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Petrópolis - nº3 | 2011 “Frei Tomás Borgmeier, o ciensta” p.23 115 ANOS - ITF Teologia e Sociedade: um olhar retrospectivo p.28 Frei Fernando fala sobre os cursos que o ITF oferece p.4 Master em Evangelização encerra o terceiro curso p.11 “Os gemidos da Criação e o clamor do pobre” p.18 Espiritualidade para uma Vida Virtuosa p.48 A Palavra de Deus na vida e na Missão da Igreja p.34
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Revista ITF nº3

Mar 22, 2016

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Revista do Instituto Teológico Franciscano
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Page 1: Revista ITF nº3

Petrópolis - nº3 | 2011

“Frei Tomás Borgmeier,

o cientista”

p.23

115 ANOS - ITFTeologia e Sociedade:

um olhar retrospectivop.28

Frei Fernando falasobre os cursos que

o ITF oferecep.4

Master em Evangelização

encerra o terceiro curso

p.11

“Os gemidos da Criação e o clamor do pobre”p.18

Espiritualidade para uma

Vida Virtuosa

p.48

A Palavra de Deus na vida e na Missão da Igreja

p.34

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Expediente:Revista da Faculdade de Teologia - ITFProvíncia Franciscana da Imaculada Conceição do BrasilInstituto Teológico Franciscano - ITFRua Coronel Veiga, 550, centro - Petrópolis-RJ(24) 2243-9959 e 2231-6409E-mail:[email protected] Site: www.itf.org.brMinistro Provincial: Frei Fidêncio Vanboemmel, OFMVigário Provincial: Frei Estêvão Ottenbreit, OFMDiretor ITF: Frei Sandro Roberto da Costa, OFM

Edição e Diagramação:Frei Maffei, OFM

Reportagens:Frei Rodrigo da Silva Santos, OFMFrei Marcel Freire, OFMFrei Osvaldo Maffei, OFM

Revisão:Frei Antônio Everaldo P. Marinho, OFMFrei Elói Dinísio Piva, OFMFrei André Luiz da R. Henriques, OFMFrei Clauzemir Makximovitz, OFMFrei Celso Márcio Teixeira, OFM

Edito

rial

O Instituto Teológico Franciscano traz a pú-blico mais um número de sua Revista ITF. Muita coisa boa aconteceu nestes últimos meses: além das aulas na graduação e pós, realizaram-se vá-rios outros cursos, encontros, eventos, seminá-rios e um congresso internacional. Através deste número, desejamos partilhar com nossos ex-alu-nos e estudantes, professores e amigos um pou-co da vida que se respira e se vive nesta casa.

Merece destaque a celebração dos 115 anos de fundação do Instituto. É uma ocasião propícia para fazer memória, avaliar e retomar a caminhada a partir dos valores que sempre nortearam esta Instituição. O relato dos even-tos realizados no semestre é a melhor prova do sério esforço realizado para manter vivo o ideal daqueles que, há mais de um século, em meio a todas as limitações de seus dias, não tiveram receio de semear numa seara que se mostrou fecunda, que continua produzindo frutos e se

abre a novos desdobramentos.No encerramento deste ano acadêmico, co-

lhemos a oportunidade para agradecer a todos aqueles e aquelas que durante o ano partilha-ram um pouco de suas vidas e de seu tempo co-nosco, como estudantes, colaboradores ou par-ticipante de palestras, noites culturais etc.

A razão de existir do ITF é o ser humano, em toda a sua complexidade, esperanças e fragilida-des, desafios e potencialidades. Tudo aquilo que é oferecido nesta Instituição tem como objetivo tornar o ser humano melhor em suas relações com Deus, com o mundo e consigo mesmo. Ape-sar das fragilidades, acreditamos ter contribuído para a aproximação desse ideal.

Em nome da equipe do ITF, nosso agradeci-mento a todos os que caminharam conosco nes-te ano.

Frei Sandro Roberto da Costa, ofmDiretor

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Sumário

Noite Cultural:Celebrando 115

anos do ITF

Artigo:Os gemidos da Criação e o clamor do

pobre

EncontroEspírito de

Assis

Curso deEspiritualidade Franciscana no

Rio

Entrevista com Frei Fernando

Araújo

22

34

78

17

18Entrevista com Pe.

João Batista Libânio

11

Faça parte da Família ITF!

Espiritualidade para uma Vida

Virtuosa48

A Palavra de Deus na vida e na Missão da Igreja

Artigo:São João

Crisóstomo

Artigo:ITF 115 anos

Teologia eSociedade

28

46

Master em Evangelização

23 Artigo:Frei Tomás Borgmeier

Agenda ITF 201267 Novidades na

Biblioteca68

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Frei Fernando Araújo, frade francis-cano, secretário geral do ITF, conce-de uma entrevista exclusiva, onde fala sobre os cursos que a Institui-ção franciscana oferece, bem como sobre a pluralidade e a democracia do saber. Frei Fernando é psicólo-go, e atualmente leciona Teologia Pastoral, Psicologia Pastoral, Admi-nistração e Pastoral, na Faculdade de Teologia - ITF.

Site ITF - Qual a relevância do es-tudo da Teologia nos dias atuais, frente à busca pelo sagrado que vemos na sociedade?Frei Fernando: Saber sobre um de-terminado assunto, sobre aquilo que interessa, sobre aquilo que in-cide sobre a vida da gente, sempre habilita a lidar melhor com aquilo. Sem conhecer a dinâmica que en-volve aquele assunto, seu contexto, o indivíduo torna sua lida um tanto inconsciente, mais vulnerável a er-ros, à perda de tempo, a enganos. Quanto melhor a pessoa conhece o assunto, ela terá mais segurança para lidar com ele. Então, no que se refere ao sagrado nós temos a mesma perspectiva. O sagrado é da ordem do mistério, da religião. Mesmo sendo algo inalcançável pelos saberes em toda a sua com-

pletude, quanto mais o indivíduo souber, melhor será seu relaciona-mento com aquilo. Então, o ensino teológico, por conter saberes na área do sagrado, nos habilita a lidar melhor com as coisas sagradas, do que se pouco soubéssemos.

Site ITF - Quanto aos Cursos de Extensão oferecidos pelo ITF, nes-te ano nós experimentamos uma boa aceitação e participação do público. Você poderia nos falar em como o Instituto vê os motivos que levaram a estes bons resulta-dos e, ainda, quais as medidas que estão sendo tomadas para manter este cenário?Frei Fernando: As pessoas querem viver melhor. O que não significa que tenham mais coisas, mas sim, que saibam usar melhor o que têm. Nós temos muitos dons, que vão desde o próprio corpo, quando se fala, por exemplo, em saúde, como os recursos naturais, as faculdades

psíquicas e, também, as graças de Deus, os dons de Deus presentes em nós. Os Cursos de Extensão deste ano ofereceram a oportu-nidade para as pessoas refletirem intensamente sobre o dom da cor-poralidade, por exemplo, o dom do corpo, o dom das faculdades men-tais, o dom da vida. É claro que é interesse de todos nós vivermos melhor. Se alguém diz que vai ofe-recer a possibilidade de entender melhor os presentes que Deus nos dá – o corpo, a mente, o convívio social, a natureza –, é claro que nós vamos acolher este conhecimen-to para podermos viver melhor. Então, a proposta dos Cursos de Extensão é por uma qualidade de vida em seus diferentes aspectos, seja no que tange a Espiritualida-de, um conhecimento acadêmico, a saúde. Quem tem espiritualidade tem uma qualidade de vida melhor. E esta não é uma fala exclusiva da religião. As ciências sociais, como Antropologia e Psicologia, enten-dem e já averiguaram, por pesqui-sas criteriosas, que as pessoas que cultivam uma espiritualidade equi-librada têm também uma vida me-lhor. As pessoas querem entender melhor a Deus, as expressões de fé, a si mesmos. E estes Cursos de Espiritualidade, que a ligam com a qualidade de vida atendem a esta demanda. O conselho diretor, que pesquisa e aprova os cursos ofere-cidos pela Instituição, juntamente com as equipes organizadoras de cada um destes cursos, pensam em oferecer às pessoas algo que possa contribuir para que sua vida, tanto

“Saber sobre um determina-do assunto, sobre aquilo que interessa, sobre aquilo que incide sobre a vida da gente, sempre habilita a lidar melhor com aquilo”.

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individual quanto interpessoal, seja melhor. O mesmo pode ser dito no que se refere ao relacionamento com Deus. O objetivo é sempre este, ou seja, de fazer bem às pes-soas. Site ITF - Quanto a este fenômeno da maior participação de alunos nestes Cursos de Extensão semes-trais, você acredita que trará al-guma repercussão para a própria graduação em Teologia?Frei Fernando: Com certeza. Atra-vés destes Cursos de Extensão, as pessoas conhecem um pouco da mentalidade da faculdade, a sua re-ferência teológica e estilo de abor-dagem ao entender Deus e seus mistérios. E a partir daí, isso pode despertar na pessoa um interesse maior, querer avançar neste saber teológico. A graduação, eviden-temente, oferece esta chance. A pessoa pode aprofundar temáticas que foram abordadas brevemente nos Cursos de Extensão, sobretudo o estudo de Bíblia, Liturgia, História da Igreja... E eu acredito que estes cursos bem recebidos poderão es-timular as pessoas a fazerem uma graduação em Teologia.

Site ITF - O ITF, neste ano, comple-ta 115 anos de existência. Qual a influência da Instituição na socie-dade petropolitana e no mundo?Frei Fernando: O ITF levou o nome de Petrópolis ao mundo, através de professores que passaram por aqui e escreveram livros, que fo-ram traduzidos para várias línguas, e fizeram palestras pelo mundo afora. Há algumas décadas atrás, o

nome desta Instituição era Institu-to Teológico Franciscano de Petró-polis, justamente para diferenciá--lo de outros Institutos Teológicos Franciscanos pelo mundo. Então, o nome da cidade de Petrópolis foi le-vado para todos os países da Amé-rica e aos países da Europa através destes professores, por seus livros e conferências. Muitos professores têm títulos honoríficos da cidade de Petrópolis e do Estado do Rio de Janeiro. O professor de Psico-logia, Frei Ademar Spindeldreier, que há décadas atrás, lecionou psicologia neste instituto, recebeu homenagens, póstumas inclusive, do Centro de Cultura Raul Leoni. Ele era uma pessoa muito querida e respeitada nos meios acadêmicos da cidade de Petrópolis. O mesmo pode ser dito de outros professo-res que por aqui passaram, que trabalharam na UCP e no seminário diocesano. Além disso, para a cida-de de Petrópolis, o ITF possibilitou que muita gente tivesse acesso aos saberes destes professores através do Curso de Teologia para Leigos, que funcionava à noite, e que foi substituído pelos Cursos de Exten-são, oferecendo à sociedade este saber teológico. Este estudo da Teologia tem colaborado para uma maior qualidade de vida e, conse-quentemente, estas centenas ou milhares de pessoas que passaram por aqui se tornam agentes de um melhoramento de qualidade nas relações interpessoais com Deus, com as pessoas, e acabam não só melhorando a si mesmos, mas me-lhorando o ambiente de trabalho e o ambiente familiar. E assim, o ITF

teve sua influência, tanto do pon-to de vista da produção intelectual (livros, revistas), mas também do ponto de vista bem prático das pes-soas por entenderem melhor em sua vida os mistérios de Deus. Site ITF - Na sociedade de Petrópo-lis, o ITF ficou conhecido como for-mação para padres e religiosos. Atu-almente, pessoas de outras religiões e leigos têm se interessado em estu-dar Teologia. O que mudou?Frei Fernando: Este fenômeno não ocorre somente com o estudo da Teologia. Todos os saberes espe-cializados hoje estão cada vez mais sendo popularizados. Por exemplo, os saberes médicos presentes em inúmeras revistas e programas de saúde na televisão. Nós estamos, na verdade, seguindo uma tendên-cia: da popularização do saber. Os saberes não são mais herméticos, não são mais fechados, como eram antigamente. Cada especialidade tinha a sua chave de compreensão, uma linguagem própria, difícil de entender para um leigo no assun-to. Hoje existe uma generosidade de todos os saberes em distribuir aquilo que possa ser entendido por todos. E nós estamos nesta dinâmica tão atual que é oferecer os saberes não só àqueles que se especializam neles, mas também a todos que se interessam por eles. Na Teologia, nós vemos não apenas com bons olhos, mas com satisfa-ção, este processo. É a verdadeira democracia do Saber, que rompeu com a antiga aristocracia do saber, disponível a poucos.

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“Um diálogo para construir a Paz”. Esse foi o grande intuito da tarde do dia 25 de novembro, quando o Instituto Teológico Fran-ciscano promoveu um encontro em recordação ao grande evento para o diálogo entre as religiões ocorrido em Assis há 25 anos, mais exatamente no dia 27 de ou-tubro de 1986, o chamado “Espíri-to de Assis”.

Frei Volney Berkenbrock, pro-fessor do ITF e um dos organiza-dores do encontro, deu início com uma preleção acerca do evento original e ressaltou a importân-cia que representou e representa para a Igreja. “É necessário con-tinuar respirando o mesmo espí-rito, o mesmo ar!”, afirmou Frei Volney. Embora aquele evento te-nha ocorrido há 25 anos, os ares de Paz que de lá brotaram conti-nuam vigorosos e relevantes para a atualidade. É mais que necessá-rio manter viva essa iniciativa de dialogar através das diferenças, mas em torno do que é comum a toda a humanidade e que, de cer-ta forma, está presente em todas as tradições, a Paz.

Frei Vitório Mazzuco, professor do ITF e também um dos organi-zadores deste encontro e o ilustre convidado, Lama Padma Santem, também ofereceram suas contri-buições nesta tarde. Lama Padma Santem, cujo nome civil é Alfredo Aveline, é mestre em Física pela Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul (UFRGS), foi professor

de 1969 a 1994 e dedicou-se espe-cialmente à física quântica, teoria na qual encontrou afinidade com o pensamento budista. No início dos anos 80, intensificou seu in-teresse pelo budismo e em 1996 foi ordenado lama pelo mestre ti-betano Chagdud Tulku Rinpoche. Neste encontro ele representa a tradição budista tibetana e sua contribuição para a Paz.

O mestre em Espiritualidade, Frei Vitório Mazzuco, iniciou suas colocações sobre o tema: “Fran-cisco de Assis e a mística da Paz”. Partindo dos escritos conservados sobre São Francisco, Frei Vitório ressaltou três aspectos importan-tes na mística franciscana para a realização da Paz: a reconstrução da Igrejinha de Porciúncula de São Damião; o encontro com o mundo muçulmano; e o Lobo de Gubbio. São três momentos da história franciscana em que, segundo Frei Vitório, São Francisco foi capaz de dar uma resposta mística de Paz e diálogo, inclusive inter-religioso. “O espírito de paz franciscano é crítico e fruto de uma reflexão da realidade como um todo, ou seja,

a partir da integração das criatu-ras como uma fraternidade uni-versal”, assegurou o palestrante.

Após a visão franciscana na construção da paz, tomou a pa-lavra o mestre Lama Padma San-tem, que com muita tranquilidade expôs a visão budista tibetana da paz e do espírito da Paz. A partir de sua experiência, Lama Padma apresentou um pouco do pen-samento védico do atman e do brahman como elementos con-vergentes que na tradição budista tibetana são entendidas, respecti-vamente, como o mundo interno e o mundo externo. Esses mundos acessam distintas realidades que dentro de uma visão de comple-mentaridade dizem ao ser huma-no que tudo está continuamente ligado e em constante criação. “O papel do ser humano neste plano é compreender e perceber os sig-nificados de seus engajamentos e o modo como enfrentar essas rea-lidades com sabedoria, perceben-do o Espírito (Long), a essência. Assim vão ser descobertas as ver-dadeiras causas do sofrimento e também das alegrias, e a paz será o maior fruto”, destacou Lama Pa-dma.

O encontro celebrativo dos 25 anos do Espírito de Assis foi encer-rado com uma prece cantada da tradição do budismo tibetano. As cerca de 100 pessoas que, numa tarde de sexta-feira puderam dei-xar seus afazeres para participa-rem deste evento, experimenta-ram o quão simples é cultivar o diálogo, basta deixarmos de lado nossos preconceitos e focarmos juntos naquilo que é o essencial comum, como a necessidade de uma cultura de Paz.

Notí

cias

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O ITF (Instituto Teológico Fran-ciscano), em parceria com o Con-vento Santo Antônio do Rio de Janeiro, promoveu durante este ano um curso de extensão sobre a “Espiritualidade Franciscana”, ocorrendo sempre aos sábados pela manhã. O objetivo era o de apresentar o carisma francisca-no e provocar os interessados a vivenciar o modo de ser francis-cano. Com ótima avaliação pelos participantes, este curso termi-nou em novembro.

Os participantes deste curso foram: irmãos(ãs) da OFS (Ordem Franciscana Secular), leigos(as), religiosas e simpatizantes do ca-risma. O início se deu em março com cerca de 34 inscritos; com o passar dos meses, permanece-ram fiéis 21, entre eles Maria Lú-cia Americano, que recebeu por e-mail o convite para participar deste curso. Ela confessa: “estou absolutamente maravilhada pelo carisma franciscano, com tudo aquilo que ouvi aqui. Não tenho palavras para descrever e espero que este curso se repita”.

“Curso de Espiritualidade Franciscana no Rio”

O carisma franciscano vem cati-vando a todos há 800 anos e, cer-tamente, cativou os participantes deste curso, bem como afirma o sr. Francisco Correiro, membro da OFS de Rio Comprido (RJ): “este curso é um sinal de uma busca pela identi-dade franciscana, e, por isso, cativa a todos”. Os participantes puderam conhecer o carisma de Francisco de Assis, mediante as disciplinas de Introdução às fontes francisca-nas; Introdução às fontes clarianas; Introdução à Espiritualidade Fran-ciscana; Introdução à Espiritualida-de Clariana; Introdução à Teologia Franciscana; História Franciscana; Regra da OFS nova e inspiradora de vida; Oração Franciscana; Visão Franciscana na Ecologia; Diálogo Ecumênico e Inter-religioso; Identi-dade do Homem franciscano.

Certamente todas essas disci-plinas foram abordadas de manei-ra sucinta, uma vez que cada uma delas levaria alguns anos para um aprofundamento. No entanto, no desejo pessoal de cada participan-te transparece a vontade de conti-nuar estudando e conhecendo para então, transformar as suas vidas. Por sua vez, o irmão da OFS, Mar-co Aurélio confessa: “este curso foi uma aventura gostosa, que está me levando a um aprofundamento cada vez maior. Beber das fontes é um rejuvenescimento. Quanto mais bebo, mais tenho vontade de mergulhar nestas fontes. É beben-do desta fonte que posso cada vez mais fincar as raízes no ser francis-cano”.

Ser franciscano em nossa era é fazer a diferença na sociedade, é viver o fermento do Evangelho e na e a partir da fraternidade transfor-mar o mundo à nossa volta. Sob tal inspiração, os participantes foram conduzidos a perceber o mundo no prisma da vida franciscana, com a ajuda dos professores Frei Vitório Mazzuco, Frei Celso Márcio Teixei-ra, Frei Sandro R. da Costa, Frei Gil-berto da Silva, Ir. Delir Brunelli, Frei Sinivaldo Tavares, Frei Fernando Araújo, Frei Volney Berkenbrock, Frei Ludovico Garmus, Frei Alberto Beckhäuser e Frei Almir Guimarães.

