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Trabalho Infanto-juvenil e Seu Impacto Sobre a Escolaridade e a Cidadania

Jul 19, 2015

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Julio Leal
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

JLIO CSAR LEAL PEREIRA

TRABALHO INFANTO-JUVENIL E SEU IMPACTO SOBRE A ESCOLARIDADE E A CIDADANIA: POSSIBILIDADES DE (DE)FORMAO?

SALVADOR 2008

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JLIO CSAR LEAL PEREIRA

TRABALHO INFANTO-JUVENIL E SEU IMPACTO SOBRE A ESCOLARIDADE E A CIDADANIA: POSSIBILIDADES DE (DE)FORMAO?

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Educao, Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obteno do grau de Doutor em Educao. Orientadora: Profa. Dra. Maria Ornlia S. Marques Co-orientadora: Profa. Dra. Vilma Sousa Santana Conselheiros Cientficos: Prof. Dr. Rafael Prieto Lacaci e Prof. Dr. Julio Carabaa Morales

SALVADOR 2008

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Ficha catalogrfica elaborada por Uariton Barbosa Boaventura Bibliotecrio CRB 5/1587

P4365t Pereira, Jlio Csar Leal Trabalho infanto-juvenil e seu impacto sobre a escolaridade e a cidadania: possibilidades de (de)formao? / Jlio Csar Leal Pereira. Salvador, 2008 300 f. : il. ; 30 cm Tese (Doutorado em Educao) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educao - Salvador, 2008 Orientadora: Profa. Dra. Maria Ornlia Marques Co-orientadora: Profa. Dra. Vilma Santana Conselheiros Cientficos: Prof. Dr. Rafael Prieto Lacaci e Prof. Dr. Julio Carabaa Morales 1. Trabalho infantil. 2. Repetncia. 3. Evaso escolar. 4. Cidadania. 5. Absentesmo. 6. Distoro idade-srie. I. Marques, Maria Ornlia S. II. Santana, Vilma Sousa. III. Prieto Lacaci, Rafael. IV. Carabaa Morales , Julio. V. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao. VI. Ttulo. CDD 371.82 CDU 371.25

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JLIO CSAR LEAL PEREIRA

TRABALHO INFANTO-JUVENIL E SEU IMPACTO SOBRE A ESCOLARIDADE E A CIDADANIA: POSSIBILIDADES DE (DE)FORMAO?Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Educao, Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 11 de dezembro de 2008.

Banca Examinadora Maria Ornlia Marques Orientadora Doutora em Educao, Universidade de So Paulo, USP, Brasil. Universidade Federal da Bahia Vilma Sousa Santana - Co-orientadora Doutora em Epidemiologia, University of North Carolina, U.N.C., Estados Unidos. Universidade Federal da Bahia Teresinha Fres Burnham Doutora em Filosofia, University of Southampton, Inglaterra Universidade Federal da Bahia Vera Lcia Bueno Fartes Doutora em Educao, Universidade Federal da Bahia (UFBA) Universidad Complutense de Madrid Selena Castelo Rivas Doutora em Educao, Universidade Federal da Bahia (UFBA) Faculdades Adventistas da Bahia Julio Carabaa Morales Doutor em Filosofia e Letras, Universidad Autnoma de Madrid (UAM) Universidad Complutense de Madrid

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A Deus, pelas muitas faculdades e oportunidades que bondosamente me concedeu. Minha esposa, familiares, mestres e amigos, por me incentivarem, me ensinarem a sonhar e a nunca desistir.

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AGRADECIMENTOS

Neste trabalho, sou devedor das muitas pessoas sem cujo incentivo e ajuda esta tese no viria jamais existncia. Eu as considero como co-autoras deste trabalho e merecedoras do devido crdito por qualquer mrito que ele possa ter. Ao mesmo tempo eu as isento da responsabilidade pelos erros e limitaes desta produo, os quais, por justia, vejo-me forado a assumir, eu mesmo, integralmente. Agradeo a todos os componentes da REDPECT, sem exceo, mas em especial quero fazer meno s professoras Teresinha Fres, Lidia Mattos, Eliane Souza e Vera Fartes, minhas grandes incentivadoras sem as quais eu nem sequer teria me lanado ao desafio de realizar este estudo. Vocs marcaram minha vida para sempre, ensinando-me a sair do ninho e a alar voos para os quais eu no me cria ainda capaz. Isto vale tambm para amigos queridos que fiz na FACED tais como Biagio, Clio, Iara, Jane Adriana, ngela, Cludio, Novoa, Luza, Slvio, Patrcia, Lvia, Ldia, Cllia, Jamile, Tennessy, Marcelo, Aline, Flvia, Roberta, Isabel, Bco, Marilene, Jailson, Mel, Marise, Dra, Gal, Ndia, Ianira, Magali, Sebastio, Isaque, Jorge, Lourdes, Alexandre, Romilson e outros tantos, igualmente importantes. No PISAT e no ISC tambm conheci pessoas fantsticas, que me ajudaram muito, como Bouzas, Kal, Teresa, Renata, Marta, Ana, Alane, Gustavo, Alba, Slvia, Cludia, Cibele, Rose, Sole, Jorgana, Hervnia, Augusto, Tnia, ngela, Jonatas, Ailton e outras figuras marcantes cujas mos me sustentaram quando eu estava prestes a cair, beirando o desespero na tentativa de aprender a manejar o SAS ou nas minhas idas e vindas repentinas, sujeitas aos caprichos das minhas viagens recorrentes e das minhas demandas ocupacionais e familiares. s professoras Vilma Santana e Ornlia Marques, agradeo por terem aceitado orientar um projeto atpico como o meu, com enormes complexidades

metodolgicas, e por terem me recebido sem restries ou ressalvas. Espero que este trabalho reflita minimamente o esforo e o tempo que vocs devotaram para orient-lo. Estendo minha gratido tambm aos professores Gaudncio Frigotto e Antnio Dias, que colaboraram com importantes crticas para o amadurecimento deste estudo.

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Agradeo CAPES por financi-lo e por patrocinar um estgio no exterior onde pude receber ricas contribuies, na Universidade Complutense de Madri, dos Professores Julio Carabaa Morales e Rafael Prieto Lacaci. Estoy seguro de que sin vuestra aportacin el trabajo no hubiera avanzado como lo hizo. Slo os puedo decir gracias. Tambm agradeo ao IAENE por apostar em mim e por me permitir atuar como docente do Curso de Pedagogia durante algum tempo, antes mesmo de eu concluir o Doutorado na UFBA. Agradeo Instituio Adventista por facilitar o meu contato com um grupo de jovens que integrou minha pesquisa de campo. Semelhantemente, agradeo ao Colgio Antnio Vieira por me dar acesso s suas dependncias e a todas as pessoas que voluntria e gentilmente concordaram em participar deste estudo, entre elas os entrevistadores do PISAT e as famlias que participaram da pesquisa domiciliar na cidade de Salvador. Aos meus irmos Z Roberto, Jean, Jackson e minha irm Jsie, que passaram comigo todas as tempestades do caminho, mas que s experimentaro uma pequena parte do enorme gozo que a finalizao deste perodo de estudos representa para mim pessoalmente. Obrigado por relevar minhas excentricidades e por jamais desfazer dos meus sonhos, mesmo quando parecem inalcanveis. Aos nossos pais e sua memria eu espero honrar no s com esta conquista, mas com todas as demais que ainda viro. Espero ser capaz de preservar e multiplicar tudo o que de bom deixaram com seus ensinamentos e exemplo, que permanecero a despeito de sua ausncia. Aos incontveis amigos, meu agradecimento sincero. ngrede, Drade, Karine, Lia, Jair, Marli, Eduardo, Fbio, Sulita, Sunia, Marcos, Jorge, Selena, Francis e Dayse, Simone, Marcus, Andr, Messias, Cristiano, Herbert, Fran e Ellen, Isaura, Paula, Berta, Maria, Jennifer, Roberto, Lgia, Mateus, Paulo, lisson, Nonato, Deleon, Alberto, ngelo, Cludio, Cludisson, Bruno, Diniz, Michel, Bal e Zu, Isio, Rodrigo, Cook e outros tantos da IASD de Escada, Uruguai, Jardim Cruzeiro e Areal e de outros lugares por onde passei. Finalmente, e no menos importante, agradeo a Deus, que prodigamente me dotou de numerosas faculdades, as mesmas que eu Lhe devoto e Lhe devolvo por meio de tudo que fao, esforando-me por viver sempre altura dos enormes privilgios que

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Ele me concede a cada dia. Agradeo pelo apoio incondicional de minha esposa Nainde, minha musa inspiradora, sem a qual todas as minhas conquistas careceriam de sentido. Tambm minha filha Tarsila, que tem a idade desta tese e cujo nascimento marcou esplendidamente o incio do meu Curso de Doutorado. Ao leitor, agradeo por dar-se ao trabalho de tomar conhecimento do que pesquisei, escrevi e procurei registrar nestas pginas. Que possa servir para motivar outros estudos que superem a este e que sirva modestamente de inspirao para quem acredita que vale a pena investir numa carreira acadmica, mesmo se voc tiver iniciado sua carreira como lavador de carro ou vendedor de sapatos como eu. A voc o meu muito obrigado!

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Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras l de Alagoas fazem seu ofcio. Elas comeam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxguam, do mais uma molhada, agora jogando a gua com a mo. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e do mais uma torcida e mais outra, torcem at no pingar do pano uma s gota. Somente depois de feito tudo isso que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra no foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. Graciliano Ramos, 1948

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PEREIRA, Jlio Csar Leal. Trabalho infanto-juvenil e seu impacto sobre a escolaridade e a cidadania: possibilidades de (de)formao? 300 f. 2008. Tese (Doutorado em Educao) Faculdade de Educao, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. RESUMO Estudos realizados em vrias partes do mundo mostram que o trabalho infantojuvenil tem efeitos indesejveis sobre a sade e a educao dos sujeitos. Outros estudos, porm, apresentam o trabalho como um meio legtimo de formao de hbitos e valores, bem como de desenvolvimento de habilidades e conhecimentos positivos, teis na transio para a vida adulta. Este estudo investigou as relaes entre a experincia do trabalho feito por adolescentes e jovens e seus resultados escolares, buscando compreender que caractersticas do trabalho incidem positivamente sobre o rendimento escolar, o gosto pela escola e o avano nos estudos, bem como sobre o desenvolvimento de valores, habilidades e competncias tais como pontualidade, responsabilidade, organizao pessoal, respeito aos outros, civilidade etc. Devido complexidade da temtica, foram integradas neste estudo uma pesquisa de abordagem qualitativa e outra quantitativa. Da pesquisa quali participaram cinco grupos (X=10) compostos, maiormente, por jovens trabalhadores com idade igual ou superior a 15 anos. Mediante entrevistas de grupo focal, registramos suas falas e percepes, cujo contedo foi analisado por intermdio de cinco categorias que emergiram dos seus discursos transcritos. A pesquisa quanti se baseou numa survey (um inqurito de base comunitria) com 545 sujeitos soteropolitanos, trabalhadores e no trabalhadores, com idades compreendidas entre 10 e 22 anos. Os dados foram processados pelo Statistical Analysis System (SAS), verso 9.1 for Windows, e feitas as anlises estatsticas e medidas de associao, que incluram a estimao de razes de prevalncia (RP) e testes de hipteses mediante o clculo do Qui-quadrado de Pearson. Encontramos que o trabalho tem um efeito negativo sobre a escolaridade, uma vez que prejudica o rendimento escolar, reduz a frequncia s aulas e o gosto pela escola, alm de aumentar significativamente problemas como a defasagem idade-srie, a repetncia, o abandono escolar e a quantidade total de anos de estudo perdidos, especialmente entre as mulheres e os sujeitos que trabalham mais de 10 horas semanais. A associao do trabalho com atitudes relacionadas cidadania no teve efeitos estatisticamente significantes, mas na pesquisa qualitativa o trabalho foi associado ao desenvolvimento de valores e habilidades positivas, o que supe a existncia, entre subgrupos, de um efeito diferenciado do trabalho, condicionado pela percepo e valores de classe dos sujeitos e por sua condio socioeconmica e cultural. Outros estudos seriam necessrios para confirmar a hiptese de que o trabalho na adolescncia e juventude resulta em melhor comportamento cidado e desenvolve qualidades desejveis no mundo do trabalho e dos negcios. Futuros estudos e intervenes devem considerar a vulnerabilidade das mulheres e a especificidade do trabalho domstico no remunerado, bem como o efeito da dupla jornada de trabalho sobre a escolaridade dos sujeitos. Palavras-chave: Trabalho infanto-juvenil, educao para a cidadania, repetncia, evaso, absentesmo, distoro idade-srie.

