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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Educação Igor Thiago Moreira Oliveira Uma "Praia" nas Alterosas, uma "antena parabólica" ativista: configurações contemporâneas da contestação social de jovens em Belo Horizonte. Belo Horizonte 2012
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Uma Praia nas alterosas, uma antena parabólica ativista.

Jul 30, 2015

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Igor Oliveira

Dissertação de Igor Oliveira defendida no ano de 2012 na FAE/UFMG sobre a movimentação Praia da Estação em Belo Horizonte. Essa é uma versão bruta da dissertação sem a realização de algumas correções.
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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Educao

Igor Thiago Moreira Oliveira

Uma "Praia" nas Alterosas, uma "antena parablica" ativista:configuraes contemporneas da contestao social de jovens em Belo Horizonte.

Belo Horizonte 2012

Igor Thiago Moreira Oliveira

Uma "Praia" nas Alterosas, uma "antena parablica" ativista:configuraes contemporneas da contestao social de jovens em Belo Horizonte.

Dissertao apresentada ao curso de Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientador: Prof. Dr. Juarez Tarcisio Dayrell

Belo Horizonte Faculdade de Educao 2012

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de EducaoPS-GRADUAO EM CONHECIMENTO E INCLUSO SOCIAL

Dissertao Uma "Praia" nas Alterosas, uma "antena parablica" ativista: configuraes contemporneas da contestao social de jovens em Belo Horizonte, de autoria do mestrando Igor Thiago Moreira Oliveira, aprovada pela banca examinadora composta pelos seguintes professores:

______________________________________________________ Prof. Dr. Juarez Tarcisio Dayrell (Orientador FAE/UFMG)

________________________________________________________________ Profa Dra. Janice Tirelli Pontes de Sousa (CFH UFSC)

________________________________________________________________ Prof. Dr. Geraldo Magela Pereira Leo (FAE -UFMG)

Belo Horizonte 2012

AGRADECIMENTOS

O trabalho solitrio e artesanal da escrita se torna menos duro quando contamos com o apoio de quem nos cerca e quando encontramos interlocutores interessados em nossa caminhada. Gostaria de fazer alguns agradecimentos para quem esteve presente conosco nessa trajetria e para quem, mesmo sem a presena fsica, esteve igualmente presente. Agradeo a meus pais pelo forte apoio, compreenso e carinho. Agradeo a minha amada companheira de vida, Claudia Orduz, pela pacincia, dilogo, apoio, amor e carinho nas horas em que mais precisei. Voc, Claudia, faz parte especial da realizao desse trabalho! Ao meu querido filho Joo, que, sem entender a razo que levava seu pai preferir passar horas a fio em frente ao computador ao invs de brincar, tentou ser compreensivo quando seu pai dizia estar trabalhando. Para voc, Joo, um grande beijo e abrao do papai, voc representa uma das fontes de minha garra e luta! Agradeo a toda minha numerosa famlia e em especial aos moradores da vila do Boa Vista, minha av, meus tios e a querida vizinha Cida. Ao professor Juarez Dayrell, pela pacincia, ensinamentos e dedicao. As qualidades que possam existir nesse trabalho possuem influncia direta de seus ensinamentos. Para um aprendiz de pesquisador como eu, uma honra t-lo como mestre, como orientador de caminhos possveis. equipe do Observatrio da Juventude, colegas e professores, fica tambm um agradecimento especial. Vocs foram interlocutores fundamentais em minha caminhada e abriram oportunidades de crescimento importantes para mim. Com todos vocs aprendi e aprendo muito. Aos demais professores da Faculdade de Educao, por fazerem dessa unidade da UFMG um lugar onde se pode cultivar uma perspectiva crtica de leitura do mundo. Aos funcionrios dessa faculdade, pelo prstimo, ateno e igual dedicao. Capes, pela garantia de um ano de bolsa que me permitiu realizar esse trabalho com maior qualidade e tranqilidade. Aos colegas da Faculdade de Educao da UFMG e aos demais amigos espalhados pelo campus da UFMG, pelo bairro de Santa Tereza e por esse mundo afora, agradeo pelo dilogo interessado e pela companhia nos poucos, mas agradveis, momentos bomios que vivenciamos nesse perodo. Esses foram preciosos momentos de respiro durante a escrita dessa dissertao. Dentre os colegas e amigos e amigas que fiz na Faculdade de Educao, fao um agradecimento aos amigos de caf, tabaco e prosa da esquerda mestradista ou

mestrandos esquerdistas, em especial a rica Dumont pelo compartilhamento das angstias e interlocuo permanente. E, finalmente, agradeo a todos os participantes da Praia da Estao. Mesmo que muitos de vocs no me conheam, tive a oportunidade e o prazer de me aproximar de vocs, mesmo que virtualmente. Espero que esse trabalho sirva de alguma forma para a reflexo de todos vocs! Considero todos, em graus distintos, como co-autores dessa dissertao. Aos entrevistados, fica a gratido pela disponibilidade e disposio em colaborar, e em especial ao parceiro Nmade andarilho libertrio e sbio vivente. Com voc pude compartilhar e aprender muitas coisas, idias e sentimentos. Espero sua leitura atenta e crtica desse trabalho.

Talvez o segredo mais bem guardado do nosso tempo seja que a poltica, como prtica democrtica, pode ser "divertida", no apenas no sentido do entretenimento, mas tambm como algo capaz de se tornar profundamente estimulante e at de criar momentos de puro xtase. A minha gerao teve um vislumbre disso em Maio de 1968, e noutros momentos dessa dcada, numa altura em que pessoas desconhecidas se abraavam nas ruas e o impossvel parecia, por um instante, ao alcance da mo. As rebelies produzem de vez em quando momentos como estes, de transcendncia e de esperana. Multides danaram nas ruas de Havana quando Batista fugiu, em 1959; 30 anos depois, danaram tambm em cima do muro de Berlim, quando a Alemanha Oriental sucumbiu ao movimento democrtico. Houve festa na Espanha Republicana dos anos 30, e uma "anarquia embriagada" em So Petersburgo, durante 1917. Em momentos como estes, a poltica transbordou das barreiras dos partidos, dos comits, das eleies e da legislao, tornando-se uma espcie de festa.

Barbara Ehrenreich

RESUMO

O mundo contemporneo assistiu a ecloso de diversas movimentaes sociais protagonizadas por jovens. Desde pelo menos o final do sculo XX primeira dcada dos anos 2000, com os chamados movimentos antiglobalizao, surgiram em todo o globo mltiplas formas de agenciamento juvenil contestadores da ordem social. Nesse contexto, o objeto desse trabalho o de analisar uma movimentao social protagonizada por jovens que surgiu na cidade de Belo Horizonte em janeiro de 2010: a Praia da Estao. Consideramos que a Praia da Estao foi uma movimentao diretamente conectada ao contexto global contemporneo das movimentaes sociais protagonizadas por jovens, por um lado, e, por outro, diretamente conectada ao contexto local, no caso a cidade de Belo Horizonte, relativamente a questes urbanas e a questes do poder municipal. Nossa anlise procurou, ento, dar nfase aos processos constitutivos e caractersticas da referida movimentao com o objetivo de perceber o que a mesma tem a nos dizer a respeito das movimentaes sociais protagonizadas por jovens na contemporaneidade e o que tem a nos dizer sobre as transformaes urbanas na cidade de Belo Horizonte. Desenvolvida e articulada s novas tecnologias da comunicao e informao, a Praia da Estao revelou-se para ns um objeto de estudo de complexa e difcil conceituao. Procuramos analisar as definies dos prprios participantes da Praia da Estao acerca da movimentao protesto-festa, interveno urbana, movimento, desobedincia civil, ocupao do espao pblico a partir de conceitos advindos da literatura contempornea sobre movimentos sociais e participao juvenil novos movimentos sociais, movimentos sociais em rede, ciberativismo e juventude autonomista. A pesquisa foi realizada a partir da observao participante, entrevistas e etnografia etnografia dos espaos virtuais em que a Praia da Estao foi constituda, especialmente a lista e blog Praa Livre BH. Percebemos que a Praia Estao possuiu caractersticas comuns a diversos movimentos juvenis contemporneos horizontalidade, carnavalizao do protesto, conexo com a Internet, organizao em rede e que trouxe tona a problemtica urbana e do poder municipal como uma de suas preocupaes centrais.

Palavras-chave: movimentaes sociais, ciberativismo, questes urbanas, juventude.

ABSTRACT

The contemporary world has seen the emergence of various social movements headed by young people. Since at least the late twentieth century to the first decade of the 2000s with the so-called anti-globalization movements have emerged around the globe multiple forms of agency youth protesters of the social order. In this context the object of this paper is to analyze a social movement that emerged starring young people in the city of Belo Horizonte in January 2010, the Praia da Estao. We believe that the Praia da Estao was a drive directly connected to the global context of contemporary social movements headed by young people on the one hand, and on the other, directly connected to the local context, where the city of Belo Horizonte on urban issues and questions of municipal Power. Our analysis then sought to give emphasis to the constitutive processes and characteristics of that movement in order to realize what it has to say about the social movement headed by young people nowadays and you have to say about the urban transformations in the city of Belo Horizonte. Developed and coordinated with the new technologies of communication and information, the Beach Station revealed to us an object of study of complex and difficult concept. We tried to analyze the participants' own definitions of the Beach Station on the move - protest, party, urban intervention, movement, civil disobedience, occupation of public space - from concepts originated from the literature on social movements and youth participation - new social movements movements, social networking, cyber-activism and youth autonomist. The survey was conducted from participant observation, interviews and netnography - ethnography of virtual spaces in which the Beach Station was set up specifically in the list and blog BH Square Free. We noticed that the Praia da Estao possesses characteristics common to many contemporary youth movements - horizontal, carnivalization protest, internet connection, network organization - and that brought up as one of its central concerns the problem of urban and municipal authorities.

Keywords: social movements, cyber activism, urban issues, youth.

