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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA RODOLFO POLZIN RONDON OBJETOS PARA PENSAR: O NOSSO AQUI, COMPRADO ALI, VINDO DE LÁ CUIABÁ-MT 2012
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Jun 24, 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

RODOLFO POLZIN RONDON

OBJETOS PARA PENSAR: O NOSSO AQUI, COMPRADO ALI, VINDO DE LÁ

CUIABÁ-MT 2012

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RODOLFO POLZIN RONDON

OBJETOS PARA PENSAR: O NOSSO AQUI, COMPRADO ALI, VINDO DE LÁ

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Poéticas Contemporâneas.

Orientadora: Profa. Dra. Ludmila de Lima Brandão

Cuiabá-MT 2012

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

Catalogação na fonte: Maurício S.de Oliveira CRB/1-1860.

R771o Rondon, Rodolfo Polzin.

Objetos para pensar: o nosso aqui, comprando ali, vindo de lá /

Rodolfo Polzin Rondon. – 2012.

113 f. ; 30 cm : color. (incluem figuras)

Orientadora: Ludmila de Lima Brandão

Dissertação (mestrado) -- Universidade Federal de Mato Grosso,

Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de

Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2012.

Bibliografia: f. 110-113

1. Camelódromo. 2. Globalização subalterna. 3. Made in China. 4. Maneki Neko. I.Título.

CDU 339.177

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_______________________________________________________ Profa. Dra. LEDA MARIA DE BARROS GUIMARÃES

Examinadora Externa (FAV/UFG)

___________________________________________________________ Prof. Dr. YUJI GUSHIKEN

Examinador Interno (ECCO/UFMT)

___________________________________________________________ Profa. Dra. LUDMILA DE LIMA BRANDÃO

Orientadora (ECCO/UFMT)

Cuiabá, 07 de fevereiro de 2012.

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AGRADECIMENTOS

Escrever uma dissertação não é uma tarefa fácil. São anos de estudos,

leituras, erros, páginas excluídas, rabiscos, anos de dedicação. Chegar até este

ponto, diante de um amontoado de folhas que leva meu nome na capa reflete minha

certeza de que não cheguei aqui sozinho. Assim sendo, devo registrar nestes

escritos minha gratidão, respeito e amor pelas pessoas que me rodeiam.

Neste espaço, digo meu “muito obrigado” a todas as pessoas que me

ajudaram nesta caminhada. A primeira delas não poderia ser outra: Ludmila

Brandão. Lud querida, obrigado é pouco para refletir o que sinto. Sou grato pela

orientação cuidadosa e amizade sincera, pelo ouvido disposto e pelo sorriso no

rosto. Quero ser como você quando crescer, sábio, simples e generoso.

Agradeço minha família, em especial a minha “Vó Ica”, que partiu em meio ao

meu processo de qualificação e, fisicamente, não está aqui para ver seu neto ser

“mestre”, como sempre dizia repleta de orgulho, mas contribuiu e muito com isso.

Agradeço minha mãe, Maria Emilia, pela compreensão e amor incondicional.

Por sempre estar me esperando nas voltas que esta pesquisa deu, por pisar

delicadamente quando passava pela sala onde eu escrevia esta dissertação.

Agradeço ao meu irmão, Fernando, por sempre discordar de mim e, indiretamente,

me ajudar a sedimentar minhas leituras durante nossas longas discussões. Hugo,

companheiro maravilhoso, crítico de todo este trabalho e amigo de todas as horas,

muito obrigado por estar sempre disposto. Obrigado por ler e reler este texto uma

centenas de vezes, por seu olhar minicioso, por fazer parte da minha vida.

Digo “muito obrigado” também para Yuji, eterno professor e amigo, pelos

conselhos sempre pertinentes, pelas conversas nas ruas de São Paulo ou Bogotá,

pela segurança que me dá ter sua amizade. Sem dúvidas, muito do que sou hoje,

devo a você. Obrigado Leda, pelas valiosas contribuições, da qualificação a defesa,

e por aceitar colaborar tão decisivamente para este trabalho.

Agradeço às minhas amigas, guerreiras de todas as horas, ouvidos dispostos

e abertos de sempre, “muito obrigado” Carol Sousa, Fernanda Arantes, Inara

Fonseca, Juliana Curvo e Viviane Rocha. Agradeço ainda a CAPES pelo

investimento e auxílio. Por fim, agradeço a Deus e aos espíritos bons, nos quais eu

acredito, por toda a proteção que me dedicam durante toda minha vida. Obrigado.

Saravá.

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RESUMO

A presente investigação inicia-se no edifício popularmente chamado de

“camelódromo” ou Shopping Popular de Cuiabá. Construído há mais de quinze anos,

esse espaço é parte constitutiva desta capital, ao mesmo tempo em que a integra

aos fluxos globais de circulação de mercadorias, mais especificamente aos objetos

Made in China. Por meio da proposta etnográfica “de perto e de dentro” seguimos,

do fim para o começo, o percurso feito por essas “quinquilharias”, representadas no

texto pelo gatinho da sorte ou Maneki Neko. Assim sendo, partimos do camelódromo

(e de toda a sua constituição histórica e física) rumo à Ciudad Del Este, centro

econômico do Paraguai, amplamente conhecido pelo comércio desse tipo de

mercadoria e destino de compras dos camelôs do Shopping Popular de Cuiabá. Lá

averiguamos de perto os fluxos e trânsitos desses objetos, descrevendo

detalhadamente as práticas observadas que subsidiaram as reflexões acerca do

termo “globalização subalterna”. Por fim, apresentamos os fatores que contribuíram,

historicamente, para a consolidação da China como potência mundial produtora

desses produtos e realizamos uma “biografia” do Maneki Neko, com o intuito de

discutir de que forma esses objetos contribuem para a compreensão dos meios

pelos quais agem os que estão fora dos fluxos hegemônicos do mundo

contemporâneo.

Palavras-chave: camelódromo, globalização subalterna, Made in China, Maneki

Neko.

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ABSTRACT

The present investigation parts of the building popularly called "camelódromo" or

Popular Shopping in Cuiabá. Built more than fifteen years ago, this space is a

constitutive part of the city while integrates the global flows of movement of goods,

more specifically the objects Made in China. Through the proposed ethnographic

"near and inside" we made, the ending to beginning, the route taken by these "junk",

represented in the text by luck cat or Maneki Neko. Therefore, we assume

camelódromo (and all its history and physical constitution) towards Ciudad Del Este,

the Paraguayan city widely known by the trade of this type of merchandise and

shopping destination of the hawkers in the Popular Shopping in Cuiabá. There we

analised closely the flows and transits of these objects, describing in detail the

practices that supported the observed reflections on the term "subaltern

globalization." Finally, we present the factors that contributed historically to the

consolidation of China as a sign of power producing these objects and perform a

"biography" of Maneki Neko, with the purpose of discuss where these objects

contribute to the understanding of the means by which the act that are outside the

hegemonic flows in the contemporary world.

Keywords: camelódromo, subaltern globalization, Made in China, Maneki Neko.

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SUMÁRIO

ABRINDO............................................................................................................. 9

CAPÍTULO 1 – AQUI...........................................................................................

12

1.1 O camelódromo de Cuiabá............................................................................ 12

1.2. O subalterno em questão.............................................................................. 16

1.2.1. Gramsci, os conceitos de hegemonia e subalterno............................... 16

1.2.2. Os Estudos Culturais.............................................................................. 18

1.2.3. Os Estudos Subalternos......................................................................... 25

1.3. O camelódromo hoje..................................................................................... 27

1.4. Canevacciando o camelódromo.................................................................... 36

1.5. Relação entre corpos: um devaneio escrito.................................................. 39

CAPÍTULO 2 – ALI..............................................................................................

43

2.1. Etnografia de um pesquisador sacoleiro....................................................... 43

2.2. Globalização.................................................................................................. 67

2.2.1. Entre metáforas e o mundo.................................................................... 67

2. 3. A globalização subalterna............................................................................ 72

CAPÍTULO 3 – LÁ...............................................................................................

76

3.1. China: recorte histórico................................................................................. 76

3.1.1. Canton System....................................................................................... 76

3.1.2. As Guerras do Ópio e outras insurreições (1819-1911)......................... 79

3.1.3. República (1911-1949)........................................................................... 80

3.1.4. Revolução Comunista (1949)................................................................. 82

3.1.5. A Era Mao (1949-1976).......................................................................... 84

3.1.5.1. Grande Revolução Cultural Proletária da China (1966-1969)......... 86

3.1.5.2. Os últimos anos do timoneiro (1969-1976)..................................... 88

3.1.3. Deng e o capitalismo chinês (1976-2011)............................................. 89

3.1.4. Algumas considerações à cerca Guangdong e suas bugigangas........ 91

3.2. Maneki Neko................................................................................................. 92

3.2.1. As lendas................................................................................................ 92

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3.2.2. O nosso aqui, comprado ali, vindo de lá................................................ 95

3.3. As mercadorias Made in China..................................................................... 98

3.3.1. Entre sacrifícios e biografias, com quem dialogo .................................. 98

3.3.2. Biografia do Maneki Neko...................................................................... 101

FECHANDO.........................................................................................................

107

REFERÊNCIAS....................................................................................................

110

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ABRINDO

Quando criança costumava ir ao camelódromo com minha avó. Sempre fui

fascinado por aquele lugar, repleto de coisas por todos os lados. Andava por entre

os corredores enquanto ela escolhia flores de plástico para os arranjos da sala.

Enquanto ela e a vendedora discutiam combinações, passeava olhando brinquedos,

como a coleção de bonecos que giravam a cabeça, a mini fazenda com bois, vacas

e cavalos de plástico ou a imensa caixa repleta de miniaturas de carros de corrida.

Aqueles objetos vinham de algum lugar que na minha cabeça de criança era apenas

longe. O Paraguai era como a fábrica do Papai Noel, que também aparecia ali no

camelódromo dançando na época de Natal. Quando minha avó terminava suas

escolhas, sempre comprava para mim uma fita contendo dez gomas de mascar

coloridas e redondas. O camelódromo tinha, para mim, gosto de goma de mascar.

Anos mais tarde, já na graduação, retorno ao camelódromo para realizar

pesquisa de iniciação científica. Investiguei a difusão e a releitura dos personagens

infanto-juvenis naquele espaço de práticas subalternas durante dois anos. Esse

tempo permitiu que descobrisse outro fenômeno: a publicidade feita pelos próprios

camelôs, da maneira que dá, sobre suas bancas. Ingressei no mestrado e o

camelódromo continuou como lócus de meu interesse. Mas tratar do quê? Lá tem

tanta coisa que foi (e ainda é) difícil manter uma linha tênue de investigação.

Porém, se observarmos bem o que fiz por lá durante esse tempo, chegamos

ao ponto crucial da pesquisa que resulta esta dissertação: os objetos em trânsito na

globalização subalterna. São os objetos que dão vida ao camelódromo. São eles

que vêm de lá para cá e vão daqui para lá. São eles que vêm da China e vão para

alguma casa em algum ponto da cidade. São eles que conectam cidades. São eles

utilizados como e para publicidade. São eles que materializam a globalização que

acontece em meio às classes populares. São eles, como a televisão e a internet,

que globalizam aqueles que estão fora dos fluxos hegemônicos, logo subalternos.

A metodologia adotada nesta caminhada, principalmente no que diz respeito à

pesquisa de campo, baseia-se nas reflexões etnográficas de José Guilherme Cantor

Magnani, em seu artigo “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. A

etnografia aqui sugerida contempla o estudo dos atores sociais no contexto da

cidade e a partir das relações que a mesma estabelece com os seus atores, seus

fluxos, trânsitos e pertencimentos. Os objetos dos quais falamos estão inseridos no

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contexto do camelódromo que por sua vez é movimentado pelos camelôs (atores

sociais) que circulam por entre cidades como Cuiabá, Foz do Iguaçu e Ciudad Del

Este. Para Magnani, isso permite o resgate e a inserção da dinâmica da cidade

observando suas multiplicidades, seus movimentos (2002, p. 15).

O camelódromo, fruto de um ordenamento que escapou ao controle do

Estado, mudou a dinâmica da cidade e consequentemente sua relação com o

mundo. Magnani (idem) ainda destaca que o método etnográfico “não se confunde

nem se reduz a uma técnica”. Para ele, a etnografia pode servir-se de várias

técnicas, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; “ela é antes um modo de

acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos”. Acrescenta ainda

que “não é a obsessão pelos detalhes que caracteriza a etnografia, mas a atenção

que lhes dá: em algum momento, os fragmentos podem arranjar-se num todo que

oferece a pista para um novo entendimento” dos objetos enquanto mercadorias,

transitando em uma globalização não hegemônica.

Assim sendo, o primeiro capítulo começa com a apresentação do percurso

histórico que culminou na criação do Shopping Popular de Cuiabá e se encaminha

para definição do termo “subalterno”, tão importante para esta discussão, partindo

da interpretação do conceito de Antônio Gramsci. Além disso, apresento uma

introdução aos estudos culturais sustentando a breve discussão a propósito dos

estudos culturais na América Latina, proposta por Alberto Moreiras, colaborando

para uma aproximação teórica entre os latino-americanos e os indianos dos Estudos

Subalternos (nomes como Gayatry Spivak, Dipesh Chakrabarty e Ranajit Guha).

Posterior a essa delimitação e a conclusão da descrição do camelódromo, manipulo

os conceitos propostos por Massimo Canevacci e, influenciado pela metodologia do

autor, constituo conceitualmente o camelódromo e ainda experimento observá-lo

pela lente canevacciana num devaneio escrito.

Compreendido o espaço do qual falamos, temos no início do segundo capítulo

a pesquisa de campo realizada na viagem às cidades de Foz do Iguaçu, Ciudad Del

Este e Puerto Iguazu. Nessa tríplice fronteira observamos como as práticas da

informalidade se articulam em meio a táticas para burlar o poder hegemônico do

governo e do comércio formal e ainda como acontecem os fluxos das mercadorias

em um processo de globalização subalterna. Para manipular tal termo, cunhado por

Ludmila Brandão, utilizamos as considerações a respeito da globalização (e seus

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sinônimos) de Octavio Ianni, Renato Ortiz, Marshal McLuhan, Milton Santos e

Anthony Giddens.

O terceiro e último capítulo apresenta um histórico detalhado da China,

justificado pela necessidade de compreensão dos fatores que contribuíram para o

crescimento acelerado do país nas últimas décadas. Além disso, escolhi o gatinho

da sorte Maneki Neko para tratar da potência dos objetos Made in China, de suas

biografias e da materialização da globalização subalterna rascunhada no capítulo

anterior. Amparado na obra organizada por Arjun Appadurai que discute a vida

social das coisas e em Michel de Certeau com suas proposições a respeito das

táticas dos sujeitos comuns que subvertem a ordem, ou seja, o hegemônico, pensei

na representação de uma outra globalização pouco investigada pela academia em

todas as áreas.

Nas considerações finais, ou no fechamento, optei por apresentar o meu

aprendizado durante todo esse percurso, relacionando as conclusões que apresentei

durante todo o texto com a vivência que o trabalho me proporcionou e o aprendizado

que fica a cerca do fazer pesquisa no contemporâneo. Boa leitura.

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CAPÍTULO 1 – AQUI

1.1. O camelódromo de Cuiabá

A virada do século XIX para o século XX marcou o crescimento urbano

atrelado ao processo de industrialização e deslocamento das pessoas pelo mundo.

Esses deslocamentos desencadearam um aumento nos problemas urbanos, as

cidades se transformavam e foi preciso pensá-las a fim de minimizar os problemas

da “nova” cidade. Dos estudos da Escola de Chicago até os dias atuais, muitos

pesquisadores se debruçaram sobre as problemáticas das cidades e se utilizaram

de diversas características das mesmas para desenvolver suas teses. Esses

trabalhos servem para compreendermos como se deram esses processos e mais, o

que eles nos dizem a cerca da cidade contemporânea e suas práticas.

Décadas depois dos estudos de Robert E. Park, a modernidade em Cuiabá,

assim como a brasileira chegará, especialmente, na década de 1970, quando a

cidade apresentou as mais altas taxas de crescimento populacional do país,

atingindo índices de 12% ao ano1. Um novo “problema” para a municipalidade

decorrente desse crescimento populacional2, que se acentuará nas décadas

seguintes em função de outros problemas de ordem nacional, foi a ocupação dos

espaços públicos pelo comércio popular informal de comerciantes ambulantes.

Esses ambulantes foram afetados diretamente pelo processo de modernização da

cidade que resultou em várias tentativas de disciplinamento da atividade desses

atores sociais por parte daqueles que detinham o poder de viabilizá-la.

Os camelôs se apropriam das ruas, supostamente ordenadas pelo poder

público, e as utilizavam em favor de suas práticas. Néstor García Canclini diz que a

cidade moderna (a que não escapa ao controle), por vezes, deixa de ser moderna:

O que era um conjunto de bairros se espalha para além do que podemos relacionar, ninguém dá conta de todos os itinerários, nem de todas as ofertas materiais e simbólicas desconexas que aparecem. Os migrantes atravessam a cidade em muitas direções e instalam, precisamente nos cruzamentos, suas barracas barrocas de doces regionais e rádio de contrabando, ervas medicinais e videocassetes (CANCLINI, 2008).

1 BRANDÃO, 1997, p. 70.

2 BOMFIM, 2010, p. 97.

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Os migrantes que Canclini aponta, em nosso caso, equivalem aos camelôs

que também caminham nas mais diversas direções dentro da cidade e fora dela,

instalando suas barracas por entre ruas e cruzamentos, vendendo seus produtos

ilegais e transformando, a todo momento, os fluxos urbanos. Manuel Delgado, no

livro Sociedades Movedizas, diz que nas cidades, mais precisamente, nas ruas, o

que encontramos é uma vida coletiva que só pode ser observada no instante em que

emerge, já que está destinada a se dissolver de imediato.

Para Delgado (2007), a cidade não é um esquema de pontos, nem um marco

vazio, nem um envoltório, tampouco uma forma que se impõe aos eixos, como

pretendiam os urbanistas; e sim, uma ação interminável na qual os transeuntes

reinterpretam a forma urbana a partir dos estilos com os quais se apropriam dela. Os

“praticantes ordinários da cidade”, como nos diz Michel de Certeau (2007, p. 171),

“cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um ‘texto’ urbano que escrevem sem

poder lê-lo”, junto a outros corpos, escrevem uma história múltipla da cidade

habitada, formada em fragmentos de trajetórias. Kevin Lynch (2005, p. 13),

considera a cidade não como algo em si mesmo, mas como objeto da percepção

dos seus habitantes. Estas perspectivas, concomitante com a apontada por Canclini,

nos colocam diante menos de um problema e mais de um fenômeno a ser

investigado.

O ato de perambular pelas cidades comercializando produtos não era novo,

advinha dos antigos mascates que andavam pelas estradas do Brasil levando seus

produtos que dificilmente chegariam a esses lugares por outros meios. Os mascates,

a nosso ver, tinham o papel de ligar produtos e pessoas de diferentes lugares (como

ainda hoje fazem os camelôs, como vemos mais a frente). É como as raízes da

globalização na visão de Serge Gruzinski (1999), no qual as grandes navegações, a

“descoberta” das Américas e o escambo de iguarias marcaram os contatos e início

da vida social das mercadorias pelo globo. Os mascates eram detentores de uma

modernidade brejeira, das novidades da capital, do imaginário do que estava para

além do horizonte, dos produtos que se convertiam em imagens do lado de lá.

Ludmila Brandão, a propósito da “transformação” dos mascates em camelôs,

descreve que,

no século XX, no âmbito das transformações sociais, econômicas, culturais e urbanas, a figura do mascate foi paulatinamente escasseando e cedendo lugar à figura do camelô que, diferentemente do seu predecessor, ganha localização fixa em

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algum ponto da cidade com grande circulação de pedestres. Enquanto o mascate visitava a conhecida freguesia, de porta em porta e com certa regularidade, o camelô fica, sistematicamente, à espera de seus fregueses, agora anônimos, nos pontos cotidianos de passagem (BRANDÃO, 2009, p. 240).

Com o passar dos anos, o desenvolvimento das cidades e das estradas, os

mascates foram gradativamente perdendo sua função. O campo perdia espaço para

a cidade, o rural era engolido pelo urbano. Os produtos começaram a chegar por

outros meios e mesmo as menores cidades deixavam de estar tão isoladas das

demais. O capitalismo avançou, transformando-se aceleradamente, e nele não há

espaços iguais para todos. Os mascates deram lugar aos atores sociais de que

falamos no começo, os camelôs. É claro que não há uma ligação direta entre eles. O

que vemos é uma aproximação, uma prática que se reconfigurou com os anos e

continua viva na sociedade contemporânea. Eles são então, a subversão do

capitalismo dentro dele próprio, o que sobra, faz a curva e entra novamente no

sistema, sem impostos, sem taxas. É das práticas desses atores, no camelódromo

de Cuiabá, que tratarei neste capítulo.

Em abril de 1995, após inúmeros embates entre os “ambulantes” e o Poder

Público Municipal, os camelôs, que transitavam pelas ruas e praças de Cuiabá

vendendo suas mercadorias, foram transferidos para o local onde hoje encontramos

o “Shopping Popular de Cuiabá3”. Entretanto, antes de ocuparem o atual prédio do

“camelódromo”, ficaram por mais de três anos tentando, sem sucesso, acordos e

concessões com os governantes da época.

Em 1992, o então prefeito Dante Martins de Oliveira (figura nacionalmente

conhecida por sua participação no processo de eleições diretas) inaugurou sua

administração com a disposição de “limpeza” das ruas e praças de Cuiabá que

significava, entre outras coisas, a remoção dos camelôs. Wilson Santos (que veio

posteriormente a ser prefeito de Cuiabá), assumiu a Secretaria de Serviços Urbanos

na administração Dante de Oliveira com a responsabilidade de coordenar o

processo de negociação e posterior remoção dos camelôs do recém-tombado

Centro Histórico da capital.

Segundo Misael Galvão4, o discurso do Poder Público, na época, era o de que

Cuiabá não comportaria a demanda de ambulantes nas ruas; eram muitas pessoas

3 Tratado daqui em diante por SP.

4 Misael Oliveira Galvão, presidente da Associação dos Camelôs do Shopping Popular, participou de

todo o processo de negociação até a remoção. Na época era conhecido como “líder de rua” (como o

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transitando e obstruindo as frentes das lojas (obviamente desagradando aos

interesses dos comerciantes legalizados). A remoção dos camelôs foi realizada em

26 de abril de 1995 sob forte esquema de segurança, com apoio da Polícia Militar e

do Corpo de Bombeiros Militar de Mato Grosso que, à força, retirou os camelôs do

centro e os levou até a nova área imposta para a ocupação. Misael diz ainda que, na

época, a área foi entregue apenas com o asfalto e dois banheiros, sem qualquer

infraestrutura básica.

Figura 1 Vista da região centro-sul de Cuiabá

A postura opressiva adotada pelos então governantes reforça a principal

característica do subdesenvolvimento, “a impossibilidade de uma organização social

capaz de concentrar e dirigir os meios existentes em direção ao desenvolvimento da

coletividade” (CASTELLS, 1983, p. 57). Na ocasião, ao invés de buscar medidas que

atendessem às diversas demandas que envolviam a questão dos camelôs, preferiu-

se expulsá-los do convívio central, como se fosse possível dizimá-los da nova

postura da cidade.

próprio se intitula) e, posteriormente, assumiu o mandato de presidente da associação, cargo este que ocupa há mais de 12 anos. Em 2010, foi eleito Deputado Estadual por Mato Grosso.

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Diante da situação cada vez mais difícil, os camelôs resolveram se organizar

e criar a Associação dos Camelôs do Shopping Popular (ACSP). A operação desses

usuários, “supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU, 2007,

p. 37), já que foram retirados à força do centro5 (ponto marcado com a letra “A” na

figura 01) e “acomodados” no bairro do Porto6 (ponto marcado com a letra “B” na

mesma figura), resultou na transformação dos então ambulantes em “associados7”,

que passaram a articular uma parceria com o Poder Público para a construção do

que hoje chamamos de Shopping Popular. A construção aconteceu com a ajuda de

diversos setores, mas em sua maioria, com o capital investido pelos próprios

associados da ACSP. Os ambulantes subverteram a ordem, não a rejeitando

diretamente ou a modificando, mas a usaram para fins e em função de referências

até nesse momento estranhas ao sistema do qual não podiam fugir. Estranhas

porque na época, era inconcebível pensar uma organização comercial que não a de

lojas bem estruturadas em prédios bem localizados. A ACSP, torna-se então, a CDL

(Câmara dos Dirigentes Lojistas – instituição representante dos comerciantes lojistas

de Cuiabá) subalterna. A propósito desse termo, fundamental para esta discussão e

marco de minha perspectiva epistemológica, tratarei de contextualizá-lo para,

depois, retomar o camelódromo a luz desse conceito.

1.2. O subalterno em questão

1.2.1. Gramsci, os conceitos de hegemonia e subalterno

Na concepção de Antônio Gramsci, as classes sociais dominadas ou

subalternas compartilham de uma visão do mundo que lhes é imposta pelas classes

dominantes. A partir da leitura de Luciano Gruppi (1978) a propósito do conceito de

hegemonia em Gramsci, farei algumas associações que servem como argumento

para a compreensão das práticas dos camelôs como subalternas e posterior

discussão da globalização desses atores sociais como sendo também subalterna.

5 Local no qual há grande carga simbólica na relação que a cidade estabelece com seus habitantes,

já que ali surgiu Cuiabá e dali a mesma cresceu. A nosso ver, é como seu a própria cidade degredasse seus habitantes, essa parcela da população que subvertia a onda modernizadora e “sujava” a capital. 6 Ponto que, no passado, conectava a cidade com o resto do mundo por meio do rio Cuiabá e nesse

período era marginalizada por causa de seus transeuntes. 7 Essa denominação é usada pelo presidente da associação para referir-se aos camelôs vinculados

ao Shopping Popular.

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Conforme nos diz Gruppi a cerca dos escritos de Gramsci,

Vemos [...] a ideologia das classes ou classes dominantes chegar às classes subalternas, operária e camponesa, por vários canais, através dos quais a classe dominante constrói a própria influência ideal, a própria capacidade de plasmar as consciências de toda a coletividade, a própria hegemonia. Um desses canais e a escola. [...] Um outro canal é a religião, a Igreja. [...] Outro canal de educação é o serviço militar. [...] É preciso estudar o modo pelo qual se expressa uma consciência ainda subalterna; deve ser levado em consideração o elemento de espontaneidade relativa nela presente, já que tão-somente a partir dessa consciência elementar poderemos guiar as massas até uma consciência crítica. (GRUPPI, 1978, p. 68).

Não retornarei a discussão marxista que permeia a obra de Gramsci, mas é

claro que também não a nego e marco aqui sua importância. O que interessa é ver

como as anotações desse autor em seus Cadernos do Cárcere servem para

observarmos o desencadeamento que constituiu o camelódromo. A força

hegemônica aplicada sobre os camelôs pelos governantes da época foi respaldada

pelo discurso de preservação do patrimônio histórico de Cuiabá, cujo Centro

Histórico acabava de ser oficialmente tombado pelo IPHAN. Como em outras

cidades no Brasil, o discurso da preservação do patrimônio, um discurso ideológico

que se converteu em hegemônico foi a justificativa que faltava para concretizar a

expulsão dos camelôs do centro da cidade.