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PEREIRA, Jlio Csar Leal. Child and adolescent labor and its impact on schooling and citizenship: possibilities for (de)formation? 300 f. 2008. Thesis (Ph.D.) School of Education, Federal University of Bahia, Salvador, 2008.

ABSTRACT Studies performed in various parts of the world show that child and adolescent labor have undesirable effects on subjects health and education. Other studies, conversely, prove that work can be a legitimate means of forming desirable habits and values, in addition to helping to develop positive skills and knowledge, useful in the transition to adult life. This study investigated the relationships between child and adolescent work and its school achievements effects in an attempt to identify the specific aspects of working that have a positive impact on school performance, enthusiasm for the school and school progress as well as the development values, abilities and competencies such as punctuality, responsibility, personal organization, respect for others, civility etc. Due to the complexity of the topic, both qualitative and quantitative research has been incorporated. Five groups (X=10), primarily composed of child and adolescent works aged 15 and younger, participated in the qualitative study. Their conversations and perceptions were registered via focus groups, the written transcripts of which, upon analysis, reveal five distinct categories. The quantitative data is based on a community-based survey with 545 subjects, both workers and non-worker between the ages of 10 and 22, from the greater Salvador, Bahia area. The Statistical Analysis System (SAS), version 9.1 for Windows, was used for data processing, statistical analysis and association measurement, including estimates of prevalence ratios (PR) and Pearson's chi-square tests. Herein, we find that work has a negative effect on schooling, once it is detrimental to school performance, it reduces class attendance and enthusiasm for school, in addition to significantly increasing school problems such as age-grade distortion (over-age), grade repetition, school dropout rates and the total schooling years missed, especially among women and subjects who work more than 10 hours per week. The association of working with attitudes related to citizenship was not statistically significant, but in qualitative research work was associated with the development of positive values and skills, which suppose the existence, between subgroups, a different effect of the labor, conditioned by class perceptions and values of the subjects, and by their respective socioeconomic and cultural positions. Further studies will be necessary to confirm the hypothesis that child and adolescent labor results in a better citizen and develops qualities considered desirable in the business and work world. Future studies and interventions should consider the vulnerability of women, paying special attention to unpaid household work, in addition to the effect of the so-called double work day on their schooling.

Keywords: child and adolescent labor, education for citizenship, grade repetition, dropout, absenteeism, age-grade distortion.

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PEREIRA, Jlio Csar Leal. Trabajo infanto-juvenil y su impacto sobre la escolaridad y la ciudadana: posibilidades de (de)formacin? 300 f. 2008. Tesis (Doctorado en Educacin) Faculdade de Educao, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. RESUMEN Estudios realizados en varias partes del mundo muestran que el trabajo infantojuvenil tiene efectos indeseables sobre la salud y la educacin de los sujetos. Pero otros estudios presentan el trabajo como un medio legtimo de formacin de hbitos y valores, as como de desarrollo de habilidades y conocimientos positivos, tiles en la transicin hacia la vida adulta. Este estudio investig las relaciones entre la experiencia del trabajo hecho por adolescentes y jvenes y sus resultados escolares, buscando comprender qu caractersticas del trabajo inciden positivamente sobre el rendimiento escolar, el gusto por la escuela y el avance en los estudios, as como sobre el desarrollo de valores, destrezas y competencias tales como puntualidad, responsabilidad, organizacin personal, respeto a los otros, civilidad etctera. Debido a la complejidad de la temtica, se integraron en este estudio una investigacin de enfoque cualitativo y otra de abordaje cuantitativo. En la investigacin cualitativa participaron cinco grupos (X=10) compuestos, mayormente, por jvenes trabajadores con edad igual o superior a 15 aos. Mediante entrevistas de grupo de discusin (focus group), registramos sus discursos y percepciones, cuyo contenido fue analizado por intermedio de cinco categoras que emergieron de sus relatos transcritos. La investigacin cuantitativa se bas en una survey (una encuesta de base comunitaria) con 545 sujetos de Salvador de Bahia, trabajadores y no trabajadores, con edades comprendidas entre 10 y 22 aos. Los datos fueron procesados por el Statistical Analysis System (SAS), versin 9.1 for Windows, y en l se hicieron los anlisis estadsticos y medidas de asociacin, que incluyeron la estimacin de razones de prevalencia (RP) y tests de hiptesis mediante el clculo del Qui-cuadrado de Pearson. Encontramos que el trabajo tiene un efecto negativo sobre la escolaridad, una vez que perjudica el rendimiento escolar, reduce la asistencia a las clases y el gusto por la escuela, adems de aumentar significativamente problemas como el retraso escolar, la repitencia, el abandono escolar y la cantidad total de aos de estudio perdidos, especialmente entre las mujeres y los sujetos que trabajan ms de 10 horas semanales. La asociacin del trabajo con actitudes relacionadas a la ciudadana no fue estadsticamente significante, pero en la investigacin cualitativa el trabajo fue asociado al desarrollo de valores y habilidades positivas, lo cual supone la existencia, entre subgrupos, de un efecto diferenciado del trabajo, condicionado por la percepcin y valores de clase de los sujetos y por su condicin socioeconmica y cultural. Otros estudios seran necesarios para confirmar la hiptesis de que el trabajo en la adolescencia y juventud resulta en mejor comportamiento ciudadano y desarrolla cualidades deseables en el mundo del trabajo y de los negocios. Futuros estudios e intervenciones deben considerar la vulnerabilidad de las mujeres y la especificidad del trabajo domstico no remunerado, as como el efecto de la doble jornada de trabajo sobre la escolaridad de los sujetos. Palabras-clave: Trabajo infanto-juvenil, educacin para la ciudadana, repitencia, abandono, absentismo, retraso escolar.

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PEREIRA, Jlio Csar Leal. Travail infantile juvnile et son impact sur la scolarit et la citoyennet: possibilits de (d)formation? 300 f. 2008. Thse (Doctorat en ducation) Facult dducation, Universit Fdrale de Bahia, Salvador, 2008. RSUM Des tudes ralises dans plusieurs parties du monde dmontrent que le travail infatile-juvnile a des effets indsirables sur la sant et lducation des sujets. Dautres tudes, nanmoins, prsentent le travail comme un moyen lgitime de formation dhabitudes et de valeurs, ainsi que de dveloppement dhabilits et de connaissances positives, utiles dans la transition pour la vie adulte. Cette tude a investigue les relations entre lexprience du travail fait par des adolescents et jeunes et leurs rsultats scolaires, pour essayer de comprendre quelles caractristiques du travail se refltent positivement sur le rendement scolaire, le got pour lcole et lavancement dans les tudes, ainsi que sur le dveloppement de valeurs, dhabilits et de comptences telles que la ponctualit, la responsabilit, lorganisation personnelle, le respect envers les autres, la civilit, etc. D la complexit de la thmatique, une approche qualitative et une autre quantitative ont t integr cette tude. De la recherche quali ont particip cinque groupes (X=10) composs, en majorit, par de jeunes travailleurs dge gale ou superieur 15 ans. Moyennant des interviews de groupe focal, nous avons enregistr leurs discours et perceptions dont le contenu a t analys par lintermdiaire de cinque catgories qui ont merg de la transcription de leurs discours. La recherche quanti sest base sur une survey (une enqute de base communautaire) avec 545 sujets soteropolitanos (habitants de la ville de Salvador de Bahia), travailleurs et nontravailleurs, dges comprises entre 10 et 22 ans. Les donnes ont t manipules par le Statistical Analysis System (SAS), version 9.1 for Windows, les analyses statistiques et les mesures dassociation ont t faites en incluant lestimation de raisons de prvalence (RP) et les tests dhypothses moyenant le calcul du khi-carr de Pearson. Nous avons trouv que le travail a un effet ngatif sur la scolarit, une fois quil porte prjudice au rendement scolaire, il rduit la frquence aux cours et le got pour lcole, outre laugmentation significative de problmes comme le dcalage ge-anne, le recalage, labandon scolaire et la quantit totale dannes dtude perdues, spcialement entre les femmes et se sujets qui travaillent plus de 10 heures hebdomadaire. Lassociation du travail avec des attitudes lies la citoyennet na pas eu des effets statistiquement significatifs, mais dans la recherche qualitative le travail a t associ au dveloppement de valeurs et habilits positives, ce qui suppose lexistence, entre les sous-groupes, dun effet differenci du travail, condicionn par la perception et les valeurs de classe des sujets et par leur condition socio-conomique et culturelle. Dautres tudes sraient ncessaires pour confirmer lhypothse que le travail pendant ladolescence et la jeunesse rsulte dans un meilleur comportement citoyen et dveloppe des qualits dsirables dans le monde du travail et des affaires. Des futures tudes et interventions auraient besoin de considrer la vulnrabilit des femmes et la spcificit du travail au foyer non rmunr, ainsi que leffet de la double journe de travail sur la scolarit des sujets. Mots-cl: Travail infantile-juvnile; ducation la citoyennet; recalage; vasion, absenteisme, dcalage ge-anne.

