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EDITORA AUTORES ASSOCIADOSuma editora educativa a servio da cultura brasileira
Caixa Postal 6164 CEP 13081-970 Campinas SP Pabx/Fax: (19) 3289-5930e-mail: [email protected]
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Diretor ExecutivoFlvio Baldy dos Reis
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CapaCriao e Leiaute a partir de
Pssaro-Serpente e Espantalho, 1921 de Max ErnstMilton Jos de Almeida
Arte-FinalEria Bombardi
Impresso e AcabamentoGrfica Paym
2 Edio Revista e AmpliadaCOLEO EDUCAO CONTEMPORNEAEDITORA
Autores Associados.Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
(Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil)
Duarte, NewtonVigotski e o aprender a aprender: crtica s apropriaes neoliberais e ps-modernasda teoria vigotskiana/ Newton Duarte 2. ed. rev. e ampl. Campinas, SP: Autores
Associados , 2001. (Coleo educao contempornea)
Bibliografia. ISBN 85-85701-91-9
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l. Psicologia educacional 2. Vigotsky, Lev Semenovich, 1896-1934 l. Ttulo. II. Ttulo:Crtica s apropriaes neoliberais e ps-modernas da teoria vigotskiana. III. Srie. 00-
0443 CDD-370.15ndices para catlogo sistemtico:
Vigotsky : Psicologia educacional 370.15
1 edio maro de 2000 Impresso no Brasil agosto de 2001 Copyright (c) 2001by Editora Autores Associados
Depsito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n l.825, de 20 de dezembro de1907.
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Dos crimes contra a propriedade intelectual Violao de direito autoral Art. 184. Violardireito autoral Pena deteno de trs meses a um ano, ou multa.
1 Se a violao consistir na reproduo, por qualquer meio, de obra intelectual, no todoou em parte, para fins de comrcio, sem autorizao expressa do autor ou de quem o
represente, ou consistir na reproduo de fonograma e videograma, sem autorizao doprodutor ou de quem o represente: Pena recluso de um a quatro anos e multa.
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CCCCCCCCOOOOOOOONNNNNNNNTTTTTTTTRRRRRRRRAAAAAAAACCCCCCCCAAAAAAAAPPPPPPPPAAAAAAAA
Neste livro o autor pleniza com uma tendncia que estaria se tornando
dominante entre os educadores que buscam, no terreno da psicologia, fundamentos
em Vigotski: a tendncia a interpretar as idias desse psiclogo numa tica que as
aproxima a iderios pedaggicos centrados no lema Aprender a Aprender. Alis,
mais do que um lema, o aprender a aprender significa, para uma ampla parcela dos
intelectuais da educao na atualidade, um verdadeiro smbolo das posies
pedaggicas mais inovadoras, progressistas e, portanto, sintonizadas com o que
seriam as necessidades dos indivduos e da sociedade do sculo XXI. Neste livro, o
autor aponta para o papel ideolgico desempenhado por esse tipo de apropriao das
idias de Vigotski, qual seja, o papel de manuteno da hegemonia burguesa no
campo educacional, por meio da incorporao da teoria vigotskiana ao universo
ideolgico neoliberal e ps-moderno.
OOOOOOOORRRRRRRREEEEEEEELLLLLLLLHHHHHHHHAAAAAAAASSSSSSSSDDDDDDDDOOOOOOOOLLLLLLLLIIIIIIIIVVVVVVVVRRRRRRRROOOOOOOO
Aprender a aprender foi um lema defendido pelo movimento escolanovista
e adquiriu novo vigor na retrica de vrias concepes educacionais
contemporneas, especialmente no construtivismo. No mundo todo, livros, artigos e
documentos oficiais apresentam o aprender a aprender como um emblema do que
existiria de mais progressista e inovador, um smbolo da educao do sculo XXI. A
psicologia de Vigotski vem sendo apontada por muitos educadores como um dos
pilares de propostas educacionais centradas no aprender a aprender. A obra do
psiclogo L. S. Vigotski seria, de fato, compatvel com o aprender a aprender,
como o construtivismo, com o escola-novismo? Neste livro, Newton Duarte
responde negativamente a essa questo, defendendo a necessidade de uma leitura
marxista da psicologia vigotskiana e a necessidade de um trabalho de incorporao
dessa psicologia construo de uma pedagogia crtica e historicizadora. Nesse
sentido, o autor mostra existirem aproximaes entre o construvivismo, o ps-
modernismo e o neoliberalismo para ento desfechar uma crtica contundente s
interpretaes que vem sendo difundidas no meio educacional acerca da psicologia
vigotskiana, as procuram incorporar tal psicologia ao universo ideolgico neoliberal
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e ps-moderno. Evidenciando o carter radicalmente marxista da psicologia
vigotskiana, o autor apresenta ainda uma anlise minuciosa da crtica feita por
Vigotski teoria do jovem Piaget no segundo captulo do livro Pensamento e
Linguagem.
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Um homem completo possui a fora do pensamento, a fora da vontade e a
fora do corao. A fora do pensamento a luz do conhecimento; a fora da
vontade a energia do carter; a fora do corao o amor.
LUDWIG FEUERBACH
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Alessandra, a voc dedico este livro.
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Vejo a vida como uma constante caminhada dirigida para esse horizonte do
homem completo, lutando contra tudo o que em nossa sociedade constitui uma
barreira a essa caminhada. Espero sempre continuar em busca do conhecimento (a
fora do pensamento), procurando no esmorecer na luta pelos valores que defendo(a fora da vontade). Quanto fora do corao, j o alcancei: o amor que sinto
por voc.
Conclamar as pessoas a acabarem com as iluses acerca de uma situao
conclam-las a acabarem com uma situao que precisa de iluses.
A crtica no retira das cadeias as flores ilusrias para que o homem suporte
as sombrias e nuas cadeias, mas sim para que se liberte delas e brotem flores vivas.
KARL MARX,
INTRODUO CRTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL
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SSSSSSSSUUUUUUUUMMMMMMMMRRRRRRRRIIIIIIIIOOOOOOOO
PREFCIO 2 EDIO
CONSIDERAES INICIAIS
A APROXIMAO DA PSICOLOGIA VIGOTSKIANA AO LEMA
PEDAGGICO APRENDER A APRENDER UMA ESTRATGIA
IDEOLGICA
CAPTULO UmO LEMA APRENDER A APRENDER NOS IDERIOS EDUCACIONAIS
CONTEMPORNEOS
1. Os posicionamentos valorativos contidos no lema aprender a aprender
2. O lema aprender a aprender no discurso oficial contemporneo: dois exemplos
CAPTULO Dois
NEOLIBERALISMO, PS-MODERNISMO E CONSTRUTIVISMO
1. Caractersticas do universo ideolgico neoliberal e ps-moderno
2. Interfaces entre construtivismo e ps-modernismo e as tentativas de unificao
das idias de Piaget e Vigotski
CAPTULO Trs
A HISTORICIDADE DO SER HUMANO E O ESVAZIAMENTO DA
INDIVIDUALIDADE NA SOCIEDADE CAPITALISTA
1. A historicidade do ser humano em Marx: a dialtica entre objetivao e
apropriao
2. A crtica de Marx naturalizao do histrico
3. O aprender a aprender e a globalizao como esvaziamento completo do
indivduo
CAPTULO Quatro
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EM DEFESA DE UMA LEITURA MARXISTA DA OBRA DE VIGOTSKI
1. As tentativas de afastar a teoria de Vigotski da teoria de Leontiev
2. A substituio do que escreveu Vigotski pelo que escreveram seus intrpretes e as
tradues resumidas/censuradas de textos vigotskianos3. O ecletismo nas interpretaes ps-modernas e neoliberais da teoria vigotskiana
4. Um exemplo de crtica infundada e inconsistente teoria vigotskiana
CAPTULO CINCO
A CRITICA RADICAL DE VIGOTSKI A PIAGET
1. Vigotski detecta o alicerce principal do edifcio terico do jovem Piaget: a
concepo de que o pensamento egocntrico ser uma fase intermediria entreo pensamento autista e o pensamento socializado
2. Vigotski faz a critica ao princpio terico adotado por Piaget, segundo o qual a
gnese do pensamento teria como ponto de partida natural o pensamento
autista.
3. Vigotski ataca o fundamento emprico de Piaget mostrando que a linguagem
egocntrica no uma expresso direta do pensamento egocntrico
4. Vigotski contrape-se concepo de socializao presente na psicologia do
desenvolvimento de Piaget e faz a crtica aos pressupostos filosficos
idealistas e relativistas dessa psicologia
4. Vigotski ope psicologia de Piaget uma psicologia que historicize o psiquismo
humano
CAPTULO seis
A PSICOLOGIA DE PIAGET SOCIOINTERACIONISTA
CONSIDERAES FINAIS AFINAL, QUAL O SENTIDO DE SE ESTUDAR
VIGOTSKI HOJE?
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
SOBRE O AUTOR
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PREFCIO 2 EDIO
grande minha satisfao ao escrever o prefcio segunda edio deste
livro. At certo ponto fui surpreendido pela to calorosa acolhida que o mesmo
encontrou entre educadores e psiclogos de todo o Brasil e tambm pelo fato de a
primeira edio ter se esgotado em pouco mais de um ano. Mais importante que o
tempo relativamente curto de esgotamento da primeira edio foram as
manifestaes, feitas pessoalmente ou por correio eletrnico, de leitores que
encontraram neste livro uma abordagem que veio ao encontro de insatisfaes que
eles h algum tempo vm sentindo em relao a princpios e idias amplamente
difundidos no meio educacional brasileiro. E, aqui, reside o principal motivo de
minha surpresa. Essas idias e esses princpios, os quais foram objeto de anlise
crtica neste livro, tm sido endossados e divulgados por boa parte daqueles que,
atualmente, constituem a intelectualidade da educao e das cincias humanas em
geral. Eu esperava, certo, encontrar apoio da parte de alguns leitores, mas
justamente por ser um trabalho que rema contra a mar, no esperava que esse apoio
fosse to expressivo em termos quantitativos e qualitativos. Mas por que afirmei ter
ficado surpreendido at certo ponto? Porque eu esperava que este trabalho tocasse
em questes importantes para um crescente segmento de educadores e psiclogos
que no fazem coro s retricas neoliberal e ps-moderna. Essa esperana no foi
frustrada e, mais do que isso, transformou-se na convico de que o sucesso deste
livro se deve principalmente existncia de um movimento crescente de
revigoramento do marxismo no campo das cincias humanas.