LISTA DE TABELAS E FIGURAS

Tabela 1 Tabela 2 Tabela 3

Categorias presentes na lista de e-mails da Lista Praa Livre BH ...................................... Nmero de tpicos postados da lista de e-mails Praa Livre BH ........................................ Categorias presentes no blog Praa Livre BH .....................................................................

p.110 p.112 p.124

Figura 1 Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6 Figura 7 Figura 8 Figura 9 Figura 10 Figura 11 Figura 12 Figura 13 Figura 14 Figura 15 Figura 16 Figura 17 Figura 18 Figura 19 Figura 20 Figura 21 Figura 22

Foto do dia de ao global, o N-30, em Seatlle, 1999 ......................................................................... Foto do S-26 em So Paulo .................................................................................................. ............... Imagem sobre as comemoraes de dois anos de existncia do Squat J-13 ........................................ Logomarca do CMI. .................................................................................................................. ........... Smbolo do Centro (anti) cultural Gato Negro .................................................................................... Pgina inicial do Wiki do Domingo Nove e Meia. .............................................................................. Programao da EAF 2011 .................................................................................................................. Cartaz de Divulgao Universidade Pirata. ......................................................................................... Cartaz da Bicicletada em BH. Maio de 2008 ...................................................................................... Bicicletada mineira. Cicloativismo na Praa Sete, Centro de Belo Horizonte. ............................. Flyer da primeira edio do Cidade Situada - Mesa Amorfa .............................................................. Flyer da terceira edio do Cidade Situada em novembro de 2008 .................................................... Flyer do Domingo Nove e Meia. ......................................................................................................... Notcia de jornal retirada do blog do Conjunto Vazio ......................................................................... Foto da ao A ilha ......................................................................................................................... . Flyer do protesto V de Branco .......................................................................................................... Flyer do protesto V de Branco .......................................................................................................... Flyer do protesto V de Branco .......................................................................................................... . Fotografia do protesto V de Branco. 07/01/2011 ............................................................................. Flyer da primeira Praia da Estao .................................................................................................... .. Foto retirada do Blog Praa Livre BH da Praia da Estao ............................................................... Foto retirada do Blog Praa Livre BH durante a Praia da Estao .....................................................

p.40 p.42 p.49 p.61 p.63 p.70 p.71 p.72 p.76 p.77 p.80 p.81 p.84 p.86 p.86 p.89 p.90 p.90 p.93 p.94 p.96 p.97

Figura 23 Figura 24 Figura 25 Figura 26 Figura 27 Figura 28 Figura 29 Figura 30 Figura 31 Figura 32 Figura 33 Figura 34 Figura 35 Figura 36 Figura 37

Foto da Praia da Estao com destaque para a frase Okupe a Cidade ............................................. Tela Inicial do Blog Praa Livre BH ................................................................................................. Mensagem ao prefeito no cancelamento do FIT/2010 ...................................................................... Imagem do Wiki do Evento ............................................................................................................ Espao de comentrios no site do Jornal O Tempo ............................................................................. Post de Fidelis no Blog Praa Livre BH ............................................................................................ Post E pra voc, meu irmo, o que a Praia da Estao? Dezembro 2010 ......................................... Post comentrio de Coala Croata ........................................................................................................ Post comentrio de Pata ................................................................................................................... .... Post comentrio de Beto Epaminondas ............................................................................................. ..

p.97 p.126 p.133 p.138 p.140 p.143 p.150 p.151 p.151 p.152 p.152 p.153 p.163 p.163 p.164

Post comentrio de Conjunto Vazio ....................................................................................Post comentrio de rica Emito ........................................................................................................ .. Flagrante da Praia da Estao I ............................................................................................................ Flagrante da Praia da Estao II ........................................................................................................ .. Foto do rosto do prefeito Mrcio Lacerda instalada em um manequim. [O prefeito virou banhista.] ............................................................................................................................. ........................... [Constante do Blog Praa Livre BH em 21.01.02010] ........................................................................ Post que traz uma notcia sobre gentrificao na rua Guaicurus ......................................................... Post que denuncia os estragos causados por evento ............................................................................ Post divulga cancelamento do Festival Internacional de Teatro (FIT) ................................................ Post sobre obras virias na cidade ....................................................................................................... Post sobre a realizao da Fan-Fest. 2010 ........................................................................................... Sobre o tratamento dado a pichadores em Belo Horizonte .................................................................. Post sobre remoo de famlias para obras urbanas ............................................................................ Sobre retirada de feira de hortifrutigranjeiros ..................................................................................... Sobre despejo de pessoas para obras da Copa do Mundo ................................................................... Links sobre protestos de moradores despejados .................................................................................. Sobre a Reunio da Frente Nacional de Prefeitos e Mercocidades ..................................................... Flyer do Movimento Fora Lacerda ...................................................................................................... Flyer-Convite para a Marcha das Vagabundas ................................................................................... Flyer-Convite para a Copelada ............................................................................................................ Flyer-convite para o dia dos trabalhadores em 2012 ...........................................................................

Figura 38 Figura 39 Figura 40 Figura 41 Figura 42 Figura 43 Figura 44 Figura 45 Figura 46 Figura 47 Figura 48 Figura 49 Figura 50 Figura 51 Figura 52 Figura 53

p.171 p.177 p.178 p.179 p.180 p.181 p.181 p.182 p.183 p.183 p.184 p.185 p.204 p.208 p.209 p.210

SUMRIO

Introduo ......

12-20

PARTE I

Praia da Estao: Primeira aproximao e uma busca pelas origens. Fragmentos praieiros Uma primeira aproximao Praia da Estao ................................................................................................ Prlogo ................................................................................................Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (EZLN), Ao Global dos Povos (AGP) e o movimento antiglobalizao notas sobre as formas de ser da contestao social contempornea ...........................................................A chamada gerao Seattle no Brasil ......................................................... Anarquismo, anarquismos e libertrios ........................................................

1 2

22-28 29-87

34-44

44-50 50-53

Notas introdutrias sobre coletivos libertrios em Belo Horizonte .............. Jovens ativistas em Belo Horizonte: sob o impacto da AGP e dos protestos antiglobalizao ............................................................................................ Belo Horizonte, notas sobre a segunda dcada dos 2000 e os coletivos libertrios ......................................................................................................Chegando mais prximo praia .................................................................

53-60

60-67

67-77 78-87

PARTE II

Uma Praia nas Alterosas, o mar revolto de Belo Horizonte.

1 2

Um breve histrico da Praia da Estao ............................................. Da praa para a rede, da rede para a praa. A Praia ciberativista .......

89-104

105-145

A lista Praa Livre BH .................................................................................. O blog Praa Livre BH ................................................................................. Para alm do blog e da lista Praa Livre BH a Praia da Estao em outros mares cibernticos ..................................................................................

109-123 123-136

136-145

3

Vrias ondas em uma mesma Praia .................................................Praia da Estao: personagens ...................................................................... Praia da Estao: uma movimentao social mltipla e heterognea ...........Campo libertrio proposituras radicais, conflitos e o risco da cultura ........................................................................................................ Campo da cultura, cidados engajados e banhistas, a afirmao praieira. .............................................................................................................. Praia da Estao: a emergncia das individualidades e a dimenso da experincia e dos aprendizados .........................................................

146-169 146-148 148-169

154-162

162-165

165-169

4

Praia da Estao, a cidade e o poder municipal. A emergncia da questo urbana. ...................................................................................

170-192

PARTE III

Quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer

Consideraes Finais ..........................................................................

194-201

Eplogo ................................................................................................

202-211

Anexos .......................................................................................................................

213-236

Referncias Bibliogrficas e sites consultados ............................................................

237- 244

Introduo

O pensamento de esquerda hoje se encontra numa encruzilhada. As verdades evidentes do passado as formas clssicas de anlise e de clculo poltico, a natureza das foras em conflito, o prprio sentido das lutas e objetivos da Esquerda tm sido seriamente desafiados por uma avalanche de mutaes histricas que estraalharam o fundamento sobre o qual se constituram essas verdades (LACLAU e MOUFFE, 1989, p.1) Tem tempo de estar asa e tem tempo de estar raiz Nem sempre h escolhas (e o posto doloroso por igual a total liberdade de escolha pode revelar encruzilhadas mltiplas) e o estado de voar ou estado de estar fincado podem se embaralhar: por vezes podemos ser atados por nossas prprias asas e por outras semeamos e somos semeados pelos ventos mesmo que imveis Sou otimista! Assim procuro ver o longo desenrolar. Quando reflito assim, quando estou metido o sangue borbulha e a acelerao dos batimentos e da mente me fazem explodir.

(trecho de conversa entre dois companheiros ciganos marginais)

Nesse trabalho, trato de agenciamentos coletivos e movimentaes sociais protagonizadas por jovens na contemporaneidade. A partir do estudo da Praia da Estao, nosso objetivo compreender uma movimentao contempornea de contestao social protagonizada por jovens, perceber suas principais caractersticas, sua malha constitutiva, sua forma de ser, suas motivaes, contestaes e crticas. Perceber o que a Praia da Estao pode nos dizer e indicar a respeito de tendncias e caractersticas das movimentaes protagonizadas por jovens de maneira geral. Nos ltimos vinte anos, pelo menos, a sociedade brasileira e de todo o globo tem experimentado novas formas de participao na vida scio-poltica e novas configuraes da contestao social. Os jovens aparecem no contexto contemporneo como um dos sujeitos mais visveis nessas novas configuraes dos agenciamentos coletivos. Essas novas configuraes da contestao social na contemporaneidade podem ser mais bem compreendidas se tomarmos como referncias fundantes trs acontecimentos: o levante Zapatista de 1994 em Chiapas (Mxico), a organizao dos Fruns Sociais Mundiais na dcada dos 2000 e os protestos internacionais contemporneos contra a ordem do capital global.1 Esses trs eventos, cada um com sua especificidade e repercusso prpria, marcam de1

Os protestos contemporneos a que me refiro so os conhecidos Dias de Ao Global articulados pela Ao Global dos Povos AGP. Mais informaes em www.agp.org.