A coordenadora de formação da Fraternidade da OFS do Largo da Carioca, Maria Tereza da Con-ceição Ribeiro, assegura que “a riqueza do curso não foi só acadê-mica, mas também a beleza, leveza e profundidade da espiritualidade franciscana. Ajudou-me a não ser tão crítica como formadora e a compreender a caminha que cada um deve percorrer na vida francis-cana. Os professores passaram a espiritualidade com muita leveza, a tal ponto de podermos perceber a simplicidade franciscana. Este cur-so é necessário não só para os fran-ciscanos, mas para todos, para que todos conheçam Francisco, pois, conhecendo-o, certamente conhe-cerão o Deus Amor”.

Ser franciscano em nossa era é fazer a di-ferença na sociedade, é viver o fermento do Evangelho e na e a partir da fraternidade transformar o mundo a nossa volta.

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Na noite de quarta-feira, dia 22 de novembro, a Faculdade de Teolo-gia – Instituto Teológico Franciscano – celebrou seu 115º aniversário em grande estilo. Promovendo a data comemorativa com uma Noite Cul-tural, a instituição contou com a pre-sença do Coral dos Meninos Canto-res, Canarinhos de Petrópolis, e com palestrantes que discorreram sobre a importância do estudo teológico no mundo contemporâneo.

O evento teve início com a sau-dação de Frei Antônio Everaldo, que apresentou brevemente a pro-gramação da noite. Frei Sandro Ro-berto da Costa, Reitor do Instituto, dirigiu breves palavras aos presen-tes, saudando as autoridades e ami-gos com o franciscano Paz e Bem! A noite pretendia fazer reverência aos que fizeram parte da história do ITF, o que também foi resumi-do em breves palavras pelo Reitor: “Os ideais e valores daqueles que nos precederam continuam ativos e presentes no nosso hoje, com o chamado para atualizá-los frente a nossa atual realidade”.

O próprio Coral dos Canarinhos de Petrópolis tem sua história liga-da à do ITF. Fundado por Frei Leto Bienias para auxiliar na solenidade das celebrações da Paróquia Sagra-do Coração de Jesus, de Petrópolis, o coral já percorreu boa parte do Brasil e alguns países europeus, mas sempre manteve sua ligação com

os frades franciscanos. Convidados a participar desta noite, aceitaram prontamente, sob a direção do ma-estro Marcos Aurélio Licht. O coral se propôs a executar, entre outras músicas, duas peças compostas por frades que estudaram no ITF, para deleite dos convidados.

Pe. Renato G. de Andrade (Mes-tre em Teologia Sistemática, Dou-torando em Escatologia, Professor de Teologia, Prefeito de Estudos do Seminário Diocesano Nossa Senho-ra do Amor Divino e Professor na Universidade Católica de Petrópo-lis) começou sua exposição sobre “O olhar teológico na composição das outras ciências”, tomando as palavras de João Paulo II, na Encí-clica Fides et Ratio, e alertou sobre o perigo de se fazer um discurso puramente científico das verdades teológicas, esvaziando-as de seu caráter transcendente e incognos-cível. Pelo contrário, a verdadeira Teologia trabalha a união entre a fé e a razão. A fé, dom de Deus, apesar

de não se basear na razão, decerto não pode existir sem ela. Ater-se a um “cientificismo teológico” é, jus-tamente, excluir a novidade sempre presente do Evangelho.

A partir do séc. XIX, a Igreja se depara com a necessidade de elabo-rar novas reflexões frente às teorias racionalistas e o advento de uma cul-tura não cristã. A Teologia pretende, a partir de então, mostrar as razões da fé, refletir para dar condições para crer. Responder à relevância de Cristo no mundo atual, confron-tando-se com as linhas filosóficas contemporâneas e fundamentalis-mos imperantes.

O papel da Teologia, no mundo de hoje, é renovar as suas metodo-logias, tendo em vista um serviço mais eficaz à evangelização, dialo-gando com as novas percepções da sociedade sem, em nenhum mo-mento, perder a centralidade de sua natureza: Cristo. A grande obri-gação da Teologia é manifestar a kénosis de Deus no mundo. “Quem

Celebrando os 115 anos do ITFNoite Cultural

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deseja fugir à incerteza da fé há de encontrar a incerteza da descrença” (Cardeal Ratzinger).

A Teologia revela ao homem que é Cristo quem revela ao homem a sua real natureza (GS 49). Inúmeras teorias tentaram apresentar a na-tureza humana dissociada da exis-tência de Deus. Todas se mostraram incapazes de apresentar uma teoria conclusiva. A Teologia, então, se manteve na luta contra o divórcio entre fé e razão, entre a ciência e a religião.

Frei Elói D. Piva, juntamente com o trabalho de Frei Osvaldo Ma-ffei, estudante de Teologia no ITF, apresentou a história do Instituto Teológico através de um vídeo, es-tilo reportagem, com fotos que re-memoraram a contribuição desta Instituição, religiosos, presbíteros e leigos das comunidades nos sabe-res teológicos. A partir da caminha-da acadêmica, outras instituições começaram a trilhar seu próprio caminho: a Escola Bom Jesus - Ca-narinhos, o Coral dos Canarinhos de Petrópolis, a Editora Vozes, as diver-sas revistas teológicas mantidas por professores do ITF...

Frei Volney Berkenbrock foi o se-gundo palestrante da noite e tratou de “Teologia em Diálogo: iniciativas e realizações”. A Teologia, enquanto

área do conhecimento, foi se mo-dificando no decorrer da história, a partir de diálogos que influen-ciaram sua forma de ser: o diálogo intracristão, entre formas distintas de conceber as verdades teológicas dentro da instituição cristã católica ou, também, de outras confissões cristãs (Luterana, Metodistas etc.). O próprio ITF manteve esta forma de diálogo com outras religiões presentes na cidade de Petrópolis. E, ainda, e não menos importante, ocorre o diálogo da Teologia com outras formas de religião não cris-tãs: o diálogo inter-religioso. Não se trata de afirmar dogmas de uma religião ou outra, mas de, no diálo-go, encontrar formas de relaciona-mento com o Transcendente, com o Divino, com Deus, presentes nas diversas religiões.

O ITF também teve importan-te destaque no diálogo da Teologia com outras formas de conhecimen-to, como a sociologia e a economia. A instituição é conhecida como um dos “berços” da conhecida Teologia da Libertação, com teólogos aqui formados e a partir daqui enviados para se juntar aos desenvolvedores da Teologia Latino-Americana e Ca-ribenha.

Como sinais de diálogo inter--religioso, em diversas ocasiões, a Instituição contou com participação de membros de outras confissões religiosas: como o atual Curso de Extensão “A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja”, que teve as perspectivas das tradições judaica e muçulmana, além da luterana; ou o Encontro celebrativo dos 25 anos do Espírito de Assis, que ocorreu no

dia 25, no qual participou o monge budista Lama Padma. Este encontro do qual se faz memória, ocorrido em Assis, reunindo diversas repre-sentações religiosas junto ao Papa João Paulo II, é uma expressão dos esforços das religiões por um diálo-go e busca de uma mundo de paz, busca intimamente integrada ao ca-risma franciscano.

Frei César Külkamp, definidor e Secretário para Formação e Estudos da Província Franciscana da Imacu-lada Conceição do Brasil, dirigiu, em nome de nosso Ministro Provincial, Frei Fidêncio Vamboemmel, algu-mas palavras fraternas pela data celebrada. Ressaltou o importante papel do Instituto e do estudo da Teologia na formação de cada fra-de, e o relevante trabalho pastoral e evangelizador dos frades em Petró-polis. Por fim, foi convidado a dar a todos a benção de São Francisco.

Após este forte momento cele-brativo e de rememoração do papel da Faculdade de Teologia em Petró-polis e na Igreja, todos os presentes foram convidados a tomar parte em uma confraternização, com um co-quetel servido no mesmo local, coro-ando a noite em clima fraterno.

Leia a histórias dos 115 anos do ITF à página 28.

Veja o vídeo sobre a presença franciscana em Petrópolis e ouças as músicas que os ca-narinhos fantaram nesta noite cultural, em www.itf.org.br

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De 26 a 28 de outubro o IFITEPS (Instituto de Fi-losofia e Teologia Paulo VI) sediou a XII Semana Teológica, já de tradição entre os cursos de Teo-logia do ITF (Instituto Teológico Franciscano) de Petrópolis (RJ), da PUC - Rio (Pontifícia Universi-dade Católica) do Rio de Janeiro (RJ) e do IFITEPS de Nova Iguaçu (RJ). Neste ano, se propôs uma re-flexão acerca do Concílio Vaticano II, por ocasião

dos 50 anos da convocação do mesmo (anúncio em 25 de janei-ro de 1959 e abertura em 11 de outubro de 1962), tocando, em especial, as constituições: Sacro-sanctum Concilium, Lumen Gen-tium e Dei Verbum.

Alunos concluem a graduação em Teologia, fazendo o exame da PUA

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“ “A tradição de ensino fez com que, em 2006, a Faculdade de Teologia do ITF fosse reconhecida pelo MEC (Ministé-rio da Educação e Cultura) e se tornas-se uma instituição afiliada à Pontifícia Universidade Antonianum, de Roma, na Itália. Deste modo, os alunos, ao concluir a graduação em Teologia no ITF, além de receberem o diploma re-conhecido pelo MEC, também lhes é oferecida à possibilidade do reconhe-cimento pela Comunidade Européia por meio de um exame. Neste ano, 18 alunos estão concluindo o curso de Teologia no ITF, dos quais 15 fizeram o Exame da PUA (Pontificia Università Antonianum), exame este para o qual os alunos elegem 9 temas estudados no decorrer de todo o curso envolven-

do todo o saber teológico, dividido entre Teologia Sistemática, Bíblica, Moral, Litúrgica e outras dis-ciplinas, e os professores elegem outros 9 temas. Assim, destes 18 assuntos eleitos nesta seleção prévia, os alunos dissertam por cerca de uma hora sobre os assuntos eleitos por sorteio, na presença de três professores, sendo um deles o delegado oficial da PUA.

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Após oito meses de intenso es-tudo, pesquisa e convivência, a ter-ceira turma concluiu com êxito o Master em Evangelização. O encer-ramento foi no dia 25 de outubro, no Instituto Teológico Franciscano.

A primeira parte da manhã foi reservada para uma avaliação ge-ral, quando cada aluno teve a opor-tunidade de expressar o que este curso lhe proporcionou e também apresentar sugestões. Em seguida, todos participaram da Celebração Eucarística e do almoço de confra-ternização.

Na avaliação, vários aspectos se destacaram. O Master abriu novas perspectivas para a evangelização, ajudou a rever a prática pastoral num horizonte mais amplo, provo-cou a descobrir caminhos no inte-rior dos novos cenários, alimentou sonhos e motivou a continuar o processo de reflexão aqui iniciado. Permitiu também conhecer outras realidades, fazer ricas experiências e tecer novas relações. Os profes-sores contribuíram, cada um a seu modo, para que os objetivos do curso fossem atingidos. Mas foi igualmente importante o empe-nho dos alunos, manifestado, de maneira particular, na elaboração das monografias, que abordaram temáticas significativas nos atuais cenários: a interculturalidade, a comunicação midiática, a evange-

lização compartilhada, a perspec-tiva franciscana para o ministério presbiteral, a iluminação que brota do relato lucano dos Discípulos de Emaús, para todo o processo de evangelização. O grupo ofereceu à coordenação valiosas sugestões para aperfeiçoar aspectos dos con-teúdos e da metodologia do curso.

A Celebração Eucarística contou com a presença também de alguns professores e foi presidida pelo Pe. Medoro de Oliveira. Na partilha da Palavra de Deus, cada participante destacou um texto bíblico marcan-te em sua vida missionária. No mo-mento de louvor foram lembradas muitas pessoas e grupos do círculo de convivência de cada participan-te, ou com quem a missão evan-

gelizadora é compartilhada. Uma prece-poema de envio, recitada pelos professores, recordou que a missão evangelizadora requer não apenas a palavra precisa, o olhar crítico, os ouvidos atentos e os pés firmes, mas também um coração sensível e misericordioso, aberto ao diálogo e à solidariedade, cheio de sonhos e de esperança.

A celebração foi encerrada com agradecimentos à coordenação do curso, aos professores, à fraterni-dade local e à comunidade acadê-mica. Seguiu-se um gostoso chur-rasco, estreitando a comunhão fraterna tão importante na missão evangelizadora.

A coordenação do curso tam-bém agradece à direção do ITF, aos professores e a todas as pessoas que contribuíram para que o Master 2011 se realizasse e chegasse a bom termo. Alegra-se com os alunos que tiveram a graça de participar des-sa turma e souberam compartilhar a riqueza da própria experiência e igualmente as buscas, descobertas e sonhos. Tem certeza que muitos frutos ainda serão colhidos, pois nem todas as sementes germinam logo. Algumas serão fecundadas no chão da vida, lá no meio do povo, onde cada um vai continuar concre-tizando sua missão.

Ir. Delir Brunelli, CF

Master em Evangelização encerra o terceiro curso

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Entrevista | Frei Valnei Brunetto, OFM

Frei Valnei Brunetto é natural da ci-dade de Xaxim, Oeste do Estado de Santa Catarina. Nascido no ano de 1977, Frei Valnei ingressou na Or-dem dos Frades Menores em 1997. Desde 2007 reside no Convento São Francisco, no “coração” da cidade de São Paulo, onde atua junto ao Serviço Franciscano de Solidarieda-de – SEFRAS. E agora nos contará o que apreendeu no Master em Evan-gelização, durante este ano.

Site ITF –Frei Valnei, visto que es-tamos ao fim do curso do Master em Evangelização, quais eram suas perspectivas no início do curso e como estão hoje?Frei Valnei: Desde que cursei a gra-duação em teologia, aqui em Petró-polis, conservo em meu “coração” um profundo sentimento de enamo-ramento, respeito e reverência por esse saber. Não pelo simples fato

de considerá-lo

mais um entre tantos outros, se-não, por reconhecê-lo como o Saber dos saberes. Não quero com isso, menosprezar os demais. De modo algum tenho tal pretensão. Quero apenas testificar que, para mim, a teologia significou encontrar a fon-te inesgotável do Amor e do Saber que, de alguma forma, também es-tão presentes nos demais saberes.Fazer o Master era, por-tanto, voltar à fonte e beber dessa água pura e vital, capaz de refazer nossas forças e reanimar a “Grande Alma” que habita em nós, para no-vamente se colocar no caminho da vida cotidia-na, com tudo o que isso implica.A conclusão de mais essa etapa representa, em primeiro lugar, a serie-dade com a qual ela foi

assumida. Além disso, a convicção de que o “cântaro” retorna aos afa-zeres rotineiros, embalado de um novo som, que não o tilintar vazio.

Site ITF – Qual sua avaliação acerca dos frutos colhidos deste curso?Frei Valnei: Não podemos nos es-quecer que toda colheita nos reser-va os frutos daquilo que nós mes-

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mos plantamos. Quanto maior terá sido nosso esforço no plantio, tanto maior será nossa alegria na colheita. Alegro-me, pois, ao término dessa colheita, pois percebo que os frutos são muitos, amplamente variados e com os mais diversos sabores. A começar pela experiência da convi-vência com o diferente – colegas de outros países, culturas, pensamen-tos, modo de ser e agir distinto do nosso – brasileiro; a discussão – par-tilha em sala de aula; a relação pró-xima e aberta com os professores; a disciplina e dedicação intensa aos estudos; os momentos de oração e celebração; isso tudo assumido com coragem, ânimo e disposição tornam-se um perfeito “trampolim” a impulsionar para um salto mais qualitativo e perfeito, frente aos de-safios da realidade atual, nos seus mais diversos âmbitos.

Site ITF – Que contribuição o Mas-ter oferece aos participantes na prática pastoral?Frei Valnei: Cada vez mais o cená-rio pastoral exige de nós sabedoria, abertura e discernimento para dia-logar, frente às mais diversas reali-dades cotidianas que nos interpe-lam. Atenção especial necessita ser reservada à pessoa humana – desti-natária por excelência da Boa Notí-cia anunciada, vivida e testemunha por Jesus Cristo.Fator peculiar de nossa época são as rápidas e profundas transformações que estão ocorrendo no âmago de nossas sociedades. Elas não apenas modificam as aparências externas, senão, igualmente, o modo de ser e viver do humano; seus costumes e tradições; pensamentos e formas de agir e reagir; bem como seus va-lores, crenças, enfim, tudo quanto

afeta a vida pessoal e social de cada ser.No âmbito pastoral, o panorama certamente não difere deste, de modo que hoje, muito mais do que em outros tempos, não basta o fa-zer pastoral. É preciso ter presente a qualidade do serviço “pastoril”. Com isso quero dizer que, se não houver uma atenção e zelo espe-cial que preze pela qualidade da ação pastoral e, consequentemen-te, evangelizadora, pouco ou quase nada terá valido esse esforço, a mé-dio e longo prazo.

Encontrar respostas para isso, nem sempre é fácil, e quase sempre, tor-na-se um desafio. Para isso criou-se o Master. Não apenas para “des-cortinar” o cenário que está posto, senão, igualmente, para indicar o caminho menos tortuoso, nem por isso menos exigente de ser trilha-do. A evangelização não pressupõe um caminho sem “espinhos”. Mas a sabedoria e a prudência para fazer deles, provocações necessárias que não deixam o espírito esmorecer.

Site ITF – Conte-nos sobre o seu trabalho de conclusão de curso?Frei Valnei: Minha pesquisa de con-clusão de curso tem como título: “Comunicação midiática e evangeli-

zação: diálogo ou monólogo?” Essa intuição emergiu no momento em que vislumbrei que inúmeros estu-diosos, das mais diversas áreas do conhecimento científico, mas de modo particular os do “campo” da comunicação social, testificam que hoje, mais do que nunca, a humani-dade está mergulhada na chamada “idade mídia”. Ou seja, as novas e modernas tecnologias da comuni-cação e da informação passam a ser reconhecidas, em nossos dias, como sendo, na expressão do Papa João Paulo II, os novos “areópagos do mundo moderno” a serem evan-gelizados e a servirem de megafone da evangelização. Esse pressuposto sugere que, independentemente do lugar de onde falamos, precisamos conhecê-las.Partindo deste princípio, sinto-me instigado a afirmar que, pensar um processo relevante e efetivo de evangelização, enquanto proposta evangélica de vida, já não se pode fazê-lo ou concretizá-lo, senão em diálogo profundo e permanente com o universo da comunicação mi-diática hodierna. Caso contrário, ele já “nascerá” fadado ao fracasso.O reconhecimento dessa nova rea-lidade midiática e de seu peremp-tório influxo na dinâmica da ação evangelizadora tornou-se, para mim, a mola-mestra fundamental que me impulsionou a confrontar ambos os processos, o da comu-nicação e o da evangelização, não como dinamismos distintos e estan-ques, senão, dialógicos e comple-mentares.Às “portas” de concluir esse tra-balho, estou convencido de que esses novos “areópagos” não ape-nas interferem decisivamente no processo da ação evangelizado-ra, como também, questionam a prática e a qualidade empregadas nessa “diaconia”.

“Desde que cursei a gra-duação em teologia, aqui em Petrópolis, con-servo em meu “coração” um profundo sentimen-to de enamoramento, respeito e reverência por esse saber”.

“Cada vez mais o cenário pastoral exige de nós sabedo-ria, abertura e discernimento para dialogar, frente às mais diversas realidades cotidianas que nos interpelam”.

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Entrevista | Frei Raúl Osvaldo Danielli, OFM

“Fazer esta experiência foi o presente mais belo que Deus e meus irmãos me deram”

Frei Raúl Osvaldo Danielli, frade franciscano pertence à Província de São Miguel da Argentina, tem meio século de vida, segundo ele, nasceu em uma “terra formosa, onde mana leite e mel”, Vitória, Entre Rios (Argentina). Antes de compor a turma de estudantes do Master 2011, era pároco da Paró-quia São Francisco Solano, da cida-de de Rosário, província de Santa Fé. Nesta entrevista ele conta um pouco sobre sua experiência e seus estudos ao concluir o Master em Evangelização.

