente.Em casa, Margarida fica lendo o caderno de sua irm. H cartas, muitas cartas sempre porterminar. Nesses textos, Irene explica seus sentimentos. Enquanto amava ela se enriquecia deoutras vidas. Seus olhos ficavam de muitos quilates. Margarida l de trs para a frente, sentindoo dente da inveja lhe roendo a alma. Se abate em tristeza de no ter entendido todo aquele tantotempo. Por exemplo, no ter compreendido o gosto de Irene em andar suja, manchada de leos ematopes. Mas o caderno explicava. Aquelas sujidadezinhas lhe faziam lembrar o seu corpoquando ela regressava das clandestinas visitas a casa do mecnico Marcelino. Ou como elachamava, de inveno dela: Marcelindo. Nesses encontros na oficina, nem havia tempo. Elaregressava com ndoas de leos, impresses das carcias do mulato. Depois da morte deMarcelino, certas vezes, a irm passava pela oficina e recolhia sujidades entre os dedos. Depois,se manchava de leos para fazer de conta que o outro ainda constava entre viventes.Margarida fecha o caderno, fecha o quarto, fecha a casa. Dirige-se igreja. Vai pedir por suafamlia. Irene, primeiro. Depois, seu filho Loureno. E, desta vez, vai mesmo pedir pelo falecidomecnico. Talvez pedisse por Joaquim, o malogrado marido. Talvez.Absorta, Margarida quase choca com o canho entrada da igreja. Puseram-no ali, desde quehouve rumores de que a vila seria invadida pelos guerrilheiros. Nunca mais o tiraram. A guerra vaidosa: se ostenta mesmo nos lugares onde se diz ser a exclusiva moradia da paz.Os olhos da portuguesa se habituam penumbra. Naquele lusco-fusco lhe chega a viso: no altar,de costas, um homem reza missa. um negro, todo nu. Ela fica parada, espantada. O improvisadosacerdote cumpre com zelo os no prescritos latins. As costas do homem luzem ao escoar de umapequena luz vinda do tecto. Parece o Sol se poenta em seu dorso.A primeira tentao da portuguesa sair, desviar-se da vista daquele homem. Mas o momento lhesurge sagrado e ela se ajoelha no banco e se prostra em reza. O preto fala alto e audvel. Se ocorpo dele sem traje, sua fala s ultraje: Senhor Deus, eu venho aqui me desbaptizar. Causa o seguinte: minha crena no de gentehumana. Eu tenho religio dos bichos. Quero ficar interdito de entrar em igreja. Nem navossa, nem em nenhuma outra. Quero transitar-me para bicheza. Perder alma, perder mesmo alembrana de, um dia, ter sido pessoa. Porque ser animal s me d vantagem: eu poderei ver oinvisvel, os demnios que nos visitam. Como esses ces que uivam toda a noite sem sabermosa razo. Eles esto conversando com os demnios. Em diante, quero s conversa com o diabo.

  • Quero tudo isso enquanto durar esse inferno que aqui vivemos.Margarida escuta, com mais gelo que sangue em suas veias. At que uma mo lhe toca o ombro ealgum sussurra: Venha, minha irm, esse homem louco.O padre Ramos se desculpa, enquanto conduz Margarida at sacristia. Suave, ele fechaexplicao: um que perdeu a razo. Ficou assim na tropa.A histria do homem se resumia para meio entendedor. Seu pai tinha sido sacristo naquelaigreja, um homem to bom que nem convinha existir. Ele adorava o filho. Todas as noites sedeitavam juntos, pai e filho, a contemplar o cu. O pai contava as estrelas, confirmava suasquantidades, mais suas posies. Dizia ser guardio dos astros, com elevadas responsabilidades:conferir estrela por estrela o estado do firmamento. S depois ele declarava solenemente aberta ameia-noite. Que ele, mais tarde, descontasse no cu a saudade de ser menino.O pai faleceu, o moo ingressou na tropa colonial. Dizem que desde que chegou l, ao quartel deNangade, nunca mais adormeceu. Abria os olhos espantados ante as infinitas estrelas. Pareciadisputar residncia daquelas luzes.Certa noite, bombardearam o quartel. As exploses estilhaavam luzes e enchiam a noite deruidosos pirilampos. As ordens de retirada ecoaram. O tropel dos fugitivos se atabalhoou. Mas osoldado negro ficou, especado, a contemplar esse espectculo do fogo. E entre as rebentaes,ele via seu pai semeando estrelas, fabricando ensurdecedoras luzes. Foi retirado, ferido no corpoe, diz-se, ainda mais na alma. Que podemos fazer, Dona Margarida? Vivemos um tempo de oito e oitenta.Nesta terra, diz o padre, os extremos no se tocam. Quem se toca so os meios termos, guas-moles, panos mornos. E, com um riso triste, ele se releva: Eu tambm sempre tropeo naquele canho, entrada da igreja.E se despede, regressando penumbra da capela. Aos poucos a sua figura engolida peloescuro. Como se a fora da sua misso soobrasse perante tanto mundo.Margarida inicia o seu regresso a casa. No meio da praa, porm, uma multido surpreendeMargarida. Com receio, a branca espreita entre os negros. No centro da praa est o cego AndarTchuvisco, gesticuloso e barulhador. Grita, convocando Moiss e a montanha. Anuncia suasterrveis vises: que o rio est para se desprender do leito, cansado da margem, l onde ela pedra amontanhada. Berra com tantas almas que o povo acode, aflito. Apenas uns ousam rir. SIrene se aproxima, materna. Que voc est ver, Tchuvisco? No sei. o rio. Ou, talvez, o tempo. Onde est sua bengalinha? Que interessa a bengala, Dona Irene? Vou precisar de uma vore toda inteira. Sente, meu filho. Sossegue. Feche as plpebras.Andar reage com violncias que nunca lhe foram vistas. No lhe tocassem nos olhos, ningumlhe cortinasse as plpebras. E grita: Fechar as plpebras, isso se faz aos mortos. A mim nenhum branco me vai tocar mais,nem para bater nem para beijar.Irene se mantm doce, com pacincia que lhe vem de seu outro mundo. Mas eis que, nesseinstante, d apario a nyanga Jessumina. Vem de panos e pulseiras. Se ajoelha junto ao cego e