certa forma a viragem de um tipo de imaginrio rebelde para outro. (HOLLOWAY, 2003, SOUSA, 2004). Se a construo do partido comunista e do socialismo, tal qual a conhecemos na histria, predominou enquanto utopia delineadora do imaginrio rebelde e da ao da esmagadora maioria dos ativistas e militantes no referido perodo histrico, com a queda do muro de Berlim em 1989 e o desmoronamento do socialismo real, as utopias de transformao social passaram por processos de reconfigurao de seus referenciais e a passaram a ser construdas sob novas configuraes, novos projetos e novas formas de organizao social. Nessas novas configuraes da contestao social, para alguns movimentos e/ou para algumas perspectivas tericas a transformao ativa do presente desloca a construo futura do socialismo, o cotidiano e as aes cotidianas se tornam espao e tempo de transformaes e a ao direta praticada pelos contestadores contemporneos tende a ultrapassar as mediaes polticas da ao dos partidos de esquerda. O amlgama entre as novas formas de contestao social contemporneas e as novas tecnologias da comunicao da informao delineia todo esse cenrio, fazendo emergir fenmenos com o do ciberativismo. Como exemplos dessas novas formas de movimentao social e agenciamento coletivo, temos: carnavais de protesto nas ruas, bicicletadas contra o monoplio do uso do automvel, ocupaes de imveis abandonados com posterior transformao em centros sociais e moradias coletivas, realizao de feiras de trocas livres, construo de rdios livres, criao de coletivos e iniciativas de vrios matizes, organizao de dias sem compras, organizao de populaes sem-casa, lutas em defesa dos direitos dos animais, lutas anti-prises e contra os hospitais/prises psiquitricas, bloqueio de ruas nos encontros dos grandes organismos internacionais gestores do capital, movimento de software livre, ativismos na rede mundial de computadores, pequenas sabotagens, ocupaes mltiplas de espaos pblicos nas cidades com o objetivo de tornar visveis problemas e conflitos sociais, utilizao das novas tecnologias da comunicao/informao para criao de meios alternativos de comunicao (mdia alternativa) e criao, reproduo e disseminao de artefatos culturais do dissenso, flyers, vdeos, sons, textos, imagens etc. (ORTELLADO, RYOKY, 2004; LUDD, 2002; SOUSA, 2002, 2005) Entendemos que o objeto de estudo a que se refere esse trabalho, a Praia da Estao, tenha a ver com esse contexto de mutaes sociais e transformao das formas de ser dos agenciamentos coletivos contemporneos. Em dezembro de 2009, o ento prefeito de Belo Horizonte, Mrcio Lacerda, assinou um polmico decreto proibindo eventos de qualquer natureza na praa da Estao. Localizada na regio central da cidade, a praa da Estao um espao pblico de referncia onde se

realizam manifestaes polticas, culturais e populares em Belo Horizonte. O Movimento Praia da Estao surge, ento, como uma iniciativa coletiva de questionamento do decreto baixado pelo prefeito, bem como ocupao poltica/cultural da praa da Estao. Vestidos com trajes de banho e portando pranchas de surf, esteiras, guarda-sol, caixas de isopor, bronzeadores, numa cidade no-banhada pelo mar, os jovens trouxeram a cena pblica o debate sobre o uso e apropriao dos espaos pblicos da cidade e sobre os prprios rumos do desenvolvimento da urbe, ao mesmo tempo em que ensejaram novas formas de ao coletiva e participao social no cenrio urbano. Organizada e mobilizada em rede atravs de uma lista de discusso e um blog na Internet ambos intitulados como Praa Livre a Praia da Estao apresentou caractersticas especficas das formas contemporneas de ativismo e participao social presentes ao menos desde as movimentaes de finais dos anos 1990 e incio dos anos 2000, que ficaram conhecidas como Movimentos Antiglobalizao ou Movimentos Anticapitalistas: busca pela horizontalidade, ao direta, carnavalizao do protesto, diversificao das formas de ao, ciberativismo e uso intensivo das novas mdias, relevncia do papel dos indivduos, desvinculao das formas tradicionais de participao, como partidos, sindicatos etc. bem como trouxe tona as problemticas da cidade e do poder municipal como preocupaes centrais.

Percurso da pesquisa e notas metodolgicas Essa pesquisa nasceu de incmodos, reflexes e indagaes de algum que militou e milita transitou e transita pelos crculos de esquerda, pelos coletivos, espaos e iniciativas libertrias e anticapitalistas, pelos movimentos sociais, pelas movimentaes espontneas, enfim: por tudo aquilo que ouse, deseje e enseje mudar e transformar o rumo das coisas. Acompanhando em alguns momentos essas experincias com maior intensidade, pude ampliar o universo de questes sobre o tema, bem como minha percepo das tendncias e alternativas colocadas, tanto pelas dimenses das novas formas de organizao protagonizadas por jovens, como pelas novas formas de participao scio-poltica da juventude. Muitas das questes que apareceram durante minha trajetria de participao poltica esto colocadas nesse trabalho. Tais incmodos, reflexes e indagaes, ao mesmo tempo em que expressam minha trajetria de vida no universo do dissenso, expressa tambm o desejo ntimo de entender por

onde passam os sinais e pistas das grandes e pequenas transformaes, entender onde e como se constroem possveis sadas, entender quais caminhos as utopias e perspectivas emancipatrias tm trilhado, tm se constitudo etc. Na grande maioria das vezes, coloco-me na posio de um observador que procura estar atento e racional ao que surge, ao que ainda est subterrneo, e perspectivando o que ainda pode surgir. Por outras vezes, estou imerso, apaixonado, opinando, conflitando, agindo junto a outros militantes e ativistas. Acredito que vocs, leitores, iro perceber no texto dessa dissertao a presena dessas duas dimenses: a do observador-analista e a do ativista! O ato de observar no um ato neutro, ingnuo, totalmente subjetivo ou intuitivo. O ato de observar carregado de intencionalidades e escolhas. Nesse sentido, vocs podero perceber, em alguns momentos especialmente os participantes da Praia da Estao que vierem a ler esse trabalho a clivagem para algum lado em detrimento de outro, o privilegiamento de determinadas questes e temas, a busca em valorizar determinados aspectos etc. Nem sempre esse movimento foi intencional ao longo da escrita. A histria descrita, narrada e analisada nesse trabalho, por mais que tenha a intencionalidade de se aproximar da realidade, apenas um ponto de vista parcial, uma forma de interpretar. De qualquer maneira, espero que o observador-analista tenha prevalecido sobre a figura do ativista, que a imparcialidade tenha prevalecido sobre as inclinaes pessoais. A escolha da Praia da Estao como objeto de estudo no se deu de forma imediata. Pelo contrrio. Antes de escolhermos a Praia da Estao, percorremos um longo percurso com o esprito de identificar novos agenciamentos coletivos juvenis e movimentaes sociais na cidade de Belo Horizonte. Alguns desses agenciamentos coletivos e movimentaes eram por ns conhecidos de alguma forma, outros pouco conhecidos e outros tantos tnhamos grande curiosidade em conhecer. Percorremos ocupaes urbanas, espaos libertrios, crculos de debates e estudos anarquistas organizados nesses espaos, eventos veganos e alternativos, eventos e encontros de movimentos sociais, bicicletadas, shows punks, apresentaes de freak-show, praias na praa da Estao, duelo de Mcs no centro da cidade etc.2 Descobertas, desejos, encontros e opes em aberto compuseram esse caminho. Por fim, escolhi a Praia da Estao por ela, de alguma forma, ser entendida por mim como uma espcie de sntese da contestao social juvenil em Belo Horizonte em determinado momento. Intua naquele momento que a partir da Praia da Estao, e pela Praia da Estao, passou, em algum instante,

2

Ao longo do trabalho irei trazer notas explicativas sobre cada um desses termos.

toda a cena contestatria juvenil da capital das Alterosas. Feita a escolha, procuramos mergulhar o mais fundo possvel nesse mar revolto de Belo Horizonte. No momento em que escolhemos a Praia da Estao como objeto de estudo, a mesma j no mais acontecia na praa da Estao. No momento de nossa escolha, a movimentao praieira se dava atravs do blog e lista de e-mails Praa Livre BH, assim como atravs de seus desdobramentos, como, por exemplo, o carnaval de rua e o Movimento Fora Lacerda em Belo Horizonte. Ainda que tivssemos participado da Praia da Estao, em alguns momentos j com o olhar interessado do pesquisador, no perodo em que transitvamos pelas possibilidades de escolha do objeto de estudo, tal situao no nos autoriza a dizer que realizamos com rigor uma metodologia do tipo observao participante. As observaes que realizamos da Praia da Estao foram, portanto, realizadas em um momento exploratrio da pesquisa. Certamente, nosso trnsito pela Praia da Estao ofereceu-nos elementos e dados que muito contriburam para esse trabalho, mas no podemos dizer que essa foi a forma central de realizao da pesquisa. Para alm dessas observaes exploratrias, a pesquisa foi realizada atravs da imerso no blog e na lista de e-mails Praa Livre BH, da imerso em diversos outros ambientes virtuais em que apareciam (e ainda aparecem!) a Praia da Estao. Foram tambm fontes de pesquisa para a realizao desse trabalho: material audiovisual de debates que envolveram a praa da Estao e onde participaram os jovens da Praia da Estao, como, por exemplo, o debate realizado na TV Cmara entre o poder pblico e um integrante da movimentao; udio e vdeo da audincia pblica sobre o decreto que proibia eventos de qualquer natureza na praa; vdeo do evento Juventude Okupa a Cidade com os movimentos juvenis de Belo Horizonte; vdeos e imagens espalhados em diversos sites. Realizamos, ainda, sete entrevistas com jovens que participaram da Praia da Estao. Entendemos que essa imerso nos ambientes virtuais realizada com fins de pesquisa pode ser definida como etnografia (AMARAL, NATAL, VIANA, 2008), uma espcie de etnografia virtual da Praia da Estao e de seus sujeitos. A lista de e-mails, o blog Praa Livre BH, os vdeos da Praia da Estao postados no youtube e outros sites de hospedagem de vdeos os sites de fotos e imagens da Praia da Estao, os diversos blogs e sites onde aparece a Praia da Estao representaram a existncia virtual da Praia da Estao, bem como podem ser entendidos como o repositrio memorial da movimentao. Todas essas fontes de pesquisa oferecem ao pesquisador possibilidades mltiplas de uma aproximao

detalhada da Praia da Estao. Ao longo do trabalho o leitor perceber a importncia da Internet para a movimentao e, conseqentemente, para a realizao dessa pesquisa. Foram entrevistados sete jovens participantes da Praia da Estao com variao etria, sendo cinco homens e duas mulheres. As entrevistas serviram para o aprofundamento de questes a respeito da Praia da Estao histria da movimentao, conflitos internos, motivaes, aprendizados, dentre outras. Os critrios para escolha dos entrevistados foram os seguintes: nvel de envolvimento com a Praia da Estao tempo e intensidade da participao; experincias prvias de participao de cada entrevistado. Ou seja: procurei entrevistar jovens com graus distintos de experincia participativa anterior Praia da Estao; tipo de experincia prvia de participao, se em coletivos culturais, coletivos libertrios, movimentos sociais etc. Esse critrio nos ajudava a compreender as posies e discursos dos entrevistados, grau de reconhecimento do participante no interior da movimentao. Procurei entrevistar jovens com graus distintos de reconhecimento e socializao no interior da Praia da Estao, entrevistar jovens que variaram entre figuras reconhecidamente pblicas e figuras annimas. As entrevistas foram realizadas a partir de um roteiro prvio de questes, mas foram conduzidas livremente com o objetivo de extrair dos depoimentos as questes que desejvamos saber da maneira mais natural possvel. A seleo dos entrevistados se deu por nossas observaes exploratrias, por indicao dos participantes da Praia da Estao e pela observao da lista de e-mails Praa Livre BH. O grande volume de material sobre a Praia da Estao colocou para mim a necessidade de grande esforo de categorizao e anlise dos dados. A lista de e-mails e o blog Praa Livre BH ofereciam o registro e a memria de toda a movimentao, bem como me permitia aproximar, detalhadamente, de muitos aspectos da Praia da Estao. Pensei, de incio, em produzir uma anlise a partir da histria da Praia da Estao. Nesse momento inicial, eu pretendia realizar uma anlise que fosse percorrendo detalhadamente a histria da movimentao praieira em todo o ano de 2010. A perspectiva era totalizante e de difcil realizao com o tempo de que eu dispunha para a produo do trabalho. Optei, ento, em fazer uma anlise a partir de eixos temticos origens, ciberativismo, movimentos sociais e questo urbana que me permitissem articular a anlise dos dados com o dilogo tericoconceitual. Um primeiro passo do trabalho foi o de categorizar todo o material do blog e lista de e-mails Praa Livre BH de janeiro de 2010 a junho de 2011. Foram categorizados cerca de 4.000 mensagens da lista de e-mails e um nmero bastante grande de posts que abarcavam todo esse perodo. Nosso intuito com essa categorizao foi o de classificar as mensagens e