Site ITF –Site ITF - Frei Raúl como foi a experiência de vir ao Brasil.Frei Raúl Osvaldo: Minha experi-ência de vir ao Brasil não foi fácil, no principio, já que não havia fra-des para cobrir minhas tarefas e devido à enfermidade de minha mãe que, graças a Deus, está muito bem. Passados mais de oito meses, posso dizer que vir fazer esta expe-riência foi o presente mais belo que Deus e meus irmãos me deram. Depois de dez anos de ter termina-do os estudos, no princípio, não foi fácil para mim, mas depois desfru-tei muito a estadia em Petrópolis. É um bom tempo de “moratorium”.

Site ITF –Ao concluir o Master, como você avalia este ano de cur-so?Frei Raúl Osvaldo: Se eu tivesse

que avaliar, avaliaria positivamen-te. Poder ter quem te oriente e in-centive a refletir sobre estes tem-pos e seus cenários não é pouca coisa. E, em vista do ano que vem, eu diria que se deveriam incorporar mais docentes de língua espanhola e também rever algumas matérias, talvez algumas se puder mudar por outras disciplinas que tenham mais a ver com a proposta do Master.

Site ITF – Qual a contribuição que o Master terá em sua vida pastoral a partir de agora?Frei Raúl Osvaldo: A contribuição para a minha vida é muito gran-de, contribuiu muito não somente a partir do acadêmico, mas toda a experiência foi muito enri-quecedora e me proporcio-nou muitos elementos para desenvolver minha vida pas-toral.

Site ITF – Conte-nos um pou-co sobre seu trabalho de con-clusão de curso.Frei Raúl Osvaldo: O meu

trabalho tem como tema: “Missão partilhada: a contribuição da vida religiosa para um novo modelo de ser Igreja”. Desenvolve-se a partir de algumas experiências de tra-balho onde o religioso/a trabalha junto como o leigo/a nesta pers-pectiva de evangelização, tanto na pastoral educacional como na pa-roquial. O protagonismo do leigo é muito maior, e a tarefa do pastor é a de descer alguns escalões para estar entre e com o povo de Deus. Analiso se a “conversão eclesial” de que nos fala o Ministro Geral Rodríguez Carballo não é o cami-nho para aprofundar e buscar ins-tâncias novas em nossas realidades pastorais.

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Entrevista | Frei Leonel Moisés da Silva, OFM

Frei Leonel Moisés da Siva é frade da Província São Francisco de Assis, do Rio Grande do Sul. Natural de Cachoeira do Sul, RS, tem 43 anos. Antes de vir à Petrópolis para cur-sar o Master em Evangelização, era pároco da Paróquia São José em Hulha Negra e vigário paroquial na Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Candiota - Diocese de Bagé – RS. Nesta entrevista ele conta um pouco sobre sua experiência e o sobre o Master, curso que conclui no mês de novembro.

Site ITF – Como se deu a sua indi-cação para o estudo do Master em Evangelização?Frei Leonel: A Província São Fran-cisco de Assis do RS tem a prática

de incentivar e enviar frades para estudos e aprofundamentos, no Brasil e em outros países. A preo-cupação é ter dois ou mais frades por ano se especializando numa das áreas de interesse pessoal que responde aos apelos da ação Evan-gelizadora. A minha indicação se deu de maneira muito simples: em diálogo com o governo provincial e em sintonia com toda Província, me coloquei à disposição de fazer o Master em Evangelização. Em primeiro lugar, pela necessidade de fazer uma atualização teoló-gica, para melhor responder aos atuais desafios apresentados na ação Evangelização. De outro lado, sentia necessidade de aprofundar e conhecer melhor os novos cená-

rios contemporâneos e perspecti-vas que a sociedade apresenta.

Site ITF – Estamos no final do cur-so. Em sua opinião, qual a contri-buição do Master para a atividade Evangelizadora?Frei Leonel: “Cenários Contempo-râneos: interpelações e perspecti-vas” remete para uma prática nova e diferencial, apontando novas maneiras ou alternativas de Evan-gelizar no mundo atual. Mais do que nunca, somos desafiados a en-frentar uma nova conjuntura, tam-bém somos chamados a dar uma resposta, ousar iniciativas novas. Diante disso, perguntamos: Como responder nos dias atuais aos no-vos desafios da

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evangelização? Muitas vezes fica-mos sem resposta, perdidos sem saber o que fazer. O anúncio do Evangelho do Reino pregado por Jesus tem de ser proclamado in-cessantemente e em todos os luga-res pela Igreja. Mas para que esse anúncio possa ser ouvido, obede-cido, acolhido e experimentado como libertador, suas formas têm que mudar, levando em conta os vários contextos culturais dos que recebem a Notícia.A grande contribuição do curso Master em Evangelização para a ação evangelizadora é mostrar e questionar que vivemos num tem-po de transformações profundas que afetam não apenas este ou aquele aspecto da realidade, mas a realidade como um todo. Enfatiza-mos que a seriedade da hora atual pede coragem de encarar a realida-de, de discernir o que convém à luz da fé cristã.

Site ITF – Qual é a sua avaliação do curso como tal? Correspondeu às expectativas?Frei Leonel: O Master em Evan-gelização foi muito bom. Foi uma experiência de suma importância na minha caminhada evangeliza-dora de frade menor. O fato de ter a oportunidade de estudar e

fazer uma reciclagem teológica é de grade valia. De outro lado, apa-rece a riqueza do convívio e diálo-go fraterno com confrades vindos de outros países, como Argentina, México, República Dominicana, fa-vorecendo assim, um intercâmbio cultural. Destaco também como algo muito positivo, a contribui-ção de professores vindo de outros Estados e Países, proporcionando uma grande riqueza teológica/pas-toral para responder aos atuais de-safios que são apresentados.

Site ITF – Conte-nos um pouco so-bre seu trabalho de conclusão do Curso.Frei Leonel: Escolhi como tema do meu trabalho de conclusão “A ma-nifestação do Ressuscitado: a expe-riência de Emaús e a nossa”. O es-plendoroso texto de Lucas 24,13-35 está totalmente relacionado com a caminhada de nossa fé. Trata-se de reconhecer a presença do Ressuscitado no meio do mun-do e do coração da Igreja. O tex-to bíblico apresenta o encontro dos discípulos de Emaús com o Ressuscitado, no caminho, na Palavra e no partir do Pão. Depois da experiência, eles fi-cam totalmente transformados, voltam correndo para a comu-

nidade, a fim de partilhar o que vi-veram no caminho.Trata-se de uma experiência que, igualmente, pode transformar o sentido de nossa vida atual, se de fato nos encontrásse-mos com o Ressuscitado em nossa caminhada. O convite é se deixar interpelar por Ele, dialogando e sendo alimentados com a Palavra e pela Eucaristia. Somos desafia-dos a viver este encontro em uma sociedade que está imersa numa mudança de época, que apresenta novos paradigmas, que implicam uma séria revisão de nossa missão e a coragem de iniciar caminhos inéditos de presença e de testemu-nho. Percebemos a necessidade de retornar ao centro de nossa missão e de tomar decisões de profundas mudanças que nos ajudem a aban-donar algumas situações sociais e eclesiais para assumir com maior decisão a tarefa evangelizadora.

“Percebemos a necessidade de re-

tornar ao centro de nossa missão

e de tomar decisões de profundas

mudanças que nos ajudem a aban-

donar algumas situações sociais e

eclesiais para assumir com maior

decisão a tarefa evangelizadora.”

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No segundo dia do Congresso Interna-cional: “Evangelização em Diálogo”, um dos palestrantes da manhã foi o Profes-sor João Batista Libanio, que, no inter-valo dos trabalhos, nos concedeu esta entrevista. Dr. João Batista Libanio é pa-dre jesuíta, escritor e teólogo. Ensina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte, e é vigário da paróquia Nossa Senhora de Lourdes, em Vespasiano, na Grande Belo Hori-zonte. Participa desse Congresso com o tema: Evangelização no mundo urbano.

Site ITF – Qual a relevância de se colo-car a Evangelização em Diálogo?Libânio: Evangelização é no sentido de levar a Boa Notícia de Deus que ama e por amor realizou este amor por nós. É importante um momento de escuta, de diálogo. Escutar é o primeiro passo. Temos que saber as expectativas e ne-cessidades das pessoas para nos dirigir a elas. Devemos fazer como São Paulo, que, no areópago, onde se dedicava cul-to a um deus desconhecido, usou essa deixa para evangelizar, ou seja, essa es-perança que as pessoas conhecem, mas não sabem nomear. Devemos conhecer não apenas confirmando, mas de forma crítica, assim como no Evangelho de Marcos 1,15, que diz: é necessário con-versão, mudança.

Site ITF – O sr. ressaltou o valor da fé

na vida de Jesus, que passou pela rejei-ção, pela religião e religiosidade. Para o mundo, qual fenômeno pode ser equiparado?Libanio: Essa fé na vida de Jesus – em-bora até então fosse difícil compreen-dê-la por causa da compreensão que se tinha da união hipostática, como se Jesus estivesse vendo sempre Deus face a face e por isso não se teria fé –, sa-bemos pelos escritos pré-Paulinos, que Jesus ao encarnar-se se despiu e renun-ciou a este modo divino de proceder entre nós. Jesus teve que, em sua vida terrestre, exercitar a sua fé. A total con-fiança em Deus por parte de Jesus se dá na agonia do Monte das Oliveiras e ple-namente no momento da cruz, quando Jesus diz: “Pai em tuas mãos entrego meu espírito”. Isso é fé! A fé de Jesus está para nós dizendo que, em momen-tos da nossa vida, a religião não nos diz nada, podendo até sermos rejeitados pela mesma. Um exemplo disso são os casais em segunda união que se sentem rejeitados pela religião, por inúmeras razões que não cabe aqui comentar. Por outro lado, observamos atualmente um fenômeno que Rahner chama de cris-tãos anônimos. São pessoas que vivem os preceitos de Cristo e do Evangelho, mas não nomeiam ou definem. São muitas outras realidades que podem ser equiparadas, aqui nomeio essas.

Site ITF – Qual o papel da devoção re-ligiosa na ação evangelizadora? Contri-buições e desafios.Libanio: A devoção religiosa é uma aju-da. Coloca no clima do mistério, do sa-grado e do divino, mas não basta, pois a religião vai explicitar que esse divino não é uma energia, uma força ou uma atmosfera, mas é a Trindade. Isso de-vemos ter claro, que evangelizamos a presença trinitária de Deus. Somente dizer Deus, ainda não é cristão. Rahner ironizou ao terminar o Concílio Vaticano II, quando as pessoas achavam que ha-via acabado a trindade e só existia uma pessoa em Deus, dizendo: “interessan-te, e não haveria nenhuma mudança em ninguém”, ou seja, a Trindade não era importante. Se Deus não fosse trino nós não seríamos assim como somos. Sendo criados por um Deus Trino so-mos criados para comunhão. Deus tri-no agindo no amor do Pai, de alguém que assumiu a história e a presença do Espírito Santo. Devemos, portanto, nas ações evangelizadoras, ressaltar sem-pre a presença da Trindade para o povo de Deus, e para nós mesmos.

Site ITF – Uma palavra aos evangeliza-dores em formação nos institutos, fa-culdades e universidades brasileiras.Libanio: Tenham consciência de que a Trindade está presente em todas as nossas ações. No anúncio, na evange-lização, devemos comunicar um Deus que é Pai, que nos cria do amor, para o amor, com o amor de Jesus que viveu concretamente neste mundo, sofrendo, amando intensamente esta vida que na Páscoa nos promete que o Espírito vai interiorizar e explicitar em nós sua vida e o amor do Pai. Se nós tivermos esta palavra claramente trinitária creio que estaremos evangelizando.

Entrevista | Pe. João Batista LibanioLeia mais sobre o Congresso Internacional “Evangelização em Diálogo” emhttp://www.franciscanos.org.br/itf/noticias/especiais/congresso2011/10.php

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Entre as questões postas pela “crise ecológica” e os de-safios oriundos do processo de empobrecimento provocado por situações de injustiça e ex-clusão estabelece-se uma rela-ção de mútua implicação e de potenciamento recíproco. Daí a urgência de se articular “os

gemidos da Terra” com “o clamor do pobre”1 . E ao fazê-lo, potencializá-los ao máximo, ressignificando-os no ho-rizonte da utopia e escatologia cristãs. Um discurso acerca da tutela da vida no Planeta que não incorpore as questões da pobreza e da fome, da injustiça social e das contradições do capitalismo neo--liberal peca por ingenuidade e conivên-cia. De igual modo, um discurso acerca da Criação que não considere, de ma-neira esperançosa, a pergunta pela sua destinação última e pelo seu inerente sentido, acabará sucumbindo a um pes-simismo trágico2.

O Paradigma hegemônico contempo-râneo: Tecnociência e MercadoO que tem caracterizado o paradig-

ma contemporâneo hegemônico é, por um lado, a emergência da Tecnociência como horizonte de fundo da experiên-cia atual e, por outro, a imposição do Mercado como único cenário de nos-sa trama civilizacional atual. A situação se torna ainda mais complexa quando acontecem fenômenos de hibridação entre ambos: Tecnociência e Mercado.

De mero instrumento de dominação à disposição do ser humano, a técnica se tornou horizonte último no interior do qual se desvelam todos os âmbitos da experiência, chegando a condicio-nar inclusive a maneira de o próprio ser

humano se auto-

-conceber. Fala-se de um proces-so simultâneo da “emergência da tecnosfera” e do “deslocamento da subjetividade” Emprega-se o termo “tecnosfera” para se referir a uma espécie de ambiência no interior da qual se produzem no-vas cosmovisões. Supera-se, por exemplo, aquela visão mecanicis-ta e geométrica da física clássica e sua função domesticadora. Agora, no regime da tecnociência, a na-tureza é decomposta e, por assim dizer, recriada segundo os moldes da ciência informática e da biolo-gia molecular. Em outras palavras, a tec-nologia deixou de ser aquela espécie de escrava que ajudava o ser humano a al-cançar seus próprios fins, para se tornar agora produtora de necessidades das quais o ser humano se torna cada vez mais dependente.

Fala-se em “deslocamento da subje-tividade” pelo fato de o ser humano não ser mais sujeito, mas algo “disposto” no horizonte desvelado pela técnica, que é, pois, o que decide o modo de ele se perceber, sentir, pensar e projetar. A téc-nica torna-se o horizonte dentro do qual o ser humano e a natureza são dispostos pelas demandas que as possibilidades técnicas promovem. O ser humano não é mais capaz de perceber a si mesmo fora do mundo disposto pela técnica. Como seu ambiente, a técnica é aquilo em relação ao qual ele chega ao conhe-cimento de si. Por isso, dizemos que na disposição do mundo, e não na instru-mentalidade, deve ser identificada a essência da técnica. E isso significa que a técnica não é mais ciência aplicada, mas horizonte dentro do qual também a ciência pura encontra a condição e a destinação do seu indagar. Isso posto, encontramo-nos diante de um questio-namento dificilmente contornável: não mais o que nós poderemos fazer com a técnica, mas o que a técnica pode fazer de nós3.

Somos vítimas da “absolutização do mercado”, vale dizer, uma autêntica mercantilização da vida. Isso significa que o mercado vai se impondo como o cenário de nossa trama civilizacional

atual. Nesse contexto, nossos fluxos vitais e também os valores e símbolos culturais e religiosos se tornam mer-cadoria de consumo e de descarte. In-gressamos, assim, em uma nova fase do capitalismo ocidental. Não mais pro-dutivo, mas, dessa vez, consumista. Por isso, a busca frenética por mercantilizar tudo a fim de inflacionar maximamente o universo das mercadorias em vistas do consumo cada vez maior 4. Se antes, na era industrial, exigiam-se na sugestiva expressão de Michel Foucault “corpos dóceis, disponíveis e úteis”, hoje, inte-ressam “almas capacitadas”, subjeti-vidades munidas das qualidades mais cotadas no mercado de trabalho 5. Em sua nova fase, interessa ao capitalismo a produção de subjetividades consumi-doras. E para incrementar o consumo e o apetite dos sujeitos consumidores torna-se imprescindível investir no feti-chismo das mercadorias 6.

Tudo isso só é possível sob o pressu-posto de que se encontra em processo uma crescente supremacia do mercado na administração dos fluxos vitais. No mundo contemporâneo, a vida se defi-ne como um produto, uma mercadoria; numa palavra, uma invenção humana. E isso graças à inaudita capacidade do capitalismo do século XXI de operar um autêntico seqüestro simbólico das for-ças vitais. Ele não apenas captura tais forças como também consegue reciclar as resistências a esse seqüestro median-te a produção de slogans publicitários e mercadorias a serem consumidas 7.

O objetivo, no fundo, é patentear o material genético dos seres vivos, recor-

Os gemidos da Criação e o clamor do pobre:Teologia da Criação e opção pelos pobres

Artig

os

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rendo-se ao expediente da propriedade intelectual, para depois transformá-los em mercadorias a serem disponibili-zadas no mercado. Essa fusão recente entre Tecnociência e Mercado tem pro-vocado uma corrida feroz das empresas para patentear os ingredientes do geno-ma humano e todo o patrimônio gené-tico do planeta. Esse processo tem sido publicamente desmascarado e denun-ciado pela epistemóloga indiana Vanda-na Shiva como uma verdadeira “pirata-ria”. Ela denuncia o que chama de uma “nova onda colonizadora” capitaneada por uma ciência e técnicas reducionistas aliadas ao Mercado. Trata-se, na opinião dela, de uma verdadeira “invasão bioco-lonizadora”, expressão da promiscuida-de entre os laboratórios da Tecnociência e o Mercado 8.

Conceber, portanto, a complexida-de de nossa civilização na perspectiva dos pobres significa desmascarar um tríplice engodo: 1) “crescimento ou de-senvolvimento sustentável”; 2) a tecno-ciência como solução “messiânica” para todos os nossos problemas; 3) a função democratizadora da Mídia.

Encontramo-nos, portanto, diante de um impasse. A ilusão de um cresci-mento desmedido e de um progresso ilimitado nos está levando a uma degra-dação sem precedentes, perceptível, so-bretudo, na deterioração progressiva da qualidade de vida nossa, dos demais se-res vivos e do próprio Planeta. O mito da perfeita utilização dos recursos da Terra, encarnado pelo ser humano de maneira voluptuosa e obstinada, tem produzido a exaustão dos sistemas vitais e a de-sintegração do equilíbrio ambiental. A agravar ainda mais a situação de degra-do e exaustão à qual tem sido submeti-da a vida no Planeta, são as incidências do desastre ecológico em termos de exclusão e marginalização dos pobres

da Terra. Encontramo-nos, portanto, imersos em uma anomalia que assume as feições de um conflito sem preceden-tes entre a reprodução da humanidade e os destinos do Planeta. Tornamo-nos, para todos os efeitos, reféns de um dile-ma: de um lado, nossas sociedades têm cada vez mais necessidade da Terra e de seus recursos; de outro, o Planeta su-porta cada vez menos nosso crescimen-to. A Terra e os seres que nela habitam estão à mercê de uma economia que se impõe como a fatalidade do “nosso tempo”. Dito isso, a conclusão parece clara: “os limites do capital são os limi-tes da Terra” 9.

Outro embuste difundido é o de que solução para os desafios postos pela atual crise ecológica virá das novas tecnologias. Nesse caso, a técnica seria vista como uma resposta e não, como de fato ela tem se revelado, um proble-ma. É preciso romper de vez esse círculo vicioso e perverso que insiste em nu-trir expectativas messiânicas para com as novas tecnologias. E dizer, em alto e bom som, que a solução para a Técnica não é algo de técnico. O que move e sus-tenta a Técnica é, no fundo, o interesse humano de controle. Somos, hoje, víti-mas de uma crescente supremacia da Tecnociência, do Mercado e da Mídia na administração dos fluxos vitais.

