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TÍTULO DO PROGRAMA Lygia Fagundes Telles: A Inventora de Memórias Série: Mestres da Literatura SINOPSE DO PROGRAMA A série “Mestres da Literatura” apresenta Lygia Fagundes Telles. Escritora que inovou com histórias que mesclam ficção e memória, onde a natureza das pessoas é discutida por meio de personagens que não são tão bons ou tão maus, ou seja, são humanos. Inspirados no texto de Lygia, os professores orientam um trabalho onde os alunos vão ler contos da autora e alterar o início, o meio e o final deles. Depois dessa atividade, produzirão seus próprios contos, a partir de lendas e mitos das suas regiões. CONSULTORES Gracia Goyano Klein – LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA Irene Terron Gadel – LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA Rogério Martins Muraro – LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA TÍTULO DO PROJETO “Lygia, a contadora de histórias”
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Nov 07, 2018

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TÍTULO DO PROGRAMA Lygia Fagundes Telles: A Inventora de Memórias

Série: Mestres da Literatura

SINOPSE DO PROGRAMA

A série “Mestres da Literatura” apresenta Lygia Fagundes Telles. Escritora que inovou com histórias que mesclam ficção e memória, onde a natureza das pessoas é discutida por meio de personagens que não são tão bons ou tão maus, ou seja, são humanos. Inspirados no texto de Lygia, os professores orientam um trabalho onde os alunos vão ler contos da autora e alterar o início, o meio e o final deles. Depois dessa atividade, produzirão seus próprios contos, a partir de lendas e mitos das suas regiões.

CONSULTORES Gracia Goyano Klein – LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

Irene Terron Gadel – LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

Rogério Martins Muraro – LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

TÍTULO DO PROJETO

“Lygia, a contadora de histórias”

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MATERIAL NECESSÁRIO PARA REALIZAÇÃO DA ATIVIDADE: - caderno ou folhas de fichário; - lápis, caneta, borracha; - lousa e giz ou canetas para lousa branca; - cartolinas brancas e coloridas ou papel pardo; - pincel atômico ou canetas hidrográficas; - equipamento para exibição do documentário; - livros com os contos ou equipamento para reprodução de cópias; - equipamento para acesso à Internet; - transparência para retroprojetor e retroprojetor (opcional).

PRINCIPAIS CONCEITOS QUE SERÃO TRABALHADOS EM CADA DISCIPLINA

Língua Portuguesa e Literatura

• Correntes ou grupos literários em uma época;

• Realismo mágico;

• Tradição e inovação;

• Estrutura tradicional do gênero literário ‘conto’;

• Componentes tradicionais das narrativas: foco narrativo, espaço, tempo, personagens e

enredo;

• Elementos estilísticos: especialmente os tipos de discurso;

• Sequências narrativas e descritivas;

• Aforismo; • Academia Brasileira de Letras.

DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE

Antes de iniciar a descrição das atividades, é importante deixar claro que este trabalho não

está pensado como propriamente interdisciplinar, já que estamos falando, em todo momento, de

uma mesma disciplina. Assim, a divisão do trabalho leva em conta não disciplinas diferentes, mas

especialidades dentro de uma mesma disciplina.

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Primeiro professor de Língua Portuguesa

• Sensibilização

O trabalho se inicia com uma sensibilização dos alunos, cuja finalidade é promover um contato

inicial com algumas ideias e com uma narrativa da autora. Este momento será realizado de duas

formas:

1. ambientação – os professores envolvidos no projeto deverão preparar cartazes, em

cartolina ou papel pardo, onde serão escritos aforismos da autora, que podem ser retirados

de reflexões dos narradores ou personagens de suas narrativas, ou de obras como

“Invenção e memória” ou “A disciplina do amor”, onde a autora mescla autobiografia e

reflexões pessoais. Esses cartazes serão colados na sala onde se desenvolverão as

atividades. Nos anexos, há sugestões de trechos que podem ser utilizados nessa

preparação. Os alunos ficarão motivados com essa atividade. Além dessas sugestões e

outros aforismos da autora, os professores podem propor para os alunos a coleta de

aforismos de outros autores da Literatura Brasileira e universal para alargarem o repertório

da classe. Esses aforismos podem manter-se na sala durante todo o período letivo e

serem lidos e refletidos diariamente. Se depois os professores quiserem alongar este

trabalho, é recomendado que voltem sempre a propor a eles encontrarem aforismos em

todos os autores lidos, ou elaborarem eles próprios os seus. Afinal, o aforismo encarcera o

mundo e suas experiências, às vezes, em uma única frase. Esse trabalho é muito profundo

e divertido também.

2. “contação” de uma narrativa - o professor que for iniciar o trabalho deverá preparar um

conto da autora para apresentar aos alunos oralmente, de forma espontânea, ou realizar

uma leitura expressiva. Dependendo da classe, pode-se pedir que algum aluno

encarregue-se da leitura. A ideia de apresentar o texto dessa forma é a de criar uma

relação com o modo como, de acordo com o documentário, a autora teve contato com

suas primeiras narrativas, ou seja, ouvindo histórias de suas pajens, a partir das quais

começou a fabular suas próprias histórias. A proposta de contar histórias também será

feita aos alunos mais adiante. A sugestão para esta atividade inicial é o conto: “Venha ver

o pôr do sol”, escolhido porque, além de trazer personagens jovens, concentra uma

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atmosfera de mistério e, ao mesmo tempo, algo de mórbido e gótico, culturas que vêm

sendo recuperadas por grupo de jovens especialmente em contexto urbano, na atualidade.

O conto está reproduzido na íntegra nos anexos.

Depois de contada a história, o professor pode iniciar uma conversa, para verificar a

impressão que os alunos tiveram do conto, que costuma provocar reações, e pedir-lhes também

que observem, leiam e comentem as frases dos cartazes.

Segundo professor de Língua Portuguesa

O passo seguinte é destacar para os alunos a construção do cenário que Lygia vai fazendo

- o isolamento do cemitério, o fato de ser abandonado, os sinais de abandono, os sons que deixam

de ser ouvidos, a capelinha - pode-se chamar a atenção também para a descrição do rosto da

personagem Ricardo, rosto que apresenta alterações pequenas, mas significativas durante o

conversa com Raquel. Orientando o olhar dos alunos para esses aspectos da carpintaria, o

professor vai preparando a turma para o trabalho posterior.

Os processos usados pela autora são resumidos em tópicos na lousa e copiados pelos

alunos.

Mostra-se que esse conto remete a Edgar Alan Poe, escritor norte-americano considerado

o criador do conto policial. Poe é conhecido por seus contos sombrios, góticos. “Venha ver o pôr do

sol” lembra um conto específico de Poe, “O barril de Amontillado” (ver anexos), em que há o

emparedamento de uma personagem numa adega subterrânea. Lygia, portanto, segue uma

tradição bem estabelecida de autores que têm esse tom sombrio em suas narrativas.

Neste momento, o professor propõe aos alunos um levantamento de conhecimentos

prévios sobre a autora. O que mais sabem a respeito dela? Conhecem alguma outra de suas

obras, como um conto ou romance? Na sequência desse levantamento, o professor passa o vídeo.

Exibição do vídeo

O vídeo pode ser exibido na íntegra por um ou mais professores envolvidos.

Após o vídeo, esperamos que os alunos percebam que os contos de Lygia Fagundes

Telles não se restringem a esse tom sombrio de narrativas, ela é uma contista de muitas faces.

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Pertence à geração de 45 do Modernismo brasileiro. Pela liberdade que os autores modernos têm,

tanto para escolher seus assuntos como a sua forma expressiva, há correntes na prosa diversas

dessa época específica.

Uma delas tem na inovação da linguagem e do processo narrativo sua grande

característica. É o caso de Guimarães Rosa, com sua expressão particularíssima, seu

“regionalismo universal”, e de Clarice Lispector, com sua narrativa densa, lenta, fragmentada de

“mergulho na alma das personagens”, seu “fluxo de pensamento”. Lygia contrapõe-se a eles. Suas

histórias são mais populares, no bom sentido: são fáceis de serem lidas, são acessíveis, sem

deixarem de ser polissêmicas e cuidadosamente trabalhadas.

Outra corrente da prosa da Geração de 45 é representada por autores como Dalton

Trevisan. O interesse desses escritores é o ser humano comum, sua rotina, suas posturas, seus

problemas, suas virtudes e vícios, sua psicologia, sua solidão, seus desencontros... É com

frequência o ser humano urbano, das grandes cidades; mas é também o ser humano das

pequenas cidades e vilas, com sua estreiteza de horizontes e oportunidades. Poderíamos lembrar

do conto de Trevisan muito conhecido: “Uma vela para Dario”, retrato de uma cena urbana de

indiferença frente à morte. Lygia tem vários contos com essas características, “Noturno amarelo”,

“Um coração ardente”, “Negra jogada amarela”.

Lygia insere-se nesse grupo, mas não só nele.

Há uma terceira corrente de autores na época em discussão. São os autores do realismo

mágico ou fantástico. Suas obras trazem a confluência da vida cotidiana com o extraordinário, com

o insólito, o imaginário, o mágico, o impossível, o inexplicado. É uma corrente que tem destaque na

literatura hispano–americana, com autores como Gabriel Garcia Marques (seu romance “Cem anos de solidão” é famoso) e Julio Cortázar (em seu livro “Bestiário”, por exemplo). No Brasil

autores como Murilo Rubião (“O pirotécnico Zacarias”; “A casa do girassol vermelho”) e JJ.

Veiga (“Os cavalinhos de patiplano”). Lygia é uma legítima representante dessa vertente

também. Seus contos “A caçada”, “A mão no ombro”, “As formigas”, “Seminário dos ratos”, “Lua

crescente em Amsterdam”, exemplificam o realismo mágico.

Como foi dito no início, o conto “Venha ver o pôr do sol” mostra Lygia autora de contos

“góticos”, em que o clima sombrio, a doença, a morte, mostram a linhagem de Edgar Allan Poe. “A

estrela branca” é outro conto que traz a marca clara desse autor. Ainda é possível confrontar o

conto de Poe “O gato preto” e o conto de Lygia “Tigrela”.

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Vale a pena lembra que Poe, por sua vez, renova a tradição dos contos medievais, que já

tinham aquelas características. Da mesma forma, histórias de todas as culturas trazem o clima de

“assombração”, falando de fantasmas, almas penadas e entes fantásticos. Lygia declara a

influência desses relatos, ouvidos em sua infância.

Neste ponto, o professor faz um resumo desses aspectos, ou pede que os alunos o façam,

depois de ouvirem a explanação do professor.