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LISTA DE TABELAS Tabela 1a Tabela 2a Tabela 3a Tabela 4a Caractersticas scio-demogrficas e familiares da populao de estudo conforme a CH semanal Variveis indicadoras da situao escolar dos sujeitos que estudam conforme CH trabalho semanal Variveis indicadoras da situao ocupacional dos sujeitos trabalhadores conforme CH trabalho semanal Associao bruta e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e desfechos educacionais na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e falta s aulas na populao do estudo 102 103 104 105

Tabela 5a Tabela 6a

106

Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de107 trabalho semanal e desinteresse pela escola na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e notas inferiores na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e atraso escolar na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e repetncia escolar na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e desistncia escolar na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e anos de estudo perdidos na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e pontualidade na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e respeito aos outros na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e organizao pessoal na populao do estudo 109

Tabela 7a

Tabela 8a Tabela 9a

110 112

Tabela 10a

113

Tabela 11a

115

Tabela 12a Tabela 13a

116 117

Tabela 14a

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Tabela 15a

Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e responsabilidade na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e solidariedade na populao do estudo Associao ajustada e intervalo de confiana a 95% entre CH de trabalho semanal e civilidade na populao do estudo

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Tabela 16a Tabela 17a

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Quadro 2 Quadro 3 Quadro 4 Quadro 5 Quadro 6 Quadro 7 Quadro 8 Quadro 9

Categorias eleitas para a anlise de contedo Composio das variveis independentes Composio das variveis dependentes (escolares) Composio das variveis dependentes (de cidadania) Composio das variveis modificadoras de efeito Composio das variveis confundidoras Percepes de campo dos entrevistadores Entrevista com Saulo Procedimentos para grupos focais segundo artigo original

48 55 55 56 56 57 60 100 180

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LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E ACRNIMOS CAPES CH ECA ENEM FACED FIADOL FIT GF IAENE IASD IBGE IES ISC LDB MOBRAL MST OIT ONGs ONU PEA PETI PISA PISAT PNAD PPGE REDPECT RP SAEB SAS SENAC SENAI UAM UCM UFBA UFSCar UNESCO UNICEF USP Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal do Ensino Superior Carga Horria Estatuto da Criana e do Adolescente Exame Nacional do Ensino Mdio Faculdade de Educao da UFBA Ficha do Adolescente Ficha Individual do Trabalhador Grupo Focal Instituto Adventista de Ensino do Nordeste Igreja Adventista do Stimo Dia Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica Instituies de Ensino Superior Instituto de Sade Coletiva da UFBA Lei de Diretrizes e Bases da Educao Movimento Brasileiro de Alfabetizao Movimento dos Sem Terra Organizao Internacional do Trabalho Organizaes No Governamentais Organizao das Naes Unidas Populao Economicamente Ativa Programa de Erradicao do Trabalho Infantil Program for International Student Assessment Programa Integrado de Sade do Trabalhador Pesquisa Nacional por Amostras de Domiclios Programa de Ps-Graduao, Mestrado e Doutorado em Educao Rede Coop. de Pesquisa e Interveno em (In)formao, Currculo e Trabalho Razo de Prevalncia Sistema Nacional Brasileiro de Avaliao do Ensino Bsico Statistical Analysis System Servio Nacional de Aprendizagem Comercial Servio Nacional de Aprendizagem Industrial Universidad Autnoma de Madrid Universidad Complutense de Madrid Universidade Federal da Bahia Universidade Federal de So Carlos Organizao das Naes Unidas para a Educ., a Cincia e a Cultura Fundos das Naes Unidas para a Infncia Universidade So Paulo

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SUMRIO

1 2 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 3 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 4 4.1 4.2 4.3 4.4 5

PROLEGMENOS METODOLOGIA PROBLEMA OBJETIVO GERAL OBJETIVOS ESPECFICOS PROCEDIMENTOS TERICO-METODOLGICOS PESQUISA QUALITATIVA (ESTUDO II) PESQUISA QUANTITATIVA (ESTUDO III) RESULTADOS DA PESQUISA QUALITATIVA EIXO 1: DIMENSO SOCIAL DO TRABALHO EIXO 2: DIMENSO AXIOLGICA E MORAL DO TRABALHO EIXO 3: DIMENSO PEDAGGICA E FORMATIVA DO TRABALHO EIXO 4: DIMENSO ECONMICA DO TRABALHO EIXO 5: DIMENSO ESCOLAR E INSTITUCIONAL DO TRABALHO RESULTADOS DA PESQUISA QUANTITATIVA CARACTERIZAO DA AMOSTRA ASSOCIAES ENCONTRADAS ESCOLARIDADE ATITUDES CIDADS DISCUSSO DOS RESULTADOS E CONCLUSO REFERNCIAS APNDICES APNDICE A ANLISES SUPLEMENTARES: Tabelas 1b A 17b APNDICE B GRUPO FOCAL: princpios terico-metodolgicos APNDICE C GRUPO FOCAL: roteiros e sesses transcritas APNDICE D TRABALHO APRESENTADO EM CONGRESSO APNDICE E ENTREVISTA COM GAUDNCIO FRIGOTTO APNDICE F ARTIGO DE REVISO BIBLIOGRFICA: Estudo I APNDICE G ARTIGO ESCRITO PARA A COLETNEA DO MEL

15 41 41 41 41 42 44 49 60 61 71 82 87 89 101 101 105 106 115 122 138 156 157 170 189 219 221 230 250

ANEXOS ANEXO A FICHA DO ADOLESCENTE: questionrio aplicado 277 ANEXO B FICHA INDIVIDUAL DO TRABALHADOR: questionrio aplicado 289

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PROLEGMENOS O presente estudo resulta, institucionalmente, de uma parceria estabelecida

entre a Faculdade de Educao (FACED), mediante a Rede Cooperativa de Pesquisa e Interveno sobre (In)formao, Currculo e Trabalho (REDPECT) e o Instituto de Sade Coletiva (ISC), atravs do Programa Integrado de Sade Ambiental e do Trabalhador (PISAT), sendo orientado pela Dra. Maria Ornlia Marques e co-orientado pela Dra. Vilma Santana, ambas professoras da Universidade Federal da Bahia. Trata-se de um estudo de carter qualitativo e quantitativo. Os aspectos qualitativos foram explorados sob a orientao da Professora Doutora Maria Ornlia Marques, da Faculdade de Educao, com o suporte da REDPECT.1 Sua face quantitativa, por sua vez, constitui-se num estudo transversal situado na terceira etapa (2004) da coorte de uma pesquisa concebida e desenvolvida no Instituto de Sade Coletiva, sob a orientao da Professora Dra. Vilma Santana. Os estudos de carter quantitativo desta tese so fruto de uma demanda nascida no ISC, onde se faz pesquisa de carter epidemiolgico e populacional, incluindo o mapeamento e anlise de fatores relacionados sade e qualidade de vida das pessoas. A origem de nossa pesquisa, no contexto institucional em que se inscreve, ocorre em funo dos rumos e constataes que tiveram lugar num Projeto de Investigao do PISAT intitulado Acidentes de Trabalho, iniciado no ano de 1999, e cuja primeira coleta de dados ocorreu em 2000, quando cerca de 9.600 sujeitos, com idades entre 10 e 65 anos, participaram de um censo com 2.516 famlias, prestando informaes diversas que constituram o banco de dados primordial com base no qual as primeiras anlises e pesquisas foram feitas (ver Anexo A). O Projeto Acidentes de Trabalho foi concebido como um estudo das condies de trabalho e de emprego, bem como de seus impactos sobre a sade dos sujeitos trabalhadores. Desde o seu incio at a presente data, vrias teses, dissertaes e artigos cientficos foram produzidos e publicados, nacional e

1

Dentre os estudos desenvolvidos pela REDPECT, relacionados a esta tese, destaco dois, mais diretamente associados a esta pesquisa e que lhe serviram de base seminal: Novos espaos articulados de aprendizagem e trabalho requeridos pela sociedade da informao e Currculo, Trabalho e Construo do Conhecimento.

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internacionalmente. Segundo os dados obtidos, entre os trabalhadores jovens e adolescentes o impacto do trabalho sobre a sade no era imediatamente perceptvel. Por esta razo, o PISAT continuou investigando os efeitos ocupacionais de longo prazo, no ciclo de vida do sujeito, de modo que seus estudos avanaram paulatinamente para questes educacionais.2 Assim, o nosso estudo constitui-se numa ampliao das aes do PISAT no sentido de incorporar temas especficos da rea de educao a fim de que novas hipteses e realidades sejam exploradas, dando lugar produo de informaes e conhecimentos teis para subsidiar, futuramente, polticas pblicas e aes voltadas para a formao do adolescente e do jovem no trabalho e na escola. Conquanto a demanda do PISAT levasse ao estudo de resultados educacionais, sobretudo escolares, tais como frequncia s aulas, atraso e permanncia ou evaso escolar, resolvemos introduzir a preocupao com a formao de atitudes cidads no contexto e sob a influncia do trabalho. Esse heurstico constitui-se o elemento de ineditismo desta pesquisa vinculado, mais diretamente, a uma concepo pedaggica ampliada de educao, segundo a qual o preparo para exercer a cidadania se d no apenas na escola, mas, dentre outras alternativas, no mundo do trabalho (OLIVEIRA, 2001; YOUNG; GUILES, 1996). Por conseguinte, os desdobramentos terico-metodolgicos desta tese refletem a potncia e tenso da aproximao de distintas reas do saber com suas respectivas tradies e abordagens de pesquisa. Alm disso, o presente estudo dialogar intensamente com diferentes perspectivas e paradigmas da cincia, num dilogo multirreferencial (BARBOSA, 1998; BURNHAM 1993, 2001; FAGUNDES, 2005), para construir conhecimento vlido e til sociedade contempornea. Assim, cada perspectiva e teoria, velha ou nova, ocupar um lugar modesto ao lado de outras referncias e fontes capazes de produzir nexos e saberes sobre o mundo. O conhecimento assim produzido, em nossa perspectiva, haver de constituir-se, ainda que modestamente, uma ferramenta til para a transformao social.2

No se encontrou, por exemplo, associao entre o trabalho e a sade autopercebida. Devido ao efeito do trabalhador sadio (segundo o qual quem selecionado e permanece no trabalho normalmente so os mais saudveis), comum encontrar pessoas sem problemas de sade na populao ativa. Este efeito mascara o impacto negativo do trabalho sobre o indivduo jovem. Contudo, seu afastamento da escola e os prejuzos sobre sua formao e educao provocam e/ou agravam um ciclo de pobreza que produz adoecimento a longo prazo.