O mito de habitarmos um mundo que tem se tornado cada vez mais uma aldeia global onde todos podem ter acesso a tudo também nos é vendido de maneira escandalosa. O mito de que o bem-estar e a acessibilidade é um direi-to e, portanto, uma possibilidade aber-ta a todos. O mito de que as barreiras e as fronteiras se desmoronaram e de que habitamos, hoje, um mundo livre e democrático também parece se alastrar entre nós. Como seguir difundindo mitos como, por exemplo, aldeia global, socie-dade sem fronteiras, encurtamento das distâncias, bem-estar social geral sem nos darmos minimamente conta de que novas fronteiras se redesenham, novas e intransponíveis distâncias são forjadas, se vivemos numa situação de apartheid ambiental, cultural, social e mental?

A Mídia deixou de ser apenas um meio; ela se tornou, para todos os efei-tos, um mundo, uma ambiência. Ela criou um mundo fora do qual não se

pode mais viver nem sobreviver. Não se pode mais prescindir desse mundo midiático uma vez que se tornou impos-sível fazer qualquer experiência diferen-te da proposta pela Mídia. A descrição midiática do mundo constrói um mundo de fatos pela informação e não o contrá-rio. A pesquisa de opinião pública nada mais é do que a sondagem da eficiência persuasiva da Mídia, que primeiro cria a opinião pública e depois investiga sua própria criação.

Por uma Teologia trinitária da CriaçãoNesse contexto, as próprias teolo-

gias engoliram a isca que lhes foi lan-çada pela cultura moderna. Razão pela qual, o Criador passou a ser concebido como o princípio, a origem de todas as coisas. Só que, à diferença dos relatos bíblicos, esse princípio passou a ser con-cebido não mais na sua íntima relação com o presente e com o futuro. Agora, nesta nova estação cultural, a origem passou a ser entendida como funda-mento. Fundamento esse que fornecia as melhores garantias para que o pro-jeto do ser humano moderno, concebi-do como sujeito pensante, pudesse ser levado a termo de forma voluptuosa e desimpedida. Foi nesse contexto que emergiu a imagem do Criador como a de um “relojoeiro”.

Outras imagens do Criador muito di-fundidas no horizonte da cultura moderna se colocam nessa mesma linha: a imagem do Criador como “o grande Arquiteto”; outra mais recente, difundida pelos adep-tos do “Intelligent

“Conceber a Criação à luz do Mistério da Trindade significa, em primeiro lugar, resgatar o sentido da rela-ção singular entre Criador e criaturas”.

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Design”, que o apresentam como o “in-telligent Designer” ou ainda a metáfora da “mente de Deus”, empregada por Ste-phen Hawkin. A primeira conseqüência dessas imagens é a de instrumentalizar o Criador, concebendo-o como o funda-mento e a certeza do projeto ideado e realizado pelo sujeito moderno.

Fomos, na verdade, demasiadamen-te habituados a conceber Deus como o fundamento estático de todas as coisas, circunscrevendo-o quase exclusivamen-te ao passado. Consequentemente, o passado passou a ser considerado como determinante do presente e do futuro. Nós modernos, particularmente, cons-truímos grandes sistemas nos quais não apenas o presente resultava condicio-nado inelutavelmente pelo passado, mas também o futuro, que passou a ser concebido como algo programado e, portanto, absolutamente previsto. Des-te modo, o futuro acabou destituído de toda e qualquer ulterioridade. Neste ho-rizonte de compreensão, Deus se revela como a fonte de onde promanam todas as possibilidades e, ao mesmo tempo, como a origem de todo o tempo a partir da dinamicidade própria do futuro. Ao invés, portanto, de insistirmos em inter-pretar o Deus bíblico como a determina-ção de todo o real, talvez fosse o caso de concebê-lo como a “possibilização máxi-ma do possível”. Um Deus paciente que respeita e acompanha o ritmo natural do inteiro cosmos e de cada criatura, o ritmo da humanidade e de cada pessoa humana. Sua paciência não é sintoma de indiferença ou de passividade. Ele é o primeiro a se engajar no processo lento, porém eficaz de transformação e, por-tanto, de plenificação de cada criatura e da inteira criação. E essa sua atitude é expressão de sua peculiar condescen-dência proveniente de sua solidarieda-de e gratuidade singulares.

Outra dificuldade provocada por es-sas imagens é a de relegar o Criador às regiões periféricas da realidade, conde-nando-o a uma situação de indiferença e de não inserção em nosso mundo. São

imagens que, no

fundo, traem uma concepção do Cria-dor como um intervencionista. Por se encontrar fora da realidade, em deter-minados momentos críticos, ele inter-virá como alguém que se intromete e intervém na trama da vida da qual ele não participa ordinariamente. Um deus assim se coloca em uma situação de opo-sição diametral ao Deus encarnado que nos foi revelado por Jesus Cristo e que constitui, portanto, a raiz de nossa fé.

Significativa nesse contexto a afir-mação de Bonhôffer: “Deus é impotente e fraco no mundo, e exatamente assim, Ele está conosco e nos ajuda”. Como também a do filósofo Gianni Vattimo: “Só um Deus fraco pode nos salvar ago-ra”. Assim sendo, uma autêntica teologia da criação só poderá ser tecida a partir da experiência de kénosis que constitui a experiência-fonte, originante e fomen-tadora, das interrelações intratrinitárias e das distintas relações que a Santíssima Trindade instaura para conosco ao lon-go da história da salvação e por entre os meandros sutis de nossa trama cósmica. A criação se nos afigura, em última ins-tância, como uma autêntica experiência de kénosis (esvaziamento, despojamen-to) que se revela mediante um tríplice movimento: retração do Pai que, ao nos chamar à existência, cria-nos “do nada”; despojamento do Filho que nos salva, resgatando-nos, mediante seu gesto de extrema solidariedade, “do nada do pe-cado”; e, por último, escondimento do Espírito Santo que continua realizando com lento vagar sua obra de santificação mediante a plenificação das pessoas, da história e do cosmos inteiro a partir “do nada do mundo” 10.

Outro grande limite dessas ima-gens modernas do Criador e da criação é concebê-los como realidades que se dão no assim chamado reino da neces-sidade. Elas resultam necessárias com o intento de fundamentar e justiçar o inteiro projeto do ser humano moder-no. Tudo parece circunscrito a um script predeterminado ou preestabelecido. Por alguma razão, as coisas tinham que existir e tinham que existir do jeito que são. Nesse sentido, elas comprometem a concepção bíblica da Criação como um evento inusitado, como um evento que se dá como expressão da pura gra-tuidade de um Criador generoso.

Conceber a Criação à luz do Mistério da Trindade significa, em primeiro lugar, resgatar o sentido da relação singular entre Criador e criaturas. O termo Cria-ção remete à experiência do dom e da gratuidade divinas. Dizer criação pressu-põe a consciência da relação primordial entre Criador e criatura. Neste sentido, criação difere substancialmente de ter-mos como, por exemplo, natureza ou cosmos 11. Ao nos reconhecermos cria-turas, exprimimos a consciência de que a vida se nos afigura como oferecida gra-tuitamente. Poderíamos existir de outro modo ou sequer existir. E, no entanto, existimos. Portanto, o nosso existir re-vela um querer, uma intencionalidade, primários. Fomos queridos por alguém, por um Criador, e, portanto, passamos a existir. Não são, a rigor, necessidades in-trínsecas que justificam nossa existência como tal. O que de fato testemunhamos é que somos queridos por alguém que deseja que existamos. E este alguém nos quer assim como somos. Também aquelas circunstâncias que caracterizam nossa existência são queridas como tais pelo Criador e correspondem, em últi-ma instância, a uma intencionalidade e querer gratuitos dele.

Não existem, portanto, explicações que dêem conta do porquê de nossa existência. E aqui, precisamente, nosso Criador se revela como Absoluto, ma-nifestando assim sua radical diferença face ao caráter intrinsecamente contin-gente de suas criaturas. O Criador não está vinculado a nada. Não existe nada fora de Deus que o possa condicionar. Ele é o Ab-solutus por excelência. E seu querer e agir são absolutamente gratui-tos. O fio condutor, portanto, que atra-vessa a inteira realidade criada é consti-tuído pela experiência da gratuidade em todas as suas expressões. Não existem, a rigor, leis ou relações necessárias que caracterizam a relação entre o Criador e

“Só um Deus fraco pode nos salvar agora”.

Gianni Vattimo

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suas criaturas. E, por esta razão, estão descartadas todas as tentativas de en-contrar explicações lógicas e necessá-rias que dêem razões à existência nossa e das demais criaturas.

Permeia a complexidade de tudo quando existe a gratuidade amorosa do Criador que se revela mediante um que-rer gracioso, caracterizado pelo cuidado e pelo enternecimento para com cada criatura e para com a inteira realidade criada. Este querer divino instaura de maneira consistente as legítimas buscas de sentido. A preocupação maior e mais fundamental do ser humano passa a ser então auscultar as interpelações do Criador inscritas em sua mais recôndita interioridade, no seio das relações inter-pessoais, nos meandros sutis da história e nas fibras mais íntimas da inteira rea-lidade criada.

Porque expressão do querer mais íntimo de um Pai que deseja criaturas para poder instaurar com elas relações de comunhão, a criação se revela como o palco da trama amorosa e, por isso mesmo, dramática do amor esponsal entre Deus e suas criaturas. Somos, enquanto criaturas, radicalmente dife-rentes do criador. Somos diferentes não para selar nossa irremissível separação; mas, ao contrário, para nos decidirmos livre e conscientemente pela relação, fo-mentando assim o encontro e tecendo teias de comunhão.A transparência divina na trama da Criação

Ao professar a fé no Deus trino e uno, as comunidades cristãs propiciam uma peculiar relação entre Transcen-dente e imanente. A profissão de fé

no Deus Pai criador salienta o caráter absolutamente transcendente do Deus trino e uno. Ele é o criador absoluto, que cria sem pressupostos e sem condições, e, portanto, o Senhor de tudo quando existe, selando assim sua irredutível transcendência face ao caráter contin-gencial de suas criaturas. A profissão de fé no Filho unigênito de Deus que se en-carnou, sublinha a singela solidariedade de Deus para com suas criaturas. É o evento da mais radical irrupção do Todo no fragmento, da emergência do trans-cendente a partir do âmago mesmo da imanência. A profissão de fé no Espírito Santo, como evento da interiorização do próprio Deus no coração mesmo da ma-téria, da história, da corporalidade de suas criaturas, acena para a revelação do Deus trino e uno como a interioridade mais ín-tima do cosmos, da história e da vida de cada uma e de todas as criaturas 12.

É imprescindível, portanto, dialetizar transcendência e imanência através da consideração do evento da interiorização do próprio Deus no coração mesmo da matéria, da história e dos corpos de suas criaturas. O evento da interioridade de Deus, mediante Seu Espírito, no coração mesmo de suas criaturas, impede toda e qualquer bipolaridade rígida e excludente entre transcendência e imanência. A pro-fissão de fé no Deus trino e uno propicia aos cristãos, portanto, uma peculiar relação entre transcendente e imanente: nem pura transcendência, nem mera imanência, mas a celebração da transparência divina na tra-ma da Criação.

Profº Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM

Notas: 1. Cf. as seguintes publicações de L. Boff, Ecologia: Grito da Terra, Grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1995; “Teologia da libertação e ecologia: alterna-tiva, confronto ou complementaridade?”, Conci-lium 31 (1995) p. 753-764; “Da libertação e eco-logia: desdobramento de um mesmo paradigma, em M. Fabri dos Anjos (org.), Teologia e novos pa-radigmas. São Paulo, 1996, p.75-88; “O pobre, a nova cosmologia e a libertação – como enriquecer a Teologia da Libertação”, em L.C. Susin (org.), Sar-ça ardente. Teologia na América Latina: Prospec-tivas. São Paulo: Soter/Paulinas, 2000, p. 189-207.

2. Esse tem sido o fio condutor de nossas refle-xões acerca da Criação no horizonte do novo pa-radigma ecológico. A esse propósito, remetemos a S.S. Tavares, Teologia da Criação. Outro olhar – novas relações. Petrópolis:Vozes, 2010.

3. No tocante a essas instigantes posições re-metemos a quanto escreve o filósofo italiano U. Galimberti, em Psiche e techne. O homem na idade da técnica, São Paulo: Paulus, 2006, p. 383.389.391.393.

4. Analistas agudos tem se debruçado sobre esse fenômeno atual que tem acometido nossas so-ciedades contemporâneas: a título de exemplo, LIPOVETSKY, G. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas, São Paulo: Companhia das Letras, 2006; BAUMAN Z. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria, Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

5. Cf. GORZ, A. , “A crise e o êxodo da sociedade sa-larial”, in: Cadernos IHU. Idéias 31, São Leopoldo 2005, 20; cf. ainda GORZ, A. O imaterial, Annablu-me, São Paulo, 2005.

6. Cf. as importantes obras do antropólogo N. García Canclini, Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008; Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

7. Cf. SIBILIA, P. O Homem Pós-Orgânico. Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janei-ro: Relume Dumará, 2002, p. 156-202.

8. SHIVA, V. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 65.

9. BOFF, L. “A última trincheira: temos que mudar. Economia e ecologia”, in: J.O. Beozzo – C.J. Vola-nin (orgs.), Alternativas à crise. Por uma economia social e ecologicamente responsável. São Paulo: Cortez Editora, 2009, p. 35-51, aqui p. 42.

10. Para um aprofundamento maior dessa posi-ção remetemos a quanto escrito por nós em Trin-dade e Criação. Petrópolis: Vozes, 2007, sobretu-do pp. 192-210.

11. A esse respeito leia-se com proveito o que escreve H. Heimer em “Criação, natureza e meio ambiente”, Caminhos 8 (2010/2) p. 53-68.

12. Cf. o nosso Teologia da Criação. Outro olhar – novas relações. Petrópolis: Vozes, 2010, sobre-tudo pp. 57-70.

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elebra-se no dia 13 de setem-bro a memória de um grande santo da Igreja: São João Cri-sóstomo, nascido em Antio-

quia e considerado um dos quatro maio-res doutores da Igreja no Oriente, junto com Santo Atanásio, São Gregório Na-zianzeno e São Basílio Magno. Com este último nutria uma profunda amizade.

Dentre os muitos escritos do “Boca de ouro”, apelido famoso outorgado-lhe devido à sua grandiloquência nos ser-mões, destaca-se o De Sacerdotio, que deve ser considerado não só sua obra--prima, mas também de todos os trata-dos sobre o sacerdócio e o episcopado. Com efeito, cônscio da grandeza da mis-são sacerdotal e da santidade que este cargo exige, o autor explica por que se eximiu de tão alta dignidade.

Na primeira das seis partes da obra, intituladas “livros”, João Crisóstomo, em forma de diálogo, faz uma introdu-ção ao assunto apresentando seu ami-go inseparável, Basílio, que juntamente com ele fora nomeado bispo. O monge Basílio recebe o jugo sagrado pensando que Crisóstomo faria o mesmo. Só de-pois fica sabendo que este, na verdade, escondeu-se. Reclama então ao amigo de Antioquia, queixando-se da cilada que lhe preparara fazendo-o aceitar o cargo de epíscopo. Todavia, desculpa-se João dizendo que isto podia ser astucio-samente feito em vista do fim bom que intencionava.

Encontra-se no segundo livro a defe-sa astuta que o autor faz de sua atitude de não aceitar a ordenação. Argumen-ta que não foi por desprezo aos supe-riores que fugiu da consagração, mas, pelo contrário, foi em benefício deles, para que não viessem a censurá-los por terem-no ordenado. Relembrando o le-gado de Cristo a São Pedro (cf. Jo 21,15-19), escreve: “Receio que assumindo o rebanho de Cristo, florescente e próspe-ro, com a minha inexperiência o perde-ria, provocando a ira de Deus que tanto o amou e que se sacrificou a si mesmo pela salvação dele” (p. 45).

Em seguida, o Doutor da Igreja, na terceira parte do livro, mostra a supe-rioridade do sacerdócio: “embora seja exercido na terra, possui ele contudo o caráter de instituição celeste” (p. 54).

E sabiamente decla-ra: “Conheço minha alma, sei como ela é fraca e pusilânime. Conheço a dignida-de do sacerdócio e as dificuldades de exercê-lo. Pois mais numerosos do que os ventos que revoltam o mar, são as ondas que inquietam a alma do sacerdote” (p. 60). Em seguida, enumera várias qualidades que devem ornar o candi-dato ao sacerdócio ou episcopado: despir-se de qualquer ambição; ser prudente; não se encolerizar; irradiar a beleza da alma; ter espírito de fé extraor-dinário; possuir zelo para com as viúvas, os pobres e as vir-gens; exercitar a hospitalidade e o aco-lhimento; ser justo e honesto na função de juiz; realizar visitas aos necessitados; ser forte na decisão de expulsar um membro da comunhão eclesiástica.

Saul e Eli, Aarão e Moisés são exem-plos bíblicos citados por Crisóstomo, no quarto livro, de pessoas que não pude-ram escusar-se da alta função lhes con-fiada por Deus; mesmo sem almejarem aos seus cargos, uma vez neles, foram responsabilizados por seus erros. “Se os benefícios não te fazem melhor, tornam--te mais culpável” (p. 91), resume o es-critor. É mister ao presbítero, ao pastor a eloquência, pois, conquanto o exemplo seja necessário para a conduta da vida, a palavra é indispensável contra o vene-no do erro. Menciona algumas heresias como exemplos de erros superados so-mente pela palavra e conclui, com um grande elogio ao Apóstolo das Gentes, que não se pode desprezar a arte da ora-tória na salvaguarda e propagação da fé.

No quinto livro, o autor disserta so-bre os perigos e as dificuldades no mi-nistério da palavra e os cuidados na pre-paração da pregação. Os fiéis costumam ir à igreja como se fossem a um espetá-culo e, portanto, não vão para se instruir, mas para se divertir. Exorta Crisóstomo:

“O povo é que deve seguir o pregador, e não este, os desejos da grande massa. Ele somente o conseguirá por meio de duas qualidades, a saber: o desprezo de quaisquer elogios e a força da própria eloquência” (p. 106). Se faltar um, o ou-tro também inexistirá. Todavia, o estudo é obrigatório, pois a eloquência é “resul-tado de contínua aplicação e estudo, ela abandona até mesmo a quem conseguiu a maior perfeição, se não se aplicar em constantes exercícios” (p. 108).

“A alma do sacerdote deve ser mais pura do que os raios do sol, a fim de que o Espírito Santo não o abandone” (p. 115), escreve Crisóstomo na sexta parte do livro. Para se manter essa pureza, é necessária a vigilância de uma sentine-la, conforme diz Ezequiel (cf. 33,6), além da atenção e da austeridade. “Como a luz que ilumina o mundo deve brilhar a alma do sacerdote” (p. 119), comple-menta. O autor ainda mostra os enleios em que o padre pode envolver-se no mi-nistério, se exercido sem autodisciplina. Termina o escrito consolando o amigo Basílio.

Frei Douglas Paulo Machado, OFM

REFERÊNCIA:SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. O sacerdócio. Trad. Odo Rosbach. Petrópolis: Vozes, 1979 [Os Padres da Igreja, 1].

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“Cientista de renome internacio-nal”, assim o qualifica seu discípulo Frei Walter Kempf, no necrológio a ele dedicado, melhor qualificado como crônica2. Nada melhor do que seguir a exposição de Frei Walter Kempf, discí-pulo de Tomás Borgmeier.