No se trata, ainda, de um movimento de grandes dimenses no meioacadmico, mas possui uma caracterstica importante para fazer frente aos muitos
modismos que compem o universo ideolgico neoliberal e ps-moderno: trata-se
da busca de consistncia e coerncia em termos tanto da elaborao terica como
tambm do posicionamento ideolgico. A crtica ao irracionalismo ps-moderno e
ao autoritarismo neoliberal no pode prescindir do rigor terico, da coerncia lgica
e da clareza do posicionamento ideolgico. Nesse sentido, se eu no poderia deixar
de ficar contente com o xito editorial de meu livro, fico ainda mais contente porestar convencido de que esse xito conseqncia de um movimento que vai muito
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alm das teses que defendo neste trabalho.
No que diz respeito ao tema especfico do processo de apropriao da
psicologia vigotskiana, verifico tambm existir, tanto no Brasil como no exterior, o
incio de um movimento de reao s interpretaes, ainda largamente hegemnicas,que incorporam a psicologia vigotskiana ao universo ideolgico neoliberal e ps-
moderno, tendo como conseqncia uma operao de dissociao dessa psicologia
do universo ideolgico marxista e socialista. A reao a esse tipo de leitura dos
trabalhos de Vigotski ainda luta por encontrar mais espaos nos quais possa expor
suas idias e isso exige um constante e rduo esforo por superar as barreiras criadas
por aqueles que no esto habituados a ver questionadas as idias que pretensamente
encontrariam apoio nos trabalhos de Vigotski. Uma coisa apregoar o pluralismo, ademocracia, o respeito s diferenas etc. Outra coisa bem mais difcil e rara aceitar
a diferena quando ela implica o questionamento de idias e princpios que so
admitidos quase que consensualmente por aqueles que alcanaram alguma projeo
no meio acadmico graas aceitao a crtica dessas idias e desses princpios. Em
suma, o rei pode estar nu desde que ningum toque no assunto, muito menos
questione as razes dessa nudez e do silncio sobre ela. Mas, felizmente, no Brasil e
no exterior aumenta a cada dia o nmero daqueles que no mais aceitam essa falsademocracia e expem suas crticas de forma clara e contundente, defendendo uma
leitura marxista da obra vigotskiana.
Venho mantendo correspondncia com dois pesquisadores do exterior que
tm contribudo para a difuso de leituras marxistas dos trabalhos de Vigotski. Um
deles j conhecido por pesquisadores brasileiros, pois j esteve no Brasil vrias
vezes ministrando cursos e palestras. Trata-se do professor doutor Mrio Golder, da
Universidade de Buenos Aires. Aps ler Vigotski e o Aprender a Aprender, o
referido professor consultou-me quanto possibilidade de incluir parte do captulo 4
(Em Defesa de uma Leitura Marxista da Obra de Vigotski) como texto integrante
de uma coletnea por ele organizada, intitulada Vigotski: Um Psiclogo
Radical. O prprio professor Mrio Golder traduziu meu texto para o
espanhol e essa coletnea ser lanada em agosto prximo em Buenos Aires. Sinto-
me particularmente honrado em participar dessa publicao e deixo aqui registrado
meu agradecimento ao professor Mrio Golder por to gentil convite.
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O outro pesquisador, com o qual venho mantendo correspondncia e que
defende uma leitura marxista da psicologia vigotskiana, um professor norte-
americano do Departamento de Psicologia do Edgecombe Community College, na
Carolina do Norte, professor doutor Mohamed Elhammoumi, o qual fez a gentilezade me enviar dois artigos seus, um publicado neste ano e outro ainda no prelo. Em
ambos os artigos ele formula uma crtica quelas interpretaes distantes dos
fundamentos filosficos marxistas da teoria vigotskiana ou at mesmo hostis ao
marxismo. Elhammoumi afirma que o uso que Vigotski faz do conceito de foras
sociais de produo reflete sua fundamentao na teoria marxista. Ele viveu
durante a Revoluo Russa, um tempo de extrema tenso entre privado e coletivo,
individual e social. Foi esse ambiente cultural de mudanas e desestabilizaes queforneceu a ele o contexto para suas investigaes cientficas. Sua vida foi devotada
busca de resoluo de problemas educacionais urgentes e prticos visando contribuir
para o xito do novo experimento socialista. Apoiado na conceituao do fenmeno
mental esboada inicialmente por psiclogos marxistas franceses como Henri
Wallon (1879-1962) e Georges Politzer (1903-1942), sua contribuio aos debates
psicolgicos da dcada de 20, juntamente com as contribuies de seus colegas
Luria e Leontiev, desempenharam um papel central no delineamento da direo dapsicologia cientfica marxista.
Mas psiclogos e educadores que trabalham com a abordagem vigotskiana
(Rogoff, Wertsch, Valsiner & Van der Veer, entre outros) freqentemente no
dominam a filosofia marxista ou so hostis a ela (Joravsky, Kozulin, Moscovici,
entre outros). Alguns deles afirmam at que Vigotski no um psiclogo marxista e
que ele nunca esteve comprometido com a construo de uma psicologia marxista.
[...] (1. NOTA DE RODAP: Trechos extrados do artigo intitulado To Create
Psychologys Own Capital, o qual ser publicado no livro intitulado Vigotskys
Cultural-Historical Psychology, organizado por Dorothy Robbins e Anna Stetsenko).
Contudo, uma adequada apreciao da psicologia vigotskiana no possvel sem
que sejam consideradas suas relaes com Marx e com a tradio marxista.
Esse distanciamento do marxismo produz leituras unilaterais da obra
vigotskiana, nas quais so destacados alguns conceitos e omitidos outros.
Elhammoumi mostra que o modismo produzido nos Estados Unidos da Amrica do
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Norte em torno da psicologia sovitica levou os entusiastas dessa corrente da
psicologia a... focarem sua ateno no papel do signo e da palavra, na fala e na
linguagem, no desenvolvimento das funes mentais superiores, da conscincia e da
ao humana. Assim, os principais conceitos do programa de pesquisa scio-histrico-cultural tm sido esquecidos na explosiva produo de artigos sobre o
pensamento de Vigotski, Luria e Leontiev. Os mais importantes conceitos foram
excludos. Quais so esses conceitos importantes? De acordo com os textos clssicos
da teoria scio-histrico-cultural, a totalidade dos fenmenos psicolgicos humanos,
incluindo a conscincia humana, derivada da atividade prtica socialmente
organizada. A teoria scio-histrico-cultural v a mediao semitica, os processos
simblicos e os processos cognitivos como secundrios porque eles derivam dasinteraes que indivduos estabelecem na concreta atividade prtica socialmente
organizada. Conceitos que so primrios, que no so derivados, mas sim aspectos
da atividade prtica socialmente organizada, incluem: sistemas sociais, ideologias,
formas institucionais de trabalho, formas institucionais de educao, materialismo
dialtico, alienao, relaes sociais de produo, meios psicolgicos de produo,
modos psicolgicos de produo de conceitos sociais e relaes psicolgicas de
produo (NOTA DE RODAP: 2. Trecho extrado das pginas 203-204 do textointitulado Lost or Merely Domesticated? The Boom in Socio-Historicocultural
Theory Emphasises Some Concepts, Overlooks Others, integrante da coletnea
intitulada The Theory and Practice of Cultural-Historical Psychology, organizado
por Seth Chaklin e publicada neste ano de 2001 pela editora da Universidade de
Aarhus, Dinamarca.).
Outra questo que no posso deixar de abordar neste prefcio a publicao,
no Brasil, do texto integral de Pensamento e Linguagem, traduzido agora
diretamente do russo e publicado com o ttulo A Construo do Pensamento e da
Linguagem (NOTA DE RODAP : 3. L. S. Vigotski, A Construo do Pensamento
e da Linguagem, So Paulo, Martins Fontes, primeira edio em maro de 2001,
traduo do russo por Paulo Bezerra.). Trata-se de um acontecimento que diz
respeito diretamente a este meu livro, pois no quarto captulo (p. 167) escrevi o
seguinte: Embora a grande maioria dos livros publicados no Brasil sobre o
pensamento de Vigotski seja absolutamente omissa quanto a isso, o fato que a
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traduo para o portugus do livro Pensamento e Linguagem (VYGOTSKY, 1993
b), cuja primeira edio brasileira foi lanada em 1987, no traduo do texto
integral, mas sim de uma verso resumida publicada em ingls, nos EUA, no ano de
1962. Essa verso resumida cortou mais de 60% do texto original, pois o texto, naverso integral, publicado nas obras escolhidas em espanhol (VYGOTSKI, 1993a,
pp. 11-347) tem 337 pginas, enquanto na edio em portugus tem 132 pginas.
Tambm nesse captulo afirmei ser auspiciosa a notcia constante do prefcio de
Paulo Bezerra, como tradutor do livro Psicologia da Arte, de Vigotski , de que
estaria no prelo a edio do texto integral de Pensamento e Linguagem. At o
momento em que eu conclua os ltimos acertos em Vigotski e o Aprender a
Aprender, ainda no fora, porm, lanada essa prometida edio. Eis que agora elaj est disposio do pblico brasileiro, fato esse que deve ser comemorado. Desde
meu livro Educao Escolar, Teoria do Cotidiano e a Escola de Vigotski, cuja
primeira edio data de 1996, venho insistindo na necessidade de publicao em
portugus do texto integral de Pensamento e Linguagem. No quinto captulo de
Vigotski e o Aprender a Aprender, analiso o texto integral do captulo 2 de
Pensamento e Linguagem e mostro o quanto o texto da edio resumida perde em
termos da radicalidade da crtica vigotskiana teoria do ento jovem Piaget.Mas se vejo como motivo de comemorao esse trabalho de traduo de
Pensamento e Linguagem diretamente do russo e de publicao do texto integral,
no posso deixar de problematizar dois aspectos relativos a essa edio. Devo deixar
claro que no se trata de questionar a traduo propriamente dita, pois no domino o
idioma russo. Mas mesmo no dominando o idioma original no qual foi escrito esse
livro, posso fazer algumas observaes como estudioso da obra vigotskiana.
