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1A EXCEO E A REGRA Pea didtica escrita em 1929/1930 Texto de Bertolt Brecht Traduo de Geir Campos Personagens: COMERCIANTE GUIA CULE DOIS POLICIAIS ESTALAJADEIRO JUIZ CHEFE DA SEGUNDA CARAVANA DOIS JUZES ADJUNTOS MULHER DO CULE

OS ATORES Agora vamos contar A histria de uma viagem Feita por dois explorados e por um explorador. Vejam bem o procedimento desta gente: Estranhvel, conquanto no parea estranho Difcil de explicar, embora to comum Difcil de entender, embora seja a regra. At o mnimo gesto, simples na aparncia, Olhem desconfiados! Perguntem Se necessrio, a comear do mais comum! E, por favor, no achem natural O que acontece e torna a acontecer No se deve dizer que nada natural! Numa poca de confuso e sangue, Desordem ordenada, arbtrio de propsito, Humanidade desumanizada Para que imutvel no se considere Nada.

21. CORRIDA NO DESERTO Uma pequena expedio cruza apressadamente o deserto. COMERCIANTE (a seus dois acompanhantes, o Guia e o Cule que vai levando as bagagens) Depressa, seus moleires! Precisamos chegar ao posto de Han dentro de dois dias, pois temos de levar um dia de vantagem, custe o que custar. (Ao pblico) Eu sou o comerciante Karl Langmann e vou de viagem para a cidade de Urga, onde espero fechar o negcio de uma concesso. Meus concorrentes vm a atrs de mim. O negcio de quem chegar primeiro. Graas minha esperteza, e minha disposio para vencer quaisquer dificuldades, e dureza com que sempre tratei todo o meu pessoal, at aqui a viagem foi feita quase que na metade do tempo que costuma levar. Por azar meus concorrentes parecem ter alcanado tambm uma rapidez igual. Olha para trs, com o binculo. L vm eles de novo vejam s: sempre nos meus calcanhares! (Ao Guia) Por que voc no d em cima desse cule? Foi para isso que contratei voc! Mas, pelo visto, o que querem fazer turismo s minhas custas. Voc nem faz idia do quanto custa uma viagem destas: porque o dinheiro no de vocs! Se vai continuar me sabotando, eu fao queixa de voc na Agncia, assim que chegarmos em Urga! GUIA (ao Cule) Veja se pode apertar mais o passo! COMERCIANTE Sua garganta no d o tom certo: nunca h de ser um guia de verdade. Eu devia ter chamado um mais caro. Os outros esto cada vez mais perto. Bata nesse rapaz, para ele andar! Vamos, que est esperando? Eu no sou favorvel pancada, mas agora s batendo! Se eu no chego primeiro, estou falido! Para o transporte da minha bagagem, voc foi, chamar logo o seu irmo. Foi ou no foi? Confesse! No bate nele porque seu parente. Eu sei muito bem como vocs so: no que lhe falte brutalidade. Ou voc bate nele ou est despedido! Depois pode ir queixar-se na Justia por causa do salrio. Meu Deus do cu, eles esto nos alcanando! CULE (ao Guia) Pode bater em mim, mas no com muita fora, pois se ainda temos de andar at o posto de Han, no posso gastar minhas energias todas de uma vez s. (O Guia bate no Cule) Gritos vindos de trs Ei, pessoal! Este caminho o que vai dar em Urga? Somos de paz! Esperem por ns! COMERCIANTE (no responde e no olha para trs) Diabos os levem! Vamos em frente! H trs dias que eu venho forando o meu pessoal a andar: dois dias com insultos, um dia com promessas. O resto a gente v depois, em Urga. E os concorrentes sempre nos meus calcanhares, mas na segunda noite andamos sem parar, nem para tomar flego, e consegui escapar da vista deles, para no terceiro dia chegar ao posto de Han, um dia na frente de qualquer outro. (Canta) Como eu no dormi no ponto, levei vantagem. Como eu no desanimei, vim mais ligeiro. Para trs ficam os fracos, o forte chega primeiro.

32. FIM DA BATIDSSIMA ESTRADA COMERCIANTE (ante o posto de Han) Aqui est o posto de Han. Cheguei um dia na frente de qualquer outro, graas a Deus. Meus homens esto exaustos e, alm de tudo, amoladssimos comigo. No sabem dar valor a um recorde batido. No so de luta, no so, de nada: uma corja da mais baixa qualidade, que anda de rastos. claro que no ousam dizer nada, porque, graas a Deus, a polcia est ai para manter a ordem. DOIS POLICIAIS (aproximando-se) Tudo bem, cavalheiro? Tudo em ordem? Ento, gostou da estrada? Seu pessoal trabalhou direitinho? COMERCIANTE - Tudo bem, tudo em ordem. At aqui fiz a viagem em trs dias em vez de quatro. A estrada uma porcaria, mas eu costumo levar a bom termo todos os meus empreendimentos. E do posto em diante, como est a estrada? Qual a prxima etapa? DOIS POLICIAIS - Agora, meu senhor, vem o deserto de Jahi, inteiramente desabitado. COMERCIANTE - E uma escolta policial, no se pode arranjar? DOIS POLICIAIS (seguindo adiante) No, meu senhor. A ltima patrulha que o senhor poderia encontrar somos ns, meu senhor. 3. DISPENSA DO GUIA NO POSTO DE HAN GUIA - Depois daquela conversa com os policiais, na estrada em frente ao posto, nosso comerciante est muito mudado. O tom em que ele nos fala outro, bem diferente: quase amistoso. Isso nada tem a ver com o ritmo da viagem, porque para este posto, que o ltimo antes do deserto de Jah, ele tambm no programou nem um dia de descanso. No sei o jeito que vou dar para ir tocando esse carregador at Urga, exausto como ele est. Em tudo por tudo me deixa muito preocupado essa atitude amistosa do comerciante: receio que ele esteja planejando alguma coisa contra ns. Ele anda de um lado para outro mergulhado em seus pensamentos: quanto mais pensamentos, mais patifarias. Esteja ele tramando o que estiver, quem tem que agentar somos eu e o carregador, seno ele no paga o que nos deve ou manda-nos embora no meio do deserto. COMERCIANTE (aproximando-se) No quer um pouco de fumo? E papel de cigarro, tem aqui. Por uma tragadinha de fumaa vocs seriam capazes de entrar no fogo. No sei o que vocs seriam capazes de aprontar para conseguir enfiar essa fumaa pela goela. Graas a Deus temos o suficiente conosco. Nosso fumo d para ir trs vezes at Urga. GUIA (de si para si, aceitando o fumo) Nosso fumo! COMERCIANTE - Vamos sentar-nos um pouquinho, amigo. Por que no se senta? Uma viagem como esta acaba criando uma ligao humana entre as pessoas. Mas, se no quer, pode ficar em p, naturalmente. Vocs tambm tm l os seus costumes.