Frei Tomás nasceu em Bielefeld (Alemanha), em 31 de outubro de 1892. Seu pai, Hermann, era ferrei-ro e sua mãe se chamava Sophia. O nome de batismo de Frei Tomás era Heinrich Fritz Hermann. Quando fazia o penúltimo ano do ginásio, resolveu interromper os estudos para se tornar franciscano no Brasil, para onde veio em 18 de outubro de 1910. Em 1911 ingressou no noviciado dos francis-canos (Rodeio, SC) e nos anos 1912 a 1914 fez seus estudos de Filosofia em Curitiba e de Teologia em Petrópolis, nos anos 1915 a 1917 3. Pelos dados que constam nos arquivos da Provín-cia da Imaculada Conceição (São Pau-lo), foi um aluno muito brilhante.

Seus talentos intelectuais e cientí-ficos começaram a se manifestar mui-to cedo. Já em 1917 começou a publi-car na Revista Vozes4 e, nos primeiros dez anos, já havia publicado cerca de 40 artigos sobre física, biologia, vul-tos naturalistas, cientistas e músicos

e também sobre formigas – em geral sob o pseudônimo de “Mario Lucena”. Frei Walter Kempf reconhece que Frei Tomás, “por meio desta atividade, lo-grou para si uma formação igual à uni-versitária. Embora autodidata, alcan-çou uma cultura científica bem ampla e ao mesmo tempo equilibrada e profunda”5 . E os cientistas brasileiros assim o reconheceram ao considerá--lo, bem cedo, como um de seus pa-res. Convidado a ser um dos membros da Academia Brasileira de Ciências, em seu discurso de posse, Frei Tomás Borgmeier assim historiava as origens de seu interesse pelas Ciências:

“No ano de 1917 encontrei-me por acaso, em Santa Catarina, com o velho Dr. Hermann von Jhering, que fora por longos anos diretor do Museu Paulista. Falando-lhe do meu plano de estudar as formigas da nossa fauna, ele me animou e me ofereceu a sua biblioteca mirmecológica pelo preço de um conto de réis. Respondi-lhe que achava difícil os meus Superiores concordarem com tão elevada despe-sa, pois um conto de reis era bastante dinheiro naquele tempo. Qual não foi minha surpresa quando, um ano mais tarde, já de volta a Petrópolis, recebo um grande caixote com livros: era a tal biblioteca. Em carta me explicava o remetente que o pagamento fora fei-to por um amigo do Rio, que deseja-va conservar o anonimato. Só muitos

anos mais tarde fiquei sabendo quem tinha sido este amigo anônimo: fora o Sr. Julius Arp, conhecido industrial hoje falecido e que doou a sua coleção de borboletas ao Museu Nacional” 6.

No entanto, Kempf pensa que o interesse de Tomás Borgmeier pela entomologia seja anterior a este im-pulso recebido pelo presente do Prof. Hermann von Jhering. Provavelmente foi influenciado brilhante entomólogo Erich Wasmann (1859-1931), especia-lizado em formigas e térmitas (cupins), que então se projetava na Europa.

Em 1920 Frei Tomás recebeu de presente um microscópio binocular da marca “Zeiss” de seu amigo, o Prof. Abreu Fialho, cientista carioca que costumava veranear em Petrópolis. A partir de então sua produção cientí-fica foi crescendo, apesar de lecionar Exegese bíblica no Instituto Teológico dos Franciscanos em Petrópolis nos anos 1920 a 1925. Assim, em 1920 publicava seu primeiro trabalho re-almente original e científico, “Zur Le-benweise Von Odontomachus affinis Quérin” (Sobre o comportamento e vida de Odontomachus affinis), uma formiga típica da Serra do Mar, vul-garmente conhecida como formiga estrela, ou tuçuíra, In: Zeitschrift für Wissenschaft und Kunst, vol. I, p. 31-38, 1920). Orientado pelo cientista je-suíta, Pe. Schmitz, discípulo direto de Wasmann, começou a interessar-se pelos forídeos, pequenas moscas que parasitam formigas.

A produção científica de Frei To-más começou logo a crescer vertigino-samente: publicou quatro trabalhos em 1922 e onze em 1923. O problema era onde publicar para validar suas d e s c o b e r t a s .

O cientista Frei Tomás Borgmeier (1892 – 1975)1

Profissional no Museu Nacional

Frei Ludovico Garmus1.Texto apresentado no “XX Sim-pósio de Mirmecologia e I En-contro de Mirmecologistas das Américas”, realizado no Instituto Teológico Franciscano, nos dias 16 a 20 de outubro de 2011.

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Chegou a publicar na revista “Vozes de Petrópolis”, uma revista de cultu-ra, lugar inadequado para tais publi-cações. Frei Tomás admirava muito o biólogo Dr. Artur Neiva, então Diretor do Museu Nacional do Rio de Janei-ro. Sem conhecê-lo pessoalmente, chegou a escrever-lhe sugerindo-lhe que, além dos tradicionais “Arquivos”, o Museu publicasse um Boletim, para agilizar a publicação das pesquisas. Dr. Neiva, que era “um catalizador de competências” (Kempf), logo lhe respondeu e acolheu a sugestão, que também era um desejo seu. Desde então nasceu uma estreita amizade entre os dois, que durou até a morte de Neiva (1934). Com faro que tinha para descobrir talentos promissores, Neiva convidou Borgmeier para tra-balhar com ele no Museu Nacional. Com anuência dos superiores, Tomás passou a morar no Convento Santo Antônio (Rio) e assumiu com dedica-ção exclusiva o cargo de Adjunto do Museu Nacional.

Na década entre 1920 e 1930 hou-ve um grave surto da praga da broca dos cafezais, no Estado de São Pau-lo. Para combater o surto, o Governo do Estado de São Paulo contratou o Dr. Neiva, que fundou ali o Instituto Biológico e criou o centro de pesqui-sas em benefício da lavoura e da pe-cuária. Dr. Neiva fez questão de levar consigo Frei Tomás Borgmeier, para a seção de Entomologia. Com anuência

dos superiores,

Tomás foi transferido para São Paulo (27/08/1928). Foi muito bem recebido no Instituto Biológico, especialmente pelo amigo Dr. Neiva e pelo chefe da Seção, o professor Rocha Lima. Rece-beu um laboratório muito bem insta-lado e um auxiliar para suas pesqui-sas. Logo, em torno dele, reuniu-se um grupo de jovens talentosos, que foram iniciados na carreira entomológica; en-tre eles John Lane, autoridade em mos-quitos e futuro professor da Faculdade de Higiene da Universidade de São Paulo, e Mário Autuori, que continuou no Instituto Biológico, deu importantes contribuições para o controle da saúva e, depois, se tornou o Diretor do Jardim Zoológico de São Paulo.

Para possibilitar o intercâmbio internacional mais rápido entre cien-tistas, Frei Tomás fundou em 1931, quando estava radicado em São Paulo, a Revista de Entomologia, que durou até 1951, quando foi suspensa. Foi uma revista científica, em seu gêne-ro, a única no mundo, com assinantes em 21 países e colaboradores que, em sete línguas, publicavam os resultados de seus estudos. Ele mesmo aparece como Redator e Editor da Revista. A Redação começou em São Paulo, mas logo mudou para o Rio de Janeiro, para o Convento de Santo Antônio, onde Frei Tomás passou a residir.

Frei Walter Kempf assim descreve a origem da Revista de Entomologia:

“O problema de colocar os seus manuscritos continuava a atormentá--lo. As revistas estrangeiras, via de re-gra, aceitavam somente contribuições pequenas, e as nacionais viviam pele-jando para vencer os atrasos impostos pela lentidão do fluxo das verbas. A ocasião que precipitou sua resolução prática se reduz a um caso pitoresco. Nosso conhecido naturalista Frei Mi-guel Witte, de Rio Negro (PR), sempre pronto para colaborar com os cientis-tas profissionais, costumava mandar--lhe forídeos que os alunos do colégio seráfico iam coletando, ao passo que a maioria das formigas, resultando das caçadas, ia invariavelmente para outro cientista, amigo de ambos, o professor August Reichensperger, catedrático de zoologia da Universidade de Bonn. Certa feita, os alunos conseguiram capturar duas rainhas de uma espé-

cie de formigas-correição, aliás, uma proeza difícil e raramente coroada de sucesso. Frei Miguel, sem informar a respeito da existência de dois exem-plares idênticos, mandou uma rainha para o professor Reichensperger, ou-tra para Frei Tomás. Este verificou com grande entusiasmo que se tratava de um exemplar ainda não descrito, e pôs-se a elaborar o diagnóstico e as ilustrações. Entregou o trabalho para ser publicado nos “Arquivos do Insti-tuto Biológico”, mas teve de esperar um ano para vê-lo impresso. Nesse meio tempo, o Dr. Reichensperger, que igualmente se inteirara da novi-dade do espécime recebido de Frei Miguel, por sua vez lhe elaborou um diagnóstico que publicou numa revis-ta alemã, que antecedeu a publicação de Frei Tomás por pouco tempo. Ape-sar da amizade que o ligava ao Dr. Rei-chensperger (que não suspeitava que Frei Tomás trabalhara o mesmo assun-to), Frei Tomás tanto se magoou com a perda da prioridade que, quase ob-sessionado, pensou numa maneira de assegurar para si a publicação rápida dos resultados obtidos pela pesquisa. A solução encontrada respira a inge-nuidade dos gênios, e por ser de gênio até deu certo. Fundou sua própria re-vista, a “Revista de Entomologia”, que nasceu em 1931 e durou até 1951, quando sua publicação foi suspensa com o 22º volume”7.

Reconhecendo seu mérito, o Go-verno do Estado de São Paulo enviou Frei Tomás Borgmeier, em 1932, como representante oficial do Instituto Bio-lógico ao V Congresso Internacional de Entomologia, realizado em Paris. Na ocasião, encontrou-se com seu antigo mestre em forídeos, o Pe. Her-mann Schmitz (jesuíta) e visitou vários museus da Europa, para dissipar algu-mas dúvidas que tinha sobre forídeos e formigas da fauna do Brasil.No Instituto Biológico de São Paulo

A fundação da Revista de Entomologia

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Em 1933, a convite do Dr. Neiva, foi nomeado Chefe da Seção de Entomo-logia do Instituto de Biologia Vegetal do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Residia no Convento Santo Antônio, onde auxiliava nas festas, tocando órgão (era exímio músico) e celebra-va a missa todos os dias no Instituto das Meninas cegas, na Tijuca. Mas seu trabalho principal era a pesquisa que desenvolvia num laboratório instala-do nos espaços do convento, acima do mausoléu. Seguia com muita discipli-na e fidelidade seu lema: “Se queres alcançar uma coisa, deverás deixar to-das as outras”.

No Instituto de Biologia reuniu em torno de si uma série de alunos, que se tornaram cientistas mais tarde, como Dario Mendes, professor e pesquisa-dor da Universidade Rural e, sobre-tudo, Hugo de Souza Lopes, que mais tarde passou para o Instituto Oswaldo Cruz. Ele conta um episódio pitoresco sobre seu mestre Frei Tomás: “Certo dia, o chefe veio ao meu laboratório e pediu-me que o ajudasse a procurar uma asa de forídeo, tipo de Ender-lein, que ele havia perdido. Raspamos a mesa e todo o chão do laboratório com uma ficha branca, e todo o resí-duo encontrado era cuidadosamente examinado na lupa. Depois de algu-mas horas de trabalho aconteceu que, ao olhar para o dorso da mão de Frei Tomás, vi colada com suor a procura-da asa do forídeo”, que não passa de 1 a 2mm.

Em dezembro de 1935 e janeiro de 1936 empreendeu, com seu assis-tente Hugo de Souza Lopes, uma rara excursão entomológica ao Estado de Goiás. Frei Tomás era mais homem de gabinete e, para suas pesquisas, rece-bia de colecionadores amigos, de vá-rias partes do Brasil, os espécimes de formigas e insetos, tornando-se assim um excelente e fiel colecionador de forídeos e formigas.

Walter Kempf, em sua crônica, lembra um atrito havido no Instituto de Biologia Vegetal, nos anos 1933 e 1934, entre Frei Tomás e o Dr. Ângelo Moreira da Costa Lima, ambos com-petentes entomólogos. Este último discordou da classificação de uma espécie de formiga, dada pelo Frei To-más. Isso mereceu uma réplica de Frei Tomás, justificando sua classificação, e uma tréplica de Costa Lima. A recon-ciliação viria somente em 1947, por ocasião de uma visita do Dr. J. Douglas Hood, professor da Universidade de Cornell e especialista em tisanópteros (os famosos “lacerdinhas”, que quase acabaram com os fícus do Rio). Numa reunião de entomólogos do Rio para a qual Frei Tomás levou o Prof. Hood, estava presente também Costa Lima. Conta Frei Walter, que num gesto tipi-camente americano, o Prof. Hood pu-xou Frei Tomás pelo braço e o arrastou para junto do professor Costa Lima e disse em voz alta: ‘Aqui estão os dois melhores entomologistas do Brasil, e não vivem em paz. Isto não está certo. Deem-se as mãos e sejam amigos!’ E, de fato, desde então, a paz entre os dois voltou a reinar.

Em 1941, Frei Tomás Borgmeier demitiu-se do cargo de servidor públi-co no Instituto de Biologia, quando os Superiores o nomearam como Diretor da Ed. Vozes. Esteve à frente da dire-ção da Ed. Vozes até 1952. Neste perí-odo fundou, junto com outros Profes-sores de Teologia de Petrópolis, duas revistas publicadas até hoje: Por insis-tência do Cardeal Leme, que insistia na criação de uma revista para o clero, a ser publicada pela Ed. Vozes, fundou a Revista Eclesiástica Brasileira (REB); logo depois, também, uma revista para religiosas e religioso), a Sponsa Christi”, hoje chamada Grande Sinal. Fiel ao seu lema “se queres alcançar

uma coisa, deverás deixar todas as outras”, Frei Tomás concentrou suas energias na direção da Ed. Vozes e no seu leque editorial, especialmente, as novas revistas. Continuou a redigir pessoalmente a Revista Entomológica, mas sua investigação entomológica, diz Walter Kempf, nos anos entre 1941 e 1945, caiu a zero.

Foi também nestes anos (1944) que Frei Tomás, percebendo o talento para a pesquisa científica de um jo-vem estudante de Teologia, Frei Wal-ter Kempf, conseguiu entusiasmá-lo pelo estudo das formigas e, em 1947, encaminhou-o aos Estados Unidos para especializar-se em Entomologia.

Em 1945 faz uma viagem por vá-rios países do Continente Americano, por interesses da Editora Vozes e para entrar em contacto com assinantes e colaboradores da Revista de Ento-mologia de vários países e centros de estudo. Foi muito bem recebido em todos os lugares. Na Universidade de Washington proferiu uma bela conferên-cia de caráter autobiográfico, na solene sessão em que lhe foi conferido o títu-lo Doctor Honoris Causa, no dia 27 de maio(8) . Eis a cópia do título que consta na Crônica do Convento do Sagrado Co-ração de Jesus (Cr/5, 1945, fl. 53):

Chefe de Entomologia no Rio

Diretor da Editora Vozes

Pais do Frei Tomás

Curatores Collegii Sancti Bonaven-turae apud Allegany Status Neo-Eboren-sis, omnibus Prasesentes Litteras Visuris

Salutem in DominoUt in virtute et scientiae praecel-

lentes viri, qui in republica peculiari lau-de ac merito digni habiti sunt, publico aliquo honoris testimonio, hujusce rei significativo, condecorentur, usus ipse academicus inde a remotis temporibus semper postulabat. Nos itaque Praeses et Magistri huius Collegii, ad id muneris a summa reipublica auctoritate delega-ti, dilectum nobis plurimum Revdum P. Thomam Borgmeier, O.F.M. cujus prae-cellentiam optime novimus ad gradum

DOCTORATUS SCIENTIAEproveximus, simulque omnibus juri-

bus privilegiis atque honoribus ad hunc gradum pertinentibus eum donavimus. Cui rei quo maior sit fides Praesidis hujus Collegii chirographo nostraque commu-ni sigillo hocce diploma a muniendum curavimus.

Datum ex aula nostra academica apud Allegany in Statu Neo-Eborensi die XXVII mensis Maii anni MCMXLV.

Fr. Thomas Plassmann, O.F.M.Praeses Collegii.

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Por ocasião desta visita, Frei To-más aproveitou para fazer um giro científico: visitou o Museu Nacional de Washington, as Universidades de Harvard e Cornell, e o Museu de Histó-ria Natural de Chicago. Ao visitar estas instituições, lançou a ideia de se fun-dar uma sociedade panamericana de entomologia, oferecendo para isso os préstimos de sua Revista de Entomo-logia. A ideia foi bem recebida, mas infelizmente não vingou.

Duas foram as razões para reacen-der a paixão de Frei Tomás pelos estu-dos de Entomologia. A primeira delas foi, sem dúvida, sua viagem pelo Con-tinente Americano em 1945, ao visitar assinantes e colaboradores da Revista de Entomologia, Museus e Universi-dades e, sobretudo, o título “Doctor Honoris Causa” que recebeu na St. Bonaventure University. A segunda, como lembra Walter Kempf, foi a visi-ta do Dr. J. Douglas Hood, professor da Universidade de Cornell e especialista em tisanópteros (“lacerdinhas”), em 1948, que provocou a reconciliação dele com o Prof. Costa Lima. Desde então começou a se interessar nova-mente pelas pesquisas entomológicas. Levou sua coleção e biblioteca para Ja-carepaguá, onde havia comprado para o Abrigo das cegas desvalidas (idosas), cuidadas pelas Irmãs Filhas de Nossa Senhora do Sagrado Coração, que an-tes funcionava na Tijuca, para crianças e moças. Já desde 1923 quando mora-va no Convento Santo Antônio do Rio, Frei Tomás as atendia como capelão. No sítio de Jacarepaguá, na velha ga-ragem no fundo do prédio principal, instalou seu gabinete entomológico, com pequeno dormitório e banheiro que também lhe servia de laboratório fotográfico. Durante a semana, aten-

dia a direção da Ed. Vozes em Petró-polis. Nos fins de semana se refugiava no sítio de Jacarepaguá e no seu labo-ratório. Foi nestes anos, quando tinha 56 anos, que nasceram seus grandes trabalhos, como nos refere Frei Walter Kempf, como as revisões taxonômicas das formigas-correição (1955) e das saúvas (1950, 1959) e, sobretudo, os numerosos trabalhos, todos volumo-sos, sobre os forídeos.

Em 1951 participou do 9º Con-gresso Internacional de Entomologia em Amsterdam, ocasião em que vi-sitou todos os museus europeus que tinham tipos de formigas-correição. Neste mesmo ano, publicou o 22º volume da Revista de Entomologia, na qual saiu impressa a tese doutoral de seu discípulo Frei Walter Kempf, e comunicou a todos os leitores o fe-chamento da Revista de Entomologia. A revista renasceria em 1958 com o nome Studia Entomologica, que du-rou até 1976. Seus Redatores e habi-tuais colaboradores seriam Frei Tomás Borgmeier e Frei Walter Kempf.

Em fins de 1952 foi exonerado pe-los superiores de seu cargo de Dire-tor da Editora Vozes, cargo assumido pelo Frei Ludovico Gomes de Castro. A razão era que se ausentava muito da Editora para se dedicar às pesqui-sas entomológicas em Jacarepaguá. A paixão que renasceu pelos estudos entomológicos fez esmorecer seu in-teresse pela Editora Vozes. Mais uma vez prevaleceu seu princípio: “Se que-res alcançar uma coisa, deverás deixar todas as outras”.

Nessa ocasião, o professor Costa Lima, insistiu com o Reitor da Uni-versidade Rural para que convidasse Frei Tomás para trabalhar com ele no Instituto. O convite foi aceito e, com anuência dos superiores, Frei Tomás foi liberado para assumir o cargo. Na realidade, porém, nunca o assumiu, preferindo trabalhar nas pesquisas, no sossego de seu eremitério em Ja-carepaguá.