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O problema do trabalho infantil e juvenil

A questo do trabalho entre crianas, adolescentes e jovens hoje preocupao mundial. Ela est presente em polticas pblicas, em projetos sociais e educacionais, em legislaes municipais, estaduais e federais, em planos de ao e interveno de empresrios, estadistas, religiosos, juristas, ONGs e entidades de projeo internacional. Desde os anos 90, no Brasil, por presso de organismos internacionais tais como a Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e os Fundos das Naes Unidas para a Infncia (UNICEF), tem havido um crescente movimento de articulao de atores e entidades interessadas em estudar e intervir em questes relacionadas ao trabalho de crianas e adolescentes. Primeiro criou-se o Comit Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e logo depois o Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (PETI), o qual iniciou suas atividades no Mato-Grosso, em Pernambuco e na Bahia.3 Estudos realizados em vrias partes do mundo mostram que o trabalho feito pela criana e pelo adolescente trazem prejuzos de diversos tipos (HEADY, 2003; MORTIMER et al., 1996; OLIVEIRA, 2000), sobretudo relacionados com a sua sade fsica e psicoemocional (FISCHER, 2003; MENDONA, 2002, SANTANA, 2003). Os estudiosos advertem para a vulnerabilidade dos infantes perante a realidade imposta e demandada pelo mundo do trabalho, sobretudo nos pases subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento onde h, lamentavelmente, mais de 250 milhes de crianas trabalhando em atividades econmicas diversas (GRUSPUN, 2000). Patrinos e Psacharopoulos (1997), analisando crianas trabalhadoras no Peru, observaram que aspectos associados ao trabalho infantil tais como (1) pobreza, (2) morar na zona rural, (3) ter que cuidar de irmos menores e (4) tamanho da famlia so fatores que tambm contribuem para maior distoro idade3

Um dos aspectos culturais mais chamativos do contexto de trabalho infantil na Bahia a crena dos pais das crianas trabalhadoras no poder e no valor do trabalho para prevenir a vagabundagem e a delinquncia juvenil. Na zona rural, mesmo as docentes e os gestores escolares sistematicamente ocultavam os dados referentes ausncia dos alunos s aulas na poca das colheitas por entenderem que este tipo de falta s aulas compreensvel e justificvel. Alm desta marca cultural favorvel ao trabalho infantil e juvenil, est a pobreza e luta pela sobrevivncia, que se constituem um forte condicionante desta problemtica no Brasil (VIVARTA, 2003).

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srie e menos xito na carreira escolar. Outras pesquisas (PSACHAROPOULOS; ARRIAGADA, 1989), desta feita realizadas no Brasil, confirmaram a ideia popular de que o trabalho prejudica a escolaridade em grande parte da populao em idade escolar. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), de 1995, mostraram que do total de jovens (entre 15 e 19 anos) que vivem no pas (15,8 milhes), nada menos que 56,6%, portanto, cerca de 8,9 milhes de indivduos, eram economicamente ativos. Em 1997 existia cerca de 7,5 milhes de trabalhadores com idade entre 10 e 14 anos. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD) de 2003 revelaram que 8,1% dos brasileiros entre 7 e 15 anos trabalham e estudam cotidianamente. No Nordeste, algo em torno de 5% da populao economicamente ativa, particularmente na zona rural, encontra-se na faixa etria entre 10 e 14 anos, um ndice este bastante significativo (CAMPOS et al., 2003). A populao de adolescentes no Brasil se distribui desigualmente, estando a sua grande maioria concentrada no Sudeste (41,5%) e no Nordeste (32,1%). Estudos estimaram que a crescente onda de adolescentes no pas resultaria num alargamento dessa populao chegando ao pice por volta de 2005 (BERCOVICH et al., 1997), o que representaria um motivo a mais de preocupao com a realidade sociolgica, poltica e econmica dos adolescentes e jovens brasileiros. A anlise de economistas tem mostrado que e emergncia do Brasil como potncia econmica no cenrio mundial depende em grande medida de como aproveitar o potencial da populao jovem para produzir mais e melhor, usando e explorando as tecnologias e as oportunidades de negcios do nosso tempo (CARNOY, 2004). Uma pesquisa qualitativa realizada no Estado de So Paulo (OLIVEIRA et al., 2001) mostrou que a questo do trabalho, na tica dos adolescentes, encerra uma polmica contradio: Por um lado o trabalho visto como uma experincia positiva que favorece a maturidade, a aprendizagem e a construo do futuro; mas em contrapartida tambm representa cansao, falta de tempo para dedicar-se sua formao e um bice aos estudos na escola formal (McCOY; SMYTH, 2007). Um estudo sobre o impacto educacional do trabalho infanto-juvenil (CAMPOS et al. 2003), realizado no Rio Grande do Norte, sugere que percalos, interrupes e atrasos na trajetria de vida escolar dos adolescentes se associam sua insero

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precoce no trabalho. Gomes (1989), em seu estudo acerca do mesmo tema, chama a ateno para os fatores associados a certos desfechos da condio de estudantetrabalhador sobre a escolaridade dos jovens. Destaca, porm, que com base nas pesquisas de que dispomos no possvel afirmar uma relao mecnica entre trabalho e escolarizao: H tipos de trabalho que realmente impedem a criana e o jovem de ir escola, roubando-lhes inestimveis oportunidades. No entanto, em algumas circunstncias o trabalho pode favorecer o estudo. Este debate particularmente importante na Bahia onde atualmente, segundo dados do ltimo levantamento da PNAD, mais de 370 mil crianas e adolescentes continuam submetidos ao trabalho precoce (SILVA, 2005). A Bahia o segundo estado brasileiro em nmero de bolsas do Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (PETI) beneficiando mensalmente cada criana em risco de trabalho precoce, com at R$ 50,00 na zona urbana e R$ 45,00 na zona rural. Apesar das 122.718 bolsas distribudas entre 99 municpios baianos s Salvador contando com 8.933 delas , a situao ainda dista muito da ideal, pois segundo dados oficiais ainda existem hoje no Brasil cerca 930 mil crianas e adolescentes, na faixa dos sete aos 15 anos, sofrendo a explorao de sua mo de obra. Estudos recentes, ainda no publicados, desenvolvidos no Instituto de Sade Coletiva da UFBA, demonstram ter o trabalho infantil, no ambiente urbano de Salvador, um significativo impacto sobre a escolaridade da criana, em virtude de sua exposio experincia de trabalho. Os dados deste estudo apontam para a necessidade de melhor compreender os aspectos educacionais implicados na relao do indivduo com o trabalho e de identificar os resultados ou interferncias das atividades laborais de uma criana ou adolescente sobre a sua escolaridade e formao. Apesar da grande relevncia do tema e da crescente produo cientfica em torno da questo aqui discutida, so poucos os estudos que investigam que tipo(s) de trabalho mais interfere(m) na formao e na escolaridade do aluno-trabalhador e em que medida e de que forma o faz (ABDALLA, 2004; FASSA, 2000; PATRINOS; PSACHAROPOULOS, 1997). Uma hiptese ainda a ser suficientemente testada a de que os sujeitos com experincia de trabalho na infncia e adolescncia em contraste com os que no trabalham/trabalharam alcanam resultados

diferenciados, tanto no sentido da sua (in)formao (escolaridade e cidadania) como

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na possibilidade de sua deformao (prejuzos sade fsica, emocional e educacional), no havendo uma tendncia nica, como supem alguns estudos. Os novos achados sobre o tema teriam a virtude potencial de favorecer uma maior compreenso da problemtica, bem como o desenvolvimento de polticas pblicas capazes de abordar o trabalho da criana, do adolescente e do jovem de forma mais efetiva e eficaz (MASTEN; COATSWORTH, 1998; MENDONA, 2002). Assim pensando, este estudo concentrou-se na investigao dos nexos existentes entre a condio de estudante-trabalhador e os resultados escolares e formativos que se associam a tal experincia.

Uma viso panormica: espectros da opresso

Embora a problemtica do trabalho infantil e juvenil no seja nova, apenas nas ltimas dcadas que comea a haver uma significativa mobilizao social em torno do tema, em diversas partes do mundo. No sculo XVIII havia na Europa um razovel contingente de crianas, adolescentes e jovens trabalhando e isto, contudo, no era objeto de preocupaes to generalizadas nem suscitava um debate to amplo e acalorado como os que estamos acostumados a presenciar hoje. A preocupao social com a escolarizao e com o treinamento para o trabalho no atingiam os nveis exigidos hoje pela maioria dos pases do mundo (ARIS, 1975). Foi somente com a Revoluo Industrial do sculo XVIII e o advento do sistema fabril que a questo do trabalho infanto-juvenil tornou-se um problema de grande envergadura no cenrio europeu e mundial. Antes disso, a educao no tinha sido ainda popularizada, proporcionalmente poucos estudavam e, para a classe trabalhadora, o trabalho era ao mesmo tempo um meio de educao e uma forma de subsistncia. O advento e afirmao o modo de produo capitalista , na opinio de alguns, um dos grandes motivos da depauperao da mo de obra infanto-juvenil, chegando a impor, mesmo a crianas pequenas, longas jornadas de trabalho, em condies as mais insalubres e humilhantes possveis:[C]om a entrada em cena da Revoluo Industrial [...] os capitalistas recrutam vastos contingentes de crianas, adolescentes e mulheres para o lugar dos homens adultos. [...] Assim, nesse contexto que comea a se instaurar a partir dos sculos XVII e XVIII e que se consolida j na primeira

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metade do sculo XIX, a atividade desenvolvida por crianas e adolescentes perde todo seu carter formativo e passa a se constituir em uma das mais cruis formas de explorao do ser humano (CAMPOS et al., 2003, p. 147). Grifo nosso.

Nos nossos dias, os sistemas de governo bem como a legislao da maioria dos pases modernos tm estimulado iniciativas e aes de combate ao trabalho infantil, partindo do entendimento de que a proteo e a educao da infncia so indispensveis para a sobrevivncia e o aperfeioamento da sociedade (COELHO, 1991). Contudo, a relativa falta de informao sobre a realidade do trabalho infantil em cada contexto junto a fatores de ordem socioeconmica e poltica reduzem as possibilidades de enfrentamento do problema com perspectivas mais promissoras e bem articuladas com a realidade.

Futuro ameaado: chaves (im)pertinentes sobre o fim da infncia Tem havido uma rpida proliferao de ideias, no atual contexto social, acerca da impertinncia e impropriedade do trabalho na infncia. Desde os especialistas at s prprias crianas e adolescentes, passando pelos legisladores, educadores e administradores, tem predominado o critrio do deve ou no deve, do certo ou errado referenciado nas normativas existentes e no patrulhamento de organismos nacionais e, sobretudo, internacionais (OLIVEIRA, et al. 2001). O Estatuto da Criana e do Adolescente e a Campanha de Combate ao Trabalho Infantil foram amplamente socializados (Dirio Oficial da Unio, 1990), gerando uma maior conscincia social sobre o tema e uma forte reao atitudinal legalista, sobretudo entre as famlias de classe mdia. Mesmo estudos realizados por pesquisadores acadmicos, em diversas universidades brasileiras, tm recebido a acentuada marca da lei, alguns dos quais se limitam a descrever ou indicar a distncia entre esta e a realidade do trabalho na populao ativa ou a reivindicar o cumprimento estrito das leis existentes. A ideia de que a educao e a formao da criana, desde cedo na vida, so indispensveis para seu desenvolvimento posterior e, portanto, para o bem geral e avano da sociedade tem servido de base no s para as iniciativas educacionais de proteo da infncia, mas para toda uma gama de aes e atitudes que supem

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a negatividade e periculosidade da utilizao de crianas como mo de obra. Martnez (1994), por exemplo, afirma:Indiscutivelmente a escola, como espao de aquisio no s de conhecimento e capacidades, mas como espao de socializao, de contato com a produo cultural humana em seu sentido mais amplo e de interaes sociais mltiplas, [...] constitui um importantssimo espao de desenvolvimento que roubado, precocemente, aos pequenos trabalhadores (MARTNEZ, 2001, p. 9). Grifo nosso. A escola deve ser o espao de aprendizagem por excelncia. o lugar onde a criana deve estar. A escola, para a criana em situao de rua, pode se transformar no lugar de oportunidade social, no qual conquista um sistema pessoal de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores. A integrao da cognio, do afeto e das mais variadas formas de expresso da criana atravs da ao, propiciadas pela escola, a tornam um agente de cidadania. Conhecer e exercer direitos e deveres permitem que a criana adquira autorrespeito e autoconfiana (KOLLER, 2003, p. 171). Grifo nosso.