4No de hbito eu me sentar com voc, nem voc com um carregador: sobre tais diferenas que o mundo est edificado. Mas ns podemos fumar juntos, no? (Ri). Isso uma coisa que eu aprecio em voc. tambm uma forma de dignidade. Ento pode ir arrumando a bagagem. E no se esquea da gua. Neste deserto parece que h poucos poos. Alm do mais, meu amigo, eu queria lhe dar mais um aviso: reparou bem no olhar daquele carregador, quando voc deu um pouco mais duro nele? Ele tinha nos olhos qualquer coisa que no me pareceu de bom sinal. E nos prximos dias voc ainda vai ter que dar mais duro nele, pois possvel que ainda precisemos apertar mais o passo. E ele mesmo um grande preguioso. A regio em que vamos entrar agora inteiramente desabitada: a talvez ele queira mostrar a verdadeira face. Voc, que um homem de melhores qualidades, naturalmente ganha um pouco mais e no precisa ir carregando nada: razo bastante para ele odiar voc. bom ficar um pouco longe dele. (Por uma porta aberta, o Guia passa para o ptio ao lado. O Comerciante fica sentado sozinho). Essa gente engraada! Ali perto, o Guia vigia o Cule que est arrumando a bagagem. Depois, senta-se e fuma. O Cule, ao terminar, senta-se tambm, aceita fumo e papel que o outro lhe oferece, e comeam os dois a conversar. CULE O comerciante sempre diz que tirar petrleo da terra um servio que se presta humanidade: quando o petrleo tirado da terra, abrem-se estradas de ferro e o bem-estar geral. Diz o comerciante que aqui vai ter estrada de ferro. E eu, ento, como que vou ganhar a vida? GUIA Pode ficar descansado. No vai haver estrada de ferro aqui to cedo. Ouvi dizer que o petrleo, se uma pessoa descobre, logo aparece outra pessoa e esconde: quem tapa um furo de onde sai petrleo recebe um dinheiro para guardar segredo. E por isto que o nosso comerciante est com tanta pressa: o que ele quer mesmo no o petrleo, o dinheiro para guardar segredo. CULE No compreendo. GUIA Ningum compreende. CULE O caminho, agora pelo deserto, vai ser pior do que foi at aqui. Minha esperana que meus ps agentem. GUIA - Naturalmente, vo agentar. CULE No h assaltantes pelas redondezas? GUIA S no primeiro dia de viagem, que vai ser hoje, precisamos ir de olhos bem abertos: nas vizinhanas do posto, juntam-se marginais de todo tipo. CULE E depois? GUIA Quando deixarmos para trs o rio Mir, s seguirmos a linha dos poos de gua. CULE E o caminho, voc sabe? GUIA Sei.

5O Comerciante, ouvindo rumor de vozes, pe-se atrs da porta, escuta. CULE O rio Mir difcil de atravessar? GUIA Nesta poca do ano, em geral, no. Mas enchente, a correnteza fica muito forte, e h perigo de vida. quando h uma

COMERCIANTE - Com o carregador, ele conversa. Com ele, ele se senta! Com ele, ele fuma! CULE - E a, ento, como que a gente faz? GUIA Agente s vezes tem que esperar oito dias at poder atravessar para a outra margem sem nenhum risco. COMERCIANTE Vejam s! Ele ainda est dando conselho ao outro para no se apressar e cuidar bem da preciosa vidinha! A est um sujeito perigoso: vai acabar tomando as dores do outro. Est-se vendo que no o homem para tomar as providncias necessrias. Se no for capaz de coisa pior! Assim, de agora em diante, eles so dois contra um. Ele, pelo menos, d a entender claramente que no vai ter coragem de tratar o subordinado com a dureza necessria, agora que vamos entrar numa regio desabitada. Preciso dar um jeito de ficar livre dele. (Aproxima-se dos dois). Mandei voc tomar conta, para a bagagem ser bem arrumada: agora vamos ver se fez o que eu mandei. (Repuxa com fora uma das correias da amarrao at arrebentar). Isso bagagem arrumada? Se a correia arrebenta no caminho, um dia que vamos ficar parados. Mas voc est querendo isto mesmo: ficar parado. GUIA Eu no quero parar coisa nenhuma. E se ningum puxar com tanta fora, a correia no vai arrebentar. COMERCIANTE Como? Ento ainda quer me desmentir? Essa correia arrebentou ou no? Tenha a coragem de dizer, na minha cara, que a correia no est arrebentada! No posso mais confiar em voc. Quando tentei tratar vocs decentemente, eu cometi um erro: com vocs no se pode fazer isso. No preciso de um guia que no sabe impor respeito ao resto do pessoal. Voc parece mais capacitado para ser carregador, e no para ser guia. Tenho razes at para desconfiar que anda enchendo os ouvidos do pessoal. GUIA E que razes so essas? COMERCIANTE Isso o que voc gostaria de saber! Pois est despedido! GUIA - Mas no pode me despedir assim, no meio da viagem. COMERCIANTE - Considere-se ainda um felizardo, se eu no for fazer queixa de voc na Agncia, em Urga! Aqui est o seu salrio: exatamente at o dia de hoje. (Chama o Estalajadeiro, que se faz presente). O senhor testemunha: estou pagando o salrio devido. (Ao Guia) E a voc eu vou dizendo, desde j: em Urga, melhor no aparecer na minha frente. (Mede-o com o olhar, de alto a baixo). Voc nunca h de ser nada na vida. (Vai com o Estalajadeiro para o outro recinto). Eu j estou de