O primeiro aspecto que problematizarei algo comentado pelo professor
doutor Paulo Bezerra, no prlogo que escreveu como tradutor do livro:
Outro conceito criado por Vigotski diz respeito ao processo de
aprendizagem e chegou ao Brasil como zona de desenvolvimento prxima!, [...]
Trata-se de um estgio do processo de aprendizagem em que o aluno consegue fazer
sozinho ou com colaborao de colegas mais adiantados o que antes fazia com
auxlio do professor, isto , dispensa a mediao do professor. Na tica de Vigotski,
esse fazer em colaborao no anula mas destaca a participao criadora da
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criana e serve para medir o seu nvel de desenvolvimento intelectual, sua
capacidade de discernimento, de tomar a iniciativa, de comear a fazer sozinha o que
antes s fazia acompanhada, sendo, ainda, um valiosssimo critrio de verificao da
eficcia do processo de ensino-aprendizagem. Resumindo, um estgio em que acriana traduz no seu desempenho imediato os novos contedos e as novas
habilidades adquiridas no processo de ensino-aprendizagem, em que ela revela que
pode fazer hoje o que ontem no conseguia fazer. isto que Vigotski define como a
zona de desenvolvimento imediato, que no Brasil apareceu como zona de
desenvolvimento proximal(!). Por que imediato e no esse esquisito prxima? Por
dois motivos. Primeiro: o adjetivo que Vigotski acopla ao substantivo
desenvolvimento (razvtie, substantivo neutro) blijichee, adjetivo neutro do grausuperlativo sinttico absoluto, derivado do adjetivo positivo bfzkii, que significa
prximo. Logo, blijichee significa o mais prximo, proxssimo, imediato.
Segundo: a prpria noo implcita no conceito vigotskiano a de que, no
desempenho do aluno que resolve problemas sem a mediao do professor, pode-se
aferir incontinenti o nvel do seu desenvolvimento mental imediato, fator de
mensurao da dinmica do seu desenvolvimento intelectual e do aproveitamento da
aprendizagem. Da o termo zona de desenvolvimento imediato [VIGOTSKI, op. cit.,pp. X-XI].
Minhas objees interpretao desse conceito vigotskiano pelo professor
Paulo Bezerra no se dirigem traduo como zona de desenvolvimento imediato
em substituio ao realmente esquisito termo zona de desenvolvimento prxima,
cujo uso no Brasil talvez tenha sido decorrente da influncia da bibliografia em
ingls (zone of proximal development). Por influncia da bibliografia em espanhol,
da qual tenho me utilizado com freqncia, adotei o uso da traduo zona de
desenvolvimento prximo (zona de desarrollo prximo) mas, como j explicitei, no
domino o idioma russo e no posso afirmar qual seja a melhor traduo do adjetivo
empregado por Vigotski. Minha objeo dirige-se, ento, no para a traduo do
adjetivo mas para a compreenso que o tradutor tem do conceito vigotskiano. Se
bem entendi, o professor Paulo Bezerra interpreta que o conceito de zona de
desenvolvimento prximo (ou imediato) focalizaria processos que a criana realiza
sozinha, sem ajuda do professor, isto , o tradutor confunde a zona de
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desenvolvimento prximo (ou imediato) com o nvel de desenvolvimento atual. No
h espao neste prefcio para apresentar uma anlise do captulo 6 de Pensamento e
Linguagem de maneira a fundamentar minha discordncia em relao
interpretao feita pelo tradutor. Mesmo assim no posso deixar de enfatizar que, aocontrrio do que entende o professor Paulo Bezerra, a zona de desenvolvimento
prximo constituda por aquilo que a criana, num determinado momento, no faz
sozinha, mas o faz com a ajuda de outros, inclusive e principalmente do professor. E
por isso que para Vigotski o nico bom ensino o que atua no mbito da zona de
desenvolvimento prximo. Aquilo que hoje a criana faz sozinha, mas no passado s
fazia com ajuda, j foi interiorizado e foi incorporado ao nvel de desenvolvimento
atual. No minha inteno travar polmicas desnecessrias, mas esse no umdetalhe de menor importncia.
Uma interpretao equivocada do conceito de zona de desenvolvimento
prximo (ou imediato) pode prejudicar seriamente a compreenso da maneira como
Vigotski analisava as relaes entre educao e desenvolvimento, ou seja, pode dar
uma forte contribuio para as tentativas de adaptao da psicologia vigotskiana s
concepes educacionais centradas no lema aprender a aprender.
O segundo ponto que problematizarei a alterao no ttulo do livro, o qualpassou a ser A Construo do Pensamento e da Linguagem, ao invs de apenas
Pensamento e Linguagem. No sei se essa alterao foi decorrente do fato de j
existir aquela mencionada edio resumida de Pensamento e Linguagem e isso
tivesse gerado ento a necessidade de distinguir as duas edies. J manifestei minha
posio em relao edio resumida, a qual considero mais atrapalhar do que
ajudar ao leitor a conhecer o pensamento de Vigotski. Penso que, na hiptese da
editora pretender manter a publicao tanto da verso resumida como do texto
integral, o mais correio seria manter o mesmo ttulo, isto , Pensamento e
Linguagem, acrescentando o subttulo verso resumida ou texto integral. A soluo
adotada, de acrescentar a palavra construo ao ttulo do livro, alm de no ajudar a
esclarecer que se trata da edio integral de Pensamento e Linguagem, tambm tem
o inconveniente de produzir, de forma deliberada ou no, uma associao entre a
teoria vigotskiana e o Construtivismo. No que o uso do termo construo implique,
em si mesmo, a adoo do referencial construtivista, mas inegvel que o contexto
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atual acaba por levar a essa associao, de resto bastante reforada pelas muitas
interpretaes que procuram aproximar Vigotski do iderio construtivista, tal como
analisei em vrios momentos de Vigotski e o Aprender a Aprender. J h alguns
anos venho insistindo na tese de que a psicologia vigotskiana no construtivista(NOTA DE RODAP: 4. Abordei esse tema em dois livros: A Individualidade Para-
Si (primeira edio em 1993) e Educao Escolar, Teoria do Cotidiano e a Escola de
Vigotski (primeira edio em 1996), ambos publicados pela Editora Autores
Associados.) e no posso deixar de lamentar que o ttulo da principal obra de
Vigotski, ao ser editada em portugus, venha a ter o efeito de produzir uma
associao com o construtivismo. Alm disso, esse fato refora minha convico
quanto necessidade de elaborao de um trabalho voltado para uma ampla e radicalcrtica ao construtivismo. Nessa direo venho desenvolvendo, desde 1998, um
projeto de pesquisa intitulado O Construtivismo: suas muitas faces, suas filiaes e
suas interfaces com outros modismos. Espero no prximo ano escrever outro livro,
talvez com o mesmo ttulo do projeto, no qual pretendo apresentar as concluses s
quais venho chegando nesse estudo (NOTA DE RODAP: 5. Uma primeira e
parcial amostra do que vem sendo estudado nessa pesquisa constituda por trs
artigos, sendo um artigo de minha autoria e os outros dois artigos de orientandosmeus que participam da equipe desse projeto (Alessandra Arce e Joo Henrique
Rossier), todos publicados numa coletnea que organizei, intitulada Sobre o
Construtivismo: Contribuies a Uma Anlise Crtica, publicada pela Editora
Autores Associados, Essa coletnea conta ainda com um artigo de autoria da
professora doutora Marlia Gouvea de Miranda e outro de autoria da professora
doutora Lgia Regina Klein.).
Newton Duarte
Araraquara, agosto de 2001
e-mail: [email protected]
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CONSIDERAES INICIAIS
A APROXIMAO DA PSICOLOGIA VIGOTSKIANA AO LEMA
PEDAGGICO APRENDER A APRENDER UMA ESTRATGIA
IDEOLGICA
Este livro foi elaborado com base no texto de nossa tese de livre-docncia
(NOTA DE RODAP: 1. A pesquisa da qual nossa tese de livre-docncia constituiu
um dos produtos contou com o apoio financeiro do CNPq, na forma de bolsa de
produtividade em pesquisa e bolsas de iniciao cientfica.) em psicologia da
educao (2. A transformao do texto da tese no texto deste livro foi por ns
efetuada de maneira a incorporar, o mximo possvel, as ricas contribuies dadas
por todos os membros da banca examinadora, composta plos professores Dermeval
Saviani, Celestino Alves da Silva Jr., Lus Carlos de Freitas, Alda Junqueira Marin e
Marcus Vincius da Cunha. Nesse sentido, podemos afirmar que a reelaborao do
texto para publicao em livro constitui-se num processo de continuidade do dilogo
e do debate iniciados naquela seo de defesa de tese realizada em 06.08.1999, no
campus da Araraquara da UNESP. Deixamos aqui registrada nossa gratido pelas
contribuies dadas plos citados professores, eximindo-os, claro, da
responsabilidade sobre a forma como tenhamos interpretado e incorporado essas
contribuies.) e tem por objetivo principal polemizar com uma tendncia que vem
se tomando dominante entre os educadores que buscam, no terreno da psicologia,
fundamentao em Vigotski: a tendncia a interpretar as idias desse psiclogo
numa tica que as aproxima a iderios pedaggicos centrados no lema aprender aaprender. Alis, mais do que um lema, o aprender a aprender significa, para uma
ampla parcela dos intelectuais da educao na atualidade, um verdadeiro smbolo
das posies pedaggicas mais inovadoras, progressistas e, portanto, sintonizadas
com o que seriam as necessidades dos indivduos e da sociedade do prximo sculo.
Pretendemos neste trabalho apontar para o papel ideolgico desempenhado por esse
tipo de apropriao das idias de Vigotski, qual seja, o papel de manuteno da
hegemonia burguesa no campo educacional, por meio da incorporao da teoriavigotskiana ao universo ideolgico neoliberal e ps-moderno.