Afastado da direção da Editora Vozes, Frei Tomás Borgmeier dedicou os seus últimos vinte anos de vida a um trabalho cientificamente ainda mais produtivo. Assim, em 1955, pu-blicou em volume avulso o seu melhor trabalho – escreve Frei Walter Kempf – intitulado Die Wanderameisen der

Neotropischen Region (As formigas--correição da Região Neotrópica, 720 p., 87 pranchas e inúmeras figuras. Em 1958 pôs um ponto final à pesquisa das formigas e doou sua rica e precio-sa coleção e respectiva literatura ao seu discípulo, Frei Walter Kempf, para se dedicar aos forídeos:

“Chegara a hora dos forídeos. Entre 1956 e 1971 publicou 42 traba-lhos sobre forídeos (moscas pequeni-nas que parasitam as formigas), com cerca de 2.600 páginas, contendo a proposição de 40 gêneros novos e a descrição de 800 espécies inédi-tas. Nesses estudos já não se limitou à fauna neotropical, i. é, da América Latina, mas enfocou a mundial. Publi-cou uma extensa monografia sobre os forídeos da América do Norte (1963, 1964, 1965) e contribuiu largamente para o conhecimento dos forídeos da África, da índia e da Austrália. Três via-gens consecutivas aos Estados Unidos e à Europa, empreendidas em 1961, 1965 e 1970, serviram-lhe para locali-zar espécies nos museus e estudá-los nos mesmos, e para conseguir o em-préstimo de material que levava con-sigo para Jacarepaguá. Nesse tempo levou também a bom êxito suas pes-quisas bibliográficas sobre as mesmas moscas, das quais resultou o ‘Catálo-go Mundial dos Forídeos’, lançado em 1968”9.

Ao todo, as publicações Frei To-más Borgmeier chegaram a 243, per-fazendo 5.000 páginas impressas. Ta-manho volume de produção científica se compreende dentro dos princípios adotados pelo Frei Tomás, assim resu-midos por Kempf:

“Frei Tomás não pertencia àqueles que, presos às fantasias mirabolan-tes, mas inexequíveis, se condenam a si mesmos a uma inércia masoquis-ta. Pelo contrário, ele sempre foi um

Frei Tomás já idoso sendo visitado por: Frei Frederico Vier, Frei Boaventura Kloppen-burg e (o último jovem à esquerda) Frei Leonardo Boff; a visita aconteceu quando ele, no final da vida, trabalhava no sítio de Jacarepaguá (RJ) .

Volta à atividade plena

Renasce a paixão pelas formigas

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homem de produção; os alemães o chamariam de “fáustico”, e a carac-terística de sua atividade, para usar suas próprias palavras, era de ‘tocar a ciência para frente’. Fazia questão de ver publicados os resultados de suas pesquisas e obrigava a seus colabora-dores, às vezes usando todos os meios disponíveis de pressão, a fazerem o mesmo. ‘Tudo o que a gente não pu-blica, dizia ele, se leva para a sepultu-ra’. E ele tinha um horror de trabalho e tempo perdido”10. O mesmo Frei Wal-ter Kempf fez uma análise primorosa sobre a vida e a produção científica de seu querido mestre, Frei Tomás11.

Pelo seu trabalho científico de grande seriedade e competência Frei Tomás mereceu o reconhecimento do mundo científico nacional e in-ternacional, recebendo várias con-decorações: Membro honorífico da Sociedade Brasileira de Ciências, da qual foi co-fundador ; Membro titu-lar da Academia Brasileira de Ciências (27/12/1955); Membro da “Sociedad Entomologica de Argentina; Membro da “American Entomolgical Society” e da “Association of Tropical Biology”.

Para concluir este resumo das in-formações colhidas sobre esta grande e genial figura de pesquisador, religio-so e sacerdote franciscano, gostaria de citar a descrição que Frei Tomás Borg-meier da figura e da missão do cientis-ta, no discurso que proferiu durante a Sessão solene da Academia Brasileira de Ciências (27/12/1955), ao ser rece-bido como membro da mesma Acade-mia12:

“Diz o Parecer da Comissão que escolheu os candidatos para os diver-sos quadros: ‘O ingresso na Academia não é prêmio ao que tenha sido reali-zado por alguém, embora represente manifesto reconhecimento disto’. Gos-tei. Sem querer minimizar o valor dos trabalhos realizados pelos meus ilus-tres consórcios, ouso dizer, sem medo de errar, que os nossos merecimentos são pequenos em comparação com a honrosa distinção que acabamos de receber. O pouco que sabemos é como uma esfera quem quanto mais cresce em circunferência, tanto mais pontos oferece de contacto com o desconhe-cido. É sobremaneira árdua a tarefa

do investigador. O verdadeiro cientista não se contenta em assimilar o que os outros fizeram antes dele no peque-no campo que explora, mas procura descobrir novas verdades, procura le-vantar aqui e acolá o véu com que a Natureza avidamente esconde os seus segredos. E a cada passo que avança nesta terra incógnita, surgem novos problemas que reclamam solução, novas dúvidas que precisam ser dis-sipadas, novas perguntas que exigem resposta. A Ciência é, portanto, uma espécie de martírio, e, por isso mes-mo, uma escola de humildade. O ver-dadeiro investigador se sente peque-no diante da mole imensa dos fatos que constituem o objeto da ciência. O verdadeiro sábio não tem tempo para se vangloriar do que porventura tenha realizado; está, por demais, ocupado com a solução de novos problemas que o torturam e, guiado pelo espíri-to de objetividade que o anima, não se esconde a si mesmo as lacunas do seu saber. Por isso, foge da publicida-de, como Einstein fugia do repórter e do fotógrafo; detesta o ditirambo; é inimigo feroz do panegírico; prefere o silêncio do laboratório aos aplau-sos estrepitosos; tem mais propensão para meditar calado do que proferir discursos engalanados.

Não obstante essas convicções, o cientista é também um ser humano, isto é: social. Ele não vive enclausu-rado na Ciência como numa torre de marfim, ele não se fecha no seu gabi-nete como o molusco na concha. Ele procura instintivamente aqueles que lhe são ligados pelos mesmos ideais; em sua companhia ele se sente à von-tade porque se sente compreendido; aí se lhe oferece o ensejo de trocar idéias, discutir problemas, arquitetar planos para o futuro. Eis a origem das sociedades científicas. Eis a origem, também, desta Academia”.

Profº Frei Ludovico Garmus, OFM

Notas:

2. KEMPF, Walter. Frei Tomás Borgmeier, O.F.M. (* 31 de outubro de 1892 – + 11 de maio de 1975), In: Vida Franciscana, vol. 53, 1976, n. 50, p. 77-96. Nesta crônica, Kempf traz bastante detalhes sobre as atividades e a carreira científica de seu mestre.

3. Nesses anos o 1º ano de Filosofia se fazia em Rodeio, o 2º de Filosofia e o 1º de Teo-logia em Curitiba, no Convento Bom Jesus, e do 2º ao 4º ano, a Teologia era estudada em Petrópolis, no Convento do Sagrado Co-ração de Jesus.

4. Em 1917, sob o pseudônimo Mario Luce-na, escreve sobre “O telegrapho sem fio”, Vozes de Petrópolis, XI, 1917, p. 937-941. Em 1918, faz uma recensão do livro Insti-tuto Butantan – Collectanea de trabalhos 1901-1917. Typographia do Diário Oficial, São Paulo, 1918, 500 p. ). O livro recolhe ar-tigos científicos, sobretudo, do Dr. Vital Bra-sil, Diretor do Instituto. Em 1919 já escreve sobre insetos: “A geometria das abelhas e a ‘intelligencia animal’, Vozes de Petrópo-lis, XIII, 1919, p. 1262-1266. Depois, sobre “Frades naturalistas, Frei Vicente Gredler”, Vozes de Petrópolis, XIII, 1919. Interessa-se também por música: “Edward Grieg (1843-1907)”, famoso músico norueguês, Vozes de Petrópolis, XIV, 1920, p. 839-843.

5. KEMPF, Walter. Frei Tomás Borgmeier, Vida Franciscana, vol. 53, 1976, n. 50, p. 79.

6. KEMPF, Walter. Frei Tomás Borgmeier, Vida Franciscana, vol. 53, 1976, n. 50, p. 78.

7. KEMPF, Walter. Frei Tomás Borgmeier, Vida Franciscana, ano 53, 1976, n. 50, p. 81-82.

8. A bonita conferência proferida em inglês foi publicada na Revista de Entomologia, vol. 16, fasc. 1-2, p. 261-267, 1945.

9. KEMPF, Walter. Vida Franciscana, vol. 53, 1976, p. 93.

10. KEMPF, Walter. Vida Franciscana, vol. 53, 1976, p. 89-90.

11.Father Thomas Borgmeier, O.F.M., 1892-1975, in: Studia Entomologica, Petrópolis, vol. 19, 1976, p. 1-37.

12. Discurso na Sessão solene da Academia Brasileira de Ciências (27/12/1955) – Pe-quenas comunicações, in: Studia Entomo-logica, vol. 2, fasc. 1-4, setembro de 1959.

A figura do cientista na visão de Tomás Borgmeier

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IntroduçãoComo você percebe, o tema propos-

to para marcar os 115 anos do Instituto Teológico Franciscano – Teologia e Sociedade – sugere uma ação do agente denominado Sociedade com o assunto Teologia.

Preparando esta colaboração, perso-nalizamos o assunto Teologia, traduzindo--o por Teólogos e, mais especificamente, por Frades. São eles que, num primeiro tempo e aos poucos, cunham a marca: Instituto Teológico Franciscano. Quan-to ao interlocutor Sociedade, entende-o prevalentemente como Sociedade petro-politana, ressaltando, porém, alguns ato-res da mesma.

Acompanhamos este diálogo entre Sociedade petropolitana e Frades do ITF e o representamos em multimídia. Res-saltamos o que entendemos ser memo-rável, a partir de um olhar retrospectivo. Você é convidado/a para este entreteni-mento, que consideramos saudável.

Abertas assim as cortinas, você talvez pergunte:

Quais são os interesses da Sociedade petropolitana e dos Frades para estabele-cerem um diálogo, para manterem uma interação? Especificamente, em que pon-to ou pontos se dá convergência/diver-gência de interesses entre os franciscanos do ITF e alguns setores da sociedade pe-tropolitana, dentre eles, principalmente os católicos (ou parte deles)?

Antes da conferição, ainda nos per-mitimos propor-te uma observação: note

que as perguntas estão centradas no pre-sente: “Quais são os interesses...”; “em que ponto ou pontos se dá convergência/divergência...” Então, talvez também seja oportuno lembrar que o olhar retrospec-tivo enunciado no título, embora “retros-pectivo” e “memorial”, parte do hoje, visi-ta o ontem e imagina o amanhã. É o hoje que visita o ontem, de olho do futuro. Nossos pés estão no hoje. E, com efeito, é também o hoje e o amanhã, o presente e o futuro do ITF a aposta desta noite!

Dito isto, é com base na memória viva e em registros dos franciscanos (Crônica), que faremos constatações e ensaiaremos observações.

Para isso e para início de conversa, podemos distinguir dois segmentos cro-nológicos no itinerário retrospectivo do ITF: I. Do final do século XIX ao final do século XX; II. Do final do século XX aos iní-cios do século XXI.

Segmento I: Do final do século XIX ao iní-cio do século XX1ª Constatação: Petrópolis, a polis de Pe-dro, o segundo

Dom Pedro, o Primeiro (1822), ad-quire a fazenda Córrego Seco, e Dom Pedro, o Segundo, aí instala sua casa de veraneio e sua segunda sede de governo (1843), hoje: o Museu Imperial. Por causa desta sua decisão, forma-se a cidade de veraneio e de governo, a polis de Pedro, o segundo, no caminho de fazendas de café do Vale do Paraíba e de Minas Ge-rais, cidade da Serra da Estrela, de clima saudável e também de imigração alemã.

República proclamada e Padroado extinto, articula-se a restauração das an-tigas Províncias franciscanas (OFM) do Nordeste e do Sudeste, iniciando-se pelo Estado de Santa Catarina.

Atento, o então internúncio apostó-lico residente em Petrópolis, Mons. João Batista Guidi, articula a vinda dos Fran-ciscanos para a Cidade imperial, identifi-cando o primeiro e duplo interesse social: atendimento religioso e cultural, a come-çar pelos imigrantes alemães. Ou seja, os frades deveriam ser:a) assistentes religiosos, atendendo uma carência que, porém, ultrapassa as fron-teiras do segmento da imigração alemã [1938 e 1945]; e b) promotores de integração social, faci-litando a transição da língua alemã para a portuguesa, da sociedade alemã à bra-sileira, da expressão religiosa alemã para a brasileira.

Mas, como, se os próprios frades são alemães?!

2ª Constatação: A chegada dos frades

INSTITUTO TEOLÓGICO FRANCISCANO – 115 ANOSTeologia e Sociedade: um olhar retrospectivo

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Resultado das proposições e dos contatos de Mons. Guidi, aos 16 de janei-ro de 1896, chegam frades a Petrópolis, causando alguma surpresa e admiração. São eles: Frei Ciríaco Hilcher, guardião, frei Zeno Walbroehl e Frei Mariano Feld-mann. E no dia 02 de novembro do mes-mo ano, eis que também chegam jovens

frades, estudantes ainda: seis! Onde foram alocados? Simbolica-

mente, nas imediações e logo em segui-da nas dependências da então igrejinha dos alemães, inaugurada em 1874 – hoje, Igreja-paróquia do Sagrado Coração de Jesus, à rua Montecaseros 95.

Ora, a presença de jovens frades pres-supõe e pede formação. Nasce, assim, o que, no decorrer dos anos foi sendo identificado como Teologado, Academia Teológica, Centro de Estudo, Faculdade de Teologia, Instituto Teológico Franciscano, hoje com gloriosos 115 anos!

3ª Constatação: Os primeiros movimentosComo dar conta da missão: atendi-

mento religioso e integração social para os imigrantes alemães, sendo os próprios frades, alemães? Frei Estanislau Schaet-te, chegado em 1897 e com expressiva e variada atuação em Petrópolis, principal-mente na área da história, fornece-nos uma preciosa indicação: um volume da Crônica da Fraternidade do Sagrado leva por título: pré-história de Petrópolis, cujas páginas atestam um levantamento da primitiva situação topográfica da re-

gião e um levantamento das sesmarias e de seus respectivos proprietários, da instalação da cidade, da atuação de Jú-lio Koeller na organização da mesma etc. Ora, mesmo que este volume possa ser a expressão de seu autor, o cronista fr. Estanislau, o que isto poderia sinalizar? Uma possível hipótese é a de uma in-tencionalidade: conhecer para integrar; aproximar-se para conhecer; conhecer para entender; entender para adequar a missão e – por que não? – compreender para amar e/ou amar para compreender! Pelo conjunto da atividade dos frades, também dos que se ocupam diretamente de ciências teológicas, esta é uma hipóte-se que poderíamos reter como bastante verossímel.

E mais: esta indicação pode ser ima-ginada como que acontecendo numa estrada de mão dupla. Se aquela mão de ida é significativa de uma estratégia, a mão de retorno é significativa de uma acolhida. Com efeito, com apoio e incen-tivo de Mons. Guidi, em dois anos se faz e se executa os projetos do que hoje é a ala junto à sacristia da Igreja do Sagrado, parte do atual refeitório e quase toda a ala junto à rua Frei Luís, e com sobra de dinheiro! Doações em grande parte regis-tradas! Doações provenientes não só de imigrantes alemães, que eram relativa-mente pobres, mas da parte de eminen-tes personalidades da sociedade petro-politana! O óbvio fica então por conta do apreço e da acolhida recebidos!

4ª Constatação: As primeiras iniciativas dos frades e a marca dos fundamentosIniciativa 1: Atendimento pastoral

No dia 20 de janeiro de 1896, 4 dias após a chegada, Frei Ciríaco estreia, pre-sidindo uma celebração eucarística na Igrejinha do Sagrado. Nascia, então, a primeira marca da presença franciscana, inspirada na imagem bíblica do pastor e em são Francisco, homem todo católico e apostólico: atendimento pastoral. Em seguida, rapidamente, o local físico, o Sa-

grado, ganha expressão de centro de ir-radiação pastoral. Integrado, até 1946, à Paróquia São Pedro de Alcântara, quando esta se tornou sede episcopal e a Igreja do Sagrado, paróquia, os frades se fazem presentes em quase toda a cidade e nos distritos vizinhos, como também em boa parte da Baixada Fluminense, prestando atendimento religioso: administração de sacramentos, liturgia, catequese, fundan-do e animando comunidades de fé. Hoje, embora territorialmente restritos às atu-ais dimensões da Paróquia do Sagrado e à Paróquia Santa Clara, mas integrados no contexto social urbano, os frades con-tinuam com esta marca do pastor.

Como destaques na memória popu-lar e nesta área de atuação, entre outros, não há como não trazer presente os no-mes de:

Frei Luiz Reinke. Estimadíssimo, seu falecimento, em 1937, parou a cidade e um busto presencializa sua memória. Incansável e afetuoso em seu zelo apos-tólico, incentiva a cultura cristã, leciona Teologia sistemática e Direito canônico aos frades, sintetiza em sua pessoa o pas-tor e o doutor; é reverenciado não só por católicos.

Frei Leão Hessling. Três dias de luto por ocasião de sua morte, em 1976, mes-mo morando ele, na ocasião, em São Paulo! Sinônimo de caridade e doação ao próximo, seu nome, após 33 anos de atu-ação em Petrópolis, permanece carinho-sa e até folcloricamente no imaginário popular. Imortalizado pelo bico de pena do artista Van Dijk, deixou sua marca na promoção social e -29

Frei Ciríaco Hilcher

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religiosa, particularmente no Alto da Ser-ra e nas redondezas.

Frei João José Pedreira de Castro (+1962). Natural de Petrópolis, granjeia estima e consideração no coração de seus conterrâneos. É mais um exemplo de aliança entre o doutor e o pastor, entre o estudo e a partilha e vice-versa. Mesmo não tendo concluído sua formação bíblica em razão de problemas de saúde, nota-biliza-se como professor e inicia o movi-mento bíblico nacional, traduz a Bíblia – versão da Ave Maria – e preconiza sua leitura popular. Incentivador de missões populares e inovador, por incluir leigos na pregação missionária. Através de partici-pação popular, de todas as classes sociais, leva a termo a construção do Teatro Ma-riano e do Trono de Fátima – hoje monu-mento de fé e turismo –, inaugurado este com presença de autoridades civis e reli-giosas do Estado do Rio e de Portugal.

Iniciativa 2: EducaçãoFacilitar a integração dos filhos dos

imigrantes alemães, através da educação, é outra parte da missão (inicial) confiada por Mons. Guidi aos franciscanos. Em 1897 os frades assumem a bandeira da resposta à demanda já detectada prin-cipalmente entre os imigrantes alemães pelo Pe. Teodoro Esch, pároco da Paró-quia de São Pedro de Alcântara. Abrigada, inicialmente, junto ao Convento, a esco-la é transferida, alguns anos depois, em 1907, para o outro lado da atual rua Frei Luís, e finalmente, em 1991, para a atual sede à rua Santos Dumont. Resultado da parceria entre frades e leigos, está hoje integrada, em condições semelhantes, à rede escolar Bom Jesus, de Curitiba.