6partida. Se acontecer alguma coisa comigo, o senhor testemunha de que eu sa daqui hoje sozinho com aquele homem! (Indica o Cule no ptio). O Estalajadeiro d a entender, por meio de gestos, que no est compreendendo nada. COMERCIANTE (perplexo) Ele no me entende. Neste caso, no haver pessoa alguma para dizer para onde eu fui. E o pior essa corja saber que no h ningum. O Comerciante senta-se e escreve uma carta. GUIA (ao Cule) Foi um erro eu me sentar com voc. Fique de olho, que esse sujeito no presta! (D ao Cule o prprio cantil). Fique com este cantil de reserva, bem escondido. Se vocs se perderem como que voc pode acertar o caminho? ele, com toda a certeza, vai lhe tomar o cantil. Agora eu vou lhe ensinar o caminho. CULE - No faa isso. Ele no deve nos ver conversando: se me mandar embora, estou perdido. E a mim ele nem tem que pagar nada, porque eu no sou sindicalizado como voc. Eu tenho que me submeter a tudo. COMERCIANTE (ao Estalajadeiro) Esta carta para ser entregue s pessoas que devem chegar aqui amanh e tambm vo para Urga. Eu vou continuar minha viagem, s com o carregador. ESTALAJADEIRO (recebendo a carta, com uma mesura) Mas ele no guia. COMERCIANTE (de si para si) Ah, ento ele bem que compreende! Antes fingia no compreender: ele sabe como so essas coisas e no queria servir de testemunha. (Ao Estalajadeiro, secamente) Faa o favor de ensinar ao meu carregador o caminho de Urga! O Estalajadeiro sai e comea a explicar ao Cule o caminho para Urga. O Cule, solcito, faz com a cabea repetidos sinais afirmativos. COMERCIANTE - J estou vendo que vai ser uma luta. (Tira o revlver do coldre e pe-se a limp-lo. Entrementes, canta) Quem morre o homem doente O homem forte vai em frente. Por que haveria a terra De entregar o seu petrleo? Por que haveria o cule De levar minha bagagem? Pelo petrleo lutemos Contra a terra e contra o cule E essa luta tem um lema: Quem morre o homem doente O homem forte vai em frente. COMERCIANTE (passando ao outro ptio, pronto para partir) Ento, j sabe o caminho? CULE Sei, sim senhor.

7COMERCIANTE - P na estrada. Saem o Comerciante e o Cule. O Estalajadeiro e o Guia os seguem com o olhar. GUIA - No sei se o meu colega chegou a aprender bem. Acho que ele aprendeu muito depressa. 4. CONVERSA EM LUGAR DE PERIGO CULE (cantando) Eu estou indo para a cidade de Urga Vou caminhando sem descanso para Urga No h assaltantes que me impeam de ir a Urga Nem o deserto me impede de ir para Urga Em Urga tem comida e pagamento. COMERCIANTE - Como esse cule despreocupado! Num lugar infestado de assaltantes e delinqentes de todos os tipos, que se amontoam nas vizinhanas do posto, ele ainda canta. (Ao Cule) Nunca fui muito com aquele guia: em certas horas me parecia grosseiro, em outras falando manso demais. No me dava a impresso de um homem honesto. CULE - Sim, patro. (Continua a cantar) So muito duras as estradas at Urga Espero que meus ps agentem at Urga So sofrimentos incontveis at Urga Mas l em Urga tem descanso e pagamento. COMERCIANTE - Por que est to alegre e canta tanto, meu amigo? No tem medo nenhum dos assaltantes? Pensa que de seu, mesmo, no podem tirar nada, pois nada lhe pertence: o que voc tem a perder, pertence a mim... CULE (cantando) Tambm minha mulher me est esperando em Urga Tambm o meu filhinho me est esperando em Urga Tambm... COMERCIANTE (interrompendo-o) No me agrada essa sua cantoria. Motivo de cantar ns no temos nenhum. E a sua voz se ouve daqui at Urga: a melhor maneira de atrair a corja inteira para c. Amanh voc pode cantar mais, quanto quiser. CULE - Sim, patro. COMERCIANTE (andando na frente) Ele no resistiria nem um instante, se lhe quisessem roubar o carregamento. Que faria ele? A obrigao dele seria defender o que meu como se fosse dele, contra todos os riscos. Mas isso o que ele no faria nunca! Gente ruim! E tambm no diz nada: esses so os piores. No sei o que tem dentro daquela cabea. Em que estar pensando? No tem nada para achar graa, e ri. Est rindo de qu? Por que ser que me deixa ir na frente, por exemplo? Quem sabe o

