2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA TERRITÓRIOS DO TURISMO, TERRITÓRIOS DE TODOS? Um estudo comparado sobre urbanização e formação de territórios em balneários turísticos do Nordeste do Brasil Autor: Paulo Roberto Baqueiro Brandão Orientador: Prof. Dr. Cláudio Jorge Moura de Castilho Recife, Pernambuco (Brasil) Março de 2013
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
TERRITÓRIOS DO TURISMO, TERRITÓRIOS DE TODOS?
Um estudo comparado sobre urbanização e formação de territórios em
balneários turísticos do Nordeste do Brasil
Autor:
Paulo Roberto Baqueiro Brandão
Orientador:
Prof. Dr. Cláudio Jorge Moura de Castilho
Recife, Pernambuco (Brasil)
Março de 2013
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
TERRITÓRIOS DO TURISMO, TERRITÓRIOS DE TODOS?
Um estudo comparado sobre urbanização e formação de territórios em
B817t Brandão, Paulo Roberto Baqueiro. Territórios do turismo, territórios de todos? : um estudo comparado
sobre urbanização e formação de territórios em balneários turísticos do Nordeste do Brasil / Paulo Roberto Baqueiro Brandão. – Recife: O autor, 2013.
303 f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Prof. Dr. Cláudio Jorge Moura de Castilho. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Programa de Pós–Graduação em Geografia, 2013.
Inclui bibliografia e apêndices.
1. Geografia. 2. turismo. 3. Espaços urbanos. 4. Urbanização – Turismo. 5. Nordeste (Brasil). I. Castilho, Cláudio Jorge Moura de. (Orientador). II. Título. 910 CDD (22.ed.) UFPE (CFCH2013-15)
5
DEDICATÓRIA
À Maria Rita,
a quem dedico cada respiração, cada
batimento do coração e cada
bom pensamento que sou capaz de ter.
6
AGRADECIMENTOS
São muitas as pessoas com as quais contraí dívidas de gratidão. Por isto mesmo,
corro o risco de, ao individualizar, não dar a dimensão precisa dos papéis
desempenhados por cada um dos amigos, parceiros e familiares que ajudaram nesta
empreitada. Porém, sei eu devo citar alguns nomes, dando personalidade aos meus
agradecimentos.
Entre os familiares, agradeço àqueles que estão sempre próximos, com seu amor,
incentivo, orgulho e até cobranças. Faço aqui uma menção aos meus pais, Juraci e Anna
Rita, por tudo que me proporcionaram ao longo desta trajetória e pelos inestimáveis
ensinamentos que carregarei comigo para sempre; aos meus irmãos, representados por
Marco, o parceiro de sempre; a Ana Cláudia, minha companheira, que, estando mais
próxima do meu dia a dia, vivenciou com intensidade todas as alegrias e reveses da
construção desta tese e que, apesar da minha ausência momentânea, soube manter o
leme da família no rumo certo. Além disso, lhe sou grato pela elaboração do material
cartográfico que compõe esta tese; aos meus primos e às minhas tias, em nome de
Scheylla Maria, minha prima, por ter me acolhido tantas e tantas vezes em Porto de
Galinhas; por fim, a Maria Rita. A esta, agradeço apenas por existir.
Aos professores e estudantes do ICADS/UFBA, meus agradecimentos e pedidos
de desculpas pelos momentos nos quais não pude estar presente para contribuir com o
caminhar do Curso de Geografia, de que tanto me orgulho em fazer parte. A estes, todas
as minhas deferências, em especial a Evanildo Santos Cardoso (parceiro de todas as
Importante salientar que não existe uma relação de causa e efeito entre o
fordismo e a chamada modernidade, esta sendo, inclusive, anterior àquele. Melhor
afirmar que os agentes que deram sustentação ao modelo econômico e político se
valeram de um sistema de valores cuja paulatina assimilação pela sociedade teve início
no Período das Luzes.
Portanto, esse tipo de sociedade de que trata o ilustre industrial norte-americano
é a sociedade aperfeiçoada do Renascimento, da qual irrompeu a mentalidade utilitária e
de onde a massificação ganhou forma (SÁBATO, 1993), chegando ao êxtase a partir do
ideário fordista, que, por sua vez, impôs um tipo de modernidade ao seu feitio.
Na sua essência, a sociedade moderna reestruturada sobre os pilares do
fordismo, principalmente na versão entronizada no pós Segunda Guerra Mundial, era o
reflexo de um ideário marcado pela produção e consumo em massa, rigidamente
padronizados, que aquele regime de acumulação fez nascer nas fábricas, e pelo
surgimento das novas estéticas de mercantilização e do modernismo. Esta última exibe
fortes inclinações para a funcionalidade e para a eficiência, o que contribuiu de modo
significativo – em aliança com o Estado – para o estabelecimento de uma democracia
econômica de massa (HARVEY, 1996).
Assim, o consumo massificado acabou por interferir na própria concepção de
sociedade que se tinha. Era o império do coletivo, da submissão/diluição do indivíduo
a/em uma modernidade totalizante, prenhe de regulamentação e que desprezava toda e
qualquer possibilidade de anomia. Nos dizeres de Bauman (2001, p. 33), “essa
modernidade era inimiga jurada da contingência, da variedade, da ambiguidade, da
instabilidade, da idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa a todas essas
‘anomalias’”.
Apesar da avassaladora capacidade de moldar a tudo e a todos, aquele modelo de
sociedade não foi capaz de resistir às transformações políticas e econômicas iniciadas
34
com os ajustes que levaram ao processo de flexibilização do capitalismo no último terço
do século XX.
Sobre tal metamorfose do capitalismo, Alves (2007, p. 72), ao discutir a
evolução dos modelos científicos, fornece elementos para a interpretação, por analogia,
da mudança de paradigma do fordismo para o capitalismo de acumulação flexível.
Segundo o autor:
(...) a mudança do modelo não se deveu a nenhuma descoberta nova.
Ela foi apenas uma reorganização dos materiais velhos sob uma forma
nova. As peças do quebra-cabeças são as mesmas. Mas elas não se
encaixavam umas nas outras. Bastou mudar o centro. Permaneceram
as mesmas entidades, mas de repente o modelo de sistema mudou.
Assim, se a máquina do regime de acumulação fordista passou a mostrar sinais
de desgaste diante das suas próprias contradições e o colapso já se anunciava, foi
necessário – da parte dos agentes hegemônicos do sistema capitalista – buscar novos
caminhos que reconduzissem à retomada do crescimento.
1.1.2 A versão de modernidade da era pós-fordista
O entendimento das condições econômicas e políticas que geraram a mudança
passa necessariamente pelo estabelecimento de uma espécie de pano de fundo histórico,
datado na década de 1960, pouco antes, portanto, de 1973, aquele que seria, segundo
Harvey (1996), o ano simbólico da virada pós-fordista. Importante afirmar que, embora
os rebatimentos do fordismo e mesmo da sua crise não tenham sido os mesmos no
mundo inteiro, o quadro traçado a seguir traz um referencial dos principais movimentos
de mudanças socioeconômicas e políticas que se desenhavam na segunda metade do
século XX.
Para esse autor, as insatisfações com os rumos do capitalismo sob a lógica
fordista partiram, primariamente, dos grupos sociais e trabalhadores menos ou não
atingidos pelos benefícios do sistema. A rigidez do mercado de trabalho, as tensões
provenientes das parcelas excluídas da população e a presença crescente das forças
ligadas à contracultura também provocaram uma elevação do tom crítico à não equidade
do modelo vigente.
A versão keynesiana do Estado capitalista (o Estado do Bem-estar Social) era,
por sua vez, a ponta-de-lança no combate às ditas insatisfações através da adoção de
medidas remediadoras das desigualdades e da exclusão das minorias. A incapacidade de
atender à massa de pobres gerou fracassos que incidiram em críticas àquela ação estatal.
35
Tais críticas acabaram por recair sobre o próprio modelo de consumo de massa
padronizado.
No mundo subdesenvolvido, aliados às condições acima descritas, outros
problemas deram contornos ainda mais dramáticos ao processo em curso, como a
opressão estatal das ditaduras de caráter anticomunista e o não cumprimento das
promessas de desenvolvimento, gerado pelos surtos inflacionários.
Desta forma, se as condições para a virada pós-fordista já se faziam sentir no
decênio de 1960, graças aos motivos acima descritos, foi apenas no início da década
seguinte que houve desencadeamento do processo que levou à mudança, principalmente
através da busca por alternativas à rigidez da economia e da sociedade gestadas pelo
regime de acumulação fordista.
Assim, é lícito afirmar que a crise internacional de 1973 e o chamado Choque do
Petróleo foram a gota d’água para a formação do quadro de mudança que minou o
sistema de acumulação fordista. Segundo Harvey (opus cit., p. 140), como consequência
daquele processo de transformações:
(...) as décadas de 70 e 80 foram um conturbado período de
reestruturação econômica e de reajustamento social e político (...). No
espaço social criado por todas essas oscilações e incertezas, uma série
de novas experiências nos domínios da organização industrial e da
vida social e política começou a tomar forma. Essas experiências
podem representar os primeiros ímpetos da passagem para um regime
de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de
regulamentação política e social bem distinta.
No bojo de tais mudanças, as mais significativas do ponto de vista da política
econômica são a flexibilização e precarização das relações de trabalho, com acréscimo
das subcontratações, via cooperativas e trabalhos autônomos, e dos níveis de
desemprego, o aparecimento de novos setores de produção, principalmente daqueles
ancorados na tríade ciência, tecnologia e informação, fazendo surgir redes produtivas
integradas em escala, por vezes, internacional/mundial e a financeirização da economia,
subordinando o setor produtivo ao mercado de ações. Por outra parte, as características
organizacionais da produção se metamorfoseiam para modelos melhor adaptados às
novas necessidades dos consumidores por soluções específicas, permitindo a ascensão
de pequenas e médias empresas no mercado.
Diante de tal quadro, restou aos agentes políticos, sob os auspícios dos seus
congêneres ligados à economia, criar um aparato ideológico de Estado que permitisse
maior alcance às ações de ajuste necessárias ao bom funcionamento do modelo
36
nascente. Assim, estavam postas as condições para o avanço do neoliberalismo, que
adquiriu status de sustentáculo político-econômico desta “nova era” do capitalismo,
uma resposta estratégica às inadequações de um Estado keynesiano e de um mercado
rígido frente ao cenário de desregulamentação que se impunha.
Por outro lado, a exemplo do que ocorre com a política e a economia, a
sociedade é igualmente transformada pelo modelo de acumulação flexível. Tal mudança
chega mesmo a definir um outro estágio de modernidade (ou mesmo uma tentativa de
superá-la), que surge como uma reação àquela entronizada pela universalização fordista.
Assim, adotar um modo de vida adequado ao tempo da rejeição às receitas e verdades
pretensamente totalizantes e da celebração da individualidade é viver a dita pós-
modernidade.
Em sua obra Globalização, Bauman (1999, pp. 105-106) apresenta uma
desconcertante caracterização destes tempos. Ao descrever o efêmero, o fugidio,
transitório e fragmentário ambiente pós-moderno, o autor afirma:
Afinal, a maioria dos empregos é temporária, as ações podem tanto
cair como subir, as habilidades continuam a ser desvalorizadas e
superadas por novas e mais aperfeiçoadas habilidades, os bens de que
hoje nos orgulhamos e gostamos tornam-se logo obsoletos, bairros
sofisticados tornam-se decadentes e vulgares, sociedades se formam
apenas até segunda ordem, os valores que merecem ser seguidos e as
finalidades em que vale a pena investir estão sempre mudando...
Assim, na tentativa de revogar os paradigmas políticos, econômicos e culturais
que a todos norteavam na vigência da modalidade fordista-keynesiana, neste novo
período, a sociedade sofre consideráveis mutações, notadamente naquilo que lhe era
mais característico: a noção de coletividade como um valor absoluto, um referencial de
existência. Ao contrário do que se pregava antes, ser membro da sociedade
contemporânea significa emancipar-se do anonimato e buscar a sua ascensão como
indivíduo partícipe de um “nicho” que, em coexistência com outros tantos, formam um
todo não homogêneo.
Desta forma, se, como afirmado por Sábato (1993) no seu diário da crise de
valores do século XX, a Renascença foi um movimento individualista que rumou em
direção à massificação – repercutindo tal característica até recentemente, na
conformação da versão fordista da modernidade –, a sociedade pós-moderna busca
trilhar o caminho inverso ao se transfigurar para aquilo que Norberto Elias denominou
de “sociedade de indivíduos” (BAUMAN, 2001, p. 39).
37
A afirmação da individualidade é, pois, um dos traços mais marcantes da
sociedade pós-moderna e um dos meios pelos quais tal atributo se realiza é através do
consumo, amplificado e, ao mesmo tempo, diversificado em escalas nunca antes
atingidas.
Estes dois elementos definidores da sociedade pós-moderna – a individualidade
e o consumo – são, aliás, as pedras angulares do exame que segue nas próximas linhas,
já que, na compreensão do turismo sob a lógica de um espectro fordista de produção e
consumo do espaço, tais características possuem relevância considerável.
Segundo Berardi (2005, p. 34), que utiliza o termo “individualismo de massa”
para se referir à condição atual da sociedade ocidental, no âmbito do consumo, esta
individualização “produz uma proliferação de novas necessidades, de novos produtos
para comercializar e de uma progressiva mercantilização de qualquer aspecto da relação
social, afetiva, cultural”.
Pensar tal processo na perspectiva do turismo contemporâneo exige, pois,
compreender a sua evolução como uma atividade circunscrita à realidade imposta pelo
espectro fordista de produção e consumo, como se verá a seguir.
1.2 Em busca de uma compreensão do turismo à luz do espectro fordista de
produção e consumo do espaço
Como já fora assinalado alhures, o império do modo de produção fordista em
grande parte do século XX e a sua transformação paulatina (mas ainda inconclusa) em
um regime de acumulação flexível na virada do milênio tiveram repercussões que
podem ser percebidas não somente no âmbito da economia e da política, mas também, e
de maneira muito intensa, no modus vivendi da sociedade ocidental.
As substanciais mudanças promovidas no ideário coletivo do Ocidente em
ambos os estágios de desenvolvimento do capitalismo forjaram modelos de
modernidade que incidiram, ao longo do tempo, na constituição de uma sociedade
baseada no interesse extremo pelo consumo. Por outro lado, como tudo que diz respeito
à fase atual de modernização, a experiência do consumo, que a todos unifica, possui
nesta mesma unidade uma condição paradoxal de desunião (BERMAN, 2007), já que se
caracteriza por ser fragmentária, prenhe de especificidades, posto que esteja voltada ao
atendimento dos interesses de uma já citada “sociedade de indivíduos”.
As atividades que lidam com a oferta de serviços foram as que sofreram maiores
mudanças, visando atender às demandas cada vez mais específicas. Dentre estas, o
38
turismo se posiciona na dianteira de tal processo, revelando grande dinamismo e
capacidade de moldar-se aos desígnios do capital ao render-se à nova estética pós-
moderna “que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a
mercadificação de formas culturais” (HARVEY, 1996, p. 148).
Há que se considerar, porém, que, mesmo diante de um quadro que expressa as
novas tendências da modernidade criada pelo ímpeto pós-fordista de acumulação, não é
possível afirmar a supremacia plena deste novo regime, nem tampouco da estética daí
advinda, a partir de uma ruptura com a realidade construída pelo fordismo, seja na
prática do turismo ou em qualquer outra.
Deste modo, é necessário admitir que, se por um lado, é lícito afirmar que os
desígnios fordistas já não norteiam os caminhos da economia, da política e da
sociedade, é verdadeira também a afirmação de que tal mudança de paradigma não se
deu de forma revolucionária, ou por ruptura, mas como um processo que, aliás, ainda
está por completar.
Ao analisar este aspecto da passagem da modernidade para a pós-modernidade,
Díaz (2008, p. 18) apresenta, aliás, um arguto comentário, valendo-se, para tanto, de
uma linguagem metafórica:
Cuenta la leyenda que Ruiz Díaz Vivar murió en su tienda de
campaña, durante el transcurso de una lucha incierta. Sus hombres lo
cubrieron con los atributos de caballero. El corcel lo sostuvo erguido
en su armadura. Entró así al fragor del combate. Los moros, al ver
avanzar la gallarda figura del Campeador, huían y gritaban: «¡Mío
Cid! ¡Mío Cid!». He aquí una posible metáfora del fin de la
modernidad. La modernidad estaría en el campo de batalla. No
sabemos si viva o muerta. Aún pelea.
Assim, embora existam correntes do pensamento nas Ciências Sociais que
declarem o fim líquido e certo da modernidade, há que se levar em conta o caráter
processual da passagem para o pós-fordismo, o que se dá, de fato, por meio de uma
transição geradora de dualidade e ambiguidades.
1.3 Os desafios para a construção da(s) Geografia(s) do Turismo na
contemporaneidade
Desde visões assentadas nos diferentes campos do conhecimento (URRY, 2001;
AUGÉ 2007 e 2008), há significativos debates sobre o papel do espectro fordista na
configuração do turismo contemporâneo, seja através da análise da criação de imagens,
39
da “construção” de um novo turista ou ainda das mudanças que a prática tem provocado
nas sociedades e economias receptoras.
Uma eloquente contribuição da Geografia a esta temática é fornecida por Torres
(2002), em intenso diálogo com os postulados de David Harvey. Ao examinar tal
processo a partir da análise empírica de Cancún e do estado mexicano de Quintana Roo,
a autora sugere que o turismo surge como uma prática prenhe de exemplos de
massificação e homogeneização do espaço, da economia de escala e da inflexibilidade e
estandartização dos pacotes que criam enclaves turísticos. Essas são características da
rigidez que é própria do fordismo clássico, mas também da segmentação, especialização
e formas de consumo sob encomenda, para grupos específicos, delineando uma
passagem para um modo pós-fordista de produção e consumo dos lugares turísticos.
Segundo a autora, as seguintes características confirmam a existência de um
modo de produção fordista do turismo: (a) o consumo coletivo, verificado a partir da
concentração de visitantes em uma localidade; (b) consumidores indiferenciados,
visíveis através da presença maciça de turistas com um determinado perfil; (c) turismo
de massa, explicitado, principalmente, na modalidade sol e praia como fator de escolha
do destino; (d) estandartização, expressa na proliferação de pacotes e na incidência de
empreendimentos de porte internacional nas localidades turísticas.
Por outro lado, a flexibilização e diversificação do mercado turístico tem
permitido o surgimento de um espaço heterogêneo, marcado pela emergência de novos
usos, como turismo de natureza, visitas aos sítios arqueológicos e a paisagens e grupos
sob influência de culturas ancestrais, entre outras novas modalidades da prática turística,
o que denota o caráter pós-fordista do turismo.
Isto inclusive está posto, sem maiores rodeios, nas propostas contidas nos
estudos prospectivos do mercado turístico realizados pelo Governo Mexicano
(ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, 2006), o Estudio Gran Visión, segundo o qual é
necessário reinventar o modelo Sol e Praia, articulando-o com outras modalidades,
como o turismo de base cultural, de natureza, de aventura, congressos, feiras e
exposições.
Contudo, é necessário salientar que, longe de haver um processo de substituição
do fordismo por uma modalidade pós-fordista do turismo, o que passa a ocorrer, dado o
caráter de transição inerente ao processo, é a coexistência de toda a gama de elementos
que caracterizam o espectro fordista.
40
Assim, como observa R. Torres, mesmo em um ambiente mais flexível, a oferta
de produtos de massa não deixa de existir, levando-a a conceber a ocorrência de um
processo de “customização de massa” que evidencia características neofordistas do
fenômeno, enquadrado, por seu turno, em uma condição de coexistência com os demais
elementos que caracterizam todo o espectro fordista de produção e consumo do espaço.
O caráter neofordista do turismo aparece de modo muito claro na análise que
Augé (2007, pp. 63-64) faz do turista contemporâneo:
El turista, en las formas más recientes y lujosas de turismo, exige
tanto su comodidad física como su tranquilidad psicológica, aun
cuando tiene el espiritú de un viajero al que también le gustaría
definirse como aventurero. Es un consumidor de exotismo, de arena,
de mar, de sol y de paisajes (por no hablar de otros eventuales tipos
de consumo) pero, aunque se encuentre en otro lugar, siempre
seguirá estando en su país, ya que todo le conduce a ello: sus
compañeros, los comentarios que intercambian, la comodidad que se
ofrece, la naturaleza estereotipada de las cadenas hoteleras, las
películas que graba para ver más tarde, a la vuelta, y la brevedad de
su estancia o de su travesia de barco.
Fica evidente, na afirmação do antropólogo francês, toda a gama de
possibilidades com a qual o “turista/viajante/aventureiro” conta, podendo contemplar (e
consumir) de paisagens exóticas a amenidades oferecidas por cadeias hoteleiras que
reproduzem um estilo de vida que lhe é familiar.
Neste sentido, a partir da necessidade do trade turístico1 em promover ajustes
espaciais que permitam a continuidade dos processos de reprodução do capital, são
oferecidas práticas que vão desde as grandes excursões com produção de imagens e
sensações em série, às visitações no melhor estilo pay per view, pagando um preço
diferenciado pela exclusividade dos serviços de um guia ou pela emoção do pôr do sol
visto de um ângulo que só o dinheiro pode proporcionar.
Estas diferentes maneiras de uso dos territórios turísticos são, portanto, um
espectro concebido a partir da coexistência de várias formas de produção e consumo do
espaço dominado pelo turismo, segundo lógicas (pós/neo) fordistas.
A princípio, esses ajustes espaciais, ainda que em um ambiente de coexistência
com a dinâmica fordista de produção e consumo, parecem valorizar, via características
pós e/ou neofordistas, as especificidades do lugar dominado pelo turismo, já que haveria
uma tendência em evidenciar a diferença e a identidade como elementos de atração de
1 Segundo Anjos Junior (2007, p. 2), o termo trade turístico possui uma definição oficial, criada pela
Embratur, pela qual se afirma que tal entidade diz respeito à formação de um conjunto de “organizações
governamentais e privadas atuantes no setor de turismo”.
41
visitantes. Ocorre, porém, que, como afirmado por Brunel (2009, pp. 7 e 9), a
“singularização dos lugares” se dá a partir da criação dos lugares emblemáticos “onde
tudo é concebido para dar a ilusão de autenticidade, recriada em função dos estereótipos
mundiais”.
Assim, este fenômeno, denominado pelo autor de “disneylandização”, provoca a
bizarra situação na qual indivíduos, grupos sociais e mesmo os lugares precisam, cada
um deles, “tornar-se o que já se é” (BAUMAN, 2001, p. 41), recorrendo a certas
metonímias da paisagem criadas pelo turismo (BRANDÃO, 2009a), como a do baiano
em vestes de capoeirista ou a Olinda “museificada”, para só então parecerem legítimos.
Por outro lado, embora seja possível tratar o turismo contemporâneo como uma
prática globalizada, em muito causada pelos fatores acima examinados, é evidente que,
como as intenções totalizantes do capitalismo tem rebatimentos distintos nos diferentes
lugares onde se impõem, em razão das “especificidades socioterritoriais de cada espaço
geográfico” (CASTILHO, 2008, p. 20), há que se considerar, em igual medida, distintas
repercussões espaciais do turismo balizado a partir do espectro fordista de produção e
consumo, denotando a dialética presente em tal processo de dominação do espaço.
Como fica afirmado na primeira linha deste escrito, refletir sobre o turismo na
contemporaneidade é tarefa extremamente complexa e, para a Geografia, converte-se
em um desafio, já que o desenvolvimento desta prática acelerou, em muitos lugares, as
formas de produção do espaço, inserindo elementos absolutamente novos, com grande
capacidade de gerar novas dinâmicas socioterritoriais.
O período atual da História tem provocado o surgimento de novas geografias
nos ecúmenos, onde as realizações dos lugares são crescentemente influenciadas pelas
dinâmicas do mundo. Atividades econômicas globalizadas são introduzidas nos espaços
onde o cotidiano se torna possível, produzindo novas territorializações a partir de uma
relação dialética entre uma ordem global e uma ordem local (SANTOS, 2002a).
Como já apontado por Harvey (2006), o turismo se converteu em uma destas
práticas que possuem grande capacidade de interferência na produção e consumo do
espaço e, desta forma, ganha importância em meio ao esforço de análise das geografias
que se desenham na contemporaneidade.
Nas palavras de Brandão e Castilho (2008, p. 96):
O espaço transformado em mercadoria pelo valor diferencial que a
sociedade e os agentes econômicos – incluindo-se aí os turistas e todo
o staff que lhe dá sustentação – atribuem a cada uma de suas parcelas,
além das transformações decorrentes do uso do território turístico,
42
com a incorporação de sistemas de objetos e ações altamente
tecnicizados que subordinam os estilos de vida e as demais atividades
desenvolvidas em localidades receptoras aos ditames da atividade são
reflexões fundamentais para a compreensão das dinâmicas espaciais
introduzidas pelo turismo.
Dadas as condições atuais de intensificação e diversificação dos usos dos
territórios do turismo, há que se considerar o fato fundamental de que, em um ambiente
tão complexo, marcado pela existência de técnicas alinhadas tanto ao modelo fordista
quanto ao regime flexível de produção e consumo do espaço, diversas são as
perspectivas de análise geográfica, constatação já feita, aliás, por Costa, Ribeiro e
Tavares (2004).
Para os referidos autores, são três as linhas teóricas de maior relevância na
análise geográfica do turismo contemporâneo, podendo, inclusive, serem trabalhadas em
convergência: a primeira propõe o exame da produção do espaço dito turístico,
revelando o viés econômico e político da prática; a segunda, ligada aos estudos do
espaço vivido daqueles que compõem as populações receptoras; e, por fim, a terceira,
cujos estudos estão relacionados à interpretações das representações geográficas dos
lugares turísticos.
Há que ser levado em conta que, ainda que cada uma das perspectivas tenha os
seus métodos próprios de análise, em todos os casos, o que fica patente é a necessidade
de atribuir acento ao exame do conteúdo socioterritorial dos lugares dominados pelo
turismo, evidenciando assim os aspectos referentes à “construção social da
territorialidade” (SACK, 1986, p. 30) ou, como exigem as dinâmicas do tempo presente,
das territorialidades, no plural.
1.3.1 O espectro (pós/neo)fordista em balneários turísticos do Nordeste brasileiro: uma
caracterização de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte
Lugares privilegiados – em suas respectivas unidades federativas (Figura 01) –
por um processo de reestruturação territorial produtiva do litoral nordestino baseado no
turismo, os balneários de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte passaram, a partir de
meados da década de 1990, por significativas transformações, que culminaram no atual
estágio de uso do território, paritário, ao menos como concepção, com aquilo que R.
Torres apresentou como características da dinâmica (neo/pós) fordista da cidade
mexicana de Cancún.
43
Figura 01. Localização dos balneários em seus respectivos estados.
44
Nos dias atuais, essas localidades estão entre os principais destinos da
modalidade turística de Sol e Praia do Brasil (Figura 02), sendo consideradas pelos
agentes que dão sustentação à prática como verdadeiras “galinhas dos ovos de ouro”, o
que incide, em última instância, em um processo de contínua transformação do lugar, na
busca de manter ou ampliar a sua atratividade.
Figura 02. Os balneários e seu principal atrativo, a praia: vista parcial de (a) Pipa, (b) Porto de Galinhas e (c) Praia do Forte.
Fonte: Acervo do autor (2009; 2012).
O povoado de Pipa (ou Praia da Pipa, como também é denominado) está
localizado no município norte-rio-grandense de Tibau do Sul (Figura 03), que faz parte
da Mesorregião Leste Potiguar, como do Polo Costa das Dunas. Distante cerca de
oitenta quilômetros de Natal, a capital do estado, pela rodovia BR-101, e oito
quilômetros da sede municipal, por rodovia local, denominada Corredor Pipa/Tibau
(XAVIER, 2008).
Ao caracterizar o sítio urbano de Pipa, Oliveira (1864, p. 81) afirma: “A ponta
da Pipa é um alto e grande outeiro de forma oblonga, coberto de árvores que ao longe
figura uma pipa deitada e em grande distancia uma bola; até á ponta do Moleque é a
costa muito alterosa, e logo pelo sul d’ella avista-se uma barreira vermelha”.
(b) (a)
(c)
45
Figura 03. Município de Tibau do Sul (Rio Grande do Norte).
46
Ainda sobre o assentamento original da localidade, há a seguinte descrição
apresentada em documento elaborado por Pipa Incorporações e Construções LTDA
(2009, p. 5.134): “(...) situa-se em frente a uma pequena enseada, onde há um porto de
jangadas, na base de uma falésia, sobre a qual está o seu núcleo urbano”.
Localizada na porção oriental do litoral potiguar, ao sul da sede municipal de
Tibau do Sul, a área urbana de Pipa possui algo em torno de 3,7 km2 de extensão, onde
vivem, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), 2.111
habitantes fixos (2010), resultando em uma densidade demográfica de 570,5 hab./km2.
Quanto à vila de Porto de Galinhas, esta é parte do distrito de Nossa Senhora do
Ó, localizado no município de Ipojuca (Figura 04), Região Metropolitana de Recife, em
Pernambuco e, de forma concomitante, no Polo Costa dos Arrecifes. A distância da
localidade em relação à Recife, a capital estadual, pelas rodovias BR-101 e PE-060, é de
cerca de sessenta e oito quilômetros, passando pela sede municipal, da qual dista onze
quilômetros, pela rodovia PE-038 (PERNAMBUCO, 1998).
Atualmente, Porto de Galinhas, cujo assentamento está localizado na porção
litorânea do município, a sudeste da sede, possui uma população de 6.366 habitantes
permanentes (número de 2010, fornecido pelo IBGE), que ocupam aproximadamente
4,5 km2 de área urbana, a maior em extensão dentre as três que compõem este estudo.
Tais quantitativos resultam em uma densidade demográfica de 1.414,7 hab./km2.
No que se refere à Praia do Forte, a vila está localizada no trecho litorâneo do
distrito de Açú da Torre, que pertence ao município de Mata de São João (Figura 05), na
Bahia, recentemente integrado à RMS (Região Metropolitana de Salvador) e compondo,
ainda, o Polo Salvador e Entorno. A localidade dista setenta e nove quilômetros da
capital do estado, cujo percurso é feito através da BA-099, também conhecida como
Estrada do Coco, e seguindo, desde a referida rodovia, por uma estrada local por cerca
de quatro quilômetros.
A população que reside em Praia do Forte, cuja nucleação está localizada a oeste
da sede municipal de Mata de São João, é contada em 1.403 habitantes fixos (segundo
IBGE, a partir de dados de 2010), todos vivendo em uma área urbana de cerca de 3,0
km2, o que significa uma densidade demográfica de 467,7 hab./km
2.
47
Figura 04. Município de Ipojuca (Pernambuco).
48
Figura 05. Município de Mata de São João (Bahia).
49
1.3.2 Evidências da influência do espectro fordista nos balneários de Pipa, Porto de
Galinhas e Praia do Forte
Graças às vertiginosas transformações as quais foram submetidas recentemente,
as três localidades aqui evidenciadas possuem características que as aproximam da
concepção (neo/pós)fordista de produção e consumo do espaço pelo turismo.
Por um lado, tais balneários estão posicionados entre os destinos mais
importantes para visitação do Nordeste brasileiro, em muito, por conta da adoção de um
modelo de urbanização turística similar entre os três, sob as regras de um mesmo
projeto modernizador – o Prodetur/NE –, que denota o caráter fordista de algumas das
práticas que ali se desenvolvem, notadamente no que diz respeito à modalidade de sol e
praia, cuja oferta de atrativos é praticamente indiferenciada em sua concepção e ações.
Disto resulta o processo de homogeneização da paisagem praieira nas três
localidades aqui abordadas, com intervenções urbanísticas similares (Figura 06),
evocando, todas elas, um “paraíso tropical”, mas em conformidade com o período
técnico-científico-informacional. Nos dizeres de Brandão (2009a, p. 182), tais
localidades
(...) vêm sendo metamorfoseadas, adquirindo feições de balneários
altamente tecnicizados, articulados com os interesses hegemônicos do
capital internacional, onde as antigas moradias dos habitantes locais
são paulatinamente substituídas por lojas de grandes marcas,
restaurantes de alta gastronomia, casas de espetáculos, entre outros
objetos técnicos que dão sustentação a um modelo enquadrado no
espectro fordista de produção e consumo (...).
Além disso, por serem alvos de uma nova forma de especulação imobiliária que
vende a ideia de incorporação da natureza no ato de habitar e que, ao mesmo tempo,
contribui para a manifestação de um modelo de urbanização difusa como um “conceito”
de moradia sustentável, as localidades de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte
passam por um processo de acréscimo, no território, de empreendimentos voltados tanto
para a segunda residência quanto para a fixação de pessoas com interesse em reproduzir
tal estilo de vida.
50
Figura 06. Homogeneização espacial promovida pela urbanização turística em balneários litorâneos do Nordeste brasileiro: vista parcial de trechos viários de (a) Pipa, (b) Porto de Galinhas e (c) Praia do Forte.
Fonte: Acervo do autor (2009; 2012).
Assim, tanto na concepção estética das construções, que busca aliar
características de rusticidade e modernidade arquitetônicas, quanto na forma de
dominação dos espaços pelos proprietários dos imóveis, marcada, quase que
invariavelmente, pelo império do encastelamento e autossegregação típicos dos
condomínios fechados, o que se vê é um processo de reprodução do modo de habitar,
seja na concepção ou mesmo no tipo das residências comercializadas.
Há nisto um explícito processo de massificação e homogeneização dos espaços
pela inflexibilidade e estandartização dos “produtos” turísticos e turístico-imobiliários,
estes concebidos em conformidade com a rigidez fordista que substantiva um modelo de
consumo coletivo, com a consequente atração de consumidores indiferenciados, que,
por aceitarem a estandartização daquilo que lhes e oferecido, acabam por ampliar as
condições de reprodução do turismo de massa.
Por outra parte, cada administração municipal, em uníssono com as secretarias
estaduais de turismo e os agentes econômicos locais, buscou promover atrativos que
“identificam” o lugar, mas, principalmente, que servem como estratégia de atração de
(a) (b) (b)
(c)
51
turistas com interesses mais específicos. Há, em outras palavras, uma tentativa de
estabelecer uma vantagem competitiva através da singularidade de dados atrativos.
No caso de Pipa, os atrativos que conferem especificidade ao destino turístico
são a intensa vida noturna e gastronomia locais, com grande valorização do seu viés
internacional(izado), a prática de esportes de aventura, notadamente o parapente,
kitesurf e windsurf, além da observação de cetáceos na Baía dos Golfinhos.
Ademais, o trade local enfatiza – à exaustão – a pretensa condição de Pipa como
“a mais internacional das praias do Nordeste” (RIO GRANDE DO NORTE, s/d, p. 38),
fazendo referência, principalmente, ao intenso processo de fixação de estrangeiros
anônimos em um passado recente ou pela passagem de celebridades de âmbito
internacional pelo lugar, como, por exemplo, a princesa Stephanie de Mônaco e a
modelo Gisele Bündchen (Idem). Isto se reflete também na paisagem urbana (Figura
07), com agregação de objetos que remetem a esta busca pela construção simbólica de
um destino a ser visto ao mesmo tempo como rústico e requintado.
Figura 07. Praia da Pipa: (a) bandeiras nacionais hasteadas na fachada de um estabelecimento comercial; (b) fachada de estabelecimento com inspiração oriental.
Fonte: Acervo do autor (2012).
Sobre esta pretensa internacionalização do destino turístico, há farta
publicização em escritos acadêmicos, jornalísticos ou publicitários, como se pode ver
nos exemplos a seguir.
Em estudo diagnóstico sobre o turismo local, A. Gomes (1998, p. 1) afirma que
“(...) o distrito de Pipa com suas praias é admirado por estrangeiros e ganhou fama
internacional”, enquanto Rezende (1998, p. 2), que se intitula “meio nativo”, observa
que “Pipa nunca deixará de ser um ‘point’ onde gringos beijam bocas nativas” e, em
folheto publicitário, denota-se que a referida localidade é “A mais badalada e conhecida
(a) (b)
52
praia do Rio Grande do Norte (...). Cosmopolita e internacional, aqui se fala todas as
línguas do mundo e todos os sotaques do Brasil” (TIBAU DO SUL, 2008, p. 16).
No balneário de Porto de Galinhas, os atrativos que, pela singularidade da oferta,
mais se aproximam da concepção pós-fordista de produção e consumo do espaço
turístico são os passeios de jangada para as piscinas naturais localizadas nos arrecifes,
visitações nos ambientes estuarinos, passeios de buggy com destino às praias de Cupe,
Muro Alto e Maracaípe (Figura 08).
Figura 08. Porto de Galinhas: (a) jangadas a postos para realizar passeios turísticos; (b) vista parcial da praia de Muro Alto e, ao fundo, a vila.
Fonte: Acervo do autor (2010).
Ao citarem os principais atrativos locais, Mendonça, Raposo e Mello (2004, p.
203) confirmam o que fora aventado anteriormente.
Não há dúvida que Porto de Galinhas é um dos principais destinos
turísticos para aqueles que buscam uma combinação de sol e mar.
Entretanto, Porto de Galinhas tornou-se o que é porque, além das
atrações existentes em qualquer localidade litorânea, esbanja atrativos
singulares – piscinas naturais e reservas de manguezais, ambientes de
relevante importância para o ecossistema marinho, já que juntos
formam um cenário onde a natureza é quem dá show.
Além dos já citados, outro importante atrativo local é o conjunto de praias
propícias à prática do surf, sendo a principal delas a de Maracaípe. Neste caso, apesar da
atividade esportiva ser também praticada nas localidades de Pipa e Praia do Forte, em
Porto de Galinhas, há uma sensível diferença em relação aos balneários anteriormente
citados, já que na vila pernambucana são disputados torneios nacionais e internacionais,
atraindo um público específico, formado por praticantes e atletas profissionais do
esporte, além daqueles que formam o staff dos eventos.
(a) (b)
53
Em Praia do Forte, atrativos localizados no próprio povoado ou nas suas
cercanias denotam alguma especificidade na prática turística que ali se desenvolve. O
viés ecológico e o passado colonial compõem importantes elementos de diferenciação
da localidade em relação às demais aqui estudadas.
Entre os atrativos ligados ao Turismo de Natureza, vale destacar o Centro
Nacional de Conservação e Manejo de Tartaruga Marinha (Figura 09), pertencente ao
Projeto Tamar (Programa Brasileiro de Conservação das Tartarugas Marinhas), a
“Baleiada” (observação de baleias), capitaneada pelo Instituto Baleia Jubarte, a RPPN
(Reserva Particular do Patrimônio Natural) de Sapiranga, considerada como um centro
de excelência para práticas turísticas em ambiente preservado na Bahia, além de
passeios de canoa pela Lagoa Timeantube, organizados por empresas locais de receptivo
turístico.
Outro importante atrativo local é o chamado Parque Histórico Garcia D’Ávila.
Composto pelas ruínas da Casa da Torre (Figura 09), edificação erguida entre os séculos
XVI e XVII por membros de diferentes gerações da família que lhe confere o nome e
consagrada pelo trade turístico como a única obra arquitetônica medieval das Américas,
além de locais para receptivo, exposição de acervo arqueológico e restaurante. A
despeito da tentativa de criação de um ícone através da divulgação de uma imprecisão
histórica (BRANDÃO, 2009b), o Parque é frequentado por turistas e visitantes
interessados por temas relacionados ao passado colonial brasileiro.
Figura 09. Praia do Forte: (a) vista panorâmica da Casa da Torre, mais conhecida como Castelo Garcia D’Ávila; (b) portal de acesso ao Projeto Tamar.
Fonte: Acervo do autor (2012).
Assim, é possível perceber que o caráter pós-fordista do turismo, como está
posto em Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte, fica evidente na flexibilização e
(a) (b)
54
diversificação crescentes dos “produtos” turísticos oferecidos, tornando cada vez mais
heterogêneos os usos do território pelos agentes econômicos e, como consequência
direta, pelos turistas. O que passa a ocorrer é um processo de “reinvenção” do turismo
de Sol e Praia, que, de modo paradoxal, torna-se menos dependente desses atributos
físicos que deram sentido à prática turística em zonas litorâneas.
Há ainda um terceiro viés de análise do espectro fordista no turismo que se
desenvolve nas localidades em estudo. Entre os atrativos que se enquadram nos moldes
neofordistas de produção e consumo do espaço pelo turismo, é possível mencionar os
eventos periódicos que ocorrem nos balneários em exame e que visam atrair visitantes e
turistas com interesses específicos, aficionados pelas temáticas abordadas nas referidas
atividades, ainda que estas sejam praticamente as mesmas nos diferentes destinos
turísticos.
Assim, enquanto que na localidade norte-rio-grandense existem o Festival
Gastronômico de Pipa, o Festival Literário da Praia da Pipa e o Fest Bossa e Jazz Pipa;
no balneário pernambucano ocorrem o Porto Gastrô, que vem a ser o Festival
Gastronômico Sabores de Porto de Galinhas, o Fliporto, antigo Festival Literário de
Porto de Galinhas, atualmente denominado Festa Literária Internacional de
Pernambuco, e o Jazzporto ou Festival de Jazz e Blues de Porto de Galinhas; ao passo
que, na vila baiana, acontecem o Tempero no Farol, designativo do Festival de
Gastronomia de Praia do Forte, o Encontro Literário da Praia do Forte (versão única em
2006) e, por fim, o Festival Phoenix Jazz de Praia do Forte.
Pela especificidade dos temas e periodicidade (anual) de ocorrência, tais
eventos, aparentemente, são dedicados a pequenos grupos cujos interesses se referem
apenas àquilo que se aborda como temática central. Mas, ao serem reproduzidos
praticamente nos mesmos moldes nos três destinos turísticos aqui estudados, fica
evidente se tratarem, na verdade, de atividades enquadradas naquilo que Torres (2002)
denominara de customização de massas.
Todo esse investimento impetrado pelos agentes econômicos – com anuência e,
por vezes, participação direta do Estado – visando dar sentido ao espaço segundo
parâmetros de produção e consumo nos quais o turismo se configura como vetor dessas
transformações implica na ocorrência de processos de territorialização que tem as suas
raízes na tentativa de dominação baseada na economia e na política.
55
Assim, os territórios são construídos de forma absolutamente racional, possuindo
suas bases constituídas a partir de uma ordem global, homogeneizante. Sobre isto, vale
salientar as palavras de Santos e Silveira (2001, p. 306):
Pode-se falar em racionalidade do espaço? Essa expressão cabe a
certas frações do território cujas condições materiais e políticas
permitem um uso considerado produtivo pelos atores econômicos,
sociais, culturais e políticos dotados de racionalidade. Na realidade, o
que estamos chamando de racionalidade do espaço vem, em última
instância, das ações que sobre ele se realizam; mas tal possibilidade
somente se perfaz quando o próprio território oferece as condições
necessárias.
Pode-se, de modo geral, dizer que nas condições históricas atuais o
meio técnico-científico-informacional, seja como área contínua,
mancha ou ponto, constitui esse espaço da racionalidade e da
globalização. A serviço de grandes empresas privadas, o território
nacional conhece, em certos lugares, uma adequação técnica e política
que permite a tais empresas uma produtividade e lucro maiores.
Ocorre, porém, que esses arranjos territoriais, construídos a partir de lógicas
exógenas, não firmam sua existência em anecúmenos desprovidos de pessoas e
realizações. Ao contrário, estão assentados em lugares onde outras formas de
territorialização resultantes “de uma interdependência entre ações e atores que emana da
sua existência no lugar” (Santos e Silveira, 2001, p. 306) e que “não respondem de
forma neutra a essa ação privatista, já que tal ação tem sobre eles reflexos indiretos”
(Idem, p. 293) e, por que não dizer, também diretos.
Há que se reconhecer, pois, a existência, em lugares como Pipa, Porto de
Galinhas e Praia do Forte, de uma pluralidade de ações que dá impulso a um processo
de complexificação dos territórios do turismo. Ainda que, à primeira vista, pareça se
tratar de uma territorialização unívoca, capitaneada pelos agentes hegemônicos que
atuam nos balneários turísticos, é necessário perceber a heterogeneidade – nem sempre
perceptível às claras – que se faz presente na contraterritorialização de alguns,
resistentes àquilo que lhes incomoda, e nas territorialidades permissivas de outros que
apenas buscam inserção no que está posto, mas para o que, em um primeiro momento,
não foram convidados a participar.
56
Capítulo 2
APORTES PARA A COMPREENSÃO DO TURISMO A PARTIR DA
ABORDAGEM TERRITORIAL
Embora a origem do termo território esteja ligada ao Direito Romano
(PAINTER, 2010), seu uso pela ciência moderna tenha debutado na Biologia e,
atualmente, componha a temática de vários ramos do conhecimento, é na Geografia que
a abordagem territorial tem se desenvolvido de modo mais consistente.
Cabe aqui, de passagem, fazer uma observação prévia: por abordagem territorial
entenda-se como “o conjunto de argumentos que possuem esse conceito como o fio
condutor da articulação teórica” (HEIDRICH, 2010, p. 25), considerando, de modo
concomitante, “as articulações/interações existentes entre as dimensões sociais do
território, em unidade entre si e com a natureza exterior ao homem, o processo histórico
e a multiescalaridade de dinâmicas territoriais” (SAQUET, 2007, p 13).
Da perspectiva clássica, ancorada na idealização do Estado como único detentor
da capacidade de construir o ente geográfico em tela, à atual multiplicidade de
interpretações, influenciada pelas novas concepções filosóficas e teóricas e pela própria
complexificação das relações em todas as instâncias, o debate sobre o território teve um
papel central em vários momentos da história da ciência geográfica.
Para Santos (1999, p. 7), por exemplo, a Geografia alcançara, em finais do
século XX, a sua era de ouro, posto que “a geograficidade se impõe como condição
histórica, na medida em que nada considerado essencial hoje se faz no mundo que não
seja a partir do conhecimento do que é Território”, afirmando, de forma categórica, a
atual centralidade do conceito.
O fato da Geografia ter a primazia nas discussões que se desenvolvem em torno
do conceito de território não aponta, porém, para o emprego de uma acepção única e
livre de contradições, seja na produção intelectual da própria ciência, na sua apropriação
por outros campos do conhecimento ou ainda, em outro âmbito, no seu uso pelo cidadão
comum. Território é, deste modo, uma daquelas palavras que carrega em si um caráter
polissêmico (ANDRADE, 2010).