Inicialmente batizada como Escola Gratuita São José, gerou um filho, que de tão famoso, transferiu-lhe o nome: Escola dos Canarinhos, e hoje, em função da in-tegração com o Centro Universitário Bom Jesus, de Curitiba: Bom Jesus-Canarinhos. O coral dos Canarinhos, rebento novo de

ensaios anteriores, vem à luz do dia no ano de 1942 e, no ano seguinte, por oca-sião do Congresso Eucarística Nacional realizado em Petrópolis, tem destacada participação. Fazem parte, hoje, de um Instituto próprio, o Instituto dos Meninos Cantores de Petrópolis, na Escola Bom Jesus-Canarinhos, e dão origem, a outros corais dentro da mesma instituição. Com satisfação registra-se sua benéfica influ-ência para que Petrópolis seja uma cida-de agraciada com vários corais de quali-dade e, agora, com educação musical nas escolas municipais.

Nesta trajetória, se, por um lado, realce deve dado à interação do corpo gestor e docente integrado por frades e leigos, não há como renunciar à satisfa-ção de destacar o criador dos Canarinhos e por longos anos seu maestro-regente, Frei Letro Bienias (+ 1988). Ele lhe impri-me o caráter religioso e cultural no reper-tório de suas atuações. Também é dele, frei Leto, a fundação do Instituto dos Meninos Cantores. Internacionalmente conhecido e estimado, o coral contribui esta noite com mais um capítulo para a história viva e atual do ITF e para a sua própria. Iniciativa 3: Comunicação através da imprensa

Com a finalidade de confeccionar e imprimir material didáti-co para a Escola Gratuita São José, em 1899, Frei Ciríaco adquire uma in-completa e abandonada impressora alauzet, que, concertada por frei Iná-cio Hinte, entra em ação

em 1901, integrando o pequeno conjunto denominado Tipografia da Escola Gratui-ta São José. Logo, porém, este objetivo inicia sua trajetória de ampliação, de re-lativa autonomia em relação à Escola e de atualização, até hoje.

Em 1907, dá-se início à publicação de um periódico de caráter cultural e religio-

so – Vozes de Petrópolis –, inspirado na revista alemã Stimmen aus Maria Lach. E a publicação passa a ser tão conhecida que, a partir de 1911, provoca a mudança de nome da Tipografia, para Administra-ção das Vozes de Petrópolis, bem como sua transferência dos porões do Conven-to para o outro lado da atual Rua Frei Luís. Finalmente, em 1939, a Administração passa a se denominar Editora Vozes Ltda.

À semelhança da comunicação ele-trônica de hoje, também a Vozes, a partir das duas faces de seu editorial: a cultural e a religiosa, leva o nome de Petrópolis, particularmente dos frades ligados ao Instituto, para os mais distantes recantos. Através da editora, os frades promovem uma campanha pela boa imprensa, esta-belecem contato com inúmeros autores, editam periódicos, dos quais a Revista Eclesiástica Brasileira (antiga Cor), Gran-de Sinal (antiga Sponsa Christi), Serviço de Documentação (SEDOC), além de par-cerias com os periódicos Estudos Bíblicos, Ribla e Concilium, que estão em pleno andamento.

Sempre em estreita relação com o Instituto, os frades lideram nos anos 60, no mundo, à exceção feita por Roma, a di-vulgação do Concílio Vaticano II. Em fun-ção da crônica do Concílio elaborada pelo então Frei Boaventura Kloppenburg, peri-to conciliar, da publicação dos documen-tos conciliares, em diversas versões, e de inúmeros estudos em forma de artigos e livros, com acerto, a Vozes é denominada Editora do Concílio. -30

Frei Inácio Hinte

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Em decorrência de toda a atividade edi-torial, ganha o acervo da Biblioteca, ao mes-mo tempo em que esta lhe serve de suporte.

Alguns nomes se destacam:Frei Pedro Sinzig (+1952), também

ele Diretor, a partir de 1908, muito ativo, animador da Liga da Boa Imprensa e do Centro da Boa Imprensa, a fim de imple-mentar a comunicação impressa e o cine-ma e direcioná-los de acordo com valores cristãos. De sua pena, 37 obras de lite-ratura, história e arte, e 67 composições musicais – e com a execução de uma de-las os Canarinhos nos brindam esta noite; fundador, em 1941, da Revista de Música Sacra, única em seu gênero no país – hoje não mais editada.

Frei Tomás Borgmeier (+ 1975), di-retor de 1941 a 1952, há pouco home-nageado neste espaço pelo XX Simpósio de Mirmecologia e I Encuentro de Mir-mecologistas de las Américas, além de renomado entomologista e fundador da Revista de Entomologia (extinta), tam-bém o é da Revista Eclesiástica Brasileira e da Sponsa Christi, revista de espiritua-lidade inicialmente para religiosas e hoje para todos os interessados, sob o nome de Grande Sinal. [Leia mais na p. 23]

Frei Ludovico Gomes Mourão de Castro (+1992), diretor da Editora, forma-do em Teologia, destacado administrador, clarividente e corajoso editor nos tempos do Concílio Vaticano II e da restrição à im-prensa no Brasil, destacando a conjuga-ção entre o editorial cultural e o religioso.

Iniciativa 4: Formação teológicaÉ inegável que toda a atividade, en-

quanto resposta a um chamado, traz, por

um lado, o incansável desejo de conhecer e compreender quem chama e, por ou-tro, a dedicação em anunciar seu nome. Dito de outra forma, este dinamismo se expressa, por um lado, no estudo e estu-do acadêmico, e por outro, na evangeli-zação. Estudo e estudo acadêmico, como resposta ao chamado e apelo para buscar a razoabilidade da fé; evangelização – di-vulgação explícita e atuação pela carida-de –, como resposta ao envio.

E mais: uma vez que foram enviados jovens em estágio formativo, já em no-vembro de 1896 tem início a atividade propriamente teológica, que naqueles tempos, informais, denomina-se Huma-nidades.

O estudo teológico decorrente da própria vocação e da presença de jovens frades a serem iniciados, ou seja, a bus-ca da razoabilidade da fé, é o segredo da visibilidade do atendimento pastoral, da ação litúrgica, da promoção social princi-palmente através da Escola Gratuita São José, da comunicação religioso-cultural através da Editora Vozes, e da instituição que, aos poucos, ficaria conhecida como Instituto Teológico Franciscano. Durante pouco mais de 100 anos o centro físico de oração e reflexão é o Convento do Sa-grado. Gerações se formam e renovam a atuação franciscana e da Igreja no Sudes-te, alcançam e ultrapassam as fronteiras do Brasil, difundindo-se suas vozes um pouco por toda parte, através de assesso-rias, da pregação, da atividade literária e outras.

É uma honra lembrar brevemente alguns expoentes que exemplificam a determinação pelo estudo acadêmico, como caminho da razoabilidade da fé e da ação:

Frei Mariano Wintzen (+ 1943): es-tudioso, erudito e dedicado professor de Teologia sistemática, bem como de Exe-gese, Liturgia, Homilética, Teologia pas-toral, além de músico e reitor. Polivalen-

te, sabe harmonizar estudo e atividade pastoral: a história da comunidade de fé N.S. Auxiliadora, do Bingen, bem como a de S.J. do Meriti, na Baixada Fluminense e arredores, que o digam! Amava tudo o que fazia e, por isso, fazia-o bem, com entusiasmo e vice-versa. Admirador de Duns Scotus.

Frei Aleixo Voelkert (+1957), profes-sor de Teologia moral e Direito canônico, por 23 anos. Lúcido, seguro, de profun-do sentir humano e caridoso, ligou seu nome à assessoria moral; na REB está a marca do estudo de questões de teologia pastoral.

Frei Mateus Hoepers (+1983), for-mado em Exegese bíblica, também lecio-nou outras disciplinas teológicas, como Direito canônico, Teologia fundamental e moral. Mas é na área bíblica e na atuação junto à Ordem Franciscana Secular que se distingue. É dele a tradução do NT di-retamente do grego. Junto com Frei João José Pedreira de Castro, Frei Simão Voigt (+ 2002) e outros, é um dos expoentes do ensino da Sagrada Escritura e da difusão da Palavra de Deus.

Frei Constantino Koser (+2000), re-conhecido professor de Teologia e de Mariologia (sempre com acento francis-cano-escotista), incentivador do estudo e organizador da biblioteca que leva seu nome; Ministro geral da Ordem dos Fra-des Menores e Padre conciliar, de proje-ção nacional e internacional.

Frei Boaventura Kloppenburg (+2009), ardoroso defensor da fé católica, perito do Concílio Vaticano II, eminente divulgador do mesmo pela imprensa e pela palavra;

Frei Constantino Koser

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participante de Sínodos, de Conferências do Celam, exímio e reconhecido professor de Teologia sistemática, fecundo escritor, tam-bém de projeção nacional e internacional.

Segmento II: Do final do século XX aos inícios do século XXI.Constatação 1: A marca deste segmento

A partir das décadas de 50 e 60 do século passado, foi tomando corpo a ne-cessidade de se buscar uma melhor ade-quação de espaço físico para as diversas iniciativas abrigadas em torno do Sagra-do. As estruturas físicas existentes já não comportam adequadamente a atividade acadêmica, a biblioteca, o Convento – su-per lotado –, a Editora Vozes, a Paróquia do Sagrado, a Escola e o Coral e o Instituto dos Canarinhos. Além da própria evolu-ção social, a renovação conciliar e o nome já granjeado pelo conjunto da atividade dos frades de Petrópolis contribui para atrair estudantes de outras entidades re-ligiosas, franciscanas ou não, masculinas e femininas. Além disso, do final da déca-da de 1960 até meados dos anos 80, ao Curso de Teologia foi somado também o de Filosofia. Por isso, cerca de 160 estu-dantes ocupam os espaços físicos, que eram os de 1920 e de 1930. Mas, além da equação física, assim como foi o Vaticano II para a Igreja, uma re-significação das iniciativas embala os sonhos. Constatação 2: Desfechos

Como desfecho desse quadro e dessa perspectiva, a solução aos poucos encon-trada é a seguinte: a) O Curso de Filosofia é novamente transferido para Curitiba, especificamen-te para Rondinha-Campo Largo, a 30 km da capital, num espaço novo, amplo e a partir de um conceito mais personaliza-do, traduzido na forma de se morar em módulos. b) Para a Escola Gratuita São José e o Instituto dos Meninos Cantores – os Ca-narinhos –, aos poucos, constroi-se nova,

ampla e adequada

sede à Rua Santos Dumont. Posterior-mente, como já foi acenado, Escola e Instituo dos Canarinhos são agregados à rede educacional Bom Jesus, de Curiti-ba, sob nova denominação: Bom Jesus--Canarinhos. O Instituto dos Canarinhos, mantém sua tradição, mas não é mais diretamente administrado pelos freis; e a Escola, dos frades tem a orientação geral que lhe vem de Curitiba.

c) A Paróquia do Sagrado ganhou feições mais definidas de paróquia e foi redimen-sionada em sua extensão, com a criação das paróquias de Santa Rita, do Castrioto, e de São Judas Tadeu, do Mosela.

d) A Editora Vozes, depois de um ensaio em função de uma maior autonomia em relação ao Instituto de teologia, voltou ao elo original que a relaciona estreitamente ao Instituto – são frades professores que a administram – e, por outra, encontra na nanotecnologia e na informática uma so-lução técnica e espacial para permanecer, como editora e gráfica em seu primitivo espaço.e) O Instituto Teológico Franciscano, jun-tamente com o corpo de professores, após acerto com os Cônegos Premonstra-tenses e as devidas adaptações, remode-lações e acréscimos de estrutura física no antigo colégio São Vicente, passa a nele dispor de sua sede própria, com novas e amplas dependências, em particular para a biblioteca. Em função de uma melhor distinção de atividades e autonomia, foi criada a paróquia Santa Clara, no territó-

rio do Instituto e confiada aos frades do mesmo, mantendo assim, também neste aspecto, a relação entre estudo e intera-ção eclesial e social.

Pertencente à Província Franciscana da Imaculada Conceição, com sede em São Paulo, o Instituto abriga a Faculdade de Teologia, que, a partir de 2006 é reco-nhecida pelo MEC e afiliada à Pontifícia Universidade Antonianum, de Roma. Por isso, os diplomas expedidos são reconhe-cidos pelo MEC e pela Comunidade Euro-peia, em função do Acordo de Bologna. O conceito 4, sobre 5, emitido pelo MEC à Faculdade de Teologia significa: mui-to bom. Além da Faculdade, o Instituto mantém o Curso do Master em Evange-lização, um curso intensivo de 8 meses; mantém o curso lato sensu em Espiritua-lidade, Ecologia e Educação, nos meses de janeiro; mantém cursos de extensão, semestrais e noturnos, abordando temas de interesse religioso-cultural. Promove noites culturais, como esta, com temáti-cas de fundo cultural-religioso. Todos os cursos são abertos à participação de to-dos e ministrados pelos professores do Instituto, com a participação de profes-sores de outras entidades ou convidados.

O Instituto mantém uma filosofia de estudo e ensino aberta ao diálogo ecu-mênico, interreligioso e social. Mantém a perspectiva de interagir sempre mais com a Conferência Franciscana dos Menores do Brasil e com a Família Franciscana do país; de maneira semelhante, o mesmo vale em relação a outras iniciativas de in-teresse da sociedade e da Igreja, como, p. ex., a possibilidade de um curso lato sen-su de liturgia e música sacra.

Conclusão: algumas observaçõesa) Evolução. O percurso destes 115

anos confirma que o primitivo Centro de estudos, o atual Instituto Teológico Fran-ciscano, evolui. Até o final da década de 1910, a formação teológico-pastoral tem acento caseiro, conta com os recursos -32

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humanos possíveis, conta com o exemplo prático; a partir desta data constata-se a decisão de buscar preparo acadêmico fora do país para os professores – polí-tica que continua ainda hoje, embora também haja possibilidades no Brasil e se faça uso delas. Ademais, no decorrer destes 115 anos, a composição humana dos professores e dos estudantes evolui da predominância alemã para uma qua-se exclusividade de brasileiros; o Instituto evolui de uma escola teológica voltada exclusivamente para a formação dos pró-prios quadros, para uma escola teológica voltada também para estudantes de ou-tras entidades franciscanas, congrega-ções, clero secular e leigos, do Brasil e do exterior; evolui de um centro de estudos onde só estudavam homens, para um centro acolhedor de homens e mulheres, clérigos a leigos; evolui de uma escola teológica particular, para uma faculdade eclesial e pública.

b) Caminho compartilhado. Embora aqui pouco abordado, o pensar teológico acompanha o Concílio Plenário Latinoa-mericano (1899), o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-65), as Conferências latimoamericanas de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007); passa por acentos teológico-pastorais diversos, como o da reconquista da sociedade através da Ação Católica, o do diálogo inspirado pelo Vati-cano II, o da teologia da libertação, o do amplo pluralismo religioso e social e o da missão continental de Aparecida. Perpas-sa estes tempos e acentos, sempre, po-rém, com um norte: uma grade curricular que espelha a opção de aliar disciplinas teológicas com humanas, espírito científi-co com franciscanismo, fidelidade à tradi-ção teológica com constante atualização.

c) Caminho integrado. Proposital-mente, não nos limitamos a evocar pro-

fessores, estudantes, o Instituto Teológi-co em si mesmo e, o mais importante, a atividade acadêmica propriamente dita. E isto, porque estamos convencidos de que, se assim fizermos, teremos, sim, al-gum resultado didaticamente bem defini-do, mas, isolaríamos os estudos e a pró-pria instituição de seu contexto vital. Pois, nenhum professor é exclusivamente pro-fessor; nenhum estudante é somente es-tudante, embora se possa assinalar dife-renças. Uma atividade está estreitamente ligada à outra. Romper esta relação é romper o elo vital entre modo de vida e estudo, entre estudo e evangelização. Se assim fizermos, cremos que retiraríamos do Instituto uma sua característica pró-pria, diminuiríamos o alcance de uma ex-pressão popular, pela qual, de diversos e

distantes lugares, muitas pessoas caracterizam os frades, professo-res e estudantes incluídos, assim: “Os frades de Pe-trópolis”, “Os fran-

ciscanos de Petrópolis”, ou simplesmen-te, “Petrópolis”. Parece que aqui temos a indicação de um conceito abrangente, de uma linha de pensamento e de ação co-muns, de uma determinada eclesiologia comum, de uma determinada maneira de estar com as pessoas, achegada aos tem-pos e aos lugares culturais e sua evolução, própria do carisma franciscano. Além dis-so, os frades moram, por longos tempos, num mesmo conjunto físico, e estudantes e professores levam, basicamente, o mes-mo estilo de vida. Cre-mos, pois, que esta integração e interação, este espírito de família e de equipe de estudo e trabalho jus-tifica nossa opção de situar o Instituto em seu contexto vital, o estar como fraterni-dade no contexto da sociedade humana, na sua pluralidade, e com ela interagir. É esta uma opção interpretativa que faze-mos em função da atividade acadêmica, social e eclesialmente situada.

d) Continuidade na mudança. De-pois de 115 anos, o Instituto tem a grata satisfação de constatar que, evoluindo, é movido pelo mesmo vigor e pela mesma clarividência iniciais. Partindo do pressu-posto de que a fé interpela o intelecto, busca através de boa qualidade de estu-do e de ensino acadêmicos, fazer jus à sua vocação franciscana e eclesial de buscar a paradoxal razoabilidade da fé e de, assim, contribuir para o bem do ser humano e de toda a criação.

Ao ser transferido para esta sede, o Instituto ganha maior autonomia em re-lação às outras iniciativas evangelizadoras dos frades, mas, através da reflexão aca-dêmica, continua sendo um privilegiado parceiro na busca de plausibilidade da evangelização seja dos frades, da Igreja e de toda pessoa de boa vontade. A au-tonomia é, pois, relativa. Antes, tende a reforçar as bases da evangelização à me-dida que mantém e reforça o bom nível do estudo e, portanto, tende a reforçar os laços que interligam os frades e, porque não, toda a ação da Igreja católica e de pessoas amantes da paz e do progresso humano. A autonomia convida o Institu-to a permanecer em sua raiz franciscana, e também por isso, a ouvir todo ser hu-mano e toda criatura e a prestar-lhe sua colaboração em vista do Reino.

Portanto, se, num olhar retrospecti-vo, o Instituto passa por tantos momen-tos diferentes e sabe situar-se em todos eles, estar neles e neles ser fermento de renovação, então há fundada esperança de que poderá sê-lo no presente e no fu-turo. Por isso, a inspiração de 115 anos é

suficientemente forte para reequilibrar eventuais he-sitações e confirmar a força criadora e integradora do Evangelho.Frei Elói Dionísio Piva, OFM

(Historiador)

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Curso de Extensão

No dia 06/09 o curso de extensão “A Pa-lavra de Deus na Vida e na Missão da Igre-ja” reservou, aos participantes, o tema: Sagrada Escritura, inspiração e verdade; apresentado por Frei João F. Reinert* e Frei Clauzemir Makximovitz*.

Este tema nos apresenta grandes ques-tões intrínsecas e problemáticas muitas vezes difíceis de serem assimiladas logo num primeiro contato, visto a seriedade do tema e as inúmeras consequências de-correntes de qualquer interpretação as-sumida. Frei Clauzemir iniciou a primeira parte da noite dando o primeiro grande passo para uma compreensão destes dois axiomas: tomar consciência de que a Bí-blia, por ser inspirada por Deus, exerceu sempre uma grande inspiração no povo.

A Bíblia não é um documento histórico, mas reflete a consciência do povo em seu contexto histórico na busca de sua fideli-dade à revelação da Aliança de Deus. Era necessário fixar esta consciência e na raiz destes escritos está a vontade do povo de ser fiel e de continuar e conservar o que expressasse a consciência do povo. Isso explica o porquê de tantas repetições, incertezas, contradições e inconsistências histórias. Os escritos eram uma espécie de diário ou memória do povo e funciona-vam como catalisadores. Eram marcos, in-dicando a direção da estrada que o povo ia seguindo.