Essa “capacidade de unificar através da ideologia e de conservar unido um

bloco social que não é homogêneo, mas sim marcado por profundas contradições de

classe” (idem, p. 70) é a hegemonia para Gramsci. Os governantes articulados com

o interesse privado dos comerciantes conseguiram, naquele momento, realizar esse

feito da união pela força. Através de sua ação política, ideológica, cultural, a classe

hegemônica em questão conseguiu manter articulado esse grupo de forças

heterogêneas, impedindo que o contraste existente entre tais forças explodisse,

“provocando assim uma crise na ideologia dominante” (ibidem).

A criação da ACSP pode ser compreendida como uma reação desse grupo de

camelôs, pertencente ao conjunto das classes subalternas, como uma crítica à

concepção de comércio imposta pelas classes dominantes, dessa forma, as classes

subalternas em questão superam as classes dominantes, tendo em vista a

construção de uma “concepção nova” de comércio, na qual se estabeleceu uma

unidade entre a teoria (as leis que fundamentavam a expulsão em nome da

preservação, bem como a organização dos subalternos enquanto entidade jurídica)

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e a prática (o uso da teoria em prol da manutenção de reconfiguração da venda dos

produtos comercializados), entre a política e a filosofia.

Mesmo com tal frente ao hegemônico, os associados continuam em situação

subalterna, ao passo que o discurso preservacionista, que já não dava mais conta

da ideologia “anti-camelôs”, renova-se sob outras formas: “anti-pirataria”, “anti-

sonegação de impostos”, entre outras, das quais falarei mais no decorrer da

dissertação e que corroboram para a manutenção dos camelôs e suas práticas em

posição subalterna, à margem dos fluxos hegemônicos mundiais.

1.2.2. Os Estudos Culturais

Os Cultural Studies surgem na Grã-Bretanha, como um campo de estudos,

por volta da segunda metade dos anos 1950, como uma crítica ao elitismo de F. R.

Leavis (1895 – 1978) e seus contemporâneos, para quem a cultura era propriedade

de uns poucos homens de valores refinados. Em 1957, Richard Hoggart publicou o

livro The Users of Literacy: Aspects of Working-Class Life with Special References to

Publications and Entertainments, sendo este considerado, por alguns pesquisadores

da área, o marco inicial dos Estudos Culturais. Ele almejava ultrapassar o

positivismo científico da objetividade sociológica e concentrar-se na “subjetividade”,

no sentido de analisar a cultura em relação a vidas individuais. Nesse livro, Hoggart

estuda a influência da cultura difundida em meio à classe operária pelos modernos meios de comunicação. [...] A ideia central que ele desenvolve é que tendemos a superestimar a influência dos produtos da indústria cultural sobre as classes populares. (MATTELART e NEVEU, 2004, p.42)

Hoggart, mesmo manifestando sua atenção aos receptores, tem suas

hipóteses e análises marcadas pela desconfiança com a industrialização da cultura.

De acordo com Armand Mattelart e Érik Neveu (2004), a própria ideia de resistência

das classes populares, que embasam sua abordagem das práticas culturais

populares, sustenta-se nessa crença. Hoggart previne ao leitor o uso dos juízos de

valor na utilização de termos antinômicos tais como “são”, “decente”, “sério” e

“positivo” de um lado, “vazio”, “debilitante”, “trivial” e “negativo”, do outro. O conceito

de resistência à ordem cultural industrial é consubstancial à pluralidade de objetos

de pesquisa que distinguirão os domínios explorados pelos estudos culturais durante

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mais de duas décadas. Ela evoca a convicção de que é impossível prescindir a

“cultura” das relações de poder e das estratégias de mudança social.

Além de Hoggart, Raymond Williams é outro importante nome fundador dos

Estudos Culturais ingleses. Williams, como Hoggart8, era ligado à formação de

adultos das classes populares e ao renascimento das análises marxistas com a New

Left Review nos anos 1960. Advindos das classes trabalhadoras inglesas,

relacionaram-se com o leavisismo de maneira ambivalente, ao passo que, mesmo

concordando que os textos canônicos ingleses detinham maior riqueza cultural que

outros, por exemplo, a literatura produzida para as massas, ou todo e qualquer

produto considerado massivo, reconheciam que essa maneira de pensar

marginalizava as formas culturais das classes trabalhadoras.

Em seu livro Culture and Society (1958), Williams arquiteta um histórico do

conceito de cultura, concluindo com a ideia de que a “cultura comum ou ordinária”,

bem como o mundo das Artes, Literatura e Música podem ser observadas como um

modo de vida em condições de igualdade de existência (cf. ESCOSTEGUY, 2010, p.

28). Sua contribuição teórica é fundamental através de um olhar diferenciado sobre

a história literária. Ele entende a cultura como uma categoria-chave que relaciona

investigação social e análise literária e ainda a dificuldade da identificação dos

efeitos culturais das desigualdades sociais. Três anos depois, publica The Long

Revolution, no qual destaca a força do debate à época a respeito do impacto cultural

dos meios massivos. Para Stuart Hall, esse livro transformou toda a orientação da

discussão de uma definição moral-literária para uma definição antropológica.

Segundo Escosteguy (ibidem), “essa mudança no entendimento de cultura fez

possível o desenvolvimento dos estudos culturais”.

O terceiro “pai” dos Estudos Culturais é Edward P. Thompson. Seu trabalho,

conforme disseram Mattelart e Neveu (2004), pode ser delineado como a alternativa

de uma história situada na vida e nas práticas de resistência das classes populares.

O mais conhecido é The Making of the English Working Class (1963), considerado

um clássico da história-social com reflexão sobre a sócio-história de um grupo social.

Ele foi um dos fundadores da New Left Review e, com Williams, compartilhava a

vontade de romper com a interpretação da cultura como uma variável submetida à

economia. Ambos entendiam a cultura como

8 E também Thompson, conforme veremos a seguir.

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uma rede vivida de práticas e relações que constituíam a vida cotidiana, dentro da qual o papel do individuo estava em primeiro plano. Thompson resistia ao entendimento de cultura enquanto uma forma de vida global. Em vez disso, preferia entendê-la enquanto um enfrentamento entre modos de vida diferentes (ESCOSTEGUY, 2010, p. 28-29).

A fim de aproximar ainda mais a discussão de Williams e Thompson, Mattelart

e Neveu (2004, p.47) afirmam que

encontra-se a visão de uma história construída a partir das lutas sociais e da interação entre cultura e economia, em que aparece como central a noção de resistência de uma ordem marcada pelo “capitalismo como sistema”. Entre os intelectuais de esquerda, o período é então ainda dominado pelo debate sobre a antinomia sumária que opõe a “base material” da economia á cultura, fazendo desta última um simples reflexo da primeira. Sair desse dilema impossível e redutor é um dos desafios com que os estudos culturais terão de se enfrentar.

Alguns anos mais tarde, o trio de pais fundadores se completará com um

quarto (e crucial) pensador: Stuart Hall. Pertencente à geração que não participou

diretamente da Segunda Guerra Mundial, Hall foi uma figura-chave das revistas da

nova esquerda intelectual, tendo sua maturidade na produção científica no limiar dos

anos 1970. Ao substituir Hoggart na direção do Centre for Contemporary Cultural

Studies (CCCS)9, de 1968 a 1979, fomentou,

o desenvolvimento da investigação de práticas de resistência de subculturas e de análises dos meios massivos, identificando seu papel central na direção da sociedade; exerceu uma função de “aglutinador” em momentos de intensas distensões teóricas e, sobretudo, destravou debates teórico-políticos, tornando-se um “catalizador” de inúmeros projetos coletivos (ESCOSTEGUY, 2010, p.29).

Hall, apesar de herdeiro de Raymond Williams e sua abordagem culturalista

dos Cultural Studies, não despreza a contribuição dos estruturalistas no campo dos

Estudos Culturais, que voltam seus olhares para o exame atento de práticas

significantes e processos discursivos. De acordo com Escosteguy (ibidem), “é uma

concepção particular de cultura que gera a singularidade do projeto dos Estudos

Culturais e seu enfoque sobre a dimensão cultural contemporânea”. Essa afirmação

nos ajuda a compreender um pouco da mistura de realidades que constituíram (e

ainda constituem) os Estudos Culturais. As práticas culturais são analisadas

simultaneamente como formas simbólicas e materiais. Assim sendo, a criação

cultural encontra-se localizada no espaço econômico e social no qual a atividade se

9 De acordo com Mattelart e Neveu (2004, p.56) o CCCS nasce em 1964, na Universidade de

Birmingham, liderado por Hoggart, com herança explicitamente leavisiana.

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desenvolve. Dessa forma, a sociedade pode ser vista como palco onde as forças

econômicas, políticas e culturais competem entre si.

Viajando da Europa para a América Latina vamos pensar como os Estudos

Culturais reverberaram por aqui. Composta majoritariamente por países de passado

colonizado, a América Latina desfruta de uma pluralidade sociocultural imensa. É um

misto de línguas e práticas que constituem as relações entre si. A esse propósito,

evoco Moreiras para apresentar como aconteceu por cá.

Alberto Moreiras (2001), na introdução de seu livro “A exaustão da diferença:

a política dos estudos culturais latino-americanos”, apresenta um panorama de sua

compreensão a cerca dos estudos culturais latino-americanos na

contemporaneidade. Ele trabalha com a posição latino-americanista do pensamento,

o qual define como “a soma total das representações que dizem respeito à América

Latina enquanto objeto do saber” (idem, p. 36). Segundo ele, o pensamento a cerca

da América Latina

é um dos campos em que a separação entre trabalho intelectual e seus próprios meios de produção é forçosamente revelada. Tal separação surge como uma espécie de expropriação, um sintoma de expropriação, na lacuna constitutiva entre o discurso teórico e o campo de reflexão. Levando-se em consideração que o latino-americanismo busca, em todo caso, algo como a apropriação de um objeto encontrado (latino-americano), a distância entre o objeto e a intenção apropriadora permanece irredutível. A irredutibilidade hoje tornou-se tema e o próprio nome do jogo latino-americanista, em debates ou séries de debates que envolvem a relativa substituição do aparato tradicional dos estudos literários pelos estudos culturais na reflexão transnacional sobre a cultura latino-americana. Esses debates envolvem ainda o peso, dentro da reflexão latino-americanista, das correntes intelectuais que parecem fluir por demais unilateralmente do discurso universitário norte-americano em direção a diferentes academias latino-americanas. (2001, p. 11)

As “condições de possibilidade” do discurso latino-americanista

transformaram-se nas últimas décadas. Todo o discurso identitário localizado em

meados da década de 80 como “modelo de análise epistemológica geral” cai por

terra nos anos 2000 considerando a própria instabilidade da generalidade e sua

consequente morte. “Ou seja, o latino-americanismo vive, se de fato isto é vida, em

uma certa precariedade de experiência – que, liberta pelo desvanecimento do sujeito

crítico, envolve a dissolução do próprio objeto crítico” (idem, p.12). Essa

compreensão dos estudos latino-americanos serve para pensarmos no modo como

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as constituições epistemológicas, no decorrer da história, foram descentralizando da

Europa e ganhando o mundo.

O debate literatura/estudos culturais10 é a especificidade da função nas

ciências humanas. Cabe ressaltar que, neste trabalho, bem como no livro de

Moreiras (2001), tomamos os estudos culturais não apenas como um retorno às

raízes clássicas, mas como o aparato que pretende estudar a cultura e suas

manifestações. Fugirei aqui dos “conceitos já batidos de identidade e diferença”

(idem, p. 14) a fim de tentar entender, com a ajuda dos autores que virão, o

“subalterno” como crítica da modernidade. Talvez estejamos mais próximos dos

indianos que cunharam (inspirados por Grasmci) os estudos subalternos do que dos

europeus que tentam entender porque a modernidade não se realiza completamente

aqui. Jamais fomos modernos? Creio que a América Latina, como já nos disse

Canclini, experimentou a modernidade de outra maneira e os estudos que a criticam

também podem nos servir para entender onde estamos no contemporâneo.

A fim de esquematizar o embate, com disputa de hegemonia, entre os

estudos literários e os estudos culturais11, Moreiras (idem, p.18) adota as

nomenclaturas “poder” e “força”. Segundo ele:

fez-se visível uma certa violência, que assumiu duas caracterizações empíricas: por um lado, a violência divisória e fundadora dos estudos culturais, a que chamo força; por outro, a violência dividida e conservadora dos estudos literários, a que denomino poder. A divisão não foi, e não é, pura, mas sim está marcada desde o início por uma espécie de contaminação mútua. O “poder” refere-se à posição hegemônica do literário; a “força”, à posição irruptiva dos estudos culturais. [...] A irrupção do novo logo se tornou conservadora, ao passo que a preservação do antigo revelou guardar em si, mesmo em seu espírito de resistência, formas de irrupção novas ou possíveis.

Força e poder então se misturavam de maneira complexa. Desde sua origem,

os estudos culturais advinham de uma matriz literária (leavisismo) e, por outro lado,

os estudos literários se voltaram cada vez mais para o culturalismo, dessa forma, no

decorrer das décadas, tornou-se cada vez mais fácil e difícil, ao mesmo tempo,

separar a força do poder. Moreiras (idem, p.20) continua:

10

Como vimos no começo deste capítulo, tal debate desencadeou a estruturação do campo dos estudos culturais e seus desdobramentos. Vemos nas páginas que seguem minha tentativa de compreender esse percurso epistemológico a fim de chegar aos Estudos Subalternos na América Latina que servirão como lente para analisarmos o camelódromo de Cuiabá como produtor de poéticas informais e sua relação com o mundo globalizado através dos produtos Made in China. 11

Moreiras usa como exemplo a discussão oriunda do encontro da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), realizada no Rio de Janeiro, em agosto de 1996.

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a discussão [...] entre poder e força, entre estudos literários e estudos culturais, tomou um aspecto muito distinto ao se reproduzir como querela transnacional de alguns representantes dos estudos culturais na América Latina contra o poder constituído da academia, em grande parte norte-americana. Mas creio que essa transformação tenha sido mais uma volta dentro da mesma polêmica, e não algo alternativo ou suplementar. Em ambos os casos temos duas formas de violência – uma divisória e fundadora e outra dividida e conservadora –, e em ambos os casos há uma reação a um deslocamento tendencial ocasionado pela irrupção, no campo institucional, de uma estrutura grafemática de caráter ameaçador e invasivo.

Esse tipo de embate desencadeia uma série de reflexões a respeito das

“condições mínimas para uma crítica efetiva do saber no mundo contemporâneo”

(ibidem). Há uma tentativa por parte dos latino-americanistas de libertação do saber

norte-americano, pelo menos no que diz respeito a eles próprios. Essa tentativa abre

os horizontes dos estudos acadêmicos para novas perspectivas, como que

chegando o momento de ouvir as outras vozes do mundo. Moreiras encaminha essa

discussão para sua compreensão do que disse Immanuel Wallerstein a propósito do

termo “geocultura”. Segundo o autor, geocultura é uma “estrutura cultural” do

sistema socioeconômico mundial. Como dito anteriormente, as aproximações

teóricas aqui propostas misturam-se com diferentes autores e períodos e, talvez,

seja essa mistura que reflita de maneira mais precisa o que é o “pensar” sobre a

cultura contemporânea na América Latina.

Para tal compreensão, como nas linhas de Moreiras, opto por utilizar outros

conceitos e autores, por uma aproximação de ideias e gostos. Após esse panorama

dos estudos culturais, é preciso entrar na seara dos estudos pós-modernos para

finalmente chegar aos estudos subalternos e aplicá-los aos fenômenos do

camelódromo. De antemão aviso que minha intenção nunca foi, e nem será, falar

pelos camelôs. Minha intenção sim é falar das práticas desses atores sociais da

maneira mais próxima possível, possibilitada pela metodologia adotada e pelo tempo

de pesquisa.

A partir dos anos 90, os Estudos Culturais oferecem uma perspectiva mais

ampla da compreensão, aglutinando instrumentos capazes de desmistificar e des-

hierarquizar o contemporâneo servindo como ponto de partida para estabelecimento

de uma política da diferença que desafia a hegemonia nordocêntrica, redefinindo a

modernidade em novos termos, garantindo voz a sujeitos anteriormente sem voz.

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Os Estudos Subalternos encontram-se razoavelmente localizados na

discussão pós-colonial que, por sua vez, é vista como uma das críticas à

modernidade. Há que se considerar a diferença entre “modernidade” e

“modernismo”, sendo o primeiro em maior parte político ou ideológico enquanto o

segundo é acima de tudo cultural e estético. Ambos coincidem nos casos da

arquitetura e do urbanismo e conectam esse projeto a termos chave como razão,

ciência, técnica, progresso, emancipação, sujeito, historicismo, metafísica, entre

outras.

Angela Prysthon (2010), em seu artigo “Histórias da teoria: os estudos

culturais e as teorias pós-coloniais na América Latina” apresenta um percurso

teórico que nos possibilitará entender, de maneira esquemática, a linha de raciocínio

da autora que auxiliará nesta discussão. Os Estudos Culturais estabelecem um

diálogo intenso com a teoria francesa12. Essa associação leva a outra que, segundo

a autora, é ainda mais dominante com os conceitos relacionados ao pós-moderno.

“A arte e a cultura pós-modernistas implicam na prática da citação, na recuperação

lúdica do passado, na des-hierarquização, no des-centramento das formas, [...]

fragmentação dos sujeitos e das experiências, esquizofrenia, micropolitização do

social, etc.” (idem, p. 5). Prysthon (ibidem) retoma Jean-François Lyotard (1979)

quando

afirma que a pós-modernidade é a época onde já não existem mais metanarrativas, onde os jogos de linguagem, múltiplos e heteromórficos predominam numa sociedade pontilhista, na qual é impossível estabelecer regras gerais. Ou seja, nesta concepção está incluída para além dos jogos de linguagem pura e simplesmente, a tendência para a pulverização dos grupos que os praticam e o desmantelamento dos valores universais e absolutos.

No diálogo proposto por Prysthon entre Lyotard e Andreas Huyssen (1991),

extraímos a ideia de “arqueologia da modernidade13” que compreende o pós-

modernismo como uma derivação do pós-estruturalismo e, a partir dele, entendemos

então o pós-estruturalismo como uma parte importante da interpretação do pós-

modernismo: a releitura. “Ou seja, fazer arqueologia da modernidade é em si um

procedimento pós-moderno. Nesta interpretação, contudo, importa mais esta teoria

como sintoma da cultura contemporânea, que como conjunto de hipóteses e

12

Através de nomes como Althusser, Foucault, Barthes, Lyotard e Derrida, conforme Prysthon (2010, p. 4). 13

Essa linha de pensamento entende a teoria pós-estruturalista como analítica da modernidade, sendo então o pós-estruturalismo uma fronteira da modernidade, e não um fragmento do pós-modernismo.

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proposições” (idem, p. 6). Em outras palavras, a releitura é uma característica pós-

moderna que vista em diversas manifestações do comércio popular de Cuiabá, mais

especificamente no camelódromo da capital que trataremos mais adiante.

Segundo Prysthon, no final do século passado, o pós-modernismo conseguiu,

enquanto conceito/teoria/estilo, ocupar certas funções dentro da cultura, como

“dominante cultural do capitalismo transnacional, paradigma ideológico do

neoliberalismo, tendência artística de certas facções das elites, entre outras”

(ibidem). Porém, o pós-moderno não conseguiu comportar certas manifestações das

culturas periféricas. Do lado de cá do globo, pensadores latino-americanos tentam

aproximar o pós-moderno do hibridismo, associá-lo a certas evoluções do tecido

social e ainda romper com o neoliberalismo. Prysthon (idem) afirma que “fica patente

a insuficiência do conceito [...] no sentido de apresentar e propor o remapeamento

teórico do mundo, uma reorganização dos cânones culturais, uma des-

hierarquização geopolítica”. Neste ponto podemos pensar na aproximação de

Moreiras e Prysthon, ao passo que, as teorias apresentadas dão conta de

pensadores europeus, com realidades e percursos históricos diferentes dos nossos

das águas de cá.

1.2.3. Os Estudos Subalternos

Por volta da década 70, na Índia, a expressão “subalterno” passa a ser

utilizada como alusão às pessoas colonizadas do subcontinente sul-asiático, e

possibilita um novo ponto de vista na história dos locais dominados, vistos até esse

momento apenas pela perspectiva dos colonizadores e seu poder hegemônico. Essa

crítica à historiografia vigente foi direcionada a duas escolas: a Escola de Cambridge

e a escola dos historiadores nacionalistas. Segundo Dipesh Chakrabarty14, ambas

as aproximações eram elitistas e não contemplavam a perspectiva dos que não

estavam falando.

Ranajit Guha15, no início da década de 80, propõe os Estudos Subalternos

como tentativa de intervir no modo como a história da Índia estava sendo contada.

Em parceria com outros estudiosos indianos publica Subaltern Studies, uma

14

Dipesh Chakrabarty é historiador indiano, professor da Universidade de Chicago e tem contribuído para o debate a cerca da teoria pós-colonial e os estudos da subalternidade. 15

Ranajit Guha é professor e pesquisador em várias universidades na Índia, Inglaterra, Estados Unidos e Austrália.

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26

coletânea de textos que mudaram para sempre os rumos desse campo de estudos.

Essa intervenção na historiografia sul-asiática espraiou pelos continentes e

rapidamente foi adotada por diversos pensadores, inclusive latino-americanos16. O

Grupo de Estudos Subalternos idealizavam a espontaneidade da mobilização

popular e, ao insistir que os subalternos tivessem uma ação humana positiva e

pudessem ser pensados como sujeitos históricos autônomos, o próprio grupo

colocava-se em uma posição subalterna dentro da historiografia (MALLON, 2001, p.

129).

Gayatry Spivak17, Dipesh Chakrabarty e Ranajit Guha utilizam “subalterno”

para se referir a grupos marginalizados que não possuem voz ou representatividade,

em decorrência de seu status social, em termos de classe, casta, idade, gênero e

ofício. Para Florência Mallon (2001), quando os subalternos lutam politicamente para

criar suas próprias organizações cada vez mais autônomas, o fazem em diálogo

com e em luta contra, as formas políticas dominantes. A reflexão a que chegamos

neste momento é de aproximação entre realidades. Embora a maioria dos países da

América Latina há muito tenham deixado de ser colônias, muito antes da Índia, é

inegável que a experiência da colonização ainda marca singularmente cada um

destes países, além de lidar seguidamente com formas neo-colonizadoras interna ou

externamente.

Spivak18, mulher e indiana, entende o termo “subalterno” para além de

oprimido, entende como uma representação aos que não conseguem lugar em um

contexto capitalista, excludente, globalizante e totalitário. Para a autora, o subalterno

não pode falar, pois, se o fizer, já não o é. Ele precisa de um representante por sua

própria condição de silenciado. Dessa forma, ela propõe uma discussão a respeito

da capacidade de autorrepresentação do subalterno, teorizando “quais são as

possibilidades do subalterno de se subjetivar autonomamente19”. Por essa leitura de

Spivak, o que tento aqui é atividade contínua de análise e reflexão a cerca dos

subalternos em nossa sociedade, jamais falando “sobre” eles.

16

São exemplos John Baverly, Robert Carr, José Rabasa, Ileana Rodrigues, Javier Sanjines, entre outros. 17

Gayatri Chakravorty Spivak é crítica literária e professora na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. Sua obra “Can the subaltern speak?” é mundialmente conhecida e considerada um texto de fundação do pós-colonialismo. 18

“Can the subaltern speak?” foi traduzido, em 2010, pela Editora UFMG. 19

FIGUEIREDO, 2010, p. 86.

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27

Entendemos então o pós-colonial na América Latina, no nosso caso brasileiro,

como uma “descolonização intelectual” (CHAKRABARTY, S/D, p. 4). Por uma

questão de aproximação, entendo estarmos mais próximos do que escreveram os

indianos do que da realidade europeia da maioria dos pensadores contemporâneos.

Como vimos, o processo de “criação” do camelódromo de Cuiabá se deu mediante

diversas pressões hegemônicas municipais, colocando os camelôs em uma situação

“sem voz”. Entretanto, a resposta com a criação da ACSP e a contínua

insubordinação, marca a nosso ver, a tentativa dos subalternos de fala.

1.3. O camelódromo hoje

Nesses mais de quinze anos, o Shopping Popular tem realizado melhorias,

principalmente de infraestrutura a fim de melhor atender aos seus usuários e

clientes. Sua vitalidade comercial é evidente, pelo trânsito de clientes e

trabalhadores que abriga, em número cada vez maior, já sendo apontado como o

maior centro popular de compras do Estado. Definir esse grande prédio

conceitualmente nos aproxima das proposições de Michel de Certeau20 referentes a

espaço. Para Certeau espaço é todo “lugar praticado”, isto é, todo lugar que traz, em

si, o “peso” da vivência de seus praticantes. Nele ocorrem “os cruzamentos dos

móveis [e é] de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que [ali] se

desdobram” (CERTEAU, 2007, p. 202). Esses movimentos são determinantes na

existência do espaço. Dessa forma, o camelódromo só existe porque ali transitam

diariamente milhares de pessoas comprando, vendendo, procurando, trabalhando,

enfim, “vivenciando” aquele espaço.

Pensando um pouco além com o aporte de Certeau posso dizer que há entre

a cidade e o SP uma estreita relação. Uma espécie de tríplice operação do discurso

utópico urbanístico21 que reitera a ideia de subversão da ACSP. Uso aqui apenas

dois, dos três conceitos trabalhados pelo autor, por entendermos que são mais

próximos de nossa discussão.

20

Pode parecer contraditório o uso de alguns autores europeus diante minha proposta de leituras “subalternas”, porém, esse distanciamento só reforçaria uma discriminação. Assim sendo, utilizo concomitantemente todos àqueles que contribuírem para a discussão, sem juízos ou prejuízos para a proposta epistemológica. 21

O que para Certeau trata-se de um discurso, Max Weber (1979) entende como um complexo de caracteres que formam o modo de vida da cidade.

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28

A primeira delas é “a produção de um espaço próprio” (CERTEAU, 2007, p.

173) que organiza racionalmente a cidade recalcando todas as “poluições físicas,

mentais ou políticas que a comprometeriam”. Ora, se o propósito do poder público

era “limpar o centro”, o que se fez no camelódromo foi criar também um “espaço

próprio”, um prédio que abrigaria os degredados e suas práticas. A subversão está

na contínua quebra do discurso utópico urbanístico, que teve então que lidar com

um imenso galpão erguido por centenas de braços. Esse galpão comporta uma

parcela das práticas da cidade, essa “Cuiabá de consumidores22” que mantém o

comércio informal praticado no SP e o legitimam, nesse espaço próprio criado pelos

associados a fim de resignificar o lugar que lhes foi “dado” na cidade. A segunda

operação é “estabelecer um não-tempo”, ou seja, “um sistema sincrônico, para

substituir as resistências inapreensíveis e teimosas das tradições”. Nesse ponto

podemos pensar na “chegada” da modernidade à Cuiabá, a necessidade de

identificar-se com suas irmãs mais velhas, sábias e limpas, sem o traço de cidade

retrógrada e atrasada. É nesse não-tempo da cidade que a criação da ACSP e a

construção do SP imprimem ao mercado informal um novo tempo, visando o

crescimento e modernização (a cidade se moderniza e os camelôs também). Se era

tempo da cidade mudar, era então, tempo dos camelôs, “recomeçarem”.