Assim, criou-se dentro da sociedade contempornea uma corrente, imbuda de ideais democrticos e princpios humanitrios, que advoga a inviabilidade do trabalho infantil em concomitncia com o processo de escolarizao da criana, do adolescente e do jovem. Souza (2004), por exemplo, assevera que o estudo fundamental para o crescimento e afirmao do jovem, e a [sua] participao no mundo do trabalho no pode ser feita em detrimento deste. (p. 57) A seu ver, no deve existir predominncia do trabalho sobre o estudo para que no se roube do jovem o seu tempo, o seu direito formao. (p. 58) Apesar da nfase na escola como agncia formadora indispensvel, muitos estudiosos do tema reconhecem que urge transformar a instituio escolar. Essa viso crtica considera quea escola hoje no permite uma formao cidad; pelo contrrio, reproduz a violncia e o autoritarismo, alm de se tornar um espao pouco motivador, alienante e facilitador de comportamentos de risco. [...] As crianas passam pela escola, segundo as ltimas estatsticas do Ministrio da Educao, sem que consigam nela adquirir e desenvolver competncias essenciais para a vida em sociedade (GUZZO, 2003, p.32, 35).

Se hoje, dadas as circunstncias, existe um movimento pr-escola e antitrabalho predominante, vale lembrar que nem sempre foi assim (CECCON et al., 1985). H quase dois sculos, o trabalho realizado por crianas era,

paradoxalmente, considerado por muitos educadores como um elemento formador, desejvel e insubstituvel, devido ao seu grande potencial educativo e desenvolvedor do carter e das habilidades e competncias latentes e/ou passveis de melhora no

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indivduo. Grandes nomes tais como Pistrak (2000), Freinet (1998), Claparde (1973) e Dewey (1998) so por vezes evocados no sentido de dar base terica para discursos e aes que apoiam a utilizao do trabalho infantil como instrumento pedaggico. O conceito de trabalho subjacente a esta postura considera-o como a principal forma de relao do homem com a natureza, como atividade fundamental para a transformao do sujeito e de sua realidade, e, inclusive, como produtor de subjetividades. Trabalho, neste sentido, diferente de emprego. Emprego insero no mercado de trabalho, obedecendo a certos critrios formais e cumprindo certos requisitos estabelecidos em nossa sociedade. O trabalho, porm, independe da oportunidade de emprego e at mesmo de uma remunerao correspondente. As tarefas domsticas e as atividades escolares, portanto, a rigor, tambm podem ser consideradas trabalho. neste sentido que se coloca Saviani (2007) ao afirmar:[D]iferentemente dos animais, que se adaptam natureza, os homens tm que fazer o contrrio; eles adaptam a natureza a si. O ato de agir sobre a natureza, adaptando-a s necessidades humanas, o que conhecemos pelo nome de trabalho. Por isto podemos dizer que o trabalho define a essncia humana. Portanto, o homem, para continuar existindo, precisa estar continuamente produzindo sua prpria existncia atravs do trabalho (SAVIANI, 2007, p. 154).

Esta viso, de inspirao marxista, tende a ampliar a concepo de trabalho ao ponto de torn-lo uma categoria ontolgica central para a compreenso do ser humano e de seu modo de existir no mundo. Assim entendido, o trabalho uma atividade humana que envolve o homem todo (suas dimenses fsica, psquica e social) no seu cotidiano e exerce importante papel na prpria construo da subjetividade humana. (GOULART, 1998, p. 13). Contudo, embora o trabalho seja constitutivo da existncia humana em todas as pocas e lugares, na sociedade contempornea, sofrendo a explorao do capital e sujeito a um controle rigoroso mediado por hierarquias e burocracias diversas, o trabalho e a produo se veem implicados em condies e caractersticas alienantes e desumanizadoras. Tal o caso do chamado trabalho infantil,4 que consiste, por definio, no exerccio de atividades de mo de obra, destinadas gerao direta ou4

Segundo a prpria OIT, o trabalho da criana implicado em seu processo normal de socializao, educao, asseio pessoal e ajuda em tarefas domsticas no constitui o chamado trabalho infantil (VIVARTA, 2003, p. 25).

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indireta de renda (ainda que seja para a prpria famlia), especialmente aquelas que prejudicam o processo de escolarizao ou que comprometam a sade e desenvolvimento psicoemocional dos indivduos trabalhadores (Cf. VIVARTA, 2003). Pistrak (1888-1940), considerando a ocupao das crianas na Rssia que ele conheceu, assume uma posio clara diante da problemtica, ao afirmar:Os trabalhos domsticos executados pelas crianas so nocivos sua sade, perdendo-se com isso um tempo precioso de estudo: trata-se, portanto, de uma coisa inaceitvel. Geralmente tais trabalhos no so agradveis e se, alm disso, so cansativos, tornam-se rapidamente um pesado trabalho obrigatrio, um presdio em miniatura, cujo resultado exatamente o inverso daquilo que se busca, porque as tarefas, em vez de despertar o amor ao trabalho (que pode ser desenvolvido por uma tarefa de fcil execuo), provocam a repugnncia das crianas. Por outro lado, pensamos ser impossvel renunciar a todo e qualquer tipo de trabalho domstico, porque ele permite adquirir uma srie de bons hbitos, que introduzem a civilizao no seio da famlia e sem os quais seria impossvel pensar na criao de um novo modo de vida de que se fala tanto neste momento. Ora, o novo modo de vida um dos passos mais importantes no caminho da nova civilizao. [...] A higiene pessoal (trato do corpo, dos dentes, das roupas, da cama, dos livros, da caneta, dos cadernos etc.) deve-se tornar um hbito to slido que seja impossvel voltar sujeira, s condies de vida anti-sanitrias (PISTRAK, 2000, p. 52). Grifo nosso.

Assim, mesmo no desconhecendo a existncia de trabalhos imprprios, os que reconhecem e enfatizam o potencial do trabalho como elemento formador ou princpio educativo tendem a valorizar as experincias extraescolares tais como as de trabalho, como grandes oportunidades ou espaos de aprendizagem e formao, to importantes ou mais que a escola formal tradicional, com suas conhecidas limitaes pedaggicas e institucionais (YOUNG; GUILE, 1996). No se trata, porm, de substituir a escola pelo trabalho, mas de compreender o processo educativo de maneira ampla e difusa (embora no assistemtica), o que fatalmente implica considerar a influncia marcante da famlia, do trabalho, dos meios de comunicao etc. (BURNHAM, 2001; OLIVEIRA, 2001). A exemplo de Cacciamali e Tatei (2008), muitos estudiosos sustentam que, por razes de natureza cultural e socioeconmica, no se pode criar um espao de ausncia do trabalho na vida das crianas e dos jovens no Brasil. Embora naturalmente no se esteja defendendo o uso livre da mo de obra infantil ou juvenil como fator de produo e renda, chama-se a ateno para a complexidade do problema. Para cada problema complexo, h sempre uma soluo rpida, simples e errada:

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[O] simples ato de banimento do trabalho infantil no a melhor soluo existente, uma vez que, se por um lado a renda proveniente das crianas muitas vezes essencial para a sobrevivncia dela e de seus familiares, por outro lado a carncia de servios fundamentais no desenvolvimento das crianas, como, por exemplo, a dificuldade de acesso ao sistema educacional em reas rurais longnquas, no lhes oferece alternativas a no ser trabalhar (CACCIAMALI; TATEI, 2008, p. 287).

Uma ponderao acerca deste posicionamento, cada vez mais polmico e criticado, nos levaria a concluir na opinio de alguns autores que o potencial formador-educativo do trabalho, embora inquestionvel, fica subsumido e quase neutralizado por questes de ordem prtica, por exemplo, a explorao do trabalho com fins lucrativos. Tais questes no podem ser desconsideradas. Entre elas esto as condies concretas em que se do o trabalho do jovem, a possibilidade real de promover a sua emancipao e crescimento profissional e o fato, no menos importante, de que suas motivaes e objetivos declarados ao optarem pelo trabalho se devem mais a necessidades ou dficits econmicos e financeiros que a demandas por formao e profissionalizao. Isto emergiu da fala dos sujeitos entrevistados numa pesquisa realizada por Oliveira e Robazzi (2001):O discurso a favor do trabalho infanto-juvenil, alm da necessidade de complementao de renda da famlia, aponta sua condio de fator de aprendizado e qualificao, ou seja, trabalho pedaggico voltado no para a produo de bens e servios, mas para a formao profissional do jovem. Esse cunho de formao (trabalho-aprendizagem), embora no muito claro na cabea dos adolescentes, transparece tambm em suas falas; contudo, parece-nos que no h distino do trabalho desenvolvido pelos adultos, acrescentando nada ou muito pouco educao profissional, ocupando o tempo que poderia ser destinado aos estudos ou brincadeiras, base para o desenvolvimento saudvel e formao da estrutura do futuro adulto. [...] Alertamos para o ato ilusrio do carter formador para o ingresso do jovem no mercado de trabalho, que, mascarando-se de aprendizado, oculta a verdadeira essncia da insero precoce do adolescente no trabalho, ou seja, o benefcio da relao empregado-empregador, em que o primeiro subordina-se ao oferecido pelo mercado porque necessita trabalhar, e o segundo, como tem condies de escolher a mo-de-obra, estabelece o valor que quer pagar, lucrando com a possibilidade do no pagamento dos encargos determinados pela legislao trabalhista (OLIVEIRA; ROBAZZI, 2001, p. 85).

No mbito legal tambm se verifica esta fissura polmica. Na legislao brasileira, o trabalho formal (de carteira assinada) permitido ao jovem somente a partir de 16 anos (em trabalhos diurnos e no insalubres), exceto na condio de aprendiz, em cujo caso pode exercer atividade produtiva, a partir dos 14 anos,

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conforme os parmetros estabelecidos na normativa (VIVARTA, 2003, p. 25). Contudo, existem diferentes interpretaes sobre o que seria realmente o trabalho educativo consentido pela lei. As discusses normalmente se concentram mais no local onde o adolescente desenvolve as atividades que na natureza do trabalho em si. Este ltimo aspecto, mais difcil de definir, carece ainda de aprofundamento. Na lei, o aspecto educativo do trabalho em geral facilmente posto em cheque quando este atrapalha a escolaridade, dando a entender que educao se faz nica ou preponderantemente na escola, e que o trabalho deseduca. O pragmatismo raso da lei prescinde de discusses tericas sobre o conceito de educao e resolve a situao categoricamente identificando educao e escola com um sinal superlativo de igualdade que assustaria at os educadores menos afeioados s expresses numricas ou s anlises sintticas.O trabalho educativo pressupe um programa social desenvolvido sob a responsabilidade de entidade sem fins lucrativos em que as exigncias pedaggicas prevalecem sobre o aspecto produtivo. Ao desenvolver seu programa a entidade deve ela mesma ministrar educao base do programa e propiciar ao adolescente o trabalho correlato. A colocao desses adolescentes em empresas desqualifica o aspecto educativo do programa, constituindo-se em mera intermediao de mo-de-obra de adolescentes desqualificados e a baixo custo, gerando o reconhecimento de vnculo diretamente com o tomador dos servios (COELHO, 1991, p. 29).