  • lhe diz: J cheguei, meu filho.Andar se recosta na rechonchura do colo de Jessumina e ele todo se abranda. A feiticeira pedeao cego que passe a mo pelo pescoo dela. O homem que sentisse a sua pele. O cego roou osns dos dedos pelo corpo da adivinha. O moo vai decifrando que letras naquela pgina, poro aporo. De repente, um tremor lhe suspende o gesto: Mas a senhora?Os dedos voltam a tactear a pele, redesenhando as tatuagens no pescoo da feiticeira. Andarsorri, fechado em mistrio. Lhe regressa, intacto, o cheiro antigo da oficina, as longas tardes dainfncia em que o tempo se espreguiava pelas varandas. J descobriu quem eu sou. Agora me diga, Andar: voc v o qu? Eu vejo o rio, todo abarrotado de guas, a afundar tudo isto. A afundar o qu? Tudo isto. E isso mau para ns, os outros?No se escuta a resposta de Andar. Pois as vozes em redor retomam a balburdiao: Est maluco, o cego!Loucura, somada cegueira: no podia ser outra coisa. Seria punio por terem apagado osdesenhos dele, debaixo da maaniqueira? Ou seria por ousarem duvidar de sua autnticacegueira? Castigo, aquilo semelhava um castigo dos antepassados. Melhor prudncia aausncia. E, assim, uns se afastam, com tanto zelo que parece nem se retirarem. A adivinhaprossegue, maternosa: E mais que v, me diga? Vejo os campos serem arrastados. E vejo as guas, escuras, lamaosas. As guas tm agoramais terra que a estrada.E o cego comea a chorar. Mas era desses prantos que no revelam tristeza nem contentao. Emsua face, se sucedem indecifrveis caretas. Nunca ele tinha exibido um tal estado toentrejeitado. Seus olhos sempre desempregados pareciam agora encontrar vocao. Quepensamento passeava pelo toupeirador do Andar? Quem podia saber da sua noo? Os brancosfalam na ideia como coisa solar que ilumina as mentes. Mas a ideia, todos sabemos, pertence aomundo do escuro, dessas profundezas de onde nossas vsceras nos conduzem.Fosse ou no, deveria era haver pacincia, dar tento ao tempo. Irene se debrua sobre Tchuvisco.O cego rejeita, brusco, a mo dela. No me toque os olhos! Eu s estou a recolher uma lgrima. Me deixa?Jessumina colhe uma gota sobre o dedo e espreita-a luz. E estremece da viso que lhe chega.Dedo em riste, lgrima tremeluzindo, vai passando pela multido, mostrando a gota. Exibe algrima danando no topo do dedo.Um a um, os aldees se fecham no redondo de um oh. que a lgrima est carregada de terra, uma gua escura que lhe brota dos olhos. Igual do rio que ele, em delrio, via estrondearsobre as quietas margens, a inundao engolindo o universal mundo.E o cu, tambm em suas vises, se apocalipsa. Como se de uma imensa almofada irrompesse uminfinito algodo, capaz de encher os horizontes. E essa branquido, em propulsaes, se espalha,afogando o azul-celeste. Comea a trovejar. As gentes, encolhidas, j misturam choros e preces.