Portanto, se pensamos a relação entre o “espaço” e a cidade, podemos

inicialmente constatar que tratamos de um terreno de práticas, de usuários diversos

que transitam entre um e outro sem preocuparem-se com demarcações, a vivência é

múltipla e sem um sentido único, caminha-se pela cidade e pelo SP ao mesmo

tempo, sem “ler” os caminhos nesse imenso texto cultural. Com as proporções de

um pequeno Shopping Center, o “camelódromo” ou Shopping Popular, hoje, consiste

num grande galpão com portas “de correr” verticais em toda sua extensão exterior

que abriga, dentro de si, as bancas individualizadas de metal (onde ficam as

mercadorias), as lanchonetes e restaurantes (ao modo de uma praça de alimentação

horizontal), os estacionamentos improvisados e outros espaços de comercialização.

Na parte “dos fundos”, encontramos o acesso ao prédio da ACSP. Cada associado

22

O termo faz alusão à discussão de Max Weber (1979, p.72) a propósito dos conceitos e categorias da cidade. Para ele, uma “cidade de consumidores” remete às “cidades de principado” e são os conglomerados urbanos que se sustenta economicamente, em sua maioria, de consumidores e pensionistas do Estado. Porém, não acreditarmos que Cuiabá seja apenas uma cidade de consumidores, mas tal perspectiva corrobora com a discussão a cerca do SP e suas práticas.

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29

colabora mensalmente com a taxa de duzentos e setenta reais para a manutenção

do espaço e pagamento dos funcionários da associação.

Figura 2 Vista superior do atual prédio do Shopping Popular de Cuiabá

Figura 3 Entrada lateral do Shopping Popular

Atualmente, no SP, existem dois tipos de bancas (ou boxes) utilizadas pelos

associados: as mais antigas (figura 04), que são caixas metálicas com abas laterais

e superiores que abrem e fecham, funcionando ora como container dos produtos

armazenados, ora como banca de mercadorias à vista; e as mais novas (figura 05),

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30

que funcionam como “minilojas”, nas quais o vendedor além de possuir bancadas

em vidro que funcionam como vitrines e prateleiras, ainda dispõem da opção de ficar

dentro da banca (como podemos ver nas figuras abaixo). Todas as bancas são

igualmente verdes e não podem ser pintadas se não dessa cor.

Figura 4 Modelo de banca antiga

Figura 5 Modelo de banca nova

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31

Retomando Certeau, as bancas têm seus “lugares”. Para o autor um lugar “é

a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de

coexistência” (CERTEAU, 2007, p. 202). Cada banca tem seu lugar, se acham umas

ao lado de outras, situadas num lugar “próprio” e distinto que as definem. Entretanto,

ainda que as bancas ocupem um lugar nessa organização (lugar enquanto

localização), ela se constitui como espaço desde quando nela acontecem vivências

e práticas diversas. As bancas ocupam lugares, mas são, efetivamente, espaços, ou

seja, lugares praticados. As bancas são dispostas lado a lado e “fundo com fundo”

formando fileiras duplas com corredores paralelos entre si e algumas passagens

transversais, por onde transitam os clientes. As sinalizações existentes (nome e/ou

número da banca) permitem aos clientes se localizarem facilmente (após um

primeiro contato com a engenharia do espaço). As mercadorias, por sua vez, são

organizadas cada banca a sua maneira, de acordo com a observação e prática dos

vendedores, que, é claro, privilegiam as novidades expondo-as na frente, entre

outros pequenos truques de publicidade.

Figura 6 Prédio da ACSP

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32

Os números23 do SP surpreendem. São 392 associados registrados que

geram mais de 1200 empregos diretos (são vendedores, técnicos entre outros

profissionais prontos para atender as demandas dos clientes). Por dia, circulam em

média 10.000 pessoas pelo espaço, nos fins de semana esse número duplica.

Próximo a grandes datas comemorativas (como o dia das mães, por exemplo),

chegam a circular, em um só dia, mais de 30.000 pessoas por entre os becos e

corredores do SP. Noventa e cinco por cento dos associados possuem máquinas de

cartões de débito/crédito como uma das formas de pagamento para os clientes. Os

estacionamentos contam com cerca de 300 vagas para veículos, tanto de

compradores como dos próprios associados. Além disso, o SP ainda conta com

noventa e três câmeras de segurança que o monitoram integralmente. Em dezembro

de 2010, por exemplo, um locatário de uma banca assassinou um cliente dentro do

SP e, graças ao sistema de segurança, todo o crime foi registrado, ajudando a

polícia nas investigações. Nos estacionamentos, seguranças da associação (como

na figura 07) fazem rondas por entre os carros, cuidando da segurança no local.

Figura 7 Segurança no estacionamento

23

Todos fornecidos pelo presidente da ACSP em entrevista concedida em 28 de agosto de 2010.

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33

Figura 8 Estacionamento

O caráter informal e clandestino garante a principal característica dessas

mercadorias, vendidas pelos camelôs: o preço mais baixo que o de mercado e,

consequentemente, acessível. Para os consumidores do SP, as mercadorias

expostas e vendidas no camelódromo representam o acesso a produtos

globalizados, em geral fabricados na Ásia e distribuídos por todo o mundo,

chamados aqui de Made in China24. Esses produtos materializam o processo de

globalização mundial que integra mercadorias, serviços e pessoas por e entre o

mundo, derrubando fronteiras e usufruindo das tecnologias da informação que

transformam o espaço e o tempo. Os Made in China, estigmatizados como produtos

de “baixo valor”, constituem o resultado das trocas econômicas informais e, dessa

forma, pouco valorizados socialmente. Essas mercadorias circulam por todo o

mundo, conectando cidades separadas geograficamente, mas que possuem um “nó”

que as integra, um ponto de convergência e dispersão de mercadoria (e,

consequentemente, de informações) que redefine as relações da cidade com o

mundo. O camelódromo serve então como “porta” de entrada para a tecnologia

estrangeira, já que vende aquilo que não se produz aqui (ou oferece opções para

24

O capítulo 3 será dedicado integralmente a essas mercadorias e suas relações com a globalização, tendo como exemplo o “Gatinho da Sorte” ou Maneki Neko.

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todos os bolsos e gostos). Ele retira Cuiabá da margem25 dos fluxos de informação

ao passo que disponibiliza a venda de tecnologias produzidas do outro lado do

globo, mas isso discutirei depois.

Pensando um pouco mais na relação dos consumidores do SP com o espaço,

podemos constatar que a maioria dos clientes do SP entrevistados procuravam o

camelódromo com um objetivo definido, com um produto em vista. Para tal, eram

estimuladas pelos mais diferentes impulsos, seja a busca pelo menor preço ou ainda

a “exclusividade” e “praticidade” do produto a venda no SP. Um bom exemplo disso

são os aparelhos chamados MP726, que são encontrados no camelódromo (ou pela

internet) e acumulam em si as funções de telefone celular dual sim (dois chips

telefônicos GSM funcionando simultaneamente em um só aparelho), câmera

fotográfica, filmadora, TV, reprodutor de MP3 entre outros recursos que o tornam

algo muito além de um simples telefone celular. Ele é uma espécie de “híbrido Made

in China” que, em Cuiabá, só se encontra no SP.

Aqui, assim como nos “shoppings tradicionais”, é frequente a clientela que vai

apenas para “dar uma olhada” e passear, de todo modo se expondo à possibilidade

de ser “afetado” por alguma novidade ou produto. Parece que esse tipo de visita,

espécie de "deambulação”, é menos provável, porém existe. Um frequentador

assíduo do SP nessa situação de circulação errante se coloca mais disponível para

as mercadorias do que ao contrário (o que se diz correntemente), uma vez que são

eles que se deixam estimular pelos objetos a ponto de o adquirirem mesmo quando

não havia uma disposição prévia para isso. Temos então um espaço que,

curiosamente, transita entre a legalidade e a clandestinidade, uma espécie de

“mercado cinza”, como nos diz Arjun Appadurai (2005, p. 58), esse mercado que não

é totalmente negro (imerso na criminalidade), mas também não é totalmente branco

(legalmente realizado), tornado-se cinza, uma vez que foi construído com o apoio da

Prefeitura da cidade (portanto, existindo legalmente), mas que vende mercadorias,

em geral, adquiridas no Paraguai27, contrabandeadas para o Brasil (e pelo Brasil) e

25

A internet também desempenha esse papel em todas as cidades conectadas, já que a margem dos fluxos da informação representa o lugar desconectado (virtual e espacialmente) do resto do mundo. 26

Devido ao grande sucesso desses aparelhos, a tecnologia evoluiu e encontramos hoje a venda diversos MP’s, ao passo que, quanto maior o número de funções, maior é o número que segue a sigla (MP12, MP13, etc.) e ainda coube a esses produtos tornarem-se a réplica de celulares de grandes marcas, como Iphone (da Apple) entre outros. 27

Pude vivenciar parte desse processo de contrabando feito via Ponte da Amizade durante a pesquisa de campo realizada em maio de 2011. O texto etnográfico resultante compõe o início do capítulo 2.

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negociadas no SP, sem nota fiscal e sem garantia. O fato é que os associados,

quando estão “em trânsito” com suas mercadorias, não têm permissão para fazê-lo,

já que elas não possuem nota fiscal (transitam na ilegalidade); entretanto, quando

estão “fixos”, em seus lugares, cartesianos, como pede a cidade moderna e

disciplinada, em suas bancas, tem legalidade de venda, já que são licenciadas pelo

poder público municipal.

Com o propósito de sempre oferecer novidades, os associados possuem suas

rotinas de viagens a fim de repor os estoques de suas bancas. Transitam por entre

cidades do Brasil e do exterior, na maioria das vezes, escondidos em carros

particulares com medo de terem suas compras confiscadas pela Polícia Federal. A

grande maioria responde a processo judicial por contrabando, muitos até já foram

presos. Empresas de aluguel de ônibus não aceitam mais fretar seus carros para a

ACSP, como já o fizeram por muito tempo, porque quando são descobertos, a

empresa é responsabilizada e multada. Em geral, as confecções são compradas em

Goiânia. Alguns eletrônicos e brinquedos são comprados em São Paulo. E por fim, o

maior fluxo de compras dos associados são as cidades paraguaias de Pedro Juan

Cabalero e Ciudad Del Este, onde encontram maior variedade e o melhor preço.

O que pareceu ter início, na cidade, como um paliativo para o problema da

suposta ocupação desordenada dos espaços públicos adquiriu força e “vida

própria”. É um espaço constituinte da cidade, por mais que comumente seja tratado

como residual e secundário. O SP forma um sistema sócio-cultural cuja prática maior

é a compra e a venda das e para as classes subalternas cujas precariedades, mais

do que designarem um “modo informal” de existência (sobrevivência diriam uns)

urbana, constituem um complexo mundo para o qual concorre a criatividade, a

velocidade, a flexibilidade, a agência para, arranjando-se com pouco, dele extraírem

o máximo de qualidade da própria existência. As práticas de consumo que abriga,

longe de serem privadas, atomizadas e passivas, e do mesmo modo que outros

consumos socialmente menos estigmatizados, como o artístico, o comunitário, o

cultural, desenham pertencimentos. Exatamente por isso, por essa capacidade de

constituir pertencimentos, o consumo (e por tabela os espaços de sua prática) não

pode ser visto “como simples cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas

[sim,] como espaço que serve para pensar, onde se organiza grande parte da

racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades” (CANCLINI,

2001, p. 15).

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Neste ponto fundamenta-se parte dos objetivos deste trabalho: abandonar a

visão demonizadora do consumo bem como dos camelôs e suas práticas.

Apresentar esse espaço para falar de suas práticas e do fluxo de seus objetos

sustenta o desejo de investigar esses atores sociais e ainda pensar a cultura a partir

dos objetos de suas práticas. Então, como espaço que desenha pertencimentos, o

SP está longe de ser residual e secundário, é ao contrário, lócus de intensa e rica

produção sociocultural que chamou minha atenção e despertou meu interesse.

1.4. Canevacciando o camelódromo

Caminhar por entre as vielas do SP é fundamentalmente uma experiência de

encontro de corpos. Partindo dessa experiência senti a necessidade de uma visita

sensorial ao espaço e, partindo disso, falar do SP de uma maneira diferente, porém

pertinente a uma investigação em cultura contemporânea e conclusiva do capítulo

inicial desta dissertação. Os caminhos são estreitos e, na maioria das vezes,

abarrotados de pessoas com objetivos múltiplos e caminhos indescritíveis. Ali se

manifesta uma posição adotada pela antropologia, a não-naturalidade do corpo,

expressa na movimentação determinada, talvez, pela maneira própria da cultura

brasileira e, mais propriamente, cuiabana. Se o caminhar é um encontro de corpos,

é na pele que a sensorialidade emerge apurando muito além do tato. São corpos

difundidos transitivamente, corpos ocidentais. Nós vemos, ouvimos, degustamos,

sentimos, cheiramos, pulsamos com o camelódromo.

Amparado pelas proposições de Massimo Canevacci28, este tópico permeia

conceitos e estupores, a vivência com o objeto que já é, em alguma medida, sujeito,

ao passo que se manifesta como um corpo que comunica com a metrópole regional

e com as menores unidades viventes dentro de si, as pessoas, que mantém o fluxo

quase sanguíneo do local. A importância desta aproximação se justifica por

tratarmos de pessoas, diferente das visões marginalizantes que rodeiam o SP. Em

se tratando de local – o que não significa uma tradução direta –, vamos cirandar pelo

conceito de location, discutido por Canevacci e que, num esforço etnológico,

aproximo do SP. Quando entendemos location como um lugar, retornamos ao

28

Este trabalho aspira uma aproximação, sem chegar a conclusões incrustadas, o que ruiria com o processo de compreensão da comunicação entre corpo, metrópole, fetiche, etc.

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pensamento clássico de Marc Augé29, que “exprime uma identidade dada como fixa,

única, compacta [e] certa” (ibidem). Nessa perspectiva o lugar determina a cidade

histórica – da modernidade em diante –, onde se inicia a cidade e termina com os

muros. Para além deles está a natureza, isto é, o espaço. Location como espaço, ao

contrário, injeta a dificuldade de controle, de desejar medidas matemáticas e

geométricas da identidade, porque o espaço é movimentado e, se transplantado

para e-space, torna-se uma location eletrônica e interconectante dos multivíduos

mundiais. O e-space do camelódromo se “materializa” em sua página na internet, na

qual o visitante pode acessar maiores informações sobre o camelódromo bem como

sobre as bancas, produtos e serviços.

Chego então às definições do autor que se enlaçam com o objeto-sujeito em

questão (o SP): as locations como zonas. Elas podem ser resultado de um

plano regular que deixa aquela zona como resíduo a ser ordenado sucessivamente ou a ser abandonada ali como um homeless, ou é o resultado de uma resistência dos irredutíveis habitantes às falsas promessas da planificação urbanística, ou uma ocupação que transforma, por exemplo, um velho forte oitocentista no centro social mais belo não só italiano (Forte Prenestino). As locations como zonas exprimem (ou melhor, expressaram nos anos noventa) o conflito social e cultural por parte dos sujeitos que, deste modo – em contraste com os planos regulares –, transformavam uma cidade em metrópole (CANEVACCI, 2008, p. 33).

Entender o SP como uma zona a partir da ramificação do conceito de location

serve como lente para definir – mesmo que parcialmente – o que o imenso galpão

construído a muitas mãos representa nos dias de hoje para cidade e para a cultura,

mesmo tendo seu nascimento datado na década de noventa. Os conflitos sociais

existentes desde a ocupação das ruas, a expulsão dos camelôs do centro da cidade,

o arranjo ao descaso no bairro do Porto, fomentaram a existência do SP. Até aqui,

então, entendemos o SP enquanto location como zona. Continuando com a tentativa

de entender o SP dentro dessa égide, encontro o conceito de interstício.

Os interstícios são zonas que estão entre (in-between) áreas mais ou menos conhecidas [...] Eles se localizam nos limites incertos entre diversos quarteirões, entre velhos cruzamentos abandonados pelas novas redes viárias, ou ainda no interior dos quarteirões que se acredita conhecer muito bem e que, ao contrário, mantêm alguns nichos deslocados, que se exprimem por impulsos comunicacionais diversos pela gentrificação. Com este termo [...] se entende um processo urbanístico que reestrutura um bairro de tradição popular ou industrial, que ou é reestruturado no interior, ou demolido e reconstruído ex-novo, favorecendo desta forma o acesso às classes

29

APUD CANEVACCI, 2008, p. 32.

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38

sociais mais “altas” economicamente ou culturamente stylish (...). (CANEVACCI, 2008, p. 34)

Compreendo então esse fenômeno que se instaura em uma zona e modifica

os fluxos corpóreos naquele local como zona intersticial. O SP como interstício, fica

in-between o centro da cidade e o bairro do Porto, região que como dito

anteriormente, foi por muito tempo marginalizado e ocupado por viciados em drogas

e prostitutas e, após a construção do SP, foi reconfigurado passando a ser

frequentado por pessoas de diversas classes sociais. Ele faz parte da experiência

metropolitana e é significativo para quem cria “zonas mutantes através do próprio

transcorrer com um corpo-panorama que somatiza códigos ainda invisíveis, mas que

podem produzir sentido” (idem, p.35). Esses códigos são muito significativos no

interior do interstício, ao passo que acentua ao máximo a percepção “de um body-

scape-location que se investe por meio de um elemento posterior: o dress-code”

(idem, p.36).

Dress-code é definido por Canevacci como

uma pragmática do corpo que se modifica, se constrói, se ressignifica por meio de contínuas e oscilantes escolhas por parte de um sujeito mutante e múltiplo, na sua relação constitutiva e temporária como o contexto no interior do qual expor tal pragmática comunicacional. (CANEVACCI, 2008, p. 38).

E esse corpo que se modifica está nos associados do SP (ou camelôs),

são eles que desafiam as identidades fixas e unitárias, que desprezam os arquétipos

e realizam as suas práticas ao seu modo. São body-scapes por detrás das bancas,

que perambulam entre os corredores com seus dress-codes estabelecendo relações

de sintonia, dissonância e aglutinação entre esses corpos e o “local”. Assim, o body-

scape como location está nesses vendedores. Corpos e bancas entrelaçados.

Corpos-bancas. Corpos-panoramas. Bodybox. Body-scape. A figura 9 apresenta

uma das centenas de bancas do SP. Nela vemos o mix entre os produtos, os

compradores, a banca em si e os vendedores. Há nessa imagem uma mistura

latente, pulsante, de corpos-coisas que se entreveem na dinâmica natural do

location. Esses corpos comunicam, se misturam aos produtos, se misturam aos

fetiches. Mercadorias e fetiches. Desejos.

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Figura 9 Banca do SP

1.5. Relação entre corpos: um devaneio escrito

Ocorre-me, a partir das leituras do autor deveras citado, que o Shopping

Popular seja um grande corpo. Em um devaneio escrito, é possível compará-lo ao

corpo humano, e a partir daí entendê-lo como parte constituinte do corpo da cidade

e, consequentemente, do corpo da metrópole comunicacional. Ler o fetichismo

contemporâneo é pensar em corpos. Corpo-coisa. Body-corpse.

Como descrito no início deste trabalho o camelódromo consiste num grande

galpão com portas verticais que fechadas tornam-no um grande bloco de concreto e

ferro fechado. Essas portas funcionam como aberturas, canais, que permitem a

entrada e a saída de pessoas com certo controle, ao passo que não é um espaço

totalmente acessível. Elas circulam o ar. As portas são as bocas, múltiplas, que

engolem quem quer entrar e liberam quem quer sair. Onde não há passagem, elas

são a pele, que protege e ao mesmo tempo integra.

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Figura 10 Portas do SP

Os corredores, que ficam entre os caminhos de bancas lado a lado, fundo

com fundo, são como artérias, que levam o sangue para todo o corpo e irrigam a

carne viva. Ligadas às artérias estão às veias, que no nosso sujeito-objeto são as

vielas, as pequenas passagens, o “entre bancas”, que não são oficialmente

demarcadas, mas permitem a circulação. As artérias e veias do camelódromo levam

pessoas, clientes, que irrigam a carne morta. Morta-viva.

Figura 11 Corredor interno do SP

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As bancas são os órgãos. São elas que mantêm cada função do

camelódromo funcionando. Elas, cada uma a sua maneira, com seus produtos

particularmente iguais (ou não), desempenham funções e atendem determinadas

necessidades do que vem de fora. As bancas verdes – com dois modelos distintos –

preenchem o corpo. Os seguranças são os glóbulos. Eles cuidam de impedir a

proliferação de invasores. Estão sempre prontos para proteger. A ACSP é o cérebro.

É de lá que partem as ordens de funcionamento e é lá que administra e gere o

camelódromo. A associação é responsável pela comunicação entre o SP e a cidade.

Entre o corpo e os outros corpos.

Por último o fluido vital: o sangue. Os clientes são o sangue, os

deambulantes, enfim, os corpos dentro do corpo. São eles que carregam os

nutrientes e o oxigênio. Os nutrientes do camelódromo estão na moeda. No Real. No

dinheiro – que pode ser cartão. São eles os responsáveis pelo movimento do body-

corpse e/ou location. São eles, com seus corpos panoramáticos que vivificam o

body-corpse do camelódromo. Um canibalismo de corpos. Um corpo vivo dentro do

corpo morto. O corpo morto que tem vida pelo fluxo do corpo vivo. O camelódromo

se encarna. O camelódromo vive!

É esse corpo vivo que se relaciona com a cidade. Cuiabá, cidade em questão,

não experimentou plenamente a industrialização (como muitas cidades latino-

americanas). Por estas bandas, ainda hoje, migram indústrias do saturado centro

econômico brasileiro em busca de mão de obra e benefícios fiscais. Entretanto,

consigo ver a passagem, mesmo sem superar o estágio anterior, entre a Cuiabá

monocêntrica e a Cuiabá policêntrica. A cidade industrial que tinha como

monumento central a fábrica deu lugar à metrópole comunicacional, policêntrica.

Para Canevacci o consumo, a comunicação e a cultura têm uma importância

maior que a produção industrial monocêntrica. Em particular o consumo, que em

suas múltiplas manifestações desenvolve um tipo de público que não é mais

homogêneo e massificado, como na era industrial. Falamos de públicos pluri. Ou,

retomando Stuart Hall (2005), falamos em identidades pós-modernas, que variam de

acordo com as formas pelas quais são representados ou interpelados nos sistemas

culturais que o rodeiam, assumindo identidades de acordo com a ocasião e o

momento (ora consumidores, ora receptadores).

Não há como negar que o público do SP seja pluri. São pessoas de diversas

classes sociais – a se julgar pelos carros que estacionam por ali – com objetivos

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distintos e focos de consumo diversos. Esse público não se contenta mais com o

mesmo para todos, é preciso diversificar. Diversificar no que é ofertado e conectar

cidades do mundo. As mercadorias vêm de diversos pontos do planeta e ali se

encontram para sua nova vida social. É na tentativa de atender a essa demanda que

os camelôs se arriscam, tornam-se cinzas, como disse anteriormente.

Observar o camelódromo a partir das lentes de Massimo Canevacci permitiu

um relaxamento mental (treinar o olho para olhar de outra maneira). Foi, de fato, um

“fazer-se olho”. Modificar o olhar para tornar o familiar estranho e poder continuar

com a pesquisa desse objeto-sujeito que tanto me fascina. O olhar que não é natural

estranha os detalhes e possibilita uma mudança de pensamento. Senão mudança,

pelo menos, possibilidade de pensar diferente. Pensar a cidade como corpo, e o

camelódromo como um corpo dentro da cidade emergiu a possibilidade de leitura

dos códigos que a cidade absorve. A linguagem da cidade influencia o

comportamento das pessoas e dessa maneira seus hábitos. Essa linguagem é

repleta de lugares, espaços e, principalmente, interstícios. O camelódromo também

é um interstício e também é repleto de pessoas e, logo, é influenciado pela

linguagem da cidade. Ler o corpo da cidade é ler o camelódromo.

Entender, mesmo que parcialmente, a fluidez, a mobilidade e a hibridização

da metrópole contemporânea é entender a experiência da cultura, dos corpos, das

pessoas e, consequentemente, do espaço do qual falei até agora. É olhar e ser

olhado. É olhar com todo o corpo. É ser visto por todos os corpos. Muitos corpos,

multivíduos. E, para mim, o camelódromo não será mais o mesmo, não depois deste

trabalho.

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CAPÍTULO 2 – ALI

2.1. Etnografia de um pesquisador sacoleiro

Ouvir, os relatos dos camelôs do SP a cerca de suas idas e vindas do

Paraguai despertou em mim o desejo de vivenciar essa experiência e constatar o

cinza. Na companhia de Hugo Vuerzler30, embarquei no dia 03 de maio de 2011

rumo a Foz do Iguaçu, cidade do estado do Paraná que faz divisa com o Paraguai e

a Argentina.

O avião ainda não havia pousado e a integração entre as duas cidades era

evidente. Num horizonte quase indistinto, a ponte que sela a amizade entre os dois

países não marca e, sim, destaca a relação que talvez seja a continuidade desta

pesquisa. Foz do Iguaçu com seus mais de 300.000 habitantes demonstra toda a

sua potência para quem chega pelo ar. A cidade é grande, esquadrinhada e

adoravelmente verde. O imenso lago de Itaipu, ao longe, destaca outra divisa, que

não vem ao caso agora. O avião está cada vez mais próximo do chão e um frio

percorre a espinha. Dentro do avião, ouvia-se o burburinho dos viajantes, cada um a

sua maneira, com as mais diversas expectativas para a chegada. Alguns apontavam

para a ponte da amizade, outros relistavam em voz alta suas encomendas. O

Paraguai e seus produtos Made in China estavam dentro do avião. O baque com o

solo marcou a chegada, finalmente estávamos a alguns passos do maior

aglomerado do meu objeto. Estava ansioso pelo encontro que não tardaria.

Logo na entrada do setor destinado ao desembarque um imenso frontlight

anunciava a loja paraguaia “Monalisa”. Um garoto, franzino, entregava

compassadamente para os “chegantes” uma revista que instruía os novatos a como

navegar por esse mar do consumo subalterno. No caminho até o hotel, Monalisa nos

perseguiu, por todos os lados, com seu bienvenido ao Paraguai-Brasil. O taxista nos

deu as primeiras instruções deste novo lugar, que em breve tornar-se-ia espaço para

mim. Por todo o percurso, vimos placas de sinalização em três idiomas (português,

inglês e espanhol). A cidade marcava-se como cosmopolita. Depois da chegada ao

hotel, fomos encaminhados para o quarto, chegando lá, o atendente nos pergunta

por quanto tempo ficaremos e toma um susto, quando respondo 8 dias. A reação

30

Igualmente mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea.