Havendo tempo, é possível elaborar uma pesquisa anterior à explanação: o professor

indica o nome de um ou dois autores entre aqueles citados, ou de outros que possam relacionar-se

à obra de Lygia, e pede que os alunos, em pequenos grupos, pesquisem as características da obra

desses escritores e, depois, exponham o resultado de sua pesquisa para a classe, de forma que

todos tenham todas as informações. Sob a orientação do professor, uma compilação final é feita,

seguida da explícita associação das diversas características encontradas aos contos de Lygia

Fagundes Telles. É importante que um resumo final seja elaborado.

O professor pode também pedir para que os alunos em grupos façam cartazes com os

aspectos da obra da escritora. Esses cartazes podem conter só palavras ou frases inteiras, ou

podem ser ilustrados com desenhos, colagens, fotos...

Um ou dois desses trabalhos sugeridos podem resultar numa avaliação, em nota ou conceito,

se isso for conveniente.

Terceiro professor de Língua Portuguesa

Na sequência, o terceiro professor de Língua Portuguesa irá relembrar aos alunos as partes

clássicas em que são divididos os contos:

- a “situação inicial” ou “apresentação”, que constitui o início da história ou do enredo;

- a emergência de um “conflito”, quando se apresenta na narrativa uma ou mais questões ou

tensões, que precisarão ser resolvidas;

- o “clímax do conflito”, quando as tensões, ou conflitos chegam a um grau máximo;

- o “desfecho”, ou seja, o momento em que, de alguma forma, os problemas que

apareceram no enredo se resolvem e a narrativa chega ao final.

Depois de feita essa exposição e como forma de preparação para a produção de um conto

inteiro de autoria de cada aluno no final do trabalho, propomos, neste momento, que os alunos

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possam exercitar a produção de partes de um conto. Para isso, aproveitando a divisão

apresentada acima, os alunos receberão, em momentos diferentes, contos da autora de onde

tenham sido retirados ora a situação inicial, ora o final e ora o meio, ou seja, a parte em que ocorre

o conflito e seus desdobramentos.

Ao mesmo tempo, aproveitando ainda a leitura desses trechos de contos que os alunos

receberão, os professores poderão trabalhar também aspectos estilísticos e composicionais que

caracterizam a narrativa da autora, especialmente:

- a presença do foco narrativo em primeira pessoa, muito comum na narrativa de Lygia;

- o uso do discurso indireto livre, muito presente no caso do conto “A caçada”;

- as sequências descritivas presentes, geralmente no início dos contos, que ajudam muito a

envolver o leitor e preparar a atmosfera para o que será contado.

Para isso, será preciso selecionar trechos dos contos propostos neste trabalho, ou de outros

da autora, que possam servir de exemplos para a explicação de cada aspecto e, até, para a

preparação de atividades de fixação.

Produção do texto I - “O noivo”

Levando em conta que é mais fácil terminar uma história da qual já se conhece toda a trama,

desde o início até seus momentos de conflito e de clímax, sugerimos, como primeira atividade de

produção de texto, que os alunos escrevam um final para o conto “O noivo”. Abaixo apresentamos

como sugestão o ponto em que a narrativa deve ser cortada para ser entregue aos alunos e, nos

anexos, reproduzimos o conto na íntegra.

• Produção de clímax e desfecho

Nem sempre é claro em um conto o momento em que se inicia ou termina determinada parte.

Assim, o ponto que se apresenta aqui, em que a narrativa deve ser cortada para ser entregue aos

alunos, é mera sugestão.

Assim, os alunos receberiam o conto até o parágrafo em que Miguel desce do carro com

Frederico já diante da igreja. Trata-se do 14° parágrafo antes do final do texto, a seguir:

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“‘Perto, não?’, pensou Miguel num sobressalto. E quanta gente, meu

Deus, quanta gente. Ela devia ser muito relacionada para atrair tanta

gente assim. Fechou o vidro da janela. Queria ser aquele menininho ali

adiante que vendia agulhas, queria ser aquele gatinho preto que se

sentara no último degrau da escadaria e lambia a pata, os olhos apertados

por causa do sol, queria ser a sombra do gatinho, só a sombra. Guardou

no bolso o lenço com a nódoa de sangue.”

Primeiro professor de Língua Portuguesa

• Produção do texto II – As formigas

Produção de início/apresentação do conto

Nesta produção, a ideia é que os alunos redijam o início do conto pensado especialmente na

utilização de sequências descritivas dentro da narrativa, já que este é um procedimento frequente

nos contos de Lygia, utilizado para envolver o leitor e ambientar os espaços onde se desenvolverá

a trama. Assim, o professor deve orientar os alunos para que procurem caracterizar elementos,

como a fachada e a entrada da pensão em que as primas irão se hospedar, o quarto em que elas

se instalarão, a dona da pensão que recebe e as próprias moças.

É importante que os alunos tomem cuidado para que o texto não seja apenas uma

justaposição de parágrafos descritivos de cada um desses itens, mas que as descrições apareçam

bem amarradas a uma narrativa que as envolve e que se junta à sequência do conto que eles

receberão.

A sugestão é que o conto seja entregue aos alunos a partir do meio do 12° parágrafo, quando

a prima da narradora vê pela primeira vez o caixote com os ossos e o pega. Ou seja, a partir de:

“Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o

caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia

fascinada”.

Segundo professor de Língua Portuguesa

• Produção de texto III – “A caçada”

Produção do meio do conto

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No caso deste conto, o aluno receberá seu início e seu final e terá de produzir o meio. É

interessante que os alunos tenham uma pista do que acontecerá ao personagem, ou seja, seu

envolvimento físico, nos moldes da narrativa fantástica, com a tapeçaria. Assim, o conto deve ser

entregue aos alunos até um ponto em que essa simbiose já se anuncia, a fim de que eles possam

ter contato com a condução da narrativa pela escritora nesse momento do texto e sejam

desafiados a dar conta de um modo narrativo que dê seguimento a essa trama.

Assim, o início do texto pode ser entregue aos alunos até o meio do 30° parágrafo, ou seja,

depois que a dona da loja se distancia para fazer seu chá e que o homem começa a envolver-se,

de modo mais próximo, com a tapeçaria. O corte seria no parágrafo seguinte, até: “Cerrou os

olhos”. Em:

“Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos.

Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. (...)”

Na parte final, a parte do conto a partir da qual os alunos o receberiam poderia ser a do 7º

parágrafo antes do fim, momento em que o homem volta à loja, aparentemente no dia seguinte, ou

seja, a partir de:

“Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica:”

Ao final de cada produção, seria interessante que os alunos pudessem ler seus textos.

Depois, o professor pode ler a versão da autora.

ETAPA INTERDISCIPLINAR

Pesquisa de lendas e produção de um conto inteiro

1- Em todos os povoados, cidades, lugarejos, há histórias de amor, mistério, terror. Como já

dissemos, histórias de todas as culturas trazem o clima de “assombração”, falando de fantasmas,

almas penadas e entes fantásticos. Em sua cidade não deve ser diferente. Professor, faça um

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levantamento com os alunos sobre as histórias mais conhecidas e arrepiantes. Oriente os alunos

para que selecionem ou recolham lendas conhecidas e contadas por sua família, amigos, sua

comunidade ou cidade. É importante que sejam fantásticas – aparições, fantasmas, discos

voadores e ETs. A partir do fato escolhido, divida a classe em grupos de cinco alunos.

2 - As histórias são trazidas para a classe e são contadas oralmente.

3 - Divididos em grupo de 3 ou 4 alunos, cada grupo escolhe uma das histórias contadas e discute

as ideias de cada integrante do grupo para a produção de um conto, que, depois, deverá ser

escrito individualmente. Provavelmente, aparecerão histórias iguais com diferentes invenções.

4- Os alunos, ainda em grupos, relembram os conceitos vistos ao estudarem o conto como forma

narrativa e os recursos expressivos dos contos lidos.

5- Agora, cada aluno elabora, individualmente, um conto de realismo mágico, baseado na história

que foi ouvida na sala e escolhida pelo grupo.

6- O professor corrige os contos e os discute com os grupos.

7- Os alunos, então, editam seu conto, podendo acrescentar ilustrações, e distribuem cópia para

seus colegas (numa forma simples de impressão, como a do computador).

8- Dependendo do número de contos obtidos e dos recursos disponíveis, pode-se fazer uma

coletânea com os melhores contos – eleitos pelos próprios alunos – e distribuí-la, ou deixá-la na

biblioteca da escola.

Academia Brasileira de Letras e discurso de posse

Para finalizar esta etapa interdisciplinar, proponha uma reflexão sobre a qualidade da obra de

um autor ou sobre o conjunto de sua obra e pergunte aos alunos se eles conhecem a Academia

Brasileira de Letras, organização em que se encontram os imortais das letras. Se possível, tendo

recursos da Internet às mãos, navegue pelo site da academia, suas 40 cadeiras, os membros que

as ocuparam e os 40 acadêmicos atuais, dentre eles Lygia. Faça uma reflexão sobre as poucas

mulheres que nela estiveram e quão recente foi essa conquista com Rachel de Queiroz (imaginem

que um dos problemas que eles tiveram foi a necessidade de pensar e desenhar com todo charme

um fardão feminino). Outra reflexão: políticos e médicos que produziram literatura estão na

academia. Além deles, Paulo Coelho, o tão polêmico escritor. Escolhas como essas para integrar

esse grupo de imortais são boas?

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Enfim, há inúmeras possibilidades de aproximações. O importante é que os alunos conheçam

essa organização. Finalize com o discurso de posse de Machado de Assis, quando fundou a

academia, e o de Lygia. Enfatize a importância dos professores nas decisões e escolhas futuras

dos alunos. Como foi seu caso.

RESUMO DA ATIVIDADE

A atividade se inicia com um trabalho de sensibilização dos alunos, que será feito de duas

maneiras: primeiro, a ambientação da sala de aulas, onde serão colados cartazes com frases e

aforismos da autora. Depois, a apresentação do conto “Venha ver o pôr do sol”, que será

contado ao grupo pelo professor ou por um aluno. O conto e as frases deverão gerar uma

conversa para coletar impressões iniciais sobre a autora.

Seguem-se a isso uma explanação mais detalhada sobre as características do conto

apresentado: sua relação, e a relação de outros contos da autora, com algumas linhas da

tradição da literatura universal, a localização da autora na literatura nacional e as relações de

sua narrativa com a de seus contemporâneos. Esta etapa poderá ter a colaboração dos alunos

no sentido de pesquisarem características de autores, cujas obras se relacionem com a de

Lygia, de onde poderá ser elaborado um resumo ou cartazes.