Por ser um termo apropriado pelo senso comum e, na mesma medida, um
conceito largamente utilizado nas Ciências Sociais, o território – como categoria
espacial – carece, por um lado, de constante revisão e atualização, algo que vem sendo
57
realizado por autores de diversas nacionalidades desde algumas décadas, e, por outra
parte, de uma substantivação do seu emprego no meio científico, notadamente na
formulação de procedimentos de análise o quanto mais coerentes possível.
Tal necessidade se impõe não por simples anacronismo conceitual ou dos
métodos de análise empregados. Pelo contrário, a constante revisão e atualização do
conceito de território se faz imperiosa pela própria “hipertrofia da capacidade
explicativa” pela qual vem passando e para afastar os riscos de uma posterior “fadiga” e
“declínio do interesse” (SOUZA, 2009, p. 58), bem como pela busca de novos
parâmetros de análise que permitam a mais fidedigna compreensão da dinâmica e
complexa formação de arranjos territoriais na atual fase do Capitalismo (HIERNAUX,
1996).
Dentre as diversas práticas com forte incidência nessa dinâmica e complexa
construção de territórios a que se refere o geógrafo mexicano, merece atenção o
turismo, posto que seja um elemento de integração/fragmentação e de
produção/consumo dos espaços que o acolhem, sendo, pois, causa e consequência de
uma miríade de relações que animam a vida de relações no lugar.
Aqui, o turismo – mais do que mera atividade, fenômeno, sistema, “indústria” ou
produto – é concebido como uma prática socioespacial, posto que contém em si os
elementos materiais (objetos técnicos) e relacionais (ações) que, configurados em um
sistema, dão uma feição ao espaço. Assim, como prática socioespacial que é, o turismo
dá margem para o estabelecimento de relações de caráter territorial entre os agentes co-
partícipes dos processos de alienação do espaço pela prática turística e entre esses e os
agentes que, de alguma maneira, reagem a isto.
Este capítulo se presta, portanto, à formulação de uma análise teórica da
abordagem territorial, buscando, por um lado, dar ênfase ao exame do caráter histórico e
relacional que lhe é inerente, bem como à sua multidimensionalidade. Por outra parte,
dando relevo às questões relativas à sua aplicação nos estudos sobre turismo,
notadamente naquilo que se refere à relação dialética das verticalidades e
horizontalidades que opõem, aliam e complementam a ordem global e a ordem local
naqueles espaços onde tal prática se localiza.
2.1 Revisitando aspectos fundamentais da abordagem territorial
Ao longo das últimas décadas, o estudo das práticas territoriais vem adquirindo
um impulso expressivo, principalmente por conta do redimensionamento das funções e
58
focos de análise atribuídos ao território em meio aos novos paradigmas da
globalização/fragmentação dos espaços habitados. Segundo Saquet (2007; 2011), os
anos entre as décadas de 1950 e 1980 foram, para a Filosofia, Economia, Ciências
Sociais e Geografia, o período crucial de renovação do território como campo de
análise, tornando-o, novamente, um tema central, em especial na ciência geográfica,
mesmo que, como em alguns casos, para deslegitimá-lo frente à concepção de redes
(HAESBAERT, 2004b; 2009a).
Assim, como observado por Saquet (2011, p. 15), especificamente entre os
geógrafos, houve um impulso de revisão e atualização do debate acerca da abordagem
territorial, o que, por um lado, contribuiu na identificação do território não mais como
um mero “suporte da sociedade, sem homens ou configurado biologicamente por
animais que ‘controlam’-disputam certas áreas” e, por outra parte, “Há superação
daquela ideia de território e poder centrada nas forças, ações e estratégias do Estado
(...)”.
O território, antes concebido tão somente como a “extensão do espaço
geográfico onde um Estado nacional exerce, com exclusividade, o domínio político-
administrativo” (NASCIMENTO JÚNIOR, 2011, p. 50), passa a ser considerado como
um elemento geográfico cujo significado epistemológico e ontológico está no fato de
ser, ao mesmo tempo, uma instância espacial de poder, um produto social
historicamente definido, relacional, multiescalar e multidimensional. Essas relações se
configuram por meio de dominação e influência exercidas por um determinado
indivíduo, grupo ou entidade sobre os demais. A esses se lhe denominam agentes.
Como instância espacial de poder, o território é o locus de relações sociais que
tem na tentativa ou na efetivação da dominação e/ou apropriação do espaço a sua
principal razão de ser. Aliás, é justamente desta constatação – e somente daí – que se
pode diferenciar espaço de território, posto que tal distinção resida, tão somente, no foco
analítico que se queira dar à categoria geográfica. Assim, ao privilegiar os processos de
espacialização das relações de poder, se está tratando de analisar o território. Disto se
pode inferir que,
(...) assim como o espaço é a expressão de uma dimensão da
sociedade, em sentido amplo, priorizando os processos em sua
coexistência/simultaneidade (...), o território se define mais
estritamente a partir de uma abordagem sobre o espaço que prioriza ou
que coloca em seu foco, no interior dessa dimensão espacial, n-a
“dimensão”, ou melhor, n-as problemáticas de caráter político ou que
59
envolvem a manifestação/realização das relações de poder, em suas
múltiplas esferas (HAESBAERT, 2009b, p. 105).
Neste sentido, baseados, quase que em unanimidade, nos estudos de Hannah
Arendt, Michel Foucault e – ainda que em menor grau – Pierre Bourdieu e Cornelius
Castoriadis (ao debater a questão da autonomia) sobre poder, os geógrafos comungam
da ideia de que é através da capacidade de se apropriar ou dominar um espaço,
empregando, para tal, alguma forma de poder, que um ou mais agentes constrói/em o
território.
Para Bobbio (1987, p. 78), o poder é uma “relação entre dois sujeitos, dos quais
o primeiro obtém do segundo um comportamento que, em caso contrário, não
ocorreria”. Neste sentido, ainda de acordo com o autor,
(...) o conceito de poder, entendido a partir da relação entre sujeitos,
estaria ligado, de modo seminal, ao conceito de liberdade, compondo
uma relação dialética, segundo a qual “o poder de A implica a não-
liberdade de B”, a A liberdade de A implica o não-poder de B”.
Segundo Arendt (2005), por sua vez, o poder não deve ser confundido com
violência ou coerção, posto que ambos são indicativos da sua perda e não da capacidade
de exercê-lo. Para a autora, o poder é exercido de modo consensual. Isto, por sua vez,
requer legitimidade, algo que, segundo Bobbio (1987, p. 88), diz respeito aos vários
modos “com os quais se procurou dar, a quem detém o poder, uma razão de comandar, e
a quem suporta o poder, uma razão de obedecer”. A legitimidade necessária para o
exercício do poder é adquirida, ainda segundo N. Bobbio (opus cit.) através do meio
econômico (riqueza), ideológico (saber) e/ou político (força).
Por outro lado, para Hiernaux (1983, p. 556), o poder resulta da interação de
forças que tendem a estabelecer uma relação do tipo “dominante-dominado”, cujas
manifestações de dominação emanadas a partir do exercício de poder de um significará,
em contrapartida, uma resistência do outro. Em convergência com tal assertiva, Castro
(2005, p. 95) afirma que “Relações de poder supõem assimetrias na posse de meios e
nas estratégias para o seu exercício, e o território é tanto um meio como uma condição
de possibilidade de algumas dessas estratégias”. Em seguida, a autora pondera que “(...)
onde há poder, há resistências” (p. 99).
Há que se considerar, portanto, que, no jogo de interesses que resulta na
conformação de arranjos territoriais, o poder pode se manifestar de múltiplas formas,
ou, nas palavras de Haesbaert (2004b, p. 79), “(...) o território pode ser concebido a
60
partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações
econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente
cultural”.
Assim, no âmbito da espacialização das relações acima aventadas, significa
afirmar que, ao exercer poder, um indivíduo, grupo ou entidade o faz empregando os
meios já mencionados de modo a projetar, no espaço – concomitantemente –, elementos
concretos e simbólicos que lhe garantam a primazia da liberdade de ação sobre os
demais indivíduos, grupos ou entidades, bem como o acesso, o quanto mais amplo
possível, aos recursos necessários à reprodução das condições que mantém o status quo
desejado, o que resulta, enfim, na construção do território.
Outrossim, no debate sobre o território, é fundamental compreendê-lo em sua
dimensão histórica, sem a qual a abordagem relativa ao território careceria de
profundidade e substância. As relações de poder, quando manifestadas no espaço, não
surgem do nada, desprovidas de origem e movimento. Ao contrário, são construídas ao
longo do tempo (lenta ou aceleradamente, dependendo da escala e do agente),
acolhendo a diacronia e a sincronia próprias da história da humanidade, nas diversas
escalas do acontecer.
Em outras palavras, significa afirmar que, como produto social que é, o território
é construído a partir das mais diversas interações sociais e relações econômicas, política
e culturais historicamente determinadas (SAQUET, CANDIOTTO e ALVES, 2010).
Captar as diferentes características e feições que o território assume desde a sua origem
é o que torna possível a sua compreensão plena.
Ocorre, porém, que a historicização do território não deve prescindir do exame
das diferentes formas segundo as quais os agentes envolvidos em processos de
territorialização lidam com o tempo.
Neste sentido, é crucial apreender o tempo em suas duas grandes dimensões: o
eixo das sucessões, que demarca o tempo histórico, e o eixo das coexistências, que se
faz pelo acontecer cotidiano, pela simultaneidade das ações que ocorrem no lugar
(SANTOS, 1997; 2002a). Sobre isto, Santos (1997, p. 163) afirma:
O tempo flui e por conseguinte um fenômeno vem depois de outro
fenômeno. Assim, há uma sucessão de fenômenos ao longo do tempo.
As coisas se dão em uma seqüência. Esta é uma das dimensões com
que podemos trabalhar em Geografia e que nos leva a idéia de pedaços
do tempo ou, em outras palavras, da seqüência do acontecer, uma
espécie de ordem temporal. A cada momento se estabelecem sistemas
do acontecer social que caracterizam e distinguem tempos diferentes,
61
permitindo falar de hoje e de ontem. Esse é o eixo das sucessões.
Temos também, o eixo das coexistências, da simultaneidade. Em um
lugar, em uma área, o tempo das diversas ações e dos diversos
agentes, a maneira como utilizam o tempo não é a mesma. Os
respectivos fenômenos não são apenas sucessivos, mas concomitantes,
no viver de cada hora. Para os diversos agentes sociais, as
temporalidades variam, mas se dão de modo simultâneo. No espaço,
para sermos críveis, temos de considerar a simultaneidade das
temporalidades diversas.
Longe de serem concebidos como dimensões paralelas e “incomunicáveis” da
existência humana, o eixo das sucessões e o eixo das coexistências formam um par
dialético que permite compreender a sociedade em movimento e nas suas diversas
relações. Tal compreensão ampara o estabelecimento da conectividade entre uma dada
dinâmica territorial, com as transformações e permanências que lhe são inerentes, e o
tempo necessário à sua contínua realização.
No lugar, ambas as dimensões se afirmam, posto que seja “o resultado de ações
multilaterais que se realizam em tempos desiguais sobre cada um e em todos os pontos
da superfície terrestre” (SANTOS, 2002b, p. 258). Assim, na análise da construção do
território, é preciso ter em conta que, no lugar onde as relações de poder que o fazem
existir ocorrem, há “ações do tempo presente e do passado, locais e extralocais” (opus
cit.), que tornam possível o seu surgimento naquela dada realidade.
Disto emerge a noção de temporalidade como elemento constitutivo do
território. Não o tempo absoluto, linear e imaculado, mas a temporalidade, que surge da
maneira única como cada indivíduo, grupo ou entidade faz uso desse tempo na tarefa de
reproduzir-se socialmente, de acordo com os diferentes ritmos da sua existência.
A noção de temporalidade remete, portanto, à ideia de movimento, de ação
deliberada e “de singularidade no uso das técnicas disponíveis e na apropriação das
técnicas ao longo do tempo” (BRANDÃO, 2005, p. 18), posto que abrigue, de modo
concomitante, mas desigual, as historicidades do eixo das sucessões e do eixo das
coexistências que, cada uma a seu modo, dão sentido à vida do indivíduo e do grupo.
A análise das temporalidades do/no território remete à necessidade de uma
periodização2 como um recurso analítico que permita desvelar as características de uma
dada dinâmica territorial nos seus distintos ritmos, segundo as lógicas endógenas e
exógenas que concorrem para a ocorrência dessa construção ao longo do tempo.
2 Os procedimentos metodológicos e o resultado empírico da periodização aqui adotada são
delineados/apresentados de modo detalhado nos capítulos 5 e 6, respectivamente.
62
Por outro lado, como já mencionado, as manifestações de poder no espaço
ocorrem pela ação deliberada de um ou mais agentes em se fazer(em) ativo(s) no
processo de dominação ou apropriação do espaço que lhe(s) cabe.
Sobre a nomenclatura utilizada, cabe aqui um adendo explicativo: por concordar
com Vasconcelos (2012, p. 76), para quem a noção de ator “remete a papéis de
representação, tanto na vida corrente como nas artes (teatro, cinema)”, e com Giddens,
em citação do próprio Vasconcelos (Idem, p. 82), segundo o qual agente é aquele “que
exerce poder ou produz um efeito”, no âmbito desta tese, o último termo tem
prevalência sobre o anterior sempre que se referir ao(s) sujeito(s) que promove(m) uma
ação cujo caráter seja deliberadamente territorial.
Em texto recentemente publicado, Corrêa (2012), reverberando temática
explorada em outra obra (CORRÊA, 1989), expõe aspectos basilares para a
compreensão do papel desempenhado pelo agente social na sua vinculação com o fazer
geográfico. Embora fazendo referência ao espaço e não ao território – o que não
invalida, em absoluto, a utilização da referência – o autor afirma:
A produção do espaço, (...), não é o resultado da “mão invisível do
mercado”, nem de um Estado hegeliano, visto como entidade
supraorgânica, ou de um capital abstrato que emerge de fora das
relações sociais. É consequência da ação de agentes sociais concretos,
históricos, dotados de interesses, estratégias e práticas espaciais
próprias, portadores de contradições e geradores de conflitos entre eles
mesmos e com outros segmentos da sociedade (Idem, p. 43).
Na assertiva acima destacada, o autor evidencia – mesmo não sendo esta a sua
intenção – o papel territorializador do agente, seja ele qual for, na medida em que, por
um lado, são dotados de interesses, estratégias e práticas próprias, o que o leva à
tentativa de tornar a realidade do lugar onde atua, com a sua geografia aí incluída, o
mais de acordo possível com a sua idealização de mundo; por outra parte, são geradores
de conflitos, isto por que pode não haver consensualidade e compartilhamento de tais
interesses, estratégias e práticas por todos que produzem o espaço, o que acaba por
resultar em reações.
Há, portanto, a necessidade de reconhecer a existência de distintos agentes que,
ao produzirem o espaço segundo suas próprias lógicas, constroem territórios. Na
clássica obra Por uma Geografia do poder, Raffestin (1993) advoga pela existência de
dois grandes grupos de agentes – chamados pelo autor de atores – com capacidade de
promover arranjos territoriais:
63
Paradigmáticos, representados pelo Estado, firmas, partidos políticos,
entidades religiosas, etc., em cuja ação está contido um programa político
ou econômico pré-definido, que inclui a elaboração de estratégias de
caráter territorial;
Sintagmáticos, que diz respeito a um conjunto de indivíduos agregados
pela identificação mútua de características comuns, mas que não
possuem um plano, um programa que garanta a sua reprodução, o que
incide na prevalência de traços de espontaneidade na construção de
territórios.
Neste contexto, a noção do Estado como agente detentor da primazia de produzir
e gerir territórios, conforme defendido nos postulados de orientação positivista e
neopositivista, é gradativamente substituída por uma concepção segundo a qual os
territórios são construídos a partir da formação de campos de forças nos quais os
agentes atuam sem que estejam necessariamente submetidos a um controle estatal. Tal
constatação é verdadeira para grupos comunitários, movimentos sociais, entidades
empresariais ou do Terceiro Setor, além do narcotráfico e da prostituição, para citar
alguns poucos exemplos.
Em outras palavras, se o Estado não perdeu de todo a sua condição como agente
promotor de práticas territoriais, já que o território se constitui na base geográfica para a
existência de tal ente político, é fundamental ter em conta, por outro lado, que entidades
e grupos diversos que atuam em aliança ou mesmo para além do âmbito estatal também
produzem arranjos definidos a partir da constituição de processos de territorialização.
Por outro lado, longe de significar perda da capacidade de atuação no território,
o redimensionamento do papel do Estado denota, na verdade, uma reestruturação de tal
poder de ação, definida muito por conta da conformação da atual aliança que tem no
Capital o seu co-partícipe.
Assim, o discurso amplamente divulgado pelos intelectuais do neoliberalismo
segundo o qual o espaço e o território estariam em vias de encontrarem o seu fim pela
dissolução das barreiras à mobilidade do capital e das técnicas, de um lado, e das
pessoas, de outro, apresenta-se muito mais como uma cortina de fumaça encobrindo as
reais intenções envolvidas nesse tipo de formulação, na medida em que o Estado e os
agentes hegemônicos da economia seguem utilizando-se amplamente de práticas
64
territoriais para garantirem a reprodução o quanto mais livre e segura possível do capital
em escala planetária. Sobre isto, Hiernaux (1999b, p. 150) afirma:
(...) predomina en muchas obras la idea de que el espacio se ha vuelto
cada vez más irrelevante para el análisis del modelo económico y
social actual; en otros términos, conceptos como espacio, territorio y
región vem erosionando su sentido (...). Parecería entonces que el
espacio es sólo un soporte material, eventualmente un espejo de las
realidades globales (...).
Todo lo contrario, nuestra forma de enfocar la cuestión territorial es
justamente inversa a la proposición anterior: consideramos que, más
que nunca, el territorio es una dimensión central en la configuración
del modelo económico y social del liberalismo contemporáneo.
(Grifos no original).
Ainda segundo esse geógrafo mexicano, é difícil precisar os fundamentos
territoriais que orientam o modelo liberal hodierno, notadamente em função das
imbricadas relações que os agentes econômicos e o Estado mantêm. Este último é um
fomentador de um discurso territorial planificador, considerado um entrave às
concepções pragmáticas daqueles que querem colocar em curso as estratégias próprias
da doutrina neoliberal.
A presença e atuação desses agentes – os ditos paradigmáticos, segundo C.
Raffestin – é quase sempre muito ostensiva (ainda que nem sempre tão evidente), posto
que haja toda uma gama de elementos materiais e simbólicos que, tendo sido criados
para se constituírem em meios de garantia à reprodução do status quo almejado, dão
visibilidade à ação territorializadora que se quer empreender. Isto está presente tanto na
forma e intencionalidade próprias dos sistemas de engenharia quanto nas ações de
controle/restrição do/ao acesso a determinados locais.
Com atuação nos lugares onde estabelecem suas bases de ação, mas sob
desígnios que são gestados ao longe, tais agentes atuam imbuídos de absoluta
racionalidade criadora de “um regime obediente a preocupações subordinadas a lógicas
distantes, externas em relação à área da ação” (SANTOS, 2000, p. 92). Os territórios daí
advindos são formados por um conjunto de pontos interligados por fluxos verticalmente
constituídos. Ainda de acordo com M. Santos, essas verticalidades realizam a ideia
“segundo a qual o território pode ser visto como um recurso, justamente a partir do uso
pragmático que o equipamento modernizado de pontos escolhidos assegura” (p. 108).
Contudo, existem outros agentes que, mesmo atuando sem uma programação
previamente estabelecida (os sintagmáticos), reivindicam a participação no processo de
construção da(s) dinâmica(s) territorial(is) na(s) qual(is) estão envolvidos. Para esses, os
65
processos de territorialização derivam “de uma sutil ‘alquimia’ entre o pessoal e o
coletivo” (HEIDRICH, 2010, p. 27) e se inscrevem segundo lógicas relacionais,
históricas e escalares diferentes daquelas com as quais os agentes anteriormente citados
lidam.
Segundo Théry (2008, p. 90), o território é “uma construção social, à qual todos
os seus habitantes participam, todos os dias”. Mesmo reconhecendo que a participação
de agentes econômicos e do Estado “possa ter um peso maior sobre o destino do
território”, o autor mencionado observa que os habitantes, incluindo os mais pobres,
“têm também o seu papel, frequentemente determinante, pela massa que representam,
nem que seja apenas porque se não aderem às decisões das autoridades, estas podem
permanecer letra morta”.
Os homens comuns, os pequenos grupos organizados e os empreendimentos
capitaneados por proprietários locais, todos são capazes, também, de promoverem
dinâmicas territoriais nos espaços de sua reprodução social, ainda que, evidentemente,
sob perspectivas e envolvendo escalas bastante distintas daquelas que amparam as ações
dos agentes hegemônicos anteriormente analisados.
Para Santos (2000, p. 114), “essas pessoas não se subordinam de forma
permanente à racionalidade hegemônica e, por isso, com frequência podem se entregar a
manifestações que são a contraface do pragmatismo”. Mesmo vivendo um quadro da
realidade comandado pelas lógicas do espectro fordista de produção e consumo do
espaço e pela unicidade técnica de uma ordem global opressora, os sujeitos que habitam
o lugar são capazes de compreender que “Condições desiguais oferecem abundantes
oportunidades de organização e ação política” (HARVEY, 2004, p. 98).
Além disso, o território, quando concebido desde o ponto de vista dos agentes
hegemonizados, das comunidades e pequenos grupos locais, carrega consigo toda uma
carga de elementos constitutivos que não estão necessariamente vinculados à economia
e à política, posto que estejam “investido de valores não apenas materiais, mas também
éticos, espirituais, simbólicos e afetivos”, como afirma Ribeiro (2009, p. 26).
Conforme concepção expressa por Brunet, Ferras e Therry, em citação feita por
Vasconcelos (2001), o território é considerado o espaço apropriado com sentimento e
consciência da sua apropriação, o que incorpora a tal ente geográfico uma dimensão
primordialmente afetiva, vinculada a sentimentos e simbolismos derivados de práticas
sociais diversas, não enfatizando a perspectiva política. Deste modo, novo arranjos
66
territoriais com o enfoque voltado para a dimensão do local, antes negligenciados,
assumiram papel de destaque enquanto foco de análise ligado a este conceito.
Assim dimensionado, o território se revela como um importante elemento na
construção de raízes e de um sentido de pertencimento, sendo ainda um componente da
identidade de um grupo, posto que todos os fatores que concorrem para a conformação
de um determinado modo de viver estejam direta ou indiretamente relacionado à forma
como se usa o território.
Isto remete a uma noção de territórios socialmente construídos como resultado
da ação contínua de um grupo que, ao se apropriar do espaço, passa a responder por um
conjunto de produções que se dão no lugar e que podem ser compreendidos apenas pela
relação de proximidade e pela coexistência. Segundo tal lógica, o território, mesmo
“contaminado” pela presença das verticalidades de que trata M. Santos, é gestado a
partir de uma ordem local, lidando com esta força exógena através da afirmação sempre
constante de um sentido. Neste caso, conforme lembra Santos (2000, p. 111),
O território não é apenas o lugar de uma ação pragmática e seu
exercício comporta, também, um aporte da vida, uma parcela de
emoção, que permite aos valores representar um papel. O território se
metamorfoseia em algo mais do que um simples recurso e (...)
constitui uma abrigo.
Isto posto, é importante frisar que a construção dos territórios que contemplam
os interesses de cada um dos grupos não se dá em contextos distintos ou apartados. Em
outras palavras, enquanto os agentes paradigmáticos projetam no espaço o poder que
deles emana, os agentes sintagmáticos realizam o mesmo. Se as lógicas e estratégias são
distintas, a finalidade os iguala: tornar a sua existência o quanto mais longeva pela
capacidade de dominar e/ou se apropriar de um ou mais territórios. Conforme salientado
por Haesbaert (2004b, p. 42):
(...) devemos reconhecer que vivenciamos hoje um entrecruzamento
de proposições teóricas, e são muitos, por exemplo, os que contestam
a leitura materialista como aquela que responde pelos fundamentos
primeiros da organização social. Somos levados, mais uma vez, a
buscar superar a dicotomia material/ideal, o território envolvendo, ao
mesmo tempo, a dimensão espacial material das relações sociais e o
conjunto de representações sobre o espaço ou o “imaginário
geográfico” que não apenas move como integra ou é parte
indissociável destas relações.
Neste sentido, não apenas Haesbaert (2008, p. 21), mas outros expoentes dos
estudos sobre a abordagem territorial, como Souza (2009, p. 66) e Saquet (2009, p. 87),
67
concordam – cada um ao seu modo – ao afirmarem que o território é, ao mesmo tempo,
“funcional e simbólico”, como menciona o primeiro, “modelagem material” e “relação
social”, conforme aponta o segundo, e “material e imaterial”, de acordo com o terceiro.
Em essência, os autores afirmam ser o território um amalgama de elementos racionais e
subjetivos e de elementos concretos e relacionais. Assim, o território é tomado também
a partir de uma perspectiva que enfatiza o seu “caráter dinâmico e multidimensional”,
levando-se em conta ainda a sua “multiescalaridade” (HAESBAERT, 2004b, p. 340),
isto se aplicando também àqueles lugares onde o turismo passa a presidir as ações
relativas à constituição de territórios, como se verá a seguir.
Assim, é nesse complexo campo de forças que abriga, repele e reelabora a
diferença onde emergem as contradições, pois, como afirma Lima (2006, p. 105-106):
À medida que se implanta um grande investimento num espaço, quer
de infra-estrutura, quer de produção ou consumo, impõem-se
mudanças socioespaciais e normativas para o adequado
funcionamento do novo ente geográfico. Nessas condições, o
ambiente não pode mais ser receptivo às tradições locais, tendo que
forçar as pessoas a novo modo de vida, às vezes com bruscas
substituições em seus ritmos, costumes, consumo etc. (...). Aos
residentes, aos que pretendem manter seu cotidiano, agressividades
lhes são impostas, sem condição de defesa e possibilidades.
Essas tensões tendem a se ampliar, quanto mais expressiva for a
atuação dos investimentos externos no lugar. Nem sempre as
melhorias criadas no local se orientam para o bem-estar da população,
mas para otimizar a operacionalidade das unidades produtivas
integradas à produção globalizada.
Além disso, em um momento histórico no qual “valores econômicos não apenas
se transformaram definitivamente em hegemônicos como, também, contaminaram todos
os demais valores” (HISSA, 2009, p.48), verifica-se a crescente complexidade territorial
nos lugares violentamente afetados pelos desígnios do mercado, posto que, mesmo
aqueles supostamente menos preparados para a competição econômica almejem galgar
“um lugar ao sol”.
Desta forma, refletindo sobre a construção de territórios desde a perspectiva dos
agentes que atuam localmente, é possível inferir que, nas condições descritas logo acima
por L. Lima e C. Hissa, há aqueles que perdem, alguns que se adaptam e outros que
resistem. Daí surgem territorializações que, parafraseando Souza (2006), se
desenvolvem junto com, apesar de ou contra os agentes hegemônicos, ou seja, o Estado
e os detentores dos meios de produção.
68
Tal situação não é diferente nos territórios do turismo, aquelas localidades onde
a prática turística passa a presidir as relações entre os diversos agentes, pois, conforme
afirma Castilho (2006), o turismo é percebido pelas populações mais pobres como uma
oportunidade e uma expectativa de mobilidade socioespacial. Disto decorrem processos
que fazem emergir novas formas de projeção de poder no espaço que, em convivência
com as que lhe antecedem, tornam a vida muito mais complexa e dinâmica.
2.2 O turismo contemporâneo e a construção social dos territórios
Como visto anteriormente, tratar da abordagem territorial é reconhecer, antes de
tudo, que a sua atualidade está na dupla base explicativa que lhe dá substância: a
material, ligada à possibilidade de dominação de um fragmento da superfície terrestre, e
a simbólica, referente ao privilégio do usufruto/apropriação de um dado espaço
(HAESBAERT, 2007). Em outras palavras, se na primeira acepção a existência do
território e do jogo dinâmico pela sua dominação (a territorialidade) tem um caráter
funcional, jurídico-institucional e político-econômico, na segunda, a ênfase está nos
aspectos subjetivo e simbólico da relação entre um indivíduo ou grupo e o espaço onde
vivencia(m), reproduz(em) suas práticas sociais e, enfim, se territorializa(m).
Importante considerar mais uma vez que, admitindo tal perspectiva de
compreensão, a construção do território não se realiza desta ou daquela forma, mas sim
desta e daquela forma. Significa afirmar que o território é um ente geográfico prenhe de
multiplicidade de relações, já que “desdobra-se ao longo de um continuum que vai da
dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais
subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’” (HAESBAERT, 2004b, pp. 95-96).
Assim, como afirma Haesbaert (2004a), o território é um espaço que não pode
ser entendido a partir apenas da sua dimensão natural e, tampouco, unicamente por seu
caráter político, econômico ou cultural. “Território”, para o autor, “só poderia ser
concebido através de uma perspectiva integradora entre as diferentes dimensões sociais
(e da sociedade com a própria natureza)” (Idem, p. 115). Além disso, o autor acrescenta
que uma visão que inclui, ao mesmo tempo
(...) a concepção multiescalar e não exclusivista de território
(territórios múltiplos e multiterritorialidade, como propusemos em
Haesbaert, 2002), trabalha com a idéia de território como um híbrido,
seja entre mundo material e ideal, seja entre natureza e sociedade, em
suas múltiplas esferas (econômica, política ou cultural) (Ibdem, p.
115).
69
No âmbito do turismo, compreender esta pluralidade de intenções e sentidos que
contribuem na construção sempre inacabada dos territórios passa, portanto, pela busca
de uma análise que permita abarcar toda a complexidade da dupla acepção do território,
ou seja, o seu caráter material e simbólico, bem como as suas dinâmicas, notadamente
neste período da História, marcado pela co-presença de lógicas de acumulação inerentes
aos regimes constitutivos do espectro fordista de produção e consumo do espaço.
Não se pode negar, pois, que o advento da multiterritorialidade nos espaços
dominados pelos agentes do turismo tem a ver, em muito, com a diversificação e
complexidade crescente dos usos em tais territórios e que estas (a diversificação e
complexidade), por sua vez, estão ligadas à inserção de modelos de acumulação
pós/neo/fordistas na prática do turismo.
Assim, pela sua exequibilidade dentro do quadro analítico aqui evidenciado,
emergem duas abordagens para a compreensão do turismo a partir de uma perspectiva
territorial: a da multiterritorialidade do turismo, proposta por Rodrigues (2006),
tomando como base os escritos de Haesbaert (2004a; 2004b; 2007; 2008) e a do turismo
como uso do território, de autoria de Steinberger (2009), sustentada nos postulados de
Santos (1994b) e Santos e Silveira (2001).
Em ambas as propostas, as autoras introduziram os referenciais teóricos como
suportes para a análise específica do turismo (algo não realizado pelos propositores
daqueles postulados), criando, assim, as condições para o desenvolvimento de
formulações empíricas de tais abordagens.
No que concerne à perspectiva da multiterritorialidade do turismo, Adyr
Balastreri Rodrigues aponta para a necessidade de compreender esta prática
socioespacial a partir do exame da dinâmica multiescalar e multidimensional dos
territórios turísticos. Segundo a autora:
O território turístico, em particular, sendo um espaço dominado e/ou
apropriado, assume um sentido multiescalar e multidimensional que
só pode ser devidamente apreendido dentro de uma concepção
compósita, ou seja, de multiterritorialidade (RODRIGUES, 2006, p.
306).
Isto implica em admitir a existência, no turismo, de uma “flexibilidade territorial
do mundo contemporâneo, dito pós-moderno” geradora de uma multiplicidade de
territórios que se dá tanto através “da sua sobreposição num mesmo local”, quanto da
“conexão em rede pelo espaço planetário” (Idem, p. 305).
70
Deste modo, fica patente a necessidade de empreender esforços para o
entendimento da multiterritorialidade do turismo pela análise das interpenetrações e dos
conflitos gestados nesses territórios, que se configuram a partir da relação dialética entre
as lógicas vertical e horizontalmente constituídas ou, como concebido por Haesbaert
(2007), na ambivalência de territórios-rede e territórios-zona.
A análise da constituição de territórios-rede nos espaços apropriados pelo
turismo permite compreender os meios pelos quais os agentes hegemônicos ligados à
atividade projetam relações de poder estabelecidas através de redes, engendrando
formas de dominação que, em muitos casos, têm alcance global.
Por seu turno, através do exame dos territórios zonais, é possível compreender,
além do papel político-econômico, funcional e jurídico-institucional do turismo
projetado no espaço, as relações simbólicas e culturais daqueles que visitam os lugares
turísticos e que, portanto, têm atuação preponderante na construção de representações
geográficas acerca destes locais, bem como das comunidades receptoras, daqueles que,
por meio da vivência e da experiência cotidiana, reproduzem práticas sociais de caráter
territorial.
Na abordagem que toma o turismo como um uso do território, Marília
Steinberger enfatiza a necessidade de apreender a formação deste ente geográfico a
partir dos usos que lhe são atribuídos e que o turismo, como uma das formas de sua
utilização, produz o espaço. Logo na abertura da segunda seção do artigo no qual aborda
tal perspectiva de análise, intitulada “O turismo é antes de tudo um uso do território”, a
autora afirma de forma categórica:
O título desta seção é propositadamente impositivo por que se está
afirmando que o turismo, antes de ser um fenômeno, um sistema, uma
prática, um produto, um serviço ou uma indústria, é um uso do
território. A anterioridade está no pressuposto de que o turismo só
pode ser objeto de uma análise dialética, funcionalista,
fenomenológica, sistêmica, neo-positivista, empírica ou operacional
por que é um uso do território. Se esse uso não se efetivar não há
turismo e, assim, não há o que analisar (STEINBERGER, 2009, p.
39).
O território é entendido, pois, na sua dinâmica de território usado, concebido não
simplesmente como uma materialidade, no seu sentido mais ortodoxo, mas como um
“campo de forças” (Idem, p. 46) onde se constitui a arena de ações dos agentes
hegemônicos – no caso, do turismo – e dos homens. Como “recorte sempre incompleto
da totalidade” (HISSA, 2009, p. 76), o território é, assim, o espaço onde se desenrolam
71
usos múltiplos dotados tanto da racionalidade própria dos fazeres ligados à ordem
global quanto daqueles organicamente constituídos, estabelecidos a partir de uma ordem
local.
Ao considerar as diversas possibilidades de uso do território pelo turismo, a
autora reivindica a aceitação do caráter interdisciplinar da proposta e menciona que a
abordagem do turismo como uso do território gera a necessidade de dividir esta
totalidade em quatro pares para fins metodológicos: urbano-cidade, rural-campo,
regional-região e natural-sistemas naturais.
Importante frisar, enfim, que as propostas descritas acima não se excluem entre
si. Ao contrário, é possível aplicá-las, inclusive, segundo uma perspectiva integradora,
já que, em ambas, existem convergências teóricas, notadamente naquilo que concerne
ao entendimento do território e da territorialidade como meios para “afastar o risco de
alienação, o risco de perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco da
renúncia ao futuro” (SANTOS, 1994b, p. 15).
Mais do que isso, ao conceber o território como um elemento social e
historicamente produzido, Rogério Haesbaert, de forma mais ampla, e Adyr Balastreri
Rodrigues, tratando especificamente do turismo, permitem inferir que é a partir dos usos
que lhe são atribuídos que este ente geográfico se constrói. Por outro lado, Marília
Steinberger (2009, p. 47 e 49), ao afirmar a existência de “intencionalidades plurais” e
de “multiplicidade de formas de apropriação do território” nos usos efetuados pelo
turismo, reconhece a própria existência da multiterritorialidade.
Nesta tese, o interesse pela análise das dinâmicas territoriais decorrentes da
turistificação das localidades litorâneas de Pipa (RN), Porto de Galinhas (PE) e Praia do
Forte (BA) está centrado na perspectiva dos grupos receptores, o que favorece à
pesquisa desde o ponto de vista da formação dos territórios-zona acima aventados, na
sua multidimensionalidade.
Ao definir o turismo, Castilho (1999) considera tal prática a partir da sua
dimensão socioespacial, com um caráter simultaneamente objetivo e subjetivo, cuja
redefinição se dá segundo os interesses dominantes. Em texto de 2006, porém, o autor
julga importante acrescentar ao debate um exame dos interesses que ainda não se
tornaram dominantes. Segundo C. Castilho (2006, p. 69), “Trata-se do conjunto de
interesses ligados aos grupos sócio-territoriais dominados que necessitam ser
contemplados pelas ações de gestão (...) do espaço”. É justamente desta constatação que
parte o interesse de análise do turismo nos lugares citados alhures.
72
O interesse de estudo repousa em compreender, portanto, as articulações
territoriais de lugares turísticos extremamente importantes nos seus respectivos estados,
mas pelo olhar dos grupos receptores, daqueles sujeitos que,
(...) no território de destino, ao mesmo tempo que dão o suporte para o
turismo acontecer, são envolvidos em relações sociais complexas eu
modificam, de forma dialética o território que se transforma no seu
todo ou em partes, o que igualmente irá produzir a transformação do
todo. O resultado é que nada ser á como antes, considerando-se que a
dinâmica territorial é sempre criação e recriação de territorialidades
(RODRIGUES, 2006, p. 301).
De fato, o que está no cerne deste estudo é a busca pela compreensão do papel
dos grupos pré-existentes nesse fazer e refazer do território a partir da turistificação de
suas moradas, levando-se em conta que, retomando a paráfrase já empregada (a partir de
SOUZA, 2006b; 2010), as estratégias territoriais se desenvolvem, via de regra, junto
com, apesar de ou contra os agentes hegemônicos, ou seja, o Estado e os detentores dos
meios de produção.
Para tanto, são tidos como os agentes em processo de territorialização que
interessam ao estudo os seguintes indivíduos e grupos, todos considerados
sintagmáticos, conforme apontado por Raffestin (1993):
Organizações sociais: associações de moradores ou de classe (condutores de
buggy, taxistas, pescadores, etc.).
Organizações não-governamentais e grupos de interesse específico (surfistas,
naturalistas, “mochileiros”, etc.).
Indivíduos, grupos não constituídos formalmente e sociedade local.
Desta forma, esta tese se constitui em um trabalho de análise crítica e reflexiva
da abordagem territorial em localidades afetadas pelo turismo, buscando compreender
os processos diversos que transformam tais espaços em territórios dinâmicos e
complexos, verdadeiras arenas “da oposição entre o mercado – que singulariza – e a
sociedade civil – que generaliza (...)” (SANTOS, 1994b, p. 19).
73
II
PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO DO
TURISMO NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL
74
Capítulo 3
O “MODELO CANCÚN”, AS TERRITORIALIDADES DO TURISMO NA
AMÉRICA LATINA E SEUS REBATIMENTOS NO NORDESTE BRASILEIRO
O balneário mexicano de Cancún é atualmente o principal destino turístico de
Sol e Praia da América Latina. Criada em meados da década de 1970 na porção
litorânea do estado de Quintana Roo onde antes havia um diminuto casario de origem
maia, a cidade possui um dos mais importantes complexos turístico-hoteleiros do
mundo. Além disso, agrega, na sua parte residencial, uma população fixa de cerca de
pouco menos de um milhão de habitantes.
Sua localização e belezas cênicas, aliadas aos vultosos investimentos públicos e
privados e à massiva propaganda que evoca um moderno “paraíso” transformado em
refúgio para ricos e famosos de porte hollywoodiano, dotaram a localidade da áurea de
exclusividade e glamour que todo e qualquer mortal deseja um dia poder vivenciar.
Segundo Propín e Sanchéz (2007), Cancún é o segundo destino preferencial para
os turistas estrangeiros no México e o terceiro em números totais de recepções, estando
aquém apenas dos ingressos aferidos na Capital Federal e em Acapulco, dois centros de
grande interesse para o turismo interno.
Diferente do que é comum para a maioria dos lugares apropriados pelo turismo
de Sol e Praia em países subdesenvolvidos, onde a demanda precede a oferta na
conformação dos destinos turísticos, tal sucesso não decorre de iniciativas espontâneas
ou de pequenos projetos setoriais do Estado mexicano. Ao contrário, o surgimento de
Cancún como centro turístico de porte internacional resulta de um vigoroso programa
estatal que envolve diversos setores governamentais e que assume papel de destaque nos
Planos de Desenvolvimento Nacional do México.
Dado o proeminente posicionamento da cidade mexicana entre os principais
destinos turísticos em escala global, formou-se uma opinião quase consensual entre os
estudiosos referendando a experiência desenvolvida em Cancún como um modelo para
as políticas públicas dedicadas ao turismo em diversos países da América Latina, entre
os quais o Brasil.
Deste modo, a intenção deste capítulo é refletir sobre o papel das políticas
públicas na construção material e simbólica de Cancún como um dos principais destinos
turísticos em escala global, ao tempo em que busca propor um debate acerca da
75
pertinência do discurso segundo o qual tais políticas se constituem em modelo para o
planejamento de outros destinos de Sol e Praia na América Latina e no Brasil.
3.1 Algumas reflexões sobre as políticas públicas para o turismo no México
Até a primeira metade do século XX, os principais destinos turísticos da
América Latina setentrional eram Havana (Cuba), e Acapulco e Veracruz (México). A
essas urbes afluíam grandes contingentes de turistas norte-americanos, com certa
preferência para o destino insular, graças à proximidade em relação à Miami e à
permissividade do governo de Fugêncio Batista para com os vizinhos do norte quanto
ao consumo de bebidas alcoólicas e à prostituição.
O advento da Revolução Cubana deu fim àquele fluxo turístico direcionado à
ilha caribenha, criando um vazio no mercado emissor norte-americano, fato que abriu,
para o Estado mexicano, uma oportunidade de ampliação do seu número de visitantes.
Sua realização se deu, a partir de então, na perspectiva do planejamento do turismo
comandado pelo Estado.
De acordo com obra publicada pelo governo de Quintana Roo (1987), em finais
da década de 1960, o Estado mexicano estabeleceu as condições para o
desenvolvimento planejado do turismo no país através da criação, via Banco de México,
do Infratur (Fondo de Promoción de Infraestructura Turística), com vistas à
consolidação das zonas turísticas já existentes e criação de outras em localidades que
apresentassem potencial para tanto.
Além dos trabalhos de localização e desenvolvimento de novas zonas turísticas,
o governo mexicano interveio na atração de investidores privados para o setor através
da criação do Fogatur (Fondo de Garantía y Fomento al Turismo), conformando a
aliança entre o Estado e o setor privado nos assuntos referentes ao desenvolvimento do
turismo. Posteriormente, foi popularizado como parceria público-privada, o qual foi
bastante explorado durante o advento do neoliberalismo.
Segundo Boggio (2007), nos primeiros anos de implantação da infraestrutura e
da superestrutura turística, os destinos turísticos tiveram no Estado mexicano o seu
único grande investidor, ação que se revela em sintonia com a política econômica que
fora conduzida pelos mandatários de então, orientada por um modelo “keynesiano-
cepalino” (CALVA, 1993, p. 99).
De fato, sob o discurso da promoção do desenvolvimento regional e do ingresso
de investimentos em regiões menos favorecidas, o Estado mexicano se tornou um
76
investidor direto, principalmente através da dotação de infraestrutura, e como um dos
principais financiadores de iniciativas privadas, por meio da oferta de linhas de crédito.
Assim, após definição da Infratur, surgiu a iniciativa de criar o Proyecto de
Desarrollo Turístico en Cancún, que resultaria na edificação do primeiro entre os atuais
cinco Centros Turísticos Integralmente Planeados3, cuja concepção estava amparada
pelo Plano Nacional de Desenvolvimento mexicano.
A concretização dos objetivos e linhas estratégicas traçados para os centros é
possível graças à elaboração do chamado Plan Maestro, que rege as obras de
infraestrutura e superestrutura do turismo, assim como os serviços necessários à criação
e consolidação do destino turístico. A metodologia desenvolvida para o masterplan de
Cancún serviu de parâmetro para a elaboração daqueles destinados aos demais Centros
Integralmente Planejados.
Em 1974, mesmo ano da inauguração da cidade de Cancún, foi criado o Fonatur
(Fondo Nacional de Fomento al Turismo) a partir da junção dos dois órgãos pré-
existentes (Infratur e Fogatur), cujas funções primordiais, segundo García (1979, p. 21),
são “(...) asesorar y financiar los programas turísticos y orientar la inversión hacia las
zonas y proyectos turísticos de interés nacional”.
Esse órgão assumiu a condução do processo de planejamento e encaminhamento
das ações referentes ao turismo no México, incluindo os trabalhos concernentes às
etapas seguintes de implantação do Plan Maestro de Cancún, ao Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano e à criação da Riviera Maya, um dos vários projetos de
ampliação do espaço urbano-turístico (ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, 2006).
Para tanto, a opção adotada quanto ao marco teórico a ser empregado no
planejamento turístico mexicano se baseou no modelo de polos de desenvolvimento,
formulado por François Perroux4.
Segundo tal concepção, todo espaço é composto por um centro, ou polo, de onde
emanam forças centrífugas e atraem forças centrípetas que geram crescimento
econômico (HERMANSEN, 1977). Assim, criados a partir de uma política pública,
3 Os demais Centros são Loreto, Ixtapa-Zihuatanejo, Los Cabos e Huatulco.
4 Segundo Souza (2005), a teoria dos polos de crescimento foi desenvolvida por François Perroux, em
meados da década de 1950, a partir da análise da concentração industrial na França (entorno de Paris) e
Alemanha (Vale do Ruhr). Conforme apontado por Andrade (1987, p. 59), em uma síntese conceitual, “o
pólo é o centro econômico dinâmico de uma região, de um país ou de um continente, e que o seu
crescimento se faz sentir sobre a região que o cerca, de vez que ele cria fluxos da região para o centro e
refluxos do centro para a região. O desenvolvimento regional estará, assim, sempre ligado ao do seu
pólo”.
77
estes pólos tenderiam a induzir o desenvolvimento regional através do surgimento de
atividades econômicas que lhe dariam suporte .
De modo muito apropriado, Bezzi (2004, p. 137) afirma que, nessa perspectiva,
há uma significativa valorização do papel da cidade como centro de organização
espacial. Segundo a autora, “as cidades com uma função determinada passam a ser um
polo de atração, ou seja, um centro irradiador de toda a dinâmica da região”,
organizando assim a sua hinterlândia e dinamizando, em efeito cascata, os centros de
menor porte, “em um verdadeiro sistema espacial”.