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dele demonstrou que os sacoleiros que por aqui ficam são em maior número do que

eu imaginava, mas, por menos tempo como depois constataríamos. Depois de um

breve descanso, saímos e, nas ruas, ouvíamos vozes de vários lugares do mundo.

Assim como os produtos, as pessoas circulam por esta região com uma naturalidade

própria do lugar. Para além do turismo curioso, vi um turismo objetivo, focado, ainda

que clandestino, por entre as brechas da aduaneira. Os comércios formais,

tenuemente adaptados à realidade cinza da cidade, é trilíngue em gesto e modo.

Gesto de quem recepciona e modo de quem espera. A cidade é polifônica,

multinacional, subalterna. Avistamos ao longe o terminal de integração rodoviário,

com pequenas bancas repletas de produtos pendurados, mexendo, com o gélido

vento ainda não narrado. Hugo e eu caminhamos mais e a cidade se tornava menos

estranha, o popular e clandestino me eram familiares, curioso fato que destaco aqui.

Depois de perambular escolhemos onde comer, um restaurante árabe é

eleito. Lá dentro, o cardápio simples mostra em que lugar estava. Aos poucos,

chegaram homens estrangeiros, com seu português miscigenado que, falavam ora

em português, ora em árabe. Aqueles homens atraíam minha atenção quando, na

mesa ao lado, atentei-me para outro que falava, em tom alto, sobre os perfumes que

pretendia trazer do Paraguai. Enquanto instruía seu ouvinte a observar bem as cores

da embalagem, o “encomendante” delimitou bem quais eram suas preferências.

Uma mulher à mesa o interpela, pedindo que seja mais discreto. Ele a recrimina e,

com um tom áspero, disse “estou tratando de negócios, enquanto essas pessoas

apenas comem”. Perfumes importados, replicados, falsificados. Sim, ele tratava de

negócios.

Saímos do restaurante deixando o comerciante para trás. No caminho de

volta para o hotel, diversas bancas, que antes ali não estavam, surgem como planta

que brota do chão. Hugo escolhe a banca que vendia colchas e o primeiro produto

genuinamente subalterno de nossa viagem foi comprado. Quase chegando ao hotel,

uma loja de suvenires vende produtos do Brasil-Paraguai-Argentina-China. É

interessante ver essa loja, com características de um “não-lugar”31 mundial

cosmopolita. Voltamos para o hotel e a viagem, de fato, começava. O caminho do

consumo começou a ser desenhado. O primeiro dia terminou.

31

Pensando aqui em Marc Augé.

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Na tarde do segundo dia (04/07/2011) tomamos o ônibus rumo à Ponte da

Amizade. O Paraguai estava cada vez mais próximo, a pouco mais de 7 km de

distância do ponto no qual estávamos. O ônibus estava lotado, pagamos R$ 3,30 por

pessoa para chegar do outro lado da ponte, o ônibus era internacional e trazia em si

instruções nos dois “idiomas nativos”. Além das instruções, o preço da passagem

podia ser pago em reais (moeda brasileira), pesos (moeda argentina) ou guaranis

(moeda paraguaia). Não me ative ao câmbio naquele momento, mas destaco a

importância desse mecanismo da economia que invade Paraguai-Brasil. As múltiplas

vozes dentro do ônibus tratavam dos mais diversos assuntos nos mais diversos

idiomas. Olhava nos rostos dos passageiros e imaginava o que os fazia estar ali, por

volta de 12:30, atravessando a fronteira rumo à cidade vizinha. A viagem parecia

longa, mas atribuo isso à ansiedade que me espreitava, o desejo de chegar logo.

Figura 12 Aduana/ Posto de Fiscalização da Receita Federal do Brasil

Avistei os imensos shoppings paraguaios e seus letreiros do lado de cá. O

horizonte pode ser comprado como o que ele anuncia. Finalmente avistei o rio

Paraná e, na sequência, a Ponte da Amizade. Fiquei espantado e absorto com a

quantidade de carros, motos, vans e ônibus trafegando loucamente pelo local. O

fluxo era intenso, desenfreado. As pessoas carregavam suas sacolas-compras da

maneira que dava e seguiam para seus destinos. O Paraguai começa a se mostrar

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como é, subdesenvolvido, pero no mucho. Passamos pelo posto da Receita Federal

do Brasil (figura 12), na pista reservada aos ônibus (para organizar a travessia dos

veículos existem pistas destinadas a cada tipo, são elas: motocicletas, automóveis,

vans, ônibus e caminhões) sem problemas, pelo menos na ida, falarei sobre isso

mais tarde. A travessia da ponte, que apesar de não ser longa, demorou mais de 30

minutos devido ao tráfego. Era interessante acompanhar esse fervilhar e observar

de perto as pessoas que faziam esse percurso a pé. Logo começamos a avistar

ambulantes vendendo batatas fritas em tubos32, meias, capas para câmeras

fotográficas entre outros. Essa cena me era familiar.

Figura 13 Pedestres e passageiros atravessando a Ponte da Amizade

A aduana paraguaia foi simpática, bem como seus policiais federais que

apenas compõem a paisagem, ali, em pé. Descemos do ônibus e um enxame de

rapazes ofereciam ajuda para transitar. Entregavam panfletos publicitários dos

diversos shoppings do lado de cá. Os panfletos, assim como a fachada das lojas

mostra-me a possível fonte da “publicidade subalterna” praticada no camelódromo

32

Réplicas das mundialmente conhecidas batatas Pringles.

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de Cuiabá, como desenvolvi em trabalho anterior33. “Não, obrigado”, repeti quase

que como um mantra até a entrada do Shopping Del Este.

As portas automáticas se abriram e meu coração disparou. Meus olhos

avistaram um Iphone 4, objeto de meu desejo que cerceio no mesmo instante, já que

esta era uma viagem de pesquisa e eu estava ali como pesquisador, com um

método preestabelecido e um planejamento a cumprir. Junto com Hugo, entrei na

primeira loja. Ele ficou fascinado com o que viu e se perdeu. Mantenho firme meu

propósito e começo a rastrear indícios do que procuro, dos objetos, mais

propriamente quinquilharias. Mais tarde percebi que jamais encontraria

quinquilharias nesse lugar. Hugo costurava o shopping de loja em loja e eu me

irritava com essa perturbação na ordem de minha tão planejada visita etnográfica.

Decido e imponho que devemos “cambiar” algum dinheiro para falar na língua local

(dólar). Após um breve desentendimento, Hugo desmontou este pesquisador

quando disse que queria se perder nesse mar de atratores34 e que eu deveria fazer

o mesmo, para poder entender o que realmente estávamos fazendo ali. Naquele

momento, compreendi que só me perdendo, poderia me encontrar enquanto

pesquisador-consumidor. Pesquisa “de perto e de dentro”, como nos ensina

Magnani. Eu ainda estava de fora e de longe. A pesquisa estava salva, mas meu

bolso, com alguns dólares, começava a declinar. Caminhando rumo à ladeira que

lembrava a 25 de março35, um menino nos seguiu durante todo o percurso

oferecendo 3 pacotes com 3 pares de meias por “10 reales”. No final, já eram 7

pacotes pelos mesmos “10 reales”. Não compramos as meias e entramos em um

dos becos de um outro Paraguai. Os prédios conjugados tornaram-se unos, com as

frentes repletas de bancas e tabuleiros, com os mais diversos produtos. As calçadas

se tornaram corredores, com paredes de lonas remendadas e coloridas. Fui atraído

por uma banca com colchas coloridas, o preço me espantou, não comprei36.

Observei que não havia serviços37 como os encontrados no SP de Cuiabá. A

predominância era de produtos.

33

Trabalho apresentado no XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação na Divisão temática “Comunicação e Culturas Urbanas” e finalista do Prêmio Estudantil Francisco Morel promovido pela Intercom. 34

Lembrando as aulas de Massimo Canevacci. 35

Rua do comércio popular na cidade de São Paulo. 36

Estava mais cara que a similar comprada no dia anterior em Foz do Iguaçu, acho que nossa cara de “turista” valorizou o produto. 37

No SP encontramos serviços de assistência técnica aos equipamentos vendidos por lá, lanchonetes, restaurantes, chaveiros, entre outros.

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Seguindo o fluxo dos transeuntes entramos no primeiro conglomerado de

lojas. Munidos de dólares, descobrimos que lá o câmbio era em múltiplas moedas,

feito nas calculadoras, com as taxas à revelia do valor da bolsa no instante da

compra. Na vitrine de uma loja, avisto diversos bibelôs, quinquilharias. Encontrei ali

o que me fez vir de Cuiabá: o gato da sorte Maneki Neko38. No Shopping Ásia, na

loja “Happy 4” somos atendidos por Karen, uma simpática paraguaia que

pacientemente aguarda enquanto Hugo e eu nos divertíamos com os produtos

globalizados Made in China. Agarro o gato japonês-chinês e Hugo a boneca Russa.

Ambos, enquanto objetos, tem a “função” primeira de cofrinhos, mas cada um traz

consigo sua mitologia cultural que também nos interessa. Gasto exatos 6 dólares

com meus gatos, a uma taxa de câmbio de R$ 1,70. Pago esse valor para o

simpático chinês proprietário da loja. Enquanto calcula meu troco, ele atende ao

telefone e durante alguns minutos, fala em português, guarani e chinês com a

pessoa do outro lado da linha. Eis diante de mim um dos pivôs da relação China-

Paraguai-Brasil. Saímos da loja e seguimos para outras. Os gatos estavam por

todos os lugares. Segundo nos disse Karen, eles balançam o braço para chamar os

fregueses. Os donos das lojas por aqui levam a sério a crença e, pelo sim, pelo não,

deixam perto de seus caixas o gatinho simpático nos mais diversos formatos e

materiais.

Figura 14 Exemplo de caixa com o valor da compra em todas as moedas disponíveis

38

Falarei sobre ele no próximo capítulo.

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Em um dos corredores, Hugo avista uma banca de relógios e assusta-se com

o preço quase que único: 2 reais. Animado com o preço, tenta barganhar com a

moça um desconto para outra peça, mais luxuosa, que custava absurdos (perto das

outras) 25 reais. Aqui, não obteve sucesso. Ainda no shopping Ásia entramos na loja

“Super K”. A loja era grande e diversificada. Nada nos atraiu, a não ser o gatinho, lá,

no caixa, acenando para nós, com notas de real, dólar e guarani pregadas no vidro a

sua frente, talvez seja para o gatinho não esquecer seu objetivo. Nas escadarias da

saída da loja, uma senhora desembrulha uma série de camisetas. Mais tarde

descobri que ela fazia isso para passar pela aduana brasileira, esperta senhora,

cinza senhora. No subsolo do mesmo shopping vamos à loja “Toys”. Lá compramos

mais quinquilharias e presentes, o pesquisador-consumidor sentiu-se livre.

Figura 15 Bibelôs Made in China

Curiosamente, nessa loja encontramos diversas imagens de santos em

resina. Destaco a “Yemanjá europeia39”, vinda da África, fabricada na China,

cultuada no Brasil e vendida no Paraguai. No primeiro piso do shopping Ásia

entramos na “Loja B”, lá encontramos roupas Made in China. Embora não fosse meu

foco, elas eram irresistíveis e compramos. Cansados, decidimos encerrar nossa

39

Caucasiana com os traços finos e o corpo magro.

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visita etnográfica ali. Subimos a ladeira rumo à aduana paraguaia e só avistamos no

topo da avenida um dos ônibus que nos traria de volta ao Brasil. Caminhamos por

entre pedestres e motos, nos becos entre lojas e bancas. Ouvimos as multilínguas

por ali faladas. Chegamos ao ônibus e, pelos mesmos 3 reais e 30 centavos,

seguimos em direção ao Brasil. O trecho de saída do Paraguai é tumultuado, mas

logo estamos sobre a ponte e num piscar de olhos chegamos na aduana brasileira.

O ônibus para e um rude policial federal brasileiro entra no ônibus e, de

maneira grosseira e intransigente, revista bolsas e sacolas, obrigando-nos a declarar

nossos “inúmeros” produtos. Já na receita, o atendente nos tranquiliza, dizendo que

devemos declarar apenas nossos nomes, já que nossa compra não ultrapassa o

limite de 300 dólares mensais. Esse mesmo atendente nos fez perder a passagem

gratuita garantida: estratégia das empresas de ônibus que atravessam a ponte com

passageiros, entregando um ticket que vale como uma espécie de integração entre

os ônibus, permitindo o reembarque daqueles que ficam “presos” na aduana

brasileira a fim de declarar suas compras. No nosso caso, perdemos o reembarque

por sair da aduana a mando do funcionário que nos atendeu. Terminamos o

percurso a pé e, já no Brasil, um táxi paraguaio para a nossa frente e dele descem

quatro rapazes rumo ao porta-malas do carro, do qual retiraram vários eletrônicos

trazidos do Paraguai e sonegados na aduana. Ou seja, ônibus sofrem “baculejos”,

táxis não?

Outro dia, nosso retorno será de táxi – prometemo-nos. Tomamos outro

ônibus que, curiosamente, destinava-se à Argentina, passando pelo Brasil, custando

20 centavos a mais que o anterior. Descemos em nosso ponto e seguimos para o

hotel, onde apreciamos nossas aquisições encerrando assim o dia em que minha

pesquisa foi salva (figura 16).

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Figura 16 Compras do primeiro dia

Dedicamos o 3º dia (05/05/2011) ao “turismo”. Partimos relativamente cedo

para o Parque Nacional de Iguaçu e no longo trecho pude observar a cidade

enquanto ela passava por mim. Em várias esquinas, becos e vielas, sempre

podíamos ver alguma barraquinha vendendo produtos que “no Paraguai não tem”. É

curioso pensar que talvez seja essa a estratégia dos ambulantes de lá para tentar

burlar a facilidade de consumo disponível do outro lado da fronteira. Tanto no ônibus

que levava ao parque, quanto dentro do mesmo, os assuntos dos turistas das mais

diversas partes do planeta eram os produtos e o comércio do Paraguai, os objetos

de desejo já adquiridos ou por adquirir acompanharam-nos por toda a viagem.

No parque, como em todas as lojas que se encontram em intersecções

turísticas, os preços para produtos regionais eram bem mais caros que no Paraguai

ou mesmo no centro de Foz. Depois do tour pelas cataratas, fomos para o Parque

das Aves, uma área privada, linda e exuberante que abriga aves e alguns animais

com fins reprodutivos. De lá, no anoitecer, voltamos para o hotel e, depois de

descansar, saímos para explorar mais a nossa região.

Na calçada de nosso hotel, uma loja nos atraiu. Ela abrigava desde

artesanato até pedrarias e extrações, passando pelas quinquilharias, é claro. O dono

era um sério paraguaio que mal levantava de seu banco, atrás do balcão do caixa.

As vendedoras, muito simpáticas, tentavam disfarçar a má vontade do “seu

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Francisco”. Não era a primeira vez que vínhamos a esta loja, mas foi a primeira na

qual compramos algo. Depois de fechada a compra, seu Francisco tornou-se outro,

simpático, indo na contramão do tratamento dos outros estabelecimentos dessa

zona fronteiriça.

Atravessamos a rua e vamos até a Feira Iguaçu. Trata-se de um corredor de

bancas em metal, que mais parecem garagens enfileiradas, que ocupam as

calçadas dos dois extremos da avenida Brasil. A propaganda segue a linha do “no

Paraguai não tem” e o modo singular da negociação dos preços que encontramos

no Brasil, pelo menos no SP de Cuiabá. Havia também uma similitude entre os

produtos e os arranjos. De lá voltamos para o hotel e nos preparamos para o dia

seguinte, que seria todo dedicado aos shoppings do Paraguai.

O quarto dia (06/05/2011) começa cedo. Estávamos programados para

passarmos o dia no Paraguai. A priori, escolhemos o Shopping China e o Shopping

Monalisa, depois, o fluxo das ruas nos guiaria. Seguimos para o ponto de ônibus, em

frente ao terminal urbano de Foz. Logo passou o ônibus internacional que liga as

duas cidades. Entramos e nos deparamos com o ônibus relativamente vazio, todas

as pessoas estavam sentadas e três delas, em especial, me chamaram a atenção. A

primeira era um homem de meia-idade, com um sotaque não identificável, o

segundo era também um homem de meia-idade brasileiro e a terceira era uma

mulher jovem. Os três conversavam tranquilamente assuntos variados, até que a

mulher começou a instruí-los em como burlar a aduana das mais diversas formas,

inclusive como fazê-lo nos aeroportos. Segundo ela, para atravessar a ponte,

devemos desembalar todos os produtos, dar um ar de uso a eles (fato já observado

e comprovado pelas atitudes dos sacoleiros vistos anteriormente) e misturá-los para

não identificarem rapidamente a repetição em quantidade. No aeroporto, ainda

segundo ela, deve-se retirar todas as etiquetas, lacres e qualquer outro signo de

produto novo, relembrando para cuidar com as repetições em quantidade. Eu

deveria agradecer a essa mulher, por ter essa conversa logo ali, perto de mim.

Preferi não abordá-la, a fim de não suprimir sua espontaneidade. A sacoleira em

questão vinha do interior de São Paulo para comprar produtos e revender em sua

cidade.

Nessa “conversa”, dou por mim chegando à ponte, que estava com um fluxo 3

vezes maior que no primeiro dia que cruzamos, a véspera do dia das mães marcava

presença já na ponte. No caminho de chegadas e saídas, muitos outdoors

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demarcam o espaço e me remeteram à Las Vegas de Robert Venturi (figura 17).

Esperava, como ele, aprender algo com Ciudad Del Este. Os veículos, em números

impressionantes, davam a pulsação do tráfico. O fluxo de pedestres era também

intenso. Com suas sacolas cheias e imensas eles andavam rápido e “magicamente”

atravessavam a fronteira. A cidade estava cheia, não havia um só lugar onde não

houvesse pessoas comprando ou vendendo coisas ou ônibus com turistas em vários

lugares. Chegamos ao nosso ponto, descemos e, só então, conseguimos ter uma

pequena noção do que nos aguardava. Era por volta de 09:45 da manhã e Ciudad

Del Este fervia. Os ambulantes nos abordavam a todo tempo, chegando a colocar os

produtos em nossas mãos para que o sentíssemos! Com certa dificuldade,

chegamos ao Shopping China e nele entramos sem olhar para trás.

Figura 17 Outdoor da “Las Vegas” Sul-americana

Já dentro do shopping, me assustei com o uniforme das atendentes. Ele era

incrivelmente curto e sensual. Elas estavam com maquiagens carregadas, quase

como gueixas, mesmo sabendo que essas advinham do Japão e não da China,

como no Shopping em questão (mas afinal, o que são as fronteiras por aqui?).

Passado o primeiro choque, começamos a perambular pela loja. São apenas dois

pisos com muitos departamentos, contendo os mais diversos produtos. Os preços

eram marcados em dólares, mas a loja seguia a tendência do “plurimonetarismo”

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paraguaio. Em sua maioria, eram homens em busca de eletrônicos e esportivos.

Com a compra encerrada, fomos a um dos diversos caixas espalhados pela loja,

interessante meio de facilitar as compras e diminuir a fila juntamente com a chance

de arrependimento. Pegamos nossas compras na parte de despacho (ou pacote) e

saímos rumo à Monalisa.

Driblando os ambulantes, somos recebidos por dois seguranças na porta da

loja, lado a lado com o detector de metais e furtos. A loja estava à meia-luz (depois

descubro que estava sem energia, funcionando apenas com geradores) e, mesmo

assim, a loja impunha sua grandeza. O prédio tem seis andares (e mais dois

reservados apenas aos grandes clientes), divididos entre perfumaria, vestuário,

eletrônicos, alimentos, artefatos para o lar e decoração. Lá, sem dúvidas, não

encontraria meu gatinho da sorte. Visitamos por todos os andares, todas as

sessões. O shopping está fervilhando. Inúmeros brasileiros conversam e negociam

com os vários atendentes, de ambos os sexos, bem alinhados e apessoados.

Pagamos quatro reais em uma garrafa d'água. Depois de um bom tempo

perambulando pela loja, decidimos que era hora de visitar os outros lugares,

digamos, mais populares.

Figura 18 Lado direito da entrada de Ciudad Del Este

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Os aglomerados de lojas lá, em geral, são shoppings, galerias ou casas, que

vão desde simples bancas com os produtos até os luxuosíssimos Del Este e

Monalisa. Do lado direito da avenida principal começamos nossa caminhada, sem

rumo, seguindo o intenso fluxo de consumidores variados e polifônicos. Os prédios

são quase conjugados, com múltiplas entradas e saídas, sem um núcleo aparente,

os prédios são labirínticos. A predominância nesses prédios é de lojas de produtos

eletrônicos, os mais diversos, com os mais variados preços. Enlouqueci com os

celulares, principalmente com uma bela réplica do meu desejado Iphone 4. É

impressionante a variedade de marcas de celulares e eletrônicos, muitas mais que

as encontradas no SP. Há uma marca (MDU) que possui selo de qualidade de uma

certificadora americana, produto chinês com padrão de qualidade americano. Na

maioria dessas lojas, a entrada era por uma porta e a saída era por outra, com polos

distantes, que mantém o fluxo das pessoas. Numa breve parada para o lanche,

ouvimos um casal de brasileiros conversando. O homem falava para a esposa as

inúmeras maravilhas que ele poderia realizar se tivesse um celular com dois chips e

acesso à internet. Esse homem se expos ao celular, muita mais que o contrário. As

pessoas se expõem aos produtos, (como acontece no SP) e, esses, com seu poder

de atrair seduzem e fascinam.

Perambulamos por entre prédios e calçadas, todas abarrotadas de pessoas,

na frente e nos fundos. O meu gatinho da sorte estava por todos os lados, nas lojas

mais populares, de donos chineses ou descendentes. Esse movimento chega a me

atordoar, por vezes fico sem saber como agir, são muitas pessoas, muito barulho,

sem contar as interpelações constantes dos ambulantes que precisam ser ignorados

para nos dar sossego. Passamos o restante do dia nessas andanças. Terminamos o

dia no Shopping Del Este, comprando algumas coisas na loja coreana.

Por uma questão metodológica, desta vez, atravessamos a ponte de van.

Saímos do Shopping Del Este e seguimos ladeira abaixo para que um dos

atravessadores nos escolhesse (já havíamos sido interpelados por um, que cobrou

cinco reais por pessoa, mas naquela hora ainda não estávamos de partida). Antes

disso, fizemos uma parada em um grande galpão, muitíssimo parecido com o SP.

Repleto de bancas lado a lado, novíssimo, com algumas poucas pessoas

organizando seus espaços e vendendo seus produtos. Notei ali a tentativa de

disciplinamento das ruas, os ambulantes estavam sendo, pouco a pouco,

convencidos a deixar as ruas e ocupar aquele espaço. Talvez a maneira como se

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organizavam nas ruas tenha começado a incomodar. Será que há nesse prédio uma

tentativa de “embelezamento” da cidade? Modernização? Limpeza? Vi Cuiabá no

Paraguai. (figura 19).

Figura 19 Corredor do camelódromo paraguaio

Figura 20 Camelôs arrumando suas mercadorias no camelódromo paraguaio

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Saindo desse local, ainda em busca de van, fomos abordados por um homem

oferecendo tal serviço. Após uma rápida negociação de preço (de 20 caiu para 15

com exclusividade de transporte) entramos na van e começamos a arrumar nossas

compras entre a mochila e as duas outras sacolas que havíamos comprado, com o

propósito de “burlar” a fiscalização. Não foi preciso, nossa van não foi fiscalizada e

seguimos uns 200 metros da aduana até que ela estacionou para que descêssemos

e seguíssemos de volta para o hotel em qualquer ônibus.

No quinto dia (07/05/2011), o cansaço nos atacou fortemente. Partimos já

tarde para a Argentina, apesar de nosso plano inicial ser passar o dia todo por lá.

Mesmo assim, partimos em direção ao ponto de ônibus paralelo ao terminal urbano,

no qual poderíamos tomar o ônibus para Puerto Iguazú, na Argentina.

Figura 21 Compradoras

Enquanto aguardávamos o ônibus, pude observar com detalhes a chegada de

duas senhoras que, neste sábado, resolveram fazer compras no Paraguai. Já eram

quase 11 horas da manhã e as duas remexiam em suas sacolas e comentavam

suas aquisições (figura 21). Enquanto conversavam, pude ouvir que a ponte estava

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infernal, com uma demora aproximada de 45 minutos para a travessia. A aduana

brasileira estava movimentada e, não sei como, as duas simpáticas senhorinhas

conseguiram chegar tão longe com suas inúmeras compras. Logo chegaram dois

homens conhecidos delas (e só então descubro que além de ponto para a Argentina,

esse local era parada de ônibus para os distritos vizinhos de Foz, de onde vinham

essas pessoas), também repletos de sacolas. Havia um ar de intimidade entre eles.

Esses vieram a pé desde o Paraguai, já que julgaram ser mais rápido esse meio que

o ônibus. Novamente, confirmo que o Paraguai estava repleto de compradores,

mesmo não estando lá para ver, enriquece minha etnografia essas informações

indiretas e cruciais para o método que utilizo.

Finalmente o ônibus chegou, entramos, e logo percebi que algumas pessoas

vinham do Paraguai em direção a Puerto Iguazú. Dessa maneira, a cidade de Foz

era apenas mais uma imensa fronteira a se atravessar. Não havia muitas pessoas

no ônibus. A viagem seguiu tranquila, sem nada que chamasse minha atenção. Já

na saída de Foz, a aduana brasileira estava entregue às moscas. Não havia um

policial sequer do lado de fora observando quem entrava ou saía do país. Deviam

estar todos no Paraguai, perturbando a ordem dos sem ordem. No entre-meio dos

dois países encontra-se o maior duty free da América Latina. Não paramos nesse

local, mas é interessante pensar que ele, supostamente, estava numa zona “sem

dono”, “sem lei”, livre de consumo autorizado. Como com o Paraguai, a divisa entre

o Brasil e a Argentina se dá por uma ponte. Seguimos em frente e logo avistamos a

aduana argentina, nessa todos eram obrigados a parar e descer. Apresentamos

nossas identidades e logo depois de responder algumas perguntas práticas somos

liberados para retornar ao ônibus e seguir em frente. Após cruzarmos a rotatória da

cidade, comecei a ver alguns estabelecimentos comerciais, ao modo de strips40,

esses comércios que ocupam a avenida principal a qual a cidade cresce ao redor. A

viagem continua até o terminal rodoviário. Durante o percurso não vi ambulantes por

aqui, acho que os hermanos têm outro jeito de lidar com o comércio subalterno. Já

no terminal, nos informamos sobre qual ônibus deveríamos tomar para ir ao Parque

de QuiraOga (nosso destino para hoje) e esperamos até sua chegada.