8caminho ele. Aonde ser que me est levando? (Olha para trs e v o Cule apagando, com um pano, os rastros deixados na areia). Que est fazendo? CULE Estou apagando os nossos rastros, patro. COMERCIANTE - Por que est fazendo isso? CULE Por causa dos assaltantes. COMERCIANTE Ah, sim, por causa dos assaltantes. Mas algum precisa ver para onde que voc est me levando. Por que que voc vem atrs de mim? Passe na frente! (Continuam a andar em silncio. O Comerciante fala consigo mesmo) Nesta areia, de fato, os rastros ficam muito visveis. Naturalmente, pensando melhor, seria timo apagar os rastros. 5. NA BEIRA DO RIO EM ENCHENTE CULE - Nosso caminho era o certo, patro. O que estamos vendo a o rio Mir. Nesta poca do ano ele no costuma ser difcil de atravessar; mas na enchente ele puxa com muita fora e a gente corre perigo de vida. E agora ele est na enchente. COMERCIANTE - Precisamos passar para o outro lado. CULE s vezes a gente precisa esperar oito dias, at poder passar para o outro lado sem nenhum risco. COMERCIANTE Isso o que ns vamos ver! No podemos ficar nem um dia esperando. CULE - Ento precisamos achar um vau ou uma canoa. COMERCIANTE - Vai demorar muito. CULE - Mas eu no nado direito. COMERCIANTE - O rio no est to cheio assim. CULE (sondando as guas com um pau) Para mim no d p. COMERCIANTE - Quando estiver dentro d'gua, voc vai logo sair nadando. No vai poder fazer outra coisa. Ora, voc no capaz de uma viso como eu tenho. Por que razo ns temos de chegar a Urga? Ento voc no v, seu idiota, que um servio que se presta humanidade quando se tira petrleo da terra? Quando o petrleo tirado da terra, abrem-se estradas de ferro e o bem-estar geral: tem po e tem comida, e Deus sabe o que mais. E quem que vai fazer isso? Ns. Tudo depende da nossa viagem. Imagine que todos os olhos deste pas esto voltados para voc, um homenzinho s! E voc ainda hesita em cumprir o seu dever? CULE (que durante a fala acenou respeitosamente com a cabea) Eu no sei nadar direito.

9COMERCIANTE - Eu tambm estou arriscando a minha vida. (O Cule concorda respeitosamente com acenos de cabea). No entendo voc. Levado por consideraes mesquinhas e gananciosas, no tem nenhum interesse em chegarmos a Urga o mais cedo possvel: para voc, quanto mais tarde melhor, porque pago por dia de trabalho. A viagem no o que lhe interessa: voc s pensa no seu salrio. CULE (parado beira-rio, hesitante) O que que eu devo fazer? (Canta)

10C est o rio. Atravess-lo a nado perigoso. Na beira d'gua esto dois homens. Um faz a travessia a nado, o outro Hesita. Ser corajoso um deles? Ser covarde o outro? Na outra margem Do rio, um tem um negcio a fazer. Do perigo sai um Respirando aliviado na margem alcanada. Vai pisar no que seu. Vai ter comida fresca. J o outro sai do perigo A arquejar para o nada. Esperam por ele, o debilitado, Perigos novos. Sero ambos valentes? Sero ambos prudentes? Ah, do rio que os dois venceram juntos No saem dois vencedores. Ns e: eu e voc No a mesma coisa. Ns tivemos a vitria Mas a mim voc venceu. Me deixe descansar pelo menos a metade de um dia! Estou cansado de carregar a bagagem. Tendo um descanso, talvez eu possa chegar margem de l. COMERCIANTE - Eu sei de um jeito melhor: vou encostar o cano do revlver nas suas costas! Quer apostar como chega logo outra margem? (Vai empurrando o Cule na frente e diz consigo mesmo) Meu dinheiro me faz ter medo dos ladres e esquecer o rio. (Canta) assim que o homem supera O deserto e o rio em alta Supera a si mesmo e alcana O petrleo de que h falta. 6. ACAMPAMENTO NOTURNO Ao anoitecer, o Cule, com um dos braos quebrado, procura armar a tenda. O Comerciante est perto, sentado. COMERCIANTE - Eu j disse que hoje voc no precisava armar a tenda, porque na travessia do rio quebrou o brao. (O Cule contnua em silncio o que estava fazendo). Se eu no o puxasse para fora d'gua voc teria morrido afogado. (O Cule continua). Embora eu no tenha culpa do acidente aquele tronco de rvore podia muito bem ter batido em mim e no em voc essa uma desgraa que lhe aconteceu quando voc estava em viagem comigo. O dinheiro que eu tenho aqui muito pouco, mas o meu Banco fica em Urga e l eu indenizo voc.

11CULE - Sim, patro. COMERCIANTE - Que resposta mais seca! Cada vez que me olha para me fazer sentir que eu o prejudiquei. Esses carregadores so uma cambada de gente maldosa! (Ao Cule) Voc pode ir se deitar. (Afasta-se e vai sentar-se mais longe). Garanto que a desgraa do brao quebrado incomoda a ele menos do que a mim: essa gentinha no faz muita questo de estar inteira ou mutilada, e no enxerga nada mais alto que a beira do prato. Doentes por natureza, nem se preocupam mais consigo mesmos. Assim como quem joga fora uma coisa que no saiu certo, eles jogam fora suas prprias pessoas, que saram erradas. S quem d certo que luta! (Canta) Quem morre o homem doente, o homem forte vai em frente E assim est bem. Ao forte todos ajudam, e o fraco no tem ningum, E assim est bem. Deixa cair o que cai, e d-lhe um pontap mais, E assim est bem. Quem se senta mesa quem a maior vitria tem, E assim est bem. Os que na batalha tombam o cozinheiro no conta. E assim faz bem. Deus, que fez todas as coisas, fez o patro e o empregado, E assim fez bem. E o bom quem vive bem, quem vive mal o malvado, E assim est muito bem. O Cule aproximou-se. O Comerciante assusta-se ao v-lo. COMERCIANTE - Ele estava escutando! Alto! Pare a! O que que voc quer? CULE - Patro, a tenda est pronta. COMERCIANTE - Voc no fique deslizando por a, de noite: eu no gosto disso. Quando algum chega perto, eu quero ouvir os passos. E tambm, quando falo com uma pessoa, eu gosto de olhar para os olhos dela. V se deitar, no se preocupe demais comigo. (O Cule retira-se para o fundo). Espere! Voc fica na tenda! Eu fico sentado aqui, porque estou acostumado com o ar fresco. (O Cule entra na tenda). Eu bem que gostaria de saber o que foi que ele ouviu do que eu cantava. (Pausa). Que estar ele fazendo agora? Continua ocupado com alguma coisa. V-se o Cule na tenda, preparando cuidadosamente sua cama. CULE - Tomara que ele no perceba nada. No fcil cortar bem o capim, com um brao s. COMERCIANTE - Estpido quem no toma cuidado. Confiar sinal de estupidez! Por minha causa, esse homem sofreu um acidente que capaz de deix-lo aleijado para o resto da vida: inteiramente justo que ele queira ir forra. E o homem forte, quando est dormindo, no mais forte do que o homem fraco quando est dormindo. O ser humano no devia ter necessidade de dormir. claro que seria muito melhor estar