  • Trovejar assim em Abril? Os poderes dos deuses falavam pelos desnorteados olhos deTchuvisco?O inspector Loureno chega ao lugar, acompanhado de seus ajudantes. Se achegam Diamantino, obranco e Chico Soco-Soco, o preto. Loureno de Castro se decide intervir, repondo as ordens eos poderes. Que voltassem todos para casa, esquecedores do que ali se tinha passado. O que isto? Voltmos ao passado, analfabestas?E com a autoridade que se impe vira-se para o cego e sentencia: V, pegue na sua bengala!O invisual nem mexe. O pide segura o brao de Tchuvisco com fora, torce-lhe o cotovelo comouma desdobradia. J mandei: pega l a porcaria da bengala!Contrafeito, o cego toma o basto vermelho e branco e, de repente, sem que ningum presumisse,lana-o sobre os ares. A bengala vai subindo, volteando-se pelo espao. De sbito, ante a geralespantao, a bengala se converte em ave. Uma dessas criaturas, alvirubra, que anuncia astempestades. A inespervel ave bate asas, rodamoinhando como um furaco sobre a praa.Sbito, o pssaro se adelgaou, convertido numa fita brilhosa que serpenteia pelos ares. Algumgrita: Vejam! o napolo!E foram passos para trs e terrores rasteirando a retirada. Ningum se podia crer: o monstroNapolo, a cobra voadora, trazedora de tempestades e relmpagos! Tudo a cobra voadora arrastano seu percurso. assim que nasce o tempo, rstia do mundo devorado. O bicho se fantasia aosolhos da multido. A bengala se irrealiza em pressgio, assunto de sobrenaturezas. Se o napolovisitava aqueles cus era sinal de que o monstro decidira reabrir seus caminhos entre a montanhae o mar. Mas o napolo se transmuta aos olhos da multido. Se assume agora mais como umpssaro, asas descapotveis, cauda toda emplumada.O pide Diamantino decide dar ponto naquilo e saca do revlver para espalhar os devidosterrores. Mas o inspector o manda parar: Fique quieto, Diamantino! um grito desmesurado, vindo de alm-garganta. Os polcias olham, admirados, para o seuchefe. Parece que ele no est bem, desarrumado de alma, enfraquecido de corpo. E . Lourenodescobrira os seus fantasmas naquele instantneo cu. Aquela era a ave que, anos antes, ele viraemergir do helicptero e se desfazer, depois, em penas e penugens.O portugus enche os olhos daquele cu to areo. E o napolo se vai confirmando como uma avevoadeira, pssaro em toda sua extenso. Seu formato o de um ramo magrito, espeto de rvore,lpis rosa desenhando o que falta no cu. E, surpresa maior: enquanto voga pelo ar, o pssaro vaidesenhando os mesmos desenhos que se tinha visto no cho da maaniqueira. Para Loureno deCastro, a figura de Irene que se rabisca em tela azul.Repente, deflagra-se um disparo. O adjunto do inspector dispara, certeiro, sobre isso que seriacobra-voadeira, pssaro, bengala. A coisa se desfaz no ar, em poeira e cinza. Segundo disparo seescuta, Loureno se alarma. Os turras tinham chegado? Mas no. trovoada, grossa e cheia.Parece, em volta, as nuvens e entrenuvens se roseiam. No meio de tais figuraes, Loureno dpor si gritando: Chamem o padre Ramos!Mas tarde. Num instante, o cu se inviabiliza para pssaros, a terra se fecha para encantaes.

  • Chove em toda a vastido do mundo. Menos sobre a maaniqueira, ali onde Custdio Juma e omulato Marcelino descansam suas eternidades.

  • 25 de Abril

    Toda a terra ficar branca com a luz das estrelas e o cu ser engolido pelas andorinhasShaka Zulu a Dingane, seu assassinoO pide estranhou quando lhe pareceu escutar a voz do doutor Peixoto. O mdico da famlia emcasa? A me o chamara? Parecia impossvel, ela ter insistido naquela vontade. Desta feita, amaaneta da porta no rodou com educao. O pide entrou brusco e desmaneirado. Nemcumprimentou ningum.O mdico e a me permaneceram de p, trocando silncios. Loureno voltou atrs, sem modos, epuxou a me por um brao. Conduziu-a para a sala contgua. Como teve a ousadia de chamar o mdico? No isso, filho. Eu no lhe disse que no queria ser seguido? No estou doente, me! Eu sei. Fale baixo, o doutor est a ouvir. Ento, mande-o embora! V! Mande-o ou mando eu, minha maneira! a tia Irene! A Irene o qu? Est grvida.Loureno no foi capaz de mais que um riso aparvalhado. A tia grvida? E engravidara de quem?A cabea recolheu-se entre os braos. Ficou, assim, irreactivo, durante um tempo. De sbito, seucorpo foi atravessado por uma deciso. Levantou-se e apressou-se pelo corredor. A me ainda otentou parar: No v ao quarto. Ela est a dormir. Deixe-me, quero falar com ela.Loureno evitou a me e entrou nos aposentos de Irene. O mdico e Margarida ficaram na sala.O quarto de Irene permanecia iluminado apenas pelo silncio. Uma magra fatia de luz escoavapor entre os cortinados. No leito, a tia dormia semidespida. Loureno respira a custos. Custava acrer que aquele corpo tenha sido tocado. E por quem? Certamente, um preto. Um cabro, dessesescarumbas.Sentado na berma do leito, o pide foi soerguendo a combinao da tia. Seus dedos estremeceram,transgressores. S ento ele reparou nas tatuagens no ventre dela. Se espantou: ela se marcoucomo fazem as pretas?A reprovao lhe fez crispar os dedos no lenol. Onde ser que ela tinha mais tatuagens?Suavemente, ele foi deixando a descoberto o colo, depois os seios. Seus dedos, quase semrespirao, roaram os mamilos de Irene. O peito de Loureno estava mais revolto que o mar emtempestade. A mo se apressava para lugares mais intmos, descia por dentro das roupas deIrene, penetrava os mais fundos recantos. De repente, ele sentiu um lquido escorrendo entre osdedos. No era o molhado do corpo dela, era um lquido mais espesso, preguioso. Se ergueu deum salto. Contemplou, enojado, a prpria mo. Sangue?Nesse momento, o mdico Peixoto entrou de rompante pelo quarto. Flagranteado, o pideescondeu as mos por trs das costas. Se alterou, voz escaniada: No disse para me deixar sozinho? por causa da notcia...