40

VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas: o simbolismo (esquecido) da forma arquitetônica. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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De volta ao ônibus fizemos o caminho contrário ao da ida, até chegarmos ao

parque. Na estrada, avistei vários hotéis de luxo, parece que do lado de cá a cidade

é mais rica e suntuosa. Carros importados, residenciais fechados, hotéis grandes.

Foi esse o panorama até QuiraOga. No parque, logo à frente da recepção há uma

lojinha, nela encontramos produtos artesanais, com preços internacionais, como

toda boa loja desse tipo. Logo chegou o trator que nos guiaria por dentro do parque

e começamos o passeio. O passeio terminou e fomos ao museu, logo em frente à

QuiraOga e ao lado da entrada das cataratas do lado argentino. O museu abrigava

peças entalhadas em madeira juntamente com uma exposição de fotografias em

macro. Acima do museu, ficava o ponto de informações aos turistas, lá somos muito

bem recebidos pelos atendentes que sanam todas as nossas dúvidas. Perguntei

sobre aglomerados de comércio popular, segundo eles, não havia nenhum

organizado por essas bandas. Voltamos para a estrada e apesar de já me sentir no

limite, decidi seguir com a visita. O ônibus demorou uma eternidade mas enfim

chegou, entramos juntos com alguns turistas estrangeiros (de verdade, de fora do

Brasil-Argentina) que aguardavam conosco no mesmo ponto. Eles vestiam roupas

de marca famosas, como os jovens das cidades que estávamos visitando. Curioso

pensar o pequeno limite que nesse lugar da América Latina o original e o falsificado

se encontram.

Figura 22 “Camelódromo” em Puerto Iguazú

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Voltamos ao centro e, após um breve lanche, vou a uma casa de câmbio para

trocar reais por pesos argentinos. Na casa de câmbio, tive que apresentar minha

identidade e fazer um breve cadastro. O atendente calculou quanto meus 50 reais

seriam em pesos argentinos enquanto assinava a papelada em duas vias. Entreguei

os papéis e peguei meu dinheiro. Depois de cumprir a burocracia da casa de câmbio

(completamente diferente da do Paraguai, diga-se de passagem, onde entregamos o

dinheiro com a mão direita e recebemos o “cambiado” com a esquerda) paguei a

conta e, enfim saímos para um reconhecimento da área. Passamos por algumas

lojas de souvenires e a máxima se repete: lembrancinhas são sempre caras. Mal

conseguia andar. Decidimos então voltar para Foz do Iguaçu e, depois de caminhar

até o terminal rodoviário, tomamos o ônibus de volta. No terminal pude ver várias

pessoas com sacolas dos já conhecidos shoppings do Paraguai, era fim de tarde e,

acredito, eles voltavam para casa depois de um dia de compras na cidade quase

vizinha. Chegamos a Foz e cansado, tomo banho e descanso, para depois jantar e

dormir.

No sexto dia (08/05/2011) acordei bem, muito bem. Os remédios que tomei

fizeram efeito. O destino era o Paraguai, finalmente iria comprar meu Iphone 4

(réplica, é claro). Partimos para o ponto de ônibus e como esse demorava,

acabamos tomando um táxi paraguaio que viera deixar algum outro passageiro

advindo de lá. Antes de nós, outros brasileiros já haviam feito o mesmo, com outro

táxi que passou antes desse. O táxi não para, mas anda lentamente enquanto

perguntava o preço (5 reais por pessoa) e chamava Hugo para embarcamos. Ao

nosso lado, no ponto, estava um senhor oriental, que negocia com os dedos o preço

com o “nosso” taxista, que por 3 reais o aceita como passageiro. Do outro lado da

rua, taxistas brasileiros gritam e buzinam, não consegui entender o que falavam.

Nosso condutor paraguaio disse que os colegas brasileiros não gostam que eles (os

taxistas paraguaios) peguem passageiros do lado de cá da ponte. Nosso taxista

quebrara a regra. A travessia pela ponte foi rápida, não havia muitos carros no

caminho e chegando na aduana paraguaia nosso taxista perguntou se era nossa

“primeira vez” no Paraguai, respondi que sim ao que ele começou a nos explicar

como funcionavam as coisas por lá nos domingos: o lado esquerdo estava com

todas as lojas fechadas (exceto o Shopping Monalisa), enquanto todo o lado direito

da avenida estava em pleno vapor até as 13 horas (para os shoppings) e o dia todo

para os demais aglomerados de vendas.

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Descemos na frente do Shopping China e rapidamente nos misturamos com

os transeuntes. Entramos em uma das galerias e começamos a peregrinação em

busca de meu Iphone 4 e de um GPS encomendado por uma amiga. Fomos de

balcão em balcão perguntando preço e pechinchando. Já tínhamos certa experiência

em compras desse lado da fronteira e, dessa forma, fomos seguindo até encontrar

com um jovem garoto, com sotaque árabe. Ele nos falou os preços do que

procurávamos e, antes de descartá-lo, ele começou a mostrar-se mais maleável

para a negociação. Hugo apertou o cerco, e entre quedas do dólar e do real,

acabamos com comprar o GPS. Ainda faltava o Iphone. No final das contas, ele

abaixou o preço do Iphone também e ainda nos deu alguns brindes como

recordação. Quando começamos a desmontar as caixas para travessar a aduana,

ele nos ajudou, arrumando sacolas escuras como a mochila a fim de camuflar

nossas muambas. Saímos de lá satisfeitos, rumo à ponte, já que hoje, seguindo o

nosso propósito etnográfico, atravessaríamos a pé.

Figura 23 Travessia na Ponte da Amizade - Ciudad del Este a Foz do Iguaçu

Depois de nos perdermos, rapidamente encontramos a entrada da ponte e

seguimos o fluxo. Várias pessoas atravessavam conosco. Hugo foi logo atrás de

mim registrando tudo com a câmera do celular. Num dado momento, um taxista

percebe que ele estava fotografando e começou a xingá-lo em meio aos carros, o

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trânsito flui e ele segue, nos deixando para trás. A pé, a travessia demorou pouco

mais de 15 minutos. Chegamos à aduana brasileira e, para nossa surpresa, não

havia nenhum fiscal para os atravessadores a pé. Saímos da zona da aduana e

vamos até o ponto de ônibus, com os produtos esparramados pelo corpo e pela

mochila.

Depois do almoço partimos para a Usina de Itaipu. Chegando lá compramos

nossos ingressos e esperamos o horário de partida do passeio pela reserva natural

da usina. Logo chegam mais pessoas, turistas, que conversam com seus

companheiros sobre suas experiências de compras no Paraguai ou seus anseios

pelas que ainda irão fazer. É impressionante como parece haver uma dobra

territorial que liga essas cidades através do consumo. Chega a hora de entrarmos no

bonde, nosso guia assumiu a frente e começou a falar seu texto decorado.

De tudo que ele disse, vale ressaltar o trecho no qual contou que alguns dos

mais de 100.000 operários que ajudaram a construir a usina, ficaram por essas

bandas (nos residenciais construídos por Itaipu para eles) e após o término da obra

tornaram-se muambeiros. Diante desse fato curioso, Itaipu em parceria com a

receita federal construiu a aduana brasileira na saída para a ponte da amizade, que

hoje é a maior do país. Concluído o passeio voltamos para nosso hotel e seguimos

nosso descanso para o dia seguinte.

No sétimo dia (09/05/201) saímos quase na hora do almoço e alguns

equívocos nos fizeram mudar de planos já no ponto de ônibus. Resolvemos visitar

as cataratas do lado argentino. Novamente, mudamos de ponto e esperamos por

alguns minutos (cerca de 30 minutos) até a chegada do coletivo que nos levaria ao

centro de Porto Iguazú. Durante o percurso, voltei a observar o quanto as duas

cidades (Foz e Porto) são costuradas pela influência do comércio paraguaio. Penso

que a existência desse tipo de comércio na tríplice fronteira desenha pertencimentos

por entre as três cidades.

Foz, a meu ver, fica na mistura popular brasileira, onde o comércio legal (lojas

com alvará) vende produtos trazidos do Paraguai sem o menor pudor. Por toda a

cidade vemos “banquinhas” com produtos do lado de lá, pessoas com sacolas

mostrando em uma das mãos alguns produtos “úteis”, tentando atrair pelo preço,

sempre flexível. Além disso, o forte atrativo turístico proveniente da localização

geográfica desenha uma outra cidade, a dos não muambeiros, a dos que querem

aventuras pela floresta e pelas águas. Já Porto Iguazú, não tão próxima

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estrategicamente do Paraguai, envereda-se pelos caminhos do ecoturismo e do

luxo. O “melhor” duty free do mundo e diversos cassinos na fronteira mostram a

característica que a cidade quer para si. Atrativa para todos os gostos e bolsos.

Enfim, em meio a meus pensamentos, chegamos a Porto Iguazú. Descemos

no centro e, enquanto Hugo escolhia algumas quinquilharias na loja de souvenires,

fiz o câmbio para os pesos argentinos que nos abririam portas (junto com o real,

dólar e guarani). Das quinquilharias compradas, saltou aos meus olhos a boneca

russa, morena, feita pelos índios da região, com suas várias irmãs gêmeas. Curioso

ver um modelo cultural russo, feito em madeira latina, por índios argentinos,

vendidos na quase fronteira, no não-lugar das lojas de souvenires. Em suas

múltiplas barrigas, carregam flores ou o ouro líquido da região, as cataratas. Com

essa etapa cumprida, procuramos o ponto que nos levaria para o parque nacional

que abriga as cataratas. Depois de uma longa espera, enfim chega o ônibus,

confortável e grande, garantindo o sossego da viagem relativamente longa.

No portão do parque descemos para comprar as entradas (que se carimbadas

garantem o retorno no dia seguinte gratuitamente) e somos encaminhados até o

ponto que divide, de fato, a entrada do parque. É um bom trecho até a estação de

trem que serpenteava o parque e nos levava até o caminho suspenso sobre as

águas da garganta do diabo. O percurso e seu fim são vertiginosos. Não consegui

ficar por muito tempo em meio à vastidão das águas. Retornamos ao trem e,

ouvindo as vozes do mundo, retornamos para a entrada e, posteriormente para o

Brasil.

O oitavo (10/05/2011), último e triste dia chega. O clima de último dia já se

mostra na melancolia dos fins de viagem. Já estava habituado a este lugar, a estas

pessoas, a esse clima que me deixava mais intrigado e tranquilo com relação à

minha pesquisa. Nas compras espalhadas pelo quarto, pedaços de mundo,

particularmente, da China. Em cada objeto, histórias, biografias, caminhos que

percorreram até pararem em nossas mãos. Olhei cuidadosamente cada um deles,

na esperança de ver para além do plástico dourado, barato e frágil.

Finalmente deixamos o hotel. No caminho para o Paraguai não me assustava

mais com o que via, acho que já pertencia a esse lugar. Mal chegamos ao viaduto e

as palavras do taxista do primeiro dia retornam a minha cabeça, não há dia ou hora

para a travessia ser longa e demorada. Levamos mais de uma hora para atravessar.

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Em pé, no calor, com várias vozes, várias histórias, várias vidas. Vários percursos

múltiplos e misturados.

Só hoje reparei nos remendos no começo da ponte. Talvez estes sejam a

marca material das tentativas de sucumbir à ordem quase militar desse pedaço entre

países. O curioso é que as cores dos ferros marcam os tempos distintos, uma

prática recorrente, uma subversão que sempre vêm.

Figura 24 Grades remendadas no começo da Ponte

Antes de entrarmos no mundo pós-ponte, decidimos enveredar pelo Paraguai

profundo, em direção ao zoológico regional mantido pela Itaipu binacional.

Descemos na rodoviária e tomamos um táxi. A explicação em “portunhol” da

atendente afastou meu espírito etnógrafo. No táxi, andamos por entre as calles e

rutas. A cidade é linda. Diferente e charmosa. Estávamos em outro lugar, bem

diferente e distante do Paraguai pós-ponte. Num canto ou outro víamos alguns

ambulantes, com produtos de lá, de longe, mesmo estando a poucos quilômetros da

fonte. A cidade estava toda decorada. O vermelho, azul e branco patriotizavam o

Paraguai das muambas. Estávamos na semana do bicentenário da independência.

As ruas e as pessoas comemoravam essa data nos pequenos detalhes, seja no

broche ou na casa de areia de uma rotatória qualquer.

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O zoológico ficava em um distrito, Hernanderias. Depois de um longo

percurso, descobrimos que o mesmo estava fechado, em greve por melhores

salários. Voltamos. Pedimos ao taxista que nos deixasse na entrada da avenida

dupla que liga a entrada efetiva do Paraguai à Ponte da Amizade. O começo das

bancas não anuncia o que estava por vir. O começo calmo foi se tornando

movimentado chegando à loucura da beira dos shoppings. Cambiamos mais

dinheiro, as compras estavam listadas, para pessoas específicas no Brasil.

Mudamos o percurso e andamos pelas ruas paralelas. Foi fantástico ver a

organização por detrás dos shoppings e das lojas. Por todas as ruas e vielas saem

pessoas puxando carrinhos ou carregando caixas, inúmeras caixas, não

identificadas, sem remetente ou destinatário. As caixas nos parecem saindo “do

nada” e entrando em lugar nenhum. Da maneira como elas surgem elas somem.

Dentro dos shoppings mais camuflados, vemos pessoas desmontando caixas,

tirando caixas menores das caixas maiores. Empilhando o lastro dos produtos Made

in China.

Entramos em um luxuoso shopping, com réplicas perfeitas de bolsas de

marca. Tão perfeitas que até meus olhos mais treinados são enganados e

fascinados. Os preços eram em dólares e guaranis. Eram três andares, com

atendentes educadas e sorridentes por todos os lados. O lugar era fascinante.

Compramos duas bolsas para presentear. Emaranhamo-nos ainda mais pelas

paralelas. Deixamos-nos levar pelo fluxo, pelo movimento dos carrinhos que nos

espremiam entre paredes, caixas, produtos, carros e pessoas. Esse movimento me

incomodou. Cheguei a ficar irritado. Subimos e descemos escadas, ladeiras,

entramos por um lugar e saímos por outros, nesse labirinto comercial de papelão.

Os shoppings paralelos tinham seu primeiro andar como um grande mostruário, os

demais andares servem como depósitos para os compradores em atacado. Dado

curioso e revelador. Existe um Paraguai dentro do Paraguai, o Paraguai dos

compradores, não dos turistas compradores, que não se aventuram pelos pontos

mais obscuros do mercado global.

Procurávamos por relógios. Existiam vários modelos de vários preços.

Olhamos vários lugares, muitas vitrines. Saímos, andamos e voltamos ao lugar

anterior. Hugo comprou um relógio. Algumas lojas começavam a fechar, o

movimento de caixas diminuiu. Muitas portas estavam fechadas. O dragão latino

estava adormecendo. Ainda faltava um item, os produtos da Loreal para minha

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cunhada. Apenas dois lugares dispunham dos produtos, mas os preços estavam

inviáveis, esses ficaram por lá mesmo.

Decidimos partir. No topo da avenida tomamos o ônibus que vagarosamente

desceu a ladeira, com vendedores de bebidas e batatas, entraram mais pessoas.

Entraram mais sacoleiros, com ou sem sacolas. Atrás de nós assentam-se dois

homens, tio e sobrinho. O primeiro ensina o segundo como proceder, já que esta

aparentava ser sua primeira viagem profissional. Explicou como fazer no ônibus de

carreira que iria atravessá-lo, onde descer, com que falar em caso de roubo ou

quem deverá levá-lo. Essa educação informal me intrigou e despertou em mim

novas dúvidas, que espero investigar num futuro próximo. Sobre a ponte vi os

barquinhos atravessando o rio, longe dos olhos da aduana. Barquinhos levando

muambas. Muambas flutuantes pelo imenso Paraná.

Atravessamos a ponte e chegamos à aduana. O ônibus para. Descemos.

Pedimos informação de onde declarar e depois de desencontros de informação,

Hugo retorna ao ônibus e segue viagem. Eu fico para trás, na aduana, declarando o

indeclarável, já que a menos de sete dias havíamos atravessado. Por boa vontade

do atendente, passo com a bolsa pelas vistas grossas do estado. Sigo meu trajeto

até o hotel. Chego em paz.

Finalmente chegou a hora de arrumar as malas. Além das que trouxemos

levávamos mais uma, grande, preta, típica de sacoleiro (comprada na barganha,

com o vendedor que ao final ainda nos ofereceu o medicamento Desobese, depois

de olhar nossos perfis!). Organizamos cuidadosamente as compras por todas as

sacolas, misturando com roupas sujas e novas, seguindo os conselhos que

recebemos durante toda a estadia. Mais que conselhos, seguindo as instruções de

como proceder no cinza, como caminhar no subalterno. Depois de “malocar” tudo,

aguardamos a hora de seguir viagem.

Já no aeroporto, passamos pelo raio-x sem grandes problemas. Passamos

por todos eles. Vi outras pessoas sem a mesma sorte, tendo suas mercadorias

confiscadas na frente de todos, sendo tachados de contrabandistas, sendo tratados

como criminosos. Até o fim da viagem constatei a manifestação do poder

hegemônico do Estado agindo sobre as pessoas. Entramos no avião e seguimos

para casa, com as malas e as mentes repletas de novidades dali nesse trânsito de

mercadorias e pessoas pelo mundo.

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2.2. Globalização

2.2.1. Entre metáforas e o mundo

As obras que tentam dar conta das linhas gerais que circundam o fenômeno o

qual descrevi (o de produção e circulação de mercadorias pelo mundo) são

inúmeras. Autores de todo o mundo escreveram incessantemente suas reflexões no

sentido dos rumos de nossa civilização. Vou apresentar algumas delas com o

propósito de substanciar o pensamento a propósito da globalização subalterna,

traçando comparativos com esse fim. Optei, inicialmente, por utilizar das

interpretações do sociólogo brasileiro Octavio Ianni (1926-2004), em seu livro

Teorias da Globalização, para discutir a globalização e suas leituras, a fim de tentar

falar da globalização fora dos fluxos hegemônicos, falar da globalização subalterna

China-Paraguai-Brasil. Ainda neste capítulo, irei dialogar com Renato Ortiz e sua

mundialização, bem como adiantar alguns itens do que virá no próximo capítulo com

Arjun Appadurai.

No curso da história, cada descoberta científica acarretava uma mudança nas

teorias que tentavam compreender sua época. A descoberta de que o globo era algo

para além de uma figura astronômica, e sim o território de relações, atrelamentos e

diferenças, rompeu drasticamente com os modos de ser, sentir, agir, pensar e

fabular. Ianni afirma “que o globo não é mais exclusivamente um conglomerado de

nações, sociedades nacionais, Estados-nações, em suas relações de

interdependência, dependência, colonialismo, imperialismo, bilateralismo,

multilateralismo” (IANNI, 2003, p. 13). O centro do mundo deixa de ser o indivíduo,

compreendido (singular e plural) como povo, grupo, classe, maioria, minoria, opinião

pública, etc. Segundo o autor:

Desde que o capitalismo desenvolveu-se na Europa, apresentou sempre conotações internacionais, multinacionais, transnacionais e mundiais, desenvolvidas no interior da acumulação originária do mercantilismo, do colonialismo, do imperialismo, da dependência e da interdependência. Nesse clima, a reflexão e a imaginação não só caminham de par em par como multiplicam metáforas, imagens, figuras, parábolas e alegorias, destinadas a dar conta do que está acontecendo, das realidades não codificadas, das surpresas imaginadas. As metáforas parecem florescer quando os modos de ser, agir, pensar e fabular mais ou menos sedimentados sentem-se abalados. [...] São múltiplas as possibilidades abertas ao imaginário científico, filosófico e artístico, quando se descortinam os

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horizontes da globalização do mundo, envolvendo coisas, gentes e ideias, interrogações e respostas, explicações e intuições, interpretações e previsões, nostalgia e utopias (idem, p. 14-5).

Para ele as metáforas abarcam as controvérsias sobre modernidade e pós-

modernidade, expondo como é a partir, principalmente, dos horizontes da

modernidade que podemos projetar as possibilidades e os embaraços da pós-

modernidade no novo mapa do mundo. Diante dessa justificativa para o uso de

metáforas nas teorias da globalização, o autor segue apresentando algumas delas,

como:

“Aldeia Global”, [termo de Marshall McLuhan], sugere que, afinal, formou-se a comunidade mundial, concretizada com as realizações e as possibilidades de comunicação, informação e fabulação abertas pela eletrônica. Sugere que estão em curso a harmonização e a homogeneização progressivas. Baseia-se na convicção de que a organização, o funcionamento e a mudança da vida social, em sentido amplo, compreendendo evidentemente a globalização, são ocasionados pela técnica e, neste caso, pela eletrônica. Em pouco tempo, as províncias, nações e regiões, bem como culturas e civilizações, são atravessadas e articuladas pelos sistemas de informação, comunicação e fabulação agilizados pela eletrônica. Na aldeia global, além das mercadorias convencionais, sob formas antigas e atuais, empacotam-se e vendem-se as informações. Estas são fabricadas como mercadorias e comercializadas em escala mundial. As informações, os entretenimentos e as ideias são produzidos, comercializados e consumidos como mercadorias. (idem, p. 16).

A leitura de Ianni dos escritos de McLuhan colabora para o que apontei no

primeiro capítulo ao tratar da importância do camelódromo de Cuiabá para a própria

cidade, ao passo que o mesmo desempenha, dentre outras coisas, o papel de

conectar a cidade à tecnologia e informação do restante do globo, materializada nos

produtos que comercializa. Na perspectiva de uma “aldeia global”, os produtos

eletrônicos Made in China tratariam, sob duas formas (os produtos propriamente e

sua carga tecnológica), de transportar para cá as informações do “que há de mais

moderno” por aí, espraiando pela cidade tecnologia (e consequentemente,

informação) mundial. Na missão das metáforas, Octavio Ianni apresenta a:

“Fábrica global” [que] sugere uma transformação quantitativa e qualitativa do capitalismo além de todas as fronteiras, subsumindo formal ou realmente todas as outras forma de organização social e técnica do trabalho, da produção e da reprodução ampliada do capital. Toda economia nacional, seja qual for, torna-se província da econômica global. O modo capitalista de produção entra em uma época propriamente global, e não apenas internacionalmente ou multinacional. Assim, os mercados, as forças produtivas, a nova divisão internacional do trabalho, a reprodução ampliada do capital

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desenvolvem-se em escala mundial. Uma globalização que, progressiva e contraditoriamente, subsume real ou fortemente outras e diversas formas de organização das forças produtivas, envolvendo a produção material e espiritual (idem, p. 18).

A “fábrica global” articula capital, tecnologia, força de trabalho, divisão do

trabalho social e outras forças produtivas instalando-se além de qualquer fronteira.

Acompanhada pelos meios de comunicação, “dissolve fronteiras, agiliza os

mercados, generaliza o consumismo. Provoca a desterritorialização e a

reterritorialização de espaços e tempos” (idem, p.19). Nessa perspectiva podemos

pensar no Paraguai como um “centro de distribuição de mercadorias”. Como uma

parte da fábrica global que é responsável não pelo destino final, mas por uma etapa

da trajetória dessas mercadorias. Pensando por metáforas, a experiência que

tivemos no Paraguai nos coloca nesse lugar da fábrica global, no centro de

distribuição, repleto de funcionários da globalização subalterna transitando com as

mercadorias para outros lugares do continente.

Ainda em metáforas, Ianni apresenta a ideia de “Nave espacial”, que pode

muito bem ser o emblema de como a modernidade se adolesce no século XX,

prognosticando o XXI e sugere à “viagem e a travessia, o lugar e a duração, o

conhecido e o incógnito, o destinado e o transviado, a aventura e a desventura. A

magia da nave espacial vem junto com o destino desconhecido” (ibidem). Na

metáfora da nave espacial esconde-se a da “torre de babel”, um espaço

desordenado que os indivíduos têm dificuldade para compreender que se acham

extraviados, em declínio, ameaçados ou sujeitos à dissolução (idem, p. 21). Ainda

nesse sentido, ele afirma que:

A Babel escondida no emblema da nave espacial pode revelar ainda mais nitidamente o que há de trágico no modo pelo qual se dá a globalização. Nesta altura da história, paradoxalmente, todos se entendem. Há até mesmo uma língua comum, universal, que permite um mínimo de comunicação entre todos. A despeito das diversidades científicas, artísticas e outras, o inglês tem sido adotado como a vulgata da globalização. [...] É o idioma do mercado universal, do intelectual cosmopolita, da epistemologia escondida no computador, do Prometeu eletrônico. (idem, p. 22).

Concluindo seus escritos a esse respeito, Octavio Ianni nos diz que:

Vistas assim, como emblema da globalização, as metáforas desvendam traços fundamentais das configurações e movimentos da sociedade global. São faces de um objeto caleidoscópico, delineando fisionomias e movimentos do real, emblemas da sociedade global desafiando a reflexão e a imaginação. A metáfora está sempre no pensamento científico. Não é apenas um artifício poético, mas uma forma de surpreender o imponderável, fugaz, recôndito ou essencial,

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escondido na opacidade do real. A metáfora combina reflexão e imaginação. Desvenda o real de forma poética, mágica. (pp. 23).

Muito me agrada essa perspectiva científica do refletir por metáforas. Por

estar alocados na linha de pesquisa em Poéticas Contemporâneas, creio na

possibilidade de utilizar múltiplas ferramentas da língua para refletir a cerca do que

estudo. Como foi possível na leitura desta dissertação até o momento, utilizo dessa

ferramenta da linguagem para pensar o espaço do camelódromo e, para além dele,

as práticas da globalização que integram o mundo.

É claro que sabemos das críticas feitas ao uso das metáforas e das diferentes

leituras para a mesma. Em contraponto, parcial41, a perspectiva que Ianni adota,

Renato Ortiz em Mundialização e Cultura, afirma que “toda metáfora é um relato

figurado; o que se ganha em consciência perde-se em precisão conceitual” (ORTIZ,

2003, p.14). Embora adote essa postura, Ortiz reconhece a importância delas para a

discussão em questão:

Chama a atenção nesses textos a profusão de metáforas utilizadas para descrever as transformações deste final de século: “primeira revolução mundial” (Alexander King), “terceira onda” (Alvin Toffler), “sociedade informática” (Adam Shaff), “sociedade amébica” (Kenichi Ohmae), “aldeia global” (Marshall McLuhan). Fala-se da passagem de uma economia “high volume” para outra de “high value” (Robert Reich), e da existência de um universo habitado por “objetos móveis” (Jacques Attali) deslocando-se incessantemente de um canto para o outro do planeta. (ibidem).

A perspectiva de Ortiz em sua obra é de destacar a emergência de uma

sociedade global, desterritorializada. Para o autor, somos todos cidadãos mundiais

mesmo quando não nos deslocamos, ou seja, em sua perspectiva, o mundo chegou

até nós e nosso cotidiano. Dessa maneira, ele abandona a ideia de superação do

local pelo global e, ao contrário, enxerga nesses pontos uma interligação. Além

disso, distingue a internacionalização da globalização, sendo a primeira

simplesmente o “aumento da extensão geográfica das atividades econômicas

através das fronteiras nacionais” e a segunda a “produção, distribuição e consumo

de bens e de serviços, organizados a partir de uma estratégia mundial, e voltada

para um mercado”. Assim sendo, o autor caminha para um entendimento do caráter

cultural no contexto global como mundialização, destinando a globalização apenas

as tarefas econômicas e tecnológicas. Enquanto Ianni e Ortiz pensam o termo mais

41

Embora Ortiz critique o pensamento por metáforas, ele dialoga com Octavio Ianni em seus escritos a cerca da mundialização e da cultura.