12sentado dentro da tenda; aqui, ao relento, pode-se pegar uma doena. Mas qual doena seria to perigosa quanto a criatura humana? Por pouco dinheiro esse homem faz uma caminhada comigo, que tenho muito dinheiro. Mas a estrada to cansativa para um quanto para o outro. Quando ele dava mostras de cansao, acabava apanhando. Quando o guia foi sentar-se com ele, mandei o guia embora. Quando ele, talvez mesmo por causa dos ladres, ia apagar os nossos rastros na areia, viu-se tratado com desconfiana. Quando deu sinal de medo, na beira do rio, teve de olhar para o cano do meu revlver. Como que eu vou dormir na mesma tenda com um homem desses? A mim ele no convence de que est conformado com tudo isso! Eu s queria saber o que ele est maquinando l dentro! (V-se o Cule, na tenda, deitandose tranqilamente para dormir). Eu seria um louco se fosse para aquela tenda. 7. A GUA PARTILHADA (A) COMERCIANTE - Por que fica a parado? CULE - Patro, a estrada termina aqui. COMERCIANTE - E agora? CULE Se for para bater em mim, patro, no machucado. Daqui em diante eu no sei mais o caminho. bata no meu brao

COMERCIANTE E aquele homem do posto de Han no explicou a voc? CULE - Explicou, patro. COMERCIANTE Quando eu lhe perguntei se tinha compreendido, voc no disse que tinha? CULE Disse, patro. COMERCIANTE E ento no tinha compreendido tudo? CULE No, patro. COMERCIANTE E por que disse que tinha? CULE Eu tinha medo que o senhor me despedisse. S sei que a gente vai seguindo os poos d'gua. COMERCIANTE Ento siga os poos d'gua! CULE Mas eu no sei onde eles esto. COMERCIANTE Siga em frente! E no tente me fazer de idiota. Sei muito bem que j passou por aqui antes. Continuam a marcha.

13CULE - Mas no seria melhor esperarmos pelos que vm atrs de ns? COMERCIANTE No. Continuam a marcha. (B) COMERCIANTE - Mas, afinal, para onde voc est indo? Assim vai para o norte; o leste l. (O Cule toma a nova direo). Alto a! Que foi que deu em voc? (O Cule fica parado, sem olhar para o Comerciante). Por que no me olha de frente? CULE - Pensei que o leste ficasse daquele lado. COMERCIANTE Espere, seu vagabundo! Eu j lhe ser meu guia! (Bate nele). Agora sabe onde que fica o leste? CULE (com um berro) Nesse brao no! COMERCIANTE - Onde fica o leste? CULE - L. COMERCIANTE - E onde ficam os poos d'gua? CULE - L. COMERCIANTE (enfurecido) L? Mas voc estava indo para l! CULE - No, patro. COMERCIANTE - Ento voc no estava indo para l? No era para l que voc estava indo? (Bate no Cule). CULE - Era, patro. COMERCIANTE - Onde que ficam os poos d'gua? (O Cule no responde. O Comerciante fala, aparentemente calmo) Voc no disse ainda h pouco que sabia onde ficavam os poos d'gua? Sabe mesmo? Sim ou no? (O Cule no responde e novamente espancado). Sim ou no? CULE - Sim. COMERCIANTE (batendo mais) Ento voc sabe? CULE No. COMERCIANTE - Passe para c o seu cantil. (O Cule entrega o cantil). Eu poderia agora partir do princpio de que essa gua toda minha, porque voc me guiou mal. Mas isso eu no vou fazer: vou repartir a gua com voc. Beba um gole, e depois vamos em frente.(De si para si) - Eu me esqueci; numa situao como esta, eu no devia ter batido nele. mostro como deve