Em seguida, será apresentada a forma como tradicionalmente os contos são divididos e,

depois disso, os alunos iniciarão uma série se produções de trechos de contos baseadas em

contos da autora, como forma de se prepararem para a produção de um conto no final do

trabalho. A primeira produção de trecho de conto será feita a partir do conto “O noivo”, de onde

será retirado o final; a segunda será baseada em “As formigas”, que os alunos receberão sem

o início; e, para a terceira, será utilizado o conto “A caçada”, do qual os alunos receberão

apenas o início e o final e deverão produzir o meio.

Durante esse trabalho, e a partir do contato com esses contos, o professor também poderá

trabalhar com características estilísticas da autora.

Segue-se a exibição do documentário.

Então, para a produção final de um conto inteiramente autoral, os alunos deverão

pesquisar narrativas fantásticas que façam parte da tradição oral de sua região e contá-las na

sala. Baseados em alguma delas, irão produzir um conto com características do realismo

mágico.

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Para terminar, o projeto ainda prevê uma passagem pela Academia Brasileira de Letras e

pelo texto do discurso de posse de Lygia Fagundes Telles, enfatizando a lembrança de seu

professor de Química como marca de seus futuros trabalhos. Os dois discursos estão no

anexo.

COMO VOCÊS AVALIARIAM ESSE TRABALHO? Hora de avaliar a atividade

Haveria duas etapas de avaliação:

- a primeira avaliaria o processo de cada aluno;

- na segunda seria avaliado o produto final, o conto produzido.

Nas duas etapas, os critérios de avaliação precisam ser explicitados e o peso de cada critério

também precisa ficar claro. Na 1ª etapa, por exemplo, os professores poderiam avaliar se o aluno trouxe a história na aula marcada para isso; como ele a contou, se com “seriedade”, com expressividade; se trabalhou bem em classe, no seu grupo; se ajudou com sugestões; se encarregou-se de redigir, de passar a limpo ou digitar, entre outras tarefas... Na 2ª etapa, poderiam ser critérios: a correção gramatical, a coesão de ideias, a adequação e articulação das partes do conto, os “recursos estilísticos” utilizados, a originalidade do assunto, a ilustração. Além disso, se o professor aprofundou-se em outras das atividades propostas, outras avaliações podem ser feitas, como a interpretações de aforismos, por exemplo.

EM QUAL ANO OU ANOS DO ENSINO MÉDIO SERIA MELHOR APLICAR ESSE TRABALHO?

Por trabalhar o conto, a proposta seria para a 1ª série do ensino médio, porque, em vários

aspectos, ajuda o aluno iniciante no contato com textos literários em prosa. Mas não há problema

de usá-lo nas outras séries do curso, como na 3ª série, ano em que é prática comum trabalhar o

Modernismo em literatura.

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PALAVRAS-CHAVE - Lygia Fagundes Telles;

- modernismo brasileiro;

- narrativa;

- conto;

- gótico;

- realismo mágico;

- aforismos;

- Academia Brasileira de Letras.

SUGESTÕES DE LEITURAS BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo, 4ª ed. São Paulo: Cultrix, 1981.

CORTÀZAR, Julio. Bestiário. Rio; Nova Fronteira, 1984.

GEARY, James. Uma breve história do aforismo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Companhia de Bolso,2008.

RUBIÂO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. 9ª Ed.; São Paulo: Ática, 1984.

_____________. A casa do girassol vermelho..3ª Ed. São Paulo; Ática, 1980.

TELLES, Lygia Fagundes. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles,

1998.

___________________.Mistérios. 2ª ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1981. ____________________. Histórias escolhidas, São Paulo: Boa Leitura, s/d. ____________________. Seminário dos ratos. 3ª ed. Rio: José Olympio,1980.

ANEXOS

Venha Ver o Pôr do Sol Lygia Fagundes Telles Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.

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Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante. Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos. - Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima. Ele sorriu entre malicioso e ingênuo. - Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância me aparece nessa elegância... Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra? - Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui?- perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?! - Ah, Raquel...- e ele tomou-a pelo braço rindo. - Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal? - Podia Ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério? Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem. - Cemitério abandonado, meu anjo. Vivo e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas ideias. E agora? Qual é o programa? Brandamente ele a tomou pela cintura. - Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo. Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada. - Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério... Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta. - Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão

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horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura... - E você acha que eu iria? - Não se zangue, sei que eu iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento - Você fez bem em vir. - Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar? - Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende. - Mas eu pago. - Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico. Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava. - Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas ideias vai me consertar a vida. - Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui. - É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros. - Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo... O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de Ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados. - É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos embora, Ricardo, chega. - Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-

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tom, nessa ambiguidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa. - Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre. Delicadamente ele beijou-lhe a mão. - Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. - É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais. - Ele é tão rico assim? - Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro... Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram. - Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo. - Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto, imagine um ano... - É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem? - Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade. Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido. Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso. Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou. - Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face.- Chega Ricardo, quero ir embora. - Mais alguns passos... - Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta. - A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha

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onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas. - Sua prima também? - Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus. - Vocês se amaram? - Ela me amou. Foi a única criatura que... - Fez um gesto. – Enfim não tem importância. Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o - Eu gostei de você, Ricardo. - E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu. - Esfriou, não? Vamos embora. - Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos. Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba. Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha. - Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui? Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico. - Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? - Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta. Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento. - E lá embaixo? - Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa? Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

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- Todas estas gavetas estão cheias? - Cheias?... - Sorriu. - Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta. Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz. - Vamos, Ricardo, vamos. - Você está com medo? - Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio! Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado: - A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo se exibir, estou bonita? Estou bonita?... - Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. - Não, não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus. Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada. - Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando... Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira. - Pegue, dá para ver muito bem... - Afastou-se para o lado. - Repare nos olhos. - Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça... -Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. - Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida... - Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti... Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso. - Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu? Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás. - Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco. - Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida! - Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo. Ela sacudia a portinhola.

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- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra... Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque. - Boa noite, Raquel. - Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. - Não, não... Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas. - Boa noite, meu anjo. Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida. - Não... Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano: - Não! Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

O barril de amontillado Edgar Allan Poe

Suportei o melhor que pude as mil e uma injúrias de Fortunato; mas quando começou a

entrar pelo insulto, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza da minha índole, não ireis supor que me limitei a ameaçar. Acabaria por vingar-me; isto era ponto definitivamente assente, e a própria determinação com que o decidi afastava toda e qualquer ideia de risco. Devia

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não só castigar, mas castigar ficando impune. Um agravo não é vingado quando a vingança surpreende o vingador. E fica igualmente por vingar quando o vingador não consegue fazer-se reconhecer como tal àquele que o ofendeu.

Deve compreender-se que nem por palavras, nem por atos, dei motivos a Fortunato para duvidar da minha afeição. Continuei, como era meu desejo, a rir-me para ele, que não compreendia que o meu sorriso resultava agora da ideia da sua imolação.

Tinha um ponto fraco, este Fortunato sendo embora, sob outros aspectos, homem digno de respeito e mesmo de receio. Orgulhava-se da sua qualidade de entendido em vinhos. Poucos italianos possuem o verdadeiro espírito de virtuosidade. Na sua maior parte, o seu entusiasmo é adaptado às circunstâncias de tempo e de oportunidade para ludibriar milionários britânicos e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunato, à semelhança dos seus concidadãos, era um charlatão, mas na questão de vinhos era entendido. Neste aspecto eu não diferia substancialmente dele: eu próprio era entendido em vinhos de reserva italianos, e comprava-os em grandes quantidades sempre que podia.

Foi ao escurecer, numa tarde de grande loucura da quadra carnavalesca, que encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessivo calor, pois bebera demais. Trajava de bufão; um fato justo e parcialmente às tiras, levando na cabeça um barrete cônico com guizos. Fiquei tão contente de o ver que julguei que nunca mais parava de lhe apertar a mão.

- Meu caro Fortunato - disse eu, - ainda bem que o encontro. Você tem hoje uma aparência notável! Saiba que recebi um barril de um vinho que passa por ser amontillado; mas tenho cá as minhas dúvidas.

- O quê? - disse ele - Amontillado? Um barril? Impossível! E em pleno carnaval! - Tenho as minhas dúvidas – respondi, - e estupidamente paguei o verdadeiro preço do

amontillado sem ter consultado o meu amigo. Não o consegui encontrar e tinha receio de perder o negócio!

- Amontillado! - Tenho as minhas dúvidas - insisti. - Amontillado! - E tenho de as resolver. - Amontillado! - Como vejo que está ocupado, vou procurar Luchesi. Se existe alguém com espírito crítico,

é ele. Ele me dirá. - Luchesi não distingue amontillado de xerez. - No entanto, há muito idiota que acha que o seu gosto desafia o do meu amigo. - Venha, vamos lá. - Aonde? - À sua cave. - Não, meu amigo, não exigiria tanto da sua bondade. Vejo que tem compromissos.

Luchesi... - Não tenho compromisso nenhum, vamos.

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- Não, meu amigo. Não será o compromisso, mas aquele frio terrível que bem sei que o aflige. A cave é insuportavelmente úmida. Está coberta de salitre.

- Mesmo assim, vamos lá. O frio não é nada. Amontillado! Você foi ludibriado. E quanto a Luchesi, não distingue xerez de amontillado.

Assim falando, Fortunato pegou-me pelo braço. Depois de pôr uma máscara de seda preta e de envergar um roquelaire cingido ao corpo, tive que suportar-lhe a pressa que levava a caminho do meu palacete.

Não havia criados em casa; tinham desaparecido todos para festejar aquela quadra. Eu tinha-lhes dito que não voltaria senão de manhã e dera-lhes ordens explícitas para se não afastarem de casa. Ordens essas que foram o suficiente, disso estava eu certo, para assegurar o rápido desaparecimento de todos eles, mal voltara costas.

Retirei das arandelas dois archotes e, dando um a Fortunato, conduzi-o através de diversos compartimentos até à entrada das caves. Desci uma grande escada de caracol e pedi-lhe que se acautelasse enquanto me seguia. Quando chegamos ao fim da descida encontrávamo-nos ambos sobre o chão úmido das catacumbas dos Montresors.

O andar do meu amigo era irregular e os guizos da capa tilintavam quando se movia. - O barril? - perguntou. - Está lá mais para diante - disse eu, - mas veja a teia branca de aranha que cintila nas

paredes da cave. Voltou-se para mim e pousou nos meus olhos duas órbitas enevoadas pelos fumos da

intoxicação. - Salitre? - perguntou por fim. - Sim - respondi. - Há quanto tempo tem essa tosse? - Cof!, cof!, cof! cof!, cof!, cof! O meu amigo ficou sem poder responder-me durante bastante tempo. - Não é nada - acabou por dizer. - Venha - disse-lhe com decisão. - Retrocedamos, a sua saúde é preciosa. Você é rico,

respeitado, admirado, amado; você é feliz como eu já o fui em tempos. Você é um homem cuja falta se sentiria. Quanto a mim, não importa. Retrocedamos. Ainda é capaz de adoecer e não quero assumir tal responsabilidade. Além disso, há Luchesi...