Em defesa de tal modelo, Soto e Soto (1980, p. 181) afirmaram:
La integración regional de Quintana Roo deberá regularse
atendiendo al desarrollo de centros de crecimiento para lo cual
deberán seleccionarse los puntos en los cuales habrá de concentrarse
la atención para que primero funcionen como centros locales de
servicios y en la última etapa como centros de crecimiento regional.
As autoras consideravam então que, neste panorama proposto, Cancún, assim
como nos demais núcleos implantados, deveria figurar como centro de crescimento
regional, polos de primeira ordem dentro da hierarquização apresentada.
Na década de 1980, durante os governos sob orientação neoliberal de Miguel de
La Madrid (1982-1988) e, sobretudo, nos de Salinas de Gortari (1988-1994), foram
implantadas as bases para as radicais mudanças de rumo nas políticas públicas
mexicanas que se fizeram presentes ao longo do decênio e do século seguintes, a partir
da presidência de Ernesto de Zedillo Ponce de León, entre 1994 e 2000 (CÓRDOBA e
GARCÍA, 2003; BOGGIO, 2007).
Essa nova etapa resultou em uma reviravolta em direção ao neoliberalismo, com
amplo favorecimento aos investimentos privados e a paulatina transformação do Estado
em um coadjuvante nas ações político-econômicas nacionais, inclusive naquelas
referentes ao turismo.
No caso mexicano, o Estado se enquadrou nas características apontadas por
Harvey (2005), segundo as quais, pelo seu caráter desenvolvimentista, o setor público e
o planejamento estatal, em associação com o capital, tem grande importância na
promoção da acumulação e do crescimento econômico. Para tanto, o Estado prioriza a
dotação de infraestruturas sociais (formação de mão de obra qualificada, pesquisa e
inovação) e físicas (ligadas aos transportes, saneamento e demais obras de construção
civil).
78
Assim, a década de 1990 foi o momento de consolidação da metamorfose do
Estado intervencionista, construtor e administrador de hotéis em um ente que passava a
instalar as infraestruturas descritas por David Harvey, mas outorgava à iniciativa
privada, através da venda de suas propriedades imobiliárias e de instrumentos de apoio
financeiro e incentivos fiscais, a primazia dos investimentos, com forte presença do
capital internacional.
Ainda no último decênio do século XX, foi criado o Plan de Desarrollo del
Turismo, um programa setorial elaborado pela Secretaria de Turismo do México através
da Fonatur e que, por força de lei (ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, 1992), está
submetido ao Plano Nacional de Desenvolvimento daquele país. Sua função é
especificar os objetivos, prioridades e políticas de normatização do setor, dando maior
segurança aos grandes investidores internacionais.
Esse plano de desenvolvimento turístico possui duas características bastante
significativas: a sua conformação como uma política de Estado que vislumbra o turismo
a partir de uma visão economicista e a sua concepção fortemente amparada pelos
desígnios do neoliberalismo.
A manutenção da política de ampliação da infraestrutura nos destinos turísticos
preferenciais, visando torná-los continuadamente atrativos para os investimentos
privados, levou a Fonatur a um refinamento do modelo baseado nos polos de
desenvolvimento, através da consolidação das antigas unidades espaciais e criação de
outras tantas, sob nova roupagem.
Essas unidades são os Centros de Desarrollo Turístico Prioritários (CDTP),
formados por cidades, portos, praias, vilas típicas e áreas naturais relevantes. Os ditos
centros são ligados por Corredores Turísticos (CT), ou seja, franjas localizadas entre
dois ou mais centros, ao passo que os conjuntos formados por CDTPs e CTs contíguos
compõem, por sua vez, as Zonas de Desarrollo Turístico Prioritários (ZDTP).
Importante salientar que, no caso mexicano, o desenvolvimento de políticas
públicas para o turismo está ligado a um amplo contexto de planejamento estatal, posto
que esta atividade componha um dos itens mais importantes nos sucessivos Planes
Nacionales de Desarrollo daquele país a partir da década de 1970.
A importância atribuída ao turismo é de tal envergadura que, como apontam
Mercado, Rojas e Calderón (1993), no texto oficial referente ao período 1989-1994, o
governo mexicano chega a postular a atividade como um dos pilares da recuperação
econômica do país, atingido por uma crise financeira na década de 1980.
79
O texto do último plano (2007-2012), por sua vez, afirma categoricamente que
“el sector turismo tiene varias características que lo convierten en una prioridad
nacional dada su importância como factor de desarrollo y motor de crecimiento”
(ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, 2007, pp. 116-117).
Além disso, como se verá a seguir, no caso específico de Cancún, é absoluta a
articulação dos níveis federal, estadual e municipal na promoção de políticas públicas
que assegurem a sua condição de destino turístico de Sol e Praia do México por
excelência.
3.2 A construção material e simbólica de Cancún como destino turístico
Até o início do século XX, Quintana Roo, onde está localizada a cidade de
Cancun (Figura 10), sequer existia como estado federado. Ao invés disso, aquelas terras
orientais da Península de Yucatán adquiriram, apenas em 1902, o status de Território
Federal, estando, portanto, sob a tutela direta do poder central mexicano.
Naquele momento, a intenção do governo Porfírio Díaz era, através da maior
presença estatal, dar marcha a um processo de expropriação das terras maias e a
consequente implantação de latifúndios voltados à exploração de produtos agrícolas e
extrativistas em grande escala, como, por exemplo, a seringueira.
Por jogar um papel pouco importante na fraca economia de Quintana Roo ao
longo do período que antecedeu à criação do polo turístico, a localidade de Cancún, por
sua vez, seguiu mantendo as características multisseculares que perpetuavam a situação
de inércia territorial que acometia a pequena vila de tradições maias.
Apenas em 1974 Quintana Roo passou a ser considerado um estado mexicano,
cuja divisão político-administrativa contemplava a existência de sete municípios5 e suas
respectivas sedes, as chamadas cabeceras municipales: Benito Juaréz (Cancún),
Cozumel (Isla Cozumel), Felipe Carillo Puerto (Felipe Carillo Puerto), Isla Mujeres
(Isla Mujeres), José Maria Morelos (José Maria Morelos), Lázaro Cárdenas
(Kantunilkín) y Othón P. Blanco, antes denominado Payo Obispo, cuja sede municipal,
Chetumal, é também a capital do estado (QUINTANA ROO, 1987).
O município de Benito Juaréz surgiu no âmbito da própria criação do estado de
Quintana Roo, haja vista que, antes de tal decreto, a divisão admistrativa do Território
5 Em 1993 e 2008, respectivamente, foram criados os municípios de Solidaridad e Tulum, elevando para
nove o número de unidades político-administrativas do estado de Quintana Roo.
80
Federal abrigava apenas os municípios de Isla Mujeres, Cozumel, Felipe Carrillo Puerto
e Payo Obispo. O espaço jurisdicional que lhe cabe como unidade político-
administrativa resulta do desmembramento de terras antes pertencentes ao município de
Isla Mujeres.
Figura 10. As transformações decorrentes da criação da Ciudad Cancún: (a) formações marinhas na década de 1970; (b) setor hoteleiro, na atualidade.
Fonte: Ayuntamiento de Benito Juárez (2012).
81
No que se refere à motivação para a criação do município, esta é assim descrita
em obra publicada pelo estado de Quintana Roo (Idem, p. 9):
Particularmente en el norte del estado, el desarrollo de la zona
continental a través del polo turístico de Cancún, llevó a la necesidad
de fragmentar el municipio de Isla Mujeres. La gran extensión de este
municipio antes de modificarse la división política hasta entonces
vigente y la condición insular de su cabecera habrían hecho que
resultara en extremo difícil dar a Cancún la atención que su rápido
crecimiento demandaba.
Isto posto, não exige esforço concluir que a criação do município de Benito
Juaréz se deu única e exclusivamente por pressões econômicas ligadas ao setor turístico
baseado em Cancún, cujos agentes estavam ávidos por terem atendidos os seus
interesses crescentes.
3.2.1 Cancún: da pesca ao turismo, de vilarejo a centro turístico internacional
Segundo documento elaborado pelo Governo do México (ESTADOS UNIDOS
MEXICANOS, 1988), a história econômica de Quintana Roo pode ser dividida em dois
períodos: o primeiro, denominado de Enclave Forestal, durou cerca de sessentaa anos
(do início do século XX à década de 1950) e foi marcado pelo domínio da exploração
agrícola e pelo extrativismo; o segundo, denominado Desarrollo Turístico-pesquero,
teve início na década de 1970 e é caracterizado principalmente pela implantação do
Plan Cancún e, de forma secundária, pelo desenvolvimento da indústria de pesca no
estado.
Ainda segundo o documento, ambos os períodos foram entremeados por uma
fase de transição, datada no decênio de 1960, na qual os primeiros surtos de crescimento
econômico orientados por pequenas iniciativas nos setores turístico-hoteleiro e
pesqueiro imprimiam os sinais de mudança.
Essas primeiras experiências capitaneadas por empresas ligadas ao turismo e à
hotelaria estavam concentradas em Cozumel e Isla Mujeres, mas, apesar da
proximidade, não atingiram a localidade de Cancún, ao menos não até a conclusão dos
trabalhos realizados pela Fonatur com o intuito de identificar destinos potenciais para o
desenvolvimento de megaempreendimentos voltados para o turismo receptivo
internacional.
A escolha de Cancún como primeiro Centro Turístico Integralmente Planeado
ocorreu em finais da década de 1960 através da ação conjunta do Estado mexicano e
82
Banco Mundial, que procederam a compra das propriedades onde a cidade veio a ser
instalada. A definição pelo local ocorreu pela reunião de fatores tais como a localização
na zona costeira caribenha, o que cobriria a demanda norte-americana por turismo de
Sol e Praia, as belezas naturais, condições climáticas e histórica tradição do uso do solo,
marcada pela pouca densificação, o que facilitaria sobremaneira a aquisição de terras.
Em outras palavras, a convergência de fatores locacionais e cênicos de base
físico-ambiental, a riqueza do patrimônio arqueológico maia e a baixa densidade
demográfica, aliada à frágil estrutura fundiária, facilitou o alinhamento de interesses do
Estado e iniciativa privada, gerando as condições para a implantação do primeiro entre
os centros turísticos de porte internacional do México.
Desta forma, tão logo tenham sido definidas as bases para o planejamento
turístico na localidade, foram adquiridos terrenos para a edificação da nova cidade, que,
segundo documento do Governo Federal (ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, 1999),
somavam então 12.700 ha, cujos usos foram definidos segundo a conformação de três
zonas distintas: a zona turística, com 2.163 ha (17% da área), a zona urbana, com 3.699
ha (29%) e a reserva ecológica e superfície lacustre, com 6.838 ha (54%).
Após a inauguração da Ciudad Cancún, em 1974, a zona turística passou a
concentrar todo o parque hoteleiro, incluindo as áreas condominiais voltadas para as
segundas residências, as áreas comerciais, campos de golf, aeroporto, entre outras. Por
sua vez, à zona urbana caberia ser o núcleo de moradia da população de Cancún, além
de ser o locus de diversas atividades turísticas secundárias. Segundo o discurso oficial:
Se trataba no sólo de generar divisas y empleos, sino también de
crear un conjunto urbano y turístico que, desde el punto de vista del
diseño, garantizara que el hombre pudiera vivir en un ambiente
agradable sin perder la comunicación, la convivencia y la escala
humana (ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, Idem, p. 118).
Se a presença do Estado como investidor direto e proprietário de hotéis nos
primeiros anos de existência da cidade de Cancún foi garantia fundamental para a
consolidação do centro turístico, a partir dos anos 1980, houve uma mudança de rumos
em direção às políticas públicas com base no neoliberalismo.
Conforme o modelo neoliberal apresentado alhures, a partir de então o Estado
mexicano se desfez das propriedades em Cancún na mesma medida em que promovia
incentivos aos negócios e aos novos investimentos do capital estrangeiro. De forma
complementar, foram instauradas políticas públicas que visavam (a) fortalecer a
83
competitividade do destino turístico e (b) assegurar a diversificação, via segmentação,
da oferta dos atrativos.
Para tanto, segundo afirma Arnaiz (1992), a estratégia posta em prática foi a da
edificação dos seguintes megaprojetos turísticos:
Corredor Turístico Cancún-Tulum: projeto turístico-hoteleiro erguido em uma
franja costeira de cerca de 130 km entre as localidades que lhe dão o nome e
40.000 ha de extensão, destinados à construção de grandes hotéis e condomínios
residenciais.
Malecón San Buenaventura: projeto localizado na zona urbana de Cancún, com
85 ha de área destinados à construção de zonas habitacional, comercial e mista,
além de um calçadão com cais e terminal marítimo para pequenas embarcações.
Puerto Cancún: projeto de instalação de um porto turístico destinado ao
atracamento de iates e demais embarcações particulares de luxo.
Ruínas del Rey: projeto elaborado em duas etapas e que consiste na construção
de um grandioso empreendimento hoteleiro seguido da edificação de cabanas,
condomínio residencial, centro comercial e marina.
Assim como ocorre em âmbito federal, os planejadores do estado de Quintana
Roo e aqueles que atuam pelo município de Benito Juaréz buscam produzir projetos que
mantenham a posição de Cancún entre os principais destinos turísticos de Sol e Praia da
América Latina.
No início da última década, o governo de Quintana Roo lançou um ambicioso
projeto denominado Plan de Desarrollo Gran Visión 2000-2025, que define as
estratégias para a inserção do estado na economia globalizada. No referido plano, é
possível perceber um considerável favorecimento ao setor turístico como referente
principal da economia estadual e, portanto, prioritário na elaboração de políticas
públicas.
Segundo Boggio (2007), através do dito Plano, o governo estadual definiu uma
linha estratégica que vincula os demais setores da economia ao turismo por meio do
desenvolvimento de atividades econômicas relacionadas aos produtos mais consumidos
nos empreendimentos turísticos locais.
No âmbito municipal, foi criado o Plan Estratégico de Desarrollo Sustentable
del Município de Benito Juaréz, que visa estabelecer as linhas estratégicas que
84
permitam articular os grandes instrumentos de planejamento urbano de Cancún, tais
como o Plano Diretor e os planos setoriais de mobilidade urbana e de habitação.
Esse documento visa, pois, lançar as bases para a dinamização dos vetores de
desenvolvimento econômico da cidade em função daquilo que Ortiz (2007) considera
serem as principais vantagens estratégicas de Cancún: a localização estratégica como
destino mundial, capacidade e diversidade de destinos do aeroporto internacional,
universidades de alto nível e a grande quantidade de jovens e crianças que ali vivem.
Os instrumentos de planejamento e gestão aqui apresentados dão amparo para
duas constatações: (a) a existência de uma articulação entre as diferentes instâncias do
Estado mexicano em favor do desenvolvimento econômico baseado no turismo e (b) a
adoção de políticas públicas sob orientação da doutrina neoliberal, o que fica claro na
abordagem estratégica dos planos implementados.
No que diz respeito ao planejamento macrorregional do turismo, Cancún faz
parte atualmente da região turística Mundo Maya-Oaxaca, uma das sete existentes no
México. Tais regiões são compostas por outras unidades espaciais menores, criadas
segundo o modelo de planejamento vigente. Estas unidades são, como já fora aventado
alhures, os CDTPs (Centros de Desarrollo Turisticos Prioritários), os CTs (Corredores
Turísticos) e as ZDTPs (Zonas de Desarrollo Turístico Prioritários).
Importante salientar que a região citada corresponde ao trecho localizado em
solo mexicano de um projeto internacional denominado Mundo Maya, que também
envolve Belize, El Salvador, Guatemala e Honduras e cujo atrativo principal é o
patrimônio arqueológico comum a esses países.
Quanto à cidade de Cancún, esta é hoje um CDTP, o que significa que segue
sendo um dos polos prioritários para investimentos públicos, voltados para a
implementação de melhorias urbanas, e privados, atinentes à implantação de novos
empreendimentos ligados ao turismo, ao comércio e ao entretenimento.
3.2.2 Discursos e contradições do “modelo Cancún”
Não há como negar que, do ponto de vista da façanha de se construir,
praticamente do nada, uma cidade com funções quase que exclusivamente voltadas para
o turismo e o entretenimento, Cancún pode ser considerada como uma das obras mais
significativas do século XX.
Os números recentes, que podem ser traduzidos nos vultosos recursos
financeiros deixados pelos cerca de seis milhões de turistas e excursionistas que visitam
85
Cancún anualmente e utilizam algo em torno de 26,5 mil quartos de hotel (JIMÉNEZ E
SOSA, 2007), denotam o sucesso econômico que aquela cidade representa.
O aeroporto de Cancún, por onde transitam quase três milhões de passageiros
por ano, é o que possui mais voos internacionais e o segundo em números totais de
pousos e decolagens de todo o México. Por outro lado, a cada ano, o porto da cidade
contabiliza a atracação de centenas de transatlânticos, o que resulta na visita de outros
três milhões de excursionistas (Idem, 2007).
O vertiginoso crescimento populacional experimentado ao longo das quase
quatro décadas de existência é um outro indicador dos impressionantes resultados
atingidos pela cidade, principalmente levando-se em conta os fluxos migratórios
estabelecidos por milhares de mexicanos em busca do El Dorado (pós)moderno.
Mesmo antes do término das obras de construção do complexo urbano-turístico
Cancún já havia se tornado um dos principais centros de imigração no México, atraindo
inicialmente a população da própria Península de Yucatán para os serviços relativos à
edificação da cidade e, em seguida, contingentes saídos das mais diversas partes do país,
buscando colocação no mercado turístico.
Assim, no que se refere à dinâmica demográfica, em 1980, ano do primeiro
censo após a criação do município de Benito Juaréz, Cancún contava com uma
população de cerca de 41.330 habitantes (ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, 1988).
Os números do censo imediatamente anterior, correspondente ao ano de 1970, apontam
para um total de 326 habitantes em Cancún, o que significa um crescimento de 12.678%
em um decênio.
Atualmente, Cancún é um aglomerado urbano de cerca de 800 mil habitantes,
que, nos dizeres governamentais, constitui-se em “un espacio urbano sin los problemas
que asedian a las grandes ciudades de mundo” ou “la ciudad moderna, confortable,
dentro del corazón de la identidad maya” (ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, 1999,
p. 27), onde vive uma parcela majoritária formada por migrantes oriundos das mais
diversas partes do México.
Tal situação não parece ser um problema para o Estado mexicano, cujo discurso
revela: “El nuevo desarrollo turístico garantiza el éxito para nuevos proyectos de vida.
El crecimiento demográfico de Cancún es espetacular. Todos son bienvenidos por que
son necesarios” (Idem, p. 33). Isto posto, aparenta ser óbvio que, independente do
quanto se migre para a cidade caribenha, há postos de trabalho, moradia, transporte,
serviços educacionais e de saúde suficientes para todos.
86
Assim, segundo informações do Governo Federal do México, tanto os antigos
trabalhadores da construção civil, quanto os profissionais mais especializados foram (e
são) absorvidos na atividade turística por meio de capacitações, pois “Cancún ofrece
futuro lo mismo a profesionistas universitários que a gente que domina oficios que
ningún espacio urbano puede precindir” (Idem, p. 33).
Existem, porém, vozes dissonantes em relação ao discurso governamental
voltado à construção simbólica do centro turístico. Ainda em 1977, apenas três anos
após o advento da Ciudad Cancún, Gormsen (1977, p. 98) chamava atenção para os
problemas de caráter socioespacial que decorriam da migração maciça para o balneário:
La población de Cancún ha crecido de 0 a cerca de 20,000
habitantes. Es precisamente este desarrollo el que ha ocasionado toda
una serie de problemas, puesto que sólo un reducido número de
habitantes ha logrado mudarse a las modestas casas de vivienda
popular. La mayor parte de la población aún sigue viviendo en las
barracas que levantaron las empresas de construcción o en chozas
autofabricadas, situada fuera del área de control de FONATUR.
Além dos estudos já considerados clássicos (GARCÍA, 1979; HIERNAUX,
1999; TORRES, 2002), mais recentemente, investigações realizadas por García (2005),
Jiménez e Sosa (2007), Romero (2008) e Jiménez (2009), entre outros, também
denotam a existência de consideráveis contradições no processo de formação do espaço
do turismo em Cancún.
Nos primeiros estudos citados, tanto J. García quanto A. Jiménez e A. Sosa
focalizam suas análises nos impactos sociais e/ou econômicos relativos ao processo de
formação do espaço do turismo em Quintana Roo e Cancún, respectivamente. No
primeiro caso, o autor centra esforços no exame das desigualdades socioeconômicas, ao
passo que, no segundo, é feita uma discussão acerca das implicações sociais ligadas ao
vertiginoso crescimento do turismo.
Graças ao maior rigor exigido pela produção de uma tese doutoral, os outros
dois estudos mencionados trazem, por sua vez, importantes contribuições ao
entendimento das situações de contraste geradas pelo crescimento recente do turismo
em Cancún.
Em seu escrito, Romero analisa o projeto de polarização regional do turismo
adotado em Quintana Roo como gerador de uma economia de enclave baseada no
turismo de massa que resulta, por sua vez, em um processo extremamente contraditório
de produção do espaço urbano daqueles principais destinos turísticos do estado.
87
No estudo sobre as estratégias territoriais das cadeias hoteleiras que se
instalaram no Caribe mexicano, A. Jiménez põe em tela o tema da expansão dos
negócios intrarregionais, a sua relação com as finanças internacionais e os vínculos do
setor com a lavagem de dinheiro e o crime organizado em toda a região costeira da
Península de Yucatán, mas principalmente em Cancún.
Assim, não é difícil perceber a existência de um claro antagonismo emanado, de
um lado, pelo discurso oficial, pautado na construção simbólica de uma urbe que, apesar
do rápido crescimento populacional, se constitui na ponta de lança do desenvolvimento
regional baseado no turismo, e pelas vozes dissonantes, que, em sentido inverso,
apontam os agudos problemas de base socioespacial que as políticas públicas
concretizadas não foram capazes de evitar.
Toda essa celeuma gerada pelas políticas públicas desenvolvidas pela Fonatur
com vistas à formação de espaços turísticos não foi impedimento, porém, para que
outros organismos oficiais de países latinoamericanos tomassem-nas como modelo, o
que ocorreu de forma mais ou menos fidedigna ao original, a depender das distintas
propostas fomentadas, mas que tem como traço comum, intervenção do Estado, criação
de territórios do turismo, incremento do turismo de massa e a ampliação das
contradições socioespaciais.
3.3 Rebatimentos do “modelo Cancún” na América Latina e no Brasil
O êxito do Fonatur, ao transformar Cancún em um dos mais proeminentes
destinos do turismo de Sol e Praia em âmbito global, elevou aquele organismo estatal à
condição de referência para os países da América Latina na implantação de políticas
públicas para o turismo.
Ainda nos primeiros anos da sua criação, o Fonatur estabeleceu convênios de
cooperação técnica com seus pares governamentais em dezenas de países
latinoamericanos. Tal situação acabou por levar à criação de um Programa de
Assessoria Internacional, instituído pelo órgão em parceria com as Secretarias de
Relações Exteriores e de Turismo do governo mexicano
Os principais trabalhos realizados no âmbito do programa, segundo os objetivos
propostos, são: (a) processos de formulação de projetos turísticos; (b) desenvolvimento
de masterplan para planejamento turístico; (c) elaboração de programas de
reordenamento turístico e (d) fomento ao investimento e financiamento para a atividade
turística (ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, 2006).
88
Entre os diversos projetos desenvolvidos sob orientação do Fonatur na América
Latina, se destacam os de Golfo de Papagayo (Costa Rica), Bahía de Tela (Honduras),
Boliviamar (Bolívia), Trinidad (Cuba) e Bola de Monte (El Salvador), através de
acordos firmados entre os anos de 1991 e 1996.
Em todos esses casos, incluindo a esdrúxula proposta boliviana6, as iniciativas
elaboradas pelos órgãos turísticos desses países em parceria com o Fonatur tiveram
como principal objetivo o desenvolvimento do turismo de Sol e Praia através da adoção
de um modelo de masterplan baseado naquele realizado em Cancún, ainda que
guardadas as devidas especificidades quanto à dimensão e alcance de cada um desses
projetos.
No Brasil, diversos estudiosos do turismo (BARBOSA, 2001; SEABRA, 2001;
CRUZ, 2002; BARRETO, 2003; BEZERRA, 2005) concordam ao afirmarem que a
experiência de Cancún se converteu em um modelo para as políticas públicas adotadas
principalmente no litoral do Nordeste através do Prodetur (Programa para o
Desenvolvimento do Turismo), com vistas à urbanização turística de espaços
selecionados e à implantação de megaprojetos hoteleiros.
De fato, em 1975, o Brasil, através da Embratur (então denominada Empresa
Brasileira de Turismo, atual Instituto Brasileiro de Turismo), foi o primeiro país a
estabelecer convênio de cooperação com o Fonatur (OLIVERA, 1988), o que credencia
o órgão brasileiro a receber orientações técnicas do México para o planejamento do
turismo de Sol e Praia.
No entanto, apenas na década de 1990, as políticas públicas para o turismo
elaboradas pelo Governo Federal passaram a apontar um certo direcionamento
convergente em relação aos congêneres mexicanos. Neste sentido, ainda que sem a
intenção de transplantar a experiência das políticas públicas desenvolvidas no México
para lugares selecionados do litoral nordestino tal e qual ocorrera em Cancún, o Estado
brasileiro fez da cidade caribenha um exemplo e um paradigma no que se refere às
ações para o turismo de Sol e Praia.
Assim, a última década do século XX marcou o início de um período de grandes
investimentos governamentais em termos de infraestrutura turística no Brasil. Com o
intuito de melhorar o posicionamento do país em termos de fluxos turísticos, o Estado,
6 O Proyecto Boliviamar foi idealizado como um centro turístico-comercial de 163 ha dispostos em cinco
quilômetros de praia cedidos pelo Estado peruano à Bolívia para tal finalidade. Atualmente, o projeto está
desativado.
89
em parceria com instituições financeiras supranacionais, lançou políticas públicas que
visavam induzir investimentos privados em turismo.
De modo semelhante ao que ocorrera no México, o receituário neoliberal foi
experimentado na forma de uma aliança entre o Estado e o setor privado, pela qual
coube ao primeiro garantir a implantação da infraestrutura necessária ao bom
funcionamento das atividades a serem realizadas pelo segundo.
A criação do Prodetur-NE, em 1994, foi crucial para o desenvolvimento desse
modelo. A partir do lançamento de linhas de crédito para o financiamento de obras,
acreditava-se que “o setor privado seria atraído para ampliar e modernizar o parque
hoteleiro e os demais equipamentos turísticos existentes na região” (BEZERRA, 2005,
p. 103).
O acesso ao programa estava condicionado à elaboração, por parte dos governos
dos nove estados nordestinos, de propostas de aplicação dos recursos provenientes de
bancos internacionais e da entidade nacional de fomento denominada BNB (Banco do
Nordeste do Brasil).
Tais propostas deveriam estar em sintonia com os projetos de regionalização do
turismo, em cujas bases foram gestadas propostas de articulação urbano-regional da
atividade turística a partir da criação de destinos-âncoras, ou seja, a transformação de
lugares considerados de interesse turístico, que “serviriam de pólos para o
desenvolvimento do turismo” (Idem, p. 103).
Para tanto, da virada do século anterior para o atual, escolhas seletivas
permitiram a dotação de investimentos que fomentaram um processo de urbanização
turística em pequenas e antigas localidades do litoral nordestino, transformando-as em
balneários altamente tecnicizados, articulados com os interesses hegemônicos do capital
internacional através do turismo.
Desta forma, resulta óbvio inferir que as regiões turísticas brasileiras e cada um
dos seus destinos-âncoras foram criados sob os mesmos princípios das Zonas de
Desarrollo Turístico Prioritário e dos Centros de Desarrollo Turístico Prioritário,
respectivamente, todos bem ao feitio dos postulados de F. Perroux.
Outro aspecto que revela a influência exercida pelo “modelo Cancún” nas
políticas públicas para o turismo desenvolvidas no Brasil é a opção pela implantação de
magaprojetos turísticos em localizações próximas (e integradas aos) centros turísticos
potenciais ou já existentes. Segundo Cruz (2002, p. 79), duas características marcantes
da implantação de megaprojetos no Nordeste brasileiro são “a atuação do poder público
90
como empreendedor” e “a priorização da infra-estrutura hoteleira ante outros
equipamentos infra-estruturais turísticos”. Mais adiante, a autora segue:
A política de megaprojetos turísticos surgiu entre final da década de
1970 e início dos anos 80, influenciada pelo “modelo Cancún”, que
consiste na urbanização turística de trechos de costa pouco ou nada
urbanizados, com grande concentração do equipamento (Idem, p. 80).
Assim, é possível perceber a existência de semelhanças consideráveis entre o
chamado “modelo Cancún” e os projetos implantados no Nordeste em obediência às
políticas públicas nacionais para o turismo, principalmente quanto ao alinhamento à
política econômica neoliberal, à tentativa de aplicação da teoria dos pólos de
desenvolvimento ao turismo e ao modelo de urbanização turística adotado.
Não obstante, é necessário conceber tais projetos dentro de um contexto espaço-
temporal que lhe é próprio, não sendo possível afirmar, portanto, que tenha havido um
transplante puro e simples do modelo de planejamento turístico mexicano para as plagas
nordestinas. Houve sim um esforço em promover um ajuste espacial no qual a aplicação
do modelo esteve condicionada às especificidades territoriais e à capacidade de atração
dos investimentos do setor turístico para o Nordeste brasileiro.
Na obra México: una visión geográfica, Coll (2000, p. 92) brinda o seu leitor
com uma afirmação extremamente perspicaz acerca da importância que o turismo tem
na conformação recente da geografia nacional daquele país. Segundo a autora:
La actividad turística es hoy a la geografía nacional lo que fue la
mina en los siglos anteriores: promueve la utilización de regiones no
ocupadas, la creación de vías de comunicación, el saneamiento de
áreas inhóspitas, el nacimiento de ciudades de la nada y la dotación
de la infraestructura: agua, energía, población. Pero en este caso es
un fenómeno de los litorales, no de las grandes serranías.
Como se pode observar, o turismo é um importante elemento da história recente
do México e, para o bem ou para o mal, tem sido um instrumento de grande
significância na conformação da geografia daquele país.
Tal situação levou os organismos oficiais mexicanos ligados ao planejamento e
gestão do turismo a um status de excelência na elaboração de políticas públicas, ainda
mais quando pensadas dentro de um contexto de desenvolvimento capitalista.
Esta condição de referência em políticas públicas para o turismo atribuída a
entidades como Sectur (Secretaría de Turismo) e Fonatur (Fondo Nacional de Fomento
al Turismo) tem as suas raízes no sucesso avassalador de um projeto elaborado na
91
década de 1970 e que guiou o México ao protagonismo no setor turístico
latinoamericano: a Ciudad Cancún.
Mesmo cercada por controversos discursos, que são animados, de um lado, pelos
números vertiginosos de visitantes e ingressos financeiros, e, por outra parte, pelos
problemas advindos de um crescimento demográfico não previsto, a experiência de
Cancún é considerada modelo para o desenvolvimento do turismo de Sol e Praia na
América Latina.
No Brasil, a influência do “modelo Cancún” nas políticas públicas para o
turismo pôde ser percebida a partir da década de 1990, através da criação do Prodetur-
NE, cuja implantação dos projetos setoriais esteve atrelada à agenda neoliberal de
atração de investimentos, com base na prévia implantação de infraestrutura.
Assim como ocorrera no México, esse processo se deu através da consolidação
de um modelo de urbanização amparado em megaprojetos turísticos, implantados em
lugares escolhidos segundo uma regionalização turística baseada na teoria dos polos de
desenvolvimento e que privilegia as conveniências locacionais e normativas dos agentes
hegemônicos do turismo.
Neste sentido, embora diante do exposto, seja possível constatar a influência das
políticas públicas para o turismo aplicadas no México em relação ao Brasil, é verdade
também que tal fato não se deu na forma de um “transplante” do modelo caribenho para
o Nordeste brasileiro, mas sim como um ajuste espacial que permitiu moldar os
interesses de um mercado globalizado à realidade nacional/regional/local.
92
Capítulo 4
POLÍTICAS PÚBLICAS E URBANIZAÇÃO TURÍSTICA: O CASO DO
PRODETUR-NE E AS EXPERIÊNCIAS EM BALNEÁRIOS LITORÂNEOS DO
NORDESTE BRASILEIRO
A década de 1990 marcou o início de um período de grandes investimentos
públicos em infraestrutura turística no Brasil. Tendo como foco o incremento no
número de visitantes internacionais e nacionais, o Governo Federal, em parceria com o
poder executivo das unidades federativas e com entidades supranacionais de fomento,
lançou políticas regionais que visavam induzir novos investimentos privados em
turismo, entre os quais o Prodetur-NE (Programa para o Desenvolvimento do Turismo
na Região Nordeste), criado em 1994.
Para terem acesso ao programa, os governos estaduais nordestinos receberam o
encargo de produzir propostas para aplicação de recursos provenientes da parceria entre
bancos internacionais de desenvolvimento e a entidade estatal de fomento denominada
BNB (Banco do Nordeste do Brasil).
Tais propostas deveriam estar alinhadas, por sua vez, aos projetos de
regionalização do turismo em cada um dos nove estados federados, em cujas bases
foram gestadas propostas de articulação urbano-regional da atividade turística a partir
da criação de destinos-âncoras, ou seja, a transformação de determinadas nucleações
urbanas em localizações apropriadas à permanência e/ou dispersão de visitantes.
Para tanto, na virada do século anterior para o atual, escolhas seletivas
permitiram a dotação de investimentos que fomentaram um processo de urbanização
turística em pequenas e antigas localidades do litoral nordestino, transformando-as em
balneários altamente tecnicizados, articulados com os interesses hegemônicos do capital
internacional.
Este capítulo coloca em evidência, pois, o papel das políticas públicas para o
turismo na consolidação dos balneários de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte,
notadamente através do Prodetur-NE, ao passo que debate a urbanização turística como
fenômeno induzido e indutor por/de uma política de desenvolvimento regional. Como
exame subjacente, o capítulo visa ainda: (a) empreender um esforço no sentido de
compreender as bases teórico-metodológicas utilizadas na proposta de articulação
urbano-regional contida no Prodetur-NE e (b) discutir as noções de cidade e urbano,
93
buscando enquadrar as localidades em foco em uma tipologia urbana adequada, pondo
em destaque a influência dos programas de urbanização turística em tal compreensão.
4.1 Políticas públicas de turismo no Brasil e no Nordeste
A valorização do turismo como um componente do Produto Interno Bruto de um
país passa necessariamente pela adoção de políticas públicas que desembocam em ações
de planejamento e gestão do setor, o que implica, por sua vez, na criação de diretrizes
que dão um caráter específico ao modelo que se quer implantar. Em outras palavras, a
concepção de política pública adotada dá indícios da forma como o Estado e o capital
passam a dominar o espaço do turismo e as relações que são estabelecidas com a
sociedade, isto incidindo, em última instância, na forma como os territórios e as
territorialidades são construídos.
Segundo Höfling, em citação de Barreto, Burgos e Frenkel (2003, p. 33), uma
política pública é “o ‘Estado em ação’ (...); é o Estado implantando um projeto de
governo, através de programas, de ações voltadas para setores específicos da
sociedade”.
Ao realizar uma revisão de literatura sobre o tema, Souza (2006, p. 24), por sua
vez, menciona algumas das mais importantes contribuições no que tange ao conceito de
políticas públicas. A autora cita, entre outros teóricos, L. E. Lynn, que as define como o
“conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos”, e T. Dye, para
quem o referido termo diz respeito àquilo que “o governo escolhe fazer ou não fazer”.
Em todos os casos, fica patente que uma política pública, qualquer que seja,
efetiva-se como um ato deliberado, uma ação, cujo agente é o Estado. O que não se
expõe nas conceituações acima mencionadas é o debate – necessário – acerca dos
interesses que levam tal agente à execução de uma política pública, ou seja, o caráter
ideológico dessa ação empreendida pelo Estado.
Como é sobejamente sabido, a cada momento em que ocorrem transformações
nas formas capitalistas de produção e consumo, o papel do Estado e a sua expressão nas
distintas políticas que promove também tem que ser modificados ou reorientados
(HIERNAUX e LINDÓN, 1991). Assim, subjacente às políticas públicas repousa o
caráter ideológico da ação do Estado.
Para Moraes (2002, p. 19), o Estado, a partir da sua fase neoliberal, passa por
uma reforma nas suas bases, segundo a qual as suas entidades executoras são “(...)
supostamente ‘profissionalizadas’ e ‘despolitizadas’ por meio de um enfoque
94
‘gerencial’, voltado para o ‘cliente’, para os ‘resultados’, para a ‘qualidade do output’ e
não para a fidelidade das normas”.
Assim, nas últimas décadas, as políticas públicas tem se pautado em ações
típicas de um Estado que passa por um processo de reestruturação da sua capacidade de
atuação mais firme e propositiva junto ao mercado, tornando-se cada vez mais
intermediador dos interesses do capital.
Em se tratando das políticas públicas para o turismo, muitos são os autores que,
de forma mais ou menos acurada, dedicam-se à sua análise. Na grande maioria dos
casos, esse tipo de ação estatal é considerado a partir de uma visão que contempla o
turismo tão somente como uma atividade econômica. Isto implica em uma abordagem
míope do papel do Estado no planejamento e na gestão do turismo, não levando em
conta o caráter multidimensional da prática turística e, portanto, das múltiplas
implicações de uma política pública setorial.
Segundo Noia, Vieira Jr. e Kushano (2007, p. 25),
Uma política pública de turismo pode ser entendida como um
conjunto de intenções, diretrizes e estratégias estabelecidas no âmbito
do poder público, com vistas à manutenção e continuidade do
desenvolvimento da atividade turística num determinado território.
Para Beni (1998, p. 99), por sua vez, as políticas públicas voltadas para o
turismo devem ser assim definidas:
(...) conjunto de fatores condicionantes e diretrizes básicas que
expressam os caminhos para atingir os objetivos globais para o
turismo do país; determinam as prioridades da ação executiva
supletiva ou assistencial do estado, facilitam o planejamento das
empresas do setor quanto aos empreendimentos e as atividades mais
susceptíveis de receber apoio estatal. Ela deverá nortear-se por três
grandes condicionantes: o cultural, o social e o econômico, por mais
simples que sejam os programas, os projetos e as atividades a
desenvolver, por maiores ou menores que sejam as áreas geográficas
em que devam ocorrer, qualquer que seja suas motivações principais
ou setores econômicos aos quais possam interessar.
Embora as definições acima evidenciadas apresentem distintos graus de
detalhamento quanto àquilo que convém a uma política pública para o turismo, em
ambos os casos são enunciados elementos que enquadram este fazer estatal em um
continuum que vai do plano (intenções, diretrizes e estratégias), à atuação propriamente
dita (ação executiva supletiva ou assistencial). De qualquer modo, apenas a definição de
95
M. Beni reconhece uma relação entre o Estado e o mercado na conformação das
políticas públicas para o turismo.
No caso brasileiro, uma primeira iniciativa de caráter sistemático do Estado no
sentido de promover certa ordem no setor turístico remonta ao ano de 1938, quando foi
expedido o Decreto-Lei n. 406, que regulamenta a comercialização de passagens aéreas,
terrestres, marítimas e fluviais.
Para Cruz (2002, p. 43), tal evento constitui o marco inicial do que chama de
“pré-história (...) jurídico-institucional do turismo no país”, período caracterizado pela
adoção de políticas desconexas e restritas a aspectos específicos do turismo e cuja
duração se estende a 1966, quando é instituída, pelo Decreto-Lei n. 55, a primeira
política nacional de turismo, além da criação do Conselho Nacional de Turismo e da
Empresa Brasileira de Turismo.
Ao longo do período acima evidenciado, é possível verificar avanços e recuos na
tentativa de sistematizar os assuntos relativos ao turismo. Por um lado, o Governo
Federal sinalizava para uma ampliação do significado do setor, notadamente por meio
da criação de órgãos como a Divisão de Turismo (1939) e a Comissão Brasileira de
Turismo (1958), a Divisão de Turismo e Certames (1961). Por outra parte, revela-se
inconsistência nos atos administrativos, seja através da extinção ou mesmo por conta
das constantes mudanças de atribuições desses vários órgãos (re)criados.
O ano de 1966 definiu o início do período denominado por Cruz (opus cit., p.
43) como “história jurídico-institucional do turismo”. A partir daquele ano, houve uma
sensível mudança nos rumos do planejamento e gestão do turismo pelo Governo
Federal. A maior relevância atribuída ao setor advém, principalmente, da promulgação
da Política Nacional de Turismo, em cuja definição, contida no primeiro artigo do
Decreto-Lei n. 55, é afirmado:
Compreende-se como Política Nacional de Turismo a atividade
decorrente de todas as iniciativas ligadas à indústria do turismo, sejam
originárias do setor primário ou público, isoladas ou coordenadas
entre si, desde que reconhecido seu interesse para o desenvolvimento
econômico do país. (CRUZ, Idem, p. 49).
Embora apresente a política de turismo a partir de uma concepção fragmentária,
o referido Decreto-Lei instituiu as bases para o planejamento e gestão do turismo pelo
Estado brasileiro, seja através da criação do CNTur (Conselho Nacional de Turismo) e
da Embratur (Empresa Brasileira de Turismo), em cujas atribuições figuravam a
formulação das diretrizes a serem obedecidas na política nacional de turismo, pela
96
primeira entidade, e a proposição de atos normativos necessários à promoção de tal
política de turismo, pelo segundo órgão.
Vale a pena salientar que desde a expedição do decreto acima mencionado ao
início da década de 1970, nenhuma ação foi empreendida pelo Estado brasileiro no
sentido de dar seguimento ao processo de sistematização da prática, tampouco foi feita
qualquer menção ao turismo nos grandes planos nacionais de desenvolvimento
elaborados naqueles anos. Conforme Carvalho (2000, p. 101) afirma:
Em nenhum dos (...) planos e programas governamentais desse
período – Plano Decenal (1967-1976), Programa Estratégico de
Desenvolvimento (PED – 1968-1970), Metas e Bases para a Ação do
Governo (1970), I e II Plano Nacional de Desenvolvimento –, o
turismo recebeu tratamento explícito como atividade estratégica de
desenvolvimento econômico.
Ainda no contexto de criação da CNTur e da Embratur, foram gestadas as bases
para concessão de incentivos fiscais e o financiamento de investimentos privados –
com evidente privilégio àqueles ligados ao setor hoteleiro – que eram definidos por
pareceres dos dois órgãos federais. A gestão dos recursos era feita pelo Fungetur (Fundo
Geral de Turismo), criado em 1971 com o objetivo de “fomentar e prover recursos para
o financiamento de obras, serviços e atividades turísticas consideradas de interesse para
o desenvolvimento do turismo nacional” (BEZERRA, 2005, p. 100).
Após outro longo período de mudanças pouco significativas na política nacional
para o turismo, o Governo Federal deu os primeiros passos no sentido de adotar
modelos de caráter neoliberal ainda na segunda metade da década de 1980. Segundo
Bezerra (Idem, p. 101), o Decreto-Lei n. 2.294/1986 sinalizava que o setor deveria ser
organizado a partir de uma concepção que dava garantias à “liberdade do exercício e
exploração de atividades turísticas”, enquanto que à Embratur caberia fiscalizar a
atuação das empresas privadas.
A década de 1990 foi o período de consolidação das experiências de orientação
neoliberal no âmbito do turismo, como de todo o resto. Durante a gestão do binômio
Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1994)7, por exemplo,
foram promulgados, respectivamente, o Plantur (Plano Nacional de Turismo) e o PNMT
(Programa Nacional de Municipalização do Turismo), de cujas diretrizes foram traçadas
7 O presidente Fernando Collor de Mello iniciou o seu mandato em 15 de março de 1990, mas não o
concluiu. Após denúncias de corrupção, um resultado extremamente adverso em uma CPI (Comissão
Parlamentar de Inquérito) instaurada no Congresso Nacional e a baixa popularidade, viu-se obrigado a
renunciar. Em seu lugar, assumiu o vice-presidente Itamar Franco (PILAGALLO, 2009).
97
as principais propostas de planejamento e gestão do turismo constantes no PNT (1996-
1999), implementado logo depois, durante o primeiro governo do presidente Fernando
Henrique Cardoso.
Tanto o Plantur quanto o PNMT foram concebidos como políticas que tinham
entre os principais objetivos ampliar de forma considerável a participação do setor
privado no turismo nacional, implantando as bases para um movimento ainda mais
vigoroso de atração dos investidores particulares. Assim, o PNT (1996-1999) foi
gestado a partir de quatro macroestratégias (BEZERRA, Ibdem):
Implantação de infraestrutura básica e turística;
Capacitação profissional, com vistas à melhoria da qualidade dos serviços
prestados.
Adequação do turismo ao mercado mundial, via modernização da legislação e
descentralização da gestão;
Promoção da imagem do país como forma de alavancar a prática turística em
âmbito interno e externo.
Com isto, buscava-se criar um ambiente favorável e quase que totalmente dócil à
atuação das empresas do setor turístico. O Estado se responsabilizou pela adequação do
país às exigências do mercado turístico através da continuidade da tarefa de promover
dotação de infraestrutura, ao tempo em que se amplia a oferta de mão de obra
qualificada e são gerados os marcos institucionais que favoreceram a atuação das
entidades privadas ligadas ao setor.
Ao longo das décadas iniciais do século XXI, a despeito da mudança político-
ideológica para a vertente de centro-esquerda, ocorrida com as eleições do presidente
Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010) e de sua sucessora, Dilma Roussef
(a partir de 2011), a proposta governamental para o setor turístico tem sido a de
consolidar as ações gestadas no período anterior, salvo por algumas correções de curso
implementadas em cada um dos planos nacionais de turismo recentemente publicizados.
Dentre as mudanças mais significativas ocorridas ao longo da gestão do
presidente Lula para o setor, e que, a princípio, apontavam para um amplo processo de
reestruturação do planejamento e gestão do turismo, vale destacar a criação, em 2003,
do MTur (Ministério do Turismo). Atrelado a esse ato administrativo, foi lançado o
Plano Nacional de Turismo referente ao período 2003-2007.
98
O dito documento é estruturado, como aponta Fernandes (2007, p. 45), a partir
da elaboração de “um diagnóstico de problemas e propõe diretrizes, metas e
macroprogramas norteadores do turismo no período indicado”. Seu principal plano de
ação é o PRTur (Programa de Regionalização do Turismo), cujo objetivo principal é a
identificação de regiões turísticas.