  • Que notcia? Na rdio, dizem que houve um golpe de Estado, caiu o regime.Regime? Qual regime? Para ele no havia um regime. Havia Portugal. A ptria eterna e imutvel.Portugal uno e indivisvel. O visitante repetiu, como se duvidasse que o outro o tivesseentendido: Foi um golpe, houve um golpe em Lisboa!O mdico soletrou as palavras, em extremosos cuidados de dico. Depois, retirou-se, andandode costas e em bicos de ps. Como se acabasse de anunciar um falecimento. O pide estavaderrubado, vertido dentro de si mesmo. Seus olhos estavam parados, o olhar ausentado deles.Reviu sua vida, num pice: os gritos da cadeia todos se acumularam, como se as celas sefechassem de um s golpe em sua cabea. De repente, um baque: o corpo de seu pai caindo nasguas. De chofre, se levantam espumas, mas no so brancas. Antes, so vermelhas.O pide no tinha alma para tanto. Levantou-se para enfrentar a viso. Durante os tantos anos, seupai disputou as nuvens como um pssaro. Agora ele tombava, fulminado por nada a no ser o nohaver cu. De um momento para outro, o corpo do pai boiava sobre o oceano e era como umasombra branca imensa, um leno recobrindo todo o ndico. E tudo se calava, em sossego demilnios. Finalmente, seu pai sofria sua ltima morte.Voltou a enfrentar Irene que permanecia adormecida. Fechou a porta com cuidado e atravessou asala com porte solene. Num canto, a me se tinha ajoelhado. Loureno se aproximou dela para aconsolar. Mas foi sacudido pelas palavras dela: At que enfim, aconteceu! Deus seja louvado.A me agradecia a Deus aquela tamanha desgraa? O juzo da senhora teria sofrido um idnticogolpe de Estado? Me, como pode dizer uma coisa dessas? Estou contente, sim. Nem pode imaginar como estou feliz!O pide sentou-se, combalido. Fosse melhor receber a notcia de sua total orfandade? Lhe cabiasuportar sozinho todo o peso daquele infortnio? A me parecia transfigurada. Desolhuda, lhesegurou pelas mangas do casaco e puxou-o como se receasse que ele no a escutasse bem: A nica coisa que eu quero ir embora. Todos esses anos, esse foi o meu sonho. E agora,Loureno de Castro, s nos resta mesmo ir embora.O filho no reconhecia a progenitora. Ela crescera para um outro personagem, uma outra mulhernascera dentro do seu frgil corpo. Quando o teu pai morreu eu pensei quetudo tinha acabado. E que voltvamos para a nossaaldeia, de onde nunca devamos ter sado. Mas depois tu quiseste-o vingar, seguiste-lhe aspisadas, essa merda da poltica. No acredito que esteja a usar essa linguagem, me. Merda pouco, filho. Merda pouco. por isso que, por mais que nos lavemos, no hgua que chegue para nos limparmos do passado.Margarida se levantou. O filho parecia nem a reconhecer, os passos de sua me ensaiando umanova dignidade. Sem sequer lhe dirigir o olhar, ela ainda ordenou: E v lavar a mo, Loureno. Desta vez sangue, mesmo.O portugus se apressa para o lavatrio. O sangue, essa doena que o persegue, tinge agora assuas mos. E mais que as mos, se ruboriza do pecaminoso gesto. Me, a tia vai perder o beb?

  • Pela primeira vez, Dona Margarida passa pelo corredor sem dar ateno ao filho. Lourenorepete a pergunta. Displicente, a portuguesa responde: Esse um assunto de mulheres.