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A difuso, no meio educacional brasileiro, das interpretaes acerca do
pensamento do psiclogo sovitico Liev Seminivitch Vigotski (NOTA DE
RODAP: 3. Em decorrncia de o idioma russo possuir um alfabeto distinto do
nosso, tm sido utilizadas muitas formas de escrever o nome desse autor com oalfabeto ocidental. Os americanos e os ingleses adotam a grafia Vygotsky. Muitas
edies em outros idiomas, por resultarem de tradues de edies norte-
americanas, adotam essa mesma grafia. Na edio espanhola das obras escolhidas
desse autor tem sido adotada a grafia Vygotski (VYGOTSKI, 1991b, 1993a, 1995,
1996be 1997). Os alemes adotam a grafia Wygotski que se aproxima daquela das
obras escolhidas em espanhol, com a diferena da utilizao da letra W que em
alemo tem o mesmo som que a letra V em portugus. Em obras da e sobre apsicologia sovitica publicadas pela ento editora estatal sovitica, a Editora
Progresso de Moscou, traduzidas diretamente do russo para o espanhol, como, por
Exemplo, Davitov & Shuare (1987), adotada a grafia Vigotski. A mesma grafia
tem sido adotada em publicaes recentes, no Brasil, de partes da obra desse autor
(Vigotski, 1996a, 1998 e 1999). Adotaremos aqui esta grafia, mas preservando nas
referncias bibliogrficas a grafia utilizada em cada edio, o que nos impedir de
padronizar a grafia do nome deste autor.) (1896-1934) pode ser considerada umfenmeno bastante revelador das caractersticas do atual panorama ideolgico no
qual vicejam as proposies de cunho neoliberal e ps-moderno. Entretanto, no
caberia analisar o problema em foco como sendo exclusivo da intelectualidade da
educao brasileira, na medida em que nessas interpretaes pode ser notada, com
facilidade, uma forte influncia de idias defendidas por intrpretes norte-
americanos e europeus da obra vigotskiana. Dessa forma, a anlise das
interpretaes dessa obra produzidas e difundidas por intelectuais brasileiros no
pode deixar de abordar tambm as interpretaes difundidas por intelectuais de
outros pases cujos trabalhos venham sendo traduzidos e editados em nosso pas ou
constituam referncia para estudos realizados por autores brasileiros.
A aproximao entre as idias vigotskianas e as idias neoliberais e ps-
modernas no pode ser efetuada sem um grande esforo por descaracterizar a
psicologia desse autor sovitico, desvinculando-a do universo filosfico marxista e
do universo poltico socialista. Esse esforo realizado de diferentes maneiras, das
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quais podemos destacar duas que, embora distintas, no so necessariamente
excludentes:
l) aproximao entre a teoria vigotskiana e a concepo psicolgica e
epistemolgica interacionista-construtivista de Piaget;2) interpretao da teoria vigotskiana como uma espcie de relativismo
culturalista centrado nas interaes lingsticas intersubjetivas, bastante a gosto do
niilismo ps-moderno.
Os autores que contribuem para a descaracterizao da psicologia vigotskiana
como uma psicologia marxista abarcam um amplo leque de posies ideolgicas,
desde aquelas mais explicitamente anti-socialistas, at aquelas que se apresentam
como defensoras de um marxismo aberto, no-ortodoxo, antidogmtico, etc.,passando por um considervel nmero de autores que omitem seu posicionamento
poltico e ideolgico. Claro que nenhum dos intrpretes de Vigotski poderia afirmar
que a obra desse autor no teria sofrido qualquer influncia do marxismo. Mas o fato
de ser admitida essa influncia no implica necessariamente a aceitao da tese de
que a caracterstica central da psicologia vigotskiana seja a de constituir-se em uma
contribuio para a construo de uma psicologia marxista. Ou seja, muitos autores
podem admitir que Vigotski tenha sido, de alguma forma, influenciado pelomarxismo e, mesmo assim, apresentarem uma leitura do pensamento desse autor que
o afasta do universo poltico e ideolgico de luta pela superao do capitalismo e
pela construo de uma sociedade socialista, Muitos autores que admitem a
influncia do marxismo na psicologia vigotskiana acabam, no conjunto de sua
interpretao, por relegar essa influncia condio de um detalhe perifrico,
acidental, mero resqucio do discurso dominante existente no ambiente cultural no
qual vivia Vigotski ou at mesmo uma concesso a presses polticas externas e
estranhas ao universo do pensamento vigotskiano.
primeira vista poderia parecer que estamos aqui tratando de duas questes
distintas: uma seria a da aproximao entre a teoria vigotskiana e o lema educacional
aprender a aprender, enquanto a outra seria a das tentativas de secundarizar a
importncia do marxismo para a psicologia de Vigotski e torn-la, assim, compatvel
com os iderios neoliberais ps-moderno. Esta segunda questo seria de natureza
filosfico-poltico-ideolgico, enquanto a primeira seria de natureza psicolgica e
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pedaggica. Pois bem, nosso intento neste trabalho ser justamente o de procurar
convencer o leitor de que existem a duas questes de diferente natureza, mas sim
apenas dois aspectos de um mesmo processo de luta ideolgica. Isso porque o lema
aprender a aprender por ns temperado como uma expresso inequvoca dasproposies educacionais afinadas com o projeto neoliberal, considerado projeto
poltico de adequao das estruturas e instituies sociais s caractersticas do
processo de reproduo do capital no final do sculo XX.
Neste sentido, quando questionamos a apropriao da obra psicolgica de
Vigotski por iderios pedaggicos Que tm por lema central o aprender a
aprender, estamos questionando a possibilidade de utilizao da psicologia
vigotskiana para legitimao de concepes ideologicamente articuladas sociedadecapitalista contempornea, no importa se na forma explcita de adeso ideologia
da sociedade regida pelo mercado, isto , a ideologia neoliberal, ou se na forma
aparentemente crtica de um discurso ps-moderno para o qual todo projeto de
transformao poltica consciente da totalidade social redundaria em propostas
autoritrias e no passaria de uma herana da iluso iluminista de emancipao
humana por meio da razo.
Para formularmos, porm, o questionamento acima mencionado, no
podemos deixar de explicitar as referncias pedaggicas com base nas quais fazemos
a crtica ao aprender a aprender. Se consideramos esse lema representativo, no
campo educacional, nos dias de hoje, das ideologias que legitimam a sociedade
capitalista, precisamos explicitar qual a concepo pedaggica que consideramos
compatvel com nossa fundamentao filosfica em Marx e nosso compromisso
poltico com o socialismo. A pedagogia histrico-crtica, tal como ela encontra-se
esboada, na forma de primeiras aproximaes, nos trabalhos de Dermeval Saviani
(NOTA DE RODAP: 4. Ver principalmente SAVIANI (1989, 1991, 1996, 1997a,
1997b, 1998).), a concepo pedaggica que entendemos ser compatvel com
nossa fundamentao filosfica e com nosso compromisso poltico, bem como
aquela com base na qual entendemos ser possvel apresentar uma crtica radical ao
aprender a aprender e s interpretaes neoliberais e ps-modernas que tentam
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aproximar Vigotski a esse lema educacional.
No aqui o local para apresentarmos, mesmo que em linhas gerais, uma
sntese das linhas mestras dessa pedagogia, mas cumpre assinalar alguns pontos
esclarecedores das razes pelas quais adotamos essa pedagogia como perspectivacom base na qual desenvolvida a anlise crtica apresentada neste livro. Em
primeiro lugar, trata-se de uma pedagogia que procura [...] fundar e objetivar
historicamente a compreenso da questo escolar, a defesa da especificidade da
escola e a importncia do trabalho escolar como elemento necessrio ao
desenvolvimento cultural, que concorre para o desenvolvimento em geral. A escola
, pois, compreendida a partir do desenvolvimento histrico da sociedade; assim
compreendida, torna-se possvel a sua articulao com a superao da sociedadevigente em direo a uma sociedade sem classes, a uma sociedade socialista. dessa
forma que se articula a concepo poltica socialista com a concepo pedaggica
histrico-crtica, ambas fundadas no mesmo conceito geral de realidade, que envolve
a compreenso da realidade humana como sendo construda plos prprios homens,
a partir do processo de trabalho, quer dizer, da produo das condies materiais ao
longo do tempo [SAVIANI, 1997b, pp. l 19-120].
Uma das diferenas entre a pedagogia histrico-crtica e as pedagogiasadaptadas aos atuais interesses da burguesia reside no posicionamento perante a
questo da verdade. As pedagogias centradas no lema aprender a aprender so
antes de mais nada pedagogias que retiram da escola a tarefa de transmisso do
conhecimento objetivo, a tarefa de possibilitar aos educandos o acesso verdade. Se
no perodo de luta contra a sociedade feudal, isto , no perodo no qual a burguesia
constitua-se em classe revolucionria, ela podia apresentar-se como guardi e
defensora da verdade, o mesmo deixou de acontecer a partir do momento em que
essa classe consolidou-se no poder e passou a agir como classe reacionria, isto ,
classe que luta contra as foras favorveis ao avano do processo histrico de
desenvolvimento do gnero humano.
A burguesia, ento, se toma conservadora e passa a ter dificuldades ao lidar
com o problema da escola, pois a verdade sempre revolucionria. Enquanto a
burguesia era revolucionria ela tinha interesse na verdade. Quando passa a ser
conservadora, a verdade ento a incomoda, choca-se com seus interesses. Isso ocorre
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porque a verdade histrica evidencia a necessidade das transformaes, as quais,
para a classe dominante uma vez consolidada no poder , no so interessantes;
ela tem interesse na perpetuao da ordem existente. A ambigidade que atravessa a
questo escolar hoje marcada por essa situao social [SAVIANI, 1997b. p. l 16].A contradio que perpassa toda a sociedade capitalista contempornea e que
se faz presente tambm no campo da educao escolar a contradio entre o
desenvolvimento cada vez mais socializado das foras produtivas e a apropriao
privada tanto dos meios de produo como dos produtos dessa produo.
Conforme se acirra a contradio entre a apropriao privada dos meios de
produo e a socializao do trabalho realizada pela prpria sociedade capitalista. O
desenvolvimento das foras produtivas passa a exigir a socializao dos meios deproduo, o que implica a superao da sociedade capitalista. Com efeito, socializar
os meios de produo significa instaurar uma sociedade socialista, com a
conseqente superao da diviso em classes. Ora, considerando-se que o saber o
objeto especfico do trabalho escolar, um meio de produo, ele tambm
atravessado por essa contradio [SAVIANI, 1997b, pp. 114-115].