As leis de proteo criana e de regulao do trabalho na adolescncia tm hoje no Brasil o mesmo esprito (liberal) das leis que, a este respeito, inexistiam no perodo da Revoluo Industrial (e que timidamente se esboaram entre ns h algumas dcadas em virtude do milagre brasileiro). Visam garantir a produo, manuteno e uso (livre) do capital humano da juventude como insumo (ontem, da produo industrial; hoje, da economia da informao). Outrora valiam mos pequenas e hbeis; corpos dceis; sujeitos (de fato) incapazes de reclamar ou lutar por emancipao. Atualmente, crebros jovens de seres agradecidos (ao mercado das tecnologias) por poderem aplicar (e vender) o seu potencial produtivo, a fim consumir jeans, celulares, iPODs e entretenimento via web. Jovens se no incapazes, ao menos distrados (entretidos), e, assim, quase to dirigveis quanto as crianas de outrora. Entre os jovens das classes mais pobres, porm, uma sria contradio: Como (1) ajudar em casa e, ao mesmo tempo, (2) manter o estilo de vida (sem o

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qual sua identidade juvenil posta em cheque), e, ainda, (3) progredir nos estudos, se nestes trs mbitos preciso investir pesadamente? Quem h de financiar a juventude? Quem far dela, como sempre se fez (?), a soma de nossas expectativas? (cf. FRIGOTTO, 1996, p. 63)

Tempo para (sobre)viver: uma agenda deveras disputada

Entre os elementos que integram a discusso em torno das condies de trabalho, a que se submetem as crianas e adolescentes, est o fator tempo, que inclui aquele destinado ao estudo e ao lazer, e no s atividade laboral (McCOY; SMYTH, 2007). Tanto a quantidade como a qualidade do tempo contam. Jornadas longas e escola noturna so misturas cidas para o adolescente trabalhador (ABDALLA, 2004). No estudo de Oliveira e Robazzi (2001), 70% dos sujeitos tinham uma jornada diria de oito horas, cinco dias por semana, o que segundo eles ocasionava cansao, sono, baixa concentrao nas aulas e falta de tempo para estudo individualmente e tarefas de casa (ARAJO FILHO, 2008). Segundo estudos citados por Jeremy Staff e Christopher Uggen (2003), trabalhar mais de 20 horas por semana aumenta, dentre outras coisas, a delinquncia e o consumo de droga entre adolescentes e jovens. Gomes (1989), por sua vez, tambm enumera algumas caractersticas do trabalho com impactos significativos sobre a escolaridade tais como segurana, remunerao, setor produtivo, vnculos familiares no trabalho, (in)formalidade da atividade exercida e tempo nela despendido diariamente:O trabalho no setor informal, alm de inseguro em geral e de baixa remunerao, destacadamente na agricultura (em particular quando no exercido com a famlia), desfavorece a permanncia ou reentrada na escola. As atividades laborais facilitam o acesso escola apenas para o pequeno contingente que dispe de emprego fixo no setor formal, cujas premncias familiares lhe fora a controlar a maior parte dos seus salrios. preciso ainda que as tarefas no sejam extenuantes e a jornada de trabalho no seja muito longa, pois segundo vrias pesquisas, o mximo de nove horas um marco significativo, o que confirma ser bem curta a jornada de estudos para o trabalhador (GOMES, 1989, p. 107). Grifo nosso.

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Com base em tais informaes, seria, pois, razovel esperar uma dificuldade escolar diretamente proporcional extenso da jornada de trabalho (WARREN, 2002). Todavia, a despeito de tal hiptese ainda no ter sido exaustivamente testada, no raro encontramos na literatura afirmaes de carter conclusivo e generalizador, semelhantes a esta:Quando a criana ou adolescente trabalha, sobra muito pouco ou nenhum tempo para brincar ou praticar esportes, uma vez que seu dia preenchido pelo trabalho e pela escola. Alguns, quando ainda conservam alguma motivao, brincam ou praticam esportes nos fins de semana (a espelho dos adultos contemporneos), s vezes nem isso, o que confirma a influncia no muito benfica do trabalho em sua vida (OLIVEIRA; ROBAZZI, 2001, p. 87). Grifo nosso.

Embora seja certo que o tempo da criana e do adolescente em nossos dias sofre maior controle direto dos pais, de outros adultos e da sociedade em geral, comparativamente realidade de poucas dcadas atrs, no se pode supor que a escola e o trabalho invariavelmente roubam ou matam a infncia. Quem quer que tenha lidado com crianas de rua ou trabalhadores mirins sabe que nem o asfalto nem as paredes podem conter o que h de ineludvel e caracterstico na condio de infante. Nossa (justa) preocupao, portanto, deve ser a de evitar a restrio do potencial da criana, no a sua suposta e ameaadora supresso.

Cidadania sim, mas qual?

Ao se falar de educao para a cidadania, quer seja pelo trabalho, quer seja mediante a ao da escola, preciso antes esclarecer de que cidadania e de que cidado se est falando. A mesma sociedade burguesa que forjou o trabalho fabril extensivo aos infantes encarregou-se tambm de desenvolver noes e conceitos diversos tais como o de cidadania que integram um iderio por meio do qual possvel ler e situar-se na realidade vivida. Da a importncia de explicitar a natureza e a orientao dos discursos que comumente embasam nossa ao e interveno na realidade, especialmente no caso de haver pretenso de transform-la em alguma medida. Um conceito primeiro de cidadania pode ser encontrado em Marshall (1967), segundo o qual a cidadania constituda por trs componentes bsicos: (1) o direito

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civil (conquistado no sc. XVIII), (2) o direito poltico (representado pelo voto) e (3) o direito social (redistribuio de renda e poder). Em sua anlise, Varela (1999) e Coelho (1990) apontam e questionam os limites e limitaes de tal conceito. Sua crtica incide sobre a falta, naquela concepo, dos direitos culturais e assinala, ademais, seu vis individualista e restritivo. Tambm questionam a ideia de direito como ddiva e no como conquista. Haveria, portanto, que considerar a cidadania numa perspectiva evolutiva e hermenutica na qual alm de direitos aparecessem tambm os deveres do cidado. Na viso de Varela (1999), a cidadania se define como competncia humana de fazer-se sujeito, para fazer histria prpria coletivamente organizada (p. 64). Pedro Demo (1995), por sua vez, sugere a existncia de dois tipos de cidadania, a tutelada e a emancipatria. A primeira caracteriza-se pelo clientelismo, paternalismo, assistncia e assistencialismo sem profundas mudanas na estrutura econmica, alm de ser uma cidadania de direito, do tipo top down. A segunda se assenta na ideia de equalizao de oportunidades, caracterizando-se

potencialmente por seu carter emancipador. Semelhantemente, em Paulo Freire (FREIRE, 2001) cidadania muito mais que um simples adjetivo que qualifica a pessoa em funo de sua geografia. Tambm no apenas o fato de ser um cidado que vota. O conceito de cidadania vem casado com o conceito de participao, de ingerncia nos destinos histricos e sociais do contexto onde nos encontramos. Uma sociedade cidad, assim, a que permite que se ouam as diferentes vozes populares. A voz cidad expe a decncia, a afirmao de si como gente, o exerccio tico, a possibilidade de interveno na realidade, a escolha pelo coletivo e assuno da responsabilidade pela construo possvel do sonho de uma sociedade cada vez menos desigual (VASCONCELOS; BRITO, 2006, p. 52) Frigotto (1992) nos fala de uma cidadania ausente que se manifesta na sua base material mais radical pelas relaes sociais de excluso. A excluso, neste sentido, a prova mais direta e visvel da cidadania ausente exemplificada pelos milhares de analfabetos funcionais que figuram nas estatsticas, o Movimento dos Sem Terra (MST), as doenas endmicas, os cintures de misria, a concentrao de riqueza etc. Para Frigotto (1992)

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A cidadania pressupe requisitos fundamentais como conscincia crtica, raciocnio lgico, responsabilidade individual e coletiva, habilidades de tomar decises e iniciativas, de aceitar e conviver com diferentes opinies e pontos de vista, de criar alternativas de solues. Enfim, estar preparado para a autonomia, para a responsabilidade, para a participao efetiva nas transformaes necessrias ao progresso do pas. Portanto, no para a alienao, para a dependncia e para o consumismo (FRIGOTTO, 1992, p. 74).

cidadania clssica, concebida como gozo pleno dos direitos polticos de um cidado em uma determinada sociedade, Augusto Cury (1998) contrape outras duas noes de cidadania: a cidadania da cincia e a cidadania social. Sua crtica cidadania clssica tambm alude ideia que lhe subjacente, do no comprometimento do indivduo com a sociedade. Para eleA cidadania um exerccio intelectual de mo dupla, que envolve tanto os direitos polticos de um cidado em sua sociedade como os deveres de um cidado para com essa [mesma] sociedade. Esses deveres no apenas se referem queles previstos em lei, mas tambm queles que dependem da maturidade intelectual, emocional e social, tais como: solidariedade, tolerncia, dignidade, cooperao social, preocupao com as dores e necessidades psicossociais do outro, aprender a se doar psicossocialmente sem esperar a contrapartida do retorno, etc. [...] O nico retorno legtimo que deveria ser almejado no exerccio da cidadania aquele produzido pelo prazer de contemplar a melhora da qualidade de vida do outro, da sociedade e do meio ambiente (CURY, 1998, p. 260, 261).

Nesta viso ampliada de cidadania, at mesmo as empresas deveriam exercer uma espcie de cidadania empresarial. Deveriam no apenas ter como meta a competitividade, a qualidade de seus produtos e servios e a lucratividade, mas tambm a cidadania, expressa pela meta de procurar expandir a qualidade de vida dos seus trabalhadores e da sociedade como um todo, bem como deveriam exercer a cidadania verde, ou seja, a cidadania demonstrada pela preocupao com a preservao do meio ambiente, no como marketing poltico, mas como responsabilidade social (GIROUX, 2000). Nesta perspectiva, a cidadania, mais que uma ddiva ou favor poltico, surge como uma construo ativa. Trata-se de algo implicado num processo contnuo de aprendizagem (FIGUEIREDO, 1999). Neste sentido, a educao para a cidadania deve ser entendida como a capacitao de cada sujeito para estruturar a sua relao com a sociedade, com base em regras essenciais de convivncia que valorizem os princpios da autonomia, da responsabilidade individual e da participao informada (MARTINS, 1995).