  • 26 de Abril

    At que o leo aprenda a escrever,o caador ser o nico heri.Nozipo Maraire, em Carta a Minha FilhaUm rdio transmite noticirio de Portugal. O locutor fala da Revoluo dos Cravos,manifestaes de rua em Lisboa. A casa colonial parece desatenta efervescncia que estocorrendo a milhares de quilmetros de distncia. O corredor est morto, os cortinados corridos.L fora se apura a intensa luz. Mas as cortinas impedem que o dia invada a casa. Aquelaluminosidade, como pele de frica, est impedida de atravessar o cinzento mundo dos Castros.As cortinas cumprem sua misso vital: fronteira entre o fora e o dentro.Desabrida, a mo de Loureno desliga o rdio. Como um rasgo, dilacerando um cenrio, osilncio se restabelece. O inspector se enrola no roupo. Margarida o reconforta com furtivacarcia. O filho esquiva-se e pergunta: O mdico no vem? No, filho.A mesa est decorada com papis coloridos, uns bales tristonhos teimam em incomodar ocordel que os prende s cadeiras. Um bolo de aniversrio. No creme da cobertura est escritoAo menino Loureno. E as velas, alinhadas como soldados espera da sentena. Quarenta eduas. E o padre? No encontrei.A me parece adivinhar a prxima pergunta. E se adianta: Tia Irene saiu logo de manh. Deve estar a chegar. E os empregados? Chame-os, queria que eles viessem sala. Eu no lhe disse? Saram de casa, j no trabalham para ns... Nenhum? Foram todos, filho. Antes assim sorri Dona Margarida, rodando pela mesa.Porque ela mesma preparara tudo sozinha. Tudo aquilo sara de suas mos. S os bales lhecustara sopr-los. E ri-se: J no tenho flego. E agente Diamantino? Ningum sabe dele. Parece que foi de madrugada para a cidade.Uma sombra no rosto de Margarida. Ajoelha-se no cho, mos no colo do filho. E no era o que ns devamos fazer, Loureno? Aqui sozinhos, no meio desta gente tovingativa...O pide no responde. Fica ausente, sem tino. Pensa em qu? Pensa em nada. Ele quer segurarideia mas o pensamento lhe invisvel. Levanta-se, retira um isqueiro do bolso e prepara-se paraacender a vela. A chama no ateia logo o pavio. E ele desiste, reprovado e murcho. A me seaproxima e abraa-o. Tambm no temos ningum para cantar...S ento ele repara: o lugar cativo do pai no figura na mesa. O cadeiro est arrumado numcanto. Sobre a mesa j no constam nem o prato, nem o copo, nem o guardanapo. Nada. S otampo vazio, imensamente vazio. O olhar do inspector interroga o rosto da me. Ela no baixa os

  • olhos, como costume. E pergunta: Voc no quer mandar algum solt-los? Solt-los?!! Sim, filho. Soltar os presos... Sem receber ordens superiores? Mas ordens de quem? A PIDE, l no continente, j acabou. No se chama PIDE. DGS. J acabou tudo, filho. No entende? No acabou aqui, me.Silncio. O pide, nervoso, passeia-se para l e para c. Avana e retrocede como se hesitasse emdesaparecer aqui e reaparecer acol. De cada vez, a sua mo desarruma um pedao da mesa,belisca o bolo, deixa tombar uns rebuados. Diga-me s uma coisa... Faz algum sentido manter, agora, essa gente presa? A me no sabe o que est dizer!O filho reage com fria. Contida, mas grave. Vai ao canto da sala e puxa o cadeiro, arrastando-ocom estrondo para a sua antiga posio, cabeceira da mesa. Dirige-se ao armrio e retira pratoe talheres. Ajeita-os, de improviso, gestos aparatosos. E no volte a tirar o lugar de meu pai.O filho vai para o quarto e se senta no cho, junto ao despernado cavalo de pau. O tamanho deseu respirar enche o espao. A me senta-se por perto, mas nem lhe toca nem fala. O filho quese decide: A me no pensa? J viu o que era essa malta toda por a solta? J avaliou bem? Se fosse voc a solt-los quem sabe eles esquecessem e at lhe agradecessem. Essa gente nunca vai esquecer. Nunca.Margarida se aproxima, ocupa a cadeira ao lado do filho e lhe fala mais doce: Alguma vez matou algum? Nunca.Mandou matar, explica. Mas matar nunca. Ao contrrio do pai, que no encomendava servio demorte. Ele mesmo se encarregava. Ele, Loureno, o mais que fez foi bater. A palmatria, seunico instrumento. O resto, mandado de sangue e morte, quem executa Diamantino. Ou o pretoChico So-co-Soco. Certa vez bati quase at matar... Eu sei, filho, eu sei.Ambos sabiam. Tinha acontecido com o namorado de Irene, esse tal de Marcelino. Um mulatoespertalho que Irene desencatara na oficina. At data, Irene era acertada como convinha.Frequentava missa e o clube, sempre na reserva de si, calada com seus domsticos pensamentos.Margarida a conduzia, brao no brao, com orgulho de mais velha. Em Pebane, onde os brancosmais abundavam, de Irene se tirava proveito o bom exemplo da moa lusitana.Certa vez, desapareceram de casa documentos de elevada confidncia. O pai Castro distribuiupancada, despediu empregadagem. Mas a suspeita ficou sem moradia. Joaquim de Castro chamouseu filho e faiscou-lhe a ordem: Voc ande de olho nessa sua tia!Loureno quase bateu os taces, ansioso por cumprir misso e exibir provas perante o pai. J eleandava rondando as sadas da tia, por descargo de desconfiana. Irene dava inadmissveis