Essa contradio atingiu, na atualidade, uma forma particularmente aguda:
por um lado, nunca a produo e a reproduo das condies materiais da existnciasocial exigiram tanto a participao do conhecimento e o desenvolvimento
intelectual daqueles que atuam no processo produtivo, mas, por outro, a automao
diminui o nmero de trabalhadores necessrios produo material, gerando uma
massa cada vez maior de excludos e a possibilidade de explorao maior dos que
esto nos postos de trabalho sob a permanente ameaa de desemprego. Em outras
palavras, ao mesmo tempo em que o processo produtivo exige a elevao do nvel
intelectual dos trabalhadores para que estes possam acompanhar as mudanas
tecnolgicas, essa elevao do nvel intelectual precisa, sob a tica das classes
dominantes, ser limitada aos aspectos mais imediatamente atrelados ao processo de
reproduo da fora de trabalho, evitando-se a todo custo que o domnio do
conhecimento venha a tornar-se um instrumento de luta por uma radical
transformao das relaes sociais de produo. Como a classe dominante precisa
exercer uma ininterrupta atividade para no perder sua hegemonia sobre o conjunto
da sociedade, ela utiliza-se de estratgias de obteno da adeso da populao ao
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projeto poltico e econmico neoliberal e. quando essa adeso no obtida, lana
mo da represso pela fora (que passa a ser cada vez mais utilizada tanto no interior
de cada pas como no plano das relaes internacionais). Mas como a histria j
mostrou que o capitalismo no pode manter-se apenas lanando mo da represso,existe uma busca incessante de formas de disseminao da ideologia dominante e de
disseminao de todo tipo de preconceitos e mistificaes em relao a qualquer
projeto poltico e social que conteste o capitalismo e defenda outras formas de
organizao societria. As classes dominantes precisam manter parte da populao
presa idia de que no existe outro caminho para a humanidade a no ser o da total
adaptao s regras impostas pelo mercado mundializado. Entretanto, para que as
condies de miserabilidade que atingem enormes contingentes da populaomundial no produzam reaes violentas da parte desses contingentes, seja na forma
de insurreies organizadas, seja na forma de gigantesco aumento da criminalidade,
comprometendo assim a relativa estabilidade poltica e econmica necessria
reproduo do capital, so acionados vrios tipos de agncias sociais voltadas para a
difuso de conhecimentos elementares que produzam determinadas atitudes
imediatas no cotidiano dos indivduos, atitudes essas que se traduzam em
amenizao, a baixo custo, de problemas sociais gerados pela misria. Soinformaes relativas, por exemplo, a questes no campo da sade e da alimentao.
Os resultados dessas campanhas educativas no passam, claro, de
paliativos momentneos, mas que possuem uma importante funo objetiva de evitar
que determinados problemas tomem propores sociais incontrolveis e tambm
uma no menos importante funo ideolgica de difuso da crena de que as
condies de vida da populao esto melhorando. Mas para que esse tipo de
conhecimento possa ser difundido, necessrio que essa grande parcela da
populao mundial saia da condio de absoluto analfabetismo e tome-se capaz de
assimilar informaes imediatamente aplicveis sem a necessidade de grandes
alteraes no cotidiano dos indivduos. Da a insistncia na necessidade de
eliminao do analfabetismo. Note-se que estamos fazendo referncia a um
complexo processo que envolve a questo do controle, pelas classes dominantes, de
quanto do conhecimento possa e deva ser difundido, para quem e sob quais formas,
de maneira a manter a populao em nveis de conscincia que permitam sua
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manipulao ideolgica e, ao mesmo tempo, que essa populao disponha de
ferramentas intelectuais mnimas indispensveis ao processo de sua adaptao vida
social. Admitimos que realmente no fcil essa tarefa que pesa sobre os ombros da
classe dominante no capitalismo do fim do sculo XX. Diramos que uma tarefaquase to rdua quanto a de administrar as constantes crises econmicas mundiais.
De um lado, preciso manter a populao em nveis intelectuais que permitam o
controle de suas necessidades e aspiraes e, por outro lado, preciso fornecer a
uma parcela dessa populao, uma educao de um nvel intelectual mais elevado e
mais complexo, que permita a reproduo da fora de trabalho, alm, claro, da
necessidade de formao altamente qualificada das elites intelectuais que tm a
tarefa de tentar gerenciar o processo econmico e poltico do capitalismocontemporneo. Todas essas contradies acabam se refletindo na educao escolar:
Parece, pois, que estamos atingindo o limiar da consumao do processo de
constituio da escola como forma principal, dominante e generalizada de educao.
Se assim , a generalizao de uma escola unitria, preconizada pela filosofia da
prxis, que desenvolva ao mximo as potencialidades dos indivduos (formao
omnilateral), conduzindo-os ao desabrochar pleno de suas faculdades espirituais-
intelectuais, estaria deixando o terreno da utopia e da mera aspirao ideolgica,moral ou romntica para se converter numa exigncia posta pelo prprio
desenvolvimento do processo produtivo. Por outro lado, porm, a realizao dessa
meta enfrenta obstculos postos pelas relaes sociais vigentes que, baseadas na
apropriao privada, dificultam a generalizao da produo baseada na
incorporao macia das tecnologias avanadas, impedindo a generalizao da
referida escola unitria. Esta, com efeito, s se viabilizar plenamente com a
generalizao do trabalho intelectual geral. Isto porque se as prprias funes
intelectuais especfica controlar o complexo das suas prprias criaturas, j que o
processo de produo se automatiza, liberando o homem para a esfera do no-
trabalho e generalizando, pois, o direito ao lazer. Essa tendncia, contudo, s poder
se concretizar atravs da socializao da apropriao, isto , com a abolio da
propriedade privada. A manuteno desta produz o efeito contrrio, ampliando, por
efeito mesmo das novas tecnologias, a massa dos despossudos e lanando a maioria
da produo humana na misria mais abjeta. Eis o quadro que se descortina no
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limiar do terceiro milnio: superao do capitalismo ou destruio da humanidade e
do planeta; socialismo ou barbrie [Saviani, 1996, pp. 182-183].
Nesse contexto, no seria o lema aprender a aprender justamente a
manifestao dessa necessidade da escola unitria? A estratgia, ao invs de ser a decrtica incorporao de teorias marxistas, como a de Vigotski, a iderios
pedaggicos centrado no lema aprender a aprender, no deveria ser, ao contrrio, a
de procurar articula o aprender a aprender a uma concepo pedaggica histrico-
crtica e a uma concepo poltica socialista? No deveramos tentar tirar a bandeira
do aprender a aprender das mos da burguesia e coloc-la nas mos daqueles que
esto comprometidos com a superao do capitalismo? Nossa resposta a essas
perguntas no! Nossa avaliao a de que o ncleo definidor do lema aprender aaprender reside na desvalorizao da transmisso do saber objetivo, na diluio do
papel da escola em transmitir esse saber, na descaracterizao do papel do professor
como algum que detm um saber a ser transmitido aos seus alunos, na prpria
negao do ato de ensinai Essa a razo pela qual, em outro trabalho,
caracterizamos os iderios escola-novista e construtivista como concepes
negativas sobre o ato de ensinar (DUARTE, 1998a) A escola unitria no a
generalizao da escola do aprender a aprender. A escola unitria a superaodas concepes burguesas de educao, tanto na vertente da escola tradicional como
na vertente escola-novista, na qual est enraizado o aprende a aprender, atualizado
e revitalizado pelo construtivismo. O lema aprender a aprender a forma alienada
e esvaziada pela qual captada, no interior do universo ideolgico capitalista, a
necessidade de superao do carter esttico e unilateral da educao escolar
tradicional, com seu verbalismo, seu autoritarismo e seu intelectualismo A
necessidade de superao das formas unilaterais de educao real, objetivamente
criada pelo processo social, mas preciso distinguir entre a necessidade real e as
formas alienadas de proposio de solues para o problema. O lema aprender a
aprender, ao contrrio de ser um caminho para a superao do problema, isto , um
caminho para uma formao plena dos indivduos, um instrumento ideolgico da
classe dominante para esvaziar a educao escolar destinada maioria da populao
enquanto por outro lado, so buscadas formas de aprimoramento da educao das
elites.
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A estratgia de luta daqueles que estejam comprometidos com a superao de
sociedade capitalista deve ser a de agudizar as contradies dessa sociedade, na
direo de uma efetiva socializao dos meios de produo. No caso da educao
escolar, trata-se de resistir a todas as artimanhas da ideologia dominante, queresultam em processos objetivos plos quais a sociedade contempornea lana as
massas no se na misria material mas tambm na misria intelectual. O capitalismo
no generaliza o tempo de lazer, mas sim o desemprego. Por sua vez, o lazer torna-
se cada vez mais um espao privilegiado para as mais profundas formas de alienao
das conscincias, isto , para as mais aviltantes formas de manipulao da
subjetividade dos indivduos, transformando-os em seres interiormente vazios, que
s conseguem pensar, sentir e agir dentro dos esteretipos ditados pela ltima moda.A mesma sociedade que tanto prega a individualidade, a autonomia, a liberdade e
a criatividade como seus mais altos valores , opera nos indivduos a mais brutal
padronizao e o mais brutal esvaziamento. A mesma sociedade que criou e
desenvolveu formas extremamente eficazes, do ponto de vista tcnico, para a
produo e a difuso do conhecimento produz um brutal empobrecimento da cultura:
no seu perodo conservador, as expresses culturais burguesas tendem a fazer
coexistir o rebaixamento vulgar da cultura para as massas com a sofisticaoesterilizadora da cultura para as elites (SAVIANI, 1997a, p. 193).
nesse contexto que o lema aprender a aprender passa a ser revigorado nos
meios educacionais, pois preconiza que escola no caberia a tarefa de transmitir o
saber objetivo, mas sim a de preparar os indivduos para aprenderem aquilo que
deles for exigido pelo processo de sua adaptao s alienadas e alienantes relaes
sociais que presidem o capitalismo contemporneo. A essncia do lema aprender a
aprender exatamente o esvaziamento do trabalho educativo escolar,
transformando-o num processo sem contedo. Em ltima instncia o lema aprender
a aprender a expresso, no terreno educacional, da crise cultural da sociedade
atual.