Neste sentido, tal processo de regionalização é considerado como política
pública setorial que propõe “olhar além do município, para fins de planejamento,
gestão, promoção e comercialização integrada e compartilhada”, com vistas a “um
maior aproveitamento dos recursos financeiros, técnicos e humanos a fim de que se
possam criar condições e oportunidades para revelar e estruturar novos destinos
turísticos (...)” (BRASIL, 2007, p. 12).
Quanto ao PNT 2007-2010, lançado no segundo mandado do presidente Lula, é
um plano estruturado como uma continuidade em relação ao documento que o antecede,
inclusive na manutenção das diretrizes delineadas para o PRTur e na proposta de
avaliação das ações realizadas entre 2003 e 2007.
A mudança mais sensível que se pôde observar no PNT 2007-2010 é o fato
desse último plano da gestão do presidente Lula ter sido elaborado como um documento
complementar ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o que, de certa
forma, determinou a sua orientação para o combate às desigualdades sociais e regionais
através da distribuição de renda (BRASIL, 2006).
Na gestão da presidente Dilma Roussef, as políticas públicas de turismo são
orientadas pelas diretrizes traçadas no documento intitulado Turismo no Brasil 2011-
2014, cujas formulações principais estão contidas em três eixos, quais sejam: (a)
Diagnóstico, levando-se em consideração o ambiente econômico e o mercado turístico
em escala nacional e internacional; (b) Cenários e Projeções, indicando as
possibilidades de ganho de competitividade do país e; (c) Proposições, pelas quais se
debatem questões referentes ao planejamento e gestão, qualificação, infraestrutura e
apoio à comercialização, entre outros temas (BRASIL, 2010c).
Além disso, o documento versa sobre todo o processo de preparação do
receptivo brasileiro para a Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro
(2016), com ênfase na infraestruturação das cidades-sedes de ambos os eventos e
naquelas localidades que, de alguma forma, poderão se beneficiar da grande demanda
turística prevista.
99
Um aspecto relevante dos planos nacionais é a sua vinculação com a abordagem
geográfica, notadamente no que diz respeito aos arranjos espaciais onde o Estado, em
aliança com os agentes econômicos, projeta e executa a sua ação. A tentativa de
estabelecer tais vínculos, observáveis no uso de termos como espaço, região e território
nos textos dos planos, se faz, em geral, de modo conceitualmente frágil.
Autores como Cruz (2002; 2005; 2006), Coriolano e Silva (2005), Rodrigues
(2006), Fernandes (2007) e Pereira Junior (2008), entre outros, já sinalizaram para a
necessidade de um olhar sobre a relação entre a ação do Estado na organização do
turismo e a sua vinculação com a abordagem geográfica, afinal as políticas públicas são
vetores de reestruturações territoriais produtivas.
Em uma análise sintética, Pereira Junior (2008), por exemplo, formulou uma
periodização das políticas públicas para o turismo no Brasil, segundo a qual, até 2003, a
unidade espacial de referência era o município, com oferta concentrada e pouco
diversificada (378 municípios turísticos e outros 1.465 considerados com potencial
turístico) e fraca atuação governamental na promoção e comercialização dos destinos.
Por outro lado, entre 2003 e 2007, a região, formada a partir da construção de redes de
arranjos produtivos entre municípios, passou a ser a unidade espacial de atuação, com o
fortalecimento dos destinos-polos, descentralização dos fóruns de decisão, maior foco
mercadológico e maior participação na construção e ordenamento das propostas de
regionalização do turismo.
No que concerne ao primeiro período, tem-se uma lógica centrada no município,
posto que o PNMT (Programa Nacional de Municipalização do Turismo), implantado
como parte do Plano Nacional de Turismo referente aos anos de 1996 a 1999, ainda na
primeira gestão do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, tinha como objetivo
fomentar a transferência de responsabilidade de criar e investir no turismo para essas
unidades político-administrativas da Federação (ROCHA e ALMEIDA, 2008).
Para Cruz (2005, p. 38), nas políticas públicas brasileiras voltadas para o
turismo, há uma relação dialética de uso e negligenciamento do território. Segundo a
autora,
(...) de um lado, enquanto se prioriza os territórios eleitos pelo turismo
com obras e normalizações de uso, se negligencia outras porções de
território, não raras vezes abandonadas à própria sorte. De outro, os
territórios usados pelo turismo são, também, paradoxalmente
negligenciados, pois o que é usado é o seu potencial passível de
exploração pelo turismo e negligenciada, simultaneamente, a sua
condição primeira de lugar de reprodução da vida.
100
Assim, se as políticas públicas em exame delineiam as diretrizes para o
ordenamento territorial do turismo, tal modelo de intervenção acaba por incidir apenas
naquilo que é relativo aos interesses do mercado, sem se ater ao espaço como uma
totalidade.
Isto tudo põe em evidência a necessidade de debater, no âmbito desta tese, as
implicações territoriais do Prodetur-NE, especialmente no que concerne à participação
dos estados e municípios envolvidos na dita política pública, assim como naquilo que se
refira às ações de ordenamento territorial e intervenções urbanísticas aplicadas às
localidades em exame.
4.2 O Prodetur-NE, suas características e implicações no território
Qualquer esforço para compreender a formação de territórios do turismo no
litoral nordestino passa necessariamente pelo exame crítico do chamado Prodetur-NE,
um vigoroso plano de ação lançado em 1994 com o intuito de fomentar destinos
turísticos potenciais e consolidados nos nove estados da região.
O ponto de partida para a criação do Prodetur-NE foi o ano de 1991, quando a
Embratur (Instituto Brasileiro do Turismo) elaborou uma pesquisa de demanda turística
internacional com objetivo de identificar os fatores mais preponderantes para o fraco
desempenho do setor na economia nacional. Segundo Casimiro Filho (2002), os
resultados apontaram o Nordeste como a região mais competitiva do país, visto que
cerca de 35% dos turistas estrangeiros afirmavam preferir as capitais daquele fragmento
do território do Brasil.
Por outro lado, o estudo apontou a existência de fatores inibidores do setor
turístico no Nordeste. Segundo o levantamento realizado, os principais entraves ao
pleno desenvolvimento do turismo na região seriam a falta de infraestrutura urbana e
turística, o pequeno investimento na promoção dos destinos no exterior, a baixa
qualificação da mão de obra e a escassez de recursos para o financiamento de iniciativas
do setor privado.
O Estado brasileiro, através da Embratur e dos governos estaduais do Nordeste,
lançou o Programa para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste. Segundo consta
do Relatório Final da primeira fase do projeto, o Prodetur-NE foi criado com o intuito
de “contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do Nordeste do Brasil por meio
do desenvolvimento da atividade turística” (BRASIL, 2005, p. 5), através “de iniciativas
do setor público em infra-estrutura básica e desenvolvimento institucional voltadas
101
tanto para a melhoria das condições de vida das populações beneficiadas, quanto para a
atração de investimentos do setor privado (...)”.
Conforme Rodrigues (2001, p. 156) aponta:
(...) o Prodetur, como todos os programas políticos, espelha a política
econômica da sua época, vinculada à ideologia dominante. É no
governo F.H.C. que o programa está deslanchando, porque tanto o
presidente como os governadores estaduais do NE estão muito
interessados na sua implantação, cujas diretrizes estão orquestradas
com a política neoliberal vigente no país.
Neste sentido, tendo sido gestado sob forte influência do “modelo Cancún”, o
Prodetur-NE não poderia deixar de refletir as características que tornaram o balneário
mexicano um exemplo de sucesso em termos da captação de investimentos e turistas,
notadamente no que diz respeito à aproximação do Estado com o capital privado,
segundo o qual o primeiro assenta as bases materiais e simbólicas para a atuação o
quanto menos arriscada possível do segundo.
No que tange à dimensão operacional do programa, Paiva (2010, p. 204) indica a
existência de quatro macroestratégias, quais sejam:
a) a captação de agentes imobiliários internacionais; b) a necessidade
de manter fluxos de viajantes estrangeiros que garantam a ocupação;
c) desfrute da infraestrutura turística disponível; e a estratégia de
melhoria da infraestrutura urbana das cidades beneficiadas (rodovias,
saneamento ambiental e embelezamento urbano).
Os projetos e ações a serem implementados no âmbito do Prodetur foram
selecionados a partir das Estratégias de Desenvolvimento Turístico apresentadas por
aqueles estados nordestinos que aderiram ao programa. Em outras palavras, a captação
de recursos por parte das unidades federativas dependia da apresentação prévia de
projetos, deixando patente que, já no nascedouro, o Prodetur-NE denota a forte
articulação por parte dos entes federativos.
No que concerne aos recursos destinados à implementação dos projetos
encaminhados pelas secretarias estaduais de turismo, o Estado e o Banco Interamericano
de Desenvolvimento firmaram um convênio segundo o qual a entidade financeira
tornou-se responsável pelo aporte de cerca de US$ 1,07 bilhão, enquanto outros US$
530 milhões resultaram de contrapartida nacional (BRASIL, 2004a), a cargo do Banco
do Nordeste do Brasil. Tal montante foi aplicado ao longo das duas etapas do Prodetur-
NE.
102
Durante o período de execução do Prodetur-NE I, entre 1994 e 2002, os
investimentos estiveram concentrados em obras de implantação e melhoria de rodovias,
recuperação do patrimônio histórico, ampliação e modernização de aeroportos, serviços
de saneamento ambiental (esgotamento e abastecimento de água), programas de
preservação ambiental e estruturação e capacitação de órgãos governamentais
(desenvolvimento institucional). Essas metas foram atingidas em maior (recuperação do
patrimônio histórico, com 99,9% das obras executadas) ou menor grau de eficácia
(desenvolvimento institucional, com 46% dos programas realizados), a partir da
utilização de cerca de US$ 670 milhões (CASIMIRO FILHO, 2002).
Por outro lado, ao longo do período de execução do Prodetur-NE II, iniciado em
2003 e ainda vigente, os investimentos tem sido carreados para projetos de consolidação
das ações realizadas na etapa anterior, mitigação das implicações ambientais
decorrentes das obras já realizadas, mas principalmente, na capacitação e qualificação
de mão de obra. Os recursos destinados à consecução dessas metas foram de cerca de
US$ 400 milhões (BRASIL, s/d).
Na segunda etapa do Prodetur-NE, os governos estaduais foram convocados a
criarem Polos de Turismo, definindo as ações prioritárias a serem realizadas através dos
chamados PDITS (Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável),
considerando os seguintes aspectos:
Definição da área de planejamento e da estratégia de desenvolvimento do
turismo;
Diagnóstico econômico, social, ambiental e demográfico do Polo;
Avaliação do provimento de serviços públicos, em termos de infraestrutura e
capacidade administrativa do estado e municipalidades;
Estimativa da demanda vigente e potencial de turistas, com previsão de
impactos;
Plano de ação incluindo investimentos públicos e privados necessário ao alcance
das metas;
Análise de impactos das ações e investimentos realizados com provimento
financeiro do Prodetur-NE I.
103
A formulação dos PDITS redimensionou as regiões turísticas do Nordeste, o que
incidiu no estabelecimento de novos arranjos territoriais por parte dos estados
envolvidos, com consequência direta nos municípios e lugares dominados pela prática.
4.2.1 A participação dos estados e municípios no Prodetur-NE
Embora o Prodetur-NE tenha sido um programa idealizado a partir de uma
aliança estratégica estabelecida entre o Estado brasileiro, na sua esfera federal, e o
Banco Interamericano de Desenvolvimento, uma entidade financeira de caráter
supranacional, as unidades federativas contempladas tiveram relevante papel na
consecução dos planos e metas traçados.
Assim, a atuação dos governos estaduais no que concerne à efetivação do
Prodetur-NE esteve circunscrita à escolha dos destinos turísticos prioritários, ao
planejamento das ações consideradas mais relevantes para o desenvolvimento do
turismo naquelas localidades, à implantação ou consolidação das suas entidades oficiais
e execução das obras. Sobre tal participação dos estados nos assuntos do Prodetur-NE,
Paiva (2010, p. 208) afirma:
Para atender ao programa analisado, a condição do BID e do BNB era
que cada estado nordestino implantasse uma unidade executora
estadual (UEE), a qual caberia elaborar e acompanhar projetos e ações
relativas ao programa. Outra condição colocada pelo BID e pelo BNB
como essencial para a liberação dos recursos do programa consistiu no
fortalecimento institucional.
Ademais, em paralelo aos trabalhos acima mencionados, coube aos estados, em
parceria com Embratur, Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e
Microempresas) e CTI/NE (Comissão de Turismo Integrado do Nordeste), promoverem
ações voltadas à captação de investimentos privados (PAIVA, 2010), principalmente
aqueles ligados aos setores hoteleiro e de parques temáticos.
Ainda segundo Paiva (opus cit.), a despeito do caráter homogeneizante das
proposições oriundas das entidades à frente do processo de turistificação dos estados
nordestinos no que diz respeito à conduta das ações formuladas no âmbito do Prodetur-
NE, houve certa flexibilidade quanto às atividades de planejamento e gestão do turismo
por parte dos órgãos estaduais. Neste sentido, à cada estado foi permitido formular
propostas segundo suas potencialidades mais relevantes.
Na Bahia, o governo estadual definiu um modelo de turismo que buscou
integrar as esferas socioeconômica, cultural e ambiental, fortalecidas a partir de uma
104
maior valorização dos aspectos identitários da população como o principal elemento de
referência.
Neste contexto, o governo estadual elaborou a sua própria versão do programa
nacional de desenvolvimento do turismo, o chamado Prodetur-BA (Programa de
Desenvolvimento Turístico da Bahia), cujo objetivo, segundo aponta Sobrinho (1998, p.
91), “é dotar o Estado das condições necessárias para o perfeito aproveitamento de suas
potencialidades naturais, históricas e culturais, ordenando o espaço territorial e
definindo as ações necessárias para o desenvolvimento do turismo”.
A esta entidade coube definir as localidades onde foram implantados os centros
turísticos integrados, com especial atenção àquelas localizadas no litoral. Ainda segundo
Sobrinho (opus cit.), os critérios estabelecidos para a escolha de tais localidades foram a
situação socioeconômica vigente e as vantagens locacionais, notadamente no que tange
à proximidade em relação ao Aeroporto Internacional de Salvador e as facilidades de
acesso rodoviário.
Como parte dos trabalhos realizados no âmbito do Prodetur-BA, a Bahiatursa
(Empresa de Turismo da Bahia), empresa de economia mista vinculada à Setur-BA
(Secretaria de Turismo) delimitou as sete primeiras zonas turísticas baianas8, com seus
respectivos destinos-âncoras: Baía de Todos os Santos (Salvador), Chapada Diamantina
(Lençóis), Costa das Baleias (Prado), Costa do Cacau (Ilhéus), Costa do Dendê (Morro
de São Paulo), Costa do Descobrimento (Porto Seguro), Costa dos Coqueiros (Praia do
Forte).
No que tange aos projetos de intervenção urbanística, tal incumbência coube
principalmente à Conder (Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia),
uma autarquia estadual atualmente vinculada à Sedur (Secretaria de Desenvolvimento
Urbano).
Mais recentemente, como parte dos esforços de adequação do modelo de
regionalização adotado às premissas do Prodetur-NE II, foram criados os Polos de
Turismo, alguns deles sendo formados pela junção daqueles preexistentes. Estes, por
sua vez, passaram a serem geridos pelos PDTIS, entre os quais o de Salvador e Entorno,
que agrega, como destinos turísticos, a capital estadual e os demais municípios
8 Além destas, foram criados os polos Caminhos do Oeste, Caminhos do Sertão, Lagos do São Francisco
e Vale do Jiquiriçá. Atualmente, outros dois estão em processo de implantação: Caminhos do Sudoeste e
Vales do São Francisco, que passa por um processo de desmembramento em relação à região que hoje é
denominada de Lagos e Cânions do São Francisco.
105
componentes da zona Baía de Todos os Santos, além daqueles que formam a Costa dos
Coqueiros, da qual Praia do Forte faz parte (Figura 11).
Em Pernambuco, a elaboração dos programas estratégicos voltados para o
desenvolvimento do turismo no estado a partir do Prodetur-NE passou pela aceitação
de um modelo que integra principalmente os elementos culturais e a modalidade Sol e
Praia como eixos prioritários.
Inicialmente, a proposta pernambucana era de atuação conjunta com o estado de
Alagoas, o que resultaria na conformação do Projeto Costa Dourada, cuja previsão era
“desenvolver o turismo em um trecho (...) do litoral nordestino situado entre os
Municípios de Cabo de Santo Agostinho (sul de Pernambuco) e Paripueira (norte de
Alagoas)” (CORDEIRO, 2007, p. 76). Fadado ao fracasso pela desarticulação entre os
governos dos entes envolvidos e pela falta da contrapartida alagoana para aquisição dos
recursos junto ao BID, o Projeto Costa Dourada teve apenas um resultado pontual, que
foi a implantação do Centro Turístico de Guadalupe, localizado no extremo sul do
litoral pernambucano.
Em 1998, o governo estadual levou a público o programa denominado Macro
Estratégia Turística para o Estado de Pernambuco (CARVALHO, 2009), no qual
constavam as principais ações e diretrizes que alinhavam o discurso oficial da
mencionada unidade federativa às premissas apontadas pelo Estado nacional, desde
Brasília.
Neste contexto, coube à Empetur (Empresa de Turismo de Pernambuco), em
parceria com o Condepe (Instituto de Planejamento de Pernambuco), a tarefa de criar as
diretrizes para o desenvolvimento da prática, enquanto que a Fidem (Fundação de
Desenvolvimento Municipal) ficou incumbida de produzir o plano diretor da região
turística dimensionada no projeto, cujos municípios componentes eram basicamente os
da RMR (Região Metropolitana do Recife), além de outros do entorno (BRAGA, 2000).
Dez anos depois, a Empetur lançou o programa Pernambuco para o Mundo,
com prazo de ação entre 2008 e 2020. Entre os objetivos principais, figura a
implementação de ações que visam consolidar os projetos lançados para o
desenvolvimento turístico delineados pelo Prodetur para o litoral do estado.
Além disso, o programa previu a criação de polos turísticos segundo distintos
níveis de desenvolvimento. Tal escalonamento dos ditos destinos turísticos visa definir
as áreas prioritárias onde as ações devem ser implementadas. Desta forma, os polos
foram demarcados em consonância com as diretrizes constantes no Quadro 01.
106
Figura 11. Polo de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável Salvador e Entorno.
107
Quadro 01. Níveis de desenvolvimento e respectivos municípios participantes, de acordo com o Programa Pernambuco para o Mundo (2008-2020).
Nível Características Municípios participantes
I.
Destinos turísticos já consolidados no estado de Pernambuco, mas que precisam ser aprimorados; São os principais destinos turísticos do estado, mas que apresentam sérios problemas estruturais; Prioridade em ações de curto prazo.
Distrito Estadual de Fernando de Noronha; Jaboatão dos Guararapes; Ipojuca; Olinda; Recife
II. Constituído por áreas que possuem grande potencial como importantes destinos turísticos para o estado; São principalmente destinos de Sol e Praia, mas que também agregam elementos naturais e culturais de valor turístico, porém sem estruturação.
Barreiros; Cabo de Santo Agostinho; Carpina; Goiana; Igarassu; Itamaracá; Itapissuma; Lagoa do Carro; Nazaré da Mata; Paudalho; Paulista; Rio Formoso; São José da Coroa Grande; Sirinhaém; Tamandaré; Tracunhaém; Vicência
III. Estão aí agregados os municípios que possuem algum fluxo turístico e apresentam potencial para a ocorrência da prática, mas não com baixa capacidade de organização; Destinos que atualmente atraem fluxos majoritariamente locais e regionais; Destinos carentes em infraestrutura e organização estratégica.
Bezerros; Bonito; Brejo da Madre de Deus; Caruaru; Garanhúns; Gravatá; Petrolina.
IV. Composto por localidades com restrito desenvolvimento da prática e pouca estruturação para o turismo; Possuem relativa atratividade para atrair fluxos locais e regionais; São áreas que devem ser desenvolvidas ao longo do período de execução do plano.
V. Categoria que agrega os municípios com algum potencial, mas que não apresentam qualquer tipo de organização ou estrutura para o desenvolvimento da prática turística. São municípios cujo desenvolvimento do turismo não deve figurar como ação deste plano, mas sob previsão de investimentos futuros.
Afogados da Ingazeira; Belo Jardim; Bom Conselho; Camaragibe; Lagoa Grande; Moreno; Palmares; Poção; Quipapá; Saloá; Santa Cruz da Baixa Verde; Santa Cruz do Capibaribe; Santa Maria da Boa Vista; São Benedito do Sul; São José do Belmonte; São José do Egito; Taquaritinga do Norte; Toritama.
Fonte: Elaboração própria, com base em Carvalho (2009).
108
Atualmente, seguindo a diretriz que determina a criação dos PDTIS, o Governo
de Pernambuco implantou o Polo Costa dos Arrecifes, que é composto pelos municípios
de Barreiros, Cabo de Santo Agostinho, Goiana, Igarassu, Ipojuca (do qual Porto de
Galinhas faz parte), Itamaracá, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Paulista,
Recife, Rio Formoso, São José da Coroa Grande, Sirinhaém e Tamandaré, além do
Distrito Estadual de Fernando de Noronha (Figura 12).
A via de adequação do estado do Rio Grande do Norte às diretrizes do Prodetur-
NE foi a de vinculação quase que absoluta do turismo ao modelo Sol e Praia,
notadamente no chamado Litoral Oriental Potiguar, onde a prática turística já estava
consolidada antes mesmo da implantação das políticas públicas aqui analisadas
(FONSECA, 2005).
Como demonstração da articulação plena entre os entes federal e estadual na
consolidação do turismo potiguar, foi implantado o Prodetur-RN (Programa de
Desenvolvimento do Turismo no Rio Grande do Norte) durante a segunda metade da
década de 1990. À semelhança das propostas desenvolvidas pelos congêneres baiano e
pernambucano, a versão norte-riograndense do Prodetur ficou incumbida de, por um
lado, desenvolver as propostas de requalificação dos destinos turísticos, inclusive no
que concerne à execução das obras, e, por outra parte, da captação de investimentos
privados e promoção do estado para o mercado turístico.
O desenvolvimento das propostas de requalificação dos destinos turísticos, a
cargo da Setur-RN (Secretaria de Turismo do Estado do Rio Grande do Norte) foi
precedida pela criação do projeto de regionalização, que resultou na implantação do
Polo Costa Branca e Polo Costa das Dunas9.
Assim como nos casos anteriores, visando adequar o planejamento turístico
estadual às diretrizes apontadas no Prodetur-NE II, o governo potiguar deu início à
elaboração dos PDITS do estado. Até o presente momento, apenas o Pólo Costa das
Dunas tem concluído este estudo, que contempla, em sua área de planejamento, os
municípios de Arês, Ceará-Mirim, Extremoz, Natal, Nísia Floresta, Parnamirim, São
Gonçalo do Amarante, Senador Georgino Avelino, Tibau do Sul (onde está localizada a
Praia da Pipa), além de Baía Formosa, Canguaretama, Macaíba, Maxaranguape, Pedra
Grande, Rio do Fogo, São Miguel do Gostoso, Touros e Vila-Flor, que não fazem parte
9 Além destes, atualmente o estado do Rio Grande do Norte possui as regiões turísticas denominadas Polo
Seridó, Polo Serrano e Polo Agreste/Trairi.
109
Figura 12. Polo de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável Costa dos Arrecifes.
110
do polo na sua constituição original, conforme indicado por Ferreira e Gomes (2011) e
verificável na Figura 13.
No que tange aos municípios que compõem as regiões turísticas dos estados da
Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte aqui mencionadas, fica patente que a
participação desses entes no planejamento e execução das diretrizes do Prodetur/NE é,
na grande maioria das vezes, meramente consultiva.
A principal ação no sentido de dotar os municípios de certa capacidade de
interferência nas ações governamentais relativas ao desenvolvimento da prática turística
foi a criação dos conselhos de turismo, tanto no âmbito local, quanto na escala de
atuação do PDTIS.
Assim, a despeito do discurso favorável à descentralização da organização do
turismo constante no PNMT, notadamente quanto à defesa da formação de órgão,
conselho e fundo municipais de turismo, o que se pode apreender é que os municípios e
seus habitantes tiveram pouca ou nenhuma capacidade decisória no processo de
consolidação do Prodetur/NE, em ambas as etapas de execução.
Segundo Brandão (2010, p. 86):
(...) percebe-se a ausência de proximidade entre as ações propostas
pela Política Nacional de Turismo, por intermédio do Plano Nacional,
e as ações elaboradas e implementadas pelos Estados e municípios,
revelando que mesmo diante das mudanças conquistadas, no geral as
esferas públicas e a sociedade civil ainda encontram-se desarticuladas.
Mais do que uma mera desarticulação por parte dos entes federativos, como
sugere a autora acima, o que ocorre, de fato, é um processo de intensa hierarquização e
concentração dos fazeres relativos ao planejamento e gestão do turismo, em uma lógica
piramidal, segundo a qual toda e qualquer decisão deva partir, primordialmente, da sua
parte superior.
4.3 O Prodetur-NE e as principais ações ligadas ao ordenamento territorial e
urbanização turística
Para Ferreira e Gomes (2011), tratando de apresentar o programa de forma
sintética, mais do que um mero canal de financiamento de obras de infraestrutura
turística, o Prodetur é o instrumento principal de proposição das diretrizes de
ordenamento territorial do turismo para o Nordeste. Significa afirmar que por trás do
programa governamental haveria toda uma busca pelo controle ordenado do território a
111
Figura 13. Polo de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável Costa das Dunas.
112
partir de uma base econômica – ou “vocação”, termo amplamente empregado – que, no
caso, é o turismo.
O ordenamento territorial, segundo Moraes (2005b, p. 45),
(...) diz respeito a uma visão macro do espaço, enfocando grandes
conjuntos espaciais (biomas, macrorregiões, redes de cidades, etc) e
espaços de interesse estratégico ou usos especiais (zona de fronteira,
unidades de conservação, reservas indígenas, instalações militares,
etc). Trata-se de uma escala de planejamento que aborda o território
nacional em sua integridade, atentando para a densidade da ocupação,
as redes instaladas e os sistemas de engenharia existentes (de
transporte, comunicações, energia, etc). Interessam a ele as grandes
aglomerações populacionais (com suas demandas e impactos) e os
fundos territoriais (com suas potencialidades e vulnerabilidades),
numa visão de contigüidade que se sobrepõe a qualquer manifestação
pontual no território.
Para o autor, o ordenamento territorial visa fornecer um diagnóstico de base
geográfica do território, oferecendo indicativos de tendências e apontando potenciais e
demandas, o que leva, assim, à composição de um quadro demonstrativo das formas de
atuação das políticas públicas setoriais. O ordenamento territorial se constitui, portanto,
em um instrumento de articulação transsetorial e interinstitucional que objetiva um
planejamento integrado e espacializado da ação do poder público.
Ainda segundo o A. Moraes, diferente de outros momentos históricos do país,
quando as propostas de ordenamento territorial sofreram influência tanto da escola
francesa do aménagement du territoire (pré-Ditadura Militar) quanto pela ciência
regional norte-americana, de base quantitativista (durante e pós-Ditadura Militar),
estando amparadas, portanto, em um planejamento de grande conteúdo territorial, na
atualidade, vive-se um quadro de setorização das políticas públicas.
Esta visão é compartilhada por Costa (2005), que afirma que as atuais políticas
territoriais concebidas em escala nacional tendem à fragmentação, posto que visem
atender à crescente especialização dos aparelhos estatais e à setorização dos planos, ao
tempo em que buscam dar amparo à variedade de demandas existentes.
Além das questões acima abordadas, há um elemento que intervém de modo
basilar na forma de conduzir as políticas de intervenção no território: diante das
transformações atinentes à passagem do fordismo para o pós-fordismo, o Estado,
segundo Hiernaux e Lindón (1991), é forçado a promover políticas territoriais novas,
que amparam o atual modelo de acumulação. De acordo com os autores:
La necesidad de una nueva intervención del Estado en el territorio,
surge claramente cuando se considera que la estructura territorial
113
vigente, es el reflejo de formas históricas de estructuración territorial,
cuya última manifestación ha sido un modelo de acumulación
‘protegida’ por el Estado y canalizada al mercado interno, en el
marco de fuertes transferencias del Estado, tanto al capital como a la
subsistencia del sistema social y su estabilidad. En términos un tanto
simplificadores, se puede afirmar que el modelo centralizador, con
una fuerte concentración territorial, ha sido el paradigma socio-
territorial dominante y preferencial de esa fase del modelo de
acumulación (Idem, p. 19).
Ainda segundo os autores, a estrutura territorial atual, seja em escala
interregional ou mesmo na intraurbana, já não responde às novas necessidades de
acumulação, o que, no caso, significa produzir e reproduzir um novo território através
de um novo “pacto social” que envolve o Estado, o capital e a sociedade.
Por outro lado, Santos (2005), em sua análise da história recente das políticas
territoriais no Brasil, aponta que a concepção de ordenamento territorial
tradicionalmente posta é voltada tão somente para o incremento da economia e, de
forma correlata, para a implantação da infraestrutura necessária a tal feito. Tal modelo
evidencia o papel e o poder da cidade como indutor do crescimento econômico.
Como exemplos dessa concepção de política territorial, T. Santos cita as
estratégias constantes nos documentos Eixos Nacionais de Desenvolvimento (1994-
2002) e Avança Brasil (1998-2002), sobre os quais comenta:
Contemplavam, ao mesmo tempo, mecanismos de indução não só à
interiorização do desenvolvimento como também à concentração de
esforços em áreas e segmentos capazes de gerar efeitos mais
significativos sobre o restante da economia. Esta condição
privilegiava os subespaços nacionais que já possuíam vantagens
comparativas, com nítida tendência à concentração ainda maior de
atividades nas regiões mais desenvolvidas e, portanto, mais
densamente ocupadas. Nessas circunstâncias, a urbanização se
apresentava como pré-condição para a criação de oportunidades de
desenvolvimento além do nível de subsistência, aproveitando-se das
economias de aglomeração, condição fundamental para o almejado
crescimento (Idem, p. 49).
Desta forma, tendo sido implantado nesse contexto, já que foi publicizado em
1994, o Prodetur-NE – como política pública setorial que é – reflete, em vários
aspectos, as concepções acima aventadas.
Cabe salientar que, embora o programa em tela seja uma política territorial cujos
desdobramentos se dão em escala regional, a sua concepção, baseada na formação de
polos turísticos (chamados, em alguns contextos, de destinos-âncoras), acaba por
114
privilegiar as nucleações urbanas como locus de difusão das consequências do
desenvolvimento turístico.
Neste sentido, a política de turismo se confunde com política urbana (CRUZ,
2002), na medida em que o Estado busca tornar atrativas as localidades selecionadas
para o desenvolvimento da prática turística através da implantação de projetos de
urbanização turística.
Isto posto, fica evidente que a compreensão do processo de urbanização turística
como um dos componentes da formação de territorialidades que abrigam agentes
econômicos, turistas e habitantes dos balneários litorâneos do Nordeste brasileiro passa
necessariamente pelo entendimento dos conceitos relativos à cidade, ao
urbano/urbanização e à urbanização turística.
Neste sentido, ao investigar núcleos que, graças à sua importância estratégica
para o mercado turístico regional e nacional, sofreram intervenções de requalificação do
espaço que, em última instância, induziram novas formas de urbanidade, cabe refletir
sobre tais centros a partir das contribuições legadas por vários autores – geógrafos e não
geógrafos – que se dedicaram ao exame do fenômeno urbano, ainda que a estrutura
urbana das aglomerações em foco não permita concebê-las como cidades.
Pensadas apenas a partir dos aspectos formais, ao menos no caso brasileiro, as
localidades em estudo não poderiam ser chamadas de cidades. No conjunto de
nucleações que constituem a hierarquia urbana nacional, os balneários de Pipa, Porto de
Galinhas e Praia do Forte são considerados vila – para a primeira localidade – e
povoados – para as demais.
No Brasil, cujo critério de definição é, segundo Clark (1985), de base legal,
administrativa e governamental, um núcleo urbano recebe a denominação de cidade
apenas quando é sede de município, isto independente das suas características
demográficas, funcionais ou do modo de organização produtiva. As vilas, por sua vez,
são as sedes dos distritos que compõem um município, enquanto que os povoados são as
nucleações localizadas em distritos, mas que não possuem vínculos de gestão do
território de qualquer tipo.
Segundo Souza (2005), buscando analisar a noção de cidade para além dos seus
aspectos meramente formais, tal forma espacial se diferencia dos povoados e, por
extensão, das vilas, pela natureza centrípeta da sua centralidade. Em outras palavras, os
elementos que constituem o caráter e a identidade da cidade estão voltados para o
115
centro. Os povoados e vilas, ao contrário, tem nas suas bordas os elementos mais
significativos na constituição das relações sociais e econômicas.
Assim, ao atrair – mais que expulsar – fluxos de capital, bens, produtos e
pessoas, localidades como Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte, cujo conjunto de
relações se enquadram em um modo que as aproximam das características de urbes, não
poderiam ser chamadas de cidades de fato, ainda que não as fossem por direito?
Para Silva (2004, p. 23), um distrito municipal cuja base econômica esteja
assentada na prática do turismo – como nos casos de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do
Forte – deve ser considerado genericamente como “cidade turística”, distinguindo-a de
um “lugar” ou “localidade turística”, termos com pouca fidelidade à delimitação
espacial da prática turística e que se enquadrariam muito mais, por aproximação, à
noção de município turístico, definida por Boullón (2005).
Por outro lado, segundo Hiernaux e Woog (1991), existem dois tipos de cidades
turísticas: aquelas que dependem apenas parcialmente do turismo como indutor de sua
base econômica (as grandes cidades, como as capitais europeias, por exemplo) e aquelas
para as quais o turismo se constitui em condição para a sua subsistência e
desenvolvimento (entre outros exemplos, o autor cita os centros de praia).
Por sua vez, Santos (2005a), ao debruçar-se sobre o problema da definição das
cidades, afirma existirem duas categorias: a cidade propriamente dita e a pseudocidade.
O que difere uma da outra é que a cidade local – menor tipo de aglomeração a merecer a
denominação de cidade – é capaz de garantir um crescimento autossustentado e um
domínio territorial, deixando de servir apenas às necessidades da atividade que a
sustenta, passando a servir às necessidades inadiáveis da população.
Embora os territórios que se constituem em objeto deste trabalho sejam bem
dotadas em infraestrutura e superestrutura turísticas que permitam “gerar respostas
competitivas aos desafios da globalização” (ARANTES, 2002, p. 13), algumas das
necessidades básicas dos residentes fixos não podem ser plenamente satisfeitas no
próprio local, o que as configuram como pseudocidades do turismo, mas não como
cidades turísticas propriamente ditas.
Contudo, ainda que as localidades analisadas neste estudo, assim como tantas
outras do Nordeste brasileiro em situação similar, não se constituam como cidades de
direito, é inegável que, pelas características da atividade que capitaneia a reestruturação
territorial produtiva na qual estão inseridas, passem por intenso processo de
urbanização.
116
Na sua crítica à universalidade e atualidade da concepção de urbanização de
Henri Léfèbvre, calcada no desenvolvimento industrial como indutor do processo, Silva
(1997) apresenta uma questão – para ele – não solucionada. Segundo o referido autor,
ao conceber a problemática da urbanização como um atributo da industrialização, se
está ocultando a diversidade histórica, geográfica e funcional a qual cada centro urbano
se submete.
Se, por um lado, a “simples aglomeração de forças produtivas e meios de
produção em contextos produtivos diferentes (...) representa problemáticas econômicas
e sociais diferentes” (Idem, p. 18) e as “determinações mais importantes [da
urbanização] provêm não da evolução tecnológica da indústria (...) mas sim da estrutura
sócio-econômica e política na qual esta se desenvolve” (p. 19). Por outra parte, embora
seja importante reconhecer que muitas cidades desenvolvem e se desenvolvem (a partir
de sua) vinculação com indústrias, “existem outras que se desenvolvem com base em
seu envolvimento em economias primárias (i.e., agrícolas, minerais), que cumprem
funções importantes na esfera da circulação (i.e., portuária), ou na do consumo (i.e.,
turística)” (p. 20). Assim, há, no atual processo de urbanização, um sem número de
casos que escapam ao modelo da “cidade fabril”.
Solidário a Henri Léfèbvre no que concerne à indissociabilidade entre
industrialização e urbanização, Anton (1998) discorda com a linha de raciocínio acima
aventada, principalmente ao afirmar que foi a partir da assunção do sistema produtivo
industrial que os períodos de recreação se tornaram funcionalmente necessários como
forma de apaziguamento da conflituosa relação entre capital e trabalho, o que acabou
por refletir na conformação do que o autor chama de espaços de férias.
Salvador Anton oberva, porém, que existem novas especificidades no processo
de urbanização que, ao contrário de períodos precedentes da história dos estudos
urbanos, precisam ser considerados. Assim, o referido autor reclama para as práticas
ligadas ao turismo e ócio um maior protagonismo no conjunto dos feitos humanos que
atualmente induzem – de modo direto – a urbanização da sociedade.
A existência de tais visões contraditórias acerca do advento da urbanização
denota a necessidade de se pensar a questão urbana dentro de uma complexa e ainda
pouco entendida realidade que se descortina sob o efeito das transformações
engendradas pela passagem de um modelo produtivista de sociedade (fordista) para
outro, que assume um caráter consumista (pós-fordista).
117
Isto, por sua vez, tem forte incidência naquilo que se convencionou chamar de
urbanização turística, posto que – como já fora debatido no Capítulo 1 – a própria
prática que a induz está atualmente submetida ao chamado espectro fordista de
produção e consumo do espaço.
O termo urbanização turística não escapa à situação daqueles conceitos que
ainda carecem de maior apuro analítico. Assim como o próprio conceito de urbanização,
o termo em tela costuma ser apresentado de forma difusa e pouco precisa. Em sua
tentativa de delimitar os termos aqui abordados, Silva (1997, p. 21) firma um conceito,
ainda que com a advertência de ser esta uma proposição provisória, segundo o qual a
urbanização turística é “o processo de constituição material e simbólica de espaços de
turismo, quer dizer, de lugares especialmente equipados para o desenvolvimento dessa
atividade específica”.
Após apresentar um conceito relativamente simplista para urbanização turística,
Silva (Idem, p. 22) refina a tipologia urbana de caráter turístico, propondo a existência
de “urbanizações turísticas balneárias”, que diferem das anteriores por terem na praia e
nos banhos de mar o sentido para a sua conformação. O autor segue afirmando que,
diferente dos outros tipos de urbanização, “estas apresentam-se de modo menos difuso,
e não estão necessariamente inscritas em um âmbito urbano que, geralmente, cumpre
outras funções que não as vinculadas ao turismo”.
Para Fonseca e Costa (2004), não indo muito além do que foi anteriormente
citado, a urbanização turística possui uma natureza diferenciada em relação às demais
formas de urbanização por estar diretamente vinculada ao lazer. Mais adiante, os autores
abordam sobre o modelo de urbanização turística desencadeado no Nordeste brasileiro
tomando as palavras de Rita de Cássia Cruz. Desta forma, afirma-se que, no caso da
região setentrional do país, o Estado promoveu dois processos interrelacionados, quais
sejam:
(...) a “urbanização turística dos lugares” através da implantação de
fixos diretamente relacionados à atividade turística e necessários para
a requalificação do lugar e a “urbanização para o turismo”, que diz
respeito à implantação de uma infra-estrutura de suporte,
indiretamente vinculada à atividade (Idem, p. 27).
Por sua vez, Anton (1998, p.25) considera que a urbanização turística diz
respeito “a los procesos por los cuales se han desarrollado áreas urbanas con la
finalidad fundamental de producir, vender y consumir servicios y bienes que producen
placer a residentes temporales”. Além disso, para o autor, tal forma de urbanização se
118
converte um processo de funcionalização do espaço criador de estruturas urbanas de
características singulares que são a expressão do modo de produção típico da sociedade
contemporânea.
Mesmo levando em consideração as contribuições contidas nos conceitos
anteriormente dissecados, neste trabalho, parte-se da perspectiva que a urbanização
turística é causa e consequência de um processo de reestruturação territorial produtiva
baseada no turismo que ocasiona a transformação do solo de uma nucleação urbana em
mercadoria, promove uma especialização na base produtiva local e regional gestada de
fora para dentro e (des/re)constrói vínculos sociais, econômicos, políticos e culturais.
Convém assinalar ainda, que o atual modelo de urbanização turística se
desenvolve amparado em um complexo arranjo espacial, que agrega, além das
estruturas urbanas que dão sustentação ao turismo propriamente dito, tais como hotéis,
resorts, pousadas, albergues, restaurantes, cafés e toda uma miríade de casas de
diversão, objetos outros que tornam mais ampla a possibilidade de uso do território,
cujos exemplos podem ser observados no conjunto de edificações que sustentam o
mercado do turismo de segunda residência.
Por tudo isto e pela seletividade com a qual se desenvolve, tal processo acaba
por produzir contradições que opõem agentes hegemônicos e hegemonizados, todos
ávidos por impor, no lugar, a sua própria lógica de reprodução. Assim, na medida em
que os agentes econômicos ligados ao turismo se territorializam, as comunidades
hegemonizadas reagem estabelecendo estratégias próprias de territorialização que, em
última instância, possam garantir as possibilidades da sua reprodução social.
Segundo Santana (2007), o turismo, em geral, e as intervenções urbanísticas, em
específico, se constituem em um campo privilegiado para a conversão dos distintos
tipos de capital (econômico, social, cultural e simbólico) em elementos a serem
utilizados no desenvolvimento turístico. O espaço urbano é, pois, um lugar privilegiado
para investidores ligados aos setores turístico e hoteleiro.
No entanto, a transformação de nucleações urbanas em destinações turísticas não
se dá sem conflitos e contradições. As mudanças no consumo, os deslocamentos de
moradores, a supressão da cultura (JUDD, 2003), a polarização espacial, a segmentação
de mercado e a pressão sobre o meio ambiente (WILLIAMS, em citação de ANTON,
1998) são apenas algumas das questões ainda não bem solucionadas. Criar justificativas
e argumentações para o novo é, portanto, um passo fundamental na consolidação de
projetos de urbanização turística.
119
Sobre isto, Santana (2007, p. 58) argumenta:
Todos estos planes han de comenzar con una “justificación”, en que
se argumenta la conveniencia de dedicar el territorio a la actividad
turística. La menor o mayor necesidad de argumentación dependerá
en gran medida de los usos anteriores del territorio y de los agentes
implicados en los mismos. Es decir, si un territorio que se quiere
dedicar al turismo tiene previamente un uso agrícola importante, y los
agentes implicados en el mismo disponen de importantes capitales
(económicos, sociales, culturales o simbólicos), será necesaria una
argumentación más fuerte a favor del desarrollo turístico. Por el
contrario, cuando el uso que se le da a un territorio previamente al
desarrollo turístico es menor, la necesidad de argumentación puede
ser también menor.
Assim, a justificativa para a implantação de projetos de urbanização turística é
empregada com maior eficácia naqueles lugares onde se percebe maior fragilidade no
desenvolvimento de uma economia de mercado. Além disso, tais justificativas são
amparadas, ainda segundo o autor citado, pela convergência de argumentos
“naturalistas” e “economicistas”.
O discurso naturalista faz referência aos atributos físico-ambientais de um
determinado território, tais como horas de sol, temperatura e proximidade do mar,
convertendo-o em um destino “natural” (no sentido da obviedade e da inevitabilidade)
para a prática turística. O argumento seguinte, de base economicista, diz respeito aos
propagados benefícios econômicos que a prática proporcionará ao lugar, com o turismo
sendo um infalível vetor de incremento da produtividade do território.
Como contra-argumentação aos discursos acima expostos, Santana (Idem, p. 59)
afirma:
La visión del desarrollo turístico como un hecho “natural” e
inevitable lleva a olvidar que el proceso de urbanización es siempre
un proceso social, y se llega a plantear que es el próprio suelo el que
“per se” tiene vocación (como si fuera un sujeto) de ser convertido en
urbanización turística.
(...)
No es sólo que los argumentos se lleven al terreno de ‘lo económico’,
sino a una determinada visión de la Economía que pretende olvidar
que la “economía” no es una ciencia natural y que muchas cuestiones
están sujetas a discusión.
Ainda que o debate proposto por Santana esteja circunscrito à realidade
espanhola (em específico, o caso das Ilhas Canárias), é possível perceber grande
convergência com a situação brasileira. Neste sentido, o Nordeste brasileiro, com seus
principais balneários litorâneos localizados, via de regra, em regiões cujo passado é
120
marcado por forte inércia territorial e cujas justificativas estão assentadas justamente em
argumentos “naturalistas” e “economicistas”10
, se converte em caso exemplar para o
exposto acima.
Entre os diversos autores que tratam da temática turística, Almeida (2006), ao
debater os discursos em defesa da implementação de políticas públicas para o turismo, e
Dantas (2007), na sua análise sobre a construção da imagem turística do Nordeste, são
alguns dos que identificam o uso dos argumentos acima mencionados.
Segundo a primeira, ao examinar a realidade brasileira:
Se tornó común referirse al turismo, principalmente en los discursos
defensores de su implantación, como portador de diversos beneficios
en la participación, en la generación de divisas, en la transferencia de
utilidades entre las regiones, en el equilibrio de las cuentas externas,
en la creación de empleo para las poblaciones residentes, en la
atracción de inversiones en infraestructuras, en la preservación del
medio ambiente y en la valorización de las identidades y de las
especificidades locales (Idem, p. 28).
Para o seguinte autor, a construção do imaginário social do Nordeste está
fortemente amparada na difusão de imagens da costa ensolarada, reforçando, assim, a
evocação do paraíso tropical do qual Aoun (2005) faz referência.
De fato, seja como discurso de promoção do incremento econômico ou da
“vocação turística” pelas belezas naturais, há, nos documentos oficiais, argumentos de
bases economistas e naturalistas como justificativas da urbanização turística.
Por outra parte, é fundamental estabelecer as bases para o debate sobre as
implicações da urbanização turística, não só pela construção de espaços icônicos no
interior de antigas e pequenas localidades em submissão aos desígnios do turismo
globalizado, mas sobretudo pelas contradições inerentes a uma processo que privilegia
interesses hegemônicos em detrimento das necessidades e dos desejos das populações
locais.