posts em consonncia com os eixos temticos de anlise que elencamos acima. Categorizamos as mensagens e os posts a partir dos seguintes eixos: 1. Praia da Estao Todos os tpicos que se referiam s seguintes questes: organizao, mobilizao, propostas de ao, debates internos, relatos, manifestos, cartas, textos e indicao de links e referncias relativas Praia da Estao. 2. Cidade Todos os tpicos que se referiam questo urbana: conflitos com a administrao e poltica municipais (avaliao dos atos e aes da prefeitura, avaliao da conduo de polticas pblicas, avaliao de polticas implementadas, denncias de corrupo etc.); problemas vrios da cidade de Belo Horizonte (mobilidade, moradia, meio-ambiente, sade, educao etc.); produo do espao urbano (grandes construes, conflitos diversos), mega-eventos e a transformao da cidade (impactos da Copa do Mundo), cotidiano da cidade (uso dos espaos pblicos, represso policial etc.). 3. Movimentaes sociais em Belo Horizonte Todos os tpicos relativos a movimentaes sociais na cidade e relacionados problemtica urbana. Dentre essas movimentaes e movimentos sociais, destacamos as Brigadas Populares, Bicicletada, intervenes urbanas diversas, Escola de Samba Cidade Jardim, mobilizaes contras as polticas da prefeitura cancelamento do FIT, por exemplo, Duelo de McS, dentre outros. 4. Movimentos sociais gerais Divulgao e, algumas vezes, discusso sobre toda a sorte de movimentaes, intervenes urbanas, coletivos contraculturais, movimentos sociais etc., no Brasil e no mundo. 5. Outros Todos os tpicos que no se enquadravam nas categorias anteriores e que apresentavam uma variedade de assuntos que no se relacionava diretamente com o contexto da Praia da Estao: divulgao de shows e eventos culturais, propaganda poltica principalmente quando o perodo eleitoral se aproximou correntes, mensagens de auto-ajuda, notcias polticas do Brasil e do mundo, textos vrios (acadmicos, polticos, artigos de jornal e revistas), spams vrios.

As entrevistas, igualmente, foram analisadas a partir desses mesmos eixos temticos. Nesse sentido, procuramos captar nos depoimentos as seguintes questes: a histria da movimentao; organizao interna, economia de poder interno, dinmica das relaes e conflitos no interior da Praia da Estao; motivaes dos participantes, questes relacionadas ao uso da Internet e ciberativismo; questes relacionadas temtica urbana e ao poder

municipal; e, por fim, os significados da experincia de se participar da Praia da Estao e a dimenso do aprendizado advindo dessa participao.

Organizao das partes

Alm dessa introduo, o trabalho est dividido em trs partes, cada qual contendo tpicos. Na Parte I Praia da Estao: Primeira aproximao e uma busca pelas origens, feita uma primeira apresentao da Praia da Estao no tpico Fragmentos praieiros Uma primeira aproximao Praia da Estao. No Prlogo fizemos um histrico analtico do que consideramos ser os marcos delineadores das formas de ser da contestao juvenil contempornea, especificamente os movimentos antiglobalizao, anticapitalistas e a Ao Global dos Povos (AGP), surgidos em fins do sculo XX e incio do sculo XXI. Procuramos partir desse contexto global a fim de identificar as possveis influncias exercidas pela onda contestatria global (especialmente a AGP) para o surgimento e fortalecimento de agenciamentos coletivos contestatrios juvenis no Brasil: iniciativas, movimentaes e coletivos libertrios. Apoiamo-nos em autores que analisaram essas novas configuraes da contestao social global, tais como Chomsky (2004), Chrispiniano (2002), Feixa (1998), Liberato (2006), Seone e Taddei (2001), e em autores que analisaram a influncia desse contexto nas formas de ser do ativismo juvenil brasileiro, tais como Freire Filho (2007, 2008), Sousa (2002, 2004), Ortellado, Ryoky (2004). Por fim traamos um rpido histrico dos coletivos libertrios influenciados por esse contexto global de contestao social em Belo Horizonte na primeira dcada dos anos 2000, procurando demonstrar de que modo esses coletivos influenciaram o surgimento da Praia da Estao. Identificamos que, a partir de meados da dcada dos 2000, a questo urbana emerge como uma das preocupaes centrais de uma parcela de jovens ativistas e que essa preocupao aparece como uma das questes centrais da movimentao praieira. Nosso objetivo no Prlogo foi o de buscar possveis origens tanto a respeito da forma de ser da movimentao praieira, de suas principais caractersticas, quanto s origens de seu surgimento em Belo Horizonte. J na Parte II - Uma Praia nas Alterosas, o mar revolto de Belo Horizonte, fizemos um exerccio de decomposio da Praia da Estao com o objetivo de captar as malhas constitutivas da movimentao, suas relaes internas e formas de interao, suas caractersticas fundamentais, sua composio heterognea, suas motivaes e razes de ser,

seus limites e potencialidades. Iniciamos traando um breve histrico da Praia da Estao e, depois, procuramos analis-la em quatro momentos interdependentes. No tpico Da praa para a rede, da rede para a praa. A praia ciberativista, analisamos a Praia da Estao a luz dos conceitos de ciberativismo, cibercultura e sociedade em rede; no tpico Vrias ondas em uma mesma Praia, analisamos a heterogeneidade e multiplicidade da Praia da Estao, os diversos grupos que compuseram a movimentao, os conflitos internos, a afirmao do poder fazer dos participantes praieiros, os aprendizados e a afirmao das individualidades no interior da movimentao a partir do dilogo com autores que tratam dos movimentos sociais contemporneos como Melucci (1999, 2001). No tpico Praia da Estao, a cidade e o poder municipal. A emergncia da questo urbana, interpretamos a Praia da Estao enquanto uma movimentao social que procurou tornar visvel problemas, conflitos e questes relacionados cidade e ao poder municipal. A partir da movimentao praieira, apontamos para o surgimento de novas necessidades urbanas trazidas pelos jovens ativistas. Procuramos dialogar com autores que analisam de forma crtica a temtica urbana na contemporaneidade, como Arantes (2000), valendo-nos de conceitos como cidade-mercadoria, cidade-empresa e cidade do pensamento nico. Por fim, na Parte III - Quando eu voltar do mar um peixe bom eu vou trazer tecemos consideraes finais, procurando sintetizar nossas descobertas e indicar possveis caminhos e desdobramentos para futuros estudos. No Eplogo abordamos os desdobramentos da experincia da Praia da Estao em Belo Horizonte a partir do surgimento de novos agenciamentos e novas movimentaes. Dito isso, desejo uma boa leitura do texto, uma boa navegao pelo mar revolto de Belo Horizonte. Para os jovens ativistas e militantes de uma maneira geral espero que o texto cumpra o papel de despertar reflexes. Ao leitor com interesse acadmico e cientfico, espero que o texto cumpra o papel de contribuir com o avano do conhecimento no campo de estudos sobre as movimentaes sociais contemporneas. Ao leitor hbrido, acadmico e ativista, espero que o texto cumpra esse duplo papel. Boa leitura!

PARTE I Praia da Estao Primeira aproximao e uma busca pelas origens.

1 Fragmentos praieiros Uma primeira aproximao do leitor Praia da Estao

Fragmento I Texto retirado do blog Cisco __________ No ltimo sbado, 16 de janeiro de 2010, um grupo de pessoas em trajes de banho se reuniu na Praa da Estao, centro de Belo Horizonte, para curtir um dia ensolarado na cidade. Espao revitalizado na dcada de 2000, o local que por muitos anos serviu de estacionamento para veculos recebeu diversas melhorias destinadas sua populao, como modernas fontes que saem do cho formando colunas dgua. A princpio nada demais, no mesmo? Numa cidade que no possui praias, uma praa que dispe de uma vasta rea, com a presena de fontes, parece ser uma boa alternativa para aqueles que em pleno vero gostariam de curtir o sol e se refrescar. Mas a histria no termina a... na verdade ela s comea assim. Essa reunio de banhistas que at poderia ser normal no dia a dia da cidade aconteceu aps a publicao de um decreto do prefeito de Belo Horizonte proibindo a realizao de eventos de qualquer natureza na Praa da Estao. Fazer da praa a Praia da Estao foi a forma que alguns moradores encontraram para, alm de curtir um dia de sol, mostrar que no a partir de normas outorgadas sem qualquer tipo de debate que os espaos pblicos da cidade se constroem. No inusitado dia de praia teve de tudo, mostrando a pluralidade da manifestao e das pessoas que resolveram aderir ao chamado annimo que rolou pela internet e pelo boca a boca. Com a mistura dos instrumentos levados pela galera, dentre os quais se via desde trompete at tambores, rolou muita msica, do ax ao maracatu. Os participantes no se esqueceram dos apetrechos, teve guarda sol, toalha, peteca, frescobol e, claro, a indispensvel farofa! Muito filtro solar foi necessrio para combater o sol numa praa feita para o povo estar, mas inexplicavelmente destituda de sombra. Mas o calor no assustava os manifestantes, pois como todo dia acontece, as fontes seriam abertas s 11 horas da manh... seriam... pois segundo os responsveis... as colunas dgua que foram acionadas sem problemas na sexta-feira (como eu mesmo pude atestar), passavam por manuteno. Mas como a diverso no pode parar, no seria nem um decreto de um prefeito binico, nem um problema tcnico que iria acabar com a diverso do belo-horizontino que resolveu curtir o dia de sol na Praia da Estao. A galera se organizou e levantou uma grana para contratar um caminho-pipa.