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apropriado e sua aplicação no contexto social, outros autores enxergam nas

transformações causadas pela globalização algo nocivo para a sociedade.

Milton Santos, geógrafo brasileiro, propõe em seus escritos Por uma outra

globalização (2001) que a mais-valia global deixe de ter o foco nas perspectivas

teóricas e práticas da globalização que, para ele, se difere de tudo que a

humanidade já passou por estarmos num novo tempo de produção do conhecimento

em todas as esferas. Santos entende o fenômeno do qual falamos como perverso,

como ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista e propõe que

seja lançado sobre ele um novo olhar, atribuindo um novo sentido à existência, que

contemple a todos e não apenas àqueles que lucram com tudo isso. Diferente dos

outros autores apresentados, Santos está mais preocupado com os rumos que a

sociedade tomará do que como chamamos essa transformação.

Retomando Octavio Ianni, na sequencia de seu livro, o autor apresenta o

conceito de “economia-mundo” a luz de Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein.

Segundo Ianni, economia-mundo compreende a economia de uma porção do globo

que compreenda um todo econômico, ocupando um determinado espaço geográfico

com um polo no papel de centro (cidade dominante) e zonas no entorno do centro

até chegar às periferias. Juntamente com o conceito de “economia-mundo” temos o

de “sistema-mundo” que é um sistema social, que possui estruturas, limites,

membros, regras de legitimação e coerência. Se parece com um organismo pela

volatilidade e estabilidade de suas características. A meu ver o sistema-mundo

contempla a parte social, política e cultural enquanto a economia-mundo é a parte

econômica da percepção dos autores a esse respeito, encontrando, talvez, uma

conexão com as preocupações de Milton Santos.

Finalizando, acrescento a discussão Anthony Giddens, em O mundo na era

da globalização (2006). Para o autor a globalização não trata apenas da inclusão de

aparelhos modernos nas suas maneiras de viver. Trata-se de uma transformação

que afeta tudo que fazemos. É um fenômeno cada vez mais descentralizado e

espraiado, que não está sob o controle de nenhum grupo de nações e muito menos

sobre o domínio das grandes companhias. Giddens afirma que seus efeitos são

sentidos no ocidente e em qualquer outra parte do planeta e, para melhor ou para

pior, somos empurrados para uma ordem global que ainda não compreendemos

totalmente, mas cujos efeitos já se fazem sentir em todos nós. Dessa forma,

bebendo das múltiplas fontes apresentadas e, sem citá-las diretamente, nos

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aventuramos na sequência a explorar a ideia do que nosso título anuncia como

globalização subalterna.

2. 3. A globalização subalterna

Os caminhos que decidi seguir nesta dissertação não foram os convencionais.

Trabalhar com autores pouco estudados e falar sobre conceitos polêmicos (como é

o caso do subalterno) sem dúvidas, só foi possível graças ao respaldo teórico-

metodológico que recebi de minha orientadora Ludmila Brandão. É dela o termo

“globalização subalterna” e, com sua licença, me atrevo a explorá-lo e desenvolvê-lo

neste capítulo. Na maioria de seus textos iniciais a esse respeito, Brandão se utiliza

de termos como “fluxos ou circuitos globais subalternos” para denominar o

fenômeno do trânsito de objetos, pessoas e valores pelo mundo. Em texto recente

publicado no livro Moda em zigue-zague: interfaces e expansões, organizado por

Cristiane Mesquita e Rosane Preciosa, a autora faz as seguintes considerações:

Desenvolvi a noção de circuitos subalternos de consumo na pesquisa anterior, que deu origem a esta, para destacar os locais, as práticas singulares de comercialização, os profissionais envolvidos e os objetos comercializados (pirataria, em grande parte) que constituem circuitos voltados para as classes populares (mas não apenas), semi-ilegais, mercados “cinzas” mais ou menos tolerados nas cidades nos quais se verifica uma imensa circulação de mercadorias, em geral fabricadas na China, realizando isso que podemos chamar de globalização subalterna (BRANDÃO, 2011, p. 203).

O que nos diz as práticas dos camelôs de Cuiabá para chegarem até aqui

com suas mercadorias? O que podemos ouvir de Ciudad Del Este, lá, em suas ruas

abarrotadas de gente e sacolas? Que contribuições podemos trazer para os estudos

de cultura contemporânea a esse respeito? Como podemos preparar o terreno para

discutir o que vêm de lá, o que vem da China? Let’s try it!

A aproximação reflexiva da transformação do mascate em camelô (capítulo 1)

nos ajuda a tratar justamente dessas figuras que materializam a globalização dos

objetos. Se os mascates os transportavam para o Brasil profundo, os camelôs

transportam-nos para todos os lados, sendo todo ponto potência de venda. O

processo de “modernização” (ou tentativa, para os mais críticos) de Cuiabá implicou

na segregação de parte desses atores sociais que movimentavam o centro da

cidade. A postura impositiva do governo (hegemonia política) a serviço dos

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interesses dos lojistas (hegemonia econômica) marca o momento em que se cala os

camelôs. Marca o momento que, oficialmente, os subalterniza.

Mesmo tendo construído um novo espaço para suas práticas, os camelôs

associados continuaram tendo de burlar, de modo tático, uma série de dispositivos

do Estado. A ação das classes subalternas, nesse contexto, se aproxima do que

Certeau (2007, p. 100) chama de tática. Para o autor, a tática é um movimento

dentro do campo inimigo, no seu espaço controlado, operando golpe por golpe,

aproveitando ocasiões com ganhos instáveis. Comprar e revender produtos

contrabandeados são exercícios de caça diários. Essa instabilidade lhes permite

uma mobilidade de ação, utilizando as falhas abertas “na vigilância do poder

proprietário”. Táticos nas viagens, mesmo instalados no camelódromo dispõem de

táticas para transitar com suas mercadorias ilegais. “Em suma, tática é a arte do

fraco” (idem, p. 101). Diria mais, tática é a arte do subalterno.

A partir da ideia esboçada por Brandão e das observações que faço desde a

experiência no SP e em Ciudad Del Este, apresento a seguir cinco características

básicas que compõem nossa leitura da globalização subalterna. Dessa maneira,

metodologicamente, tracei semelhanças e a partir delas relaciono os dados

empíricos das pesquisas de campo atrelados aos conceitos discutidos.

Posteriormente, no próximo capítulo, tratarei de discutir os objetos que transitam na

globalização subalterna e suas relações com o contemporâneo. Em meio a

metáforas e reflexões, vamos a nossa proposição teórica.

A primeira característica da globalização subalterna é a instabilidade do

tráfego. Trata-se desse campo arenoso dos percursos feitos pelos subalternos para

adquirir as mercadorias e retornar aos seus espaços. Enquanto no mercado global

hegemônico as mercadorias dispõem de permissão de tráfego (notas e declarações

fiscais), na globalização subalterna as táticas de seus agentes é que permitem o

tráfego. São compartimentos secretos nos carros, travessias a barco no Rio Paraná,

estradas de terra que cortam as regiões do Brasil, propinas para fiscais e o uso de

GPS (tecnologia da informação) que permitem a configuração de novos caminhos no

fluxo das mercadorias. Elas vêm da China, param no Paraguai e dali se

encaminham para sua nova vida social.

A segunda característica da globalização subalterna é a criminalização da

prática. O criminalizar entendido para além da esfera jurídica, é o criminalizar como

dispositivo do poder hegemônico de unificar através da ideologia da boa conduta, do

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apelo a uma consciência moral coletiva. É o jogo de inversão dos subalternos a

figura de criminosos e não de trabalhadores fora do fluxo do mercado oficial. Vender

produtos sem nota fiscal é crime, importar sem tributar também. Nesse caso, as

notas e declarações fiscais são como passaportes (igualmente globais), que

conferem permissões de tráfego às mercadorias pelo mundo. No caso das que trato,

são clandestinas e, logo, criminalizadas pelas classes dominantes não por sua

vilania, mas por sua potência de concorrência.

A terceira característica da globalização subalterna é a reinvenção do uso.

Uma vez que o tráfego é fiscalizado e a importação é criminalizada, uma tática

praticada pelos subalternos é a de reinventar o uso das mercadorias. Isso opera da

seguinte maneira: compra-se, por exemplo, uma dezena de camisetas da mesma

marca (obviamente para revenda), imediatamente elas são retiradas do plástico que

as protege, seguido das etiquetas e demais adesivos que lhe confiram o status de

novo. Num segundo momento elas são misturadas em uma mala e atravessam a

fronteira como viajantes, e não como mercadorias em tráfego. Outro exemplo são os

pen drives que, uma vez adquiridos, são retirados das embalagens para receber

alguns arquivos que violem sua virgindade digital. O uso das mercadorias é

reinventado, antecipado, para que elas estejam protegidas do confronto na fronteira.

A quarta característica é a facilitação coletiva. É impressionante como as lojas

e shoppings em Ciudad Del Este facilitam e agilizam as compras dos clientes. A

multiplicidade de moedas aceitas (rompendo fronteiras econômicas), o cambio

instantâneo (em escala mundial) e a condução do fluxo dentro das lojas ditam o

ritmo que alcança as ruas, a velocidade das pessoas ao andar, o entrar e sair. Essa

espécie de companheirismo integra os que estão na mesma condição, enfrentando

os mesmos medos. Vemos essa facilitação nos agrupamentos das vans para

travessia, no auxílio dos vendedores aos clientes para burlar a fiscalização, nos

olhares que se cruzam e nos avisos sobre a ponte. Além da ponte, essas facilitações

são inerentes à globalização subalterna, ao passo que é por uma série de acordos

extraoficiais que as mercadorias chegam até lá e partem de lá.

A quinta e última característica é a ligação mundial. Essa é a característica

mais própria das mercadorias em tráfego na globalização subalterna. Essas

mercadorias, através das táticas apresentadas em meio às características

anteriores, carregam consigo a carga simbólica e informacional através do mundo.

Embora fabricadas na China, essas mercadorias possuem biografias distintas, de

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diferentes lugares, centralizando a produção de símbolos mundiais. Com essa

característica abro passagem para o próximo capítulo, no qual tratarei da China, sua

relação com a globalização subalterna e a materialização da mercadoria no Maneki

Neko.

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CAPÍTULO 3 – LÁ

3.1. China: recorte histórico

Neste capítulo chegamos “lá”, chegamos à China. A propósito dos estudos

das mercadorias Made in China, utilizarei a pesquisadora brasileira Rosana

Pinheiro-Machado que defendeu, em 2009, a tese intitulada “Made in China:

produção e circulação de mercadorias no circuito China-Paraguai-Brasil”. A partir da

leitura de seus escritos iremos pensar a China como uma das pontas (embora nos

pareça a principal) da globalização subalterna. Além dela trabalharemos com

Cláudia Trevisan (2009) e seu livro “Os Chineses”, no qual autora apresenta um

minucioso histórico de uma das civilizações mais antigas do mundo.

Do trabalho de Trevisan podemos extrair o substrato que nos permitirá

entender a constituição histórica da China, que muito influenciou para sua atual

posição no mercado mundial de produção de mercadorias. Os estudos de Pinheiro-

Machado funcionaram como um incentivo a seguir esse fluxo tão fascinante.

Infelizmente não pudemos realizar uma pesquisa de campo na China (como ela fez

em sua tese), mas suas discussões nos levarão até “lá” junto com o que nos fala

Trevisan.

3.1.1. Canton System

Pinheiro-Machado (2009) afirma que a origem do fluxo global de mercadorias

encontra-se na Província de Guangdong e, para que possamos compreender os

motivos que levaram essa região a tal feito, devemos acompanhá-la numa

“elucidação histórica”. Interessa acompanhar a autora justamente por partilharmos

do interesse pelo ponto de partida dos fluxos dos quais discorri nos outros capítulos

e por ela responder a duas questões básicas: por que em Guangdong (ou Porto de

Cantão) e o que essa província representa na China contemporânea, de trás para

frente, tendo no “aqui” o camelódromo de Cuiabá, o “ali” na Tríplice Fronteira e o “lá”

na China. Para “lá”, vamos com Pinheiro-Machado.

Fatores naturais, infraestruturais e culturais colaboraram decisivamente para

o boom da economia chinesa na região do Delta do Rio da Pérola. A província de

Guangdong fica localizada ao sul da China e, desde o século XVI, é caracterizada

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pelo forte comércio marítimo através do Delta do Rio da Pérola e dos portos de

Guangzhou. Durante os séculos XVI a XIX (Dinastia Qing42) o comércio marítimo

movimentava economias gigantescas (através de mercadorias como prata, chá, porcelana, ópio, ouro, arroz, seda e outras chinoiseries) e caracterizava-se por um contato incomum com o Ocidente devido à presença de companhias comerciais estrangeiras na região, as quais negociavam com suas diferentes moedas e cotações (PINHEIRO-MACHADO, 2009, p. 55).

Esse fluxo de mercadorias, iniciado há séculos, continua no presente, pelo

mesmo canal do Delta desembocando no Pacífico, passando por Guangzhou,

Shenzhen e Dongguan, Zhuhai, Macau e Hong Kong. A grande fase do comércio de

Guangzhou se deu entre 1700 a 1845 (período conhecido como Canton Era) com a

criação do sistema comercial Canton System, mantenedor da corte de Beijing43.

Desse sistema participaram muitos comerciantes estrangeiros e Pinheiro-

Machado (idem, p. 56) destaca a participação de holandeses e ingleses. A Inglaterra

tinha especial interesse pelo chá, pois essa especiaria constituía um “um luxo e uma

necessidade vital indispensável” desde a sua disseminação em meados do século

XVIII.

O porto de Guangzhou

era considerado “acessível” e “livre” em termos de vantagens mercantis e também possuía uma boa relação com Macau. Além disso, o porto tinha melhor localização que outros chineses, sendo também considerado “perfeito” em suas condições geográficas, hidrográficas e topográficas. Canton System era dependente dessas qualidades, as quais não poderiam ser duplicadas em outro porto ou região (ibidem).

42

De acordo com Trevisan (2009), para os chineses a história não era linear. Ela era circular,

formada por uma sucessão de dinastias, período que abarca desde o recebimento do “Mandato do

Céu” pelo Imperador até o momento no qual este deixa de ser digno de portá-lo, dando então início a

uma nova dinastia. A sucessão era do pai para o filho mais velho, em casos omissos assumia o

império o parente mais próximo do imperador. A dinastia Qing foi de 1644 até 1911 e abarca todo o

período de fundamentação social, econômica e cultural do qual iremos tratar.

43 Durante sua “elucidação histórica” Pinheiro-Machado cita, por diversas vezes, o texto Streetlife

China de Paul Dike (2005) e o texto The Venomous Course of Southwestern Opium: Qing Prohibition

in Yunnan, Sichuan, and Guizhou in the Early Nineteenth Century de David Bello (2003). Como não

tivemos acesso a esses textos, nos resta apenas, quando extremamente necessário, citá-los em

apud de Pinheiro-Machado (2009).

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Figura 25 Mapa da região do Delta do Rio da Pérola

Perante o exposto por Pinheiro-Machado, fica claro o motivo pelo qual a

região se consolidou há tantos séculos como “porta de saída” da produção chinesa,

ocupando durante tanto tempo e ainda hoje essa posição. Todas essas

características fizeram com que no período do Canton Era Guangzhou fosse

considerado o centro de negócio entre a China e o mundo. A autora segue

afirmando que

Bello (2003) assinala que mercadorias chinesas, como chá, tabaco e açúcar criaram e sustentaram o primeiro mercado europeu de consumo de massa cujas receitas foram pré-requisitos para o desenvolvimento do capitalismo privado e estabilidade dos estados e dos regimes coloniais europeus (ibidem).

Além desse comércio entre os países, havia uma especificidade desse

mercado internacional: o contrabando de metais, ópio, arroz e outras atividades de

roubo do mar (pirataria). Essa especificidade não foi responsável pela derrocada

desse sistema e, para Paul Dyke (apud PINHEIRO-MACHADO, 2009, p. 58), o

colapso do Canton System se deu, em 1842, graças à intervenção do governo e a

carga tributária. Esse sistema substanciou a região para o desenvolvimento

econômico que chegaria com as décadas seguintes, viabilizando o crescimento com

a expansão do mercado externo. A “janela chinesa para o mundo” inseriu a própria

China nos fluxos de um mercado globalizado, através da circulação intensa de

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mercadorias chinesas e europeias num processo antigo e, portanto, refuta o

ineditismo da globalização que vemos hoje, respeitando é claro sua velocidade e

extensão nos dias atuais.

3.1.2. As Guerras do Ópio e outras insurreições (1819-1911)

No século XVIII, durante o Canton System, a China vendia seda, porcelana e

chá para a Inglaterra, porém, não comprava nada em troca, fazendo com que os

ingleses transferissem cada vez mais prata para o Império do Meio sem um grande

retorno econômico. Assim sendo, a Inglaterra passa a vender ópio aos chineses,

produto que advinha da Índia e foi rapidamente aceito pelo povo chinês, criando

graves problemas para a China. Em 1792 o Império Qing proíbe o comércio do ópio

na China, entretanto, tal proibição não foi respeitada, pois a comercialização era

feita através do grande tráfico e contrabando do produto. Essa prática só tornou-se

um problema mais sério quando, em 1830, houve uma verdadeira enxurrada de

prata saindo da China para sustentar o consumo do fumo do ópio, causando grande

impacto na receita do império.

Para dar fim à prática, o imperador envia um de seus mais respeitados

burocratas, Lin Zexu, a Guangdong e este realiza diversas ações que confrontam o

interesse dos ingleses. Após inúmeros desacordos políticos, em novembro de 1839,

inicia-se a Primeira Guerra do Ópio (1819-1842), que dura 23 anos e resulta na

derrota do Império do Meio para a Inglaterra e na divisão das terras de Qing com

outros países através do Tratado de Nanquim. Dentre essas se destaca a

transferência da ilha de Hong Kong para a Inglaterra, sendo este território inglês até

o ano de 1997.

De acordo com Cláudia Trevisan (2009),

O Nanquim foi o primeiro de uma série de “tratados desiguais” que deram a governos estrangeiros domínios de regiões dentro da China, nas quais vigoravam suas próprias leis, dentro do princípio de extraterritorialidade. Depois da Inglaterra, os Estados Unidos, a França, a Rússia e a Alemanha também conseguiram privilégios comerciais e controle sobre parcelas do território chinês. Impostos pelos vitoriosos, esses documentos davam enormes privilégios às potências estrangeiras dentro do país asiático e reduziram o Império a uma semicolônia (TREVISAN, 2009, p. 192).

Cerca de vinte anos depois a China entrou novamente em confronto com as

potências ocidentais, que tentavam revisar alguns termos do tratado, como ampliar

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ainda mais os privilégios e retomar o comércio de ópio. Inicia-se assim a Segunda

Guerra do Ópio (1856-1860) e, novamente, a China é derrotada tendo como marco a

destruição do Palácio de Verão dos imperadores Qing em 18 de outubro de 1860.

Após a segunda derrota, a China perdeu ainda mais território para as grandes

economias ocidentais e também para o Japão, que emerge nesse período como

potência do oriente deixando a China em segundo plano.

Diante da situação crítica que o país enfrentava, diversas rebeliões populares

enfraqueceram ainda mais a relação da China com os países ocidentais. Envoltos

em crises de corrupção por parte dos poderosos do imperador e a devastação cada

vez maior dos camponeses, o Império Qing ruiu em 1911, representando o fim dos

mandarins e o início de um novo período para a China, no pós-dinastias de história

linear como no ocidente.

3.1.3. República (1911-1949)

Com a queda absoluta da Dinastia Qing, aumentava cada vez mais o

nacionalismo entre diversas sociedades secretas dentro e fora da China. Textos de

caráter reformista e adoção de costumes ocidentais estavam entre as ações desses

grupos que pretendiam instaurar uma revolução sem precedentes. Sun Yat-sen

(1866-1925) é considerado o herói da revolução que acabou com o Império e

instaurou a República na China. O filho de camponeses pobres emigrou para o

Havaí e lá teve contato com hábitos ocidentais. Interessou-se pelo cristianismo,

mudou-se para Hong Kong e formou-se em medicina em 1892.

Retornando a sua província natal, Guangdong, organizou alguns pequenos

levantes contra os Qings e, fracassado, fica exilado por 16 anos e só retorna a China

quando descobre a derrocada do Império Qing. Foi eleito presidente provisório em

dezembro de 1911, mas abdica meses depois por falta de apoio político para

governar. Retomando os escritos de Trevisan,

o cargo de primeiro presidente da China republicana acabou sendo entregue a um ex-ministro reformista dos quings, o chefe militar Yuan Shikai (1859-1916), visto por revolucionários e conservadores como o único nome capaz de evitar a guerra civil e o fracionamento da sociedade chinesa (idem, p. 214).

Yuan Shikai tentou, por meio da força, se autodeclarar imperador da China em

dezembro de 1915. A atitude que gerou inúmeros protestos, não resultou em nada

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graças a sua morte súbita em junho de 1916. Nos anos seguintes, até 1928, o poder

central foi cada vez mais desintegrado, emergindo o fortalecimento de chefes

militares regionais. Enquanto isso, nos grandes centros urbanos da China, os portos

continuavam sendo administrados pelas potências estrangeiras, mantendo o fluxo

de produtos pelo globo.

“O nacionalismo dos chineses da República recém-criada voltou a aflorar em

1919 no Movimento Quatro de Maio, uma das maiores manifestações populares já

realizadas na China” (ibidem). A revolta origina-se frente à decisão dos vencedores

da Primeira Guerra Mundial de concederem ao Japão a parte da Alemanha no

Tratado de Nanquim. O descontentamento dos chineses para com o Japão já se

arrastava há anos e aumentar ainda mais o poder do país sobre a China desagradou

a diversos segmentos sociais chineses. Na tarde de quatro de maio,

cerca de três mil pessoas se reuniram na Praça da Paz Celestial, em Pequim. O principal alvo do protesto eram dois ministros identificados como pró-Japão: o das Comunicações teve sua casa incendiada pelos manifestantes e o responsável por assuntos japoneses foi espancado até ficar inconsciente. Os protestos se espalharam pelo país e ganharam apoio de diferentes grupos sociais. Em Xangai, empresários e trabalhadores fecharam estabelecimentos comerciais por uma semana, a partir de cinco de maio, e campanhas de boicote a produtos japoneses ocorreram em toda a China. Cerca de mil estudantes foram presos e vários outros morreram nas manifestações. Diante do crescente descontentamento, o governo foi forçado a demitir três ministros identificados como aliados do Japão e se recusou a assinar o Tratado de Versalhes, o que legitimaria a transferência das antigas concessões alemãs para os japoneses (idem, p. 215).

A expressão “Movimento Quatro de Maio”, além de designar os protestos, nos

fala também da efervescência intelectual que tomou conta da elite chinesa durante

nove anos, a partir de 1917, buscando alternativas para modernizar e desenvolver o

país. Nessa perspectiva, tradições milenares como a posição subalterna da mulher e

instituições tradicionais começaram a ser atacados, enquanto a liberdade, a

democracia e a ciência do ocidente eram enlevadas. Esse movimento serviu para

desenvolver as reflexões a respeito do futuro da China e da maneira como o país se

portava interna e externamente. A partir disso surgem debates a propósito dos

muitos “ismos” (do liberalismo ao anarquismo), mas foi o comunismo quem seduziu

alguns dos principais líderes do movimento, dentre os quais Chen Duxiu destaca-se

pelo papel central na fundação do Partido Comunista da China, em maio de 1920.

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Essa manifestação também serve para pensarmos algumas características

políticas e culturais que com o decorrer dos anos subsidiará o desenvolvimento

econômico da China. Quando comparado ao total de habitantes do país, o número

três mil pode parecer pouco significativo, entretanto, vale ressaltar que essas

pessoas afrontaram ao regime totalitário do partido e forçaram mudanças

significativas no país. Assim sendo, comparando com países de regimes não

totalitários, talvez esse número represente milhões.

Enquanto Duxiu representava o Partido Comunista, Cai Yuanpei aliava-se ao

Partido Nacionalista. Esses dois partidos se enfrentaram por mais de trinta anos,

disputando o poder. Ainda em 1920, a recém-fundada União Soviética (URSS)

auxiliou ambos partidos, fundando o Partido Comunista e auxiliando na

reestruturação do Partido Nacionalista. Com a morte de Sun Yat-sem em 1925,

Chiang Kai-shek assume a liderança do Partido Nacionalista e promove uma série

ações e traições contra o Partido Comunista e seus aliados. A traição transformou

os partidos em inimigos mortais, unindo-se apenas de maneira episódica contra a

invasão japonesa em 193744.

Chiang estabeleceu um governo autoritário, embora tenha contribuído para

melhorias significativas nos transportes, energia e comunicação, bem como unificou

as moedas e serviços como educação e saúde melhoraram (idem, p. 216). Enquanto

Chiang atuava nas cidades, Mao Tsé-Tung espalhava as raízes do movimento

revolucionário comunista no campo, que compunha grande parte da população

chinesa. Essa postura o ajudou a se transformar no líder absoluto da China depois

de 1949.

3.1.4. Revolução Comunista (1949)

Os comunistas, liderados por Mao, estabeleceram sua base no sul da China,

nas montanhas da província de Jiangxi. Em 1931, eles fundam a República

Soviética da China, integrando o exército vermelho e empreendendo drásticas

reformas no sistema de propriedade da terra. A fim de extinguir o movimento

44

Nesse período lideranças do Partido Nacionalista sequestraram Chiang e o obrigaram a assinar

uma aliança com os comunistas para conter o avanço japonês sobre a China, esse episódio ficou

conhecido como “O Incidente Xi’an”.

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comunista, o governo Nacionalista promoveu quatro campanhas contra Jiangxi.

Depois de uma jogada política com a intervenção da URSS, os Nacionalistas

conseguiram afastar Mao da liderança dos Comunistas, e ainda modificar as táticas

de guerrilha por ele comandadas, deixando os comunistas vulneráveis ao quinto

ataque por parte dos Nacionalistas.

Sem Mao à frente, os comunistas foram obrigados a fugir para o norte,

iniciando “uma das mais emblemáticas passagens da história do século XX no país:

a Longa Marcha, que se transformou em um evento épico para os futuros vitoriosos

da Revolução de 1949” (idem, p. 221). Mais de oitenta e cinco mil pessoas

marcharam em fuga do cerco nacionalista, caminhando durante um ano cerca de

nove mil e seiscentos quilômetros, cruzando vinte e quatro rios e dezoito cadeias de

montanhas. Do sul partiram para o sudeste e, depois, para o norte. Grande parcela

dos caminhantes morreu no percurso, chegando apenas oito mil em Yan’an, nova

base dos revolucionários comunistas a partir de 1935. A marcha serviu também para

restituir o poder a Mao Tsé-tung, consolidando-o como líder absoluto do movimento

revolucionário.