No turbilhão de transformações decorrentes da ação do capital em espaços antes
submetidos na quase totalidade das relações econômicas e sociais a uma ordem local, as
populações passam a conviver com uma crescente complexificação e especialização
produtiva do território. Assim, ao residente caberia se adaptar, quando possível, às
vertiginosas mudanças impressas no espaço ou, em um caso extremo, “ser naturalmente
10
Os planos nacionais de turismo, já citados, e demais documentos oficiais relativos à prática turística,
tais como Brasil (2004b), Bahia (2005), Pedroza e Freire (2005), entre outros, expõem fartamente os
argumentos acima aventados.
121
varrido ou esmagado” pelo “impulso expansivo do sistema” (MÉSZARÓS, 2008, p.
19).
Contudo, insistentes na sua tentativa de continuarem existindo, as populações
atuam ora no sentido de exercerem protagonismo frente as transformações aventadas,
ora no da resistência a tais mudanças, isto tudo convergindo para práticas territoriais,
como se verá mais adiante.
122
III
A DINÂMICA TERRITORIAL DO TURISMO NO
NORDESTE BRASILEIRO
123
Capítulo 5
A ATUALIDADE DOS ESTUDOS COMPARADOS COMO MÉTODOLOGIA
DE ANÁLISE DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA
O procedimento da comparação11
é, desde a Antiguidade, um dos mais
requisitados recursos de investigação. Filósofos clássicos, como Aristóteles e Heródoto,
entre outros, empregaram esta opção analítica como um dos modos pelos quais se
buscava compreender o funcionamento da Sociedade e da Natureza.
Nos tempos contemporâneos, em praticamente todos os campos do
conhecimento, a busca por similaridades e diferenças entre os elementos de estudo que
lhes caracterizam é extremamente comum. Assim, tanto nos postulados da Física,
Química ou Biologia, quanto nas Ciências Sociais, incluindo-se aí a História e a
Geografia, a perspectiva comparada de análise se faz presente.
Sendo esta uma investigação fundamentada em uma abordagem comparativa de
análise dos territórios do turismo em balneários litorâneos do Nordeste brasileiro, torna-
se imperativo pensar sobre o método de procedimento e a sua operacionalização.
Isto é necessário, pois, embora seja absolutamente comum o uso da análise
comparada em estudos geográficos, esta não parece ser uma preocupação metodológica
das mais proeminentes entre os geógrafos contemporâneos. Se é um fato que atualmente
há grande quantidade de grupos de profissionais atuando em rede e cujos estudos
buscam compreender as causas e consequências de um fenômeno ou processo em
distinto lugares, o mesmo não se pode dizer em relação ao conteúdo metodológico da
investigação geográfica que abraça a perspectiva comparada de análise.
De fato, há inúmeras pesquisas e publicações de cunho geográfico que tratam de
comparar metrópoles, cidades médias, zonas agrícolas ou unidades de conservação, por
exemplo. Em muitos desses casos, porém, essas produções intelectuais não são
precedidas de uma exaustiva discussão metodológica, de tal modo que as comparações
são feitas a partir da escolha pura e simples de dois ou mais entes geográficos similares.
Em outros campos do conhecimento, porém, há grande profusão de pesquisas
dedicadas não apenas à elucidação de questões às quais se dedicam em uma perspectiva
11
Embora se reconheça a importância do debate, não se pretende aqui atingir o rigor da distinção entre os
termos “comparação” e “método comparativo”, como proposto por Woortmann (2005). Segundo a autora,
a comparação está ligada ao senso comum, ao passo que o método comparativo é uma construção de
caráter científico. No âmbito deste trabalho, porém, comparação, método comparativo, abordagem
comparativa e procedimento de comparação serão tratados como sinônimos.
124
comparativa, mas também ao próprio avanço deste procedimento. Daí partem, portanto,
algumas das proposições mais importantes das quais o pesquisador pode lançar mão.
Assim, este capítulo possui uma conformação que visa articular três aspectos
fundamentais do debate metodológico que se pretende empreender, quais sejam: o item
A comparação como método de análise nas Ciências Sociais tem por princípio formular
um breve panorama acerca dos debates que permitem a incorporação de subsídios
metodológicos na abordagem comparativa na Ciência Política, Sociologia, Antropologia
e História, bem como nas investigações realizadas no âmbito do Turismo, de modo a
promover uma aproximação do arcabouço metodológico desses campos do
conhecimento com a investigação aqui desenvolvida; o item A análise comparativa na
Geografia: uma revisão historiográfica representa uma tentativa de identificar as
contribuições mais significativas da Geografia no que concerne ao uso do método em
tela a partir de uma abordagem retrospectiva; o item que encerra o capítulo, intitulado A
análise comparativa como subsídio ao estudo geográfico de balneários litorâneos do
Nordeste brasileiro: uma proposta, busca propor um procedimento metodológico
comparativo, a partir do acolhimento de contribuições internas e externas à Geografia,
que permita estabelecer as diferenças e singularidades existentes na formação de
territórios em balneários turísticos do litoral nordestino.
Deste modo, o capítulo atual se configura como a base metodológica na qual se
assenta toda a investigação que aqui se desenvolve, atentando fundamentalmente para a
elaboração de um procedimento que seja, ao mesmo tempo, holístico em sua concepção,
e plenamente aplicável ao estudo de caráter geográfico.
5.1 A comparação como método de análise nas Ciências Sociais
Diversos especialistas na análise dos fundamentos de metodologia científica dão
conta da importância da utilização do método comparativo em todos os campos do
conhecimento humano (ANDRADE, 1999; MARCONI e LAKATOS, 2007; CERVO,
BERVIAN e SILVA, 2007; GIL, 2009, entre outros).
De modo enfático, alguns desses autores – em especial M. Andrade; M. Marconi
e E. Lakatos – revelam a necessidade de dimensionar a comparação como um método
de procedimento, distinguindo-o dos métodos de abordagem. Em outras palavras, o ato
de comparar é uma etapa concreta da investigação, um dos caminhos possíveis para se
chegar à inteligibilidade daquilo que se quer elucidar, sendo um apoio metodológico
125
circunscrito a uma dada fundamentação filosófica. Esta última, como se sabe, pode ser
de caráter indutivo, dedutivo, fenomenológico ou dialético.
Assim, através de um esforço de adequação às premissas dessas diferentes
linhagens filosófico-científicas, a análise comparativa pode ser adotada como
procedimento metodológico em qualquer das áreas de conhecimento.
Do ponto de vista conceitual, dois aspectos principais fornecem os elementos
para a compreensão de tal procedimento de análise: similitude e diferença. Nas palavras
de Cervo, Bervian e Silva (2007, p. 32), “a comparação é a técnica científica aplicável
sempre que houver dois ou mais termos com as mesmas propriedades gerais ou
características particulares”.
Para Bruyne, Herman e Schoutheete (1977, p. 228), o interesse dos estudos
comparativos “reside na ultrapassagem da unicidade e na evidenciação de regularidades
ou de constantes entre várias organizações cujas semelhanças e dessemelhanças são
analisadas”. Neste sentido, fica claro que fazem parte dos objetivos investigativos deste
procedimento metodológico a busca por generalizações ou, em sentido inverso, a ênfase
nas particularidades.
Ainda sobre este aspecto da proposição metodológica aqui abordada, Grossen
(1973), ao tratar dos objetivos de investigação, afirma que o método comparativo tem a
finalidade de tornar compreensível as coisas desconhecidas a partir de coisas conhecidas
mediante a analogia, a similaridade ou o contraste; identificar novos descobrimentos ou
ressaltar o peculiar; e sistematizar, enfatizando a diferença.
Neste sentido, torna-se fácil inferir que o mais proeminente debate entre os
autores no que concerne à análise comparativa diz respeito à importância atribuída aos
elementos similitude e diferença no fazer científico. Assim, os estudiosos se distinguem
por defenderem (a) a busca pelas semelhanças, (b) o realce das diferenças e, por fim, (c)
a não aceitação das pré-determinações verificadas nos itens anteriores.
Em meio aos estudiosos que advogam a ideia segundo a qual o referido método
deva priorizar o exame das semelhanças entre os elementos a serem comparados,
destaca-se o historiador Marc Bloch. Segundo Targa (1991, p. 267), “a analogia, a
semelhança, é o que nos aparece como principal e inicial passo metodológico na
proposição da análise comparativa de Bloch”.
De fato, o próprio historiador francês, em obra originalmente escrita em 1928,
revelava sua predileção pela análise das semelhanças, apontando ser esta opção
metodológica, inclusive, um ato político, posto que apelasse, por meio do seu trabalho,
126
pela reconciliação dos povos europeus através da História (BLOCH, 1983). Tal escolha
privilegiou a análise das regularidades dos fatos históricos da Europa, em uma tentativa
de aproximar, assim, os povos daquele continente.
Por outro lado, há aqueles que enxergam o método comparativo como um
procedimento empregado na busca pelas diferenças entre fenômenos analisados. Este é
o caso, por exemplo de Cervo, Bervian e Silva (2007, p. 32), para os quais, “da
comparação importa abstrair as semelhanças e destacar as diferenças”.
Para Sartori (1994), quanto à finalidade da aplicação deste procedimento, o ato
de comparar tem o propósito primeiro de expor as diferenças recíprocas.
Por fim, há um terceiro grupo que compreende que, na análise comparativa, o
transcorrer do estudo é que aponta se entre os entes analisados sobressaem diferenças ou
semelhanças, não havendo uma preocupação prévia em estabelecer uma prioridade na
buscar desta ou daquela condição comparativa.
Na síntese de Hopkin (2002, p. 254) relativa aos problemas metodológicos da
Ciência Política, “(...) the world is unlikely to provide political scientists with sets of
cases which are the same in all respects except those we wish to study, or different in all
respects except those we wish to study”, sugerindo que o conteúdo social e a natureza do
problema apresentados nos lugares sob investigação é que determinam que condução o
trabalho científico de caráter comparativo deve tomar.
Porém, independente das querelas acima apontadas, há que se destacar que
realmente a análise comparativa possui importantes vínculos com as Ciências Sociais,
notadamente na Ciência Política, Sociologia, Antropologia e História, os campos do
conhecimento que mais avançaram no debate sobre as perspectivas metodológicas
inerentes ao procedimento em tela.
Assim, ainda que a comparação seja de comprovada eficiência nos mais diversos
campos do conhecimento, é nas Ciências Sociais que tal procedimento é aplicado de
modo mais efetivo (FACHIN, 2001). Isto aparece de forma explícita em alguns
conceitos definidores do método comparativo, como se verá a seguir.
Para Andrade (1999, p. 116), o referido procedimento
(...) realiza comparações com a finalidade de verificar semelhanças e
explicar divergências. O método comparativo é usado tanto para
comparações de grupos no presente, no passado, ou entre os existentes
e os do passado, quanto entre sociedades de iguais ou de diferentes
estágios de desenvolvimento.
127
O destaque para o exame das sociedades, nas mais diversas condições espaço-
temporais e socioeconômicas, revela, de acordo com as considerações da autora, uma
maior susceptibilidade do método comparativo aos engajamentos científicos das
Ciências Sociais. O mesmo se verifica na concepção desenvolvida por Marconi e
Lakatos (2007, p. 107), que afirmam:
Considerando que o estudo das semelhanças e diferenças entre
diversos tipos de grupos, sociedades ou povos contribui para uma
melhor compreensão do comportamento humano, este método realiza
comparações, com a finalidade de verificar similitudes e explicar
diferenças.
As considerações de Gil (2009) denotam, por sua vez, que a análise comparativa
é empregada sempre que o investigador busca ressaltar as diferenças e semelhanças
entre indivíduos, classes, fenômenos ou fatos e sua ampla aceitação como método nas
Ciências Sociais se dá pela possibilidade de estudar grandes grupamentos sociais
separados entre si por contingência espacial ou temporal.
O referido autor ressalta, porém, que o método comparativo é alvo de críticas,
sendo considerado por seus detratores um método superficial em relação ao demais.
“No entanto”, destaca Gil (Idem, p. 17), “há situações em que seus procedimentos são
desenvolvidos mediante rigoroso controle e seus resultados proporcionam elevado grau
de generalização (...)”.
Na Ciência Política, os estudos mais significativos em análise comparativa
resultaram de um incisivo engajamento no debate de questões metodológicas relativas à
aplicação deste procedimento no exame dos sistemas políticos em escala local
(LIDSTRÖM, 1999), regional (SNYDER, 2001), mas principalmente no âmbito
nacional e internacional (SARTORI, 1970; PRZEWORSKI e TEUNE, 1970;
LIJPHART, 1971; RAGIN, 1987).
Porém, a despeito da escala espacial com a qual se trabalhe, tais debates estão
centrados, via de regra, (a) na aplicação de estratégias de comparação a partir de dados
quantitativos, de análises qualitativas ou na convergência de ambos, (b) no debate sobre
o número ideal de estudos de caso a serem investigados e (c) na formulação de
tipologias que permitam encontrar regularidades ou ressaltar as diferenças entre os
casos estudados.
Na Sociologia, o debate acerca da utilização do método comparativo é
igualmente frutífero, tornando-se uma questão central daquela ciência. De forma
bastante incisiva, Simmel (2006, p. 45) afirma que “acima de tudo o significado prático
128
do ser humano é determinado por meio da semelhança e da diferença”, para, em
seguida, constatar que “as semelhanças e diferenças são, de múltiplas maneiras, os
grandes princípios de todo desenvolvimento externo e interno”.
Ícones como Auguste Comte, Émile Durkheim e Max Weber foram entusiastas
da comparação como procedimento de análise. Segundo Schneider e Schimitt (1998),
para os referidos pensadores, a análise comparativa está relacionada à própria
constituição da Sociologia como ciência.
Para Comte, a Sociologia – ou Física Social, como denominada pelo próprio
filósofo francês – deveria estabelecer comparações, à semelhança dos métodos
empregados pela Biologia, como forma de descobrir as leis gerais e invariáveis
inerentes à explicação sociológica. Neste contexto, a comparação poderia incorporar
análises no tempo e no espaço, entre diferentes épocas históricas ou distintos grupos
sociais.
Na proposição de Durkheim, a comparação aparece como o procedimento
principal na construção de explicações sociológicas, ainda que, como afirmam
Schneider e Schimitt (opus cit.), nem sempre o ilustre sociólogo tenha explicitado o seu
apreço por tal abordagem metodológica.
Ainda segundo os autores acima citados:
(...) a análise comparativa ocupa um lugar central na obra de
Durkheim, justamente por que é através dele que o autor apresenta
suas soluções para alguns dos problemas fundamentais das ciências
sociais, entre eles, a difícil conciliação entre a complexidade e a
generalidade da pesquisa social (opus cit., p. 58).
Para Fernandes (1980, p. 94), ao contrário do que acontecera com Durkheim,
para quem o método comparativo fora central na formulação de explicações
sociológicas, na obra de Max Weber, tal procedimento assume papel secundário, “ainda
que construtivo”.
Na perspectiva weberiana, a comparação serve como instrumento para o
controle racional das hipóteses levantadas, procedimento realizado, por exemplo, nos
estudos sobre a ética em diversas doutrinas religiosas (SCHNEIDER e SCHIMMIT,
1998). Além disso, Weber tratou de abordar temas sociológicos em uma perspectiva
comparativa no seu estudo clássico sobre as cidades ocidentais em relação às de outros
contextos espaço-temporais (WEBER, 1999).
Os antropólogos também figuram entre os cientistas sociais que muito
contribuíram para o debate sobre o método comparativo. Segundo Espina (2005), o
129
procedimento da comparação foi largamente empregado na Antropologia,
principalmente quando a ciência ainda não houvera desenvolvido métodos próprios, o
que leva o autor a afirmar ser este o método mais genuíno da ciência.
Para Woortmann (2005, p. 93), em comentário sobre o papel do procedimento
em tela na Antropologia,
O que é importante em tudo isso, é o fato do método ter acompanhado
o pensar antropológico em todo curso de sua história e de ser
responsável por grande parte do pensar de sua produção, quer sendo
utilizado em si, quer como alvo da crítica dos seus opositores.
De fato, ainda que seja considerado um procedimento central da Antropologia, é
possível identificar algumas vozes contrárias à abordagem comparativa no círculo dos
principais mestres da ciência. Entre os críticos, destaca-se Boas (2004), que sugere a
construção de novas regras de aplicação do procedimento metodológico. Convencido de
que a comparação não se mostrava inteiramente eficaz ao ser aplicado nos estudos
empíricos, o ilustre antropólogo cobrava maior apuro na construção das regras que
deveriam balizar o método.
Do ponto de vista estritamente operacional, Woortmann (2005) destaca três
etapas basilares do trabalho comparativo na Antropologia, quais sejam: a primeira seria
a seleção/separação das unidades de observação, que consiste em escolher, de forma
arbitrária e consciente, os grupos com os quais se deseja trabalhar; a segunda seria a
definição e construção das unidades e do objeto, sendo entendida como o pensar sobre
o espaço onde os grupos estudados se reproduzem socialmente; a terceira, definida
como a comparação propriamente dita, é a operação do pensar consciente pela qual a
análise comparativa se efetiva por aproximação ou oposição.
Na História, outros importantes debates sobre o emprego do método
comparativo são realizados. Segundo afirmam Mahoney e Rueschmeyer (2006), a
análise histórica comparativa possui uma longa tradição nas Ciências Sociais, sendo
empregada por Adam Smith, Alexis de Tocqueville e Karl Marx, entre outros
considerados fundadores do pensamento social, bem como por alguns dos mestres
consagrados do início do século XX, com destaque para Otto Hintze e os já comentados
Max Weber e Marc Bloch.
Com efeito, ainda no primeiro terço do século XX, o historiador Marc Bloch
assumiu posição privilegiada entre os principais nomes da História Comparada, ao
publicar, em 1928, a obra Mélanges historiques (BLOCH, 1983), na qual apresenta, no
130
capítulo intitulado Pour l’histoire comparée des sociétés européennes (Tomo 1), amplo
debate acerca dos fundamentos teórico-metodológicos deste campo do conhecimento.
Segundo Haupt (1995, p. 196), Bloch propunha:
Étudier parallèlement des sociétés à la fois voisines et
contemporaines, sans cesse influencées les unes par les autres,
soumises dans leur développement, en raison de leur proximité et de
leur synchronisation, à l’action des mêmes grandes causes et
remontant, partiellement du moins, à une origine commune.
Assim, como aventado alhures, para Bloch, o método comparativo serviria, antes
de mais nada, para por a descoberto as similitudes históricas que aproximam os povos.
Vale salientar que, no âmbito dos campos de conhecimentos afins a este estudo,
é possível constatar que a busca pela comparação como procedimento de análise não
está restrita apenas às Ciências Sociais. Entre os estudiosos do Turismo, é possível
encontrar autores preocupados em debater proposições metodológicas que permitam
enquadrar a perspectiva comparativa como instrumental analítico da prática turística.
Ao apresentar uma tipologia da pesquisa em Turismo baseada no esquema
tipológico elaborado por Perseu Abramo, Dencker (2001) menciona que, quanto aos
processos de estudo, a investigação pode ser estrutural, histórica, comparativa,
funcionalista, estatística ou monográfica, mas sem especificar, porém, quais são os
atributos de cada um destes. De qualquer modo, há, no discurso da autora, uma
referência explícita ao uso da análise comparativa do debate científico que se
desenvolve a partir da prática turística.
Por outro lado, na sua análise sobre a aplicabilidade da abordagem comparativa
nas investigações sobre turismo, Pearce (1993) observa que o debate sobre o emprego
de tal método é ainda bastante incipiente. Para o autor:
When a comparative approach has been adopted by tourism
researchers there has generally been little elaboration on its
use, with as best only passing mention of methodological issues
or fleeting reference to other work. Studies have not built upon
each other and no cohesive body of work using comparative
approaches to tourism research (opus cit., p. 20).
Assim, D. Pearce afirma a falta de um debate metodológico mais apurado sobre
o emprego da comparação entre os investigadores do turismo, algo também apontado
por Dieke, em citação de King (1997), que atribui aos problemas metodológicos, juntos
às dificuldades com logística e financiamento, as principais carências dos estudos
comparativos.
131
No ensaio sobre a aplicação do método comparativo no exame de destinos
turísticos do Atlântico Norte, Baum (1999) aponta para o fato de que atualmente são
muitos os estudos que, implícita ou explicitamente, empregam a comparação como
abordagem investigativa.
Para o referido autor, a evolução do escopo analítico do Turismo como campo
de conhecimento se deu a partir de um processo segundo o qual diferentes resultados de
pesquisa foram confrontados. Assim, a comparação permitiu ao investigador estabelecer
parâmetros de validez e confiabilidade dos resultados auferidos por meio de pesquisas,
sejam elas quantitativas ou qualitativas.
Segundo o pesquisador britânico, as investigações comparativas em Turismo
não seriam tão imaturas e carentes de aplicabilidade, como sugere Pearce, ainda que
concorde com este no que concerne ao pouco interesse dos estudiosos em elucidar os
problemas e as questões metodológicas inerentes ao procedimento em tela.
O panorama acima evidenciado denota, enfim, o quanto é fundamental
compreender as significativas contribuições dadas pelas Ciências Sociais acerca do
aprimoramento metodológico na abordagem comparativa, visando, assim, refinar o
diálogo interdisciplinar entre estes diversos campos do conhecimento que debatem a
sociedade.
Desse modo, é possível evidenciar aspectos relevantes da construção de
propostas metodológicas de caráter comparativo nas Ciências Sociais, bem como da sua
operacionalização, que, acrescidos de um olhar sobre esses mesmos aspectos no âmbito
da Geografia (como se verá adiante), pode gerar novas formas de pensar o método
comparativo como um instrumento de análise desta última ciência na
contemporaneidade.
5.2 A análise comparativa na Geografia: uma revisão historiográfica
A realização de análises comparadas em Geografia tem nos responsáveis pela
sistematização da ciência e naqueles estudiosos ligados ao pensamento tradicional os
seus primeiros articuladores. Segundo Ackerman (1976), a comparação espacial é um
elemento central do estudo geográfico desde o seu princípio como ciência.
Para Clozier (1972, p. 126), tomando por empréstimo as concepções de
Emmanuel de Martonne, a comparação permite reagrupar os fatos que as ciências afins
da Geografia “dissociaram para os poderem estudar em si mesmos” ou, por outro lado,
pode ser empregada como subsídio à generalização de fatos geográficos.
132
Sem romper com postulados tradicionais da ciência, Clozier apresenta exemplos
para o emprego do método comparativo tanto em estudos de Geografia Física quanto
em investigações que envolvam elementos atinentes à Geografia Humana, alertando
sempre para possíveis armadilhas que um estudo superficial pode gerar.
Assim, enfatizando a primazia da categoria paisagem como objeto de análise, o
autor afirma que, ao optar pela comparação,
(...) a atitude do geógrafo deve ser sempre esta: manter a realidade
concreta que as paisagens apresentam sobre o controlo do
conhecimento dos factores determinantes; toda a forma de terreno,
para ser bem interpretada, precisa de ser compreendida; toda a
analogia, para ser devidamente verificada, precisa de ser submetida à
razão (Idem, p. 128).
Do ponto de vista historiográfico, é mais que sabido que as experiências iniciais
que resultaram no processo de sistematização da Geografia ocorreram na atual
Alemanha do século XIX pelas mãos de Alexander von Humboldt e Karl Ritter. Muitas
das propostas encaminhadas por estes teóricos fundadores da ciência tiveram nos
estudos comparados um amparo metodológico fundamental.
Como era próprio do tempo em que viveram os fundadores da Geografia, a
Natureza era vista como um todo, mas a sua compreensão plena só seria possível a
partir da sua divisão para fins de análise. Cada parte seria relacionada com outra para,
enfim, se poder determinar as características comuns e as singularidades que lhes eram
inerentes.
Deste modo, com graus distintos de apuro teórico-metodológico, ambos
lançaram mão de estudos comparados. Porém, cabe ao ilustre pensador Karl Ritter o
mérito de ter sido o primeiro a propor, de modo explícito e sistemático, um engajamento
metodológico que permitisse a realização de pesquisas geográficas comparadas.
Segundo Mehedinti (1901, p. 1):
Vers le commencement du XIXe siècle, la géographie, en suivant le
courant de la grande rêforme scientifique inaugurée déjà à la fin du
siècle précédent, devint, elle aussi, une science comparée. C’est Karl
Ritter qui lui donna pour la première fois ce titre.
De fato, grande parte do debate metodológico impetrado por Ritter ao longo da
sua carreira foi dedicado ao desenvolvimento da chamada Geografia Comparada, termo
que, inclusive, intitula uma das suas grandes obras, cujo primeiro volume é datado de
1817. Como afirmado por Moraes (2002, p. 147), nesta obra “estão contidas suas
133
formulações essenciais, a explicitação prática de sua proposta metodológica, a
exemplificação de suas colocações normativas”.
O viés metodológico proposto por Ritter para a Geografia parte de uma visão
antropocêntrica e de base regional, buscando, daí, estabelecer uma relação lógica entre o
todo e as partes. Deste modo, segundo esta proposição, caberia à ciência geográfica
analisar arranjos individuais e compará-los, explicitando as partes através do todo e
vice-versa, trilhando um caminho ao mesmo tempo indutivo e dedutivo.
Alguns dos discípulos de Ritter estimularam debates sobre os postulados do
mestre. Vale a pena ressaltar, pois, o interesse de Élisée Reclus, bem como a crítica feita
por Oskar Peschel, ambos tomando como base a obra ritteriana dedicada ao emprego do
método comparativo na Geografia.
Em finais do século XIX, É. Reclus ocupou a cadeira de Geografia Comparada
na Universidade Livre de Bruxelas, onde fomentou intensos debates sobre as
proposições de Karl Ritter, tendo publicado, inclusive, um ensaio contendo a sua aula
inaugural no referido curso (RECLUS, 2010).
Na concepção de E. Reclus, a comparação é um procedimento que se aplica no
âmbito da Geografia desde tempos imemoriais, antes mesmo da sua concepção
científica existir. Para o referido geógrafo, a capacidade de perceber as diferenças entre
aspectos físico-ambientais e culturais das distintas parcelas da superfície terrestre era
um atributo essencial no desenvolvimento da noção de região pelos homens desde a
Antiguidade.
Em oposição ao posicionamento do ilustre geógrafo anarquista, Oskar Peschel,
considerado um dos principais geógrafos germânicos da geração seguinte à dos
fundadores da Geografia Moderna, publicou, em 1870, a obra Neue Probleme der
vergleichender Erdkunde als Versuch einer Morphologie der Erdoberflüche, na qual
tece fortes críticas às proposições de Ritter – de quem fora aluno – contidas em
Geografia Comparada. Para Peschel, o seu mestre empregara o método comparativo
apenas quando realizou o estudo dos continentes europeu e africano.
Por outro lado, apesar da enorme dedicação de Ritter ao desenvolvimento de um
escopo metodológico de caráter geográfico que tivesse na comparação um dos seus
principais fundamentos, foi com Paul Vidal de La Blache, por meio da clássica obra Le
principe de la Géographie Générale, publicada originalmente em 1895, que a analogia
veio a se tornar um dos princípios desta ciência (LA BLACHE, 2001).
134
Desde os tempos em que a ciência geográfica era tomada por uma maioria como
o estudo do “resultado da ação humana na paisagem” (MORAES, 2005a, p. 80) e da
busca pela explicação da diversidade dos chamados gêneros de vida, fundamentos
vinculados ao pensamento de Paul Vidal de La Blache e do próprio Possibilismo, a ideia
de elaborar estudos baseados na comparação de lugares adquiriu um caráter mais
sistematizado.
Ainda segundo Moraes (Idem, p. 84), o receituário metodológico desenvolvido
pelo ilustre geógrafo francês continha um encaminhamento no qual a “comparação das
áreas estudadas e do material levantado, e classificação das áreas e dos gêneros de vida”
constituíam escopo essencial para se chegar a uma tipologia da paisagem de base
positivista. Desse modo, ainda que quisesse extrair as relações particulares entre homem
e natureza ou, nas palavras de Santos (2002b, p. 55), a “personalidade regional” do
espaço através da noção de gênero de vida, La Blache o fazia por meio, também, de
comparações.
Tempos mais tarde, entre os discípulos desse geógrafo fundador, a realização de
estudos comparados de caráter regional se ampliou ao ponto de gerar a especialização
temática que até hoje se vê na Geografia. Foi através da síntese comparativa de
elementos inventariados de diversos lugares no campo da análise regional que se
chegou, pois, à Geografia da População, Geografia Econômica, Geografia Agrária, entre
outros campos disciplinares da ciência geográfica.
Se, sob o espectro lablacheano, a comparação de espaços surgia como um dos
métodos de análise mais populares entre os geógrafos, na proposta desenvolvida por
Richard Hartshorne décadas mais tarde, tal procedimento era uma condição. Seguidor
de Alfred Hettner, para quem a Geografia seria a ciência incumbida de estudar as
diferenciações de áreas, o geógrafo norte-americano foi responsável pela formulação de
um considerável esforço de análise epistemológica, notadamente no campo
metodológico.
A partir do final da década de 1930, Hartshorne publicou as suas proposições
acerca da natureza e propósitos da ciência geográfica e, entre outras formulações,
sugeriu a adoção de dois procedimentos de análise, denominados Geografia Idiográfica
e Geografia Nomotética.
Ambos os procedimentos analíticos estavam consubstanciados por uma dupla
base formada pelos conceitos de “área” e “integração”. O primeiro diz respeito a uma
entidade espacial constituída pelo pesquisador a partir da análise cada vez mais
135
aprofundada da interrelação dos fenômenos ali existentes, revelando o caráter único que
lhe seria próprio. Por sua vez, a busca por essa interrelação referida anteriormente daria
sentido ao segundo conceito acima aventado.
Segundo Hartshorne (1978, p. 34), aí estaria o propósito da ciência geográfica,
pois, para este autor norte-americano, “na Geografia (...) o interesse é focalizado desde
o início nas integrações dos diversos fenômenos, as quais, em virtude de sua existência,
determinam o caráter variável das áreas”.
Assim, caberia à Geografia Idiográfica buscar a singularidade de cada área a
partir da análise integrada dos diversos fenômenos que a constituem. A Geografia
Nomotética, por sua vez, traria consigo a possibilidade da comparação de distintas
áreas. Para tanto, o pesquisador deveria reproduzir em diversos lugares uma integração
realizada. De acordo com Hartshorne (Idem., p. 34-35):
Ao concentrar-se numa categoria de aspectos de cada vez, observará
as variáveis manifestações dessa categoria particular, em relação às de
outras categorias com as quais as variações forem mais intimamente
relacionadas. Através desse método poderá estabelecer a existência de
sistemas e configurações espaciais de categorias particulares (...).
Mediante a comparação de tais configurações espaciais de diferentes
categorias, induzirá hipóteses de relações de processos entre os
diferentes fenômenos.
Ao comparar as integrações em distintas áreas, seria possível atingir um “padrão
de variação” do fenômeno que se quis analisar. Em se tratando de uma mesma temática,
tais integrações permitiriam, enfim, as comparações que, por sua vez, dariam um caráter
genérico ao estudo geográfico (MORAES, 2005a).
Pertence a Schaefer (1988), um dos precursores da New Geography, a mais
contundente crítica ao emprego do método comparativo na Geografia, ao menos no
transcurso da primeira metade do século XX. Em franca oposição aos postulados do seu
colega R. Hartshorne, o geógrafo alemão afirmava que, na verdade, não é possível
sequer admitir a existência de tal método, posto que,
(...) el enfoque comparativo no es una tercera tendencia, además del
enfoque descriptivo y el sistemático. Mucho de lo que se cubre bajo el
nombre de geografía comparativa es realmente geografía sistemática
aunque con bastante frecuencia, de un tipo más bien rudimentario.
Otros trabajos que se denominan comparativos, són, más o menos,
ingenuas descripciones regionales (Idem., p. 76).
O debate sobre a aplicação do método comparativo na Nova Geografia é
extremamente complexo. Como se viu, Schaefer, considerado um dos pioneiros da
136
corrente geográfica de base neopositivista, repeliu fortemente o pensamento de
Hartshorne, e, entre outras críticas, contradisse a proposta do autor norte-americano no
tocante à chamada Geografia Nomotética. Por outro lado, Bezzi (2004, p. 115)
menciona que, para o próprio Schaefer, “a Geografia é responsável pela elaboração das
leis sobre localização, e essas podem e devem ser usadas para diferenciar as porções
distintas da superfície terrestre, ou seja, as regiões” [grifo nosso].
Segundo Santos (2002b, p. 63):
A chamada Nova Geografia se manifestou sobretudo através da
quantificação. Mas ela utilizou igualmente como instrumentos os
modelos, a teoria dos sistemas (ecossistemas incluídos), a tese da
difusão de inovações, as noções de percepção e de comportamento e,
da mesma maneira, as múltiplas formas de valorização do empírico e
do ideológico.
O emprego dos instrumentos acima citados foi de fundamental importância,
portanto, para o desenvolvimento da chamada Nova Geografia. Mas, além disso, ainda
que com níveis distintos de aplicação, acabaram por contribuir para uma certa
valorização da comparação como procedimento metodológico.
Em dois momentos distintos, M. Santos (Idem, p. 69 e 72), tomando por
empréstimo afirmações de geógrafos filiados ao neopositivismo, dá pistas sobre a
relação entre o procedimento da comparação e a opção quantitativista na Geografia. No
primeiro caso, ao abordar sobre o emprego da análise fatorial no estudo de cidades
inglesas, Michael McNulty afirma que o objetivo era coletar e classificar os dados
levantados, “indicando as semelhanças e os contrastes para, em seguida, classificar as
cidades sob o critério de suas características sociais, econômicas e demográficas”. No
exemplo seguinte, D. Timms observa que, “na falta de medida e de exposição precisa e
objetiva, uma comparação e uma abstração precisas tornam-se impossíveis”.
Há cerca de três decadas, Commerçon e Commerçon (1978) publicaram um
artigo, intitulado Une méthode de comparaison à l’usage des géographes: l’analyse
factorielle des correspondances, no qual se desenvolve uma proposta baseada na
aplicação da análise fatorial ao procedimento comparativo.
Mais recentemente, um outro artigo, publicado por Getis e Graffith (2002) sob o
título Comparative spatial filtering in regression analysis, revela a resistência de
posturas quantitativistas nos estudos geográficos que se propõem a estabelecer uma
abordagem comparativa de investigação, mesmo em um contexto que já não se mostra
tão propício à chamada Nova Geografia.
137
A construção de modelos e sistemas, por sua vez, se dá através da escolha
apriorística de variáveis passíveis de mensuração, o que permite estabelecer
generalizações que são confrontadas com a realidade por meio do emprego, em diversos
casos, de um instrumental comparativo. Segundo Christofoletti (1985, p. 91), “as
mensurações sempre são realizadas em casos particulares, que apresentam variações em
virtude da quantidade de matéria e energia que fluem pelo sistema”. Assim, como
sugere o próprio autor, “o estudo de sistemas espaciais determinados passa a ter a
função de ser teste para verificar a viabilidade dos modelos propostos para as
organizações espaciais”.
Se a perspectiva comparativa de análise foi um importante instrumento nos
trabalhos realizados sob o manto da Nova Geografia, não é possível afirmar, porém, o
mesmo acerca do ímpeto dos geógrafos críticos em refletir sobre este método. Mesmo
tendo se desenvolvido no seio da ala mais progressista da Geografia Regional francesa
(MORAES, 2005a), núcleo onde a análise comparativa era uma abordagem já
amadurecida pela influência ainda presente de Paul Vidal de La Blache, a Geografia
Crítica não promoveu debates substanciosos acerca do emprego de tal procedimento
metodológico.
A rigor, entre os geógrafos mais proeminentes da vertente crítica, são poucos os
exemplos significativos de contribuições realizadas com o intuito explícito de debater a
aplicação do método comparativo. Dentre as exceções, vale a pena destacar as
impressões de Santos (1991), que constam na obra O trabalho do geógrafo no Terceiro
Mundo.
Originalmente escrito no início da década de 1970, o livro expressa o fulgor do
conturbado momento de crise e renovação da Geografia, notadamente naquilo que se
refere à forte oposição que o autor imprime à então prevalência de um pensamento
neopositivista na ciência. Naquele ínterim, a comparação era tomada – e não sem razão
– como um instrumento a serviço da aliança entre a Geografia e o Estado capitalista que
fora mediada pela corrente quantitativista. Isto explica, em parte, o desinteresse e até a
repulsa pelo método comparativo nos inícios da Geografia Crítica.
Na visão de Milton Santos (Idem, p. 15), como método, a abordagem
comparativa “não é suficiente, pois (...) se faz apenas entre as manifestações objetivas
de uma multiplicidade de interações de natureza múltipla”. Para o ilustre geógrafo, a
perspectiva em pauta é um modismo e, por validar-se apenas a partir da constituição de
modelos, não possui valor autônomo.
138
Por outro lado, na obra O espaço do cidadão, originalmente publicada na
segunda metade da década de 1980, é possível perceber um arrefecimento tímido da
crítica de Milton Santos (2007) ao emprego da comparação nos estudos geográficos,
considerando-a como um ponto de partida para a análise das situações que se expressam
no espaço.
Por seu turno, Moreira (1999; 2007) ao buscar estabelecer um viés mais
ontológico de análise, no seu debate sobre a diferença, aporta algumas questões que se
constituem em contributos importantes para a reflexão acerca da comparação como
método de análise geográfica.
Para o autor, a diferença é um elemento da própria dialética, posto que relacione
diversidade e unidade a partir do processo de superação da contradição dos opostos.
Reside na concepção mais popular desta corrente filosófica, porém, uma prevalência da
unidade sobre a diversidade, o que leva ao risco de supressão da noção de diferença no
pensamento dialético.
Isto, aliado à própria carência de conhecimento sobre o que significa a diferença
tornam insípidas as tentativas de “reatar a dialética das significações múltiplas” (...) do
homogêneo que também é heterogêneo” (Idem, 1999, p. 55), impedindo, assim, a
reafirmação do chamado espaço-diferença.
Ao tomar como princípio a noção de que a análise da diferença diz respeito ao
ato de lançar perguntas sobre “isto” em contraposição ao que é “aquilo”, torna-se fácil
inferir que é imperativa a tarefa de comparar.
Mesmo diante das controvérsias apontadas, não é possível afirmar, porém, que
os estudos comparativos tenham sido abolidos pelos geógrafos críticos. Como afirmado
alhures, são muitos os trabalhos geográficos realizados atualmente com base em uma
perspectiva comparativa de análise. Porém, a Geografia Crítica carece de um profundo
debate que busque gerar uma aproximação profícua entre o procedimento metodológico
em foco e a base dialética que sustenta a produção intelectual desta corrente de
pensamento.
Com o advento da globalização e a consequente constituição verticalmente
estabelecida do meio técnico-científico-informacional naqueles espaços selecionados
com a finalidade da reprodução do capital, surge uma ordem global “que busca impor, a
todos os lugares, uma única racionalidade” (SANTOS, 2002a, p. 338). Mas isto não sem
conflito, já que, no lugar, a racionalidade que lhe é própria contrapõe os desígnios
139
forjados pelos agentes hegemônicos, que, por sua vez, se configuram como uma
tentativa de unificar a tudo e a todos.
No turismo, por exemplo, fórmulas que foram empregadas com sucesso visando
atrair visitantes às localidades selecionadas para tal são replicadas de forma ostensiva
em outros lugares. Por outro lado, graças às singularidades culturais desses mesmos
lugares, há que se adaptar tais fórmulas às realidades locais.
Soma-se a isto o fato de, no transcorrer da década de 1990, o paradigma do
neoliberalismo ter se tornado uma realidade no Brasil, com reflexos em todos os
campos da economia, incluindo-se o turismo. Deste modo, sob efeito da competição
entre territórios (HARVEY, 2005) ou, dito de outra forma, da guerra dos lugares
(SANTOS e SILVEIRA, 2001), formou-se um clima de fervoroso embate pela atração
de capitais vindos do setor industrial, mas principalmente do setor financeiro, comercial
e de serviços.
Assim, ao observar tais processos no âmbito da prática turística, é possível
perceber o empenho do Estado – nos seus mais diversos níveis – em produzir
facilitações normativas e financeiras, arcando, inclusive, com os custos de implantação
de infraestrutura e formação de mão de obra, que tem o objetivo de criar um clima
seguro para os investimentos do setor.
Para tanto, uma das soluções adequadas à criação de um ambiente propício aos
negócios foi a elaboração de um projeto governamental com propósito de estabelecer as
bases materiais e normativas para a inserção do capital no setor turístico brasileiros, o
Prodetur (Programa para o Desenvolvimento do Turismo). No caso das localidades
litorâneas do Nordeste brasileiro, as ações do programa se deram principalmente através
dos investimentos em modelos similares de requalificação urbana e mudanças na
legislação para implantação de empreendimentos turístico-hoteleiros.
Deste modo, na fase atual do Capitalismo, a relação dialética entre a formação
econômico-social e a formação espacial resulta principalmente de uma tensão entre uma
ordem global, homogeneizante, verticalmente constituída e, portanto, tendente a
produzir semelhança, uniformidade; e uma ordem local, marcada pela heterogeneidade,
pelas horizontalidades, o que, por sua vez, tende a fomentar diferença, diversidade.
Segundo Moreira (2007, p. 86), “no período moderno, a diversidade se mantém aos
trancos e barrancos, em face da uniformidade da técnica e da lógica do mercado, que
invadem os espaços e ameaçam a diversidade dos grupos humanos e das formas de
ocupação”.
140
Nos dias atuais, enfim, a comparação se impõe como uma substancial
contribuição para aqueles que buscam compreender as formas de articulação, nos
diferentes espaços alcançados pelo Capitalismo, dos agentes hegemônicos da economia
e, por outra parte, das respostas que estes recebem das populações que vivem nesses
lugares nos quais as corporações atribuem valor.
Neste sentido, os estudos geográficos comparados servem, sobremodo, à
tentativa de elucidar aspectos relativos à dialética das experiências induzidas ou
diretamente capitaneadas por esses agentes hegemônicos em suas tentativas de
promover a homogeneização dentro de heterogeneidades espaciais, bem como a análise
dos posicionamentos opostos, resultantes, por sua vez, da ação de agentes locais.
5.3 A análise comparativa como subsídio ao estudo geográfico de balneários
litorâneos do Nordeste brasileiro: uma proposta
A análise comparativa da formação de territórios por parte dos agentes de
produção do espaço que são hegemonizados em um contexto de apropriação de
balneários litorâneos do Nordeste pelas corporações do setor turístico exige uma
reflexão sobre o aporte metodológico que se deve empregar para daí emergir uma
proposta que possa contemplar a análise das semelhanças e diferenças entre os espaços
abordados.
Segundo Mahoney e Ruschemeyer (2006), existem três características que são
próprias da Análise Histórica Comparativa: (i) tais estudos são concernentes
fundamentalmente à explicação e identificação das causas daqueles fenômenos que
correspondem ao problema de pesquisa.; (ii) os investigadores deste campo de estudo
valorizam não apenas a análise de um fato histórico, encarado de maneira estática, mas
sobretudo dos processos temporais; (iii) estas investigações enfatizam o uso de
comparações sistemáticas e contextualizadas, limitadas a um pequeno número de casos.
A partir de tais premissas, é fundamental pensar os seguintes aspectos
norteadores desta proposta metodológica:
Os processos espaço-temporais que ensejaram a turistificação das localidades
examinadas.
A identificação de vínculos prováveis entre as causas dos aspectos abordados na
pesquisa e a sua adequação ao número de casos estudados;
As técnicas metodológicas que ao mesmo tempo atendam às especificidades de
uma pesquisa qualitativa e de uma análise comparativa de caráter geográfico.
141
5.3.1 Os arranjos territoriais e suas temporalidades
Invariavelmente, a formação territorial das localidades de Pipa, Porto de
Galinhas e Praia do Forte parte de um passado comum: a constituição de um padrão
colonial de assentamento (MORAES, 2007) que, com a função precípua de estabelecer
as condições para o deslocamento de produtos para a metrópole e, poucas décadas
depois, de escravos para a Colônia, permitiu o surgimento de núcleos de distintos
tamanhos e graus de importância.
Desta forma, diferente das cidades e vilas principais do Brasil Colônia, que
tinham papel preponderante nos circuitos de produção em larga escala, comandando,
assim, as suas vastas hinterlândias, outras pequenas nucleações dispersas ao longo do
litoral foram fundadas como feitorias e, mesmo isoladas, foram fundamentais no
estabelecimento de circuitos locais de produção.
Ademais, ao longo dos séculos, os processos sucessivos de uso do território nas
zonas costeiras onde Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte foram menos diferenciais
que análogos, induzindo, na atualidade, formas de apropriação e dominação espacial
que não podem ser compreendidas senão a partir de um criterioso olhar sobre as
geografias pretéritas das referidas localidades. Em outras palavras, estão no passado
algumas das chaves para o entendimento das práticas territoriais contemporâneas.
Para tanto, parte-se da premissa segundo a qual, no uso do escopo metodológico
desenvolvido pela Geografia Histórica, é fundamental estabelecer uma periodização.
Esta, por sua vez, deve ser coerente com os aspectos que se quer ressaltar, o que, no
caso em tela, diz respeito às práticas territoriais advindas da inserção do turismo nas
localidades estudadas.
Os períodos, segundo Santos e Silveira (2001, p. 24), “são pedaços de tempo
definidos por características que interagem e asseguram o movimento do todo”. E
segue: “Mas essa interação se faz segundo um controle que assegura uma reprodução
ordenada das características gerais, isto é, segundo uma organização”. Há aí, portanto,
uma coerência espaço-temporal que produz a “identidade” de um período.
O desmantelamento de tal “identidade” do período se dá quando irrompem
inovações que já não cambem no quadro da realidade até então vigente, impondo o
surgimento de uma nova fase da história do território.
Neste sentido, a periodização se constitui em um recurso metodológico de
significativa importância para a compreensão da dinâmica relativa ao uso do território
na longa duração, pois permite averiguar as permanências e transformações que se
142
processam em cada lapso da história desse ente geográfico. Para Santos (1994a, p. 83),
“a noção de periodização é fundamental, porque nos permite definir e redefinir os
conceitos e, ao mesmo tempo, autoriza a empiricização do tempo e do espaço, em
conjunto”, e segue afirmando que seria impossível de se realizar a empiricização
conjunta e concreta do tempo e do espaço sem a periodização.