- Basta! - replicou. - A tosse não é nada, não me vai matar. Não vou morrer por causa da tosse.

- Pois decerto que não, pois decerto – respondi. - Não é minha intenção alarmá-lo desnecessariamente, mas deve usar de cautela. Um gole deste médoc defender-nos-á da umidade.

Quebrei o gargalo de uma garrafa que retirei de uma longa fila de muitas outras iguais que jaziam no bolor.

- Beba - disse, apresentando-lhe o vinho. Levou-o aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e abanou a cabeça

significativamente, enquanto os guizos tilintavam. - Bebo - disse - aos mortos que repousam à nossa volta.

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- E eu para que você viva muito. Novamente me tomou pelo braço e prosseguimos. - Estas catacumbas são enormes - disse ele. - Os Montresors - respondi - constituíam uma família grande e numerosa. - Não me lembro do vosso brasão. - Um enorme pé humano, de ouro, em campo azul; o pé esmaga uma serpente rastejante

cujas presas estão ferradas no calcanhar. - E a divisa? - Nemo me impune lacessit. - Ótimo! - disse ele. O vinho brilhava no seu olhar e os guizos tilintavam. A minha própria disposição melhorara

com o médoc. Tinha passado por entre paredes de ossos empilhados, à mistura com barris e barris, nos mais recônditos escaninhos das catacumbas. Parei novamente e desta vez fiz questão de segurar Fortunato por um braço, acima do cotovelo.

- Salitre! - disse eu, - veja como aumenta. Parece musgo nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade escorrem por entre os ossos. Venha, vamo-nos embora que já é muito tarde. A sua tosse...

- Não faz mal – retorquiu, - continuaremos. Antes, porém, mais um trago de médoc. Abri e passei-lhe uma garrafa de De Grâve. Despejou-a de um trago. Os olhos brilharam-

lhe com um fulgor feroz. Riu e atirou a garrafa ao ar, com uns gestos que não entendi. Olhei-o surpreso. Repetiu o movimento grotesco. - Não compreende? - Não, não compreendo - respondi. - Então não pertence à irmandade. - Como? - Quero eu dizer que não pertence à Maçonaria. - Sim, sim – disse, - sim, pertenço. - Você? Impossível! Um maçom? - Sim, um maçom - respondi. - Um sinal - disse ele. - Aqui o tem - retorqui, mostrando uma colher de pedreiro que retirei das dobras do meu

roquelaire. - Está a brincar - exclamou, recuando alguns passos. - Mas vamos lá ao amontillado. - Assim seja - disse eu, tornando a colocar a ferramenta sob a capa e tornando a oferecer-

lhe o meu braço. Apoiou-se nele pesadamente. Continuamos o nosso caminho em procura do amontillado. Passamos por uma série de arcos baixos, descemos, atravessamos outros, descemos novamente e chegamos a uma profunda cripta na qual a rarefação do ar fazia com que os archotes reluzissem em vez de arderem em chama.

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No ponto mais afastado da cripta havia uma outra cripta menos espaçosa. As paredes tinham sido forradas com despojos humanos, empilhados até à abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três das paredes desta cripta interior estavam ainda ornamentadas desta maneira. Na quarta parede, os ossos tinham sido derrubados e jaziam promiscuamente no solo, formando num ponto um montículo de certo vulto. Nessa parede assim exposta pela remoção dos ossos, percebia-se um recesso ainda mais recôndito, com um metro e vinte centímetros de fundo, noventa centímetros de largo e um metro e oitenta a dois metros e dez de alto. Parecia não ter sido construído com qualquer fim específico, constituindo apenas o intervalo entre dois dos colossais suportes do teto das catacumbas, e era limitado, ao fundo, por uma das paredes circundantes em granito sólido.

Foi em vão que Fortunato, levantando o seu tíbio archote, tentou sondar a profundidade do recesso. A enfraquecida luz não nos permitia ver-lhe o fim.

- Continue - disse eu, - o amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi... - É um ignorante - interrompeu o meu amigo, enquanto avançava vacilante, seguido por

mim. Num instante atingira o extremo do nicho, e vendo que não podia continuar por causa da rocha, ficou estupidamente desorientado. Um momento mais e tinha-o agrilhoado ao granito. Havia na parede dois grampos de ferro, distantes um do outro, na horizontal, cerca de sessenta centímetros. De um deles pendia uma pequena corrente e do outro um cadeado. Lançar-lhe a corrente em volta da cintura e fechá-la foi obra de poucos segundos. Ficara demasiado surpreendido para oferecer resistência. Retirei a chave e recuei.

- Passe a mão pela parede - disse eu. - Não deixará de sentir o salitre. Na realidade está muito úmido. Mais uma vez lhe suplico que nos retiremos. Não lhe convém? Nesse caso, tenho realmente de deixá-lo. Mas, primeiro, quero prestar-lhe todas as pequenas atenções ao meu alcance.

- O amontillado! - berrou o meu amigo, que se não recompusera ainda do espanto em que se encontrava.

- É verdade - respondi. - O amontillado. Ao dizer isto, pus-me a procurar com todo o afã por entre as pilhas de ossos de que já falei.

Atirando com eles para o lado, pus a descoberto uma quantidade de pedras e argamassa. Com estes materiais e com a ajuda da minha colher de pedreiro, comecei a entaipar com todo o vigor a entrada do nicho.

Mal tinha colocado a primeira fiada de pedras quando descobri que a embriaguez de Fortunato tinha em grande parte desaparecido. A este respeito, o primeiro indício foi-me dado por um longo gemido vindo da profundidade do recesso. Não era o gemido de um ébrio. Sucedeu-se um prolongado e obstinado silêncio. Pus a segunda fiada de pedras, a terceira e a quarta. Em seguida ouvi as vibrações furiosas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para me ser possível ouvi-lo com maior satisfação, suspendi a minha tarefa e sentei-me no montículo de ossos. Quando finalmente cessou o tilintar, retomei a colher de pedreiro e completei sem interrupção a quinta, a sexta e a sétima fiadas. A parede estava agora quase ao nível do meu peito. Parei novamente e, elevando o archote acima do parapeito, fiz incidir alguns raios de luz sobre a figura que lá estava dentro.

Uma sucessão de gritos altos e agudos, irrompendo de súbito da garganta da figura agrilhoada, quase me atirou violentamente para trás. Por um breve momento hesitei, tremi. Desembainhei o florete e com ele comecei a tatear o recesso, mas bastou pensar um momento para voltar a sentir-me seguro. Coloquei a mão sobre a sólida construção das catacumbas e fiquei

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satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede. Respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os como um eco, juntei-me a eles, ultrapassei-os em volume e força. Depois disto, o outro sossegou.

Era agora meia-noite e a minha tarefa aproximava-se do fim. Completara já a oitava, a nona e a décima fiadas. Tinha acabado uma porção da décima primeira e última; faltava apenas colocar e fixar uma pequena pedra. Lutava com o seu peso; coloquei-a parcialmente na posição que lhe cabia. Soltou-se então do nicho um riso abafado que me arrepiou os cabelos. Seguiu-se uma voz triste que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. Dizia aquela voz:

- Ah!, ah!, ah!, he!, he!, boa piada, de fato, excelente gracejo. Havemos de rir bastante acerca disto, lá no palácio, he!, he!, he!, acerca do nosso vinho, he!, he!, he!

- O amontillado? - disse eu. - He!, he!, he!, he!, he!, he!, sim, o amontillado. Mas não estará a fazer-se tarde? Não

estarão à nossa espera no palácio lady Fortunato e os convidados? Vamo-nos embora. - Sim - disse eu, - vamo-nos. - Pelo amor de Deus, Montresor! - Sim - disse eu, - pelo amor de Deus! Em vão esperei uma resposta a estas palavras. Comecei a ficar impaciente. Chamei em

voz alta: - Fortunato! Não obtive resposta. Chamei novamente: - Fortunato! Continuei sem resposta. Meti um archote pela pequena abertura e deixei-o cair lá dentro.

Em resposta ouvi apenas um tilintar de guizos. Senti o coração oprimido, dada a forte umidade das catacumbas. Apressei-me a pôr fim à minha tarefa. Forcei a última pedra no buraco, e fixei-a com a argamassa. De encontro a esta nova parede tornei a colocar a velha muralha de ossos. Durante meio século nenhum mortal os perturbou. In pace requiescat! O noivo Lygia Fagundes Telles As batidas na porta eram suaves. Mas insistentes. Ele abriu os olhos. Sentou-se na cama.

— Emília? Você, Emília? A mulher demorou um pouco para responder.

— Eu queria saber se o senhor já acordou. É que está chegando a hora... ⎯ Hora de quê? ⎯ Hora do casamento! Casamento. Que casamento? ⎯ Que casamento, Emília? Ela deu uma risadinha. ⎯ O senhor já acordou mesmo? Acho que o senhor ainda está dormindo, é bom tomar um

café. Vou trazer o café.

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Ele recostou a cabeça no espaldar da cama. Hora do casamento. Mas que casamento? Hoje é quinta-feira, não? Quinta-feira, doze de novembro. Então? Quem é que se casa hoje? Não tenho nenhum casamento marcado para hoje. E logo cedo... Vagou o olhar pelo quarto. Estava ficando muito velha, coitada, aquilo era arteriosclerose, imagine, vir batendo na porta daquele jeito, "Hora do casamento!..." Bocejou. Os objetos do quarto flutuavam informes em meio da escuridão. Pensou em naufrágio num fundo de mar. Tão poético. Apertou os olhos e fixou-se no espelho oval que emergia das sombras como um peixe luminoso. Quinta-feira doze. "Que casamento é esse? Não sei de nada..."

— Emília! Casamento de quem? Que história é essa, Emília?! Ela já não podia ouvi-lo. Atirando longe as cobertas, levantou-se. "Bobagem, não tenho

casamento nenhum para hoje. Ainda bem, uma chateação..." Apanhou os cigarros na mesa. Antes, tocou com as pontas dos dedos tateantes no cinzeiro em formato de lua crescente, presente de Naná, a Naná do tempo ainda das cerâmicas. Até abotoaduras lhe fizera, urnas abotoaduras enormes, nenhum punho de camisa aceitaria abotoaduras daquele tamanho. Agora estava toda voltada para a escultura, o que era inquietante. "Qualquer dia desses vai me mandar um busto de Voltaire. E um Voltaire não se pode pôr na mesinha-de-cabeceira", pensou enquanto deixava cair no cinzeiro o palito de fósforo.