14Eles vo adiante. (C) COMERCIANTE - Por aqui ns j passamos: veja s as marcas dos nossos ps. CULE Quando passamos por aqui, ainda no podamos estar muito longe do caminho. COMERCIANTE - Pode armar a tenda. O nosso cantil est vazio. No meu tambm no tem mais nada. (Senta-se no cho enquanto o Cule arma a tenda e s escondidas bebe gua do prprio cantil. Diz de si para si) - Ele no deve perceber que eu ainda tenho gua; seno, se tiver na cabea uma nica centelha de bom senso, ele me mata. Se chegar perto de mim leva um tiro. (Tira o revlver do coldre e pe no colo). Se ao menos pudssemos voltar ao ltimo poo por onde passamos! Minha garganta est completamente seca. Por quanto tempo um homem ser capaz de suportar a sede? CULE - melhor entregar a ele o cantil cheio que o guia me deu no posto. Seno, se nos encontrarem e eu ainda estiver vivo, com ele assim quase morto de sede, podem me processar. O Cule apanha o cantil cheio e encaminha-se para o Comerciante que, ao v-lo de repente de p a sua frente, no sabe se ele o viu bebendo ou no. O Cule no o viu bebendo gua e estende-lhe o cantil em silncio. Mas o Comerciante, pensando que o outro tem na mo um grande marco de pedra e est com raiva a ponto de querer mat-lo, comea a gritar. COMERCIANTE - Jogue fora essa pedra! (Com um tiro de revlver, abate o Cule, no momento em que, sem nada compreender, o outro continua a oferecer-lhe o cantil com gua). Ento mesmo! Pronto, seu animal. Voc agora recebeu o que merece. 8. CANO DOS TRIBUNAIS Entoada pelos atores enquanto amimam o palco para a cena do Tribunal Seguindo o rastro dos salteadores Surgem os tribunais. Depois que o inocente trucidado Renem-se em volta dele os juzes e ele condenado. Em torno cova do trucidado Tambm o seu direito mutilado. Dos tribunais as sentenas se precipitam Quais sombras de faces de magarefes. Um falco desses tem fora bea e dispensa O contrapeso de qualquer sentena. Olhem: um vo de abutres! Aonde vo? Do deserto, onde no h nada mais, Fogem, para comer nos tribunais. Os assassinos l esto. Os perseguidores

15Em segurana l esto. E os que roubam Vo l esconder seus roubos, enrolados Num papel onde h uma lei lavrada. 9. JULGAMENTO O Guia e a Mulher do morto j esto sentados na sala do Tribunal. GUIA ( Mulher) - A senhora no mulher do morto? Eu sou o guia que contratou seu marido. Ouvi dizer que neste processo a senhora pede uma punio para o comerciante e uma indenizao. Eu vim logo para c, pois tenho a prova de que o seu marido foi morto sem culpa alguma: est aqui na minha saca. ESTALAJADEIRO (ao Guia) Se eu ouvi bem, voc tem uma prova em sua saca. Mas eu lhe dou um conselho: deixe a prova dentro da saca. GUIA - E a mulher do carregador: h de sair daqui de mos vazias? ESTALAJADEIRO - Ou voc quer ir para a lista negra? GUIA - Eu vou pensar melhor no seu conselho. Os membros do Tribunal ocupam seus lugares, bem como o Comerciante acusado, membros da segunda caravana, e o Estalajadeiro. JUIZ Est aberta a sesso! Tem a palavra a mulher do morto! MULHER - Meu marido carregou a bagagem desse senhor pelo deserto de Jahi. Pouco antes do fim da viagem esse senhor o matou com um tiro. Embora nem por isto o meu marido volte a viver, eu exijo que o assassino seja punido. JUIZ Alm disso a senhora pede tambm uma indenizao. MULHER - , porque eu e meu filho pequeno ficamos sem aquele que nos dava o sustento. JUIZ ( Mulher) Eu no censuro a senhora por isso: a exigncia de ordem material no constitui nenhum demrito para a senhora. (Aos membros da segunda caravana) Atrs da expedio do comerciante Karl Langmann vinha uma segunda expedio, qual se foi juntar, depois de despedido pelo comerciante, o guia da primeira caravana. A menos de uma milha de distncia do caminho trilhado podia-se avistar a expedio malograda. Que foi que os senhores viram quando chegaram perto? CHEFE DA SEGUNDA CARAVANA - O comerciante, com um pouquinho d'gua ainda no cantil, e o carregador, cado na areia, morto com um tiro. JUIZ (ao Comerciante) O senhor matou o homem? COMERCIANTE - Matei, sim: de repente, ele me agrediu! JUIZ Como foi que ele agrediu o senhor?

16COMERCIANTE - Ia me acertar pelas costas com uma pedra! JUIZ O senhor tem alguma explicao para o motivo dessa agresso? COMERCIANTE - Eu, no. JUIZ O senhor no forava os seus homens com muita brutalidade? COMERCIANTE - Nunca. JUIZ Encontra-se no recinto o guia despedido, que fez parte da expedio na primeira parte da viagem? GUIA Eu. JUIZ Diga o que sabe a respeito. GUIA At onde eu possa saber, o que o comerciante queria era chegar a Urga o mais depressa possvel, por causa de uma concesso. JUIZ (ao Chefe da Segunda Caravana) O senhor tinha a impresso de que a expedio que ia na sua frente andava com uma rapidez fora do comum? CHEFE DA SEGUNDA CARAVANA - Fora do comum, no: eles levavam um dia de vantagem e mantinham essa vantagem. JUIZ (ao Comerciante) E para isso o senhor no pode ter deixado de forar o seu pessoal. COMERCIANTE Eu nunca forcei ningum: isso era funo do guia! JUIZ (ao Guia) O acusado no lhe deu ordens expressas para forar o carregador a andar mais depressa? GUIA Eu no forcei mais que o de costume: at menos, por sinal. JUIZ E por que foi despedido? GUIA - Justamente porque, na opinio do comerciante, eu me mostrava amistoso demais com o carregador. JUIZ E no devia, por acaso? O cule, a quem o senhor nem podia tratar amistosamente, dava a impresso de ser um homem revoltado? GUIA - No. Ele agentava tudo porque, pelo que me dizia, tinha medo de perder o emprego: ele no era sindicalizado. JUIZ Assim, tinha que engolir muita coisa, no ? Responda. No fique a pensando o tempo todo em cada resposta que tem a dar! A verdade sempre vem tona. GUIA - Eu s estive com eles at o posto de Han.