Pelo caráter comparativo do estudo em voga, o desafio maior de pensar uma
periodização das práticas territoriais advindas da inserção do turismo em Pipa, Porto de
Galinhas e Praia do Forte está circunscrito principalmente à tarefa de torná-la
consequente para as três localidades de forma simultânea. Para tanto, tal periodização
trata de enfatizar os aspectos que tem relevância na história dos três territórios.
O pano de fundo desta análise geográfico-histórica é o longo período entre o
início da colonização do litoral nordestino, nas primeiras décadas do século XVI, ação
que deu origem às localidades aqui examinadas, e os anos que antecederam às primeiras
iniciativas de apropriação de tais espaços pelo turismo, ou seja, nos anos 70 do século
XX.
Embora seja este um período farto em eventos que contribuíram na configuração
do território litorâneo do Nordeste brasileiro, o lapso temporal apontado será abordado
com maior brevidade, buscando trazer à luz apenas os elementos mais significativos da
dinâmica territorial de então, já que, embora a sua compreensão seja importante para
interpretar o presente, não incide diretamente no estudo que se está realizando.
Assim, a periodização ora proposta compreende, de fato, dois períodos, quais
sejam:
Entre 1975 e 1994: correspondente ao período de desenvolvimento, nas
localidades estudadas, de modalidades espontâneas de turismo e de algumas
iniciativas fragmentadas de investimentos privados relativos à atividade.
Entre 1994 e os dias atuais: correspondente ao período de profissionalização
induzida do turismo, com plena participação do Estado e de agentes econômicos
na conformação combinada de programas e projetos de regionalização turística,
intervenções urbanísticas e edificação de empreendimentos turístico-hoteleiros
de porte internacional.
Finda a tarefa de estabelecer os períodos, propõe-se a aplicação da abordagem
metodológica desenvolvida por Vasconcelos (1999; 2002), segundo a qual, em cada
lapso temporal, devem ser exaustivamente examinados: (a) os contextos
143
socioeconômico, político e cultural, nas escalas mundial/internacional, nacional,
regional e local, que marcaram as localidades e suas populações nos seus aspectos
socioeconômico, político e cultural; (b) os agentes de produção do espaço que
exerceram algum papel na dinâmica territorial dos balneários estudados; (c) as próprias
dinâmicas territoriais, resultantes dos eventos históricos e da ação dos agentes.
Importante frisar que já existem, inclusive, experiências do emprego de tal
abordagem metodológica em análises geográfico-históricas realizadas sob uma
perspectiva comparativa, como nos casos dos estudos entre as cidades de Salvador e
Porto, bem como entre a capital baiana, Recife e São Paulo, em atextos distintos
(FERNANDES e VASCONCELOS, 2002; VASCONCELOS, 2004; VASCONCELOS,
2006).
5.3.2 Vínculos entre as causas dos aspectos abordados na pesquisa e o número de
casos estudados
Tal e qual Nohlen (2006) sinalizara, longe de propor o estabelecimento de
generalizações causais universalmente admitidas, esta investigação, em sua perspectiva
comparativa, busca compreender os processos de articulação socioeconômica, política e
cultural a partir do conhecimento da existência de vínculos entre fatores relevantes que,
no caso em tela, se configuram em práticas territoriais.
Deste modo, é imprescindível refletir sobre quais são estes vínculos que tornam
a comparação possível. Em outras palavras, esta investigação parte da premissa de que
existem processos causais que induziram os grupos sociais não beneficiados
diretamente pela turistificação dos espaços em exame a estabelecerem arranjos
territoriais visando garantir a sua própria manutenção. Assim, são identificados três
vínculos:
A aliança entre o Estado e o Capital, com vistas à efetivação de políticas
públicas e de investimentos privados que viabilizaram a transformação de
antigas vilas litorâneas do Nordeste brasileiro em balneários turísticos.
A conformação de um meio de acumulação capitalista assentado em um espectro
fordista de produção e consumo dos espaços dominados pelos agentes do
turismo. Nesses lugares, são implantadas, por um lado, formas de turistificação
caracterizadas pela massificação e homogeneização, por outro, pela forte
segmentação e especialização do consumo. Entre ambos, é possível identificar,
enfim, a existência de uma gama de possibilidades da chamada “customização
144
de massa”, marcada pela coexistência das expressões de (pós)fordismo
anteriormente citadas.
A existência de estratégias e interesses ora contraditórios ora em convergência
entre os agentes responsáveis pela turistificação e as comunidades locais.
Vinculados a enlaces de mercado constituídos de fora para dentro, os interesses
e estratégias dos agentes de produção dos espaço do turismo são, via de regra,
estranhos ao lugar. Por tal motivo, este dito estranhamento torna-se o motor de
reações que, ainda que não possam ser enquadradas todas elas como resistências
à ordem estabelecida, constituem-se em obstáculos à plena operacionalização
dos intentos planejados para o turismo de altos rendimentos.
Desta forma, partindo das premissas acima aventadas, busca-se empiricizar o
processo de constituição de territórios do turismo em balneários litorâneos do Nordeste
brasileiro empregando, para tanto, o procedimento conhecido como Small N cases
(HOPKIN, 2002), no qual a tarefa de resolver um dado problema de pesquisa se dá a
partir da análise de número reduzido de casos.
Ao tomar como base as considerações de Hopkin (opus cit.), é possível inferir
que o procedimento metodológico conhecido como Large N é mais adequado aos
estudos comparativos de caráter quantitativo, justamente por empregar uma grande
quantidade de casos a serem estudados, podendo facilitar a árdua operação investigativa
por meio do emprego de abordagens metodológicas ligadas à Matemática e Estatística.
O procedimento Small N, ao contrário, é mais apropriado aos estudos comparativos de
caráter qualitativo, pois, em função do menor número de casos a analisar, torna-se
possível compreender processos que são de difícil alcance para as Ciências Exatas.
Desta forma, o segundo procedimento apontado é, de longe, o melhor indicado
para o fazer investigativo aqui impetrado.
Quanto aos casos sob análise, como já é sabido, estes são três: Pipa (Polo Costa
das Dunas, no Rio Grande do Norte), Porto de Galinhas (Polo Costa dos Arrecifes, em
Pernambuco) e Praia do Forte (Polo Salvador e Entorno, na Bahia). As localidades são
os três principais balneários turísticos do litoral nordestino, assim considerados por
serem os que possuem os números mais expressivos de ingressos de turistas e os que
mais aportaram investimentos públicos e privados ligados à prática turística desde a
criação do Prodetur-NE.
145
5.3.3 As técnicas de pesquisa
Em uma pesquisa qualitativa, é fundamental pensar acerca das técnicas com as
quais se pretende trabalhar. Isto se torna ainda mais importante quando se trata de uma
investigação pautada em uma perspectiva comparativa de análise, principalmente por
ser esta uma abordagem revestida de críticas ao pouco tratamento metodológico, tema já
tratado alhures.
Desta forma, levando-se em consideração a existência de uma multiplicidade de
dados coletados e visando a sua melhor sistematização, faz-se necessário lançar mão da
técnica de triangulação (TRIVIÑOS, 2009). Esta técnica objetiva atingir a máxima
abrangência no que concerne à descrição, explicação e compreensão do objeto de
estudo. Segundo o autor, a referida técnica
Parte de princípios que sustentam que é impossível conceber a
existência isolada de um fenômeno social, sem raízes históricas, sem
significados culturais e sem vinculações estreitas e essenciais com a
macrorrealidade social. Tais suportes teóricos, complexos e amplos
não tornam fáceis os estudos qualitativos (Idem, p. 138).
Três aspectos são fundamentais na operacionalização da técnica de triangulação,
quais sejam:
Processos e produtos centrados no Sujeito (agente): significa averiguar as
percepções do sujeito através de entrevistas e questionários, assim como o
comportamento e ações do sujeito mediante observação. O estudo em tela diz
respeito ao exame das percepções, comportamentos e ações relativas às práticas
territoriais dos agentes hegemonizados que se reproduzem socialmente nos
balneários de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte.
Elementos produzidos pelo meio do Sujeito (agente): significa realizar um
levantamento exaustivo de documentos, instrumentos legais (leis, decretos,
crescimento desordenado de atividades de apoio à prática turística, cujos agentes
imprimiam as marcas de uma nova dinâmica no território.
Ainda nos anos finais da década de 1990, com a crescente exposição da Praia da
Pipa como destino turístico, os agentes econômicos ligados ao turismo passaram a
“assediar” o lugar visando realizar a implantação de muitos empreendimentos de porte
mais robusto na localidade. Contudo, a exemplo do que ocorrera em Praia do Forte, no
imbróglio que envolveu o Iberostar Hotels & Resorts, houve forte pressão para a
flexibilização das leis ambientais. Um exemplo é o ofício n. 050, datado de 25 de
janeiro de 200021
, encaminhado pela ASHTEP ao então Governador Garibaldi Alves
Filho, no qual a associação solicita a sua interferência junto ao Idema (Instituto de
Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte) para agilizar a
liberação de projetos hoteleiros e residenciais.
O crescimento desordenado de atividades de apoio à prática turística nas vias
principais de Pipa exigiu medidas por parte do governo municipal, como a decretação
da Lei Municipal n. 255/2001, que dispõe sobre edificações de imóveis residenciais,
comerciais e industriais na localidade. Tal ato não surtiu efeito, posto que houvesse
grande expansão do comércio e dos serviços, especialmente na Avenida Baía dos
Golfinhos, antiga Rua de Cima.
Segundo Gonçalves (2010, p. 32), “(...) o crescimento desordenado gerado pelo
turismo e a vinda de outsiders pela [sic] localidade, acarretou em Pipa, a expulsão dos
moradores da rua de Cima e da rua de Baixo para o interior da mata”. Assim, a inserção
de novas lógicas, que dão amparo ao turismo, atraíram considerável contingente de
migrantes, ao tempo em que provocou um processo de (des-re)territorialização da
população local.
Segundo estudo realizado por Araújo (2002), no início do século XXI, dentre os
proprietários de vinte estabelecimentos comerciais dos ramos hoteleiro, de alimentos e
bebidas e serviços de apoio ao turismo, apenas um era nascido em Pipa e um segundo
era potiguar, mas de Natal, enquanto nove eram oriundos de países como Alemanha,
Argentina, França e Portugal, e o restante, originários de outros estados do Brasil.
Tal constatação revela, por um lado, algumas características relativas à
mobilidade populacional que se intensificou entre o final do século XX e início do
21
Acesso ao documento em visita ao arquivo da Secretaria de Turismo do Rio Grande do Norte, em 06 de
março de 2012.
194
seguinte, e, por outra parte, denota o caráter perverso e excludente do modelo de
dominação do território pelo turismo.
Sobre o processo de (des-re)territorialização dos membros da comunidade local
que, até então, viviam na Rua de Cima e na Rua de Baixo, Trindade (2009, p. 105)
destaca que
Com a metamorfose do vilarejo em paraíso turístico [sic], deu-se um
processo de ocupação desordenado, pois, após vender suas
propriedades, os moradores de Pipa apossavam-se de outros espaços,
cada vez mais em direção à área antes destinada às roças.
Em outro escrito, um EIA (Estudo de Impacto Ambiental) elaborado pela
empresa Pipa Incorporações e Construções Ltda. (2009, p. 5.135), vale destacar, com a
finalidade de construção de um condomínio residencial, é feita a seguinte observação:
Verifica-se que o distrito de Pipa sofreu mudanças significativas nas
formas de uso e ocupação do solo. As casas dos pescadores foram
transformando-se em bares, pousadas e restaurantes variando entre um
e dois pavimentos, chegando a três ou até quatro em alguns casos.
Com a expansão da cidadde [sic] houve uma mudança na vida dos
moradores do lugar, como também na atividade econômica, que
passou a voltar-se diretamente para os serviços turísticos.
Outro fenômeno que tem produzido significativas transformações na dinâmica
territorial local é a especulação imobiliária. Se, ao longo da década de 1990, a demanda
por imóveis esteve concentrada na Avenida Baía dos Golfinhos, Rua Beira Mar e
adjacências, para atendimento, prioritariamente, dos interesses advindos do setor
terciário, nos decênios seguintes, tem se consolidado um processo de expansão da
construção de condomínios fechados, alguns deles, inclusive, sobre as falésias.
Além de A. Gomes (1998) e Araújo (2002), que apontaram a ocorrência de
impactos gerados pela especulação imobiliária, mais recentemente, Simonetti (2012, p.
216), fez um relato no qual fica patente a persistência desse tipo de problema em Pipa.
Segundo o autor,
O morro principal conhecido como Morro de Vicência Castelo, cartão
postal da Pipa, vem sendo agredido de diversas formas. Construções
irregulares ponteiam a parte mais visível do morro, que está virando
uma verdadeira Rocinha, pela aglomeração desordenada de casas que
se penduram em suas frágeis areias.
(...)
Com uma fiscalização praticamente inexistente, a falta de atenção
estimula a multiplicação das construções clandestinas, ao velho estilo
“se colar, colou”.
195
À noite, quem passeia pela beira da praia pode ver, dentro do morro,
pontos de luz onde a escuridão da mata denuncia que ali tem uma casa
já construída ou em construção.
Entre o início e o meado da década de 2000, Pipa foi contemplada com obras de
urbanização turística realizadas com recursos do Prodetur/NE. Dentre as principais
ações, foram executadas obras de pavimentação da Avenida Baía dos Golfinhos com
paralelepípedos, esgotamento sanitário, melhorias no fornecimento de água e energia
elétrica, além da recuperação da via que liga Tibau do Sul ao povoado.
O período ora analisado marca também o ocaso de duas importantes tradições de
Pipa: segundo Simonetti (Idem), em 1998, o último curral de peixes22
, localizado na
Praia do Canto, foi demolido, ao passo que, no início desta década, o derradeiro
estaleiro do local foi transferido para Tibau do Sul, dando fim à tradicional prática da
construção de barcos.
Por outro lado, recentemente, novas práticas passam a vigorar no balneário,
como as festas de Reveillon, carnaval e Semana Santa, que, apesar dos problemas que
proporcionam para os moradores, adquirirem status de tradição local. Segundo o autor
anteriormente citado, esses feriados prolongados geram grandes fluxos de turistas para
Pipa, na sua maioria, instalados em casas alugadas especificamente para curto período
de estadia. Nesses casos, “Os inquilinos temporários, (...), estavam ali somente para se
divertir, o que significava muita bebida, algazarra e o pior: o som de grande potência
ligado na maior altura” (Ibdem, p. 225).
Ainda como parte dos esforços de ordenamento do território de Tibau do Sul, no
ano de 2008, Pipa se tornou o único distrito regulamentado, conforme Lei Municipal n.
379/2008. Isso permitiu maior sistematização das políticas públicas, especialmente
aquelas que, direta ou indiretamente, beneficiassem o desenvolvimento da prática
turística, como no caso do anel viário do povoado, cujas obras foram iniciadas em 2009
(conforme informativo da Prefeitura Municipal de Tibau do Sul).
Em se tratando das iniciativas de preservação ambiental, no final do século XX,
foi criada a APA Bonfim-Guaraíras (Decreto Estadual n. 14.369/1999), que abrange
terras de Tibau do Sul e outros cinco municípios do litoral oriental norte-rio-grandense.
Sete anos depois, foi instituído o Parque Estadual Mata da Pipa (Decreto Estadual n.
22
Os chamados currais de peixes são armadilhas fixas, de origem portuguesa, elaboradas com madeiras,
esteiras, cintas de cipó e varas, que são colocadas preferencialmente em trechos de praia com águas rasas
e pouco agitadas, formando grandes estruturas utilizadas para a captura de peixes, como o próprio nome
permite inferir (SIMONETTI, 2012).
196
19.341/2006), através do desmembramento de área que pertencia à APA anteriormente
identificada.
Na atualidade, a Praia da Pipa concentra diversos empreendimentos hoteleiros e
turístico-imobiliários, muitos dos quais edificados, neste último caso, com o propósito
maior de atender à demanda estrangeira, formada especialmente por portugueses,
espanhóis, italianos e escandinavos. Além disso, como centro de entretenimento, o
povoado possui duas galerias comerciais, denominadas Shopping Oratapiry e Pipa Praia
Shopping, outras duas boates, diversas lojas de artigos de vestuário, perfumaria,
souvenirs e artesanato, restaurantes de comida regional, brasileira e internacional, bares,
cafés e sorveterias, a maioria localizada ao longo da Avenida Baía dos Golfinhos e
adjacências.
No que tange a Porto de Galinhas, em meados da década de 1990, a vila já se
tornara o principal destino de Sol e Praia de Pernambuco, ainda que a carência de
infraestrutura fosse um dos aspectos mais preocupantes para o trade local desde a crise
do cólera, ocorrida alguns anos antes. Relatório elaborado pela então CPRH
(Companhia Pernambucana de Recursos Hídricos) aponta alguns problemas decorrentes
da inserção de novas formas de uso e ocupação do solo, entre as quais construções
irregulares e privatização dos espaços públicos, obstrução parcial ou total do acesso à
praia, precariedade no abastecimento de água, no esgotamento sanitário, dos acessos
viários, além da coleta de lixo irregular (PERNAMBUCO, 1999).
Nada disso, porém, diminuiu o ímpeto expansionista do turismo. Motivado pela
escolha de Porto de Galinhas como destino turístico oficial da administradora de cartões
de crédito American Express Card e pelo início das ações relativas ao Plano Nacional
de Municipalização do Turismo naquele centro urbano, ambos em 1996 (MENDONÇA,
RAPOSO e MELLO, 2004), o então prefeito de Ipojuca, Carlos Santana, realizou
viagem oficial a Cancún, em 1998, com o intuito de replicar no balneário algumas das
ações de sucesso empreendidas na cidade mexicana (BARROS JÚNIOR, 2002), o que
denota o interesse pela introdução de uma dinâmica territorial amplamente baseada no
turismo.
Por outro lado, a metade do referido decênio marcou o início da expansão
hoteleira em direção à Praia de Muro Alto, mais ao norte da vila e até então pouco
adensada no que se refere à construção de meios de hospedagem. Em 1994, foi
inaugurado o Marupiara Hotel Porto de Galinhas, o precursor de empreendimentos
197
como o Flat Marulhos Residence e o Parthenon Marulhos (MENDONÇA, RAPOSO e
MELLO, 2004). Ainda sobre tal expansão, França (2007, p. 105-106) afirma:
O primeiro loteamento destinado a [sic] construção de resorts e flats
data de 1999 e introduz um tipo de alojamento em evidência em outras
destinações turísticas brasileiras, que caracteriza-se por ser como
“ilhas’ de lazer direcionadas a uma clientela de alto poder aquisitivo.
Com o passar dos anos, outros empreendimentos turístico-hoteleiros e turístico-
imobiliários foram erguidos no novo vetor de expansão, ao norte. Conforme apontado
por Lima (2006), tal fato contribuiu para a formação de dois eixos de concentração de
equipamentos de apoio ao turismo: Porto de Galinhas-Maracaípe, que, na época da
pesquisa realizada pela autora, concentrava cerca de 74% dos empreendimentos, e
Cupe-Muro Alto, onde estavam localizados outros 12%.
Naquele momento, as iniciativas relacionadas ao desenvolvimento do turismo
em Porto de Galinhas se atinham às ações da iniciativa privada e algumas pontuais que
tinham no Estado o seu agente. Por outro lado, na medida em que, ainda no período
antecedente, consolidava-se o processo de desterritorialização da população pré-
existente da vila, desencadeado pela substituição paulatina das antigas residências por
empreendimentos de apoio ao turismo, outra zona de expansão tomava forma,
abrigando, neste caso, essas pessoas em movimento, além dos migrantes que se
constituíam em força de trabalho não especializada.
Áreas extensas das localidades de Socó, Pantanal e Salinas, que surgiram sobre
os manguezais a oeste da vila de Porto de Galinhas e contíguas a esta, foram ocupadas,
conformando dois setores distintos: uma parte regularizada e com certo ordenamento
urbanístico, e uma outra, resultante de invasões, exibindo características de extrema
precariedade em infraestrutura. Assim, rapidamente as localidades consolidaram-se
como locus de moradia das populações mais pobres, antigos pescadores e camponeses
autóctones, migrantes, entre outros, adquirindo características de bairros precários
(BARROS JÚNIOR, 2002; ANJOS, 2005).
Ao caracterizarem o Socó, primeiro dos bairros periféricos de Porto de Galinhas,
Mendonça, Raposo e Mello (2004, p. 189) afirmam:
Nele, reside grande parte da população economicamente ativa da
região, a maioria trabalha como jangadeiro, comerciante, ambulante,
kombeiro, bugueiro e como domésticas que prestam serviço em casas
de famílias em Porto de Galinhas.
Grande parte foi inclusive deslocada de suas casas originais, mais a
beira da praia, por irresistíveis propostas de venda feitas por novos
empresários. Muitos deles aproveitam a inocência e a boa fé dos
198
nativos para promover uma verdadeira especulação imobiliária,
comprando dos residentes locais suas casas no intuito de revender o
terreno (...).
A partir do início do século XXI, Porto de Galinhas foi contemplada com
importantes investimentos que permitiram a realização de ações que constavam no
Plano Diretor do Turismo do Ipojuca e no Projeto de Requalificação Urbana do Estado
de Pernambuco (ambos de 2003), especialmente no seu subprojeto intitulado Porto
Melhor, que previam a construção de novo acesso viário, terminal de ônibus
intermunicipal, postos de saúde, postos de informações turísticas, parque ecológico,
ciclovia, estacionamento e paisagismo (LIMA, 2006).
Com recursos do Prodetur/NE e por meio de uma parceria entre o Governo de
Pernambuco, através da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, e da Prefeitura
Municipal do Ipojuca, foram realizadas as obras da etapa 1 do subprojeto Porto Melhor.
Assim, a partir de 2005, ao longo da Rua da Esperança e na Praça das Piscinas Naturais
(transformadas em vias exclusivas para pedestres), Porto de Galinhas passou a ter
drenagem de águas pluviais, implantação de rede elétrica, com fiação subterrânea,
paisagismo e nova pavimentação. As demais obras foram executadas em um lapso de
cinco anos, com recursos provenientes do Prodetur/NE II (opus cit.).
Após alguns protestos e reivindicações de comerciantes e hoteleiros locais, a
Prefeitura Municipal do Ipojuca intercedeu em favor de tais agentes econômicos, ao
lançar medidas de disciplinamento do uso de barracas na Rua da Esperança, problema
que vinha gerando intensos conflitos entre comerciantes e ambulantes. Em 2003, ainda
como parte das ações governamentais voltadas para o atendimento de demandas dos
agentes econômicos que atuam em Porto de Galinhas, foi implantada, na rodovia PE-09,
uma espécie de barreira policial denominada Núcleo Integrado de Segurança
Comunitária (ANJOS, 2005).
No entanto, todo esse conjunto de ações não foi capaz de debelar os problemas
mais sérios vivenciados pela população, empresários e frequentadores. Enquanto França
(2007) aponta para o congestionamento de pessoas e veículos no balneário, Araújo e
outros (2007), em estudo sobre a ocupação urbana das praias do estado de Pernambuco,
identificaram problemas críticos em diversas localidades do Setor Sul da zona costeira
pernambucana, destacando, entre outras, Porto de Galinhas como uma dentre as que
apresentavam pior desempenho, em função da ocupação irregular, em especial algumas
edificações voltadas para o turismo.
199
Recentemente, em 2011, foram concluídas obras públicas em algumas das
principais avenidas do sistema viário de Socó, Pantanal e Salinas, com implantação de
arruamento, rotatória e aplicação de asfalto em determinados trechos. Segundo J.R.,
aposentado, nascido em Porto de Galinhas e residente no Pantanal, após a tomada de
tais medidas, tem crescido o número de pessoas em busca de moradias no local para
aluguel por temporada. Para ele, o “embelezamento” das vias principais teria aumentado
a sensação de segurança da parte de turistas e veranistas em relação ao bairro.
No entanto, contradizendo o discurso anterior, A.R., irmão de J.R., afirma que,
após a fixação de trabalhadores do Complexo de Suape nos bairros do Socó e Pantanal,
principalmente, tem aumentado de forma considerável o número de ocorrências
policiais com envolvimento desses novos moradores e antigos residentes. Ainda
segundo A.R., isto decorre, na maioria das vezes, de casos de assédio dos trabalhadores
às mulheres dos bairros citados e/ou de brigas resultantes do consumo excessivo de
bebidas alcoólicas por parte dos envolvidos.
Este é um aspecto novo da dinâmica territorial de Porto de Galinhas, ainda
negligenciado, que, apesar de não ter vinculação direta com o turismo, certamente trará
implicações à imagem do destino Porto de Galinhas.
Quanto as ações de preservação ambiental, a exemplo de Pipa e Praia do Forte,
houve grande interesse em vincular o Litoral Sul pernambucano, de forma mais ampla,
e o destino turístico Porto de Galinhas, especificamente, a uma retórica ecológica. Por
conta disso, no período, foram criadas a APA de Guadalupe (Decreto Estadual n.
19.635/1997), que, apesar de não agregar áreas do município de Ipojuca, contribuiu para
alavancar propostas ditas ecoturísticas em toda a porção litorânea meridional, a APA
Sirinhaém (Decreto Estadual 21.229/1998) e a RPPN Nossa Senhora do Outeiro de
Maracaípe (Portaria 58, Diário Oficial da União de 27 de setembro de 2000).
No que se refere à estrutura de apoio ao turismo, nos dias de hoje, em Porto de
Galinhas há cerca de 110 meios de hospedagens, desde resorts de padrão internacional a
albergues, grande variedade de empreendimentos comerciais de apoio à prática turística,
especialmente na Rua da Esperança e cercanias, uma agência bancária, uma casa de
câmbio e agências de receptivo, com oferta de atividades de esportes de aventura e
passeios. Além disso, a vila é considerada um dos mais importantes polos
gastronômicos do estado de Pernambuco, com restaurantes dedicados à culinária
internacional, brasileira e regional, cafés, bares, cachaçarias e boate (baseado em
entrevistas e observação).
200
Contudo, a área central da vila, onde se pode verificar relativa
verticalização dos imóveis e considerável adensamento de empreendimentos, atividades
e pessoas em praticamente todas as horas do dia, não reflete a realidade de toda Praia do
Forte, já que, por um lado, os hotéis e resorts do vetor norte de expansão – Muro Alto,
Cupe e Gamboa – permitem aos seus usuários todo o conforto, segurança e
tranquilidade que essa modalidade de confinamento territorial (YÁZIGI, 1999) pode
permitir, por outra parte, na periferia formada por Socó, Pantanal e Salinas, a população
convive com problemas relativos à precariedade da infraestrutura.
No que diz respeito à Praia do forte, quando do lançamento do Prodetur/BA, no
início da década de 1990 (antes, portanto, do período em exame), o zoneamento contido
no documento-base do Programa previa que a vila deveria se tornar um Centro Turístico
(em conformidade com o paradigma mexicano de planejamento), para que, naquele
lugar, fossem geradas oportunidades de consumo, diversão e intercâmbio cultural, além
de permitir à população local condições para o desenvolvimento de pequenos
empreendimentos turístico-hoteleiros e comerciais (SANTOS, 2011).
De fato, graças à atuação combinada do Estado e de agentes econômicos
hegemônicos dos setores turístico e hoteleiro, a primeira parte das metas traçadas
naquele documento foi cumprida, posto que Praia do Forte tenha se transformado em
um dos principais destinos para o turismo de Sol e Praia da Bahia ainda no transcorrer
da década de 1990.
O mesmo não se pode afirmar, porém, quanto ao protagonismo de indivíduos ou
grupos componentes da população local como empreendedores. Na mesma velocidade
em que os hotéis, pousadas, lojas, bares e restaurantes se instalavam na localidade,
migrantes estrangeiros, de outros estados e municípios se fixavam no balneário, quase
sempre na condição de proprietários ou funcionários especializados dos novos
estabelecimentos que surgiam.
As transformações na dinâmica territorial de Praia do Forte decorrentes da sua
turistificação e a inclusão precária dos moradores locais na nova economia emergente já
podiam ser notadas na segunda metade da década de 1990, como descreve Sobrinho
(1998, p. 47), mencionando, ainda, uma citação de R. Lorenzo:
A atual organização sócio-espacial da vila foi descrita por LORENZO
(1996, p. 87) “(...) a maioria da população nativa mora na Alameda da
Lua, antiga rua Detrás, situada ao lado esquerdo da rua do Meio.
Nessa rua são poucos os estabelecimentos comerciais de pessoas de
fora, havendo algumas barracas feitas de madeira, e sendo comum a
comercialização, nas janelas e portas das casas, de cocadas e doces
201
típicos do lugar, ou de mingaus, bolos e vários tipos de cuscuz, para o
café da manhã”.
Na rua da Aurora, pode-se observar um número significativo de
moradores naturais de Praia do Forte, ao lado de muitas casas
comerciais de propriedade de pessoas de fora. Pousadas de padrão
médio, um apart hotel, lojas de artesanato, boutiques, dentre outros,
dividem o espaço da rua com as casas dos nativos. Afastados do
centro da vila, há condomínios residenciais, ocupados,
exclusivamente, por moradores não nativos, que se distinguem pela
elevada estratificação social.
A descrição, elucidativa ao extremo, dá pistas para o entendimento das novas
territorialidades que, então, começavam a serem esboçadas: a expansão da atividade
comercial a partir das vias principais da vila e as tentativas de inserção da população
nativa na economia do turismo; por outro lado, o surgimento dos condomínios como
garantia de autossegregação dos grupos sociais mais abastados que passaram a viver na
vila.
Ainda conforme a citação acima, no início do período ora analisado, havia, entre
os ditos nativos, uma estratégia de construção de barracas para venda de produtos, o que
contrariava as rígidas determinações urbanísticas impostas pela Fundação Garcia
D’Ávila. Tal iniciativa era comum nas ruas onde vigoravam as atividades próprias do
circuito inferior da economia relatadas acima, mas também nas praias. Tal estratégia,
aliás, foi responsável pela deflagração de um dos conflitos mais impactantes e explícitos
que ocorreu entre moradores locais e dois dos agentes hegemônicos irmanados, ou seja,
a Prefeitura Municipal de Mata de São João e a FGD.
Segundo reportagem do Jornal A Tarde, datada de 3 de maio de 1997 (p. 2),
dezenas de seguranças do então Hotel Resort Praia do Forte, portando armas de grosso
calibre, destruíram as barracas localizadas no trecho mais próximo à vila, agrediram e
ameaçaram de morte os seus proprietários. Ainda de acordo com a reportagem, os atos
violentos teriam sido ordenados pela então prefeita do município, Márcia Carneiro Dias,
por conta da recusa dos proprietários em aceitar os termos de um projeto de
padronização das barracas, a ser elaborado pela Conder.
Em 2002, foram concluídos os trabalhos relativos à primeira etapa da
urbanização turística da Vila dos Pescadores23
, uma das obras previstas no Prodetur/NE
para a zona turística então denominada Costa dos Coqueiros. Desta forma, realizou-se o
ordenamento da via principal – Rua Alameda do Sol – com retirada ou realocação de
23
Topônimo também utilizado para designar a nucleação central do povoado de Praia do Forte.
202
barracas, implantação de revestimento com bloquetes e paisagismo nos canteiros
centrais (FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DA BAHIA, 2004).
Além disso, foram realizadas as primeiras obras de saneamento ambiental, com
canalização das águas pluviais e implantação de esgotamento sanitário, implantação de
energia elétrica, com posteação e redes subterrâneas, bloqueio do acesso de veículos
automores e reformas pontuais de imóveis, seguindo as especificações da FGD.
A segunda etapa das obras, com ampliação das ações de urbanização turística e
paisagismo para as demais ruas da vila, aconteceu com recursos provenientes do
Prodetur/NE II.
As transformações advindas da urbanização turística não se limitaram à estética
do lugar. Mais que isto, a nova configuração paisagística é parte de uma estratégia de
dotar os espaços mais intensamente apropriados pelos turistas em cenário e centro de
comércio e serviços, o que, por sua vez, impõe novos arranjos na dinâmica territorial do
lugar. Em dois trechos da sua dissertação, Pereira (2008, p. 182-183) expõe o caráter
das mudanças em curso: “A substituição de usos na vila foi radical a partir do ano 2002
quando foi implantada a urbanização de Praia do Forte. De uso predominantemente
habitacional passa a comercial e de serviços, alterando o caráter da vila (...)”.
Anteriormente, a autora comentara:
A riqueza gerada pelas novas atividades econômicas se constrói com
graves mudanças de práticas sócio-espaciais, inclusive inviabilizando
o acesso aos meios de produção e de comercialização, com alteração
dos circuitos de deslocamentos, exigindo o reordenamento de
atividades, na pesca, na mariscagem, no comércio de coco-da-bahia,
no comércio informal (opus cit., p. 159).
Atualmente, a vila, segundo a autora, “(...) dentre as que se situam no lado leste
da Rodovia [BA-099] é a que tem estrutura urbana mais desenvolvida com um conjunto
de arruamentos no núcleo central e loteamentos contíguos (...)”. Além disso,
atualmente, Praia do Forte possui uma considerável diversidade de empreendimentos
turístico-hoteleiros, comerciais e de serviços, muitos dos quais absolutamente incomuns
fora do contexto das grandes cidades. Tal exuberância, vale mencionar, é causa e
consequência do processo acelerado de ocupação do balneário.
O mesmo não se pode afirmar, porém, das nucleações localizadas na margem
ocidental da Linha Verde, carentes de grande parte da infraestrutura básica. Diferentes
de Praia do Forte, há grande carência em nucleações como Açu da Torre, Malhadas e
Campinas, além dos loteamentos Malhados e Açuzinho, os dois últimos edificados sob
203
ordem da FGD com o intuito de conter a pressão demográfica sobre o balneário,
especialmente por parte dos migrantes que formam contingentes de trabalhadores não
especializados, despossuídos, portanto, de renda para adquirir imóveis na Vila dos
Pescadores (SOBRINHO, 1998; MURICY e SANTOS, 2009).
Tal iniciativa, aliada à indisponibilidade de terrenos, foi fundamental para a não
ocorrência de processos de favelização no entorno da vila, algo comum no lado oeste da
BA-099, onde, segundo Alves (2009), está concentrada a força de trabalho que realiza
as atividades de atendentes de bares e lanchonetes, serviços da pequena construção civil,
serviços domésticos, além de outros não especializados.
Quanto às ações de turistificação promovidas pelo capital privado, conforme
planejamento elaborado ainda na década de 1980, a dominação do frontispício litorâneo
de Praia do Forte pelo setor turístico-hoteleiro consolidou-se com a já citada
inauguração, em 2006, do Iberostar Praia do Forte Golf & Spa, um
megaempreedimento, de capital espanhol, localizado ao norte da vila, zona que se
tornou também um vetor de expansão para condomínios fechados.
Vale salientar que a construção desse meio de hospedagem – ao menos na etapa
subsequente – foi envolvida em algumas controvérsias, principalmente no que concerne
às licenças ambientais e às contrapartidas estabelecidas entre a multinacional espanhola
e o Estado brasileiro, nas suas esferas estadual e municipal. Após acertos com tais
instâncias de governo e a celebração de um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) que
teve o Projeto Tamar como beneficiário, o Grupo Iberostar retomou os planos originais
relativos à sua territorialização no Litoral Norte baiano.
Quanto aos condomínios e loteamentos de médio e alto padrões, tais modelos de
habitação passaram a proliferar nas zonas contíguas à vila principalmente após a
conclusão das obras de urbanização turística, ainda que algumas delas tenham sido
construídas no período precedente. Segundo Pereira (2008), as construções tem aspecto
de residências urbanas adequadas às dimensões médias dos lotes, que são de 450m2.
No que tange ao cumprimento de ações de preservação do meio ambiente
local/regional, algo fundamental na consolidação da retórica do destino turístico dito
sustentável, em 1995, foi apresentado o ZEE da APA Litoral Norte, que definiu Praia do
Forte como Zona Turística Especial e Zona de Urbanização Prioritária (BAHIA, 1995),
sem restrições ao modelo de urbanização que viria a ser implantado anos mais tarde. Em
2001, foi criado o Instituto Baleia Jubarte, com sede na vila, cujo objetivo precípuo é
estudar e proteger essa espécie de mamífero marinho (MATA DE SÃO JOÃO, 2008).
204
Atualmente, em Praia do Forte, existe quase uma centena de meios de
hospedagens, entre resorts, pousadas, albergues e campings, cerca de quarenta e cinco
empreendimentos do segmento de Alimentos e Bebidas (restaurantes, bares, cafés,
creperias e sorveterias), diversas lojas de artigos de vestuário, algumas de marcas
internacionais, perfumaria, artesanato e souvenirs, joalherias, além de shopping center,
mercados, agências de receptivo turístico, seis caixas eletrônicos, um hospital de
pequeno porte, dois postos de saúde e uma escola de ensino básico (baseado em
entrevistas e observações).
Em que pese todo essa aparente sofisticação, a realidade da nucleação é marcada
por situações de conflito, como as que foram evidenciadas alhures, e problemas
causados pela reestruturação territorial produtiva baseada no turismo que expõem uma
face do processo de territorialização desenvolvido em Praia do Forte que em quase nada
se assemelha às impressões expostas por Albán (2008, p. 18), para quem o balneário é
uma “exceção não generalizável” de desenvolvimento turístico sustentável.
6.3.4 Síntese comparativa do período
Uma análise sintética e assentada em uma abordagem comparativa das
dinâmicas territoriais de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte no período entre 1994
e 2012 permite perceber que a ampliação de ações voltadas à turistificação dos centros
urbanos, com base em práticas (neo/pós)fordistas de produção e consumo do espaço, as
tornou mais complexas desde as perspectivas política, econômica, social e cultural, o
que resultou no surgimento de novas formas de territorialização, muitas delas
conflitando com as antigas.
Ao longo do período, sob a “batuta” do Estado e dos investidores, dois agentes
em atuação harmônica, o turismo se impôs como a atividade econômica que preside o
quadro da realidade nos três balneários, notadamente por meio da cooptação de grande
parte da população local, que abandonou afazeres tradicionais, passados de geração em
geração e que, de certo modo, davam um acento de singularidade às nucleações
examinadas, em favor da participação em um novo mercado de trabalho, com ritmos,
modelos e tarefas firmados a partir de lógicas estranhas ao lugar.
Além disso, diante do interesse em consolidar o processo de reestruturação
territorial produtiva, ao invés de manterem aspectos que denotavam a identidade de
cada um dos balneários, o Estado e os agentes econômicos promoveram ajustes
espaciais (HARVEY, 1996) que transformaram Pipa, Porto de Galinhas e Praia do
205
Forte, ao menos em suas áreas centrais, em verdadeiros shopping centers, obscurecendo
qualquer lembrança daquelas que um dia foram vilas de pescadores. Assim, novas
formas de produção simbólica e material emergem desse processo,
(...) introduzindo, por um lado, ideias, valores, crenças, além de uma
nova ordem moral, e uma gama de objetos “alienígenas” na paisagem,
de outro todos articulados e articuladores do lugar com o mundo,
ainda que forma extremamente seletiva e segregária (BRANDÃO,
2009b, p. 104).
Em que pese a condição de serem concorrentes em um mesmo mercado, os
lugares diferenciam-se cada vez menos em seus atributos espaciais. Seja por efeito
demonstração ou pela força das técnicas impostas pelos agentes hegemônicos que
promovem o turismo, o fato é que, no período, as ações vão se tornando cada vez mais
convergentes, em especial (mas não somente), a partir, primeiro, da consolidação da
prática turística como principal atividade econômica e da intensa mobilidade
populacional e do capital daí advindas e, em seguida, da efetivação dos projetos de
urbanização turística previstos no Prodetur/NE para os balneários de Pipa, Porto de
Galinhas e Praia do Forte.
Nas localidades supra citadas, a totalidade da população está lidando, assim,
com dois processos tratados por Milton Santos, na sua obra A natureza do espaço
(2002a): a unicidade técnica e a convergência dos momentos.
Segundo o autor supramencionado, ao longo da história, o intercâmbio desigual
de técnicas entre os grupos tem imposto a uns (hegemonizados) os meios instrumentais
e sociais de outros (hegemônicos). Assim:
Entre aceitação dócil ou reticente, entre imposição brutal ou
dissimulada, a escolha é, entretanto, inevitável. É assim que conjuntos
inteiros ou pedaços de técnicas se incorporam a outros pedaços
mudando-lhes os antigos equilíbrios e acrescentando elementos
externos às histórias até então autônomas (Idem, p. 190).
Com isso, a quantidade de técnicas se reduz, tornando os lugares nos quais são
introduzidas tendentes a uma unificação (algo próprio da natureza do capitalismo) que
atinge o seu clímax com a ocorrência da unicidade técnica – “base material da
globalização” (Ibdem, p. 191) –, algo que, por sua vez, torna universal todo um sistema
de objetos.
Não obstante, para que a unicidade técnica se faça realidade, é necessário que
ocorra um evento que a delibere. Quando há simultaneidade de eventos que permitem a
proliferação dessa técnica única, se está diante de um processo de convergência dos
206
momentos. Ainda que tais momentos não sejam iguais, são unitários, posto que estejam
unidos por uma lógica comum. Desse duplo processo decorre o fato, no âmbito do que
se está aqui analisando, dos distintos destinos turísticos serem cada vez mais parecidos
em sua paisagem construída.
Por outro lado, nas localidades de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte, com
maior ou menor grau de intensidade, mas de forma indistintamente perversa, o
desenvolvimento do turismo – a despeito de alguns ganhos, principalmente no que se
refere ao acesso à água, eletricidade e esgotamento sanitário, por exemplo – ocorreu às
custas da precarização dos modos de vida da maioria da população nativa, apenas
parcialmente adaptada, quando muito, às vertiginosas transformações ocorridas nos
lugares ora evidenciados, e usurpada do direito ao usufruto dos espaços hoje
privatizados.
Quanto ao processo de desterritorialização das populações locais, é possível
identificar algumas especificidades. Em Praia do Forte, por exemplo, a mobilidade da
população formada pelos grupos estabelecidos desde antes da turistificação se deu,
primordialmente, para além da vila, na margem oposta da rodovia BA-099 (a Estrada do
Coco), seja em nucleações pré-existentes ou em outras, construídas sob os auspícios da
FGD. Em Pipa e Porto de Galinhas, ao contrário, os novos assentamentos destinados
aos antigos pescadores e camponeses foram erigidos em áreas contíguas às localidades,
ampliando consideravelmente as manchas urbanas.
Essas diferenças, verificadas em Praia do Forte, de um lado, e em Pipa e Porto
de Galinha, de outro, ocorreram em função do baixo estoque de terras no entorno da vila
baiana, fruto das medidas restritivas de ocupação e uso do solo impostas pela FGD há
décadas passadas.
207
Capítulo 7
TERRITÓRIOS DO TURISMO, TERRITÓRIOS DE TODOS?
ANÁLISE COMPARATIVA DAS DINÂMICAS SOCIOTERRITORIAIS EM
PIPA, PORTO DE GALINHAS E PRAIA DO FORTE
O questionamento que abre o título deste capítulo (e da própria tese) carrega em
si uma provocação, havendo um motivo para isto. Segundo Santos (1994b), o território
de todos é sinônimo de espaço banal e este, por sua vez, é o espaço de vivência das
empresas, instituições e pessoas, cujo compartilhamento das relações é marcado,
predominantemente, pelo que o próprio autor denominou de horizontalidades
(SANTOS, 2000; 2002a).
Assim, nas condições atuais, nas quais interesses exógenos são privilegiados a
despeito das vontades, desejos e anseios localmente constituídos, vale indagar em que
medida, nos territórios do turismo, as condições de apropriação são as mesmas para a
totalidade dos agentes que os constituem ou os ditos territórios de todos são, na verdade,
uma esperança, uma utopia?
Deve-se esclarecer que a intenção do exame em curso não é a de negar os
postulados desenvolvidos por Milton Santos, mas de confrontá-los com as realidades
construídas na especificidade dos territórios dominados pelo turismo, buscando a
empiricização de tais formulações teóricas. Assim, conforme explicitado no Capítulo 5
desta tese, para traçar o quadro o quanto mais fidedigno possível das dinâmicas
territoriais praticadas pelos grupos locais dos balneários em estudo, esta análise
empírica resulta, principalmente, do exame crítico e reflexivo do conjunto de dados
obtidos através da realização/aplicação de três procedimentos metodológicos, quais
sejam: observação sistemática, entrevista e questionário.
Neste capítulo, são apresentados, portanto, os resultados da pesquisa direta
realizada junto aos agentes que Rafestin (1993) denominara de sintagmáticos, o que, no
caso desta tese, se refere, em específico, às organizações sociais, representadas pelas
associações de moradores ou de classe (condutores de buggy, taxistas, pescadores, etc.),
as organizações não-governamentais e grupos de interesse específico (surfistas,
naturalistas, “mochileiros”, etc.), os indivíduos, grupos não constituídos formalmente e
sociedade local e os turistas, ainda que desempenhando um papel secundário nesta
perspectiva de análise.
208
Para tanto, este trecho da tese possui três seções: a primeira, cujo intuito é traçar
um breve panorama da situação atual das localidades em estudo, mormente naquilo que
se refere ao papel que desempenham para o desenvolvimento do turismo nos seus
respectivos estados e no Nordeste e de algumas contradições subjacentes ao processo de
turistificação; a segunda, na qual se estabelece um perfil dos moradores das localidades
que cederam informações e se faz uma análise das suas percepções acerca do turismo e
das territorialidades das quais fazem parte; e a seguinte, que se configura como um
esforço de interpretação crítica dos dados obtidos em campo, resultando em uma análise
comparativa – a busca pelas diferenças e similaridades – das dinâmicas territoriais
forjadas pelas populações que habitam Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte.
Importante salientar, de passagem, que os trechos de entrevistas aqui transcritos
foram escolhidos em obediência a três critérios: por (a) sintetizarem um pensamento
corrente entre os entrevistados, (b) reforçarem as análises obtidas através dos
questionários e/ou (c) como forma de enfatizar determinado processo ou fenômeno
observado quando das atividades em campo, evitando-se a inclusão de longos
fragmentos das falas obtidas. Nesse sentido, a ideia fundamental por trás da utilização
desse procedimento é contribuir, de forma clara e objetiva, na operacionalização da
técnica de triangulação de que trata Triviño (2009).