"Aposto que o dia está azul", murmurou ao abrir a janela. Um raio de sol varou o quarto. "Azul, azul", repetiu sem nenhum entusiasmo. Poderia ir ao clube e depois almoçar com Naná se não fosse quinta-feira, dia em que ela devia fazer milhões de coisas. E os meninos estavam de férias. "Manda-se os pequenos para o zoológico e pronto", decidiu ele dirigindo-se ao espelho. Passaria rapidamente pelo escritório e em seguida se meteriam num cinema, "ai, hoje não quero fazer nada de importante, nada". Alisou os cabelos. Arregaçou os lábios para examinar os dentes. "Os incisivos teriam que ser mais agudos", lembrou-se e riu. Que pesadelo! Chegara a sentir nos braços que se transformavam em asas, a penugem aveludada do morcego.

"Como pode o peixe vivo..." cantarolou olhando para o espelho. Foi então que viu: estendido na poltrona, estava um fraque. Um fraque mesmo? Um fraque, via perfeitamente através do espelho as calças bem vincadas, o colete apontando dentro do paletó, a gravata prateada pendendo até o chão.

"Um fraque", repetiu ele fixando o olhar assombrado na própria imagem. Mas que fraque era esse? E quem o deixara ali, quem? "Nunca tive nenhum fraque, não ia agora.." Soprou a fumaça do cigarro na direção do espelho. "Mas que bobagem é essa, meu Deus?! Quem deixou esse fraque comigo? Como se eu devesse vestir para alguma cerimônia. Para o casamento, a Emília não avisou? Hora do casamento, está na hora do casamento!"

Via-se embaçado no espelho como uma figura de sonho. Soprou mais fumaça. O fraque também se afastava num vapor azulado, breve reflexo de um espelho criador de imagens: uma face que podia ser de outra pessoa, um fraque que não era de ninguém. Baixou a cabeça. Emilia tinha razão, ele estava mesmo precisando de um café. Um café que devia ser tomado rapidamente, "está na hora do casamento!" Deu alguns passos pelo quarto. rondava a poltrona mas sem se atrever a tocar na roupa que agora se destacava dentre os móveis e objetos, tão nítida. "Mas que é isto? Quem é que trouxe este fraque aqui? Uma brincadeira?" Não, não era brincadeira, Emília era séria demais para entrar em brincadeiras assim. E depois, onde é que estava a graça? Nem tinha cabimento. Um equívoco, então? Um simples equívoco? Aproximou-se da poltrona: estava agora mais curioso do que propriamente surpreendido. De quem seria? Passou a mão no paletó, cheirou-o: bem como tinha imaginado, um fraque novo. Intacto. Examinou o forro. Nele, apenas o nome do alfaiate, Cordis. Os bolsos vazios, claro.

“Cordís", murmurou inexpressivamente. Nunca ouvira falar nesse alfaiate. Apanhou a gravata, examinou a etiqueta, uma etiqueta elegante, mas que também não lhe dizia nada, Pure

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Silk Made In Austria. "Nunca estive na Áustria. E nunca vi antes esta gravata." Arqueou as sobrancelhas. Deixou cair a gravata. Um equívoco, é lógico: um amigo ia se casar e a roupa viera para ele, Emília recebeu o pacote e pensou que. Mas que amigo seria esse?

⎯ Posso entrar? Ele teve um estremecimento: a voz de Emília parecia vir de dentro do espelho. ⎯ Emília, e o_ o fraque? ⎯ Que é que terno fraque? Não está aí? ⎯ Está. Mas a calça amarrotou um pouco... ⎯ Posso alisar se o senhor quiser. Mas já são quase nove horas, o casamento não é às

dez? O café está aqui, o senhor não quer uma xícara? ⎯ Agora não, depois. "Depois", repetiu baixando o olhar para a poltrona. Empalideceu. Via agora ao lado do

armário uma maleta — a maleta que usava para viagens curtas — cuidadosamente preparada, como se daí a alguns instantes devesse embarcar. Ajoelhou-se diante da pilha de roupas. "Mas para onde? Não sei de nada, não sei de nada!..." Examinou os pijamas envoltos em celofane. Tocou de leve no calção de banho, nos shorts, nos sapatos de lona. Tudo novo, tudo pronto para uma curta temporada na praia, a lua-de-mel ia ser na praia. E quem ia se casar era ele.

Inclinando o corpo para trás, ainda de joelhos, sentou-se sobre os calcanhares, abriu as mãos e ficou olhando para as unhas. "Perdi a memória. Perdi a memória." Fechou as mãos e bateu com os punhos fechados no chão. "Mas não, não é verdade, me lembro de tudo, como é que perdi a memória se me lembro de tudo?..." Levantou-se de um salto e arrancou o paletó do pijama. Mas que brincadeira é esta? Que jogo é este? "Estou ótimo, nunca estive tão em forma, sei tudo, lembro tudo, meu nome é Miguel, advogado, quarenta anos, trabalho na Goldsmith e Pedro é meu chefe, são chatos mas ganho berra, minha mãe morreu há três anos e Naná é minha amante, ela fazia cerâmica mas agora faz estátuas, o filho menorzinho é o Dudu... Na primeira gaveta da cômoda, do lado direito, estão as abotoaduras que ela fez para mim, são verdes e enormes, dentro de uma caixa está o cebolão que meu pai me deixou e também o medalhão com o retrato da minha mãe, ela está de mantilha, foi num baile de carnaval fantasiada de espanhola. Costumava me chamar de Mimi, lembro minha infância, tudo, tudo, avenida Paulista num casarão do avô, um casarão cor-de-rosa com um pé de jasmins no quintal, posso ainda sentir o perfume..."

Correu até a cômoda, abriu a gaveta: "Não falei...?, murmurou ele apertando o medalhão entre os dedos. Sorriu cheio de gratidão para o retrato da mulher loura que lhe sorria sob a mantilha de renda. "Olha aí, não falei?..." Beijou o medalhão e apanhou as abotoaduras verdes. Já desinteressado, levou ao ouvido o cebolão de ouro, fez girar a rosca da corda. Levou-o de novo ao ouvido. Fechou a gaveta. "E então?" Esboçou um gesto na direção da poltrona. Lembrava-se de tudo, de tudo menos do casamento. Só essa faixa da memória continuava apagada, só nesse terreno a névoa se fechava indevassável: nomes, caras, tudo era escuridão. A começar pela noiva feita de nada, diluída no éter. As coisas se passavam como nas histórias encantadas, onde o príncipe mandava vir a donzela de um reino distante sem tê-la visto nunca, o amor construído em torno de um anel de cabelo, de um lenço, de um retrato. "E eu nem isso tenho. Ou tenho?" Devia ter um retrato, ao menos um retrato! Vagou o olhar pelas paredes, pelos móveis. Nada. Revolveu as gavetas. Folheou avidamente o álbum com antigos retratos da família, caras amarelas e mortas, desconhecidas na maioria. Nas últimas páginas, ainda não colados, alguns retratos mais recentes: flagrantes de um piquenique, de um passeio de barco, de uma festa de formatura... Num instantâneo tirado ao lado de um trem, no meio de um grupo de amigos, estava Dora. Passou o polegar na silhueta ensolarada. Amor breve e brutal que começou na chácara, com encontros noturnos no celeiro, sob o vôo negro dos morcegos. Mas Dora já

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estava casada. "E eu nunca me casaria com ela", pensou ao voltar a folha do álbum. "Mas vou me casar agora com uma que nem sei quem é." Foi buscar o cigarro. "Emília sabe, pergunto a ela!" Mas perguntar, como? "Emília, qual é o nome da minha noiva?" Ridículo. Ridículo. Seria denunciar sua loucura. Vacilou. Mas o que seria agora revelar loucura, recusar a realidade ou pactuar com ela?

Abriu de novo o álbum, apanhou ao acaso um retrato de Naná. Não, não, Naná era desquitada. "E este casamento vai ser na igreja, a noiva é solteira. Ou viúva. E com personali-dade, eu jamais vestiria esse fraque se não fosse obrigado. Palhaçada de casamento com fraque. Ela deve ter exigido todo o ritual, não abriu mão de nada, igreja, viagem de núpcias... E eu? Que papel estou fazendo nisso tudo?! Ficou olhando para a varinha lavada de Rosana. Viúva. Mas por que Rosana? Não, não, impossível, por que teria que ser ela? Tirou ao acaso um postal de dentro de um envelope: entre duas desconhecidas estava Jô com seus cabelos compridos e lisos, suas pernas compridas, um pouco finas, talvez. A Jô. E se fosse a Jó? Um caso que se arrastara quatro anos. No último encontro — lembrava-se tão bem — comeram sanduíche de queijo, beberam vinho tinto e se deitaram lado a lado, ouvindo Mozart. Acho Mozart um chato, disse ela levantando-se e desligando o toca-discos. Ele chegou a esboçar um gesto para retê-la mas pensou: para quê? Viu-a vestir-se sabendo muito bem que ela não voltaria. Mas estava com sono. E fazia calor. Deixou-a partir. E se ela tivesse voltado? Guardou o retrato no envelope, não, não podia ser Jô, alguém lhe dissera há tempos que ela andava viajando com um vago diplomata. Fechou o álbum. E Cedia casada pela terceira vez. E Amanda, a suave Amanda das antigas noitadas, dera de beber. E Regina já era mãe de cinco filhos. E Virgínia estava morta.

⎯ O senhor quer agora o café? — perguntou Emília. Ele recebeu a bandeja. Encarou-a. Era evidente que ela não podia gostar da ideia de vê-

lo casado, nenhuma empregada quer ter de repente uma patroa. Mas além desse ressentimento não haveria naquele sorriso qualquer coisa de maligno? Achou-a de um certo .modo esquiva. Ambígua.

⎯ Sabe as horas, Emília? ⎯ Vinte para as dez. 0 senhor está atrasado. ⎯ Posso me vestir num instante, você sabe. ⎯ Sei, mas hoje é diferente... Ele demorou o olhar no café fumegante. Negro, negro. Aspirou-lhe o cheiro. "E se eu der

um chute nesse fraque, não caso coisa nenhuma. não me lembro de nada, esse casa-mento é uma farsa. Poderiam interná-lo como louco, "Enlouqueceu na manhã do casamento". diria o jornal. "É que não sei também até que ponto me comprometi. Até que ponto."

Bebeu o café. Encarou-a de novo. ⎯ Então. Emília? Tudo em ordem'? Ela sorriu. ⎯ O senhor é que sabe — disse enfiando as mãos no bolso do avental. — Ih. já estava me

esquecendo, olha aí, chegaram mais estes telegramas.

Ele examinou o primeiro. O segundo. Nenhuma pista. O nome dela não estava mencionado nos votos ingênuos, convencionais. Telegramas, de colegas de escritório. De parentes. Ao noivo. Ao noivo.