  • licenas ao mulato Marcelino. O sobrinho se atiava de rancores. Certa tarde, ele flagranteou osdois, trocando propaganda subversiva. Era a confirmao: essa Irene passava papeladas de casapara os da Frelimo.No foi preciso mais que esse momento: logo o sujeito pardo foi preso e Irene espancada etrancada em casa. Marcelino passou a vtima de eleio. Se pedia de um mulato maioresfidelidades ao regime dos brancos. Loureno, ele mesmo, se ofereceu para torturar o mecnico.Bateu, bateu tanto que as mos do outro se desfizeram, pasta vermelha, fluindo sem contorno. Foipreciso Diamantino separar Loureno e avis-lo de que o preso j h muito perdera os sentidos.No dia seguinte, Marcelino acorda com pancadarias. Batem-lhe na cara, na cabea, nas costas.Entre zumbidos e apitos, o mulato escuta gritos de mulher. a voz de Irene. Sbito, o inspectormanda parar a tortura: Esperem! No esto a ouvir?Os outros nada escutam. Mas Loureno de Castro se apercebe de uma qualquer presena. Esuspende a sesso.Na terceira noite, Marcelino se tentou suicidar. Com um osso que sobrara do jantar ele cortou ostestculos. Madrugada, o soalho estava ensopado de sangue. No se notava sobre a ceraencarnada que cobria de natural o cho. Encontraram o mecnico de ccoras, embrulhado namanta vermelha. Se mantivera assim para que se no notasse o sangramento.De repente, Irene irrompeu pela cela. Quem a chamara ali, naquele momento? Loureno sempredesconfiou ter sido o cego que cirandava nos arredores da priso. Irene correu a abraar o seuamado. Mas ele estava j vazio, seco at ao osso. Os olhos permaneceram escancarados,empedernidos. A vida ali s podia ser olhada por quem j nada via. Aqueles olhos se espetaramna alma de Loureno de Castro, como zagaia para sempre cravada em seu sossego. Agora, tantosanos depois, esse mesmo olhar ainda se vingava, subtraindo-lhe o sono. Quer que o adormea, filho? Me!? Estou aqui, meu querido. Me fale de tia Irene. Me fale dela, por favor. Deixe Irene em paz. Ela sua tia, quantas vezes j lhe disse? minha prenda de anos, me. Peo-lhe, peo-lhe tanto. Me fale dela e vai ver queadormeo logo. Me conte quando ela era moa...

  • 27 de Abril

    Ingnuo no o que acredita mas o que pensa que os outros tambm acreditamDesabafo de Loureno de CastroLoureno de Castro ostenta olhos de falecido, todo terminado, mas espantado de ainda viver. Oescuro vem de olhar a luz toda de repente? A queda do regime lhe parece to impossvel, que como se nada tivesse ocorrido. Uma inteira vida dedicada a uma causa tropeava no nada,transfeita uma catarata. O rio cai onde? No rio. Igual e igualmente, o desacontecimento do 25 deAbril, como j lhe deitavam nome. O tempo cai sobre o tempo como lagarto que se nutrisse desua prpria cauda. Loureno se interrogava: e agora que categoria lhe competia? Inspector, attulo desonorfico? Que futuro lhe cabia, agora, a contas com a injustia? Cabres, agora que vo vender esta merda aos comunistas. Que vendam, que isto tudo seafunde mais os pretos.Passa em revista a presena branca em Moebase, nestes ltimos dias. O administrador dodistrito? Tinha ido metrpole em misso. Partira em meados do ms de Maro, no dera maisnotcias. Ao que se dizia ia esclarecer assuntos delicados. Havia queixas sobre maus tratospraticados pela foras policiais. Dedos acusadores apontavam para Diamantino e Chico, os doiscastigadores. Quem os denunciou? Loureno de Castro suspeitava do padre Ramos, essemetedio em assuntos da governao. A propsito: onde parava agora o padre? Corriam rumoresde que ele tinha ido base dos guerrilheiros. Castro at rezava: oxal o padreco tenha pisadouma mina para saber com quantos paus se desfaz uma canoa. E Peixoto, o mdico? Esse era o queainda restava por ali. Suspeito, como todos, aos olhos de Castro. Pois ele sempre se recusara aassistir aos presos. Para o inspector o quadro de Peixoto tinha ttulo e moldura: um mole,descaroado, demasiadamente mdico. E muito metido a acompanhar Irene. Quem sabe, Deus operdoasse, tinha sido mesmo ele a engravidar a tia? Que mais brancos restavam? S ele eDiamantino. No era demasiada fortaleza para pouco soldado?Loureno encolhe os ombros, sacudindo responsabilidades. A poltica que fosse debicar emoutra capoeira. Afinal, tia Irene em estado lhe custava mais que as mudanas em Portugal. Irenelouca ainda era suportvel. Irene grvida, isso que no.O inspector procura pelo quarto seu pano de adormecer. No o encontra. Num canto est o restoquebrado do cavalinho. Ele segura os fios azuis da crina e os acaricia como se fossem cabelos.Finalmente, suas mos se despenham, sem substncia. Abre a gaveta e retira o revlver. Revira aarma como se nela procurasse espelho, a devoluo de sua alma. Vou matar aquele filho da puta daquele cego.Sai, passos decididos como se uma estranha fora o conduzisse. Encontra Andar atravessando aponte de madeira. O cego regressa de casa da adivinha. Consultara Jessumina para saber do 25de Abril: seria aquele o dia em que recuperaria as vises? Agora que vou ver? No. Voc tem que esperar por outro vinte e cinco.Andar Tchuvisco caminha com razes para tristeza. Seu passo se demora, ziguezagueando comocamaleo. Tem, por certo, medo de tombar. Ali onde o riacho se embarriga, dando sobras deguas, transvazado nos matagais. dessas noites escuras, at o luar parece negro. O cego nem