7.1 Breves considerações sobre a importância atual de Pipa, Porto de Galinhas e
Praia do Forte no panorama turístico do Nordeste brasileiro
Os balneários turísticos de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte figuram
hoje, juntamente com as localidades de Porto Seguro (Bahia), Canoa Quebrada e
Jericoacoara (Ceará), como os mais importantes destinos turísticos de Sol e Praia do
Nordeste brasileiro, o que se pode comprovar através dos investimentos públicos e
privados já realizados e programados ou pelos quantitativos de turistas que visitam as
referidas nucleações a cada ano.
Necessário, pois, delinear breves considerações a respeito do papel que cada um
dos destinos em exame desempenha no competitivo mercado turístico em seus
respectivos estados e no Nordeste brasileiro, o que permite compreender, de modo mais
amplo, a sua importância estratégica, assim como as contradições advindas de um
processo que coaduna fartos investimentos públicos e privados em favor de interesses
hegemônicos, seletividade espacial resultante da formação de cenários de consumo
turístico e a busca pelo direito à cidadania por parte dos grupos sociais preexistentes.
209
Em cada um dos destinos, é possível observar características e processos –
muitos deles mensuráveis através de dados quantitativos – que refletem a sua
importância na economia do turismo e como meio de divulgação dessa prática nas
unidades federativas das quais fazem parte, como se verá a seguir por meio de alguns
exemplos.
A Praia da Pipa é, junto com Natal, o grande destino turístico norte-rio-
grandense na atualidade, atraindo fluxos contínuos de turistas nacionais e estrangeiros,
além dos investimentos públicos e privados, informações já aventadas em outros trechos
deste estudo.
Em 2011, contrariando as expectativas da ABIH-RN (Associação Brasileira da
Indústria de Hotéis, seção Rio Grande do Norte), cuja diretoria apresentou dados que
apontavam uma queda de cerca de 20% na taxa de ocupação em todo o estado
(GIBSON, 2011), a Assessoria de Comunicação da Prefeitura Municipal de Tibau do
Sul divulgou nota dando conta de que aquele período de alta estação seria um dos
melhores dos últimos anos em Pipa, com hotéis e pousadas atingindo mais de 90% de
leitos ocupados.
No que concerne ao uso do balneário como meio de divulgação do turismo
potiguar, de acordo com reportagem do Diário de Natal (2012), recentemente, a Praia da
Pipa foi escolhida para a realização das locações de telenovela a ser exibida ao longo de
2013. Tal escolha é, geralmente, precedida de negociações entre as emissoras de TV e
os governos estaduais, que oferecem incentivos e facilitações às empresas de
comunicação visando expor destinos turísticos em horário nobre.
Segundo reportagem veiculada no Diário de Pernambuco, datada de 12 de
janeiro de 2012, os altos índices de ocupação dos hotéis do estado na alta temporada de
2011/2012 podem ser creditados não apenas aos atrativos turísticos tradicionais de
Recife e Olinda, mas também, em muito, pelo desempenho do setor nas localidades do
Litoral Sul pernambucano, com destaque para Porto de Galinhas.
De acordo com o texto, “(...) em janeiro, especialmente nos fins de semana,
hotéis de praias badaladas, como Porto de Galinhas e Tamandaré, têm registrado
ocupação máxima (...) (p. 4)”. Ainda de acordo com a reportagem, enquanto a média de
ocupação dos hotéis no Recife foi de 85%, no Litoral Sul, atingiu 95%, ao passo que,
em Porto de Galinhas, especificamente, foram 88% das unidades ocupadas.
No que se refere à divulgação do balneário, Porto de Galinhas, assim como Praia
do Forte, foi um dos destinos onde foram realizadas locações da temporada 2012 do
210
reality show Nalu Pelo Mundo, exibido pelo canal de TV por assinatura MultiShow, um
dos programas televisivos mais influentes do Brasil na formação de opinião sobre
destinos turísticos voltados para famílias.
Por outro lado, em reportagem publicada no jornal Correio da Bahia, edição n.
11.003, de 01 de dezembro, Chammas (2012) aponta que, apesar de manter a liderança
em turismo no Nordeste, a Bahia já não tem Salvador como o centro turístico por
excelência, tendo passado a dividir a sua importância estratégica com outros destinos,
incluindo o Litoral Norte24
e, em específico, Praia do Forte, o que tem a ver, conforme
Rebecca Torres (2002), com a flexibilidade atual da prática turística.
Ainda conforme a autora, no período entre 2009 e 2011, houve uma queda de
13% no número de pernoites na capital baiana, ao passo que o Litoral Norte atingiu um
crescimento de 50%, consolidando a região como “(...) a que mais compete com
Salvador pela atração dos turistas” (CHAMMAS, 2012, p. 28) no estado da Bahia.
Quanto à divulgação do destino, além das locações do programa Nalu Pelo
Mundo, já mencionadas, em informativo oficial datado de 03 de agosto de 2012, a
Prefeitura Municipal de Mata de São João dá a saber que o município foi um dos três
pré-selecionados do Nordeste para ser Centro de Treinamento da Copa do Mundo de
Seleções de 2014. O local previamente escolhido foi o Hotel Tivoli, em Praia do Forte,
que receberá investimentos para adequá-lo às exigências do comitê organizador do
evento.
Além disso, graças à importância de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte no
contexto turístico nacional, os municípios de Tibau do Sul, Ipojuca e Mata de São João,
respectivamente, estão entre os 65 destinos indutores do turismo no Brasil, como parte
da macrorregião Nordeste, sendo o primeiro um entre os dois do Rio Grande do Norte, o
segundo compondo a lista de três correspondentes ao estado de Pernambuco e o último
dos citados entre os cinco integrantes da Bahia (BRASIL, 2012).
Em estudo que avalia o índice de competitividade dos 65 destinos indutores do
turismo nacional (BRASIL, 2011a), os balneários de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do
Forte são apontados como destinações de nível 3, na segmentação Sol e Praia, em um
total de cinco níveis. Dentre os destinos que compõem tal segmentação, apenas
Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro, atingiu o nível 4. O posicionamento indica
24
Mata de São João, do qual Praia do Forte faz parte, está localizado no Polo Salvador e Entorno. Porém,
é ainda difundido, no senso comum, o emprego do termo Litoral Norte, que se refere à Região Econômica
da qual o município fazia parte até recentemente, antes de passar a fazer parte da Região Metropolitana de
Salvador.
211
que os balneários estão em fase de desenvolvimento, posto que agreguem serviços e
equipamentos turísticos necessários ao bom funcionamento das práticas turísticas de Sol
e Praia, mas demandam melhorias.
Apesar da aparente frieza dos números e da superficialidade das notícias, as
informações acima divulgadas são reveladoras da importância atual que Pipa, Porto de
Galinhas e Praia do Forte – como destinos-âncora ou destinos indutores25
de seus
respectivos polos – tem no panorama turístico nordestino. Ao observar a relevância que
as taxas de ocupação de cada uma das localidades possui em comparação ao total do
estado, é possível inferir o nível atual de participação desses balneários na atração de
turistas em direção ao litoral do Nordeste.
Os exemplos acima descritos resultam de estratégias políticas e econômicas que
visam manter as localidades em uma condição de plena competitividade no mercado
turístico, transformando-as em centros de fundamental importância na geração de
superávit, para o Estado, e lucro, para os agentes econômicos. Nisso, os balneários de
Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte se tornaram paradigmas de sucesso para as
demais localidades litorâneas do Nordeste brasileiro com potencial para o turismo de
Sol e Praia.
Ocorre, porém, que, para além dos expressivos resultados numéricos e da
condição de excelência alcançada pelos destinos turísticos, as localidades mencionadas
são formadas, antes de tudo, por pessoas cujas vidas foram e são transformadas por
processos que alteram os ritmos singulares de reprodução social, impondo outros, ainda
que os benefícios colhidos sejam apenas aparentes ou parciais, muitas vezes falaciosos.
A Figura 18 é ilustrativa do que se está tratando, posto que permita demonstrar
que a desigualdade social é, ainda hoje, um grave problema na realidade dos municípios
onde Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte estão localizados. Entre os anos
censitários de 1991 e 2010 houve aumento do Índice de Gini26
em dois dos três
territórios e, mesmo em Ipojuca, cuja tendência é de queda no último interstício de
tempo observado, a redução da desigualdade é pouco notável, sem conseguir sequer
igualar os valores obtidos em 1991.
25
Termo atualmente empregado pelos órgãos federal e estaduais de turismo como designativo dos
destinos turísticos que polarizam investimentos públicos e privados em cada uma das unidades regionais
de turismo do estado da Bahia (BAHIA, 2011). 26
Segundo Holanda, Gosson e Nogueira (2006, p. 3), o índice de Gini “é uma medida de concentração ou
desigualdade comumente utilizada na análise da distribuição de renda”. Tal medida varia entre os
numerais 0 e 1. Índices mais próximos do valor mínimo revelam menor desigualdade de renda, ao passo
que, ao contrário, quando próximos do valor máximo, tem-se uma condição de concentração de renda.
212
Figura 18. Evolução do Índice de Gini dos municípios de Ipojuca (PE), Mata de São João (BA) e Tibau do Sul (RN) (1991-2010).
Fonte: Acervo do DataSus (2012).
Ao que tudo indica, contrariando os discursos proferidos pelos agentes
hegemônicos que atuam nas localidades (exemplos de tais discursos podem ser
encontrados em MATA DE SÃO JOÃO, 2008; SERICANO, 2003; TIBAU DO SUL,
2008, entre outros), o turismo não foi capaz de oferecer melhoria substancial nas
condições de vida de uma grande parcela das populações que habitam Ipojuca, Mata de
São João e Tibau do Sul. Ao observar a Tabela 01, que aponta a participação percentual
de cada setor da economia na composição do PIB desses municípios, é possível
perceber a importância que o terciário, no qual o turismo se enquadra, exerce.
Tabela 01. Produto Interno Bruto dos municípios de Ipojuca (PE), Mata de São João (BA) e Tibau do Sul (RN), segundo setores da economia (2009).
Municípios Setores da economia (%)
Primário Secundário Terciário
Ipojuca 1,0 28,0 71,0
Mata de São João 8,0 26,0 66,0
Tibau do Sul 12,0 19,0 69,0
Fonte: Brasil (2011b).
0
0,1
0,2
0,3
0,4
0,5
0,6
0,7
1991 2000 2010
(Ano)
(Ín
dic
e d
e G
ini)
Ipojuca Mata de São João Tibau do Sul
213
Em Ipojuca, cerca de 71% do PIB são provenientes do terciário, enquanto que
em Mata de São João e Tibau do Sul, os números giram em torno de 66% e 69%,
respectivamente. Assim, através do cruzamento dessas informações relativas à
desigualdade social e ao PIB por setor, é possível inferir que os ganhos econômicos
gerados pelo turismo estão, ainda, concentrados.
O que se tem, nesses casos, é, parafraseando Arantes (2002, p. 70), uma
realidade em “duas velocidades”, posto que o célere processo de reprodução do capital
via setor terciário nos municípios aventados (que se dá a reboque dos lucros
vertiginosos auferidos pelos agentes ligados ao turismo) não proporcione uma
disseminação equânime dos benefícios gerados, sob efeito da lenta, quase inerte,
distribuição dessa riqueza.
7.2 As percepções dos moradores de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte:
reprodução social, turismo e territorialidades
Os dados obtidos através dos questionários favorecem a formação de um perfil
das pessoas inquiridas, que são, em sua maioria, mulheres, com idade entre 21 e 30 anos
(nas três localidades), detentoras de nível fundamental de escolaridade, em Pipa, e nível
médio, em Porto de Galinhas e Praia do Forte, vivendo em casa própria, na qual
habitam há mais de cinco anos, compartilhando moradia com outras quatro pessoas. A
renda média mensal gravita entre um e dois salários mínimos.
Quanto ao local de nascimento, em Pipa, 36% são “nativos”, 21% provém de
outras localidades de Tibau do Sul e 43% são migrantes de fora do município; em Porto
de Galinhas, 32% nasceram no próprio balneário, 24% são oriundos de outras
localidades de Ipojuca e 44% são de fora do município; em Praia do Forte, os
percentuais são: 28% de nascidos na vila, 24% de munícipes de outras localidades e
46% são migrantes de fora de Mata de São João.
Importante salientar que, diferentemente do que ocorre entre os moradores que
atuam ou são proprietários dos empreendimentos comerciais ou turístico-hoteleiros de
maior porte, nenhum dos inquiridos nasceu em outro país ou em estados daquela que
Santos e Silveira (2001) denominaram de região concentrada do Brasil. Os migrantes
oriundos de localidades fora das unidades político-administrativas onde os balneários
estão localizados são, em sua grande maioria, de municípios limítrofes ou próximos, das
respectivas capitais estaduais e de outros estados do Nordeste, nesta ordem.
214
A grande diversidade das respostas quando da declaração da fonte principal de
renda não permite enquadrar os inquiridos em um perfil mais ou menos homogêneo,
posto que cerca de 11% (em Pipa e Praia do Forte) e 13% (em Porto de Galinhas)
tenham se identificado como aposentados, outros 44% (em Pipa), 45% (em Porto de
Galinhas) e 42% (em Praia do Forte), declararam exercerem atividades típicas do
circuito inferior da economia, enquanto que 41% (Pipa), 38% (Porto de Galinhas) e
42% (Praia do Forte), informaram que atuam em afazeres próprios do circuito superior.
Do total de pessoas submetidas ao questionário, 4%, em Pipa e Porto de Galinhas, e 5%,
em Praia do Forte, se autodeclararam desempregadas.
Entre aquelas pessoas que afirmaram trabalharem em atividades ligadas ao
circuito inferior, 33%, em Pipa, 35%, em Porto de Galinhas, e 38%, em Praia do Forte,
declararam serem os proprietários dos empreendimentos. Nos demais casos, os
inquiridos se identificaram como empregados. Quanto aos que declararam exercerem
atividades em empreendimentos do circuito superior, 34%, 33% e 35%, em Pipa, Porto
de Galinhas e Praia do Forte, respectivamente, informaram serem proprietários dos
estabelecimentos onde atuam. Os outros informantes se autodeclararam empregados.
Ao explicitar a teoria dos dois circuitos da economia urbana, Santos (2004)
menciona alguns aspectos que tem repercussão no quadro da realidade vigente nos
balneários em estudo. Conforme denotado pelo eminente geógrafo, o circuito superior
da economia é formado basicamente pelas atividades modernas (ainda que o autor
rejeite o uso do termo “circuito moderno”), em cuja utilização de tecnologia,
organização burocrática e formalização sejam atributos fundamentais para a sua
constituição. O circuito inferior, ao contrário, é marcado pelas atividades que empregam
trabalho intensivo (pela menor disponibilidade de capital e tecnologia), organização
primitiva e menos ou inexistente formalidade.
No caso das localidades em estudo, é possível perceber que há certo equilíbrio
na oferta de postos de trabalho em ambos os circuitos, ainda que não seja possível
afirmar o mesmo quanto à propriedade dos negócios nos quais a população local atua.
Em ambos os circuitos, há prevalência de pessoas que exercem atividade laboral para
terceiros, o que permite identificar um potencial ainda pouco explorado para iniciativas
empreendedoras de base local.
Por outro lado, Santos (Idem) identifica que as atividades do circuito inferior
estão relacionadas à formação de uma superpopulação relativa, cuja origem está na
forma de atuação das empresas hegemônicas (talvez não caiba, no caso em tela, utilizar
215
os termos monopólio e oligopólio, como fizera o autor), não afeitas à absorção dos
excedentes de mão de obra. Assim, aos candidatos não recrutados restariam a mudança
para outros setores da atividade ou o não-emprego, “abastecendo”, enfim, o circuito
inferior da economia de mão de obra.
Em algumas entrevistas concedidas por moradores das localidades examinadas,
surgem exemplos que ilustram, com desconcertante perfeição, o que fora dimensionado
nas linhas precedentes. A.S., garçom de barraca de praia em Porto de Galinhas, morador
de Nossa Senhora do Ó, afirma:
O trabalho de garçom é sacrificado e não compensa. É trabalho
demais para pouco ganho. (...). Tenho curso de garçom e de eletricista.
(...). Já deixei currículo em hotel, preenchi ficha, até para uma
entrevista de emprego num restaurante eu já fui, mas ainda consegui
ser “fichado”. (...). Enquanto isso, vou ficando na praia mesmo,
ganhando uns trocados, né? Melhor do que nada. (...). Tenho um
conhecido que tá [sic] vendo umas “coisas” prá [sic] mim e, se tudo
der certo, vou trabalhar em Suape.
Segundo H.T., vendedor ambulante em Pipa, morador ocasional do loteamento
Bela Vista, a não absorção no mercado formal o impeliu para a atividade que ora
exerce:
Quando vim para cá, pensei em conseguir um emprego em hotel ou
restaurante, pois era nesse ramo que eu trabalhava antes, lá em Natal.
Tentei, tentei, mas não consegui nada. Aí, um primo meu que vende
canga e bronzeador em Genipabu me ofereceu uns produtos fiado [sic]
para eu vender, mas longe dele (risos). Aí, resolvi voltar prá [sic] cá e
tô [sic] nesse ramo já faz [sic] uns seis anos.
Venda ambulante, prestação de serviços e trabalhos domésticos são as principais
atividades do circuito inferior da economia que acolhem os moradores locais não
absorvidos em empregos formalmente constituídos. Contudo, a despeito da existência
desse excedente, há forte atuação dos agentes hegemônicos no sentido de barrar as
iniciativas espontâneas de exercício dessas atividades econômicas.
Em Porto de Galinhas, por exemplo, a aparente harmonia entre os diversos
agentes ali alocados, sustentada pelo discurso oficial das peças publicitárias da
Prefeitura Municipal de Ipojuca, bem como pelas falas correntes dos agentes
econômicos locais, pode ser contradita pela existência de alguns objetos e pela
ocorrência de algumas ações, nem sempre evidentes, mas que revelam, no mínimo,
certo desacordo de interesses entre as partes coexistentes.
216
Em uma das áreas de maior circulação de turistas, no largo que finda a Rua da
Esperança e dá acesso à praia, há uma placa, instalada por ordem da Prefeitura
Municipal de Ipojuca, na qual se adverte sobre a proibição de comércio ambulante
naquele logradouro (Figura 19). Reveladora e desconcertante, a referida placa é um
instrumento que coage não só pelos dizeres e símbolos proibitivos, mas pela própria
localização onde fora afixada, denotando a presença fiscalizadora e severa do Estado
justamente em local de concentração de pessoas, tal e qual o pelourinho no centro de
uma urbe colonial portuguesa.
Figura 19. Porto de Galinhas: largo no final da Rua da Esperança. Em destaque, placa afixada pela Prefeitura Municipal de Ipojuca.
Fonte: Acervo do autor (2012).
A placa se impõe como um instrumento de normatização empregado com o
intuito de estabelecer um “efeito-represa” que impeça a ação daqueles que atuam em um
dos níveis mais elementares do circuito inferior da economia, considerados nocivos ao
bom desempenho de Porto de Galinhas como destino em plena competição pela
preferência de turistas nacionais e estrangeiros, bem como dos empreendedores formais,
os beneficiários maiores da turistificação em curso. Como estratégia de contenção, a
placa objetiva, enfim, garantir “a abreviação e/ou o desvio de uma dinâmica, e
impedimento ou a restrição à sua expansão, à sua proliferação” (HAESBAERT, 2009a,
p. 115).
No que concerne à percepção das populações locais quanto à importância do
turismo nas nucleações, os questionários apontam que há um entendimento do papel
fundamental que o turismo desempenha no crescimento das localidades. Por outro lado,
trechos de entrevistas cedidas por alguns dos moradores de Pipa, Porto de Galinhas e
217
Praia do Forte, servem para melhor dimensionar o caráter contraditório de tal percepção,
como se verá a seguir.
Em Pipa (Figura 20), os dados indicam que 93% das pessoas que responderam
aos formulários, creem que o turismo tenha muita ou total importância para a
localidade. Tal percepção incorpora a dimensão do papel que o balneário exerce não
apenas em uma escala local, mas em um âmbito mais amplo, como visto no item
anterior, a partir dos dados de ocupação e do caráter estratégico que os agentes
hegemônicos do turismo revestem a localidade, assim como o fazem nas demais aqui
examinadas.
Figura 20. Percepção popular quanto à importância atual do turismo para a Praia da Pipa (RN), Porto de Galinhas (PE) e Praia do Forte (BA).
Fonte: Pesquisa direta (2012).
Alusivo a tal percepção, E.B., atendente em loja de souvenirs, moradora da Praia
da Pipa, comenta:
Aqui, só não arruma trabalho que não quer, não gosta de trabalhar.
Toda hora tem placa nas portas das lojas oferecendo emprego. Eu
mesma, já trabalhei em uns seis lugares [referindo-se a
estabelecimentos comerciais]. Quando saio de um trabalho, não fico
nem um mês parada, já arrumo outro.
Porém, ao ser perguntado sobre a sua alta rotatividade no exercício laboral, a
entrevistada afirma:
Nenhuma
Pouca
Muita
Total
Pipa
Nenhuma
Pouca
Muita
Total
Porto de Galinhas
Nenhuma
Pouca
Muita
TotalPraia do Forte
Nenhuma
Pouca
Muita
Total
7
58
35
4
36
60
3 8 30
59
218
O povo [referindo-se aos proprietários de estabelecimentos
comerciais] é meio explorador, sabe? Às vezes, quer que a pessoa
trabalhe até altas horas da noite, de madrugada, e não pagam hora
extra. Quando encerra, só sai depois que lava tudinho. Nem um lanche
eles querem dar.
Fica patente, nas palavras da entrevistada, o caráter contraditório das relações de
trabalho. A aparente euforia apresentada no primeiro trecho da entrevista contrasta com
a desilusão pela precariedade à qual é submetida em cada uma das atividades que já
exerceu. Assim, ao mesmo tempo em que reconhece a importância adquirida pelo
turismo como um elemento dinamizador do quadro de relações do lugar, a entrevistada
expõe as condições de sujeição às quais está submetida.
Em Porto de Galinhas (Figura 20), como visto na figura acima, o total de
respostas agregadas que denotaram muita ou total importância do turismo para a
localidade foi de 96%. Assim como no caso anterior, há uma percepção quase que
absoluta de que a prática turística tem forte incidência sobre o crescimento econômico
local, bem como sobre o destino dos seus moradores.
Ao ser perguntado sobre os motivos pelos quais o turismo é considerado uma
prática de tanta importância para a localidade, M.M., comerciante, morador de Porto de
Galinhas, sentenciou:
O turismo trouxe tudo que você vê aí: luz, água encanada, celular,
gente do mundo todo e dinheiro, que é o bom. O turismo é o ganha-
pão de muita gente, por aqui, né? Não dá para renegar. Se não fosse
[sic] os turistas, o povo estava passando necessidade, pescando,
tirando marisco para ter um de comer. Até a polícia, só chegou para cá
por causa dos turistas.
As impressões contidas no relato acima, partilhadas com outras pessoas ouvidas,
apontam para a implantação de infraestrutura e para a possibilidade de inserção no
mercado de trabalho como os principais atributos que fazem do turismo um elemento
fundamental no dia a dia dos moradores de Porto de Galinhas. Há, portanto, uma
percepção segundo a qual a economia é o motor da evolução do balneário.
No caso de Praia do Forte, a figura anterior mostra que em 89% das respostas
atribui-se muita ou total importância ao turismo como um elemento definidor da
realidade local. Esse reconhecimento advém, em grande parte, da inserção econômica
(ainda que precária, em boa parte dos casos) permitida pelo turismo para uma parcela da
população, bem como por uma certa percepção ufanista do turismo como um vetor das
219
transformações que, nas palavras de V.S., agricultora aposentada, moradora da vila,
“colocaram Praia do Forte no mapa”, “fizeram o lugar ficar conhecido”.
Outro aspecto dimensionado no questionário diz respeito à percepção popular
quanto aos problemas cotidianos gerados pelo turismo. Em Pipa (69%), Porto de
Galinhas (74%) e Praia do Forte (76%), a maioria das respostas aponta para a não
existência de reveses causados pela prática turística. Entre os que, ao contrário,
consideram o turismo um fomentador de danos às localidades, são as seguintes as
consequências tidas como mais graves atreladas ao processo de turistificação (Quadro
02):
Quadro 02. Percepção popular dos problemas ligados ao turismo em Pipa (RN), Porto de Galinhas (PE) e Praia do Forte (BA).
Localidade Problemas mais evidentes
(segundo a ordem de citações)
Pipa Porto de Galinhas Praia do Forte
Tráfico de drogas Aumento dos casos de prostituição Aumento da poluição Perda das tradições culturais Altos preços dos alimentos Altos preços da moradia Tráfico de drogas Altos preços dos alimentos Aumento dos casos de prostituição Saída de moradores antigos Altos preços da moradia Perda das tradições culturais Tráfico de drogas Altos preços dos alimentos Saída de moradores antigos Altos preços da moradia Perda das tradições culturais Aumento da poluição
Fonte: Pesquisa direta (2012).
O quadro acima revela que as preocupações dos moradores que acreditam
existirem problemas diretamente relacionados à prática turística podem ser agrupadas
em itens como segurança pública, custo de vida, tradição/memória locais e meio
ambiente. O relato de G.S., vendedora de pamonha em Praia do Forte e moradora de
Açu da Torre, é demonstrativo de algumas dessas preocupações:
220
Quando esse negócio do turismo começou a ganhar importância por
aqui, a polícia veio e fez uma “limpa” nos ladrãozinho [sic] e nos
viciados. Mas, com o tempo, eles voltaram. (...). O pior é que vem
gente de fora, traz essas “porqueiras” prá [sic] vender aqui e as mães
não tem mais sossego.
(...)
Os mais antigos diziam que antes dava até para dormir de porta aberta.
Hoje, eu mesma já não deixo meus meninos ficarem na rua até mais
de dez horas da noite. Não que aconteça problema toda hora, mas,
quando acontece, sai de baixo!
Em Pipa, A.G., agricultor aposentado, morador da Bela Vista, quando inquirido
sobre o custo de vida na localidade, afirma:
Meu amigo, a coisa aqui é feia! É tudo caro. (...). Tem gente que
prefere fretar um carrinho e ir fazer compra em Natal, sabe? Mas nem
todo mundo pode fazer isso, né? Aí, prá [sic] comprar um feijãozinho,
um arroz, uma macaxeira, tem que ser pagando é caro!
Outra coisa que o Sr. quis saber é sobre a moradia, né? Prá [sic] mim
não, que tenho minha casinha que é minha mesmo. Mas o povo fala
por aí que os preços de aluguel é [sic] igual os de cidade grande.
Por outro lado, é possível perceber que, sob influência dos discursos propagados
pelos agentes hegemônicos, os moradores sustentam uma visão positiva do turismo a
partir de uma perspectiva economicista. Importante notar que, em grande medida, as
respostas que acenam negativamente para a existência de problemas vinculados ao
turismo foram emitidas por pessoas que declararam possuírem membros da família que
tem vínculos de trabalho ligados à prática turística.
A atribuição de tamanha importância à prática turística pelas populações locais,
a negação dos problemas provenientes da turistificação e a consequente resignação a
uma realidade na qual os agentes hegemônicos exercem sua dominação, resulta da
formulação de um consenso da salvação pelo turismo. Neste caso, o desengajamento é
parte do exercício de poder que emana dos referidos agentes, que trata menos da corrida
por posses e mais da “capacidade de gerenciar pessoas, (...), de estabelecer as regras de
conduta e obter obediência a essas regras” (BAUMAN, 2003, p 41).
Além disso, como afirma o próprio Zygmunt Bauman, a insegurança quanto à
posição social e as incertezas sobre o futuro, sensações típicas dos tempos hodiernos,
dão substância a um medo generalizado da perda do pouco que os agentes oferecem às
populações. Segundo o sociólogo polonês:
Quando a ameaça à mudança unilateral ou do fim dos arranjos
correntes por parte daqueles que decidem o meio em que os afazeres
da vida devem ser realizados paira perpetuamente sobre as cabeças
221
daqueles que os realizam, as chances de resistência aos movimentos
dos detentores do poder, e particularmente de resistência firme,
organizada e solidária são mínimas (...) (opus cit., p. 42).
Hissa (2009, p. 50), por seu turno, avalia que os ditos homens lentos –
evidenciados por Milton Santos – são os portadores da indignação que se manifestaria
através do desejo de transformação da realidade vigente, maculada pela “fábrica
cultural do consumo”, mas, ao mesmo tempo, podem carregar sonhos de inclusão
através da inserção nos mesmos processos que os excluem. Nas palavras do autor:
Assim, nesses termos, carregariam o desejo de transformação, mas
contraditoriamente, o da permanência. Por qual razão isso se dá?
Porque no contexto do terror e da barbárie, a competição que aniquila
emerge como a única alternativa de defesa nas circunstâncias de
ausência ou fragilidade de solidariedade coletiva. A solução para os
sofrimentos da vida indigna, aqui, nos termos em que se apresenta a
questão, na ausência da crítica indignação, na prevalência dos
paradigmas da modernidade conservadora, não passaria pela
reconstrução dos valores da vida, dos valores sociais e culturais (opus
cit.).
Daí que a atribuição de importância do turismo nas vidas das populações de
Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte se configure como uma espécie de defesa da
prática turística naqueles lugares, mesmo que, nas entrelinhas dos discursos, possam
emergir revelações que apontem para a existência de contradições inerentes ao
desenvolvimento turístico.
Ainda de acordo com os dados extraídos da pesquisa direta, a maioria quase
absoluta dos moradores locais das três localidades informou nunca ter sofrido qualquer
constrangimento para ingressar em algum empreendimento ou evento por não ser
turista. No entanto, entre os que tiveram acesso barrado sob a alegação acima
mencionada, tal ato se deu, em todos os casos, em condomínios residenciais e/ou
empreendimentos hoteleiros, sendo que, no segundo local a ocorrência foi superior que
o primeiro em mais de 80%, nos três balneários.
Segundo relato informal de um gerente de hotel em Porto de Galinhas, o
impedimento do acesso em condomínios e nos hotéis, pousadas e albergues ocorre
apenas quando há a desconfiança de se tratar de prostituição e/ou comércio de produtos
ilícitos ou quando a pessoa não se identifica apropriadamente ao tentar ingressar nas
dependências do empreendimento.
222
Por outro lado, uma maioria considerável entre os grupos que cederam
informações nas três localidades afirma não frequentar lugares onde haja grande
concentração de turistas, conforme se pode observar na Figura 21.
Figura 21. Costume de frequentar locais de concentração de turistas, segundo os moradores de Praia da Pipa (RN), Porto de Galinhas (PE) e Praia do Forte (BA).
Fonte: pesquisa direta (2012).
Os três motivos mais alegados para o pouco interesse pela convivência com os
turistas foram:
Os moradores de Pipa (a) reclamam dos preços abusivos praticados em locais de
concentração de turistas (31%), (b) não se sentem acolhidos em tais lugares
(23%) ou (c) não gostam de frequentar as zonas onde tais visitantes se
concentram (19%);
Em Porto de Galinhas, as respostas ao questionário apontam que (a) os
moradores não se sentem acolhidos (32%), (b) os preços altos dos produtos e
serviços (26%) ou (c) não gostam de compartilhar a presença com turistas
(25%);
Em Praia do Forte, as respostas mais frequentes foram (a) não há acolhimento
para os “nativos” nos locais de concentração de turistas (28%), (b) os preços
praticados são altos (21%) ou (c) não gostam de frequentar os locais de
concentração de turistas (20%).
Entre aqueles que costumam frequentar locais onde há maior concentração de
turistas, foram listados: em Pipa, a praia, em 77% das respostas, bares e restaurantes, em
0
10
20
30
40
50
60
70
80
(%)
Sim
Não
Pipa Porto de Galinhas Praia do Forte
223
26%, e outros lugares, em 8%, entre os quais, a Avenida Baía dos Golfinhos foi o mais
citado (56%); em Porto de Galinhas, a praia, conforme indicado por 63% dos
moradores, bares e restaurantes, por 10%, e festas e eventos, por outros 10%; em Praia
do Forte, para 64% dos inquiridos, a praia é o local onde compartilham presença com os
turistas, festas e eventos, para 26%, e bares e restaurantes, para 9%.
Perguntado sobre as práticas de lazer oferecidas aos jovens da localidade, F.G.,
atendente de lanchonete, morador de Pipa expõe suas impressões:
Não tem quase nada de bom prá [sic] mocidade fazer por aqui. Um
campinho, o governo não faz. (...). Tem o ginásio de esportes, mas já
tá [sic] todo arrebentado. O jeito é dar umas voltinhas na praia, uns
mergulhos, prá [sic] passar o tempo, né? Os adolescentes é que
acabam indo prás [sic] festas e caem na cachaça, na droga.
Quanto à participação em entidades de classe, associações de moradores e
demais organizações locais, essa é uma prática relativamente comum entre os
moradores dos três balneários em exame. Algo em torno de ⅓ dos moradores de Pipa
(29%), Porto de Galinhas (33%) e Praia do Forte (27%) alegam fazerem parte de
alguma organização localmente constituída. A diferença se expressa apenas nos
números de participantes em cada um dos tipos de entidades, o que revela a importância
e o nível de inserção de cada uma delas junto aos habitantes locais (Figura 22).
Figura 22. Participação dos moradores de Pipa (RN), Porto de Galinhas (PE) e Praia do Forte (BA) em entidades e organizações localmente constituídas.
Fonte: pesquisa direta (2012).
Em Pipa e Praia do Forte, a maioria das pessoas que responderam positivamente
quanto à participação em tais entidades se autodeclarou envolvida em suas respectivas
Pipa Porto de Galinhas
Praia do Forte
36%
24%
22%
5%
13%
43%
32%
13%
12%
38%
25%
24%
10% 3%
Associação de moradores
Associação comercial/de classe
Colônia de pescadores
Organização não governamental
Outros
224
associações de moradores, enquanto que, em Porto de Galinhas, um grupo majoritário
apontou a vinculação em associações de classe, sendo as mais citadas as de jangadeiros
e de proprietários e condutores de buggy, nesta ordem.
Quando inquiridos sobre a distância entre os locais de moradia e trabalho, os
moradores de Pipa e Porto de Galinhas creem, em sua maioria, que habitam muito
próximos ou relativamente próximos dos locais onde exercem alguma atividade laboral.
Em Praia do Forte, ao contrário, uma quantidade considerável de respostas aponta para
uma prevalência de pessoas que moram relativamente distantes ou muito distantes do
local onde trabalham (Tabela 02).
Tabela 02. Percepção dos moradores de Pipa (RN), Porto de Galinhas (PE) e Praia do Forte (BA) quanto à distância entre os locais de moradia e trabalho.
Situação
(%)
Pipa Porto de Galinhas Praia do Forte
Mora no trabalho Mora muito próximo Mora relativamente próximo Mora relativamente distante Mora muito distante
2 40 33 16 9
4 42 28 18 8
2 23 25 36 14
Fonte: pesquisa direta (2012).
Diferente dos dois primeiros destinos turísticos citados, onde a
desterritorialização dos antigos moradores das vias mais valorizadas pelos agentes
hegemônicos provocou a formação de periferias em áreas contíguas aos balneários, na
vila baiana, tal processo acabou por gerar uma mobilidade de população que se
reterritorializou, preferencialmente, em localidades mais distantes, todas assentadas,
inclusive, na margem esquerda da BA-099, sentido Salvador-Costa do Sauípe, oposta,
portanto, em relação à Praia do Forte. A despeito da distância, esses antigos moradores
desterritorializados mantiveram-se, em grande medida, dependentes dos postos de
trabalho oferecidos na vila praieira.
Além disso, os elevados preços cobrados para aluguéis e aquisição de imóveis
em Praia do Forte tem tornado impeditiva a moradia da força de trabalho que
recentemente migrou em busca de oportunidades de trabalho na vila turística. A solução
encontrada para uma maioria de trabalhadores é, mais uma vez, a fixação nos
assentamentos urbanos circunvizinhos.
225
Segundo G.S., vendedora de pamonha, moradora de Açu da Torre, tendo
migrado de Euclides da Cunha (Bahia) para Praia do Forte há cerca de oito anos, os
preços de aluguel atualmente praticados na vila são inibidores da fixação de moradores
mais pobres. Nas palavras de G.S.:
Logo quando cheguei aqui, faz [sic] uns oito anos, morei com minha
filha e o neto numa casinha aí atrás [no momento do diálogo, a
entrevistada vendia pamonha em uma barraca na Av. ACM]. Era bem
um quarto e sala. Mas não dei conta de pagar o aluguel nem seis
meses. Tive que ir lá prá [sic] riba [sic] [referindo-se à Açu da Torre].
Morei lá de aluguel por uns dois anos e, depois comprei um terreno e
estou levantando uma casinha aos poucos.
Tal situação é geradora de uma especificidade quanto aos processos de des-
reterritorialização dos antigos moradores do balneário de Praia do Forte, em se
comparando com as demais localidades evidenciadas. Como se verá mais adiante, de
modo mais detalhado, muitos dos antigos moradores da vila baiana foram expulsos por
fatores econômicos e, em função das rígidas regras de uso e ocupação do solo impostas
pela Fundação Garcia D’Ávila para a localidade, acabaram migrando para outras
nucleações urbanas do município de Mata de São João, relativamente distantes do
famoso destino turístico.
Os aspectos abordados nas linhas anteriores, colhidos dos questionários
aplicados junto aos moradores de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte, denotam
modos de vida, econômica, política, cultural e socialmente dimensionados, condições de
moradia, relações com o turismo e os turistas, além de percepções sobre os lugares onde
vivem, todos contribuindo, em maior ou menor medida, para o desenvolvimento das
práticas territoriais desses habitantes, ainda que, por vezes, reproduzindo modos de vida
alheios às horizontalidades.
7.3 As práticas territoriais dos moradores de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do
Forte: tipologia e evidências empíricas
No aprofundamento da análise visando compreender as dinâmicas territoriais
que se desenvolvem a partir da relação dos moradores locais com a prática turística, fica
patente a existência de uma tipologia com dois perfis mais ou menos bem definidos,
cujas formas de atuação, desde um ponto de vista territorial, podem ser definidas como
territorialidades adesistas e territorialidades insurgentes.
226
As territorialidades adesistas tem sua raiz nas práticas territoriais dos grupos
que, vislumbrando possibilidades de inserção no mercado predominante – de
forma mais ou menos precária, dependendo do caso – através da execução de
atividades ligadas à prática turística, criam meios que as viabilizam. Nesse
sentido, os indivíduos ou coletivos que compõem tal grupo atuam de modo a
promover uma aproximação com os agentes hegemônicos (Estado e detentores
dos meios de produção), reforçando a condição de destinação turística das
localidades em exame. Dessa forma, as territorialidades que daí derivam são
realizadas com anuência e/ou fomento dos agentes hegemônicos ou nas brechas
por eles deixadas.
As territorialidades insurgentes, cujo termo foi parcialmente tomado de
empréstimo de Souza (2003; 2006; 2009; 2010), se origina das práticas
territoriais que ocorrem em contrariedade aos interesses dos agentes
hegemônicos, ainda que, em alguns casos, tais práticas tenham no turismo um
suporte para a sua existência. A atuação de tais agentes exerce, pois, um efeito
negativo sobre a destinação turística ou obstrui/retarda a ação do Estado e dos
detentores dos meios de produção. Além disso, tais territorialidades podem ser
enquadradas como legais ou ilegais.
Importante salientar que algumas práticas, pela complexidade da sua
constituição, podem promover ambos os tipos de territorialidades, assim como terem
origem, ao mesmo tempo, a partir de iniciativas individuais e coletivas, estando,
portanto, em uma condição de hibridismo constitutivo ou genético.
O esquema a seguir (Figura 23) é uma síntese das territorialidades analisadas em
Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte, permitindo uma visualização do
“posicionamento” de cada agente exposto quanto à sua condição como adesista ou
insurgente, bem como quanto ao caráter coletivo ou individual das práticas.
Como se pode observar, as territorialidades adesistas, por exigirem certo nível de
organização, o que é imperioso para a articulação com os agentes hegemônicos, tendem
a ter uma prevalência de práticas coletivas, ao passo que as territorialidades insurgentes,
pela pouca organização prévia, pela espontaneidade da ação e, em alguns casos, por sua
ilegalidade, tem uma prevalência de práticas individuais.
227
Figura 23. Representação do “posicionamento” dos indivíduos e grupos das localidades de Pipa (RN), Porto de Galinhas (PE) e Praia do Forte (BA), quanto às suas práticas territoriais.
Fonte: elaborado pelo autor, a partir de pesquisa direta (2012).
Por outro lado, é fundamental esclarecer a escolha do termo empregado.
Territorialidade e território são duas palavras que, enquanto campos de análise, fazem
parte daquilo que se convencionou chamar de abordagem territorial. A escolha pelo
primeiro dos termos mencionados, em detrimento do segundo, se deu pelo caráter
efêmero e fluido de algumas das práticas.
Segundo Saquet (2009, p. 86), “A territorialidade corresponde às ações
humanas, ou seja, à tentativa de um indivíduo ou grupo para controlar, influenciar ou
afetar objetos, pessoas e relações humanas numa área delimitada”, revelando a dinâmica
e o movimento como condições de existência do ente geográfico em tela. Em outras
palavras, a territorialidade é o projeto, em andamento, de construção do território.
Ademais, conforme salientado por Haesbaert (2008), a territorialidade incorpora, além
de um dimensão estritamente política, outras, que são de caráter econômico e/ou
cultural.
Embora as práticas analisadas sejam consideradas territorialidades, algumas não
se consolidam, necessariamente, como territórios. Assim, levando-se em conta que todo
228
território advém de alguma territorialidade, mas nem toda territorialidade chega a
adquirir o status de território, se mostrou mais coerente empregar o termo que denota
ação e movimento.
A análise que segue tratará, pois, de empiricizar essas formulações, enquadrando
as distintas territorialidades verificadas nos balneários de Pipa, Porto de Galinhas e
Praia do Forte segundo as tipologias aqui explicitadas, sem nunca perder de vista, no
entanto, ser este um estudo de caráter comparativo.
7.3.1 As territorialidades adesistas em Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte
Alguns indivíduos e grupos das localidades de Pipa, Porto de Galinhas e Praia
do Forte exercem territorialidades convergentes com os interesses dos agentes
hegemônicos que atuam nos referidos balneários. Desses, é possível destacar, entre os
que atuam sob a forma de práticas coletivas, entidades associativistas, camelôs,
organizações não-governamentais; entre os que exercem territorialidades a partir de
práticas individuais: comerciantes locais e especuladores locais, além de pescadores e
entidades culturais, cuja ação é marcada pelo hibridismo, conforme explicitado alhures.
O associativismo se constitui em mais uma das formas segundo as quais os grupos
locais – mas não apenas eles – garantem as condições para o exercício de
territorialidades que permitem a sua reprodução social. A formação dessas entidades é,
assim, um meio de salvaguardar os interesses de uma coletividade, além de ser uma
forma de afirmação de determinados grupos locais, inseridos no mercado turístico
graças, tão somente, à sua capacidade de organização.
São aqui consideradas como entidades associativistas aquelas organizadas em
torno de interesses de classe (jangadeiros, condutores de buggy e colônias de
pescadores, por exemplo), as cooperativas (artesãos e doceiras, entre outros) e as
associações de moradores.
Alguns relatos coletados de informantes que vivenciam, pelo mundo do trabalho,
o dia a dia das localidades são indicativos das formas de atuação – desde um ponto de
vista territorial – das entidades associativistas. Através de informações obtidas em
entrevista, cedida pelo jangadeiro T.C., bem como por meio das observações
sistemáticas, é possível compreender alguns aspectos do processo de territorialização
levado a cabo por alguns dos agentes que aderem ao turismo local.
Em Porto de Galinhas, umas das entidades mais representativas é a Associação
de Jangadeiros de Porto de Galinhas. Ao ser questionado sobre a forma de organização
229
dos passeios turísticos entre os profissionais que conduzem as embarcações, T.C.,
morador do Socó, periferia (social e geográfica) da vila pernambucana, afirma:
Tem a associação, que diz as regras, sabe? Tem uma ordem de quem
vai primeiro, vai segundo, e por aí vai... só pode trabalhar aqui se for
associado. Se não for, não tem jeito, a associação não deixa “carregar”
turista não.
Mais adiante, ao ser perguntado sobre as atribuições da associação, o mesmo
entrevistado afirma:
A associação é que cuida de tudo da gente [referindo-se aos
jangadeiros]. Organiza os passeios, diz quem pode trabalhar e trata das
nossas coisas [demandas, reivindicações] com a Prefeitura. Cuida de
tudo, mas é bem rígida, viu? Se o jangadeiro “some”, tem que botar
alguém no lugar e, ainda assim, quando volta, tem que se explicar
direitinho, para não perder o direito de trabalhar.
O relato acima, por um lado, revela o refinado nível de organização dos
moradores e dos trabalhadores que atuam na realização de passeios turísticos, algo
salutar, notadamente por ser uma iniciativa de base local, e, por outra parte, denotam a
capacidade de controle quase que absoluto sobre as ações dos seus membros, inclusive
quanto à contenção do ingresso de novos profissionais nas atividades, conforme
observado no exemplo do associativismo. Neste sentido, a territorialidade promovida
pela associação, com anuência dos agentes hegemônicos, sob o discurso da organização
da atividade, se manifesta, na verdade, como prática de contenção territorial.
A contenção territorial figura entre os diversos arranjos que dão sentido ao
território. Seu conceito, segundo Haesbaert (2009a) está ainda em construção. Contudo,
o autor arrisca pré-defini-la por meio da dissecação de algumas de suas características
mais expressivas:
“Contenção” foi o termo que encontramos para revelar, sobretudo, o
sentido ambivalente, a ambiguidade envolvida nas formas
contemporâneas de territorialização. A começar pelas novas cercas e
muros, de toda ordem, que proliferam pela superfície do planeta, e que
não significam, simplesmente, um processo de “exclusão”.
(...)
Basicamente essas barreiras físicas, paralelamente aos “campos” de
contenção, estão sendo propostas e construídas visando o fluxo de
pessoas (...), em nome de discursos xenófobos pautados no medo (...)
e na insegurança frente às diversas “ameaças” ou “riscos” imputados
ao Outro, ao diferente, àquele que deve permanecer “do outro lado”
(Idem, p. 114-115).
230
Mais adiante, segue afirmando:
Contenção envolve também esta característica de ambivalência em
que estamos ao mesmo tempo “contendo” a progressão de outros e
“nos contendo” em termos da nossa própria progressão/mobilidade, de
modo que o “conter” (o outro) e o “estar contido” (pela não-
progressão do outro) se mesclam de tal forma que, podemos dizer, o
“outro” está em nós pelo mesmo processo de contenção que, ao evitar
sua expansão, provoca também, de alguma forma, o nosso retraimento
(Ibdem, p. 115).