por essa razo que a pedagogia histrico-crtica deve defender, de forma
radical, que o papel da escola consiste em socializar o saber objetivo historicamente
produzido. No se trata de defender uma educao intelectualista nem de reduzir a
luta educacional a uma questo de quantidade maior ou menor de contedos
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escolares. A questo a de que, ao defender como tarefa central da escola a
socializao do saber historicamente produzido, a pedagogia histrico-crtica
procura agudizar a contradio da sociedade contempornea, que se apresenta como
a sociedade do conhecimento e que, entretanto, ao contrrio do que apregoado, nocria as condies para uma real socializao do saber. Cumpre resistir de forma
ativa. Dermeval Saviani analisando o processo de aprovao da atual Lei de
Diretrizes e Bases da Educao (LDB) como um processo de vitria das foras
conservadoras da educao brasileira, articuladas com os interesses da classe
dominante defende a necessidade de as foras de esquerda resistirem de forma
ativa:
Parece que a nica alternativa que resta o desenvolvimento de formas deresistncia. Tem-se constatado, entretanto, que as resistncias s iniciativas de
poltica educacional, por parte do movimento crtico e progressista, tm se revestido
de um carter passivo. Quando se anuncia uma medida de poltica educacional,
tendem a surgir vozes discordantes que expressam suas crticas, formulam objees,
alertam para os riscos e apontam as conseqncias negativas que podero advir, caso
a medida proposta venha a ser efetivada. So, em geral, manifestaes individuais
que, embora em quantidade significativa e representativa de preocupaes e anseiosgeneralizados entre os profissionais que militam no campo educacional, acabam no
ultrapassando o mbito do exerccio do direito de discordar. [...] [A resistncia ativa]
implica pelo menos duas condies: a primeira se refere forma, isto , exigncia
de que a resistncia se manifeste no apenas individualmente, mas atravs de
organizaes coletivas, galvanizando fortemente aqueles que so, de algum modo,
atingidos pelas medidas anunciadas; a segunda diz respeito ao contedo,
envolvendo, portanto, a formulao de alternativas s medidas propostas, sem o que
ser difcil conseguir a mobilizao [SAVIANI, 1997a, pp. 235-236].
No que diz respeito ao tema por ns aqui abordado, a resistncia ativa deve
enfrentar todas as medidas que buscam impedir a escola de realizar seu papel de
socializao do domnio do saber objetivo nas suas formas mais desenvolvidas.
Assim, contra uma educao centrada na cultura presente no cotidiano imediato dos
alunos que se constitui, na maioria dos casos, em resultado da alienante cultura de
massas, devemos lutar por uma educao que amplie os horizontes culturais desses
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alunos; contra uma educao voltada para a satisfao das necessidades imediatas e
pragmticas impostas pelo cotidiano alienado dos alunos, devemos lutar por uma
educao que produza nesses alunos necessidades de nvel superior, necessidades
que apontem para um efetivo desenvolvimento da individualidade como um todo;contra uma educao apoiada em concepes do conhecimento humano como algo
particularizado, fragmentado, subjetivo, relativo e parcial que, no limite, negam a
possibilidade de um conhecimento objetivo e eliminam de seu vocabulrio a palavra
verdade, devemos lutar por uma educao que transmita aqueles conhecimentos que,
tendo sido produzidos por seres humanos concretos em momentos histricos
especficos, alcanaram validade universal e, dessa forma, tornam-se mediadores
indispensveis na compreenso da realidade social e natural o mais objetivamenteque for possvel no estgio histrico no qual encontra-se atualmente o gnero
humano. Sem esse nvel de compreenso da realidade social e natural, impossvel
o desenvolvimento de aes coletivas conscientemente dirigidas para a meta de
superao da sociedade capitalista. nesse sentido que interpretamos as palavras de
Dermeval Saviani quando este afirmou que a tarefa da pedagogia histrico-crtica
em relao educao escolar implica:
a) Identificao das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saberobjetivo produzido historicamente, reconhecendo as condies de sua produo e
compreendendo as suas principais manifestaes bem como as tendncias atuais de
transformaes;
b) Converso do saber objetivo em saber escolar de modo a torn-lo
assimilvel pelos alunos no espao e tempo escolares;
c) Provimento dos meios necessrios para que os alunos no apenas
assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua
produo bem como as tendncias de sua transformao [SAVIANI, 1997b, p. 14].
Pelo que acima expusemos evidente que essa tarefa da pedagogia histrico-
crtica no mbito da educao escolar nada tem de neutra nem de puramente tcnica
ou restrita s quatro paredes da sala de aula. Essa tarefa no pode ser reduzida a uma
proposio pedaggica conteudista nem a uma mera questo de realizar pesquisas
para aperfeioar os mtodos de ensino especficos a cada contedo escolar. A
prioridade que a pedagogia histrico-crtica atribui ao contedo do trabalho
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educativo a defesa intransigente que essa pedagogia fez do papel da escola na
socializao das formas mais desenvolvidas do saber objetivo significa, em
termos de aes prticas, agudizar no campo da educao escolar as contradies da
sociedade capitalista, particularmente a contradio caracterizada pelo enorme fossoexistente entre, por um lado, um desenvolvimento sem precedentes dos meios de
produo e difuso cultural, a exigncia de generalizao da alta cultura e, por
outro lado, as dificuldades crescentes que as relaes sociais burguesas apem ao
desenvolvimento cultural (SAVIANI, 1997a, p. 193).
Ao defendermos, neste livro, a necessidade de uma leitura marxista da obra
de Vigotski, que se oponha s leituras neoliberais e ps-modernas dessa obra, que a
incorporam aos iderios pedaggicos centrados no lema aprender a aprender,estamos travando uma batalha em campo aberto contra a reproduo da ideologia da
classe dominante no meio educacional.
As leituras neoliberais e ps-modernas da obra vigotskiana,
independentemente das intenes dos autores dessas leituras (que podem at ser
autores que se situam entre os pensadores de esquerda), acabam por ter o efeito de
neutralizar o papel que a difuso do pensamento vigotskiano poderia ter no
fortalecimento de uma concepo educacional marxista, articulada a uma concepopoltica socialista. O resultado, pretendido ou no, o de transformao do
pensamento vigotskiano em mais um instrumento ideolgico til ao esvaziamento
do processo educacional escolar. Defender a necessidade de uma leitura marxista da
psicologia de Vigotski e apresent-la como antagnica ao aprender a aprender so
duas faces da mesma moeda, dois aspectos de um mesmo processo argumentativo.
Cabe, entretanto, formular a seguinte pergunta: perante a existncia de
autores de renome internacional, que afirmam conhecer os detalhes histricos do
contexto scio-histrico no qual viveu Vigotski, que pesquisaram diretamente nos
arquivos de seus manuscritos e difundem a interpretao de que a psicologia
vigotskiana estar mais prxima s idias ps-modernas do que ao marxismo (tido
por esses autores como uma concepo j superada, mero dado secundrio sobre o
contexto no qual tocou a Vigotski viver), que autoridade teria um autor brasileiro
(que nunca esteve na Rssia, no l russo, no mantm contato com pesquisadores
russos, no participa de sociedades internacionais de estudo do pensamento
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vigotskiano) para defender articulao da psicologia de Vigotski pedagogia
histrico-crtica e para afirmar que Vigotski pretendesse contribuir para um processo
coletivo de construo de uma psicologia marxista?
Poderamos limitar nossa resposta a essa pergunta ao argumento de que alegitimidade de nossa crtica e das teses que defendemos buscada naquilo que foi
escrito pelo prprio Vigotski, por Leontiev e por outros integrantes dessa corrente da
psicologia sovitica. De feto, em muitos momentos deste livro faremos a
contraposio entre o que eles escreveram e o que vem sendo divulgado pela maioria
dos seus intrpretes contemporneos. Esse argumento j seria satisfatrio para
defender a legitimidade de nosso trabalho. Mas tambm temos outro argumento que
justificaria um certa relevncia deste trabalho e uma certa autoridade parapolemizarmos com autores ilustres no Brasil e no exterior: trata-se do enfoque que
temos adotado no estudo das obras da Escola de Vigotski, enfoque esse constitudo,
alm do j mencionado referencial da pedagogia histrico-crtica, tambm por um
referencial filosfico fundamentado em obras de Marx e em obras do universo
filosfico marxista, de autores como Gyorgy Lukcs. gnes Heller, Gyorgy Markus
e Antnio Gramsci (NOTA DE RODAP: 5. Snteses desses nossos estudos no
campo dos fundamentos filosficos de uma pedagogia marxista podem serencontradas em DUARTE (1993, 1994, 1996, 1998a e 1998b).). Se o leito vier a
concluir que exista alguma consistncia e fertilidade nas idias que apresentamos
neste livro, por certo que isso resultar do fato de estarmos apoiados nesse
referencial filosfico e adotarmos, no campo educacional, a perspectiva da
pedagogia histrico-crtica. No captulo 3 deste livro apresentaremos alguns
elementos da concepo marxiana do ser humano como um ser histrico e da crtica
marxiana s concepes naturalizantes do social. Entendemos que a compreenso
desse aspecto de teoria de Marx indispensvel crtica s concepes histricas da
individualidade humana, to presentes nos campos da psicologia e da psicologia da
educao. A crtica marxiana s concepes naturalizantes do social pode tambm se
constituir em base slida para a construo, por parte dos educadores brasileiros, de
uma leitura marxista da psicologia vigotskiana, leitura essa que defenderemos no
captulo 4 deste livro, e da qual faremos um pequeno exerccio no captulo V
analisando o texto integral do segundo captulo do livro Pensamento e Linguagem
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(VYGOTSKI, 1993a, pp. 29-77), captulo esse no qual Vigotski, por meio da crtica
s idias ento defendidas por Piaget acerca das relaes entre pensamento e
linguagem na criana, formula uma crtica concepo piagetiana de socializao e,
mais do que isso, diramos que formula uma crtica vlida para a essncia de todasas concepes psicolgicas naturalizantes das relaes entre indivduo e sociedade.