  • logo distingue a exacta presena. O portugus se achega a Tchuvisco, estende-lhe a pistola e diz-lhe: V o que trouxe para ti.O cego sorri, entre curioso e intrigado. Estende as mos e segura o revlver. Seu tacto, no incio,desconhece o objecto. As suas mos vidas cheiram a escura forma. De repente, sucumbem anteo descoberto. Loureno lhe retira a arma, com um saco. a mim que vem matar? H muito que eu sei quem tu s: um turra, preto-vermelho. Eu no sou da Frelimo, senhor Castro. Juro, no sou.Loureno de Castro no via caras nem coraes. Seu olhar era humano? A alma de um bichoespreitava naquelas janelinhas do rosto dele. De repente, um pontap cruza o ar e faz vergarAndar. O cego dobra um gemido, mais surpreso que dodo. O pide parece ter sido atingido pelomesmo golpe. Se queixa da perna, as duas mos cruzando os joelhos. Depois, se aquieta,quebrado quem sabe por remorso. Se senta no passeio e deixa pausar um silncio. Espreita oagredido, quer certificar-lhe o acaso de um sangue. No sei por que te bati. No sou um terrorista. Eu disse a verdade. Queres saber a verdade? Pois, a verdade que j no quero l saber dessa merda, issomorreu tudo para mim. Ento por que me quer matar? Por causa de Irene! Irene? Ela est prenha.O cego se endireita, gemente. O pontap, em suas costelas, ainda no se esquecera do resto docorpo. Como se ainda estivesse ali a bota, se espetando na carne e no osso. Voc pensa que fui eu que engravidei Irene? No fui, nunca me rapazinhei com ela. Juro,nunca pombinhmos os dois.O portugus se distrai em sua derrocada, cabea entre os braos. A arma esquecida, ao lado,tornada em inutenslio. Lentamente, o cego se aproxima da pistola. Se senta junto, s apalpadelasele vai sondando o escuro. Andar tacteia a arma e disfara-a por trs das costas. De repente, seergue num salto, corpo em jacto. Num fulminar, a pistola relampeja em sua mo. O portugus nose refaz do susto, desolhudo perante a transmudana. O cego agarra-o. Uma mo o enrodilha pelopescoo, outra mo segura a pistola. Arrasta-o, arma bem cravada na testa. Agora, Loureno de Castro, agora sou eu que o vou matar a si.O pide est to surpreendido que nem reage. Est ali, pela primeira vez, merc dedesqualificado inimigo. E j confere despacho a sua alma, antecipado no derradeiro juzo. Mas ocego no parece apressado em desferir sentena. Ao contrrio, ele senta sua voz num convite amuitos dedos de conversa. Voc se lembra de mim no jogo da sirumba?O portugus, esgazelado, olha Andar como se o desconhecesse. No se lembra, senhor Castro? Jogo da sirumba? Deves estar a gozar comigo. Jogmos sirumba, juntos. No lembra? ramos crianas, voc e mais eu. Brincmos juntos,no recorda?