“Até que ponto me comprometi?” repetiu a si mesmo sacudindo a cabeça que já começava a doer. Dirigiu-se ao banheiro. E só quando se cortou pela segunda vez no queixo é que reparou que se barbeava sem ter ensaboado a cara. Lavou o corte que sangrava sem parar. E se disser não! Seria fácil, "chega, não caso coisa nenhuma, não pedi ninguém em casamento. não quero.

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não quero"' Mas teria que saber antes até que ponto tinha ido. Um jogo difícil, sem regras, sem parceiros. Quando deu acordo de si, já estava na hora da cerimônia. A solução era prosseguir jogando.

⎯ Miguel! Miguel! Era a voz de Frederico. Inclinando-se até o jorro de água, Miguel molhou mais uma vez o

rosto. Os pulsos. ⎯ Mas Miguel... você ainda está assim? Faltam só dez minutos, homem de Deus! Como é

que você atrasou desse jeito? Descalço, de pijama!... Miguel baixou o olhar. Frederico era seu amigo mais querido. Contudo, viera buscá-lo

para aquilo. Fico pronto num instante, já fiz a barba. E que barba, olha aí, cortou-se todo. Já tomou banho? ⎯ Não. ⎯ Ainda não?! Santo Deus. Bom, paciência, toma na volta que agora não vai dar mesmo

tempo — exclamou Frederico empurrando-o para o quarto. — Acho que será o primeiro noivo a se casar sem tomar banho. Uma nota original, não há dúvida. ⎯ Nesse casamento tem outras notas mais originais ainda — murmurou Miguel. E quis rir mas os lábios se fecharam numa crispação exagerada,

⎯ Você está pálido, Miguel, que palidez é essa? Nervoso? ⎯ Não. ⎯ Acho que a noiva está mais calma. ⎯ Você tem ai o convite? ⎯ Que convite? ⎯ Do casamento. ⎯ Claro que não tenho convite nenhum, que é que você quer fazer com o convite? — Queria ver uma coisa...

— Que coisa? Não tem que ver nada, Miguel, estamos atrasadíssimos, eu sei onde é a igreja, sei a hora, que mais você quer? Nunca vi um noivo assim — resmungou Frederico atirando o cigarro pela janela. — E esse laço medonho, deixa que eu faço o laço.

Miguel entregou-lhe a gravata. Pensou em Vera. Vera! E se fosse a Vera? Verinha, a irmã caçula de Frederico, a mais bonita, a mais graciosa. Seria ela? Apalpou os bolsos do colete. Mas o nome devia estar na aliança, pois claro, na aliança.

⎯ E as alianças? ⎯ Estão com sua tia, esqueceu? Mas mova-se, homem, vamos embora!

Quando passou por Emília, ela enxugava os olhos na barra do avental. Tocou-lhe no braço. ⎯ Você não vem, Emília? ⎯ Não gosto de ver.

"Nem eu", quis dizer-lhe. E num relance descobriu algumas caixas de presentes em cima da mesa. Os presentes, como não pensara nisso? O nome dela devia estar nos cartões dos presentes! Mas Frederico já o impelia para a rua, "Depressa, não fique assim parado!" Quando entrou no carro, procurou relaxar a crispação dos músculos. Afundou na almofada, fechou os olhos. O fraque era largo demais, o colarinho apertava e a cabeça já doía sem disfarce. Mas agora estava tranquilo, inexplicavelmente tranquilo. Deixava-se conduzir. Para onde? Não importava. Frederico sabia. E era Frederico quem estava na direção.

⎯ A igreja é longe?

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⎯ Estamos diante dela — disse Frederico arrefecendo a marcha do carro. — Limpe esse corte que está sangrando, fique com meu lenço, "Perto, não?", pensou Miguel num sobressalto. E quanta gente, meu Deus, quanta gente.

Ela devia ser muito relacionada para atrair tanta gente assim. Fechou o vidro da janela. Queria ser

aquele menininho ali adiante que vendia agulhas, queria ser aquele gatinho preto que se sentara

no último degrau da escadaria e lambia a pata, os olhos apertados por causa do sol, queria ser a

sombra do gatinho, só a sombra. Guardou no bolso o lenço com a nódoa de sangue.

⎯ O noivo, o noivo! — exclamaram os curiosos espiando para dentro do carro.

Num andar de autômato, Miguel foi caminhando em meio dos convidados que se agitaram, farfalhantes. O suor descia-lhe pelas têmporas. Sentiu os lábios secos, a boca seca. Enxugou a testa sentindo no braço, delicada mas enérgica, a pressão dos dedos de Frederico impelindo-o para o altar. O perfume das flores era morno como nos velórios. E a nódoa no lenço. Sentia-se enfraquecido como se todo o seu sangue e não apenas algumas gotas tivesse se esvaído naquele corte. Apalpou-o.

⎯ Esse cheiro, Frederico. E essas velas. ⎯ Que cheiro? Toda igreja... então não sabe? Ainda sangra? Esse talho, pega o lenço.

Não respondeu. Viu tia Sônia num dramático chapéu preto e vermelho. Viu as gêmeas cochichando e rindo. Viu mais além — e o coração pesou-lhe — Naná ao lado dos dois meninos, viu-a rapidamente mas pôde sentir o quanto estava triste, “mas o que é isto, eu não sabia de nada, Miguel?! Por que você não me contou?" Viu Pedro conversando com alguns colegas de escritório, todos com aquele sorriso malicioso, detestável. Viu Amanda — estaria bêbada? ⎯ meio vacilante sob o chapelão de palha. E viu Vera.

Num desfalecimento, Miguel quis se apoiar em alguma coisa ao seu alcance. Mas não havia nada ao alcance para se apoiar. A cabeça latejou com mais violência, Vera. Vera entre os convidados, a Verinha toda vestida de preto, não podia haver um vestido mais preto, "não é você, Vera!?..." ⎯ Ela acabou de chegar — avisou tia Sônia aproximando-se, afobada. — Está tão linda!

Escancarou-se a porta: no alto da escadaria a noiva foi surgindo lentamente, como se tivesse estado submersa abaixo do nível do tapete vermelho. E agora viesse à tona sem nenhuma pressa, primeiro, a cabeça, depois os ombros, os braços... Tinha o rosto coberto por um denso véu que flutuava na correnteza do vento como a vela desfraldada de um barco. Laura?

Ela foi se aproximando, obediente ao compasso grave da marcha. Miguel apertou os olhos míopes. Como era espesso o véu! Quem estaria por detrás, quem? Só vestido, só rendas e flores, umas flores tão úmidas, tão brilhantes. O vento soprando a nebulosa que deslizava pelo tapete, indevassável e diáfana. Leve. Subia agora os degraus do altar. Miguel adiantou-se. Deu-lhe o braço adivinhando-a sorrir lá no fundo dos véus. Não seria Margarida?

Por um momento ele fixou o olhar na mão enluvada que se apoiou no seu braço. Era leve como se a luva estivesse vazia, nada lá dentro, ninguém sob os véus, só névoa. Névoa. A sedução do mistério envolveu-o como num sortilégio, agora estava excitado demais para recuar. Entregou-se. No peito, o agudo grito da cantiga de roda da infância com a menina ajoelhada tapando o rosto com o lenço, "Senhora Dona Sancha, coberta de ouro e prata..." Ele avançou para a roda, entrou no meio onde a menina se escondia e descobriu-a, "queremos ver sua cara!"

O silêncio. Era como se estivesse ali à espera não alguns minutos mas alguns anos. Muitos anos. A duração de uma vida. Quando ela apanhou as pontas do véu que lhe descia até os

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ombros, ele teve o sentimento de que estava chegando ao fim. A cantiga voltou mais próxima, "Senhora Dona Sancha!..." Quem, quem? O véu foi subindo devagar, tão devagar, difícil o gesto. E tão fácil. Atirou-o para trás num movimento suave mas firme.

Miguel, encarou-a. "Que estranho. Lembrei-me de tantas! Mas justamente nela eu não

tinha pensado..." Inclinou-se para beijá-la.

As formigas Lygia Fagundes Telles

Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima. - É sinistro. Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina. - Pelo menos não vi sinal de barata - disse minha prima. A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho. - É você que estuda medicina? - perguntou soprando a fumaça na minha direção. - Estudo direito. Medicina é ela. A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho. Vou mostrar o quarto, fica no sótão - disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. - O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles. Minha prima voltou-se: - Um caixote de ossos? A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava

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um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada. - Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? - Ele disse que eram de adulto. De um anão. - De um anão? é mesmo, a gente vê que já estão formados... Mas que maravilha, é raro a beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí - admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. - Tão perfeito, todos os dentinhos! - Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: - Não deixem a porta aberta senão meu gato foge. Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou- a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa. - Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele. Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria. - De onde vem esse cheiro? - perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. - Você não está sentindo um cheiro meio ardido? - É de bolor. A casa inteira cheira assim - ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama. No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho. - Que é que você está fazendo aí? - perguntei.

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- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo? Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar. - São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida - estranhei. - Só de ida. Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama. - Está debaixo dela - disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. - Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool. - Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora. - Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vem fuçar aqui. Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho. - Esquisito. Muito esquisito. - O quê? - Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui? - Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão. Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos a cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho. Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, a procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor

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movimento de formigas no caixotinho coberto. Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei: - E as formigas? - Até agora, nenhuma. - Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando. - Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? - Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então quem?! Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava. - Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica. - Elas voltaram. - Quem? - As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta. - E os ossos? Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo. Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi,

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devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... estão se organizando. - Como, organizando? Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol. - Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e... Venha ver! - Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso? Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia. Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro. - Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia - ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso. - Estou com medo. Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir. - Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam? Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga. - Voltaram - ela disse. Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.

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- Estão aí? Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz. - Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava... - Que foi? Fala depressa, o que foi? Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama. - Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui. - Você está falando sério? - Vamos embora, já arrumei as malas. A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados. - Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim? - Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta. - E para onde a gente vai? - Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto. Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?

No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.

A caçada Lygia Fagundes Telles

A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.

– Bonita imagem – disse ele. A velha tirou um grampo do coque e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo

no cabelo. – É um São Francisco.

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Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede do fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.

– Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado. O homem estendeu a mão até a tapeçaria mas não chegou a tocá-la. – Parece que hoje está mais nítida... – Nítida? – repetiu a velha pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. –

Nítida, como? – As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava

tão pálido e perplexo quanto a imagem. – Não passei nada. Por que o senhor pergunta? – Notei uma diferença. – Não, não passei nada, essa tapeçaria não aguenta a mais leve escova, o senhor não

vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido – acrescentou, tirando o grampo novamente da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: – Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador mas ele insistiu tanto... Preguei na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais apareceu.