17ESTALAJADEIRO (consigo mesmo) Muito bem, guia! JUIZ (ao Comerciante) Depois disso aconteceu alguma coisa que pudesse dar motivo agresso do cule? COMERCIANTE - Nada, pelo menos da minha parte. JUIZ Oua: o senhor no deve fazer-se de mais inocente do que . Assim no vai arranjar nada, homem. Se tratava o seu cule com luvas de pelica, como explicar o dio que ele tinha do senhor? s tornando esse dio justificvel, que o senhor poder justificar tambm que agiu em legtima defesa. Pense bem! COMERCIANTE - Uma coisa preciso confessar: bati nele uma vez! Bati, sim! JUIZ Ah! E o senhor acha que por causa dessa nica vez o cule ficou to cheio de dio? COMERCIANTE - No, mas eu tambm encostei o revlver nas costas dele quando ele no queria atravessar o rio. Durante a travessia do rio ele quebrou um brao: culpa minha tambm. JUIZ (sorrindo) Na opinio do cule. COMERCIANTE (tambm sorrindo) Naturalmente. Na verdade quem o puxou de dentro d'gua fui eu! JUIZ Ento, vejamos. Logo depois de despedir o guia o senhor deu motivos para o carregador odi-lo. E antes? (Ao Guia, em tom enrgico) Reconhea de uma vez que o homem tinha dio do comerciante. Quando se pensa bem, alis, isso at bvio: bem compreensvel que um homem, mal remunerado, forado com violncia a enfrentar um grande perigo, vendo-se prejudicado at em sua sade, e arriscando a vida quase a troco de nada, para um outro ter vantagem, acabe tendo dio desse outro. GUIA - Ele no tinha dio de ningum. JUIZ Vamos agora interrogar o estalajadeiro do posto de Han, que talvez nos possa dizer alguma coisa para ajudar a termos uma idia clara do relacionamento entre o comerciante e seus empregados. (Ao Estalajadeiro) Como que o comerciante tratava os homens dele? ESTALAJADEIRO - Bem. JUIZ Quer que mande evacuar o recinto? O senhor acha que, dizendo a verdade, pode trazer prejuzo aos seus negcios? ESTALAJADEIRO - No: neste caso no preciso. JUIZ Como o senhor quiser. ESTALAJADEIRO - Ao guia ele chegou at a dar cigarro, e pagou o salrio devido sem discutir. E o cule tambm era bem tratado.

18JUIZ O lugar onde o senhor trabalha o ltimo posto de polcia nesse itinerrio? ESTALAJADEIRO - . Depois comea o deserto de Jahi, completamente desabitado. JUIZ Ah, sei! Nesse caso, a amabilidade do comerciante era mais uma questo de circunstncias, por pouco tempo: era, por assim dizer, uma amabilidade ttica. Na guerra tambm os nossos oficiais faziam questo de tratar as tropas de maneira tanto mais amvel quanto mais se aproximavam da frente de batalha. Amabilidades desse tipo naturalmente no querem dizer nada. COMERCIANTE - Ele, por exemplo, estava sempre cantando, enquanto caminhvamos. A partir do momento em que o ameacei com o revlver, para for-lo a atravessar o rio, nunca mais o ouvi cantar. JUIZ Ele estava portanto bastante irritado; o que perfeitamente compreensvel. E eu retomo de novo o exemplo da guerra: l tambm se podia compreender perfeitamente a gente simples do povo, quando dizia a ns, oficiais: pois , vocs fazem a guerra de vocs, mas tambm a de vocs que ns fazemos! Assim tambm o carregador poderia dizer ao comerciante: o senhor est fazendo o seu negcio, mas o negcio que eu fao tambm do senhor! COMERCIANTE - Outra coisa preciso confessar: quando ficamos perdidos no deserto eu reparti com ele um cantil de gua, mas escondi o outro cantil para beber sozinho. JUIZ E por acaso ele viu o senhor bebendo? COMERCIANTE - Foi o que eu pensei quando ele avanou contra mim com a pedra na mo. Eu sabia que ele me odiava. Quando entramos na regio desabitada, fiquei noite e dia de sobreaviso. Eu s podia imaginar que ele viria para cima de mim na primeira oportunidade. Se eu no tivesse atirado, o morto seria eu! MULHER - Eu s queria dizer uma coisa: ele no pode ter agredido esse homem, ele jamais agrediu algum. GUIA - Pode ficar descansada: a prova da inocncia dele est aqui na minha saca. JUIZ Algum encontrou a pedra com que o cole ameaou o senhor? CHEFE DA SEGUNDA CARAVANA (apontando o Guia) Esse homem tirou-a da mo do morto. O Guia exibe o cantil. JUIZ Era essa a pedra? O senhor a reconhece? COMERCIANTE A pedra era essa mesmo! GUIA - Pois ento veja o que a pedra tem dentro! (Derrama a gua do cantil). PRIMEIRO JUIZ ADJUNTO - Isto um cantil com gua, no pedra nenhuma: ele ia oferecer gua ao senhor!