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Esta a cidadania de que falamos neste estudo e que, a nosso ver, deve estar no centro do debate sobre a formao de crianas e jovens, de ambiente urbano ou rural, cujas vidas sejam marcadas pela experincia de aprendizagem e desenvolvimento, quer no espao pedaggico da escola, quer no contexto da atividade extraescolar, no trabalho, em casa ou na rua (LOMBARDI, 2002; MARKET, 2004).Educar jovens no apenas formar personalidades, desenvolver aptides fsicas e intelectuais, estimular talentos e criatividade mas, sobretudo, formar cidados com capacidade de analisar, de selecionar e utilizar criticamente a informao que lhes disponibilizada; que adquiram os valores de uma cidadania responsvel, com hbitos de convivncia e tolerncia e no respeito pelos direitos dos outros (direitos humanos, valores democrticos, direito diferena entre outros) (PIRES, 2001, p. 180).

Assim, neste estudo no tratamos a cidadania como mero direito civil ou poltico. Em vez disso, enfatizamos aquelas caractersticas que, em nossa perspectiva, esto mais diretamente vinculadas ao processo educacional e formativo e que poderiam, em princpio, ser potencializadas ou desenvolvidas em diferentes espaos de aprendizagem tais como a famlia, a escola e o trabalho. Referimo-nos especificamente a comportamentos e atitudes de pontualidade, respeito aos demais, hbitos de organizao pessoal, responsabilidade, solidariedade e civilidade, bem como de cuidado com o meio ambiente.

As histrias que nos contam: os limites da ignorncia A falta de suficiente informao e estudos acerca dos processos educativos extraescolares, sobretudo os relacionados atividade laboral dos estudantes, em parte responsvel pela dificuldade que temos, enquanto sociedade, de equacionar as polmicas questes que assediam o nosso cotidiano, concernentes educao da infncia no contexto de um mundo marcado pelo capitalismo estrutural, pelo avano tecnolgico e pela globalizao da economia.Pouca ateno tem sido dada s origens da competncia no domnio do trabalho. Em um estudo, a competncia no trabalho em jovens foi significativamente predita por suas realizaes acadmicas, conduta, e competncia social no desenvolvimento prvio. Transies bem-sucedidas ao mundo adulto tambm tm recebido escassa ateno na literatura sobre o desenvolvimento humano, muito embora este seja um tema de considervel importncia para as polticas pblicas.

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A importncia das atividades extracurriculares como um domnio de competncia tambm tem sido uma rea de estudo negligenciada. Pouco se sabe acerca do envolvimento em atividades extracurriculares e que papis pode ter no desenvolvimento. [...] A importncia das atividades extracurriculares para o desenvolvimento das competncias precisa ser mais explorada, especialmente para testar a crena popular de que tal envolvimento pode funcionar como um fator de proteo para os jovens de alto risco por vincul-los, de maneiras mais positivas, escola, a adultos positivos ou grupos de amigos de influncia positiva ou por engendrar autoeficcia (MASTEN; COATSWORTH, 1998, p. 212).

O que se sabe hoje que nenhuma instituio, estudo ou pesquisa concluiu ou corroborou o acerto ou pertinncia de muitas das crenas populares que povoam o nosso imaginrio social sobre o trabalho infantil, as quais interferem inclusive na configurao de aes polticas e pedaggicas orientadas educao e ao trabalho. Patrinos e Psacharopoulos (1997), por exemplo, num estudo com indgenas no Peru, constataram que o trabalho infantil em si no se mostra prejudicial escolaridade, concluindo que fatores culturais e a natureza da atividade laboral desenvolvida em paralelo com a escola so aspectos ainda sem suficiente estudo e explicitao por parte dos pesquisadores.Uma das ideias estabelecidas que o trabalho prejudica a escolaridade e, para o conjunto da populao em idade escolar, este um fato. Na verdade, porm, o conjunto de pesquisas nos mostra a impossibilidade de afirmar uma relao mecnica entre trabalho e escolarizao. H tipos de trabalho que realmente impedem a criana e o jovem de ir escola [...]. No entanto, em algumas circunstncias o trabalho pode favorecer o estudo (GOMES, 1989, p. 107). Grifo nosso. O trabalho, presumivelmente, marcar trajetrias diferentes de desenvolvimento em funo do significado e sentido que assume na subjetividade; e seu impacto no desenvolvimento subjetivo no ser o mesmo, por exemplo, naqueles sujeitos em que [o trabalho] se configura como fonte de satisfao de necessidades subjetivas importantes, se comparados aos sujeitos que o vivenciam como espao de constante insatisfao. Esta linha de pesquisa permite questionar o carter absoluto que assumem certas afirmaes sobre as consequncias psicolgicas do trabalho infantil tais como comprometimento do desenvolvimento fsico, cognitivo e emocional, cancelamento de projetos de vida e desestruturao do mundo infantil: o mundo de liberdade se converte no mundo do dever (FERREIRA et al., 2000). Embora tais afirmaes sejam vlidas com relao ao desenvolvimento de muitas crianas e adolescentes que trabalham, no necessariamente exemplificam o papel que a situao de trabalho tem no desenvolvimento de outros (MARTNEZ, 2001, p. 12). Grifo nosso.

Nesta perspectiva, ao abordar a questo do trabalho infanto-juvenil e seus efeitos sobre a escolaridade e formao da criana e/ou do adolescente, importa considerar o atual estgio de conhecimento em que nos encontramos, bem como as

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inevitveis implicaes e motivaes das teorias, informaes e dados disponveis (ou no) acerca da realidade social. Uma pesquisa recente, dentro dessa temtica, realizada num municpio do nordeste brasileiro, revelou queuma anlise mais aprofundada, relacionando os ndices de evaso e repetncia escolares com a questo do trabalho de crianas e adolescentes, requer o levantamento de dados referentes a: (1) Crianas e adolescentes que trabalham e no frequentam a escola. (2) Crianas e adolescentes que esto na escola, embora defasados em relao faixa etria esperada nas seguintes condies: (2.1) Trabalham atualmente; (2.2) Trabalharam anteriormente; (2.3) Nunca trabalharam; (2.4) Sempre trabalharam. (3) Crianas e adolescentes que esto na escola e que no trabalham atualmente. (4) Crianas e adolescentes que esto na escola e trabalhando (CAMPOS, DIMENSTEIN; FRANCISCHINI, 2003, p. 157).

Os estudos de Masten e Coatsworth (1998), por sua vez, encontraram que[e]xperincias de trabalho podem prover uma oportunidade para os adolescentes desenvolverem um senso de eficcia e autoconfiana e adquirir as destrezas e habilidades exigidas para uma transio bemsucedida para a fase adulta. Um extenso estudo de painel com estudantes da escola secundria indicou que as experincias de trabalho dos adolescentes podem melhorar o sentimento de competncia, prover o bemestar do adolescente e fortalecer o relacionamento entre ele e seus pais. Contudo, demasiado trabalho, particularmente estressante, trabalhos do tipo beco sem sada esto associados a piores realizaes acadmicas, m conduta e ao uso de tabaco, lcool ou outras substncias (MASTEN; COATSWORTH, 1998, p. 212).

Convm, portanto, no se encerrar em posicionamentos extremos, mas aprofundar a discusso e ampliar o acervo de informaes disponveis com base nas quais ser possvel ensaiar uma nova interpretao e abordagem dos fatos. Nem pode ser o trabalho assumido como elemento formador a priori, revelia das profundas marcas que tem (e produz) na sociedade; nem tampouco concebvel a ideia translcida e pacfica de educao da infncia mediante uma escolarizao institucionalizada, regular, descolada das demandas da realidade, do mundo do trabalho e dos setores produtivos (BURNHAM, 2001, 2004; STAFF; UGGEN, 2003; YOUNG; GUILE, 1996). preciso explicitar, to profunda e amplamente quanto possvel, a natureza das relaes entre educao e trabalho, entre escola e atividade laboral, de tal forma que tenhamos maior compreenso da natureza e das circunstncias implicadas nesta relao e, inclusive, das caractersticas que lhe so inerentes,

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considerando ainda a dinmica movente instituda e instituinte nela implicada (McCOY; SMYTH, 2007). Sem isto, nossas aes e intervenes podero, consequentemente, distar das nossas melhores intenes, dado o mascaramento existente na realidade sobre a qual pretendemos incidir. E, ainda que tal realidade seja por definio opaca e parcialmente impenetrvel nossa inteligncia, resulta temerrio eximir-se das aes possveis para as quais estamos plenamente capacitados e

responsabilizados.

A educao e a teoria do capital humano

Aps

a

Segunda

Guerra

Mundial,

no

contexto

das

teorias

do

desenvolvimento e da modernizao da sociedade, surge a Teoria do Capital Humano, que define a educao como fator de produo. A ideia-chave aqui a de que um acrscimo na margem de instruo e treinamento das massas resultaria em um acrscimo ou ganho na margem de capacidade produtiva da sociedade (CRAWFORD, 1994). assim que, bem no esprito do capitalismo moderno, Theodoro Shultz e seu grupo de pesquisa nos EUA sistematizam, na dcada de 50, a Teoria do Capital Humano, que vale a Shultz, em 1968, o Prmio Nobel de Economia (SHULTZ, 1973). Sua abordagem terica foi motivada pelo desejo de explicar as variaes do desenvolvimento e subdesenvolvimento entre os pases. A ideia de que a pronta recuperao do Japo e da Alemanha no psguerra ocorreu devido presena de grande quantidade de recursos humanos qualificados parecia justificar a validade e aplicao da teoria aos pases subdesenvolvidos do mundo. E foi o que aconteceu. No Brasil, o milagre econmico mostra-se um excelente caldo de cultivo para as ideias de Shultz, que se desenvolvem rapidamente. A quantidade de educao, medida pelo grau de instruo ou nvel de qualificao das pessoas (supostamente um indicativo do volume de suas habilidades, conhecimentos e atitudes), funciona como fator potencializador de sua capacidade de trabalho e de produo. Da a suposio de que investir em capital humano seria extremamente rentvel, quer na esfera individual (famlias e indivduos) ou coletiva (empresas e

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nao), por ser a posse deste tipo de capital algo estratgico para o progresso e o desenvolvimento. No final da dcada de 60 e incio da de 70, no Brasil, o pesado investimento no acesso escola, o Mobral,5 dentre outras iniciativas, expressavam a f de polticos e educadores nesta crena (SIMONSEN, 1969). Sob sua inspirao foram realizadas quase todas as reformas dos sistemas escolares da dcada de 60 aos anos 90. Paralelamente s discusses metodolgicas acerca de como medir o impacto da educao sobre a melhora da produo e da produtividade, surgiu a questo de que tipo de educao podia gerar diferentes capacidades de trabalho e, por conseguinte, de renda: conhecimento tcnico especfico ou atitudes e valores mais gerais? Afinal, o que melhor favoreceria o mundo da produo? Em geral, a nfase dos economistas era sobre o conhecimento especfico e a dos socilogos sobre as atitudes e valores; por exemplo, a disciplina no trabalho (BOWLES, 1975; DREBEN, 1968; GINTIS, 1971; PARSONS, 1961). Em meados da dcada de 70, e findo o milagre econmico brasileiro, a Teoria do Capital Humano comea a ser cada vez mais questionada.6 A escola, como espao educativo marcado pelas contradies de seu tempo, representa, na viso dos socilogos crticos, um lugar de produo de mais valia, uma vez que esta, com fundos pblicos, financia (in)diretamente os interesses do capital. Os estudiosos de inspirao marxista criticam o cariz economicista, instrumentalista, pragmtico, higinico e moralizante que a educao destinada qualificao para o trabalho adquire. Notam que este processo no pode ocorrer legitimamente seno articulado s lutas e interesses das classes populares. Chamam a ateno para a centralidade do trabalho como categoria ontolgica e econmica. Questionam o uso do trabalho e da qualificao para o trabalho como