Neste sentido, a contenção territorial envolve processos de construção material e
simbólica de elementos que visam, de forma parcial, provisória e paliativa, promover
fechamentos, interrupções ou redução da presença ou da expansão de indivíduos, grupos
e entidades, bem como das suas ações, que são indesejáveis aos que tomam tais
iniciativas.
Além disso, pela força do turismo, antigos pescadores são, agora, jangadeiros e
as jangadas, outrora um elemento fundamental para o deslocamento até aqueles locais
mais piscosos e para o carreto da carga animal retirada do mar, passa a ser um meio de
transporte voltado ao lazer dos turistas. Neste sentido, é lícito afirmar que as atribuições
e atividades inerentes à Colônia de Pescadores Z12 e à Associação de Jangadeiros de
Porto de Galinhas não tem limites tão rígidos ao ponto de impedir que haja certa falta de
clareza quanto aos papéis de cada uma das entidades.
Nos casos de Pipa e Praia do Forte, o que difere da situação acima descrita é a
falta de uma entidade criada para salvaguardar os interesses dos pescadores
metamorfoseados em cicerones de turistas ávidos pela realização de atividades, tais
como avistar golfinhos, no caso da localidade potiguar, e baleias, no balneário baiano.
Assim, ainda que – a exemplo daqueles de Porto de Galinhas – exercendo funções de
guias de turismo, esses pescadores seguem atuando sob a tutela de suas respectivas
colônias de pescadores.
Outro tipo de entidade associativista que exerce sua territorialidade de modo
intenso são as associações de moradores. Assim como as associações de classe, essas
entidades são criadas, via de regra, pela necessidade de salvaguardar interesses, sendo
uma forma de organização da coletividade local, inclusive, no que se refere às
reivindicações junto ao Estado, principalmente quanto ao acesso aos bens coletivos,
como escolas, postos de saúde, saneamento ambiental e abastecimento de energia e
água, entre outras demandas sociais. Quando cumpridoras das suas atribuições, as
231
associações de moradores são, portanto, um veículo para a promoção de justiça
territorial.
Segundo Andrade (1996, p. 215), ao analisar as novas territorialidades surgidas
da ampliação dos territórios produzidos pelos agentes hegemônicos e da consequente
desterritorialização dos grupos prejudicados por tal ação, afirma que “Dessa
convergência espacial dos contrários, surgia a reação à gestão central, à
desterritorialidade (...), com a formação de novas territorialidades”, o que, no caso deste
estudo, se dá com o aparecimento das associações de moradores (ao menos em teoria).
Em Pipa, a associação de moradores local é representativa de todos os
habitantes, indistintamente. Isto fica patente, inclusive, em sua denominação:
Associação de Moradores e Amigos da Praia da Pipa. Em Porto de Galinhas, porém, a
entidade para onde convergem os interesses de habitantes locais não possui alcance em
toda a nucleação, mas, como a denominação permite inferir (Associação de Moradores
do Pantanal, Socó e Salinas), apenas nos fragmentos urbanos mais precários da
localidade. No caso de Praia do Forte, apesar da existência de uma entidade com a
finalidade de intervir pelos interesses dos moradores, a que agrega tais funções, por
vontade popular, é a Acomea (Associação Comunitária de Educação Ambiental).
Apesar de serem detentoras de uma representatividade nada desprezível (vide
Figura 21), as associações de moradores padecem da desconfiança de alguns dos seus
representados, não faltando, em entrevistas e relatos, acusações de má administração e
cooptação pelos agentes hegemônicos.
Enquanto F.S., eletricista e encanador, morador de Pipa, afirma que os dirigentes
da associação de moradores local teriam intenções político-partidárias ao tomarem a
frente dos cargos que ocupam e que a entidade serviria como forma de promoção dos
seus interesses, A.F., empregada doméstica, moradora de Porto de Galinhas, reclama da
pouca capacidade de articulação da Ampass junto à Prefeitura Municipal de Ipojuca.
Segundo a entrevistada:
Depois que o Governo fez a pista [referindo-se ao novo acesso às
localidades de Socó, Pantanal e Salinas], o povo da associação parece
que ficou satisfeito, sabe? Parece até que não tem mais nada prá [sic]
fazer aqui.
Em Praia do Forte, as reclamações estão centradas na atuação pouco combativa
das associações quanto às revindicações da população local por maior participação nas
decisões referentes ao turismo. G.S., pescador aposentado, morador da vila, relata:
232
Eu não tenho do que reclamar, por que não dependo deles prá [sic]
nada. Mas, a Acomea e a outra [referindo-se à associação de
moradores] só “dizem amém” prá [sic] tudo que os “donão” [em
referência aos agentes hegemônicos do turismo] daqui querem fazer.
Se dizem que vão botar supermercado, eles não reclamam nada, se
tem festa aí “a torto e a direito”, a mesma coisa. Fazer o quê, né?
Há, porém, quem julgue como importantes e necessárias as ações das
associações de moradores, posto que as entidades representem interesses coletivos que,
sem essa organização, dificilmente seriam atendidos. Para S.D., moradora de Pipa,
cozinheira em pousada, cuja opinião é compartilhada por outros entrevistados, “(...) se
não fosse a associação, nem sei se teríamos metade do que temos aqui. Eles brigam por
nós, levam nossas queixas para a Prefeitura. Às vezes, não dá para resolver uma
coisinha ou outra, mas eles tentam sempre”.
As divergências quanto à atuação das associações de moradores revelam toda a
complexidade das ações inerentes a essas entidades, posto que sejam as mediadoras, por
excelência, das relações entre as populações locais e – de modo mais intenso – o Estado,
principalmente na sua esfera municipal.
Quanto às territorialidades exercidas pelas organizações não-governamentais, é
importante pontuar que, a despeito de Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte serem
localidades onde a beleza cênica, vinculada aos atributos da natureza, é explorada ao
extremo, as iniciativas locais voltadas à criação de tais entidades são poucas,
principalmente se comparadas ao processo de implantação de organismos de interesse
ambiental por parte dos agentes hegemônicos ou em associação direta com eles. Há, no
entanto, algumas Ongs voltadas ao desenvolvimento de atividades de cunho
socioambiental e socioeducativo, notadamente em Pipa, com a Educapipa, e Praia do
Forte, com a já citada Acomea.
Assim como as cooperativas, as Ongs atuam com pouco protagonismo, o que
influencia nas territorialidades de ambas as entidades. Vale afirmar, pois, que, ainda que
presentes nas respectivas realidades locais e executando estratégias de apropriação do
espaço, tais organismos estão, via de regra, à sombra dos agentes hegemônicos,
legitimando suas ações por meio da adesão plena aos seus interesses.
No que tange àqueles que trabalham com comércio de rua, é importante advertir,
inicialmente, que, no âmbito deste estudo, são identificados dois tipos de profissionais:
camelôs e ambulantes. Os primeiros atuam em espaços públicos, normalmente em
praças ou ruas movimentadas, mas em pontos fixos ou fazendo uso de mobilidade
233
limitada; os seguintes exercem sua atividade também em espaços públicos, mas de
forma itinerante, como o próprio termo sugere.
Importante salientar essa diferença, posto que tais distinções incidem sobre as
territorialidades que praticam. Ao aderirem aos desígnios dos agentes hegemônicos, os
camelôs exercem práticas coletivas, posto que tenham que estar representados por
entidades cuja organização é imposta pelo Estado, na esfera municipal. Os ambulantes,
por atuarem de forma insurgente, exercem práticas individuais ou em pequenos grupos
de organização primitiva, uma estratégia para passarem desapercebidos pelo crivo dos
fiscais municipais.
Conforme afirmado por Silva (2008, p. 219), em estudo sobre o comércio de rua,
o trabalho exercido por camelôs se dá através “da ocupação de um espaço público para
trabalhar de maneira informal e precária”, o que gera o compartilhamento de valores e
práticas sociais que lhe conferem uma identidade de grupo. Tal ação acaba por produzir
um “componente territorial – o lugar de trabalho – na produção das práticas materiais e
imateriais que produzem e reproduzem comportamentos culturais específicos”,
conferindo ao lugar, ainda segundo o autor, o sentido de território.
Como fora evidenciado em outro trecho, em Porto de Galinhas, o comércio de
rua – tanto para camelôs, quanto para ambulantes – é terminantemente proibida na Rua
da Esperança, a via principal da localidade, mas liberado na faixa de praia, com
anuência do órgão municipal responsável pelo inventário dos trabalhadores. Em Praia
do Forte, é possível o exercício do comércio de rua, desde que o camelô possua cadastro
emitido pela Prefeitura Municipal de Mata de São João, enquanto que, em Pipa, há
maior flexibilidade, ainda que, a exemplo dos demais casos, existam formas de controle
da atividade. Em todos os casos, as municipalidades exigem alguma forma de
organização por parte dos camelôs.
Em atenção às exigências impostas pelas gestões dos municípios onde atuam, os
camelôs exercem suas territorialidades em locais definidos pelas prefeituras, segundo
critérios os mais diversos. Para N.T., morador ocasional de Açu da Torre, camelô em
Praia do Forte, componentes político-econômicos incidiram na escolha dos locais onde
os camelôs daquele destino turístico podem atuar:
Por que não podemos ficar “espalhados” pela Avenida? Essa
concentração aqui atrapalha muito, pois todo mundo vende
praticamente as mesmas coisas. Se cada um tivesse o seu canto, uns
ali perto do Souza [famoso restaurante local], outros ali no
“larguinho” e outros aqui mesmo, seria bem melhor. Prá [sic] mim, é a
234
força dos grandes [referindo-se aos agentes econômicos] que tá [sic]
por trás disso.
No que se refere aos comerciantes locais, tais agentes são habitantes das próprias
localidades que, ao vislumbrarem a possibilidade de inserção na economia do turismo,
seja por exercerem alguma atividade com potencial para ser absorvida pela prática
turística ou por possuírem imóveis, acabam por implantarem empreendimentos
comerciais e de serviços.
De acordo com os dados obtidos nas observações realizadas em campo, as
atividades principais exercidas pelos comerciantes locais são: (a) empreendimentos
voltados à comercialização de alimentos e bebidas, de lembranças e souvenirs,
pequenos mercados e pousadas; (b) empreendimentos voltados à oferta de serviços de
guiamento de turistas e traslados (Figura 24).
Figura 24. Exemplos de meios de transportes empregados no traslado de turistas: (a) “trenzinho”, em Pipa (RN), e (b) taxibike, em Praia do Forte (BA).
Fonte: arquivo do autor (2010; 2012).
Por outro lado, a despeito de atuarem em convergência com os interesses e as
práticas dos agentes hegemônicos, seja em Pipa, Porto de Galinhas ou Praia do Forte, a
maioria dos comerciantes locais tem os seus empreendimentos em zonas menos
privilegiadas quanto à concentração de turistas, exceção feita às barracas de praia
(Figura 25), cuja localização é ideal para um destino de Sol e Praia.
235
Figura 25. Locais onde estão estabelecidos empreendimentos de comerciantes locais em (a) Pipa (RN), (b) Porto de Galinhas (PE) e (c) Praia do Forte (BA).
Fonte: arquivo do autor (2010; 2012).
Sobre as barracas de praia, vale aqui um exame mais detalhado, posto que seus
proprietários (agentes, portanto) exerçam suas territorialidades nos espaços mais
valorizados dos destinos em tela.
Em obra que resgata a história e interpreta fatos recentes da Praia da Pipa,
Simonetti (2012) alerta para os excessos cometidos pelos proprietários de barraca, ao
tempo em que alerta para a falta de regulamentação do uso e ocupação da faixa de praia,
enfatizando a complacência da Prefeitura Municipal de Tibau do Sul em relação a tais
agentes de produção do espaço. Sobre ocupação desordenada da praia, o autor comenta,
evidenciando a articulação de agentes econômicos distintos:
Na praia principal, os sombreiros se multiplicam a uma velocidade
espantosa, sem nenhum critério. Cada dono de barraca quer colocar o
maior número de sombreiros, no afã de arrebanhar para si a maior
quantidade de clientes. Para isso, contam com a ajuda das empresas de
bebidas que doam, além dos sombreiros, mesas e cadeiras, com tanto
que vendam o seu produto. E, assim, a beira da praia, que deveria ser
236
de livre acesso aos banhistas no direito de ir e vir, fica entupida com
tanta barraca, que mais parece uma feira livre (p. 218).
Em Porto de Galinhas, A.S. relata que tanto a atividade que exerce (garçom)
quanto a organização das barracas de praia (quantidade de mesas e de funcionários, por
exemplo) sofrem rígido controle da Prefeitura Municipal de Ipojuca, mais
especificamente de um preposto da Secretaria de Turismo de nome Coronel Alexandre.
Segundo o entrevistado, o referido funcionário tem a incumbência de resolver conflitos
relativos à gestão do turismo, atuando, inclusive, na regulamentação dos preços dos
produtos comercializados nas barracas de praia, visando evitar abusos.
Quanto à Praia do Forte, após o episódio de destruição das barracas de praia
ocorridos em meados da década de 1990 (relatados em outro trecho desta tese), foi
celebrado um acordo entre as partes em conflito (FGD e Prefeitura Municipal de Mata
de São João, de um lado, e os barraqueiros, de outro), e os proprietários – antigos e
novos – passaram a utilizar a linha da praia, mas com limites estabelecidos nos moldes
dos que foram relatados no exemplo de Porto de Galinhas, preservando-se, assim, a
possibilidade do exercício de territorialidades pelos chamados “barraqueiros” com
anuência dos agentes hegemônicos.
Os casos acima relatados expressam territorialidades que, ao tempo em que
permitem a atuação de agentes determinados, obstruem outras iniciativas espontâneas
de inserção de determinados grupos ao mercado do turismo através do emprego de um
efeito-barragem que, possuindo ou não a concretude de uma placa com dizeres e
símbolos proibitivos, é efetivo pela força da ordem, do disciplinamento.
Além das territorialidades anteriormente destacadas, há que serem mencionadas
as ações praticadas por aqueles moradores que se negam vender suas residências para
agentes econômicos de caráter hegemônico.
Há que se atentar, porém, para o fato de existirem duas motivações distintas para
a manutenção de residências por parte de antigos moradores em logradouros valorizados
pelos agentes econômicos ligados aos setores de comércio, serviços e imobiliários.
Enquanto alguns dos residentes demonstram clara intenção de promover a especulação,
em outros casos, é possível constatar o interesse de seguir vivendo em imóveis cuja
propriedade resulta de herança familiar ou que foram adquiridas após anos de intensa
labuta para conquistar uma moradia. Aqueles, serão analisados neste subitem. Quanto
237
aos últimos citados, seu exame terá lugar no fragmento do texto que evidencia as
territorialidades insurgentes.
Como uma das mais modernas formas de acumulação do capital, o turismo
impõe novas territorialidades aos lugares onde passam a vigorar. A maioria dos arranjos
territoriais que disso decorrem possui um caráter contraditório, posto que os agentes
vinculados à prática turística tem, como poucos, a capacidade de “desterritorializar, ao
reterritorializar” (LACERDA, 2010, p. 44). Dentre as práticas que se enquadram nesse
processo dialético, é especialmente reveladora a especulação imobiliária.
Ávidos por rápidos ganhos econômicos derivados da prática turística e tendo
tomado conhecimento da valorização pela qual passaram seus imóveis, em especial
aqueles localizados nas vias principais ou próximas, alguns moradores locais passaram
a atuar como verdadeiros especuladores em escala local. Sobre o tema ora evidenciado,
o relato de O.J., morador de Pipa, guardador de automóveis, é elucidativo ao extremo:
Aquela casa ali [apontando para uma das residências localizadas nas
proximidades da Avenida Baía dos Golfinhos], a dona só tá [sic]
esperando alguém chegar com o dinheiro “certo”, que ela vende. Ouvi
falar que até já ofereceram uma boa nota, mas ela acha que dá prá [sic]
ganhar mais e tá [sic] lá, quietinha, só esperando a vez dela. (...) Ela tá
[sic] é certa. Aqui já teve muita gente que se deu bem em cima da
inocência dos outros. Chegavam aqui, davam qualquer “mil réis” e os
pobres depois é que ficavam se lamentando da “burrada”.
Atos individuais, mas nem por isso incomuns, tais ações, pelo próprio caráter
especulativo que lhes dão sentido, se convertem em territorialidades contingentes, posto
que durem apenas enquanto não apareça compradores que se disponham a pagar os
valores estabelecidos pelos moradores. Assim, reafirmando o caráter contraditório da
atuação desses agentes, sua desterritorialização afirma a capacidade de
reterritorialização daqueles que buscam estabelecer vínculos exclusivamente
econômicos nas destinações turísticas.
Longe de serem harmônicas (a despeito da imbricação de interesses entre
agentes locais e hegemônicos), as territorialidades adesistas revelam o caráter
contraditório do turismo como ora é gestado nas localidades de Pipa, Porto de Galinhas
e Praia do Forte. Além disso, essas estratégias territoriais tornam mais complexas as
relações entre as pessoas, entidades, organismos públicos, privados e do Terceiro Setor.
Por outro lado, as territorialidades adesistas são elementos de articulação entre o
mundo e os lugares, transformados em centros do turismo globalizado. Em outras
palavras, através da adesão de parte da população local aos desígnios impostos pelos
238
agentes hegemônicos, se estreitam os vínculos entre as verticalidades e as
horizontalidades do/no espaço.
Nas palavras de Santos (2002a), a tendência atual é de uma unificação
verticalmente constituída dos lugares, gerando uma entropia que, a partir da ação dos
vetores de modernização “trazem desordem aos subespaços em que se instalam e a
ordem que criam é em seu próprio benefício” (Idem, p. 287).
Existem, porém, as práticas que se manifestam na forma de
contrarracionalidades a esse processo homogeneizante, cuja força motriz está na
possibilidade do fortalecimento horizontal dos lugares, “reconstruindo, a partir das
ações localmente constituídas, uma base de vida que amplie a coesão da sociedade civil,
a serviço dos interesses coletivo” (Ibdem, p. 287-288), como se verá a seguir.
7.3.2 As territorialidades insurgentes em Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte
Diferente dos indivíduos e grupos anteriormente analisados, os que serão
abordados neste subitem atuam na construção de territorialidades que contrariam, de
alguma maneira, os interesses dos agentes hegemônicos. Entre os indivíduos, destacam-
se membros das populações locais (ainda que, em situações específicas, possam agir em
pequenos grupos), ambulantes, pessoas resistentes à especulação e pescadores (porém,
marcados pelo hibridismo); em meio aos grupos, são os mais importantes o tráfico de
drogas e a prostituição (ambos resultando, também, de formas individualizadas de
atuação).
As práticas territoriais da população local são, em sua grande maioria,
pulverizadas em pequenos atos isolados, que se enquadram nas dinâmicas das já
abordadas microterritorialidades. Contudo, em alguns casos, mais evidentes, é possível
destacar ações mais contínuas, ainda que espontâneas, tornando mais factível o seu
exame. Tome-se como exemplo os jovens moradores locais e as territorialidades que
praticam ao usufruírem da praia como local de lazer.
Nos balneários em exame, a praia se constitui em um dos poucos locais onde não
há restrições (ostensivas ou veladas) à presença de pessoas, independentemente de
quaisquer agrupamentos nos quais a sociedade esteja enquadrada. Se os preços
praticados em bares, restaurantes, boates e festas ou as vestimentas, linguagens e
expressões corporais dos turistas são elementos de constrangimento e inibição da
presença de indivíduos dos balneários em locais de grande concentração de turistas,
239
configurando formas de contenção territorial, a praia, ao contrário, permite a
copresença.
Conforme afirma Haesbaert (2009a), toda forma de contenção acaba gerando
também o seu oposto, ou seja, a possibilidade de recomposição do fluxo a ser contido,
em outras bases, em outros ritmos. Nas palavras do autor, empregando postulações
foulcautianas,
Por mais que tentemos conter a sua fluidez e a sua mobilidade, o
Outro está permanentemente descobrindo novos caminhos, novos
“vertedouros”, impelido, numa sociedade cada vez mais biopolítica,
pela própria luta da sobrevivência biológica cotidiana. Ou seja, não
serão meros mecanismos de contenção, envolvidos em políticas “de
exceção”, cada vez mais autoritárias, que irão impedi-lo de buscar
uma saída (...) (p. 118).
A praia é, assim, um local onde os moradores dos balneários conformam
territorialidades que, pela proximidade com os turistas, contornam e, ao fim e ao cabo,
afrontam as dinâmicas de contenção territorial praticadas nos demais espaços destinados
aos visitantes.
Quanto aos ambulantes, esses formam um dos mais expressivos contingentes de
trabalhadores, dentre aqueles que atuam no circuito inferior da economia dos balneários
turísticos. Sem organização prévia, esses trabalhadores formam, porém, um grupo
invisibilizado, graças, sobretudo, ao emprego de estratégias que tem o propósito de
burlar as fiscalizações municipais. “É difícil trabalhar aqui, viu? A Prefeitura não deixa
que a gente fique nessa parte aqui [divisando a Rua da Esperança]. Tem muita
perseguição.”, afirma G.A., ambulante em Porto de Galinhas, morador de Ipojuca.
No que se refere à Praia da Pipa, o Ministério Público Estadual ajuizou, na
Comarca de Goianinha (RN), a Ação Civil Pública n. 116.06.200770-4, em 2010,
requisitando do Poder Executivo de Tibau do Sul a realização de cadastramento e
definição dos limites de atuação dos ambulantes, de quem se reclama do descontrole na
ocupação dos espaços públicos. No entanto, essas pessoas seguem trabalhando,
principalmente nas praias mais centrais, em meio às barracas, onde vendem desde
gêneros alimentícios a vestimentas, valendo-se, para tanto, da precariedade da
fiscalização impetrada pela municipalidade.
Em Porto de Galinhas, a proibição da atividade ambulante na Rua da Esperança
surtiu efeito, ao menos até o presente momento. Ao contrário do que ocorria em anos
anteriores, não há mais, na via, qualquer comércio de rua. A partir de então, sob
240
controle da Prefeitura Municipal de Ipojuca, os ambulantes foram cadastrados e
passaram a atuar, com permissão governamental, nas praias, com número limitado de
pessoas que podem trabalhar. Isto não significa, porém, que não haja ambulantes
irregulares, que atuam nas “brechas”, onde a fiscalização municipal não é capaz de
obstruir a atividade.
Semelhantes às localidades de Pipa e Porto de Galinhas, Praia do Forte é locus
de intensa ação de ambulantes, onde também ocorrem restrições ao comércio de rua. No
balneário baiano, esses profissionais atuam nas praias e nas proximidades dos principais
restaurantes da vila, locais onde há grande concentração de turistas.
Outros indivíduos que exercem territorialidades que são um contraexemplo do
adesismo são as pessoas resistentes à especulação. Em Praia do Forte, ao mesmo tempo
em que há um processo de desterritorialização da população local para as demais
nucleações do município de Mata de São João, como Malhadas e Açu da Torre, entre
outras, como resultado da prática de especulação imobiliária e do vertiginoso aumento
do custo de vida, há resistências de alguns moradores, ainda que difusas e cada vez
menos visíveis, que permanecem habitando suas antigas moradias na via principal da
vila, não cedendo ao apelo do mercado, cujos agentes os assediam com o intuito de
transformar as construções residenciais em empreendimentos comerciais (Figura 26).
Figura 26. Processos de (des)territorialização em Praia do Forte e entorno: (a) favelização entre Açu da Torre e Malhadas; (b) imóvel residencial localizado na Av. ACM.
Fonte: acervo do autor (2010; 2012).
Conforme aponta Santos (2007, p. 112), “A localização das pessoas no território
é, na maioria das vezes, produto de uma combinação entre forças de mercado e decisões
de governo”. Assim, a saída de antigos moradores de Praia do Forte para as localidades
(a) (b)
241
mencionadas, processo que encontra certa similaridade – em menores distâncias que no
caso baiano – com aqueles observáveis em Porto de Galinhas, quando da formação das
nucleações do Socó, Pantanal e Salinas, e em Pipa, a partir da expansão da mancha
urbana em direção ao loteamento Bela Vista (na margem da estrada que liga Pipa à sede
municipal de Tibau do Sul), tem na atuação especulativa dos agentes econômicos – ora
com anuência, ora com intervenção direta do Estado – a causa principal da sua
ocorrência.
A reterritorialização desses moradores em localidades menos valorizadas do
ponto de vista turístico-hoteleiro e imobiliário de alto rendimento é precedida, assim, de
uma desterritorialização marcada não apenas pela perda do solo na perspectiva do valor
de troca que é inerente ao mercado de terras, mas também, e principalmente, pelo
descolamento do eixo da vida. O que era o locus de reprodução social passa a ser, para
esse antigo morador desterrado, um território de estranhamento, o que, de certa forma,
também explica o desinteresse pela copresença naqueles espaços dominados pelos
turistas, como visto alhures.
No entanto, a despeito da intensa pressão que os agentes hegemônicos
promovem sobre os moradores locais em razão da força da especulação imobiliária e da
transformação das localidades em centros de consumo, alguns desses “nativos” acabam
estabelecendo uma verdadeira revanche, ao insistirem em permanecer habitando
residências localizadas em logradouros valorizados pelos agentes econômicos ligados
aos setores de comércio, serviços e imobiliários.
A casa é, para Maia (2012), mais do que uma simples estrutura arquitetônica, um
objeto dotado de sentido, posto que contenha significados para aquele que a habita.
Através da casa, comunicamos aos outros nossa identidade; buscamos
segurança e privacidade; gozamos de momentos íntimos; deixamos o
“mundo” em suspenso; demarcamos nosso “pedaço”; exibimos nossas
prioridades, gostos e desejos. Em seu interior, exercemos o direito à
liberdade ou, ao contrário, aprisionamo-nos no mundo que
construímos (p. 340).
Mais adiante, segue:
A casa assume junto aos segmentos populares (...) um valor
inestimável. Para a maioria deles, significa a possibilidade de
integração efetiva ao bairro e à cidade e, mais que isso, elemento
capaz de torná-los reconhecidos como sujeitos e autores de sua própria
história (p. 341).
242
Os fragmentos extraídos do escrito de Rosemere Santos Maia são argumentos
irrefutáveis para a constatação de que a casa é um território identitário para a pessoa que
a habita, o que é motivo suficiente para que se refute a possibilidade da sua perda, ainda
que – transformada a residência em valor de troca por quem a pretende – os
quantitativos financeiros ofertados sejam altos. Nas palavras da autora: “(...) as
territorialidades criadas expressam a consciência dos sujeitos, sua intencionalidade,
forjando sua identidade e demarcando sua diferença/distinção em relação ao outro” (p.
346).
Além dessas casas assentadas nos espaços preferenciais para o flaneur dos turistas,
os becos e vielas que ligam essas importantes vias dos balneários litorâneos a pequenas
aglomerações de residências localizadas no entorno de pátios internos (Figura 27), são
exemplos adicionais dessas formas de reprodução social que escapam à
homogeneização que acomete a Avenida Baía dos Golfinhos, em Pipa, a Rua da
Esperança, em Porto de Galinhas ou da Alameda do Sol/Avenida ACM, em Praia do
Forte.
Figura 27. Vielas e becos nas proximidades da (a) Avenida Baía dos Golfinhos, em Pipa (RN) e da (b) Avenida ACM, em Praia do Forte (BA).
Fonte: acervo do autor (2012).
No que tange ao tráfico de drogas e à prostituição, por motivos de segurança, a
análise das territorialidades impetradas por tais agentes decorre, tão somente, da
interpretação crítica e reflexiva de breves relatos colhidos durante as pesquisas de
campo. Tema tabu junto às populações que habitam as localidades em estudo, foram
poucos os entrevistados que se dispuseram a tratar, ainda que de modo superficial, de
questões atinentes ao tráfico de drogas e à prostituição. No entanto, os parcos relatos
243
obtidos permitem inferir que o tráfico é uma atividade em rede – cujas articulações
estão para além do próprio estado – e que se mantém a partir de práticas coletivas.
Quanto à prostituição, os indícios apontam para práticas mais individualizadas,
que envolvem jovens – homens e mulheres – locais, além de pessoas que vivem
ocasionalmente nos balneários, especificamente nos períodos de alta estação.
No âmbito das territorialidades insurgentes, os indivíduos exercem seu poder (ou
tentam exercê-lo), que se manifesta, especialmente, através de resistências, nas escalas
menores da vida, presididas pelas nanoterritorialidades ou microterritorialidades. Para
Costa (2008, p. 183), essa “análise microgeográfica” prioriza o exame de fenômenos
que se desenvolvem em escala local, produzindo e diferenciando o espaço como
resultado da apropriação e especialização de pequenos lugares por processos
particulares de convivência social. Nas palavras de Souza (2009, p. 67), esta é “a
escala, por excelência, dos oprimidos e de suas táticas, com suas resistências
quotidianas inscritas no espaço (...)”.
Contudo, adverte Benhur Pinós da Costa (Idem), com base nas formulações de
Paulo César da Costa Gomes, a ênfase na escala microgeográfica não descarta a análise
extralocal, que evidencia processos mais gerais e de escala mais globalizante. Assim, a
microgeografia que trata dessa escala territorial marca o atravessamento do mundo nos
lugares, conforme ensina Santos (1997, 2000, 2002a) ou, em outros termos, “As
territorialidades micro (...) são, portanto, subsidiárias deste ‘encontro’ de processos
socioespaciais situados na confluência interescalar do macro e do micro” (FORTUNA,
2012, p. 201).
Essas estratégias territoriais resultam, primordialmente, de atos que se manifestam
a partir das horizontalidades do/no espaço, que, mesmo atravessado pelas imposições
verticalmente constituídas, admite formas de convivência e regulação criadas sob
lógicas endógenas (SANTOS, 2000), substantivando, assim, a copresença e as
resistências.
7.3.3 As territorialidades híbridas em Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte
Em meio a toda multiplicidade de arranjos que se conformam nas localidades de
Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte, há ainda as estratégias territoriais cuja atuação
dos agentes pode estar enquadrada tanto nas territorialidades adesistas, quanto naquelas
de caráter insurgente, estando, pois, marcadas por um hibridismo. São práticas que
244
permitem ações mais próximas aos ditames do turismo ou, em sentido inverso, que
neguem/se oponham à prática.
Conforme demonstrado na figura 21, duas entre as diversas estratégias
territoriais identificadas nos citados balneários turísticos estão enquadradas nessa
condição híbrida, quais sejam: aquelas provenientes das ações das entidades culturais e
dos pescadores.
Para efeito desse estudo, são consideradas entidades culturais os organismos que
atuam, de forma organizada, na preservação, realização e/ou divulgação de práticas e
eventos ligados à cultura popular, tais como festas tradicionais, inclusive as de caráter
religioso, e manifestações artísticas e folclóricas. Não se enquadram nesse contexto, as
empresas de eventos.
Algumas festas e manifestações culturais são consideradas positivas como
elementos que tem a capacidade de incrementar o turismo nos balneários, sendo
transformadas, portanto, em atrativos turísticos, muitas das quais organizadas com apoio
logístico e/ou financeiro das municipalidades e agentes econômicos. Nesses casos, as
entidades que assumem a tarefa de preservar, realizar e divulgar tais práticas passam a
assumir territorialidades adesistas.
Para Santos (2000), a globalização exerce sua influência sobre todos os aspectos
da existência, inclusive na vida cultural. Uma das consequências desse processo é, ainda
segundo o autor, o novo significado que se dá à cultura popular, resultante da
incapacidade dos agentes da globalização em homogeneizar a tudo e a todos e, como
efeito disso, a acessão dessas manifestações em condição de rivalidade com a chamada
cultura de massas. Assim, o movimento unificador da massificação encontra a
resistência cultural preexistente, constituindo-se, assim, “formas mistas sincréticas,
dentre as quais, oferecidas como espetáculo, uma cultura popular domesticada
associando um fundo genuíno a formas exóticas que incluem novas técnicas” (p. 144).
Festas dedicadas aos santos padroeiros (São Sebastião, em Pipa; Nossa Senhora
do Desterro, em Porto de Galinhas; São Francisco de Assis, em Praia do Forte),
carnavais e procissões religiosas e outras comemorações tradicionais, são, assim,
cooptadas pelo avanço do capital sobre a cultura e passam a fazer parte dos calendários
oficiais de eventos dos balneários.
Além disso, algumas das poucas entidades culturais existentes e grupos que
preservam manifestações tradicionais, são constantemente convocadas para realizarem
apresentações em eventos públicos, promovidos, na maioria das vezes, pelas prefeituras,
245
ou privados, realizados, principalmente, pelas empresas do setor hoteleiro.
Recentemente, o Eco Resort & Thallasso SPA, o mais antigo empreendimento hoteleiro
da vila, desenvolveu o Projeto Caretas, que visa preservar uma das mais importantes
manifestações culturais do norte do estado, as caretas carnavalescas.
Por outro lado, quando a prática, ao contrário, exerce efeito negativo sobre o
turismo, a territorialidade advinda da ação empreendida pelos seus realizadores é
considerada insurgente. Assim, ainda que não sofra retaliações diretas por parte da
prefeitura municipal e dos agentes econômicos, a continuidade da manifestação cultural
é constantemente ameaçada pela falta de recursos para o provimento de equipamentos,
vestimentas e demais componentes necessários à realização da atividade.
De acordo com a análise realizada em campo, apenas alguns poucos grupos de
capoeira (em Pipa e Praia do Forte), samba-de-roda (em Praia do Forte) e Coco (em
Porto de Galinhas) se enquadrariam entre as entidades que exercem territorialidades
insurgentes, já que não estão alinhadas aos interesses de mercantilização da cultura.
Quanto aos pescadores, embora uma maioria esmagadora – nos três balneários –
tenha cedido ao “canto da sereia” empostado pelos agentes do turismo (com anuência
das respectivas colônias de pescadores), passando a assumir, como afirmado alhures, as
funções de guias de turismo, e portanto, submetidos a práticas geradoras de
territorialidades adesistas, há exemplos, isolados, mas significativos pela capacidade de
resistência, de profissionais que seguem dedicando a sua força de trabalho à atividade
que dominam, em muitos casos, desde a infância, o que, em sentido inverso, pode ser
considerado como territorialidades insurgentes (Figura 28).
Figura 28. Exemplos do hibridismo territorial dos profissionais da pesca: (a) jangadeiros transportando turistas em Porto de Galinhas (PE) e pescadores realizando manutenção das redes, em Praia do Forte (BA).
Fonte: arquivo do autor (2009; 2012).
246
Em Porto de Galinhas, a substituição da pesca pelo guiamento é um processo
mais consolidado que nas demais localidades pesquisadas, ainda que, também nessas,
seja um fato significativo. Na localidade pernambucana, há forte demanda por
jangadeiros, posto que a visita aos corais seja uma das práticas mais requisitadas pelos
turistas. A.V., morador do Pantanal, pescador aposentado, revela uma inquietação
quanto ao futuro da atividade pesqueira:
Antes, meu amigo, todo menino daqui queria subir num barco para
aprender a pescar. Se o menino não virasse pescador, pelo menos
conhecia o ofício. Hoje, não sei qual é o futuro da pesca. Todo mundo
só quer “carregar” os turistas prá [sic] baixo e prá [sic] cima. Até os
pescadores mais antigos, que ainda estão na ativa, mais passeiam do
que pescam.
Essa cooptação dos pescadores pelo segmento turístico é uma realidade também
em Pipa e Praia do Forte. Contudo, a menor demanda turística, derivada da sazonalidade
imposta pelos limitados períodos nos quais é possível avistar golfinhos e baleias,
respectivamente, permite, ao menos em dados lapsos de tempo do ano, a manutenção da
pesca como meio de vida para alguns dos habitantes locais. D.G., morador de Praia do
Forte, pequeno comerciante e pescador, explica tamanha flexibilidade laboral:
No verão, quando isso aqui enche de turistas, sou comerciante, vendo
meu espetinho e minha cervejinha aqui na barraca. Nos períodos de
baixa [estação], “viro” pescador. (...) Tenho até a carteirinha da
colônia de pesca, recebo o dinheirinho do defeso e tudo (risos).
Por outro lado, há quem, por recusa ao imperativo dos novos tempos, segue
exercendo a atividades típicas de pescador. Um dos exemplos mais contundentes é o de
P.C., pescador, morador de Pipa, cujo relato revela toda a pressão exercida para que tais
profissionais sejam absorvidos pela prática turística:
Estou aqui desde pequeno. A única coisa que sei fazer é lidar com os
peixes. Já tive um curral [de pesca] bem aí em frente [apontando para
o trecho de praia em frente ao povoado]. Mas hoje, prá [sic] pescar,
tenho que ir cada vez mais longe. Às vezes, parece que meu trabalho
atrapalha o dos outros, sabe [referindo-se aos barqueiro que
transportam turistas]? Mas eu vou seguindo, como Deus quer, até o
fim da vida.
Em seguida, arremata, ao seu perguntado sobre a afirmativa anteriormente
descrita, de que sentia atrapalhar o trabalho dos barqueiros dedicados ao transporte de
turistas:
Não é que ninguém venha aqui prá me dizer “você tem que largar da
pesca e trabalhar com nós” [sic]. Mas toda hora tem um colega que
247
vem com um “zum-zum-zum” na minha cabeça, que tá [sic] ganhando
dinheiro, que o bom é trabalhar com os turistas. Parece até que os
“cabra” querem acabar com o ofício de pescador na Pipa.
Essas práticas insurgentes são, no entanto, contingenciais, posto que alguns dos
pescadores, principalmente em Pipa, comercializem parte da sua produção em
empreendimentos hoteleiros e restaurantes que, ao fim e ao cabo, existem apenas para
darem vazão às demandas criadas pelos turistas, os mesmos cujos interesses são
negligenciados pelos profissionais da pesca.
7.4 Breve síntese da análise comparativa das estratégias territoriais verificadas em
Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte
O exame das estratégias territoriais que ora se desenvolvem nos balneários de
Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte é revelador, por um lado, do vertiginoso
processo de transformação pelo qual essas localidades vem sendo submetidas desde a
sua transformação em territórios do turismo e, por outra parte, da ampla diversidade de
territorialidades que são praticadas nesses destinos turísticos, isso a despeito das suas
pequenas dimensões demográficas e do império absoluto de uma função urbana, no caso
o turismo.
A multiterritorialidade – para empregar o termo mais adequado – diz respeito,
segundo Haesbaert (2004b, p. 344), à possibilidade de “experimentar vários territórios
ao mesmo tempo” ou, em outras palavras, à “vivência, concomitante, de uma enorme
gama de diferentes territórios” (HAESBAERT, 2008, p. 30), sendo esta a chave para o
entendimento da tipologia desenvolvida para abrigar, no contexto da urbanização
turística dos balneários em exame, as várias estratégias territoriais verificadas.
Importante salientar que, além da multiplicidade aqui revelada, há outras
territorialidades que se inscrevem nos quadros da realidade de Pipa, Porto de Galinhas e
Praia do Forte, mas cujos agentes, os ditos hegemônicos, não receberam a mesma
atenção, no âmbito deste estudo, que os hegemonizados, ainda que haja um explícito
reconhecimento de que a atuação destes últimos resulta, em grande parte, de ajustes e
reações ao modo de agir daqueles.
As diferentes estratégias territoriais que tem nos já mencionados agentes
hegemonizados os seus protagonistas foram enquadradas em territorialidades adesistas e
territorialidades insurgentes. Há ainda aquelas cuja condição específica permite um
248
enquadramento concomitante em ambos os tipos anteriormente aventados, sendo
caracterizadas, portanto, por serem híbridas.
Por outro lado, ao pensar a ocorrência dessas territorialidades segundo uma
perspectiva comparativa, é possível perceber que as similaridades e diferenças
verificáveis estão circunscritas ao grau de intensidade da ação exercida pelos agentes e
das repercussões que acarretam nos distintos destinos turísticos. Vale afirmar que,
mesmo em contextos espaço-temporais próprios, os agentes acabam por desenvolver
estratégias que se aproximam pelas características da ação impetrada, principalmente
nos casos de territorialidades adesistas, postos que sejam, em maior ou menor medida,
induzidas pelos agentes hegemônicos, sequiosos pela homogeneização das relações,
com evidentes consequências nos espaços transformados em territórios.
249
CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES
Não há como negar que o turismo, como atualmente é gestado, promove
considerável crescimento econômico nos lugares onde ocorre, tendo se tornado
elemento fundamental na geração de superávit e lucro – desde os pontos de vista do
Estado e dos agentes econômicos, respectivamente. Mas é preciso admitir, por outro
lado, que tal prática não remediou a contento os problemas que tais agentes prometiam
debelar, especialmente através da veiculação de discursos que apontam o turismo como
um vetor privilegiado de “redução das desigualdades sociais e regionais, promovendo a
inclusão social e gerando mais emprego e renda para a população” (BAHIA, 2011, p. 9).
Ao contrário, o turismo acabou por acentuar alguns problemas preexistentes
como a diferenciação da sociedade por classes, além de instaurar outros, até então
inéditos em pequenos povoados e vilas dispersos do litoral nordestino, como a
mobilidade da população local e os seus efeitos mais agudos, entre os quais, vale
destacar, a periferização e, em casos extremos, a favelização, todos com forte incidência
sobre os territórios.
Em localidades como Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte, há uma
convivência, perversa, em todos os sentidos, entre territórios da modernidade, cuja
implantação tem no Estado e nos agentes econômicos os seus principais responsáveis, e
territórios da precariedade, nos quais as parcelas da população não ou pouco
beneficiadas pelo turismo se estabelecem.
Emerge dessa constatação a necessidade de refletir sobre os modelos de políticas
públicas, de ordenamento territorial e, como parte do anterior, de urbanização turística
voltados para a implantação da prática turística como ora se faz nesses lugares do litoral
nordestino, bem como sobre os arranjos territoriais daqueles indivíduos e grupos que
lidam – espontânea ou compulsoriamente – com o turismo, algo incessantemente
buscado neste estudo.
A tese, dividida em três partes e sete capítulos, busca lançar luzes sobre as
práticas territoriais dos indivíduos e grupos que, como em muitos casos, mesmo
habitando os lugares desde muito antes dos processos de reestruturação territorial
produtiva, não foram contempladas ou pouco se beneficiaram da formação de territórios
do turismo em praias nordestinas rigorosamente selecionadas por uma aparente aptidão
– ou “vocação”, como apregoado entre os planejadores e gestores públicos – para o
desenvolvimento turístico.
250
A Parte I, denominada A dinâmica territorial do turismo na contemporaneidade,
trata de contextualizar o turismo como uma prática com grande capacidade de alienação
dos espaços onde ocorre. Para tanto, no Capítulo 1, é feita uma análise das
transformações pelas quais o turismo vem passando a partir da sua compreensão como
um elemento de produção e consumo do espaço assentado em bases (neo/pós)fordistas.
Além disso, no Capítulo 2, é feito um exame teórico-conceitual que expõe os aspectos
mais relevantes da abordagem territorial, mormente naquilo que se refere ao exame do
turismo sob tal perspectiva geográfica, considerando-a em seus aspectos relacional,
histórico e multidimensional.
Na Parte II, intitulada Processos de territorialização do turismo na América
Latina e no Brasil, é feita uma análise do papel desempenhado pelas políticas públicas
para o turismo na construção material e simbólica dos destinos. Neste sentido, o
fragmento se propõe a realizar um percurso analítico no qual se dimensiona a
importância do “modelo Cancún” como paradigma do Prodetur-NE, o que corresponde
ao Capítulo 3, ao tempo em que examina, no Capítulo 4, as estratégias de ordenamento
territorial e urbanização turística desenvolvidas nos destinos de Sol e Praia do litoral
setentrional brasileiro a partir da implantação do referido programa.
Em Territórios do turismo e outras territorialidades no Nordeste do Brasil,
correspondente à Parte III desta tese, é dado um enfoque – em uma perspectiva
comparativa – às práticas territoriais das populações locais de Pipa, Porto de Galinhas e
Praia do Forte frente ao processo de turistificação desses lugares. Tomado como o core
desta tese, o referido fragmento versa, em um primeiro momento (Capítulo 5), sobre os
caminhos metodológicos da pesquisa, enfatizando os procedimentos da abordagem
comparativa empregados na sua consecução, para, em seguida, proceder o exame da
formação territorial dos destinos turísticos postos em relevo neste estudo (Capítulo 6), e
a análise crítica e reflexiva das territorialidades praticadas pelos agentes hegemonizados
que ali vivem (Capítulo 7).
Vale ressaltar que a escolha pela realização de um exame de caráter geográfico
baseado na comparação de três dos mais importantes destinos turísticos do litoral
nordestino se impôs pela necessidade de exaltar as convergências e divergências
resultantes da complexa interação dos distintos agentes que atuam nesses lugares a
partir da implementação de políticas públicas amparadas na unicidade e na
homogeneização dos processos de produção e consumo desses espaços marcados por
uma pretensa “vocação” para o turismo.
251
Como se pode observar na literatura relativa ao tema, são muitas as pesquisas
que tratam de compreender, explicar e mensurar os efeitos do turismo em destinos de
Sol e Praia nas quais Pipa, Porto de Galinhas e Praia do Forte aparecem como objetos
de estudo, convertendo-os em lugares privilegiados no que tange à produção de
conhecimento novo, seja na própria Geografia ou em outros campos do saber, como nas
Ciências Sociais, Biologia e Meio Ambiente, Administração, Turismo e Psicologia, por
exemplo.
Ocorre, porém, que invariavelmente, tais estudos são realizados desde uma
perspectiva fragmentária de análise, como se a transformação dos lugares mencionados
em destinos turísticos resultasse de ações isoladas e não de um processo laboriosamente
bem articulado pelos agentes hegemônicos – Estado e detentores dos meios de produção
– que atuam no sentido de criar territórios do turismo, empregando, inclusive, modelos
bem sucedidos (desde uma perspectiva político-econômica), como no caso de Cancún
(México).
Fruto de um processo de turistificação do litoral nordestino gestado sob
condições normativas, organizacionais e operacionais únicas, pretensamente imunes às
vicissitudes produzidas pelo contato com o que é diverso, a transformação de
assentamentos multisseculares em destinos turísticos se dá sob um complexo arranjo de
articulações entre esses agentes hegemônicos, ávidos em replicar experiências de
mercado bem sucedidas onde quer que atuem. Tais estratégias permitiriam inferir que as