Tanto a marcha quanto os deslizes do governo nacionalista colaboraram para

o crescente aumento de simpatizantes do comunismo. O apoio popular, em 1949,

ultrapassava quatro milhões de pessoas. A entrada dos Estados Unidos da América

(EUA) na Segunda Guerra Mundial criou alianças políticas com os dois lados do

poder na China. Embora tenham ajudado muito mais aos nacionalistas, os

americanos se utilizaram da popularidade e do poder de persuasão de Mao para,

estrategicamente, deter toda China ao seu lado contra o Japão, inimigo comum aos

dois países. Além disso, a aproximação americana dos comunistas pretendia

neutralizar qualquer ligação entre os chineses e a URSS, na hipótese dos

comunistas subirem ao poder.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tentou promover a

paz entre os dois poderes, entretanto, dos encontros entre as lideranças de ambos

os lados, só resultou em confrontos abertos e o início oficial da guerra civil entre

comunistas e nacionalistas. Os segundos detinham mais dinheiro, armamentos (fruto

da aproximação com os EUA) e soldados, porém, a forte disciplina dos seguidores

de Mao e a corrupção interna no partido fizeram com que os comunistas

avançassem cada vez mais e retirassem territórios estratégicos controlados pelos

nacionalistas.

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Em 18 de janeiro de 1948 os comunistas ocupam Pequim (antiga capital

imperial da China), apenas dez dias depois da fuga de Chiang Kai-shek para

Taiwan, levando consigo quase toda riqueza do país. Alguns meses depois Chiang

renuncia ao poder e

no dia 1º de outubro de 1949, Mao Tsé-tung proclamou a vitória da revolução e a criação da República Popular da China. O líder comunista falou à população de um palanque montado sobre a entrada da Cidade Proibida, que havia sido a sede do poder imperial entre 1420 e 1911. Pequim voltava a ser capital do país, desta vez ocupada por um novo tipo de imperador (idem, p. 228).

Durante os vinte e sete anos seguintes Mao Tsé-tung liderou a China, só

deixando essa posição com sua morte em 1976. Quando assumiu o poder encontrou

um país devastado pela guerra civil e pela invasão japonesa, reorganizando a China

a partir do Partido Comunista da China (PCC), com células militantes espalhando

por todo o país os ideais da revolução e as mudanças que estavam por vir (idem, p.

229).

3.1.5. A Era Mao (1949-1976)

Dentre as primeiras ações de Mao estava a reforma agrária, implantada com

o auxílio das células militares. Ele redistribuiu a terra dando direitos iguais para

todas as pessoas, derrubando, por exemplo, a subordinação feminina, dando a elas

terras, quer fossem separadas, solteiras ou viúvas. Combateu a propriedade e dessa

forma conquistou ainda mais os camponeses pobres, cativando sua lealdade. Por se

tratar de um regime totalitário, manejos como esse eram impostos à população,

tendo em vista que a posse da terra é do governo, cabia ao povo obedecer o que lhe

era designado e trabalhar para sobreviver. Em sessões públicas de confronto e

humilhação, os antigos proprietários eram submetidos a críticas, ataques físicos e

até a morte.

Nas cidades, organizou os operários em unidades de trabalho, que cuidavam

de questões como moradia, assistência médica, educação dos filhos e

aposentadoria. Eles eram absolutamente subordinados às unidades, mas essa

posição lhes garantia estabilidade e assistência do Estado. A inflação herdada do

governo nacionalista foi controlada, criando uma nova moeda que perdura até hoje:

o Renminbi, ou Yuan, sendo o primeiro nome da moeda e o segundo a unidade de

medida na qual a moeda é contada.

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Após um ano da Revolução de 1949, os chineses comandados por Mao

ingressam na Guerra da Coreia (1950-1953). Nesse momento, o antigo aliado EUA

torna-se o inimigo a ser combatido. Numa resposta à invasão da Coréia do Norte ao

território da Coréia do Sul (com o apoio da URSS) os Estados Unidos, autorizados

pela Organização das Nações Unidas (ONU), enviam tropas para defender seus

aliados do sul, expulsando o exército invasor. No final de 1950, o general norte-

americano promove uma invasão da região comunista e avança rumo à fronteira da

China. Mao entende esse movimento como ameaça à segurança pública e envia o

Exército da Libertação Popular, com 250 mil soldados, para atacar e defender seu

território. Eles invadem a Coréia do Norte e vencem as forças da ONU, obrigando-os

a recuar. Os confrontos seguem por três anos e terminam com a assinatura do

armistício que manteve a fronteira entre as duas Coréias e criou uma zona

desmilitarizada.

A entrada da China na guerra contra os EUA representou um ataque direto ao

imperialismo norte-americano, barrando o avanço das forças mais poderosas do

mundo naquele período. Além disso, mostrou ao mundo o país que surgira em 1949.

Enquanto ocupava-se com a guerra, Mao ainda promoveu campanhas contra grupos

considerados inimigos, dentro da própria China. Faziam parte desse grupo pessoas

que tinham qualquer ligação com o governo nacionalista ou que praticavam

atividades ilícitas ao Estado, como: suborno, sonegação de impostos, roubo de

propriedade estatal e etc. Empregados de todo país, em sessões públicas, atacaram

seus patrões e os delataram ao Estado. O combate dessas ações, antes de tudo,

era ao capitalismo.

Com o objetivo de desenvolver rapidamente o país, Mao Tsé-tung

implementa, em 1953, o Primeiro Plano Quinquenal, que consistia na criação de

cooperativas nas quais os camponeses, ao invés de produzirem individualmente,

produziriam em conjunto, aumentando assim os resultados. O líder chinês se

inspirou na experiência soviética, priorizando o desenvolvimento da indústria em

detrimento do campo. A esse respeito, Trevisan afirma que

no período em que o plano vigorou, a produção industrial cresceu em média 18,7% ao ano, enquanto a renda nacional se expandiu a uma média de 8,9%. Os indicadores sociais também melhoraram, com redução da mortalidade infantil e do analfabetismo. Mas a ajuda soviética não saia de graça e a China teria que pagar os empréstimos e o apoio tecnológico recebidos do país vizinho. O problema é que a produção agrícola havia aumentado apenas 3,8%

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ao ano no período do Primeiro Plano Quinquenal, apesar da coletivização, comprometendo o projeto de Mao TSE-tung de usar os camponeses para financiar a industrialização. Em 1957, a expansão foi de apenas 1%, para um crescimento populacional de 2% (idem, p. 234).

Acreditando no sucesso de seu plano, Mao lança em 1958 o Grande Salto

Adiante, tornando mais extremas as experiências de coletivização do campo,

criando comunas e impondo um modelo no qual as fronteiras entre as ocupações

não mais existiram. “O resultado foi uma das maiores tragédias da história da China

– e do mundo. Cerca de trinta milhões de pessoas morreram de fome em razão da

brutal queda na produção agrícola decorrente da desestruturação da produção”

(idem, p. 235). Por medo de retaliações, os lideres regionais passaram a inflacionar

a produção, enviando ao governo central tudo que era produzido, deixando os

camponeses sem o mínimo para sobreviver. Diante da ilusão de sucesso, as metas

tornaram-se cada vez mais absurdas, e os camponeses cada vez morriam mais para

tentar cumpri-las. Em 1959 Mao Tsé-tung se retira da linha de frente do governo,

quando ficou evidente o fracasso do Grande Salto Adiante.

Quem assume em seu lugar é Liu Shaoqi, que reorganiza o país, acabando

com muitas das políticas radicais do plano e liberando novamente o cultivo de

pequenos pedaços de terra aos camponeses. Milhares de fábricas são fechadas e

seus trabalhadores retornam para o campo. Num país de regime capitalista, essas

pessoas engrossariam o grande caldo do desemprego e assumiriam atividades

subalternas na sociedade. Entretanto, em ambos os regimes (capitalismo e

comunismo), os subalternos sempre sofrem com os desígnios hegemônicos e

subvertem-no da maneira que podem. Para intensificar o controle, o governo reduz a

ênfase à indústria e estimula a fabricação de bens de consumo. Em 1963 rompe os

laços com a URSS e, mesmo sem ajuda de externa, a economia retornara ao

controle rumo a um crescimento sustentado. Descontente com a crescente

popularidade de seu sucessor e divisão interna do partido, Mao resolve agir.

3.1.5.1. Grande Revolução Cultural Proletária da China (1966-1969)

Com o auxílio do então ministro da defesa Lin Biao, Mao Tsé-tung inicia um

culto a sua personalidade, marcando a China para sempre. Em 1964, Biao seleciona

trechos dos discursos de Mao e monta “As citações do presidente Mao” ou “O livro

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vermelho de Mao”. Essa publicação, inicialmente, foi distribuída aos soldados sob o

comando de Biao e, posteriormente, passou a ser leitura obrigatória em escolas e

unidades de trabalho, estratégia persuasiva de regimes totalitários. Com pouco

tempo de distribuição, a imagem de Mao volta a ser venerada. Em maio de 1966,

aos 73 anos, ele lança a Grande Revolução Cultural Proletária da China, que durou

até sua morte em 1976.

Para essa revolução dentro da Revolução, Mao conclama aos jovens e os

instiga a atacar aos dirigentes do Partido Comunista bem como as instituições de

controle do Estado, como a escola, por exemplo. Na incitação à rebeldia, o “ocidente

e tudo o que tivesse relação com o exterior passaram a ser demonizados, incluindo

livros, música, filmes e vínculos pessoais” (idem, p. 242). Há então um ataque à

tradição, destruindo templos, museus, bibliotecas, escolas e tudo mais que

representasse aquilo que estava sendo combatido. “A palavra de ordem era destruir

os quatro velhos – velhas ideias, velhos hábitos, velhos costumes e velha cultura”

(idem, p. 243). Mao retorna ao poder, novamente, conclamado pelo povo e protegido

por seus “Guardas Vermelhos”, jovens que atuavam em nome da Revolução

espalhando o terror pelo país.

Eles usavam braçadeiras vermelhas e se utilizavam de técnicas de tortura e

humilhação para combater qualquer resquício do que ocorrera outrora. Sobre esse

período, Trevisan nos fala que

Os “crimes” podiam ser os mais variados, desde ter tido um pequeno negócio no passado, ter proferido em algum momento qualquer frase que pudesse ser interpretada como contrarevolucionária, ser filho ou neto de antigos empresários e donos de terra ou ter qualquer forma de ligação com o Ocidente. Os suspeitos eram submetidos a embates públicos com seus acusadores e interrogados de maneira incessante até que confessassem o que os Guardas Vermelhos queriam ouvir. Muitos eram torturados ou espancados até a morte. Vários cometiam suicídio (idem, p. 243).

Com os crescentes confrontos entre grupos de Guardas Vermelhos e a

situação cada vez mais fora de controle, em 1968, Mao ordena a desmobilização da

Guarda, que prontamente o atendeu. No ano seguinte, ele os envia para o campo,

onde seriam reeducados pelos camponeses e seriam mantidos sobre controle. Para

Trevisan, essa foi a maneira que Mao encontrou de acabar com o monstro que havia

criado. Mesmo em meio ao clima de tensão instaurado por suas ordens, Mao Tsé-

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tung conseguiu sair dessa situação ainda mais forte, aclamado pelos chineses que

tinham nele quase uma figura de Deus.

3.1.5.2. Os últimos anos do timoneiro (1969-1976)

Após a morte de Lin Biao, em setembro de 1971, o escândalo que uma

possível traição por parte dele a seu líder Mao abalou a crença cega do povo.

Depois de alguns incidentes, Mao começa a reconstrução do PCC e do aniquilado

Exército de Libertação Popular. Além disso, os anos 1970 marcam a reabertura na

política externa chinesa representada pela retomada do diálogo com os EUA. Em

1972, o então presidente norte-americano Richard Nixon visita Pequim e Xangai,

com o propósito de reaproximar os interesses das nações contra um inimigo comum:

a URSS.

O responsável pela visita de Nikon foi o primeiro-ministro Zhou Enlai. Junto a

outros líderes do PCC, consegue ascender ao poder do mesmo, reabilitando outros

líderes perseguidos durante a Revolução Cultural. Juntos eles compunham a

“Gangue dos Quatro”, liderada por Jiang Qing, em oposição interna a Mao Tsé-tung.

Doente, Enlai esperava que Deng Xiaoping (vice-primeiro-ministro) assumisse seu

cargo no governo.

O ano de 1976 foi marcado por uma sucessão de mortes. Em 8 de janeiro do

chamado “ano da desgraça”, Zhou Enlai morre por causa do câncer. Sua morte é

sentida pelo povo que entrega tributos em sua homenagem na Praça da Paz

Celestial. No dia seguinte, a polícia recolhe os tributos, causando uma comoção

popular contra a “Gangue dos Quatro” e Mao Tsé-tung. Deng Xiaoping é

responsabilizado e novamente afastado no PCC.

Em 9 de setembro do mesmo ano, Mao Tsé-tung morre, indicando para sua

sucessão Hua Guofeng. Guofeng assume o comando ordenando a prisão da

“Gangue dos Quatro” e esses foram levados a julgamento em novembro de 1980.

“Os quatro foram responsabilizados por terem perseguido e incriminado falsamente

729.511 pessoas durante a Revolução Cultural, das quais de 34,8 mil até a morte”

(idem, p. 249). Jiang Qing cometeu suicídio no dia 14 de maio de 1991, aos 77 anos

e os outros três integrantes do grupo morreram entre 1992 e 2005.

Hua conseguia agradar ao povo em suas primeiras decisões, porém, ao tentar

manter obediência aos ensinamentos de Mao Tsé-tung, minou suas chances de se

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manter no poder e permitiu a ascensão de Deng Xiaoping ao comando do PCC.

“Depois da prisão da ‘Gangue dos Quatro’, Deng retomou o cargo de vice-primeiro-

ministro da China e acabou personificando o espírito da reforma” (ibidem). A China

tinha um novo líder (sem superar Mao, obviamente), aclamado por seu povo.

3.1.6. Deng e o capitalismo chinês (1976-2011)

As reformas instituídas por Deng Xiaoping fizeram da China o mais

espetacular caso de reestruturação econômica da história. Graças à disciplina

culturalmente estabelecida, com jornadas de trabalho exorbitantes e um grande

regime de controle sobre a produção, a China prosperou, sobre o suor de seu povo,

sobre a disciplina oriental, tão diferente da disciplina ocidental. A abertura do país à

globalização e as regras de mercado fizeram com que ocupassem lugar de destaque

na produção e circulação de mercadorias em escala global. As reformas começaram

com a extinção do regime de comunas agrícolas e a permissão de cultivo de

pedaços de terra de maneira individual e venda de parte da colheita a preço de

mercado. Essa mudança permitiu um rápido aumento na produção e melhora na

vida dos camponeses.

No começo da década de 1980, são instituídas as Zonas Econômicas

Especiais (ZEE) que concediam incentivos fiscais para investimentos estrangeiros e

possuíam relações trabalhistas mais flexíveis. Voltadas à exportação, as ZEE foram

criadas em pontos estratégicos da China, em sua maioria perto da capitalista Hong

Kong e, com o sucesso, se espalharam pelo restante do país. Fora dessas zonas as

famílias começaram a abrir pequenos negócios, aproveitando a liberdade concedida

pelo Estado.

Com essas reformas Deng conseguiu mudar a paisagem da China e

impulsionar um rápido crescimento econômico para o país. Por todos os lados havia

obras de infraestrutura preparando as cidades para sua urbanização. Ao mesmo

tempo, os jovens degredados no período da Revolução Cultural retornavam

gradativamente para as cidades, retomando seus estudos. Para atendê-los e

compreendendo a necessidade de mão de obra cada vez mais qualificada, Deng fez

maciços investimentos na educação (básica e superior), abrindo as portas das

universidades. O líder supremo da China arrumava seu país e esticava a mão para

os demais.

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Deng visitou diversos países do ocidente (como EUA, Europa Ocidental e

Sudeste Asiático) e ainda restituiu relações com o Japão, superando as feridas

históricas que os separavam. Ele ainda levou o país a integrar organizações

multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Além

disso, unificou novamente os territórios chineses colonizados por outros países,

realizando acordo a longo prazo com o propósito de beneficiar ambos os lados.

Em se tratando das cifras, nos aponta Trevisan que

na medida em que o processo de abertura progrediu, a China passou a receber quantidades crescentes de investimento estrangeiro direto, aquele que é destinado à construção de fábricas, lojas, supermercados, edifícios e obras de infraestrutura. Entre 1980 e 2007, o país foi o destino de US$ 734,5 bilhões em investimento estrangeiro direto, o que o colocou na liderança absoluta entre todas as nações em desenvolvimento. O fluxo se acelerou ainda mais depois de 2001, quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC) e passou a fazer parte do sistema que rega as trocas globais de bens e serviços (idem, p. 256).

O fim do Império do Meio e o longo período de fechamento e repressão da

Era Mao fizeram com que muitos chineses fugissem de seu país. Dessa maneira,

surgiram em diversos pontos do mundo aglomerados chineses, os Chinatowns, “que

tentam replicar nos países de destino o universo que os imigrantes haviam

abandonado” (idem, p. 258). Dentre elas, a língua corrente (o mandarim e o

cantonês do sul da China), a arquitetura e pequenos costumes culturais próprios de

uma sociedade rígida e milenar como a chinesa. Nesses espaços surgiam redes de

proteção e solidariedade, junto aqueles que não tinham mais um lugar no mundo.

Esses chineses emigrantes se espalharam pelo mundo, muitos deles encontrados

em Ciudad Del Este, como vimos no capítulo 02. Em suas novas cidades, ou

Chinatowns, criam pontos de conexão entre a China e o lugar. Importam

mercadorias produzidas lá, trazendo para ali ou para aqui. Vi muitos desses

chineses em São Paulo, na conhecida Rua 25 de março, falando seu “português

achinezado” que tanto nos lembrava do Paraguai.

Embora tenha se aberto às regras de mercado, abraçando a globalização e

seduzindo o capital internacional, o Estado continua a comandar a economia

chinesa. O “capitalismo chinês” é comandado pelo Estado, através das empresas

estatais, do investimento público em infraestrutura e de associações com empresas

privadas nacionais e internacionais. Mesmo as empresas de capital privado

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representando a maior parte do PIB do país, são os dirigentes chineses quem

controlam o “modo socialista do capitalismo”.

Eles sustentam que “capitalismo”

não é o termo adequado para definir as transformações pelas quais passa o país. Segundo eles, a China é uma “economia socialista de mercado”, que aderiu às leis de mercado, mas não aos elementos do capitalismo – entre os quais está a primazia da propriedade privada (idem, p. 311).

Nessa “poética” econômica chinesa, a presença marcante do Estado em

conjunto com a integração à economia global permite a China localizar-se enquanto

um poder diferenciado das demais potências mundiais. Eles se apropriam do

capitalismo sem levar consigo parte dos problemas que esse sistema econômico

acarreta (como a pobreza extrema, favelamento, entre outros) embora não estejam

livres de questões como pobreza e criminalidade. O que de fato impressiona e

justifica este recorde histórico é compreender como a produção de mercadorias

chinesas se espalhou pelo mundo e como esses objetos modificam a vida de

vendedores ambulantes, através de nossa globalização subalterna.

3.1.7. Algumas considerações à cerca Guangdong e suas bugigangas

Como apresentei nas páginas anteriores, determinados fatores históricos

foram cruciais para a consolidação da China como a potência mundial vista hoje.

Com Rosana Pinheiro-Machado retornaremos ao Delta do Rio da Pérola. De acordo

com sua pesquisa de campo (PINHEIRO-MACHADO, 2009, p. 67), a região do

“Grande Delta” é o maior polo industrial do mundo, se valendo também das

condições geográficas, hidrográficas e do posicionamento dos portos. As reformas

adotadas por Deng fomentaram a industrialização acelerada e permitiram que

Guangdong retornasse ao destaque na economia chinesa e ocupasse o posto de

província mais urbanizada do país.

De acordo com a autora

a região mais industrializada concentra pequenas, médias e grandes indústrias da China e produz desde a mais corriqueira bugiganga de plástico até a mais sofisticada high-technology, como a indústria química, a petroquímica, automobilística e a produção de navios (idem, p. 68).

Guangdong concentra as principais ZEE instituídas por Deng. As

características atrativas dessas zonas atraíram investimento externo para a região

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com os olhos voltados para a exportação. Como já foi dito, essa região concentra

1/3 de toda a indústria chinesa de produtos Made in China. Lá estão

aproximadamente 100 mil fábricas45, excluindo as pequenas fabriquetas ilegais não

contabilizadas.

Dentre as 500 maiores multinacionais do mundo, 400 têm negócios em

Guangdong, “há mais de noventa mil investimentos estrangeiros e aproximadamente

três mil representações de empresas instaladas na província – o que marca

definitivamente a sua vocação para o mercado externo” (idem, p. 72). Além de todo

esse massivo investimento multinacional, o mercado cantonês é dominado por

pequenas e médias empresas, muitas delas informais (logo, subalternas!), que

produzem pequenas mercadorias, além da indústria da cópia especializada nos mais

diversos produtos.

Não é possível afirmar com certeza que o nosso Maneki Neko seja produzido

em Guangdong, porém, utilizá-lo bem como narrar a história dessa província e de

toda a China serviu para arrematar a compreensão da ligação entre China-Paraguai-

Brasil, feita através da economia, mas, principalmente através das pessoas e das

mercadorias que carregam. No título desta dissertação falo de “objetos para pensar”.

Esses objetos são singularizados, por mim, na figura do Maneki Neko, esse gatinho

da sorte que ganhou o mundo balançando seu braço e do qual falarei a seguir.

3.2. Maneki Neko

3.2.1. As lendas

O “Gato da Sorte” ou Maneki Neko foi o objeto que escolhi para exemplificar a

globalização subalterna, realizada através de mercadorias de baixo valor econômico,

bugigangas, que habitam todo o mundo partindo do porto de Guangzhou, na China

pós-Mao. Com o propósito de entendermos melhor do que se trata esse objeto,

realizei uma vasta pesquisa em sites na internet, que tratam de assuntos

relacionados à cultura japonesa e, seguindo os hiperlinks criados, chegamos a

algumas histórias que se repetem. Dessa forma, contaremos a seguir algumas das

versões encontradas para a lenda do gatinho.

45

Idem, p. 70.

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Figura 26 Algumas versões do Maneki Neko

O nome Maneki Neko significa, em uma tradução literal46, “gato que acena” e

é um dos talismãs (Engimonos) mais conhecidos da cultura japonesa. Em Tokyo, no

bairro de Setagaya, há um templo chamando Gôtokuji dedicado aos seguidores do

gatinho com jardins bem cuidados e oratórios com estátuas do talismã. Ele data do

Período Edo (1615-1868) e possui inúmeras representações, podendo ser de

diversas cores e com a pata esquerda ou direita ou as duas levantadas, usar ou não

coleira, guizo e moeda em uma das mãos. Geralmente é colocado em frente de

portas ou caixas de estabelecimentos comerciais, como vimos em Ciudad Del Este.

O gato da sorte é, tradicionalmente, inspirado na raça Bobtail Japonês e

quando manchado (como o da direita na figura 26), dá boas-vindas para os clientes

e deseja sucesso empresarial e felicidade pessoal. O gato preto deseja uma boa

saúde e o dourado riqueza e prosperidade. Além disso, quando a pata esquerda

está levantada é relacionado à atração de riqueza e bens materiais. Quando a pata

direita está levantada é relacionado à atração da pessoa amada ou ao encontro de

um grande amor. Existem versões em que a pata esquerda levantada atrai dinheiro

enquanto a pata direita atrai clientes.

De acordo com o site Aliança Cultural Brasil-Japão (2011),

O gesto do manekineko que parece ser um convite, na verdade é o gesto de um gato limpando seu rosto. O gato é um animal tão sensitivo, que pressente a chegada de uma pessoa ou a aproximação de chuva. Essas mudanças em sua rotina, o deixam

46

http://www.urawazabugeikai.com.br/index.php/cultura/59/81-manekineko

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inquieto. Então, ele começa a dar voltas ou esfregar seu rosto, pois esse tipo de comportamento tranquiliza-o. Mas para um ser humano isso pode ser interpretado como "se o gato esfrega seu rosto, é sinal de chuva ou de visita". Essa pode ser uma das origens da lenda do manekineko. Como o gesto do gato esfregando seu rosto assemelha-se a um aceno, as pessoas começaram associar que, colocando a figura de um gato levantando uma pata dianteira, as pessoas viriam.

Por se tratar de uma lenda, existem divergências quanto a versões e origens.

Seguindo, vamos às versões da lenda. A mais conhecida delas se refere ao

encontro do Maneki Neko com o lorde guerreiro Naotaka Li (1590-1659). Segundo o

site Nikkeypedia47 (2011), o guerreiro voltava da Batalha de Tennoji, pelo Castelo de

Osaka, no qual comandou mais de três mil homens em março de 1615 quando,

surpreendido por uma chuva, posicionou-se debaixo de uma árvore, próxima ao

Templo Gôtokuji, em Setagaya.

O Templo, na época, encontrava-se em estado decadente, com poucos fiéis

e, consequentemente, sem recursos. No templo viviam um monge budista e sua

gata, Tama, única companhia para ele. O monge conversava com Tama e

lamentava a situação de ambos e do templo. Quase sem ter o que comer, o monge

repartia com sua gata o pouco que dispunha e pedia a ela que o ajudasse a sair

dessa situação. Esperando o fim da chuva sob a árvore, Naotaka Li olhou para a

porta do templo e viu Tama sentada sobre suas patas traseiras. Curiosamente, a

gata acenava com uma das patas dianteiras para o guerreiro. Encantando com tal

façanha, Naotaka Li foi em direção a Tama junto ao templo. Derrepente, um raio

atingiu em cheio a árvore na qual ele se abrigava.

Imediatamente, o guerreiro percebeu que o gesto de Tama havia salvado sua

vida, assim, entrou no templo e rezou agradecendo à graça que acabara de

alcançar. Percebendo a situação do Templo, Naotaka ofereceu todo o dinheiro que

levava consigo ao altar e, conversando com o monge, pediu que fosse utilizado para

reformar o Templo. Após esse incidente, Naotaka Li e sua família passaram a

frequentar Gôtokuji e, consequentemente, todas as pessoas do feudo também

visitavam o local. Para homenagear Tama, o monge mandou esculpir uma estátua

dela e colocou-a na porta do Templo. Aos visitantes, ofertava miniaturas como

lembrança, para trazer boa sorte e espalhar a história pelo mundo.

A segunda versão, também retirada do site Nikkeypedia (2011), retorna a

meados da Era Edo (1615-1868), contando que no bairro de Imado, em Edo (hoje

47

http://nikkeypedia.org.br/index.php/Maneki_Neko

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Tóquio), existia uma velha senhora e seu gato de estimação. A senhora passava por

severas restrições financeiras, pois, devido a sua idade avançada, não conseguia

um trabalho que lhes garantisse o sustento. Desesperada, a velhinha decide

abandonar seu gato, já que não tem mais como alimentá-lo. Chorando, ela decide

dormir, e no dia seguinte concretizar sua difícil decisão. Em seu sonho, a velhinha

encontrava-se com seu gato, que lhe dizia para moldar sua forma que lhe traria

muita sorte.