– Extraordinário... A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe

contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo. – Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora

que se despregar, é capaz de cair em pedaços. O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! Em que tempo

teria assistido a essa mesma cena. E onde?... Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para

uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.

O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se pelo chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.

– Parece que hoje tudo está mais próximo – disse o homem em voz baixa. – É como se... Mas não está diferente?

A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los. – Não vejo diferença nenhuma. – Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta. – Que seta? O senhor está vendo alguma seta? – Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou: – Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças

dão cabo de tudo – lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído: – Fique aí à vontade, vou fazer meu chá.

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O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu – conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda, aspirara aquele mesmo vapor, que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas detrás das folhas, através das manchas, pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco.

Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro?

Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira... Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?

Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. "Antes do aproveitamento da tapeçaria...", murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.

Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?

Saiu de cabeça baixa, as mãos encolhidas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? Que loucura!... E não estou louco, concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. Mas não estou louco. Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo.

Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: "Que seta? Não estou vendo nenhuma seta..." Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de r isadinhas. O algodão abafava as r isadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o l imite da tarja. Viu-se enredado nos f ios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. "Sou o caçador?" Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue.

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Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!

Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica: ⎯ Hoje o senhor madrugou. ⎯ A senhora deve estar estranhando, mas... ⎯ Já não est ranho mais nada, moço. Pode ent rar , pode entrar, o senhor

conhece o caminho... "Conheço o caminho" — murmurou, seguindo l ív ido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi f icando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Está t ico. No s i lênc io da madrugada, nem o p iar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava,sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.

Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor!

"Não.. . " — gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.

Aforismos

• do Vídeo “A palavra é a negação da morte” Lygia Fagundes Telles “O bom escritor está naturalmente engajado na política” LFT “No cinema americano, tudo se resolve.” Luiz Ruffato “A literatura existe para mostrar o outro lado: o dos dominados.” Sonia Régis “Não há distinção entre invenção e memória” LFT • da Entrevista de Lygia para os Cadernos de Literatura Brasileira “O conto é uma forma arrebatadora de sedução. É como um condenado à morte, que precisa aproveitar a última refeição, a última música, o último desejo, o último tudo.” LFT “A palavra é um ponte através da qual eu tento conseguir o amor do próximo” LFT

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“Para escrever é preciso ter a competência, que junta percepção e paciência e o amor, aquela entrega total que significa convivência. E eu insisto. Isso vale para qualquer ofício. Se o marceneiro, por exemplo, não convive com a madeira, não a alisa, não a sente enquanto faz sua mesa, o seu trabalho será prejudicado por mais técnica que ele possua.E o contrário também é verdadeiro”LFT “Minhas antepassadas escreviam versos nos cadernos de receitas, de compras do dia: dois quilos de cebola, duas caixas de sabão e vinha um verso, um sonho, um devaneio. A mulher brasileira seguia a tradição da portuguesa, quer dizer, completamente dentro do espartilho.” LFT “No fundo, a literatura é uma forma de amor.” LFT “A loucura, o acaso e o imprevisto desencadeiam reações dentro do mesmo caldeirão. A fogo brando para evitar o pior.” Professor de LFT (discurso de posse)

Discursos na ABL

DISCURSO DE INAUGURAÇÃO DA ACADEMIA (20/07/1897)

DISCURSO DE MACHADO DE ASSIS

Pronunciado na sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras em 20 de julho de 1897, ao empossar-se Presidente.

SENHORES,

Investindo-me no cargo de presidente, quisestes começar a Academia Brasileira de Letras pela consagração da idade. Se não sou o mais velho dos nossos colegas, estou entre os mais velhos. É simbólico da parte de uma instituição que conta viver, confiar da idade funções que mais de um espírito eminente exerceria melhor. Agora, que vos agradeço a escolha, digo-vos que buscarei na medida do possível corresponder à vossa confiança.

Não é preciso definir esta instituição. Iniciada por um moço, aceita e completada por moços, a Academia nasce com a alma nova, naturalmente ambiciosa. O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige, não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente a vossa constância. A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de toda casta, às escolas literárias e às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições de estabilidade e progresso. Já o batismo das suas cadeiras com os nomes preclaros e saudosos da ficção, da lírica, da crítica e da eloquência nacionais é indício de que a tradição é o seu primeiro voto. Cabe-vos fazer com que ele perdure. Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para que eles os transmitam aos seus, e a vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira. Está aberta a sessão.

DISCURSO DE POSSE

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No pequeno laboratório de química dos meus tempos ginasiais, aconteciam as mais extraordinárias experiências sob a inspiração do nosso professor. Lembro-me de que era um homem pálido e meio balofo, com a mesma cara secreta de um Buda de bronze que ficava na vitrine dos bibelôs da sala de visitas da minha mãe. Falava baixo esse professor. Enfática era a voz borbulhante dos tubos de ensaio com suas soluções que ferviam sob a chama da lamparina nas famosas aulas práticas. Os misteriosos tubos de ensaio com seus lentos vapores - as fumacinhas escapando das misturas de inesperadas colorações - e que podiam explodir de repente ao invés de darem uma vaga precipitação, ah! o suspense daquelas combinações. Só ele, o químico de avental branco, parecia não se impressionar com as intempestivas ocorrências ao longo da tosca mesa esfumaçada, com ares de uma oficina de bruxaria medieval. Costumava ele fazer no quadro-negro os seus cálculos e, em seguida, anunciava: “Vocês verão agora este líquido amarelo ficar azul”. E o líquido amarelo ficava vermelho. Ele não se perturbava, era um homem calmo. Recomeçava, sem pressa, a operação, enquanto deixava escapar alguns fiapos de monólogo, “acho que algo não deu certo, hem?...”. É, concordávamos, alguma coisa não funcionou, o que seria? E, sem muito interesse pela resposta, voltávamos a acompanhar, com atenta perplexidade, os movimentos do mestre de uma ciência tão austera. E tão esquiva. A malícia, essa escondíamos na expressão meio idiotizada que só conseguem ter os adolescentes. Certa manhã, ele chegou filosofante:

Vejam, meninas, na química há sempre uma larga margem de imprevistos, como na vida, que também desobedece regras e leis...Vocês vão se lembrar disso mais tarde. A esse grão de imprevisto - o principal - fui juntando os acessórios: o acaso que reside nos pequenos acontecimentos fortuitos. E a loucura, o terceiro grão que compõe essa estupenda fórmula, anarquizando uma ciência com a nitidez da matemática. Anarquizando a circunstância do homem e o próprio homem, esse mesmo homem que Pascal considerava tão “necessariamente louco, que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”.

A loucura, o acaso e o imprevisto desencadeando reações dentro do mesmo caldeirão. A fogo brando, para evitar o pior.

Dom Pedro I chamava a atenção da ambiciosa Marquesa de Santos (Pedro Calmon a considerava ambiciosa) para a importância de “certas misteriosas combinações”. Que combinações seriam essas? Dom Pedro sabia, ele e certamente esse outro Pedro, o Calmon, que pesquisou e analisou “as vinte mil léguas submarinas” da vida do Rei Cavaleiro. Nessas combinações, que para mim começaram naquele antigo laboratório de química, residiria o luminoso mistério que é o sal da vida.

Creio que foi sob a inspiração dessas combinações instigantes que me veio a ideia de fazer vibrar a corda tensa, de extremos aparentemente antagônicos: numa ponta, Gregório de Mattos, o patrono desta Cadeira no 16. Na outra ponta, Pedro Calmon, o seu último ocupante. Nessa desafiante operação, eis que me surpreendi de repente com a mesma perplexidade daquelas manhãs no laboratório de química, diante das soluções que pareciam desacatar a previsão oficial. Que neste caso seria afastar o baiano tão ilustre que foi Pedro Calmon do antiilustre baiano que foi Gregório de Mattos.

Contudo, aqui estou não só unindo esses extremos mas com eles dando um nó forte e quente, porque são extremos feitos da mesma incomparável matéria dos seres raros. Entrelaçados nas suas raízes por uma paixão comum: a paixão da palavra. A palavra falada. A palavra escrita.

A dementada paixão da palavra que os levou a lutar com a mesma coragem. Com a mesma generosidade - duas virtudes comuns aos dois artistas. Embora, na opinião de Carlos Drummond de Andrade, essa fosse uma luta vã:

Lutar com palavras é a luta mais vã entanto, lutamos mal rompe a manhã.

Confesso que não vejo o trovador delirante que foi Gregório de Mattos acordando com a manhã, pois era nas noites boêmias que ele apurava sua viola. Quem acordava com os passarinhos era Pedro Calmon, ansioso por iniciar a luta que se assemelha a uma luta de boxe, sim, o escritor atracado à palavra como um boxeur numa contenda que é busca e encontro. Dor e celebração. Com suor e sangue, a palavra verte sangue.

O satírico do século XVII, Gregório de Mattos Guerra, o Boca do Inferno, liberto e libertino, errando “despassarado” de viola a tiracolo por Lisboa, Coimbra, Bahia, Angola e Recife. E os vínculos coincidentes com o bem-comportado

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orador do século XX, Pedro Calmon Moniz de Bittencourt, historiador e jurista refinado e polido, irônico, mas não sarcástico, colérico às vezes (a cólera é necessária) como no período em que foi reitor e, de peito aberto, defendeu a estudantada contra a polícia. Perspectivo e lúcido como o outro, o falso demente Gregório de Mattos. Um descompondo e o outro compondo, mas testemunhando, cada qual à sua maneira e ao seu tempo, a sua gente e o seu país.

Curioso o destino desses dois baianos iluminados pela paixão da palavra falada. Na sua tormentosa viagem para Ítaca, Ulisses fez-se amarrar com cordas no mastro do navio para assim resistir ao canto sedutor das sereias. Os que ouviram Gregório de Mattos com seu estilo barroco e fescenino e os que ouviram Pedro Calmon, barroco, também, mas não licencioso – os que ouviram essas duas sereias das mesmas águas não precisaram se amarrar para resistirem ao impulso de seguir o líder da ralé e o líder da elite nas universidades e academias. Pedro Calmon tinha três tribunas prediletas: a desta Academia, a do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. A tribuna do poeta era a taverna, a rua. Ele, que não tinha um “gato pingado pra puxar pelo rabo”, gostava de gatos? O gato de Pedro Calmon chamava-se Reinaldo. Gregório de Mattos e o seu destino obscuro “naquela pobre Bahia fidalga, no ano do Senhor de 1684”. Pedro Calmon e o seu destino glorioso.