  • No lembro a ponta de um corno. Foi uma nica vez. ramos equipa de Pebane, no lembra? Ganhmos aos de Moebase,ganhmos aos do Gil.Se o cego enxergasse direito, repararia num rebrilho nos olhos do branco. Mas foi luz de poucadurao. Pois logo a voz de Andar lhe faz tombar o rosto. Brincmos, no enquanto fomos crianas. Depois, lhe proibiram. Seu pai proibiu. Voc atapanhou por causa de brincar com gente da nossa raa. No lembra ter apanhado? Apanhei tantas vezes... Mas dessa vez foi por causa de mim. E isso eu no esqueo.Andar pega na arma e atira-a para longe, como se lanasse pedra lua escura. Se escutou obaque do revlver em solo de gua. Parecia era o chapinhar do p do diabo, em retirada domundo. Agora, se cala e me escute de uma vez.Tchuvisco enche o peito e desata a lembrana. Sua vida desfila, um rosrio de palavra. Que eleentrara cedo na vida do pai Castro, em Pebane. Sua cegueira no era de nascena. Nesse tempoele e o mundo se olhavam, olhos nos olhos. Suas artes eram a pintura dos carros, biscate naoficina de Custdio Juma e do mulato Marcelino. Fora recomendado pelos padres. Eles queriamque ele sasse da escola da misso porque achavam que ali se formavam subversivos, quadrosnacionalistas.Assim, foi mandado ajudar nos servios da cadeia. Seu trabalho era pintar as salas de tortura.Era essa a tara de Joaquim de Castro. Sangue era coisa para ser lavada, no imediato cho. Mas opavimento estava preparado de vermelho, encerado das cores do sangue. Nas paredes, no tecto:isso que no. Assim, todas as tardes ele passava a inspeccionar a branquido das paredesinteriores da priso. Nessas visitas ele viu muita coisa, assistiu a casos que nem devia. E noforam s porradas, palmatoagem, torturas. Vi outros abusos, ofensas sexuais.O praticante era o pai Castro. Sim, ele mesmo. O inspector Joaquim de Castro se roava, lascivo,pelos presos. Depois de bem batidos, ele os chamava e lhes acariciava as pernas, as costas, asndegas. Depois, consumava amores forados com os prisioneiros. Sem querer, surpreendi seu pai numa dessas desavergonhices.Se suspendeu, encostado no silncio da parede, esquecido que era aparecvel mancha nessefundo branco. Flagranteado, Castro ordenou que ele ficasse preso a partir desse instante. No erao medo de cometer abusos que o amedrontava. Todos os pides o praticavam. O que lhe traziaangstia era descobrir-se que ele trocava sexo com homens, ainda por cima pretos. Durante umastantas noites adiante, o pai Castro se enormizava, de encontro parede: Vou mat-lo. Eu no vi nada, patro. Te arranco a lngua. Mais os dentes, a maxila, o focinho todo inteiro.De cada vez que Joaquim de Castro entrava na cela Andar exercia o acto de contrio, crendoter chegado o penltimo suspiro. E chorava, convulso: Eu no vi nada. Juro que no vi. No viste, nem vais ver. Ai de ti, se abres o bico.Aconteceu o seguinte: a imprevista no sucedncia. Isto , Andar no foi morto. Ou como sedizia na linguagem da PIDE: no foi desacordado. Porqu? Talvez que sendo protegido dos

  • padres, o moo ganhasse vantagem. Os padres j no andavam de muita satisfeio com os maustratos cometidos pela polcia colonial. Se Andar se extinguisse haveria muita perguntao. E oCastro no podia ter certeza de que o moo no tinha j falado.O pide no podia deixar o destino em mos alheias. O plano se desenhou em sua mente. Malditoe feito. O pintor seria convertido em cego. Depois, se transfeririam todos para outro lugar.Andar Tchuvisco viria com a famlia Castro para Moebase, fosse um moo adoptivo. Nesseoutro lugar, seria apresentado como se fosse cego de nascena. Assim se anularia a possibilidadede ele alguma vez ser denunciado. E foi tudo isto que se sucedeu, foi assim que fiquei cego.Andar parece ter expirado os prprios pulmes. A confisso lhe desfolegou as entranhas,cansando-o at ao limite. Loureno de Castro, ao contrrio, parece ter perdido funes. Demoravir superfcie. Mas se faculta, veemente: Mentira! Isso mentira!O portugus se encrocodila, a raiva parece incendi-lo. Se ergue e descaminha, evoluindo denada para nenhures. Vai repetindo: mentira, mentira!O portugus se afasta, rumo aos pntanos. Suas pernas se afundam no falso cho, areiasmovedoras. O pide se deixa engolir pelas trevas. De longe, o cego grita: Mentira eu ser completamente cego. Est ouvir, seu tuga da merda? Porque eu, caraas,ainda vejo sombras. Sombras, como voc.Mas o portugus j no escuta. Est encostado num tronco de mangal, naufragado no meio domatope. Ele devia ter raiva, querer morder, matar. Mas, agora, ele quer ser nada, simplesmigalha de nenhuma coisa. como se uma nuvem se esfarrapasse e o cu todo se desmanchasse.E ele j no tivesse nem pensamentos nem vontades. Todo o seu querer ficou nesse outro que elefoi. Agora, Loureno um bzio que ensurdeceu.

  • 28 de Abril

    Certa vez eu vi a grande ave dos oceanos.Tinha chegado costa exausta e embateu num farol. As grandes asas estavam quebradas. Euolhei aquele bicho como olho os homens brancos. Pssaros de asas viajadorasmas que chocamcontra luzes que e


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