Enquanto a gua no chegava, rolou muita diverso, com msica e brincadeira. Deu tempo at para fazer um debate legal sobre o que significava tudo aquilo. Sobre o decreto do prefeito e sua insero num contexto maior de controle, vigilncia e afastamento das iniciativas populares das reas pblicas, notadamente do centro da cidade. Foi bem legal ver em meio a toda a diversidade de pessoas que ocuparam a Praia da Estao, diferentes percepes do processo de controle que Belo Horizonte vem sofrendo. Muito foi dito, falou-se na similaridade desse fenmeno com o que se observa em outras grandes cidades brasileiras, notadamente os casos do centro de So Paulo e da regio do Cais do Porto no Rio de Janeiro. Levantou-se a bola sobre a questo da Copa de 2014 e de todo um processo de vigilncia e higienizao da cidade em funo do mega-evento. O dia a dia da capital mineira e das outras manifestaes culturais que ocupam as ruas e que esto igualmente em risco tambm foi assunto do debate. Muito ainda ficou por se falar. Aquela foi uma conversa que no se iniciou ali e muito menos ali teve seu fim. Depois de tanto sol, msica, bate-papo e farofa... s faltava mesmo a gua. E se as autoridades competentes no puderam proporcionar o que o povo queria, coube ao povo assumir as rdeas e levar a gua onde ele estava. A chegada do caminho-pipa completou o grande sbado em que a Praa da Estao se converteu em Praia da Estao. Os banhistas puderam finalmente se refrescar. O pessoal se divertiu a valer. At quem tava no ponto de nibus aproveitou a mangueirada para espantar o calor. Todo mundo se confraternizando debaixo do chuveiro e mandando vrios recados. A polcia foi convidada a aderir: Ei, polcia, a praia uma delcia ou Tira a farda brim, bota o fio dental, polcia voc to sensual. O prefeito e a no ligao da fonte tambm foram lembrados: Ei, Lacerda, liga essa merda!. Mas nem a canetada do alcaide, nem a no ligao da fonte estragou o sbado de sol e a galera mandou o recado: Praia da Estao, a nova onda do vero. Alm de sugerir: Praia da Estao: toda semana!. Ser?3(Disponvel em http://ciscobh.blogspot.com.br/2010/01/praia-da-estacao-nova-onda-do-verao.html. Acesso em 24.03.2011)

Fragmento II Texto de notcia retirada do jornal Hoje em Dia __________ Belo Horizonte no tem mar, mas j no possvel dizer que no tem praia. Pelo segundo sbado consecutivo, a Praa da Estao palco de uma divertida manifestao e se transforma em uma grande praia de concreto, com direito a biqunis, cerveja, esteiras, cangas, bias e at uma rodinha de samba e capoeira. A manifestao vem contestar o decreto municipal n13.798 de dezembro de 2009, que probe a realizao de eventos de qualquer natureza no local. No incio da tarde de ontem, cerca de 200 manifestantes,3

Os trechos sublinhados so links na pgina digital do blog. Ao longo do trabalho, por opo editorial, eventualmente mantivemos o tipo de fonte que aparece no texto dos sites, wikis e blogs, com o fim de destaclos do texto da dissertao.

formados principalmente por artistas e estudantes universitrios, invadiram a Praia da Estao para reivindicar o direito de usar livremente o local. A manifestao, que surgiu a partir de um e-mail que ningum diz saber a autoria, que circulou nas ltimas semanas, pretende contestar o decreto do prefeito Marcio Lacerda. Ningum sabe quem teve essa idia, uma manifestao sem lderes. Acho que podemos dizer que quem comeou com tudo foi o Lacerda, brinca um dos manifestantes, que no quis se identificar. Eu acho superimportante esse tipo de mobilizao e acho que o poder pblico tem como garantir a utilizao desse espao e mesmo assim garantir a preservao do patrimnio, diz a advogada Nuria Bertachini, 30 anos. Os manifestantes tambm estavam assinando um abaixo-assinado, que dizia que ao impedir a realizao de eventos e atividades culturais e de lazer na praa, o decreto contraria a Constituio da Repblica. Segundo os manifestantes, caso a prefeitura no repense o decreto, a Praia da Estao deve continuar. A gente no tem nenhum lugar para fazer show em uma rea aberta como esta aqui em Belo Horizonte. Todo mundo que tem um mnimo de conscincia vai abraar essa idia, espera a estudante de Arquitetura da UFMG, Dbora Dias, 23 anos. O movimento est persistindo. A gente est aqui para ocupar, mostrar a nossa cara, e deixar claro que no concordamos com esse absurdo, conta Jonnatha Horta, 29 anos. De acordo com informaes da assessoria de imprensa da PBH, no h nenhuma mudana prevista no decreto, que uma forma de garantir a preservao do patrimnio. A assessoria no soube informar por que a fonte da praa no estava ligada ontem. Na ltima semana, de acordo com o secretrio de Administrao Regional Centro-Sul, Fernando Cabral, a fonte no foi ligada porque estava em manuteno. Ironicamente, a fonte funcionou normalmente durante a ltima semana e s foi desligada no sbado. Para suprir a falta da gua da fonte, os manifestantes prometem fazer uma vaquinha para pagar um caminhopipa, como ocorreu no ltimo sbado. A chegada do caminho estava prevista para s 15 horas. Apenas um incidente quase colocou em risco o carter pacfico da manifestao. O artista Mauro Xavier, 50 anos, levou um barco de cerca de cinco metros para a praia de concreto, mas foi impedido de entrar na praa pela Guarda Municipal, que considerou que a presena de um barco no local contraria o Cdigo de Posturas do municpio. Os manifestantes consideraram levar o barco para a praia fora, mas desistiram da idia para no acabar com o carter pacifico da manifestao. (Jornal Hoje em Dia 23/01/2010)

Os dois fragmentos acima descrevem as duas primeiras Praias da Estao que ocorreram em janeiro de 2010. Um decreto da prefeitura proibindo a realizao de eventos de qualquer natureza na praa da Estao, em Belo Horizonte, e um chamado annimo, que circulou pela Internet convocando um protesto festivo em fins de 2009 e incio de 2010, provocaram uma onda contestatria em um dos principais espaos pblicos do centro de Belo Horizonte. De forma criativa, irnica, carnavalesca e organizada, e mobilizada atravs da Internet de forma horizontal e espontnea, a Praia da Estao deu visibilidade para o debate pblico a respeito dos espaos pblicos, a respeito do desenvolvimento da cidade e a respeito

do poder municipal. O incio do vero daquele ano foi o cenrio para essa ebulio inesperada de jovens ativistas, artistas, produtores culturais, militantes sociais e pessoas, em sua grande maioria jovens, que, de alguma forma, perceberam naquela nascente experincia uma forma de protestar e contestar os rumos da cidade e da poltica governamental no municpio. A onda praieira de Belo Horizonte reverberou pela cidade atravs das novas redes de comunicao e informao, atravs da imprensa seja ela considerada alternativa ou tradicional provocando espanto, admirao e surpresa. A apario da Praia da Estao despertou os mais diversos interesses e reaes nos mais diversos setores e segmentos sociais. Para os antenados nas movimentaes sociais (esquerda partidria, movimentos sociais, universitrios e acadmicos de um modo geral, alguns jornalistas, artistas, alternativos, ativistas etc.), a visibilidade daquele fenmeno foi, para alguns, quase que imediata, ou, para outros, foi chegando aos poucos, atravs do boca-a-boca, pelos comentrios, encontros e conversas. Nesses meios sociais, era raro no conhecer algum que no estivesse presente ou que no tivesse ouvido falar da tal praia. De maneira geral, os relatos e as falas dos que estiveram presentes nos primeiros sbados de praia na praa da Estao durante janeiro, ou dos que ouviram falar desses mesmos sbados, variavam entre as atitudes de entusiasmo, ponderao, crtica e desdm. Ainda mesmo que genericamente poderamos dizer que, inicialmente, os setores cultural, underground, bomio-ativista, estudantes universitrios e ativistas libertrios mais jovens receberam e participaram da novidade com entusiasmo. Punks, anarquistas de outras geraes, intelectuais/acadmicos e militantes de movimentos sociais, oscilaram entre o julgamento ponderado percebendo limites e potencialidades naquela movimentao e o julgamento crtico o mais comum deles era avaliar que a Praia da Estao era uma movimentao de jovens oriundos das camadas mdias sem contedo social radical. A esquerda partidria, de modo geral excetuando-se algumas juventudes dos partidos de esquerda que tentaram no incio alguma aproximao com a Praia da Estao percebeu aquilo que acontecia com certo desdm; em parte por compartilharem a crtica da origem social dos participantes, e em parte pela negao intrnseca que os participantes da movimentao nutriam a respeito dos partidos posio essa que, conseqentemente, de certa forma minava os objetivos mais comuns da esquerda partidria junto s movimentaes sociais, qual seja: conquistar espao poltico e recrutar militantes. Ao longo do desenvolvimento da movimentao e medida que a repercusso da mesma aumentava na cidade, as atitudes variavam entre os diversos setores antenados em movimentaes sociais: setores crticos percebiam certo potencial na movimentao, setores