No dia seguinte, ao acordar, a senhora começa a moldar seu gatinho que

estava, curiosamente, “lavando a cara”, como quem acena. Achando graça na

postura do animal, a velhinha o molda assim, com a pata levantada. Enquanto

moldava, uma pessoa passa em frente à sua casa e, fascinado pela escultura,

decide comprá-la. Como estava em dificuldades, a velhinha vende sem recusa e,

com o dinheiro da venda, compra alimento para si e para seu gatinho. Alimentada,

ela decide fazer uma nova escultura, como recordação da boa sorte trazida por seu

gato. Curiosamente, outra pessoa a vê e compra segunda estátua. Quanto mais

estatuetas eram feitas, mais eram vendidas. Assim, nunca mais a velhinha e seu

gatinho passaram fome e a estatueta do gatinho que lhe deu sorte passou a ser

chamada de Maneki Neko.

A terceira e, talvez, mais curiosa das lendas conta que, na Era Meiji, o Japão

tinha planos de se ocidentalizar e, para tal feito, proibiu a exposição de símbolos

sexuais e de fertilidade utilizados nos bordéis da época. Assim sendo, inspirado no

aceno das prostitutas, surgiu o gato com a pata levantada, que demarcava aos

inscritos nesse código os pontos para diversão. Com o passar das eras, o Maneki

Neko ganhou significados mais nobres e difundiu-se como símbolo atrativo da boa

sorte, fregueses e, consequentemente, dinheiro.

3.2.2. O nosso aqui, comprado ali, vindo de lá

Quando estive no Paraguai pude ver a vastidão de possibilidades para o

nosso gatinho da sorte. Ali, em meio às prateleiras de vidro abarrotadas de bibelôs,

o vi em várias formas, materiais, cores e tamanhos. Ele podia ser branco, preto,

amarelo, verde ou dourado. Mover seu braçinho sem sair do lugar ou, alimentado

por uma pilha, chamar quem quer que fosse pelo tempo da energia. Como grande

parte dos produtos tratados neste trabalho, reproduzem-se a exaustão as

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possibilidades e materiais do Maneki Neko, para que pelo menos um conquiste o

seu coração. Fui conquistado por três, dois em uma espécie de “porcelana não tão

fina assim” e um feito de um plástico duro e luminosamente dourado. É no dourado

que vamos nos aprofundar.

Comecemos pela caixa. Feita em papelão, ela é repleta de escritos em

ideogramas japoneses e colorida de um amarelo que chega ao ocre. Em seus

cantos, encontramos arabescos em vermelho que se misturam com os escritos e as

fotos, parecem deslocados, mas necessários nesse contexto. Com escritos em

vermelho, apresenta em três de suas faces fotos do produto em diferentes cores e

posições. Ao fundo de suas fotos se espalham moedas de todas as cores,

reforçando a “função” desse bibelô. Abaixo de cada foto, encontramos um código de

identificação do produto (analisaremos o NO: 0256A) e na tampa, as letras “A”, “B”,

“C” e “D”. Logo, podemos constatar que essa mesma caixa atende a quatro

demandas diferentes, atende a quatro modelos de gatinho da sorte e serve como

padrão organizador para os futuros revendedores em qualquer lugar do mundo, em

especial no Paraguai.

Ainda falando da caixa, o enorme “MADE IN CHINA” na lateral da caixa

demarca a “origem do produto”. Na outra face lateral encontramos instruções em

inglês que orientam a instalação da pilha e alertam para possíveis problemas. Evoco

aqui novamente algumas considerações de Massimo Canevacci, utilizadas no

começo desta dissertação. Posso afirmar que o objeto dourado que descrevo é um

body-corpse. Um organismo cadáver, inerte, envolto em plástico bolha pronto para

viajar o mundo em suas memórias póstumas. Porém, as instruções dizem para

inserir em sua base uma pilha tamanho AA. Essa pilha então, é responsável por “dar

vida” ao gatinho, religar o sistema de body-corpse, dar a ele um movimento, uma

interação com o espaço no qual irá habitar. O nosso gatinho dourado tem então

vida, na prateleira de livros a frente da mesa onde esta dissertação foi escrita.

De dentro da caixa saiu o gatinho. Como já dissemos, ele é dourado. Um

dourado meio cobre, meio vermelho, meio um dourado kitsch. Na parte interna de

suas orelhas encontramos um vermelho sangue, no mesmo tom de sua coleira

infestada de bolinhas brancas com um pingente igualmente dourado. A coleira com

o pingente advém das histórias que contamos acima, ele, o Maneki Neko, era um

gato doméstico que foi eternizado e passou a habitar casas e comércios por todo o

mundo. Abaixo da coleira vemos um lenço verde. Seus olhos são bem abertos,

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quase que arregalados e profundos na profusão do plástico. Sua mão direita carrega

uma placa enquanto a esquerda movimenta-se no compasso de um coração

batendo. A vida do Maneki Neko está no seu braço e no que ele atrai.

Figura 27 Maneki Neko adquirido no Paraguai e habitante da estante de livros

Sentado, nosso gatinho acena. Nas suas costas seu singelo rabinho faz uma

pequena oscilação na circunferência. Em toda sua parte superior não encontro

parafusos ou sinais de cola, ele é todo encaixado, precisamente, bem acabado. Ele

é feito em um plástico bem duro, bem resistente, curiosamente feito para durar

enquanto muitos discutem a fragilidade e efemeridade dos produtos que trabalho.

Embaixo dele está o espaço para o encaixe da pilha e um pequeno buraco, que não

entendi sua função48, se é que preciso de uma. A partir dessa descrição detalhada

sigo com as reflexões a respeito do Maneki Neko, partindo para uma análise dele no

contexto econômico e cultural global.

48

Embora utilizado diretamente neste escritos, faz-se necessário destacar a importância do trabalho

O sistema dos Objetos de Jean Baudrillard a esse propósito.

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3.3. As mercadorias Made in China

3.3.1. Entre sacrifícios e biografias, com quem dialogo

Dialogarei novamente com o indiano Arjun Appadurai e seus prepostos para

entender “a vida social” das coisas em questão, as mercadorias Made in China

(MIC), mais especificamente o Maneki Neko. Segundo Appadurai (2008) as

mercadorias circulam pelo globo em uma vida social que, para além da visão

econômica simplista, realizam transformações na vida social. Para ele

Tal perspectiva pode ser sintetizada da seguinte forma: a troca econômica cria o valor; o valor é concretizado nas mercadorias que são trocadas; concentrar-se nas coisas trocadas, em vez de apenas nas formas e funções da troca, possibilita a argumentação de que o que cria vínculo entre a troca e o valor é a política, em seu sentido mais amplo. Esse argumento [...] justifica a tese de que as mercadorias, como as pessoas, têm uma vida social (APPADURAI, 2008, p. 15).

Até o presente momento neste capítulo encaminhei a discussão para culminar

nesse argumento. Concentrei esforços em apresentar, do fim para o começo, a

circulação de um objeto confeccionado na China, exportado ao Paraguai e revendido

no Brasil. É na seara dessa circulação que está a parte que discutimos da

globalização subalterna. O que proponho então, neste derradeiro capítulo, é tratar

dessas mercadorias que circulam pelo mundo, subalternas desde sua confecção até

seu destino final e concretizam tudo que disse neste trabalho.

De modo claramente provisório, Appadurai define mercadorias como “objetos

de valor econômico”. Para definir valor econômico, o autor se utiliza da definição de

Georg Simmel (1907) que entende esse termo como o julgamento que os sujeitos

fazem sobre os objetos e não uma característica inerente a eles. Ou seja, os objetos

MIC são de baixo valor econômico pela avaliação subjetiva dos sujeitos que os

qualificam (em muitos casos, desqualificam) e essa avaliação pode ainda ser

relativizada dependendo de diversos fatores como o grupo social ao qual se

pertence ou se almeja pertencer. Como já disse Canclini, o consumo desenha

pertencimentos e esses pertencimentos delimitam subjetividades valorativas.

Em uma citação de Simmel, Appadurai (idem, p. 16) fala que os objetos só

são valiosos quando opõem resistência a nosso desejo de adquiri-los. Ele segue em

sua interpretação dizendo que quando decidimos adquirir um objeto

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automaticamente estamos sacrificando outro que se tornará desejo de outrem.

Segundo o autor, para Simmel, o que gera o valor econômico é essa espécie de

troca de sacrifícios. Dessa forma a troca assume o lugar de fonte da valoração

mútua do objeto. Ou seja, são as trocas, suas quantidades e subjetividades que

determinam o valor do objeto. No caso dos MIC, no circuito subalterno de consumo,

quanto mais procurado é o objeto, maior valor ele tem. Essa questão extrapola a

conhecida “lei da oferta e da procura”, ela se emaranha pelos campos da

subjetividade que determinam a escolha e o sacrifício, é o sujeito e sua subjetividade

quem determinam o destino das mercadorias em sua vida social.

Outro termo importante que trata Appadurai (ibidem) e que vale o destaque é

“regimes de valor”. Esses regimes são determinantes na compreensão da circulação

das mercadorias pelo globo. O Maneki Neko, a meu ver, está inscrito em um regime

de valor cultural, que extrai da mitologia japonesa os elementos que crenças e

desejos podem revelar. Independente de acreditar ou não no “poder” sobrenatural

atrativo do objeto, a subjetividade que escolhe o transporta para seu mundo e lhe

confere um lugar. O meu habita a estante de livros, o dos chineses no Paraguai

habitava os caixas e tantos outros habitam tantos outros lugares que nem posso

imaginar. É no regime de valor cultural que encontramos a integração globalizadora

desse objeto em sua vida social.

Igor Kopytoff, colega de Arjun Appadurai na Universidade da Pensilvânia,

assina o segundo capítulo do livro que trabalho neste tópico. Intitulado A biografia

cultural das coisas: a mercantilização como processo, o capítulo inicia apresentando,

como fez Appadurai, a perspectiva simplista dos economistas sobre as mercadorias

no contemporâneo. Segundo Kopytoff, para eles, as mercadorias simplesmente

existem,

Ou seja, certas coisas e certos direitos a coisas são produzidos, existem e podem ser vistos circulando por meio do sistema econômico, conforme vão sendo trocados por outras coisas, geralmente por dinheiro. Essa visão, evidentemente, abarca a definição de mercadoria segundo o senso comum: um item com valor de uso e que também tem valor de troca (Kopytoff in APPADURAI, 2008, p. 89).

O que Kopytoff faz é manipular o conceito como definiu Appadurai em suas

leituras de Simmel e Marx e simplificá-lo enquanto valor de uso e troca. O autor

segue afirmando que da perspectiva cultural, produzir mercadorias é também um

processo cognitivo, ao passo que as mercadorias não devem apenas ser produzidas

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como coisas, mas sinalizadas como um determinado tipo de coisa. Além disso, a

classificação dos objetos como mercadorias depende de diversas situações,

saltando de categorias ora como objeto ora como mercadoria. Em outras situações,

a mercadoria pode ser vista como tal por uma pessoa e como objeto por outra.

“Essas mudanças e diferenças nas circunstâncias e nas possibilidades de uma coisa

ser uma mercadoria revelam uma economia moral subjacente à econômica objetiva

das transações visíveis” (ibidem). Estamos diante, novamente, da subjetividade.

Figura 28 Maneki Neko numa loja de chineses no Paraguai, alternando entre objeto e mercadoria

Por serem produzidos na China, os MIC são sinalizados como produtos de

baixa qualidade dada sua produção em larga escala e com custo reduzido. Essa

sinalização é feita na esfera social e pôde ser observada nas conversas com os

consumidores do SP em Cuiabá. O imaginário social que permeia essas

mercadorias é imbricado do valor atribuído por quem consome. De quando são

produzidas até chegar à mão do consumidor final, o Maneki Neko saltou de

categorias, de mercadoria para contrabando, de contrabando para mercadoria, de

mercadoria para desejo, de desejo para objeto. Em outros casos, principalmente no

comércio subalterno, estar na categoria de objeto não garante a segurança da coisa,

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já que dependendo do desejo de outrem, ela pode retornar a categoria de

mercadoria por parte de seu dono.

3.3.2. Biografia do Maneki Neko

O que fiz no tópico anterior foi preparar o terreno para a constituição da

biografia dos objetos MIC, singularizadas no Maneki Neko. Kopytoff, a propósito da

abordagem biográfica nos diz

As biografias têm sido abordadas de várias maneiras na antropologia [...]. Pode-se apresentar uma biografia de verdade, ou construir um modelo biográfico típico a partir dos dados biográficos montados aleatoriamente, tal como se faz nos recorrentes capítulos das etnografias dedicados ao Ciclo da Vida. Um modelo biográfico dotado de maior consciência teórica é um tanto mais complicado. Ele é baseado num número razoável de histórias verdadeiras. Apresenta uma variedade de possibilidades biográficas oferecidas pela sociedade em questão e examina a maneira pela qual essas possibilidades são concretizadas nas histórias de vida de várias categorias de pessoas. Ele examina, ainda, biografias idealizadas, eleitas pela sociedade como modelos desejáveis, e como são percebidas as variações reais do modelo. [...] Parece-me que é vantajoso fazer a mesma variedade e modalidade de perguntas culturais para desvendar as biografias das coisas (idem, p. 91-2).

A abordagem de Kopytoff me motivou a adotá-la como método de análise dos

MIC na globalização subalterna. Segundo o autor, para fazemos a biografia de uma

coisa, faremos perguntas similares às feitas às pessoas, como

Quais são, sociologicamente, as possibilidades biográficas inerentes a esse “status”, e à época e à cultura, e como se concretizam essas possibilidades? De onde vem a coisa, e quem a fabricou? Qual foi a sua carreira até aqui, e qual é a carreira que as pessoas consideram ideal para esse tipo de coisa? Quais são as “idades” ou fases da “vida” reconhecidas de uma coisa, e quais são os mercados culturais para elas? Como mudam os usos da coisa conforme ela fica mais velha, e o que lhe acontece quando a sua utilidade chega ao fim? (idem, p. 92).

Embora muitas dessas perguntas já tenham sido respondidas no decorrer de toda a

dissertação, as reuno a seguir, na sequencia proposta para esquematizar um

escopo da biografia do Maneki Neko na globalização subalterna contemporânea.

Socialmente, como já disse em diversas passagens, os produtos MIC são

estigmatizados como de baixa qualidade em consequência de sua geral fragilidade e

pouca durabilidade. Esse status de “baixo valor” acompanha a emergência da China

como potência mundial em exportação de produtos industrializados em larga escala,

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em sua maioria copiados de outros circuitos comerciais. Os Chineses são os

“mestres da cópia”, sendo esta atividade culturalmente legitimada. Assim sendo,

todos esses fatores devem ser considerados ao tentarmos traçar uma biografia dos

MIC, representados pelo Maneki Neko.

Figura 29 Maneki Neko em cerâmica numa loja de japoneses no Paraguai

A história do Maneki Neko advém da lenda japonesa difundida por todo o

mundo. A partir da representação em argila do gatinho da sorte e sua forte carga

cultural no Japão, os chineses “importaram” essa figura do imaginário japonês

replicando-a em suas fábricas e fabriquetas clandestinas, exportando em caixas

como a descrita anteriormente. Como afirma Pinheiro-Machado (2009), diversas

fábricas chinesas abrigam em seu subsolo outras fábricas, que confeccionam outros

produtos além dos autorizados pelo governo. Possivelmente, é de uma dessas

fabriquetas que saiu meu Maneki Neko, o da estante de livros.

Uma vez confeccionado na China, o Maneki Neko parte do Porto de

Guangzou ou outro do ZEE e viaja pelo oceano em enormes containers repletos de

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MIC. São descarregados na América do Sul e viajam para o Paraguai dentro de

caminhões sem identificação, no interior das enormes caixas que vi transitando

pelas vielas de Ciudad Del Este (no capítulo 2). Essas caixas são distribuídas pelas

“lojas” e shoppings e são rapidamente desmanteladas, acomodando os MIC de

acordo com a praticidade diária do comércio. Embora pareça que finalmente as

mercadorias chegaram ao seu destino, elas estão apenas na metade de seu

caminho. Instalados em seus lugares, os objetos MIC esperam o momento no qual

serão novamente escolhidos.

Figura 30 Vários Maneki Nekos em diferentes materiais

Já no Paraguai as mercadorias são novamente selecionadas pelos atores

sociais que naquele momento desempenham o papel de compradores, mas que

posteriormente tornar-se-ão intermediários ou vendedores. Novamente adquiridos,

os MIC voltam a ser embalados e novamente são desidentificados para enfrentar a

fiscalização brasileira. Em meio aos jogos de poder e recursos, esses objetos

entram e viajam Brasil adentro, espraiando-se por cidades de todos os portes, no

Norte ao Sul do país. Aqui dentro, os MIC voltam a ocupar as vitrines, voltam à

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condição de mercadorias, como vemos na figura 28, uma vitrine na famosa Rua

Vinte Cinco de Março, na cidade de São Paulo.

O gatinho da sorte inventado no Japão, que veio da China, passou pelo

Paraguai, ocupa as vitrines de lojas do comércio popular brasileiro, como no caso da

Vinte Cinco de Março, e fica novamente exposto à produção e consumo subjetivos.

Já no Brasil, os MIC estão mais expostos ao consumidor final, estão mais próximos

de deixar o status de mercadoria e passar a objeto, seja de decoração ou

superstição. Entretanto, os comerciantes ambulantes que não dispõem da

possibilidade de ir ao Paraguai para comprar suas mercadorias, acabam por adquiri-

las em São Paulo e, nesses casos, os MIC voltam a transitar para ainda mais longe.

Figura 31 Maneki Nekos no caixa da loja na Galeria do Rock – SP

Durante as pesquisas de campo, encontrei similitudes de hábitos e usos do

Maneki Neko que, sem dúvidas, fazem parte da biografia desse. Como já sabemos,

no Paraguai alguns chineses utilizam o Maneki Neko em seus caixas, para que ali

ele possa executar sua função atrativa monetária. Em São Paulo, visitando a Galeria

do Rock, espaço que, como o próprio nome já diz, abriga produtos e serviços

relacionados a esse estilo musical, encontrei numa loja de tênis um Maneki Neko no

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caixa. Curiosamente, lá estava ele, como no Paraguai, balançando seu bracinho

para atrair clientes. Pelo sim, pelo não, fui atraído, sem saber se pelos tênis ou pelo

gatinho.

De volta a Cuiabá, continuei com a pesquisa de campo e, numa noite

despretensiosa, encontrei no balcão de um restaurante de comida oriental instalado

em um Shopping Center da cidade, ele, o nosso gatinho da sorte. Estava assentado

no balcão, de frente para a entrada, ao lado do caixa, como em São Paulo, como em

Ciudad Del Este, provavelmente como na China e no Japão. Perguntamos ao

proprietário do restaurante onde ele o havia adquirido. Disse que foi no

camelódromo e que acreditava na lenda que veio escrita junto ao Maneki Neko, ele

acreditava no poder do objeto, eles ajudaram a concluir esta biografia.

Figura 32 Maneki Neko no caixa do restaurante em Cuiabá – MT

No que tange às “idades” ou “fases da vida” do Maneki Neko, acredito que

pelo próprio percurso que faz desde sua confecção, já chega nas mãos do

consumidor final em sua “fase adulta”, estando fadado ao envelhecimento, por vezes

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precoce e, quando já não funciona mais ou adquire outro sinal de uso, é descartado

em sua maioria no lixo, salvando apenas os que por sua relação afetiva com seus

donos, vão para um cantinho do armário como recompensa pelos anos de serviços

prestados.

A proposta de apresentar a biografia do Maneki Neko serve para

compreendermos como nesse percurso encontrei a globalização realizada por uma

parcela grande da sociedade que está fora dos grandes fluxos hegemônicos de

importação e exportação. É na vida social do Maneki Neko, aqui representando os

produtos MIC em geral (ao menos os de sua categoria de “quinquilharias”) que a

prática contemporânea do comércio popular subalterno se materializa, se realiza de

fato. São nessas práticas que as pessoas comuns, subalternas, têm a possibilidade

de participar ativamente de um processo global de circulação de mercadorias. Seja

como vendedor ou consumidor é com os MIC que nós, sul-americanos, subalternos

perante o mundo, desenhamos os nossos pertencimentos no comércio mundial e

inscrevemos nossas práticas na economia internacional.

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FECHANDO

Depois de tantas viagens chega o momento de retornar. Escrever apenas

conclusões sérias e repetitivas, ao passo que muito do que conclui escrevi durante

todo o texto, ruiria com a leveza que tentei dar a este trabalho que tem tanto de mim.

Acredito que o importante nessas derradeiras páginas seja apresentar o que aprendi

com todo esse percurso, para além da titulação, sem desmerecê-la. Esse

aprendizado que extrapola não apenas a erudição, mas transforma a vida do

pesquisador e instaura um novo modo de fazer pesquisa no contemporâneo.

Parti do aqui, fui para ali e, por meio das palavras, cheguei lá. O aqui

representado pelo camelódromo fica para mim como esse marco representativo do

trabalho no contemporâneo. Seja pela informalidade, pelo arranjo com pouco, pela

subversão, o camelódromo em si representa os modos pelos quais operamos para

dar conta da vida cotidiana. No caso deles, diante da adversidade da expulsão do

centro para a borda, encontraram forças para erguer um prédio e mantê-lo em

funcionamento por mais de uma década e meia, afrontando delicadamente os

desígnios das forças hegemônicas.

Aprendi com os camelôs que a criatividade é um estado de espírito que

extrapola qualquer formação acadêmica. Ser criativo é sobreviver aos desafios que

são impostos e fazer curvas, quando estas forem necessárias para cumprir o

objetivo final. É ter determinação para ultrapassar fronteiras aparentemente

fechadas, impossíveis, fiscalizadas. Traçar táticas para oferecer a outras pessoas

um contato com o mundo de possibilidades que sai das fábricas. Aprendi a valorizar

o trabalho de todas as pessoas, inclusive das que estão do outro lado da força,

mesmo não concordando com as atitudes por elas tomadas. Compreendi que ter um

espaço é de suma importância para efetivamente poder transitar e organizar esse

espaço ajuda a mantê-lo ainda mais forte. Da convivência com esses camelôs, da

escuta de suas falas, nasceu o desejo de vivenciar efetivamente a condição

subalterna a qual eles eram submetidos, também, durante suas viagens.

Mergulhar em uma viagem de campo sem qualquer auxílio de alguém já

“iniciado” ou de um “informante”, por si só, já ensinaria muita coisa. No meu caso,

mesmo desfrutando da companhia de Hugo, a viagem representava um transporte à

outra realidade, longe da segurança de minhas manias e perfeccionismos. Longe de

minha cidade, do camelódromo e da segurança de meu escritório, de onde sempre

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escrevi meus trabalhos. Ir a um campo “exótico” fez com que me sentisse um

etnógrafo de outra década e minha postura severa com o método, nas primeiras

horas de investigação, confirmou tal erro. Felizmente, naquele momento crucial, tive

alguém para me mostrar que as sensações e experiências são fundamentais, até

mesmo na academia.

Nas ruas do Paraguai aprendi a ouvir e valorizar a fala dos desconhecidos. A

ouvir a experiência das pessoas e aprender com elas e utilizá-las como preciosos

dados para minha pesquisa. Descontrolei-me e me entreguei às mercadorias como

faziam os ”perambulantes” do camelódromo que tanto descrevi e observei. Mudei de

lado e experimentei na prática a adrenalina de um ilegal, contrabandista, sonegador

e demais adjetivos comumente atribuídos aos camelôs que, a meu ver, são só

trabalhadores. Cruzei e recruzei a fronteira, afrontado a um sistema que só tinha

ouvido falar.

Ainda nas ruas de Ciudad, aprendi que a economia e demais assuntos

comumente sérios e ensimesmados, ali, são reinterpretados, desconstruindo

variações da bolsa de valores e taxas de câmbio. O câmbio ali é cultural, é

praticado, é entre pessoas e não entre dígitos. Expus todos os meus sentidos

andando nas vielas e becos, desviando de montanhas de caixas, entendi que as

aparências, efetivamente como diz o ditado, enganam. Transformam imensos cubos

de papelão em pequenos bibelôs de plástico, num processo quase de escavação

artesanal no desembrulhar. Imprimem velocidade aos fluxos, com entradas e saídas

delimitadas. Da viagem de campo a Tríplice Fronteira, ao final, ficou a certeza de

que esse era o caminho que minha pesquisa deveria tomar.

De volta ao aqui, pude pensar nesses fluxos que durante aqueles dias

vivenciei e entendê-los dentro de uma dinâmica muito maior, uma dinâmica

planetária de circulação de mercadorias. Pude pensar a globalização que se realiza,

não diante das grandes multinacionais e potências, mas diante de uma parcela da

população mundial que está subjulgada a esses poderes. A globalização subalterna

que desemboca em Cuiabá, passa por aquele lugar ali, onde estive e onde desejo

voltar, dentro daquelas caixas, na mão daquelas pessoas, nas mercadorias que vêm

de lá.

Infelizmente não fui à China. Entretanto, com a ajuda de outros pesquisadores

que, como eu, compartilham desse interesse, o lá ficou mais perto do aqui. Esse

dragão, como comumente é chamado, produz de maneira assustadora e espraia

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para o mundo suas mercadorias, num processo de crescimento vertiginoso. Aprendi

com a China que obstinação é a razão de seu sucesso. A superação permanente e

o aproveitamento daquilo que lhe é ofertado ajudou e ajuda a legitimação dessa

grande potência mundial. Entretanto, mesmo forte, a China continua cuidando dos

detalhes, executando as minúcias, exportando quinquilharias. Difundindo seus Made

in China.

É nesses objetos, nos MIC, que minha atenção se encaminha para o fim. Por

meio do Maneki Neko, esse adorável gatinho da sorte, que me trouxe muita sorte,

pude pensar como o percurso que ele fez para chegar até minhas mãos reflete um

fenômeno tão grande quanto a globalização. Além disso, como ele, tão

desvalorizado socialmente, me ajudou a compreender como se constitui,

efetivamente, a globalização subalterna. Esse movimento que experimentei nas

viagens e acompanhei durante a pesquisa com os camelôs de Cuiabá, esse

fenômeno pouco estudado que ainda alimenta minha curiosidade para além deste

trabalho que finda.

Encerrando minha lista de aprendizados está o pensar. Não o mecânico que o

cérebro realiza, mas o pensar criticamente, o relacionar, o compreender, o não

compreender. O amadurecimento de minha escrita e a articulação entre ideias e

palavras, construindo um produto tão substancial como este que você, caro leitor,

teve em mãos durante as últimas cento e tantas páginas. O que aprendi, para

encerrar, foi a pesquisar, a indagar, a produzir muito singelamente, conhecimento.

Agradeço por sua atenção e espero que tenha gostado dessa viagem a China-

Paraguai-Brasil ou vice-versa.

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