19SEGUNDO Juiz ADJUNTO - Agora, tudo indica que ele no pretendia em absoluto matar ningum. GUIA (abraando a viva do morto) Viu? Consegui provar: ele era inocente. Foi s por um acaso excepcional que eu pude provar isso: eu mesmo dei o cantil d'gua a ele quando ele partiu do ltimo posto, o Estalajadeiro testemunha de que o cantil meu. ESTALAJADEIRO (de si para si) Que idiota! Agora ele tambm est perdido. JUIZ Como pode ser isso? (Ao Comerciante) Ele ia dar de beber ao senhor! COMERCIANTE - Devia ser uma pedra. JUIZ No era pedra nenhuma: no est vendo que um cantil com gua? COMERCIANTE - Mas eu nunca poderia imaginar que fosse um cantil com gua: aquele homem no tinha motivo algum para me dar de beber. Eu no era amigo dele. GUIA - Ele ia dar de beber ao senhor. JUIZ Por que iria dar gua ao patro? Por qu? GUIA - Deve ter imaginado que o comerciante estava com sede. Os Juzes sorriem uns para os outros. Decerto por um sentimento de humanidade. Os Juzes tornam a sorrir. Talvez at por imbecilidade, e por isso eu acho que ele no tinha nada contra o comerciante. COMERCIANTE - S se ele era muito imbecil, mesmo. Um sujeito que, por minha causa, sofreu um acidente capaz de deix-lo aleijado para o resto da vida, e logo num brao! Nada mais justo, da parte dele, do que querer ir forra. GUIA - Nada mais justo. COMERCIANTE - Por um pouquinho de dinheiro toa, ele se prestava a andar com uma pessoa como eu, que tenho dinheiro bea. verdade que o caminho era to rduo para ele como para mim. GUIA - Disso, ele sabia. COMERCIANTE - E quando estava cansado, apanhava. GUIA - No o certo? COMERCIANTE - Admitir que o cule no quisesse acabar comigo na primeira oportunidade, seria admitir que ele no tivesse nenhum bom senso. JUIZ O senhor quer dizer que tinha razo em supor que o cule tivesse alguma coisa contra a sua pessoa. Dadas as circunstncias, portanto, o senhor teria atirado numa criatura inofensiva, to-somente por no poder adivinhar que era inofensiva. Isso acontece, vez por outra, com os nossos policiais: atiram no meio de uma multido de manifestantes, gente absolutamente pacfica, s por no poderem conceber que essa

20gente no esteja pronta para arranc-los de cima dos cavalos e linch-los. Ento os policiais atiram, a bem dizer, s por medo; e o fato de terem medo uma prova de bom senso. O senhor quer dizer que no podia saber que o cule constitua uma exceo! COMERCIANTE - Agente tem que seguir a regra e no a exceo. JUIZ Ento, isto: que motivos poderia ter o carregador para dar de beber ao seu carrasco? GUIA - Nenhum motivo razovel! JUIZ (cantando) A regra : olho por olho! S um tolo espera a exceo. Que o inimigo lhe d de beber O sensato no pode conceber. JUIZ (Falando aos outros Juzes) Agora vamos ao veredicto. Os Juzes retiram-se. GUIA (cantando) No regime que criaram Humanidade exceo. Assim, quem se mostra humano Paga caro essa lio. Reneguem de todo aquele Que amigvel se mostrar! Guardem distncia daquele Que a outrem quer ajudar! Se h algum ao lado com sede: Feche os olhos bem depressa! Tape os ouvidos, se algum Geme perto de voc! Se algum grita por socorro No se arrede do lugar! Quem se esquece disto bobo: Vai dar de beber a um homem Mas quem bebe mesmo um lobo! CHEFE DA SEGUNDA CARAVANA - O senhor no tem medo de nunca mais arranjar emprego? GUIA - Eu precisava dizer a verdade. CHEFE DA SEGUNDA CARAVANA (sorrindo) Bem, se o senhor precisava. Os Juzes retornam ao recinto.

21JUIZ (ao Comerciante) O tribunal tem mais uma pergunta a lhe fazer: por acaso o senhor, matando o carregador, no saiu com vantagem? COMERCIANTE - Pelo contrrio! Eu precisava dele, para o negcio que ia fechar em Urga: era ele quem carregava os mapas e as tabelas de que eu tinha necessidade. Eu no estava em condies de carregar sozinho as minhas coisas! JUIZ O senhor, com isso, no realizou o seu negcio em Urga? COMERCIANTE - Naturalmente que no: eu cheguei tarde demais. Estou arruinado! JUIZ Ento eu vou proferir a sentena! O Tribunal considera provado que o carregador aproximou-se do patro, no com uma pedra, e sim com um cantil d'gua. Ainda partindo dessa premissa, porm, era muito mais provvel que ele estivesse pensando em matar o patro, com o cantil, do que em lhe dar de beber. O carregador pertencia a uma classe que tem, efetivamente, razes para sentir-se prejudicada. Para pessoas da classe do carregador, defender-se contra um abuso que o deixasse lesado na partilha da gua era uma simples questo de bom senso. Para pessoas desse tipo, com seus pontos de vista limitados e unilaterais, aferrados a um nico aspecto da realidade, pareceria at bastante justo vingar-se dos que as maltratam: no dia do ajuste de contas s teriam a ganhar. O comerciante no pertencia mesma classe do carregador, de quem s poderia esperar o pior. O comerciante jamais poderia acreditar em qualquer gesto de camaradagem por parte do carregador, a quem ele havia confessadamente maltratado: o bom senso lhe dizia que sobre ele pesavam as mais graves ameaas, e o despovoado da regio devia traz-lo cheio de apreenses. A ausncia de polcia e de juizes possibilitava ao empregado arrancar-lhe fora a sua rao de gua, e o encorajava mesmo a fazer isso. O acusado, portanto, agiu em legtima defesa tanto no caso de ter sido realmente ameaado quanto no caso de apenas sentir-se ameaado. Dadas as circunstncias, tinha razes para sentir-se ameaado. Isto posto, absolvese o acusado, e no se toma conhecimento da queixa da mulher do morto. Os ATORES Assim termina A histria de uma viagem Que vocs viram e ouviram. E viram o que comum O que est sempre ocorrendo. Mas a vocs ns pedimos: No que no de estranhar Descubram o que h de estranho! No que parece normal Vejam o que h de anormal! No que parece explicado Vejam quanto no se explica! E o que parece comum Vejam como de espantar! Na regra, vejam o abuso E, onde o abuso apontar Procurem remediar!

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