entusiasmados passavam a uma atitude crtica inclusive internamente movimentao, como iremos destacar ao longo do trabalho e na esquerda partidria, para alguns persistiu o desdm, enquanto para outros o desdm se transformou em atitude de apoio etc. Pensando numa escala maior qual seja: a repercusso que a Praia da Estao obteve ante a populao belorizontina poderamos dizer que, num primeiro momento, a repercusso no parece ter sido muito grande, mesmo considerando a repercusso miditica que obteve. medida que as diversas vozes da Praia forem se manifestando nessa dissertao, apontaremos algumas razes possveis para a natureza limitada do dilogo da Praia da Estao com o conjunto da populao naquele momento. De qualquer forma, em uma dimenso microlocal a da parcela da populao de Belo Horizonte que circulava e habitava a praa da Estao naqueles sbados de vero no mnimo poderamos dizer que aqueles jovens trajados em roupas de banho com seus apetrechos, adereos, cartazes e faixas no passaram despercebidos. Os olhos do cotidiano certamente assistiram as cenas praieiras com espanto e curiosidade. As pessoas que saam da estao central do metr e desviavam seus olhares para a Praia, as pessoas nos pontos de nibus que, por um momento, tambm desviavam o olhar dos coletivos que elas esperavam, os transeuntes, que ora diminuam os passos, ora desviavam a rota para vislumbrar a cena inusitada, os freqentadores que saam na porta dos bares admirando o que se passava, a populao de rua, que percebia e assistia algo novo e inesperado acontecendo na regio, ou seja, todos que passavam por ali em dias de Praia da Estao, de certa forma foram surpreendidos pelo que acontecia. E nessa dimenso, a da parcela da populao que presenciou diretamente as praias de sbado naquele pedao de centro urbano, que podemos dizer, certamente, sobre a repercusso da movimentao para alm do que definimos como antenados. O poder pblico, na figura da Prefeitura de Belo Horizonte, parecia no entender a dimenso daquela festa-protesto. Parecia no entender justamente a escolha do alvo, o prefeito Mrcio Lacerda, e tampouco as razes para tamanha contestao. S por um decreto? S por uma praa?, perguntavam as foras polticas que ocupavam o executivo municipal. As respostas procuradas apontavam para direes muitas das vezes equivocadas. Mais fcil e cmodo foi entender o que se passava como conspirao e insubordinao da oposio. Como era possvel para o poder municipal dizer algo diferente naquele momento? Os limites da compreenso a respeito da Praia da Estao por parte do poder municipal pareciam, por um lado, dizer-nos a respeito da prpria miopia da poltica, ou seja, a procura pelas respostas sobre o que seria a Praia da Estao na dimenso interna da poltica, ao invs

de procurar entender o que estava realmente em jogo de forma socialmente mais ampla; e, por outro lado, revelava-nos novamente o sentimento de espanto frente ao que acontecia. O certo que a apario de algo inusitado como a Praia da Estao parece ter sacudido de alguma forma o cenrio de movimentaes sociais na cidade e o prprio entendimento dessas movimentaes. Mas se a Praia da Estao no surgiu e nem foi alimentada por uma articulao da oposio poltica ao prefeito como entendiam as foras polticas do Executivo Municipal e se no esteve ligada diretamente s foras de esquerda tradicionalmente protagonistas das movimentaes sociais, como podemos entender o surgimento da Praia da Estao? A que ordem de fenmenos poderamos conectar essa movimentao entendida como inusitada na cidade de Belo Horizonte? Somente o decreto do prefeito Mrcio Lacerda sobre o uso da praa da Estao, ou somente a reao ao mesmo decreto, explicam o surgimento de uma movimentao como a Praia da Estao? Como explicar a forma que assumiu a movimentao assim que surgiu horizontal, organizada e mobilizada pela Internet, autnoma, festivo/carnavalesca etc.? O que pode nos dizer a respeito dos movimentos juvenis contemporneos tal movimento? O decreto do prefeito Mrcio Lacerda e a forma como foi publicado certamente so questes de primeira ordem para entendermos o surgimento da Praia da Estao. O que o decreto significava em termos de mudana de relao entre o poder executivo municipal e a populao, ou seja, a falta de dilogo da prefeitura com a populao e a forma pouco democrtica de governar certamente foram razes fortes para explicar a irrupo da movimentao praieira. Mas entendemos que esses fatores por si s deixam em aberto questes cruciais para compreendermos a Praia da Estao. No explicam a forma que a movimentao assumiu, no explicam a dimenso dos questionamentos, nem tampouco os processos subterrneos que, de certa forma, sustentaram o surgimento da movimentao. As razes que levaram essa movimentao a assumir a forma e o contedo que assumiu, no nosso modo de entender devem ser explicadas no somente pelos fatores que se apresentavam no presente momento do seu surgimento, e sim pela busca por processos que apontem para uma possvel gnese das formas de ser da contestao social juvenil na cidade de Belo Horizonte. Como diremos ao longo do Prlogo dessa dissertao, esses processos de constituio das movimentaes juvenis em Belo Horizonte possuem razes no contexto contemporneo das movimentaes sociais juvenis movimentos antiglobalizao e emergncia dos coletivos libertrios. esse nosso objeto de anlise.

Para desenvolver essa pesquisa, optamos, ento, por traar um panorama, em um nvel mais geral, do contexto contemporneo da contestao social, procurando identificar elementos e caractersticas que possam nos auxiliar na compreenso de um fenmeno social como a Praia da Estao. Em um nvel mais especfico, procuramos perceber algumas razes pouco visveis e/ou subterrneas que sustentaram de alguma forma, no nosso modo de ver, o surgimento dessa movimentao em Belo Horizonte. Ou seja: nossa anlise inicial sobre a Praia da Estao procurou articular as dimenses do especfico e do geral, ou do local e do global, a fim de compreender a que ordem de fenmenos sociais nosso objeto de pesquisa poderia estar conectado. Ao buscar a gnese da Praia da Estao, nosso objetivo foi o de tentar compreender melhor ...............

2 PrlogoQuem imaginaria que, exatamente no momento em que o Poder estava mais certo de que vencera a tudo e a todos, eles apareceriam? E eles vieram, no como um grupo de bolcheviques, mas como muitos blocos de carnaval, para estragar a festa do dinheiro.Trecho do texto de abertura do livro Urgncia das Ruas: Blak Block, Reclaim the Streets e os dias de ao global4

No final da ltima dcada do sculo XX e incio da primeira do XXI, o fenmeno dos protestos de rua contra a ordem social capitalista conhecidos como movimentos antiglobalizao, antimundializao, resistncia global ou anticapitalistas trouxeram a tona a figura do jovem como protagonista central das aes coletivas de natureza poltica e de contestao social.5 Entre os anos de 1998 e 2001 ocorreram os maiores conflitos de rua no mundo ocidental desde maio de 1968 (LIBERATO, 2006).6 Iremos nesse prlogo abordar de forma resumida esse recente histrico de movimentaes sociais com o objetivo de ressaltar o que, para ns, parecem expressar os marcos originrios das formas de ser dos

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Ver LUUD, 2002. Refiro-me ao movimento antimundializao conforme Seoane e Taddei (2001), ou antiglobalizao, como ficou conhecido atravs da mdia. J a expresso anticapitalista a mais utilizada como auto-referncia dos prprios grupos e movimentos participantes das aes surgidas nesse contexto. Optaremos por utilizar as expresses antiglobalizao e anticapitalista por terem sido, talvez, as expresses que tenham marcado o imaginrio coletivo sobre esses fenmenos de contestao social. Outra razo para optarmos pela expresso antiglobalizao ao invs de antimundializao por a mesma, em nosso entendimento, representar de forma mais real a posio concreta de tais movimentos a respeito do processo de mundializao contemporneo: no se colocam contrrios a todo e qualquer processo de mundializao e sim ao processo de globalizao delineado pela lgica da produo da existncia humana em um mundo regido pelo capital. (LUDD, 2002) 6 No desconhecemos as movimentaes sociais que se passam no mundo no exato momento em que escrevemos esse trabalho. Nos anos de 2011 e 2012, o mundo viu surgir movimentaes de grande visibilidade global Primavera rabe, Acampadas, 15 M, 15 O, as mobilizaes de jovens e trabalhadores na Grcia Occupy Wall Street e a Revoluo dos Pingins, como ficaram conhecidas as mobilizaes dos estudantes chilenos que se estenderam de forma epidmica com repercusses em todo o globo, inclusive no Brasil. Esses processos de contestao social mais recentes surgidos em um contexto de crise econmica profunda nos pases desenvolvidos ainda no podem ser medidos em termos de alcance e potncia de seus desdobramentos. Optamos por manter como referncia de grandes mobilizaes/protestos globais os acontecimentos de fins do sculo XX e incio do XXI. Sobre os protestos e mobilizaes mais recentes ver: David HARVEY et al. Occupy. So Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2012. HARVEY, David; IEK, Slavoj; ALI, Tariq. et al. Occupy. Movimentos de protestos que tomaram as ruas. So Paulo: Boitempo Editorial, 2012. 88 p.

movimentos contemporneos de contestao social protagonizados por jovens e suas principais caractersticas. Nesse sentido, a descrio dos acontecimentos ser feita de forma panormica e genrica, sem a inteno de maiores aprofundamentos. H toda uma literatura recente que se debrua sobre movimentos antiglobalizao e suas conseqncias que nos subsidiar em nossas anlises. Podemos afirmar que essa onda contestatria global contempornea tem como um de seus marcos fundadores o levante armado popular em Chiapas em 1994, protagonizado pelo Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (EZLN).7 Aps a queda do Muro de Berlim em 1989 e do bloco socialista de maneira geral, os zapatistas apareciam, ento, como um dos primeiros movimentos com visibilidade global que colocava em xeque a existncia humana sob a gide do capital e que comunicava ao mundo a necessidade de superao da ordem vigente. (CECENA, 2001)8 Ao se posicionar radicalmente contra o acordo comercial que o Mxico celebrara com os Estados Unidos em 1994 o Tratado Norte-Americano de Livre Comrcio (NAFTA) e contra o conjunto de polticas e de orientaes econmicas que ficou conhecido com o termo neoliberalismo, o EZLN trazia elementos simblicos, prticas, aes e concepes que influenciavam indivduos, grupos, coletivos e movimentos contestatrios em todo o globo.9 A insgnia rebelde YA Basta! lanada pelos zapatistas desde as montanhas de Chiapas ecoou no mundo ocidental, inspirando a criao de redes anticapitalistas em diversos pases europeus por parte de jovens ativistas urbanos.10 Esse grito de basta11 expressava crticas crtica aos7