Se defendemos neste trabalho a necessidade de uma leitura marxista da
psicologia vigotskiana, precisamos logo de incio esclarecer nossa interpretao
quanto a Vigotski defender ou no a existncia de uma psicologia que pudesse ser
chamada de marxista. necessrio, em primeiro lugar, assinalar que embora esse
autor fizesse restries ao uso da expresso psicologia marxista, essas restries
decorriam da conscincia que ele tinha da responsabilidade histrica daqueles quepretendessem construir tal psicologia e no da defesa de qualquer tipo de
neutralidade ideolgica da psicologia: [...] h que assinalar uma dificuldade especial
na aplicao do marxismo a novas reas: precisamente pela enorme responsabilidade
que representa o emprego desse termo; pela especulao poltica e ideolgica de que
objeto; por tudo isso, no parece hoje muito oportuno falar de psicologia
marxista.
Convm mais que outros digam de nossa psicologia que marxista, ao invsde ns a denominarmos assim; apliquemo-la aos fatos e esperemos no que se refere
s palavras. Ao fim e ao cabo, a psicologia marxista ainda no existe, h que
compreend-la como uma tarefa histrica, porm no como algo dado [VYGOTSKI,
1991 b, p. 402].
No interpretamos esse cuidado de Vigotski na utilizao da expresso
psicologia marxista como conseqncia de alguma hesitao ideolgica, mas sim
como conscincia de que uma psicologia marxista ainda estaria em processo de
construo e as caractersticas principais dessa psicologia ainda estariam sendo
esboadas, havendo uma constante necessidade de avaliao crtica das teorias
psicolgicas que e apresentam como marxistas. Vigotski tambm tinha claro que
uma psicologia deveria ser adjetivada como marxista no por estabelecer
correspondncias diretas entre o pensamento de Marx e os dados obtidos nas
pesquisas experimentais em psicologia, mas sim por enfocar os processos psquicos
como processos histrica e socialmente produzidos, da mesma forma como Marx
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procurou analisar cientificamente a lgica da sociedade capitalista como um produto
scio-histrico. com esse sentido que interpretamos as to citadas palavras de
Vigotski, de que no se trata de buscar nos clssicos do marxismo as solues para
as questes da cincia psicolgica, nem mesmo suas hipteses, mas sim apreenderna globalidade do mtodo de Marx, como se constri a cincia, como enfocar a
anlise da psique (VYGOTSKI, 1991 b, p. 391). A referncia globalidade do
mtodo de Marx parece-nos bastante indicativa de que Vigotski, ao defender que a
construo de uma psicologia marxista deveria decorrer da apropriao do mtodo
de Marx, no estaria defendendo uma leitura utilitarista e reducionista da obra
marxiana, que se limitasse a extrair dessa obra algumas indicaes isoladas de
procedimentos de pesquisa. A globalidade do mtodo de Marx abarca desde aconcepo marxiana da histria social humana at as questes relativas teoria do
conhecimento. O mtodo de Marx, para ser compreendido em sua globalidade,
precisa ser visto como unidade entre ontologia, gnosiologia e lgica, ou seja, como
unidade entre a dialtica objetiva do processo histrico de desenvolvimento do
gnero humano a partir do trabalho, a dialtica histrica dos processos de
conhecimento da realidade pelo ser humano e, por fim, a dialtica tambm histrica
dos processos de pensamento humano. Alis, essa concepo mais abrangente demtodo e de metodologia est presente em vrios momentos da obra de Vigotski e
de outros membros dessa escola da psicologia. Essa observao aqui necessria
considerando-se que comum os termos mtodo e metodologia serem
empregados, especialmente na rea educacional, quase como sinnimos de uma
seqncia de passos ou um conjunto de procedimentos e tcnicas necessrios
obteno de dados de pesquisa. Dada a prpria natureza do mtodo de Marx, no qual
as questes epistemolgicas no se dissociam das questes ontolgico-sociais (a
dialtica do ser social), a utilizao desse mtodo na construo de uma psicologia
no possvel a no ser que essa psicologia compartilhe dos postulados
fundamentais da teoria marxiana como um todo e em todas as suas implicaes
polticas e ideolgicas.
Entendendo que uma psicologia marxista seria aquela capaz de conhecer
efetivamente o psiquismo humano, Vigotski considerava que essa psicologia deveria
incorporar o que houvesse de cientfico no campo dos estudos psicolgicos, sem,
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entretanto, adotar qualquer tipo de ecletismo, nem deixar de considerar os limites e
as inconsistncias das vrias escolas da psicologia. Talvez para decepo de muitos
intelectuais contemporneos, que confundem a necessidade de respeito ao direito de
escolha de cada indivduo com a ausncia de clara diferenciao das diversasposies tericas e ideolgicas, Vigotski no fazia concesses quando se tratava de
esclarecer seu posicionamento no terreno da psicologia. Dado o atual contexto, no
qual os intrpretes escrevem mais sobre suas prprias incertezas ps-modernas do
que sobre as convices de Vigotski, apresentaremos aqui uma citao, com o
objetivo de no deixar dvidas sobre o que escreveu esse autor acerca do significado
da expresso psicologia marxista: Um marxista-historiador nunca diria: histria
marxista da Rssia. Consideraria que isso se depreende dos prprios fatos.Marxista para ele sinnimo de verdadeira, cientfica; no reconhece outra
histria que no a marxista. E para ns a questo deve ser formulada assim: nossa
cincia se converter em marxista na medida em que se converta em verdadeira,
cientfica; e precisamente sua transformao em verdadeira e no a coorden-la
com a teoria de Marx, que nos dedicaremos. Tanto para preservar o legtimo
significado da palavra, como por responder essncia do problema, no podemos
dizer: psicologia marxista, no sentido em que se diz: psicologia associativa,experimental, emprica, edtica. A psicologia marxista no uma escola entre
outras, mas sim a nica psicologia verdadeira como cincia; outra psicologia, afora
ela, no pode existir. E, pelo contrrio: tudo o que existiu e existe verdadeiramente
de cientfico na psicologia faz parte da psicologia marxista: este conceito mais
amplo que o de escola e inclusive o de corrente. Coincide com o conceito de
psicologia cientfica em geral, onde quer que se estude e quem quer que o faa
[VYGOTSKI, 1991 b, p. 404, grifo nosso].
Assim, para Vigotski, a construo de uma psicologia marxista significava
no a tentativa de agregar aos estudos psicolgicos algo externo prpria natureza
desse campo cientfico, mas sim fazer com que a psicologia avanasse na sua
constituio como um conhecimento verdadeiramente cientfico, superando sua
fragmentao em escolas e correntes. Tal superao, entretanto, nada tinha em
comum com o ecletismo to em voga atualmente no terreno da psicologia da
educao e da educao em geral, o qual se caracteriza pela justaposio de
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elementos de teorias to distintas como as de Piaget, Vigotski, Wallon, Ausubel etc.
Para Vigotski, a superao da diviso da psicologia em escolas e correntes no seria
alcanada pelo ecletismo, mas sim por um processo de construo dessa cincia a
partir de uma base diversa daquelas at ento adotadas pelas vrias escolaspsicolgicas. Construir uma psicologia marxista seria superar todos os elementos
no-cientficos que, ao longo da histria, foram sendo incorporados psicologia,
como ao casco de um transatlntico (idem, p. 405). Trata-se, portanto, de construir
uma psicologia fundada sobre uma concepo verdadeiramente histrica do
psiquismo humano, da mesma forma como Marx desenvolveu uma anlise da
sociedade capitalista como produto de um processo histrico. A psicologia deveria
superar as concepes a-histricas da mesma forma que Marx procurou faz-lo noterreno da Economia Poltica. E, convm que seja dito, para Vigotski essa tarefa s
poderia ser levada a cabo se articulada ao projeto poltico de construo de uma
sociedade socialista. A sociedade capitalista no poderia produzir uma psicologia
verdadeiramente cientfica:
Nossa cincia no poderia nem pode desenvolver-se na velha sociedade. Ser
dono da verdade sobre a pessoa e da prpria pessoa impossvel enquanto a
humanidade no for dona da verdade sobre a sociedade e da prpria sociedade. Pelocontrrio, na nova sociedade, nossa cincia se encontrar no centro da vida. O salto
do reino da necessidade ao reino da liberdade formular inevitavelmente a questo
do domnio de nosso prprio ser, de subordin-lo a ns mesmos [idem. p. 406].
Os intelectuais contemporneos podem no compartilhar das convices de
Vigotski acerca do socialismo e da construo de uma psicologia cientfica, mas tm
o dever intelectual e moral de explicitar ao leitor o que efetivamente escreveu
Vigotski e as divergncias entre as convices terico-ideolgicas desse autor e as
de seus intrpretes. Mas tal explicitao exigiria que fossem superados os
preconceitos em relao ao marxismo e que fosse realizado um esforo de estudo
aprofundado dos fundamentos filosficos marxistas da psicologia de Vigotski e sua
escola. Como esses preconceitos no tm sido deixados de lado e como boa parte
dos intelectuais contemporneos no realizou nem pretende realizar um estudo
aprofundado da filosofia de Marx, o pensamento de Vigotski acaba tomando-se
praticamente incompreensvel para aqueles que se propem a analis-lo, resultando
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em enormes distores das idias desse psiclogo sovitico. Um exemplo desse
fenmeno o livro escrito plos autores Ren Van der Veer e Jan Valsiner (VAN
DER VEER & VALSINER. 1996). Vejamos o que diz Van der Veer num dos
captulos de sua autoria, sobre a concepo vigotskiana de histria humana:A histria humana, ento, , por um lado, a histria do domnio cada vez
maior do homem sobre a natureza atravs da inveno de instrumentos e do
aperfeioamento da tecnologia e, por outro lado, a histria do gradual controle do
homem sobre si mesmo atravs da inveno da tcnica cultural dos signos. A
concluso otimista a ser tirada da explicao de Vigotski para a histria humana
que se poderia ver um progresso definido em dois aspectos: o homem moderno
suplantou seus precursores por meio de seu domnio superior sobre a naturezaatravs da tecnologia, e seu controle aperfeioado sobre si mesmo atravs da
psicotecnologia. Seria preciso a Segunda Guerra Mundial e a poluio ambiental
generalizada dos ltimos tempos para fazer as pessoas comearem a questionar
seriamente essas afirmaes [VAN DER VEER & VALSINER, 1996, p. 242].