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O Movimento Brasileiro de Alfabetizao (MOBRAL) foi um projeto do governo criado pela Lei n 5.379, de 15 de dezembro de 1967, durante o regime militar. Propunha a alfabetizao funcional de jovens e adultos, visando "conduzir a pessoa humana a adquirir tcnicas de leitura, escrita e clculo como meio de integr-la a sua comunidade, permitindo melhores condies de vida". Jovens e adultos frequentaram durante anos o MOBRAL, mas sem atingir um nvel aceitvel de alfabetizao ou letramento. A recesso dos anos 80 inviabilizou a continuidade do MOBRAL, que demandava altos recursos para se manter. Seus Programas foram assim incorporados pela Fundao Educar.6

Para mais informao crtica sobre a Teoria do Capital Humano, consultar estas obras, referidas por Frigotto (1996): Arapiraca (1982), Baslio (1993), Carnoy (1987), Finkel (1977, 1990), Frigotto (1984), Galvan (1979), Hirchen; Kohler (1987), Labarca (1977), Rossi (1978), Salm (1980).

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panaceia para resolver problemas sociais tais como a penalizao dos meninos e meninas de rua, a emancipao e insero socioeconmica dos desvalidos da sorte bem como a gerao de emprego e renda para o povo. A noo de trabalho como princpio educativo (KUENZER, 1988) e a percepo de escola como apenas um dentre os muitos espaos de formao do trabalhador ajudaram a combater, na dcada de 80, o iderio neoconservador que insiste em situar o mercado como agente regulador dos processos educacionais, eternizando a concepo instrumentalista, dualista, fragmentria, imediatista e interesseira de formao humana (FRIGOTTO, 1996, p. 49). neste sentido que se colocam as propostas de educao omnilateral, tecnolgica, politcnica e de escola unitria na perspectiva gramisciana (NOSELLA, 1992, 1993; RODRIGUES, 1998). A Teoria do Capital Humano, segundo Bertussi (1992), a verso mais acabada dentre as concepes econmicas neoclssicas, e se apoia nos princpios da economia da educao. Seu ncleo fundamental a crena na capacidade do sistema escolar para acelerar o desenvolvimento econmico e igualar oportunidades de promoo social, razo pela qual se julga que a educao deva estar tambm sob o controle de uma suposta racionalidade econmica. Verdadeira joia do pensamento liberal (SALM, 1980), esta teoria, com seus desdobramentos prticos, conseguiu desbancar progressivamente, no Brasil e em outras partes da Amrica Latina, a educao para a conscientizao e participao poltica, substituindo-a por uma educao destinada a produzir com eficcia os recursos humanos exigidos pela produo capitalista.7 J na dcada de 30 a educao popular incorpora a proposta de preparao tcnica, destinada a formar trabalhadores para a indstria. A Constituio de 1937 a primeira lei magna brasileira a tratar do ensino profissional, e o faz mantendo o tradicional preconceito contra o trabalho manual, destinado explicitamente s classes menos favorecidas e aos filhos dos operrios das indstrias e associados aos sindicatos (Art. 129). Em 1942 cria-se o Servio

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Uma compreenso mais ampla do tema, nesta perspectiva, exigiria analisar historicamente como a sociedade brasileira, moderna, industrial, capitalista e caracterizada pela propriedade privada dos meios de produo opera a separao entre o capital e o trabalho e considera o papel da educao no processo de produo e distribuio de mercadorias, e, ainda, da prpria educao como mercadoria.

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Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) em paralelo ao sistema de escolas tcnicas federais. Hoje, diante do advento do desemprego estrutural como base produtiva para o presente e para o futuro, e perante desafios educacionais gigantescos tais como o de incluso digital das massas e de formao de trabalhadores do conhecimento em larga escala, um novo enfoque de educao profissional se faz necessrio. Neste, a escolarizao fundamental, mdia e superior adquirem grande relevncia. Igualmente a articulao entre a escola e o trabalho passa e ter um papel preponderante tanto para a economia como para a poltica dos pases (BURNHAM, 2001, 2004).

A formao do jovem como estratgia de sobrevivncia global

A discusso dos processos educacionais e formativos da juventude nos ltimos anos tem sido associada quase que irremediavelmente ao desenvolvimento tecnolgico e telemtico sem o qual dizem os especialistas as economias nacionais j no podero sobreviver ou se desenvolver. A mundializao, neste contexto, tida como um fato que no temos a opo de aceitar ou rejeitar, restando-nos apenas a possibilidade de negociar, da melhor maneira possvel, nossa insero nesse processo (CARNOY, 2004, p. 7). Nesta perspectiva, para que as naes da Amrica Latina e de outros pases pouco industrializados ou em desenvolvimento possam (1) fazer frente aos desafios de crescer economicamente, (2) combater a pobreza e a desigualdade, (3) aperfeioar seu potencial produtivo, cientfico e tecnolgico e (4) dar conta de suas demandas sociais e polticas devem preparar uma nova fora de trabalho, flexvel, criativa, verstil e qualificada tcnica e tecnologicamente, mediante um processo e um sistema educativo enfocado na gerao e apropriao rpida de conhecimento sofisticado til, ou seja, manejando eficientemente informao com valor agregado. Assim, a educao da juventude muito mais, hoje, uma questo de subsistncia que de existncia. Diferente do passado recente, isto ocorre no mbito internacional ou transnacional, e no apenas na esfera individual ou no crculo social imediato. A necessidade e o desejo de competir transpem as fronteiras e cruzam os oceanos e mares.

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Por esta razo, atribui-se aos governos nacionais o (importante ou diminuto?) papel de articulador, incentivador e at de financiador de programas de inovao tecnolgica e formao profissional, mas se acentua que o xito do desenvolvimento econmico depende tanto de governos eficientes como de um setor privado inovador e bem administrado. (CARNOY, 2004, p. 26). Na perspectiva da economia da educao, a rpida e crescente chegada das classes populares universidade, em pases como o Brasil, vista no tanto como um processo legtimo, necessrio ou como uma conquista histrica, do ponto de vista poltico e democrtico, mas como um desafio inusitado ao Sistema de Educao Superior de produzir capital humano, sobretudo compensando as deficincias, em termos de formao, trazidas pelos novos alunos (de baixa renda) com este perfil (sem suficiente habilidades acadmicas) mediante programas de reforo, nos primeiros semestres letivos, a fim de evitar a evaso e elevar o nvel do produto final do ensino, o aluno graduado.

A formao universitria na perspectiva da economia da informao

dentro desta lgica, supeditada pelo capital transnacional na chamada sociedade da informao, que se critica a noo de indissociabilidade, no bojo da universidade, das atividades de ensino e pesquisa. Alm disso, adverte-se que a pesquisa e a inovao tecnolgica devem estar, cada vez mais, num domnio compartilhado por universidades pblicas e instituies privadas (RAMSEY et al., 2000), sobretudo as empresas do setor produtivo (no necessariamente as faculdades e universidades particulares). O argumento-base o de que isolada, a pesquisa universitria no cria sistemas de inovao [a verdadeira alma dos novos negcios], que tm muitas facetas e precisam se desenvolver de forma mais ampla no setor de produo. (CARNOY, 2004, p. 108). De igual modo, questiona-se a eficincia do sistema de educao universitria quando este insiste em aliar pesquisa e ensino, tal como o fazem, no Brasil, as Instituies de Ensino Superior (IES) pblicas (federais e estaduais). assim que se apresenta e ganha sentido a bem documentada constatao de Massy (1996), segundo a qual, quando a contratao e o sucesso

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profissional do corpo docente universitrio se baseia na realizao de pesquisas, passa a haver um efeito negativo sobre os compromissos dos professores com o ensino.8 Segundo as previses dos organismos internacionais, grande parte da pesquisa articulada entre setor pblico e setor privado acontecer em redes mistas, basicamente compostas por graduados com formao e experincia em pesquisa. So essas redes de pesquisa e de formao em pesquisa que constituiro a base das economias da informao. Tais redes, provavelmente vinculadas a (e dependentes de) universidades prestigiadas e novos centros de excelncia, sero um importante componente de uma nova elite intelectual (e possivelmente socioeconmica) responsvel pelos novos rumos da economia da informao mundial. A viso da economia da educao no questiona a necessidade de maior produtividade, mas considera isto um fato estabelecido. Nada diz sobre as formas e objetivos da apropriao da mais valia. Fala da redistribuio de renda e em diminuio das desigualdades, mas parece que isto vai a reboque da tendncia (vocao?) do mercado de crescer entre os segmentos da populao que, tendo se emancipado (como os escravos brasileiros com a Lei urea, em 1888), passaro a consumir bens e servios novos (especialmente formatados para eles), justamente aqueles que, por possurem significativo valor agregado, tm tambm, certamente, preos diferenciados (pois o rio sempre corre para o mar!). A alfabetizao das massas, sobretudo a alfabetizao digital, no s uma necessidade nacional frente competitividade global. tambm um movimento de alto custo para os cofres pblicos que resulta (sem querer?) na abertura e crescimento de novos mercados (exemplo, o de novas tecnologias), cujos detentores primrios no so as entidades pblicas, mas instituies privadas de alta lucratividade, cujo conhecimento tcnico, tecnolgico e administrativo, longe de ser algo de domnio pblico (pensemos na frmula da coca-cola e nas patentes dos softwares mais populares no mundo), parte de um sistema de gesto que preserva, articula, recicla e aplica privadamente suas reservas e potencial, a despeito da exaltao que fazem, em seu discurso, sociedade do conhecimento.8

Esta informao rpida e facilmente incorporada ao discurso privatista e reformista do Ensino Superior postulado pela UNESCO para os pases de industrializao recente (leia-se subdesenvolvidos) como os da Amrica Latina (CARNOY, 2004, p. 79).

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A nova economia da informao funciona, nos meios acadmicos, quase que como um slogan empresarial, vendendo um peixe que, sendo a bola da vez, prope-se como essencial para a dieta de qualquer ser humano, saudvel ou convalescente, independentemente de sua idade, compleio fsica ou origem social. Embora nossa fome por tecnologia dificilmente possa ser classificada como virtual ou psicolgica, o discurso da inevitabilidade tem a funo de simplificar a realidade a fim de entorpecer a reflexo que poderia, potencialmente, discutir as causas e consequncias reais dos fenmenos econmicos e sociais