O levante zapatista de 1994 e as concepes organizativas, prticas e tericas inauguradas pelo EZLN exerceram influncia direta sobre grupos, movimentos e coletivos que vieram a protagonizar, no final dos anos 1990 e incio dos 2000, os protestos antiglobalizao e anticapitalistas (CHRISPINIANO, 2002; LIBERATO, 2006; ORTELLADO, RYOKY, 2004; SEONE e TADDEI, 2001). Um exemplo dessa influncia o documento escrito por uma organizao italiana influente nas movimentaes antiglobalizao, os Tute Bianche, aps a participao em uma marcha zapatista que atravessou todo o Mxico em 2001. Esse documento foi publicado em portugus por Giuseppe Cocco e Graciela Hopstein (2002) 8 O EZLN talvez possa ser considerado um dos movimentos sociais do mundo que, de forma pioneira, tenha utilizado as novas tecnologias da comunicao e informao como estratgia poltica. Ao comunicarem ao mundo o que se passava nas montanhas mexicanas de Chiapas, os zapatistas efetivamente fizeram um uso poltico/estratgico da Internet. (GENNARI, 2005; SPYER, 2002) 9 Mais uma vez ressaltamos o poder de influncia que o levante zapatista no Mxico exerceu sobre uma numerosa parcela de movimentos, grupos, ativistas e jovens que promoveram os fenmenos de contestao social reunidos sob a alcunha de movimentos antiglobalizao. interessante anotar, por exemplo, que os comunicados dos zapatistas sobre a represso ao levante e a violao de direitos humanos no Mxico que circularam pela rede mundial de computadores, inspiraram a formao de comits de solidariedade majoritariamente compostos por jovens em diversos pases, inclusive no Brasil. Esses comits de solidariedade podem ser tambm entendidos como expresso desses novos agenciamentos coletivos juvenis e marcam, impulsionados pelo intercmbio global da comunicao e informao, o carter internacionalista das formas de contestao social contemporneas. (CHRISPINIANO, 2002; LIBERATO, 2006; ORTELLADO, RYOKY, 2004; SEONE e TADDEI, 2001) 10 Na Itlia, por exemplo, foi formada em 1994 uma rede anticapitalista com um nome de inspirao zapatista, a Associazone Ya Basta, que trabalhava, entre outras questes, com a temtica dos direitos dos imigrantes, e

sistemas democrticos representativos de maneira geral tal como eles se conformavam, crtica organizao dos sistemas econmicos locais e mundiais e crtica s prticas e concepes da esquerda tradicional12 bem como expressava novas configuraes organizativas e prticas para os agenciamentos de contestao social prticas da ao direta e da democracia direta, o princpio da horizontalidade e da no-hierarquia, o princpio da autonomia em relao a governos, empresas e atores vinculados ordem social capitalista (organizaes polticas tradicionais como partidos, sindicatos etc.), a prtica da autogesto, a recuperao da vocao internacionalista e da vocao para conformao de redes de solidariedade (caractersticas dos movimentos operrios dos finais do sculo XIX e do sculo XX), o uso da rede mundial de computadores para transmitir seus comunicados e denncias, e para criar redes de movimentos em todo o mundo etc. Esses so alguns elementos novos que o EZLN trazia consigo e que inspiraria todo um contexto contestatrio global a partir de ento, e especialmente os movimentos antiglobalizao. Sem a inteno de traar um histrico rigoroso do perodo que se seguiu ao levante zapatista e a conformao dos movimentos antiglobalizao, iremos apenas apontar referncias histricas que nos permitam entender o desenrolar dos acontecimentos e como os mesmos marcaram as formas de ser da contestao social contempornea, especialmente a influncia que os mesmos exerceram sobre culturas urbanas juvenis, especificamente as dos jovens engajados em diversos tipos de ativismo(s) em diversos pases do mundo.

que abrigou um dos principais grupos que protagonizou os protestos globais, os Tute Bianche, citado em nota acima. 11 Quando escrevemos ou lemos, fcil esquecer que no princpio no o verbo, mas o grito. Diante da mutilao de vidas humanas provocadas pelo capitalismo, um grito de tristeza, um grito de horror, um grito de raiva, um grito de rejeio: NO (HOLLOWAY, 2003, p.8) 12 Ao longo de todo esse trabalho, utilizaremos os termos esquerda tradicional ou esquerda clssica. Temos conscincia de que o campo poltico das esquerdas e os referenciais polticos e sociais que as sustentam passam por processos constantes de transformao e reconfigurao, especialmente no mundo contemporneo. Nem de longe nossa inteno esgotar esse complexo e denso debate a respeito das diferenas entre a esquerda tradicional e os movimentos de contestao social contemporneos. Por ora, o que estamos aqui procurando definir com os termos esquerda tradicional e esquerda clssica tm a ver com o conjunto de instituies e organizaes partidos polticos, sindicatos e movimentos sociais que de alguma forma se vinculam em termos tericos, prticos e de concepo com a corrente do bolchevismo sovitico, ou se vinculam, de alguma forma, com as experincias de tentativa de construo do socialismo no sculo XX que desembocaram no conhecido Socialismo Real. No nossa inteno, ainda, marcar um posicionamento de concordncia ou discordncia com as crticas feitas pelos zapatistas e movimentos antiglobalizao ao campo da esquerda tradicional, e sim procurar entender as conseqncias prticas e as repercusses que essas crticas produzem nesses mesmos movimentos, bem como os efeitos dessas crticas em toda uma gerao de ativistas surgida na primeira dcada dos anos 2000. De qualquer forma, fica anotado que a constituio dos fenmenos contemporneos de contestao social, passando pelo EZLN e pelos movimentos antiglobalizao, possui relao direta com uma atitude de reflexividade constantemente crtica ao campo da esquerda tradicional e das organizaes polticas tradicionais partidos, sindicatos etc. Iremos abordar essas questes ao longo do trabalho.

(CHRISPINIANO, 2002; LIBERATO, 2006; ORTELLADO, RYOKY, 2004; SEONE e TADDEI, 2001) Antes de continuar com esse breve histrico, importante aproximarmo-nos mais das relaes entre o processo de globalizao contempornea, as culturas juvenis e as formas de contestao da juventude. Ao vislumbrarmos, de qualquer ngulo, o processo globalizatrio atual, podemos perceber as tenses, contradies e complexidades que o perodo histrico da expanso sem limites do capital coloca para as configuraes societrias contemporneas. Podemos perceber as mutaes provocadas pela etapa histrica contempornea que aponta para novas dimenses configuradoras das formas de ser e existir no planeta, tanto em vista dos processos de individuao como das movimentaes sociais.(...) olhemos para o mundo real que habitamos, para facear a ns mesmos, mas em nossa configurao concreta de individualidades postas e expostas, moventes e movidas de uma histria que est desembocando na universalizao de um modo de ser e existir. evidente que estou apontando para o processo de globalizao. Somos, queiramos ou no, saibamos ou no, gostemos ou no, os homens desse processo, agentes e pacientes, beneficirios ou vtimas, somos e no podemos deixar de ser a humanidade presente no momento em que a lgica do capital cumpre sua lei mais essencial e imanente, cobrindo o planeta com sua face e com suas formas de vida, de um lado rebrilhante, doutro, para dizer o mnimo, inquietante. (CHASIN, J. Poder e Misria. Estado de Minas, Belo Horizonte, 7 out. 2000. Caderno Pensar, p.2.)

A partir das reflexes de Chasin, podemos perceber que as movimentaes antiglobalizao revelam, do visibilidade, questionam e se insurgem contra o que o autor chama de a face no mnimo inquietante do processo globalizatrio contemporneo. A questo que esse mesmo processo permeado de tenses e contradies possui, nas palavras de Chasin, uma outra face rebrilhante, face essa que pode ser entendida como responsvel pelo desenvolvimento dos meios materiais e de vida inclusive a globalizao das comunicaes que, de certa forma, conformam a existncia das prprias movimentaes e de seu questionamento. Ambas as faces, a rebrilhante e a inquietante da globalizao, conformam em permanente tenso as novas formas das culturas juvenis e conseqentemente das movimentaes sociais protagonizadas por jovens. No nosso modo de entender, a questo a se pensar justamente perceber que o processo de globalizao do capital oferece o mote para o surgimento de movimentos de contestao a suas dinmicas, como oferece tambm as bases materiais e subjetivas da existncia desses mesmos movimentos. E ainda: esse mesmo processo globalizatrio pode ser lido como o responsvel

pelo surgimento de culturas globais, de formas de interao e comunicao humanas globais etc. Nesse sentido, podemos afirmar que o mesmo processo de globalizao, questionado e contestado pelos jovens por ampliar e aprofundar as relaes capitalistas em todo o mundo, permite tambm, por outro lado, a existncia de trocas simblicas e de informao que delineia as culturas juvenis contemporneas e, como conseqncia, a relao dessas culturas,13 que o que nos interessa compreender ao abordarmos o cenrio mais amplo de contestao global. O movimento antiglobalizao, ou a globalizao da resistncia, possui sua razo de ser e existncia na prpria dinmica do processo de globalizao capitalista. Da os movimentos dizerem que nossa resistncia ser to global como o capitalismo (CHRISPINIANO, 2002, p.18). Esse processo de mundializao da resistncia encontra ressonncia nos processos globais de formao das culturas humanas, e especificamente das culturas juvenis. Feixa (1998) define as culturas juvenis em duas dimenses, uma mais ampla e outra mais restrita:En um sentido amplio, las culturas juveniles se refieren a la manera em que las experiencias sociales de los jvenes son expressadas colectivamente madiante la construccin de estilos de vida distintivos, localizados fundamentalmente en el tiempo libre, o en espacios intersticiales de la vida institucional. En um sentido ms restringido, definen la aparicin de microsociedades juveniles, com grados significativos de autonomia respecto de las instituiciones adultas, que se dotan de espacios y tiempos especficos (...). Su expressin mas visible son um conjunto de estilos juveniles espetaculares, aunque sus efectos se dejan sentir em amplias capas de la juventud (FEIXA, 1998, p.84).

Ao concordarmos com Feixa que em um sentido mais amplo as culturas juvenis implicam a construo de estilos de vida conectados a experincias sociais dos jovens, e que, em sentido mais restrito, as culturas juvenis tm a ver com a constituio de microsociedades juvenis, autnomas das instituies e lgicas do mundo chamado adulto, podemos refletir sobre esses processos de construo das culturas juvenis em um perodo histrico como o da globalizao contempornea, marcado pela intensa interao, comunicao e fluxos informacionais. A relao entre culturas juvenis e globalizao assim analisada por Costa: (...) o estudo e a pesquisa das culturas juvenis so inseparveis da anlise dos processos ligados tanto globalizao da cultura, quanto produo do imaginrio, circulao e produo de localidades. E ainda: Em Appadurai (1999), uma das marcas do processo de globalizao que vivemos em um mundo de fluxos caracterizado13

Feixa (1999) define as culturas juvenis em relao a formas de expresso coletivas que definem estilos de vida. Poderamos pensar em culturas juvenis ativistas como sendo aquelas em que os estilos de vida ou os modos coletivos de expresso tm relao com questionamentos da ordem social por parte dos jovens.

por objetos em movimento, os quais incluem idias e ideologias, pessoas, bens, imagens, mensagens, tecnologias e tcnicas. (COSTA, 2006, p.11) Costa (Ibidem) nos diz tambm a respeito do lugar do imaginrio na produo das subjetividades e na produo das formas de ser jovem no mundo contemporneo. Esse imaginrio juvenil, marcado pelos processos dinmicos de intercmbio cultural e simblico propiciados pela globalizao, aponta para tendncias de conformao das culturas juvenis referenciadas e constitudas por processos de intercmbio cada vez mais globais e com grande influncia na produo dessas mesmas culturas nas localidades onde seu efetivo territrio de atuao. Poderamos apontar que, a partir do surgimento do EZLN e dos movimentos antiglobalizao, tenha se delineado um imaginrio de contestao social produtor de novas subjetividades que caracterizaram as formas de ser jovem contestador/ativista na contemporaneidade. Os acontecimentos que traremos a tona na seqncia do texto trazem elementos concretos para visualizar esses processos de intercmbio cultural e de informao que compuseram o imaginrio da contestao global.

Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (EZLN), Ao Global dos Povos (AGP) e o movimento antiglobalizao notas sobre as formas de ser da contestao social contempornea.

No ano de 1996, os zapatistas fizeram uma convocao para o primeiro Encontro Intergaltico pela humanidade e contra o neoliberalismo, que seria o primeiro elo do movimento internacional contra a mundializao liberal (SEONNE e TADDEI, 2001, p.153/154). Com a presena de mais de trs mil pessoas provenientes de mais de quarenta pases no estado mexicano de Chiapas, tal encontro sinalizou, entre outras questes, para a necessidade do fortalecimento da resistncia global ao capitalismo e, conseqentemente, para a necessidade de realizao de mais encontros que permitissem uma sinergia de movimentos sociais de diferentes partes do globo como aquele realizado no Mxico. Outros trs encontros intergalticos foram realizados em anos posteriores: Barcelona (1997), Belm do Par (1999) e Canad (2001). De forma paralela e correlacionada a outras iniciativas, encontros, organizaes e aes aconteceram no mesmo esprito contestatrio da globalizao neoliberal capitalista.14

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Para uma cronologia detalhada das aes antiglobalizao, ver ............................................................................ http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/free/cronolog.htm. (Acesso em 03/01/2012) e tambm o trabalho de Julia Ruiz di Giovanni intitulado Seattle, Praga, Gnova: poltica anti-globalizao pela experincia da ao

Dentre essas insurgncias globais surgidas entre o final do sculo XX e incio do sculo XXI, destacam-se a formao da Ao Global dos Povos (AGP) em fevereiro de 1998, que consistia em uma rede de comunicao e coordenao de lutas e protestos globais baseada em princpios comuns estabelecidos.15 A AGP foi uma das grandes impulsionadoras do chamado movimento antiglobalizao. importante ressaltar que o surgimento da AGP e dos protestos antiglobalizao possuem tambm origem em todo um acmulo de lutas, grupos, coletivos e movimentos promovidos por jovens ao longo dos anos 1990 na Europa e Amrica do Norte: jovens que defendem os direitos dos imigrantes, movimentos contra a destruio ecolgica, contra a explorao de mo-de-obra por multinacionais as sweatshops jovens que criavam coletivos de culture jamming que se refere prtica de parodiar peas publicitrias e usar os outdoors para alterar drasticamente suas mensagens etc. 16 Nesse sentido, o movimento antiglobalizao e a AGP possuem suas origens ligadas inspirao rebelde dos zapatistas e rede de grupos, coletivos, movimentos e aes que existiam anteriormente nos pases do norte ocidental. A AGP foi constituda por diversos grupos, coletivos e movimentos sociais que atuavam em vrias dimenses da contestao social em muitas partes do mundo. Essa uma das razes que levou a AGP e o prprio movimento antiglobalizao a ficarem tambm conhecidos como o movimento dos movimentos, que unia distintos desejos, demandas, contestaes, projetos, e que tinha a perspectiva de protestar contra um inimigo comum: o capitalismo globalizado. A AGP foi fundada pelo movimento de Chiapas, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) brasileiro, o movimento de agricultores Karnatak da ndia e pela ecltica unio de clubbers, anarquistas e ecologistas do Reclaim The Streets (RTS), entre outros. (CHRISPINIANO, 2002, p.18).

de rua, dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia Social (Antropologia

Social) da USP, em 2007.15

Do dia 23 ao 25 de fevereiro, movimentos de todos os continentes se encontraro em Genebra para comear uma coordenao mundial de resistncia contra o mercado global, uma nova aliana de luta e apoio mtuo chamada Ao Global dos Povos (AGP) contra o Livre Comrcio e a Organizao Mundial do Comrcio. Essa nova plataforma ir servir como um instrumento global de comunicao e coordenao para todos aqueles que esto lutando contra a destruio da humanidade e do planeta pelo mercado global e construindo alternativas locais e poder do povo. Bulletin #0, Ao Global dos Povos (PGA). Disponvel em ....................... http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/pt/. Acesso em 10/12/2011. 16 As sweatshops so fbricas e corporaes que super-exploram os trabalhadores atravs de jornadas desumanas de trabalho, baixos salrios, negao de direitos trabalhistas e/ou que utilizam mo-de-obra escrava e infantil. Esse processo est relacionado ao deslocamento e/ou instalao de multinacionais em pases menos desenvolvidos terceirizao da produo com utilizao de mo-de-obra barata em pases como ndia e China, por exemplo. comum nas movimentaes que questionam as sweatshops o boicote a produtos de multinacionais e a denncia de suas prticas um alvo constante desses movimentos so as multinacionais que fabricam artigos esportivos, calados e vesturio, como, por exemplo, a empresa Nike. J os jovens praticantes da culture jamming eram anti-corporao e promoviam uma verdadeira subverso das imagens, mensagens ou artefatos produzidos pelas multinacionais, arrancando-os de seus contextos originais para criar novos significados. (CHRISPINIANO, 2002; KLEIN, 2002)

As marcas do ldico, da ao direta e do anticapitalismo so expresses genticas da conformao da Ao Global dos Povos (AGP). Conforme seu manifesto e sua carta de princpios;Manifesto da Ao Global dos Povos (...) 1. A AGP um instrumento de coordenao. Ela no uma organizao. Os seus principais objetivos so: (i) Inspirar o maior nmero possvel de pessoas, movimentos e organizaes a agir contra a dominao das empresas atravs da desobedincia civil no-violenta e de aes construtivas voltadas para os povos. (ii) Oferecer um instrumento para coordenao e apoio mtuo a nvel mundial para aqueles que resistem ao domnio das empresas e ao paradigma de desenvolvimento capitalista. (iii) Dar maior projeo internacional s lutas contra a liberalizao econmica e o capitalismo mundial. 2. A filosofia organizacional da AGP baseada na descentralizao e na autonomia. Por isso, estruturas centrais so mnimas. 3. A AGP no possui membros. 4. (...) Nenhuma organizao ou pessoa representa a AGP, nem a AGP representa qualquer organizao ou pessoa. (...) (MANIFESTO DA AO GLOBAL DOS POVOS, 3 conferncia da AGP, Cochabamba, Bolvia, Setembro de 2001. Disponvel em ................................................ www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/pt/manifesto.htm. Acesso em 10/11/2011)

Princpios da Ao Global dos Povos 1. Uma rejeio muito clara ao capitalismo, ao imperialismo, ao feudalismo e a todo acordo comercial, instituies e governos que promovem uma globalizao destrutiva. 2. Rejeitamos todas as formas e sistemas de dominao e de discriminao incluindo, mas no apenas, o patriarcado, o racismo e o fundamentalismo religioso de todos os credos. Ns abraamos a plena dignidade de todos os seres humanos. 3. Uma atitude de confronto, pois no acreditamos que o dilogo possa ter algum efeito em organizaes to profundamente antidemocrticas e tendenciosas, nas quais o capital transnacional o nico sujeito poltico real. 4. Um chamado ao direta, desobedincia civil e ao apoio s lutas dos movimentos sociais, propondo formas de resistncia que maximizem o respeito vida e aos direitos dos povos oprimidos, assim como a construo de alternativas locais ao capitalismo global. 5. Uma filosofia organizacional baseada na descentralizao e na autonomia. (PRINCPIOS DA AO GLOBAL DOS POVOS, 3 conferncia da AGP, Cochabamba, Bolvia, Setembro de 2001. Disponvel em ..................................................... http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/pt/hallmpt.htm. Acesso em 10/11/2011.)

O manifesto e a carta de princpios da AGP so documentos que podem ser entendidos como exemplos paradigmticos que expressam as formas de ser da contestao social contempornea configurada nos protestos antiglobalizao e protagonizada, majoritariamente,

por jovens nos grandes centros urbanos de vrios pases do mundo. A partir do manifesto e da carta de princpios destacamos algumas dessas caractersticas que influenciariam, a partir de ento, as movimentaes contemporneas: contestao anti-sistema o princpio do anticapitalismo e questionamento radical da ordem econmica mundial horizontalidade na organizao interna, autonomia em relao a governos, empresas e organismos financeiros, organizao em rede, prtica da desobedincia civil, carnavalizao de protestos, prtica de autogesto etc. Outro aspecto a ser ressaltado a mudana na configurao das formas de ser das culturas juvenis que se colocam no campo da dissidncia e contestao social a partir da influncia das movimentaes e articulaes contemporneas, como a AGP e o movimento antiglobalizao. A partir do tema da resistncia juvenil, Freire Filho (2007, 2008) articula um balano crtico dos estudos sobre juventude e estudos culturais, de Birmingham aos dias de hoje, para analisar os significados da insurgncia dos jovens contemporneos, especificamente daqueles engajados num dos coletivos mais destacados nas jornadas contemporneas de contestao social e na conformao da AGP, o Reclaim the Streets RTS, de Londres. Na anlise dos grupos contestadores juvenis contemporneos, Freire Filho (2007:177) aborda as diferenas entre esses e aqueles analisados pelos Estudos Culturais britnicos nos anos 1960 e 1970.17 Se nos grupos analisados pelo Centre Contemporany of Cultural Studies (CCCS)18 Teds, Mods, Skinheads o cerne da resistncia juvenil marcava a dimenso cultural ou melhor: marcava a disputa simblica, a guerrilha semiolgica contra os dispositivos culturais hegemnicos na contemporaneidade a questo da resistncia passa tambm pela disputa poltica direta, pela prtica cotidiana da contestao no olho das ruas. O autor afirma que os movimentos contemporneos anticapitalistas, antiglobalizao ou anticorporaes protagonizados por jovens a partir do final dos anos 1990 trazem a dimenso dos questionamentos macropolticos para os movimentos juvenis. Ao invs de somente se conformarem em torno de questes identitrias, culturais e/ou micropolticas, os jovens protagonistas de certa cena contestatria contempornea parecem direcionar sua contestao em direo a aspectos sociais mais amplos e gerais. Ao estudar a juventude contestadora contempornea, Souza (2002, 2004) nos auxilia na compreenso de outros aspectos da questo. As formas organizativas de con