As limitaes da concepo de histria humana defendidas pelo autor so to
grandes que ele sequer consegue analisar a concepo de Vigotski sobre o
desenvolvimento dos instrumentos humanos luz do processo histrico,caracterizado por Marx, de aguamento da contradio entre as foras produtivas e
as relaes de produo. A averso tipicamente ps-moderna a qualquer idia de
existncia de progresso na histria, por considerar tal idia necessariamente atrelada
a algum tipo de evolucionismo etnocntrico, impede o autor de reconhecer que
foram realizados, ao longo da histria social, muitos progressos no que se refere ao
domnio da natureza pelo ser humano, ainda que tais progressos tenham sido
alcanados por meio de formas repletas de contradies e conflitos, o que no
poderia ser diferente, em se tratando de uma histria de sociedades construdas sobre
a dominao de uma classe social por outra. Quanto questo do domnio do
homem sobre si prprio, por meio dos instrumentos psicolgicos, caracterizados por
Vigotski, o prprio exemplo citado por Van der Veer, da Segunda Guerra Mundial,
a prova do quanto os seres humanos so capazes de controlar seu comportamento.
Que esse controle seja utilizado para a destruio, como no caso da Segunda Guerra,
e no para o desenvolvimento dos homens, outra questo. Alm do mais, no
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foram poucos os que, durante essa mesma guerra, foram capazes de conscientemente
sacrificar sua prpria vida lutando por uma causa que lhes parecia justa e nobre,
colocando essa causa acima da auto-preservao. Isso no seria uma prova da
capacidade humana de controle do prprio comportamento? Que Van der Veer tenhadificuldade em compreender de forma dialtica o processo histrico, algo
aceitvel. O que no podemos aceitar que ele transfira sua dificuldade para o
pensamento de Vigotski. Mas parece que o citado intrprete de Vigotski sente-se
bastante vontade em atribuir aos marxistas as dicotomias de sua prpria concepo
da histria humana:
O problema fundamental para Vigotski e outros marxistas era conciliar a
explicao darwiniana da evoluo humana com a imagem do homem como ocriador consciente de seu prprio destino e da nova sociedade de prosperidade e
alegria eterna. Naturalmente, ento, o problema era apresentar uma explicao da
origem da humanidade que reconhecesse as teorias de Darwin, mas, ao mesmo
tempo, destacasse os seres humanos como algo muito especial no reino animal
[idem, pp. 242-243].
Como se pode notar, o autor no esconde seu elevado grau de preconceito em
relao concepo marxista de histria e ao projeto de construo de umasociedade socialista. A comparao entre o comunismo e a idia de um paraso
eterno no encontrada em nenhum dos autores da psicologia histrico-cultural. A
relao entre a evoluo biolgica e a histria social tratada de forma bastante
clara e explcita, por exemplo, por Alexei Nikolevich Leontiev (1903-1979), em
seu livro O Desenvolvimento do Psiquismo (LEONTIEV, 1978). A diferenciao
entre o homem e os outros animais algo analisado com bastante clareza pelo
marxismo, sendo resultante do trabalho, como atividade especificamente humana.
Rara Marx e Engels nunca houve dificuldade em conciliar sua concepo de histria
social com o reconhecimento da teoria da evoluo das espcies, talvez, para Van
der Veer, assim como para muitos intelectuais da atualidade, o reconhecimento da
diferena entre o homem como ser scio-histrico e o restante dos seres vivos
implicaria a legitimao da destruio ambiental e o no-reconhecimento dos limites
do ser humano. Ora, a origem da destruio ambiental est, ao contrrio, no fato de a
sociedade capitalista tratar a realidade social do mercado como algo natural e como
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possuidora de uma espcie de tendncia natural ao equilbrio. Os homens s podero
manter uma relao no-predatria com a natureza quando forem senhores efetivos
da realidade social.
Mas o livro de Van der Veer & Valsiner no um caso isolado de distorodo pensamento vigotskiano. Vejamos o que diz Harry Daniels em um texto da
coletnea por ele organizada, sobre as atuais concepes educacionais apoiadas na
teoria de Vigotski:
A questo da natureza da verdadeira teoria do conhecimento e da teoria de
pedagogia inerente a uma abordagem neovigotskiana verdadeiramente tardia do final
do sculo XX tambm fonte de controvrsia. Duas dimenses importantes da
diferena no conjunto de prticas que reivindicam uma base vigotskiana dizemrespeito ao controle sobre o comportamento dos alunos e ao controle sobre a criao
do conhecimento nas prticas pedaggicas. Consideremos, por exemplo, o caso da
pedagogia em que o professor define a seqncia, o ritmo e os critrios de avaliao.
Nesse caso, um argumento vigotskiano poderia ser usado para sustentar uma viso
histrica e cultural do conhecimento. O professor tem a responsabilidade de
transmitir criana o legado cultural e histrico de uma sociedade. Por outro lado,
consideremos o argumento vigotskiano de que o conhecimento social e criado nainterao.
O professor tem, ento, a responsabilidade de organizar formas adequadas de
atividades educacionais, nas quais o conhecimento ser criado e, subseqentemente,
assimilado pelo indivduo. A nfase na transmisso daquilo que proveniente da
cultura e da histria pode subverter o que visto por muitos como a condio bsica
para dilogos instrucionais responsivos [...]. De modo inverso, a nfase na
interpretao e interao inter-pessoais, como cenrio para facilitao de processos
de desenvolvimento, pode livrar muitas pedagogias vigotskianas ocidentais de
injrias [...]. Epistemologias e pedagogias diferentes surgem da mesma base terica
[DANIELS, 1994, pp. 25-26].
Teremos oportunidade, ao longo deste trabalho, de analisar criticamente a
interpretao de que o carter social do processo de conhecimento em Vigotski se
traduza, no plano pedaggico, pela mera valorizao das interaes inter-pessoais,
em especial pelas interaes entre pares, como vem sendo bastante divulgado no
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meio educacional brasileiro. No poucas vezes temos visto educadores entenderem
que a contribuio da teoria de Vigotski seria a de trazer a questo do social para o
construtivismo, complementando, dessa forma, outras teorias, como a de Piaget,
nas quais o social seria secundarizado. Em primeiro lugar, no concordamos que ateoria de Piaget precise ser complementada no que se refere questo das interaes
intersubjetivas, pelo simples fato de que tal questo foi sim contemplada por Piaget.
No captulo 6 deste livro defenderemos justamente a tese de que a psicologia
piagetiana scio-interacionista e que muitos educadores e psiclogos, se
estudassem com mais profundidade e ateno a obra do pensador suo, talvez
acabassem por descobrir nela aquilo que buscam em Vigotski. Em segundo lugar,
entendemos que interpretar o social na psicologia vigotskiana como reduzido interao intersubjetiva revela um total desconhecimento do que seja a concepo
marxista do homem como ser social e do que seja a concepo vigotskiana do
carter scio-histrico da formao do indivduo humano. importante tambm
frisar que em absoluto podemos concordar com Daniels quando este admite a
possibilidade de a teoria vigotskiana fundamentar epistemologias e pedagogias no
s diferentes, como tambm opostas. A questo que est em jogo a de se a
psicologia de Vigotski e demais componentes da escola histrico-cultural ou nocompatvel com a pedagogia do aprender a aprender, se a psicologia de Vigotski
pode ou no ser integrada ao movimento construtivista, em termos epistemolgicos,
psicolgicos e pedaggicos. Nossa resposta categoricamente negativa. Por essa
razo tambm no podemos concordar com Coll, Palcios & Marchesi (1995. p.
336) quando estes fazem a seguinte afirmao acerca das concepes de Piaget e
Vigotski:
No parece, portanto, que as duas perspectivas que consistem em destacar a
importncia da interao social ou da interao com os objetos, como fonte de
aprendizagem e de desenvolvimento, em que pese traduzirem proposies que
diferem em muitos aspectos representados na Psicologia Evolutiva por Vygotsky
e por Piaget, respectivamente , devam ser consideradas necessariamente
incompatveis, nem contraditrias entre si, do ponto de vista de suas implicaes
educativas. Provavelmente, o educador que procura promover o desenvolvimento
das crianas a seu cargo, mediante a realizao de aprendizagens especficas, deve-
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se mover, simultaneamente, em dois planos: o da construo de significados
compartilhados, atravs da interao social conjunta sobre o contedo da
aprendizagem, e o da construo de significados por meio da interao direta das
crianas com tal contedo. Em ambos os planos, seja envolvendo-se diretamente nainterao, seja organizando materiais e atividades, seu papel decisivo e sua
influncia, determinante.
Alis, no concordamos com Csar Coll (1994, pp. 116-134) quando este
define, como marco psicolgico para o currculo escolar, um conjunto edtico
(apesar de o autor dizer que pretende evitar o ecletismo) e pragmtico de princpios
psico-pedaggicos, mesclando conceitos das teorias de Piaget, Vigotski e Ausubel,
entre outros. Como um desses princpios. Csar Coll define o aprender a aprendercomo o objetivo mais ambicioso, mas irrenuncivel, da educao escolar (idem, p.
129). Voltaremos ao tema do construtivismo de Csar Coll quando, no primeiro
captulo deste livro, analisarmos a revitalizao do lema aprender a aprender nos
Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) cuja elaborao contou, como sabido,
com a assessoria daquele pesquisador espanhol. Procuraremos ento evidenciar que
o universo ideolgico no qual esto inseridas as proposies pedaggicas presentes
nos PCN o universo neoliberal e ps-moderno.Ainda que faamos referncias, neste livro, s apropriaes neoliberais e s
apropriaes ps-modernas da teoria vigotskiana, no pretendemos estabelecer uma
demarcao que separaria de forma ntida umas das outras, pelo simples fato de que
as vemos como integrantes de um mesmo universo ideolgico produzido pela
sociedade capitalista contempornea e necessrio reproduo da mesma no plano
das conscincias. Um exemplo da impossibilidade de estabelecer uma ntida
separao entre essas duas linhas de interpretao da teoria vigotskiana (a ps-
moderna e a neo-liberal) o feto de ambas acabarem resultando, explicitamente ou
no, na aproximao da teoria vigotskiana s idias prprias ao iderio
construtivista. Assim, mesmo autores que afirmam no concordar com a
aproximao entre as teorias de Piaget e Vigotski, ao interpretarem a teoria deste
ltimo no quadro do relativismo epistemolgico e cultural das concepes ps-
modernas, acabam por operar uma