Mas, afinal, o que queriam esses dois sonhadores, a verdade? A verdade. Usando e abusando do poder da palavra (o terrível poder da palavra!), sondaram, analisaram e interpretaram essa verdade tão escorregadia na face dos reis e dos vagabundos. Dos poetas e dos santos. Qui est veritas?, foi perguntado ao Filho de Deus. Ele não respondeu. E lembro aqui a paixão de ambos por esse mesmo Deus - outro traço comum na natureza mais profunda das duas ovelhas, a branca e a preta, esta a mais carente. A se oferecer nos instantes de lirismo para pousar a cabeça no seio da mulher amada. Ou no Coração do Senhor:

Nesse lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minha vida anoitecer; É, meu Jesus,a hora de se ver A brandura de um Pai, mesmo Cordeiro. A beleza deve ser repetida: “Nesse lance, por o derradeiro, / Pois vejo a minha vida anoitecer;”.

Pedro Calmon clareou essa noite quando escreveu sobre A estranha vida de Gregório de Mattos, tantos espantos! Sem dúvida, reconheceu que uma centelha genial lhe abraçou a incrível facilidade do verso.

Não se negue mais, aqui e em Portugal, que é dele o primado do abrasileiramento da língua portuguesa. Não se negue também que foi Gregório de Mattos, com sua poesia coloquial, o criador da modinha, a famosa modinha brasileira, que ele inventou e divulgou nas suas serenatas em Coimbra. E quando para cá voltou com seu canudo de doutor e sua viola.

Influências de Gôngora e Quevedo? Sim, mas o bardo baiano não aceitava ordens ainda que viessem metamorfoseadas em influências. Foi tentado, chegou a pensar que podia vender a alma ao Diabo, quando aceitou cargos e honrarias com a condição de se calar. Durou pouco o contrato do silêncio, ah!, todo o ouro do mundo não valia a sua liberdade. Jogou longe os aparatos, tirou a viola do saco e voltou às suas sátiras contra a corrupção política, contra o pedantismo e contra a hipocrisia de um reino que nunca respeitou. Orfeu amansava as feras ao som da sua lira. Com sua viola, o poeta atiçava essas feras. Arriscava-se? E muito. Mas viver perigosamente era a sua destinação.

E o poeta sem princípios tinha princípios. Os seus princípios. Se amor é transgressão, ele transgrediu à beça em todos os estados civis pelos quais passou, principalmente no estado de casado, ele gostava de se casar. Contudo, num tempo em que os homens de bem escondiam ferozmente seus amores proibidos e os frutos abomináveis desses amores, assumiu o chamado “caso escabroso”. Lá está, nos assentos da freguesia de São João da Pedreira, a confissão da paternidade: “Aos dezoito de julho de mil seiscentos e setenta e quatro batizei a Francisca, filha de Gregório de Mattos e Guerra, casado, e de Lourença Francisca, solteira.”

Sem querer exagerar na relação das coincidências (o ficcionista é um exagerado), gostaria de lembrar mais um elo de coincidência e que implica uma razão como chave da corrente: eu era estudante na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (“paulista sou, há quatrocentos anos”) quando um colega me ofereceu um livro: Poesias de Gregório de Mattos. Sentei-me sob as arcadas. Abri o livro. Então o bedel veio me perguntar se à noite eu não viria assistir à conferência do Professor Pedro Calmon.

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Os jovens desconfiam sempre das celebridades de outra geração, mas eu estava em disponibilidade e esse era um programa. Confesso que entrei na sala meio hesitante, levando comigo as poesias da manhã, uma garantia na hipótese de me sentar na frente e não poder fugir. O tema da conferência era Castro Alves. Entrei desconfiada e saí fascinada. O público ainda aplaudia de pé quando pensei em felicitar o orador de sorriso franco e olhos largos, brilhantes. Não fui, havia gente demais em redor dele. Mas enviei-lhe o meu primeiro livro de contos com uma dedicatória emocionada. Dias depois, recebi o seu cartão que me deixou radiante, mostrei-o aos colegas. Só mais tarde fiquei conhecendo alguns títulos da sua vastíssima obra tão severa, tão brilhante. Destaco as biografias de Castro Alves e de Dom Pedro II. E esse admirável ensaio, Ideias políticas do Brasil. Alguns livros eu amo. Outros, apenas admiro. Eis um livro que amei e admirei.

Araripe Júnior, crítico literário e ensaísta, foi o criador desta cadeira de veludo azul. “O veludo da cadeira azulou como azularam os cabelos” - ouço Gregório de Mattos soprar com seu risinho irreverente.

Ralho com ele e retorno à figura do ensaísta com sua vontade de renovação – mas não é estranho? Araripe Júnior, de aparência tão convencional (as aparências!) e não se sujeitando ao convencional gosto literário da época: ele ousava. Buscava a aventura de novas linguagens e, nessa busca, voltou-se como um girassol deslumbrado para autores como Ibsen, Edgar Poe e... Gregório de Mattos.

Félix Pacheco vem em seguida. Como o seu antecessor, tem o ar ajuizado da laboriosa formiga da fábula, mas gostava mesmo era de ouvir as cigarras. Foi poeta na primeira juventude. O pai queria que ele seguisse a carreira militar; rebelou-se e foi ser jornalista no Jornal do Commercio, onde começou como simples repórter policial e chegou a diretor. Foi também deputado e chanceler da República. Fala tanto nas antigas ilusões, nos sonhos, acredita mesmo que o homem pode se salvar através do sonho - ainda a inquietação do poeta de colete rigorosamente abotoado. Com a emoção arrebentando os botões em suas bizarras paixões literárias: tinha para escolher toda a bem-comportada galeria dos poetas parnasianos, mas quem ele foi buscar? Baudelaire, Rimbaud e Cruz e Sousa, o negro simbolista dos escarros e vísceras. E Gregório de Mattos, naturalmente, o bem-amado dos ocupantes desta Cadeira. Félix Pacheco era feliz? Não sei. Sei que teve a coragem de assumir, já na maturidade, a sua condição de poeta, ele que passara a vida aspirando o buquê perverso das ambiguidades do mal e das ambiguidades do bem. Amava os gatos.

Imaginai agora uma reunião na linha dos malditos, dos raros. Daqueles que, pelos caminhos mais inesperados, escolhem a ruptura. Fora do tempo e ocupando o mesmo espaço, estão todos numa sala, é noite. Os gênios ignorados num País de memória curta, que parece preferir os mitos estrangeiros como se estivéssemos ainda no século XVII, sob o cativeiro do reino. Os mitos estrangeiros que continuam nos vampirizando, já estamos quase esvaídos e ainda oferecemos a jugular no nosso melhor inglês, “o vosso amor é uma honra para mim!”. Pois, imaginai essa reunião com gente aqui da terra: abraçado à sua viola, num canto de sombra está Gregório de Mattos, ouvindo embevecido o piano de Villa-Lobos. Ao lado, um homem pequeno (o Aleijadinho?) diz qualquer coisa que faz Guimarães Rosa rir seu riso luminoso. Tarsila desenha em silêncio, observada por Oswald de Andrade, que gesticula e fala, enquanto Cruz e Sousa se aproxima de Castro Alves, que conversa com Glauber Rocha em tom de conspiração. Vislumbro o perfil de Brecheret. Corre o vinho. Há mais convidados, sim, mas os vultos se esgueiram e se confundem em meio da fumaça penumbrosa dos charutos. Lima Barreto, o moderador da mesa, tira a palheta e começa a falar mas ninguém presta atenção, reina a indisciplina:

É raro encontrar homens assim - diz ele -, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça.

Pedro Calmon está atento para registrar e interpretar a contraditória História, matéria para a eternidade. Chama Mário de Andrade e aponta, na vidraça da janela, dois olhos verdes que espiam enviesados. Mário abre a porta e o sorriso. O convite é à maneira bandeiriana: “Entra, Clarice, a casa é sua, você não precisa pedir licença...”

Senhores Acadêmicos, Senhora Acadêmica,

Comecei por narrar as minhas perplexidades naquele modesto laboratório de química da minha adolescência. Das imprevistas misturas, com suas explosões, passei para o imprevisível homem, com sua circunstância, e, assim, nesse mundo fantástico e surrealista, juntei num forte nó as pontas extremas do fio da baianidade: Gregório de Mattos e Pedro Calmon. O herói e o anti-herói. “A disparidade dos seres é acidental”, ensinou Aristóteles. “A unidade dos seres, essa é essencial”. Tudo somado, chegamos às tais “misteriosas combinações” tão do agrado de Dom Pedro I, desde que nelas estaria incluído o seu amor pela marquesa.

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Senhores Acadêmicos, Senhora Acadêmica,

Antes de a Academia Francesa de Letras, que foi nosso modelo, receber Marquerite Yourcenar, esta Academia Brasileira de Letras teve o beau geste de abrir suas portas para Rachel de Queiroz. Em seguida, para Dinah.

“Não quero um trono - diria também Rachel de Queiroz. - Quero apenas esta Cadeira.”

A mesma paixão que nos une: a paixão da palavra. A mesma luta tecida na solidão e na solidariedade para cumprir o duro ofício nesta sociedade violenta, de pura autodestruição. E neste tempo que está mais para Gregório de Matos do que para Pedro Calmon - ah! quanta matéria para a inspiração do trovador com sua viola demolidora. Um tempo que marca a plenitude da sátira, da charge política: a salvação através do humor. Com esse humor incandescente, ele iria se empenhar de novo na denúncia dos males que desde o século XVII já afligiam o País, centralizados na política com seus demônios crônicos na delirante corrida pelo poder: o demônio da Gula (leia-se voracidade), o demônio da Vaidade e o demônio da Soberba. O burocrático demônio da Preguiça, esse vem se arrastando por último.

O duro ofício de testemunhar um planeta enfermo nesta virada do século. Às vezes, o medo. Quando perseguido, o polvo se fecha nos tentáculos e solta ma tinta negra para que a água em redor fique turva e, assim, camuflado, ele possa então fugir. A negra tinta o medo. Viscosa, morna. Mas o escritor precisa se ver e ver o próximo na transparência da água. Tem de vencer o medo para escrever esse medo. E resgatar a palavra através do amor, a palavra que permanece como a negação da morte.

Às vezes, a esperança. O homem vai sobreviver, e essa certeza me vem quando vejo o mar, um mar que talhou com tanta poluição, embora!, mas resistindo. Contemplo as montanhas e fico maravilhada porque elas ainda estão vivas. Sei que é preciso apostar, e de aposta em aposta cheguei a esta Casa para a harmoniosa convivência com aqueles que apostam na palavra. Sei ainda que estou feliz nesta noite: vejo minha família - meu filho Godoffredo Telles Neto deve estar por aí me filmando, é cineasta. E vejo os meus amigos. Esses amigos que me acompanham e me iluminam. www.academia.org.br