Pelos escritos, tornava-se cada vez mais claro e transparente o desígnio de Deus na história do povo e crescia nele a

consciência: nossa

vida e história estão nas mãos de Deus, movi-das por Ele para um futuro certo. Compreende-se assim a grande inspiração que esses escritos co-meçaram exercer no meio do povo e a autoridade sempre maior que foram adqui-rindo, por cau-sa do valor que representavam para a vida de fé do povo. Aponta-

vam a fonte, o eixo e o objetivo da vida. Mas nem todos os escritos tinham o mes-mo valor. Os que mais de perto exprimiam a sua fé acabaram sendo reconhecidos como Livros Santos (1Mac 12,9) e como Sagrada Escritura (2Tm 3,15).O olhar de fé tira um raio-X e revela algo bem real, que a fotografia comum da ciência não revela nem consegue revelar. Ele olha por trás das palavras e dos fatos.

Essa fé na autoridade divina dos escri-tos cresceu lentamente. Num dos últimos livros do Novo Testamento, 2Tm 3,16, aparece um elemento novo que completa essa longa evolução. Aí se afirma, pela pri-meira vez, que toda a escritura é inspirada por Deus. Mas enfim o que vem a ser na mente do NT essa inspiração divina, essa ação do Espírito Santo que influiu até no ato de escrever?

O fim que chegou explica o começo, ou seja, a resposta é o Espírito de Deus que conduz para Cristo pela força do Espírito que opera em toda a vida. Assim sendo a Boa Nova é para todos e a salvação é também universal.

Na humanidade inteira existe o traçado da inspiração a ser descoberto pelo ho-mem. Entretanto, não há um caminho de-finitivo e exclusivo... Um critério seguro e acabado... Deus explicitou um dentre tan-tos possíveis traçados históricos para le-var os povos ao Cristo, mas não é o exclu-sivo, daí a Boa Nova ser a todos os povos.

Na segunda parte, Frei João F. Reinert apresentou a temática com um olhar

atento para a questão da verdade, olhan-do as implicâncias de uma grande ques-tão: os livros são inspirados por Deus por-que ajudam na vivência da fé; ou ajudam na vivência da fé porque são inspirados? Uma sutil diferença.

A Bíblia tem autoria de Deus e uma di-mensão de autoria humana. “Na redação dos livros sagrados Deus escolheu ho-mens, dos quais se serviu fazendo-os usar suas próprias faculdades e capacidades, a fim de que, agindo Ele próprio neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores, tudo e só aquilo que Ele próprio quisesse” (DV 11). A inspiração não eli-mina nem substitui a plena, livre e cons-ciente atividade do autor humano. Não é ditado, mas uma realidade plenamente divina e humana, ligadas, mas não confu-sas. Deus é o autor principal, determina o conteúdo, mas leva em conta a histori-cidade humana, os gêneros literários, as circunstâncias.

“Portanto, já que tudo o que os auto-res inspirados ou os hagiógrafos afirmam deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista da nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (DV 11). Mas a Verdade é uma construção de um proces-so ao longo da história. Vai se aperfeiço-ando. A Bíblia não pretende revelar-nos os segredos da natureza. Ela nos dá um ensinamento sobre as origens da criação, do ser humano, como também do fim do universo. Daí a importância da herme-nêutica que é a de fazer a distinção entre mensagem religiosa e o veículo cultural portador desta mensagem.

Aí está a inerrância da Bíblia. A escritura inspirada é aquela que nos é transmitida e entregue pela Igreja como comunidade interpretante e que nos ajuda a ser fiéis a Deus.

* Frei João F. Reinert é doutorando em Teologia e professor de Teologia sistemática na Faculdade de Teologia – ITF.* Frei Clauzemir Makximovitz é frade franciscano, graduado em Filosofia e estudante do Curso de Teologia – ITF.

A Palavra de Deus e o Livro

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No dia 13 de setembro o curso de extensão sobre a Sagrada Escritura teve como tema “A Bíblia Cristã e o Novo Testamento”, por Frei Antô-nio Everaldo Palubiack Marinho e Frei Marcel Freire da Silva.

O Título Novo Testamento pro-vém de um oráculo de Jeremias que fala de uma “nova aliança” (Jr 31,31). Na tradução chamada Sep-tuaginta (dos Setenta sábios), tor-nou-se nova disposição, novo tes-tamento: “Virão dias – oráculo do SENHOR – em que firmarei com a casa de Israel e a casa de Judá uma aliança nova. Não como a aliança que firmei com seus pais no dia em que os tomei pela mão e os liber-tei do Egito, aliança que eles mes-mos romperam, embora eu fosse o seu Senhor – oráculo do SENHOR! Porque esta é a aliança que fir-marei com a casa de Israel depois desses dias – oráculo do SENHOR.

Colocarei minha lei no íntimo e es-creverei em seu coração. Então eu serei seu Deus e eles serão meu povo. Eles não te-rão mais que ins-truir seu próximo ou irmão, dizen-do: ‘Reconhece o SENHOR!’, porque todos me conhe-cerão, dos meno-res aos maiores – oráculo do SE-NHOR – porque perdoarei sua cul-

pa e não mais me lembrarei de seu pecado” (Jeremias 31, 31-34).

A novidade da Aliança decorre de três aspectos: o primeiro diz da iniciativa divina do perdão dos pecados (Jr 31,34; Ez 36,25.29; SI 51,3-4.9); o segundo da responsa-bilidade e da retribuição pessoais (cf. Ez 14,12ss.); e o terceiro diz da interiorização da religião, onde a Lei deixa de ser carta puramen-te exterior para tornar-se inspira-ção que atinge o “coração” do ser humano(Jr 31, 33; 24,7; 32,39), sob a influência do Espírito de Deus, que dá ao “homem um coração novo” (Ez 36,26-27; SI 51,12; cf. Jr 4,4ss.) capaz de “conhecer” a Deus (Os 2,22ss.). Esta aliança nova e eterna, proclamada novamente por Ezequiel (Ez 36,25-28), pelos últimos capítulos de Isaías (Is 55,3; 59,21; 61,8; cf. Br 2,35) e vivida no SI 51, será inaugurada pelo sacrifí-cio do Cristo (Mt 26,28), sua reali-zação será anunciada pelos apósto-los (2Cor 3,6; Rm 11,27; Hb 8,6-13; 9,15s.; 1Jo 5,20ss.).

Em outras palavras, como outro-ra no Sinai o sangue das vítimas selou a aliança do SENHOR com o

seu povo (Ex 24,4-8), assim sobre a cruz o sangue da vítima perfeita, Jesus, selaria a “nova” aliança en-tre Deus e os seres humanos (Lc 22,20), a qual os profetas tinham anunciado (Jr 31,31) [nota da Bíblia de Jerusalém].

Desde o início da pregação de Jesus, os ouvintes ficam impres-sionados pela novidade do seu ensinamento: “Ficaram todos tão espantados que perguntavam uns aos outros: ‘O que é isso? Uma doutrina nova, dada com autorida-de! [...]’” (Mc 1,27). “Todos se pu-seram a falar dele e, maravilhados das palavras cheias de graça que saíam de sua boca, diziam: ‘Não é este o filho de José?’” (Lc 4,22). As-sim é chamado de Novo Testamen-to conjunto de escritos que expri-me a fé da Igreja na sua novidade: o testemunho a respeito de Jesus de Nazaré deixado pelos Apóstolos e seus discípulos imediatos: os do-cumentos que a Igreja dos primei-ros séculos, guiada pelo Espírito, reteve como referência e expres-são fundamental da revelação de Deus que se deu em Jesus de Naza-ré como Cristo (Messias), Filho de Deus e Salvador do mundo.

Os Escritos do Novo Testamento são 27 livros, que podemos dividir em quatro partes, seguindo a cons-trução paralela do Antigo/Primeiro Testamento, da Bíblia cristã:

A Palavra de Deus e o Livro

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A primeira parte do NT é consti-tuída pelos evangelhos que levam os nomes de Mateus, Marcos, Lu-cas e João, e os Atos dos Apósto-los, que são na realidade a segunda parte do Evangelho segundo Lucas.

As Epístolas Apostólicas ou po-pularmente conhecidas como “as Cartas” estão organizadas das se-guintes formas: Romanos, 1 e 2 Co-ríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Filêmon (que são as Epístolas Paulinas); e, He-breus, Tiago, 1 e 2 Pedro, 1, 2 e 3 João, Judas (que são as Epístolas Católicas).

Para escrever o Novo Testamen-to os autores bíblicos utilizaram a língua grega, esta usada também para as traduções do Antigo Testa-mento, sobretudo as dos Setenta (Septuaginta).

O grego utilizado era o koiné, ou seja, a língua única, comum, que substitui no período de Alexandre Magno (333 a.C.) até cerca de 500 d.C., a pluralidade original dos vá-rios dialetos gregos. Trata-se do grego helenístico que era falado e escrito no tempo do helenismo (a cultura que se formou em consequ-ência das conquistas de Alexandre Magno, por uma influência recípro-ca das civilizações oriental e grega). A língua grega (a koiné) por uma simplificação paulatina em compa-

ração com o grego clássico, e, por uma pluriformidade bastante rica foi apta para se tornar a língua in-ternacional do período helenístico, facilitando certamente a expansão do cristianismo.

No Novo Testamento, o uso do grego varia muito de um autor para outro: Lucas, de quem esta era pro-vavelmente sua língua materna, sabe escrever um grego literário, culto, como aparece no prólogo de seu evangelho e diversos trechos dos Atos dos Apóstolos (também escrito por ele). O grego da epísto-la aos Hebreus é melhor ainda, mas com influência da tradução Septua-ginta. Na mesma qualidade, mais ou menos, estão Tiago e 1Pedro; Mateus escreve numa linguagem digna, mas de feição mais semítica; Marcos tem um estilo vivo e mais “popular”. No Livro do Apocalipse, cujo autor escreve um grego muito curioso, o grego de João faz uma impressão pouco grega, com estilo curiosamente religioso. Paulo, nas-cido na diáspora e provavelmente desde menino familiarizado com a

língua grega, escreve uma lingua-gem mais emocionada e matizada e domina muito mais do que João os recursos do grego.

A Constituição Dogmática “Dei Verbum”, Documento do Concílio Vaticano II (1965), assim trata da Sagrada Tradição e da Inspiração Divina da Sagrada Escritura: “Pela Tradição [pregação apostólica, en-sinamentos dos Santos padres] torna-se conhecido à Igreja o ‘Câ-non completo dos livros sagrados’, e as próprias Sagradas Escrituras são nela cada vez mais profunda-mente compreendidas e se fazem sem cessar atuantes [...] A Santa Mãe Igreja, segundo a fé apostóli-ca, tem como sagrados e canônicos os livros completos tanto do Antigo como do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, es-critos sob a inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20,31; 2Tm 3,16-17; 2Pd 1,19-21; 3,15-16), eles têm em Deus o seu autor e nesta qualidade foram confiados à Igreja”.

Paralelo entre Antigo ou Primeiro Testamento – Novo ou Segundo Testamento Antigo Testamento Novo TestamentoI Fundamentação Torá/Lei (5 Livros) Evangelhos (4 Livros)II passado Livros históricos (16) Atos dos Apóstolos (1)III presente Livro sapienciais (7) Epístolas apostólicas (21)IV futuro Livros proféticos (18) Apocalipse (1)Total (46) (27)

*Frei Antônio Everaldo P. Mari-nho é doutor em Exegese Bíbli-ca e professor de Sagrada Escri-tura na Faculdade de Teologia – ITF.* Frei Marcel Freire da Silva é frade franciscano, graduado em Filosofia e estudante do Curso de Teologia – ITF.

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No sexto dia do curso de extensão A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja, tivemos a parti-cipação ilustre de Sua Ex-celência o Senhor Bispo Diocesano de Petrópolis, Dom Filippo Santoro*, falando sobre sua parti-cipação no Sínodo que precedeu ao texto da Ver-bum Domini, texto-base deste curso de extensão. Explanou a estrutura e o conteúdo do texto produ-zido e destacou algumas novidades nele presen-tes. Sobre o assunto, Dom Filippo também publicou um artigo na REB1 (Revista Eclesiástica Brasileira).

Em outras pala-vras, Dom Filippo discorreu sobre o que vem a ser esta denominação “Exortação Apos-tólica”, diferen-ciando-a de uma Encíclica, que é um

pronunciamento solene e abrangen-te sobre algum determinado tema; na Exortação Apostólica, ao invés, o Papa trata de algum aspecto mais especí-fico da fé; é distinta também de uma Exortação pura e simples e ou de ou-tras categorias de pronunciamentos. Na ocasião, estave em foco, porém, a Exortação Apostólica pós-sinodal, ou seja, produzida depois do sínodo dos Bispos (2008), Verbum Domini. Dom Fi-lippo falou de sua experiência no even-to do Sínodo, que o tocou de maneira profunda e feliz. Segundo Dom Filippo,

o Sinodo produziu grandes frutos e uma experiência belíssima de diálogo ecumênico e inter-religioso, bem como de renovação da fé, em suma, no que temos de mais comum e essencial: a Palavra de Deus em todos os aspectos da vida de fé, na vida da Igreja e na vida social em que todos estamos inseridos.

Em seguida, Dom Filippo Santoro apresentou a estrutura interna da Exor-tação, que compreende três partes: Verbum Dei (Palavra de Deus, em si), Verbum in Ecclesia (a Palavra, na Igreja), Verbum Mundi (a Palavra, no Mundo); 282 citações bíblicas e diversas citações dos Santos Padres da Igreja sinalizam a referência bíblica e patrística.

Dom Filippo destacou algumas ca-racterísticas de cada parte do docu-mento. Na primeira parte, retomando a constituição Dogmática Verbum Do-mini do Concílio Vaticano II, a “Palavra de Deus”, o destaque é dado ao Verbo encarnado. Muito mais do que palavras reunidas pelas comunidades de fé dos primeiros séculos sob a inspiração de Deus, a Palavra de Deus é a pessoa de Jesus Cristo, vivo e eterno no Pai e que se faz contemporâneo a nós através da história da Salvação, da pregação dos apóstolos, ou seja, a Tradição da Igreja. A missão dos exegetas e teólogos vai além da metodologia histórico-crítica, pois, com o auxílio deste instrumen-tário são chamados a expor a herme-nêutica teológica e espiritual, para que

o sentido da Palavra seja atualizado e experiencia-do.

Com relação à segunda parte, a Palavra de Deus na vida da Igreja, Dom Fili-ppo ressaltou a importân-cia da Liturgia e dos Sacra-mentos, local onde Cristo se faz contemporâneo a nós, dando-se totalmente a nós, em disponiblidade total.

Também destacou a ur-gente necessidade de pes-soas bem formadas para garantir um anúncio digno da Palavra de Deus, tam-

bém visto o uso da Palavra de Deus de forma ideológica e instrumental.

Na terceira parte, a Palavra de Deus na vida do Mundo, o palestrante res-saltou o aspecto de transformação e anúncio que a Palavra de Deus tem em si mesma e que deve estar em constan-te diálogo com todas as camadas so-ciais e também com as outras religiões.

Após uma pequena pausa, um segun-do momento foi dedicado a perguntas e inquietações dos participantes quan-to à temática e à vida da Igreja, em especial com relação a algumas inicia-tivas da Diocese de Petrópolis no que diz respeito à reconstrução de áreas afetadas pelas enchentes do início do ano em curso.1. Filippo SANTORO, “A Palavra do Senhor - Co-mentário à Exortação Apostólica Pós-sinodal do Papa Bento XVI”, em: Revista Eclesiástica Brasi-leira (REB) 71 (2011) 606-618.

A Palavra de Deus e o Livro

* Dom Filippo Santoro, natural da Itália, é graduado em Filosofia pela Universidade Católica Sagrado Coração, de Milão, Itália; e em Teologia, pela Pontifícia Universida-de Gregoriana, de Roma; doutor em Teolo-gia Dogmática, pela PUC Roma e Filosofia, em Milão. É Grão-Chanceler da Universi-dade Católica de Petrópolis; membro do Conselho Permanente da CNBB, como re-presentante do Regional Leste 1; membro da Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé da CNBB; Bispo Referência da Pastoral da Educação do Regional Leste 1 da CNBB.

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Ecumenismo

O segundo bloco do curso de ex-tensão “A Palavra de Deus na vida e missão da Igreja” da atenção espe-cial ao “Ecumenismo”, com o obje-tivo de apresentar a relação entre a Sagrada Escritura e outras religiões, bem como suas interpretações e in-fluência na liturgia e cultura. No dia 27 de setembro o pastor luterano Elton Pothin* palestrou sobre “Lu-teranos e a Bíblia”, com o objetivo de explicitar sobre que enfoque a Igreja Luterana lê e interpreta a Es-critura.

Primeiramente, deixou claro que no que se refere à Sagrada Escritu-ra, é essencial a meditação da Pa-lavra. Para tanto, a Igreja Luterana publica devocionais que permitem aos fiéis o cultivo desta dimensão. A partir da teologia desenvolvia por Martin Luther (Lutero), a Bíblia deve ser lida conciliando suas duas partes: o Antigo Testamento, que conduz à Lei (revelação do que é o pecado) e esta conduzindo a Cristo;

e o Novo Tes-tamento, onde Cristo oferece o perdão dos pe-cados, a Salva-ção. Neste sen-tido, faz parte das funções do pastor lutera-no ordenado pregar a Lei e o Evangelho em união.

Para Lutero, a explicação da Sagrada Escritura deve se sustentar sobre quatro pi-lares: Sola Scriptura, que é o fun-damento da fé. Este pilar surgiu em contraposição à Igreja Católica (Re-forma) que afirmava ter a Tradição também como fonte da Revelação divina. De acordo com este princí-pio, não há Revelação do Espírito Santo fora da Escritura. O segundo pilar é Solus Christus, que defende ser Cristo o único mediador. A Igre-ja não salva, ela é, somente, o lugar onde os fiéis se reúnem para bus-car a Cristo. O terceiro pilar é Sola Gratia, que afirma o dom de Deus vindo de Cristo, e que somente pela graça somos livres. Por fim, o último pilar é Sola Fidei, que defende que o homem só é justificado pela fé. As obras sozinhas não salvam, mas são parte integrante da fé.

Pastor Elton também explicou o símbolo criado por Lutero que se tornou o brasão da Teologia Lutera-na: a Rosa de Lutero. Neste brasão se vê representada através da cruz preta, Deus se revelando à humani-dade com Jesus; vê-se ainda o cora-ção vermelho, como o ser humano que tem Cristo como centro (a cruz está em seu interior); as cinco péta-las de rosa branca, representando a fé que dá alegria, consolo e paz

verdadeiros ao coração que se co-loca nela; o azul, apontando ao céu que devemos viver já aqui, o Reino de Deus; e, por fim, o anel de ouro, significando a graça e fidelidade de Deus para conosco, o precioso amor de Deus pela humanidade. A Teolo-gia Luterana é cristocêntrica, apon-ta diretamente para a cruz de Cristo.

Outro ponto abordado foi a hierarquia de va-lores quanto aos livros da Bíblia: em primeiro lu-gar estão os Evan-gelhos, seguidos pelos outros textos do Novo Testamento e, por fim, os livros do Antigo Testamento.

Para o estudo dos textos sagrados, a Igreja Luterana propõe o método de análise histórico-crítico, desen-volvido nos séculos XVII e XVIII, fruto das necessidades da época: crítica textual, literária, análise re-dacional, morfológica, e a análise pormenorizada do conteúdo. Além desta crítica textual, a Igreja tam-bém estabelece a importância da relação com o texto bíblico com a leitura sociológica que ela oferece, seu aspecto político, econômico e ideológico. Este método se faz ne-cessário porque, embora seja a Bí-blia como um sol que ilumina e traz a luz da Revelação, seu texto não é tão claro. Por isso, a resposta escri-turística requer estudo e dedicação a partir de Cristo, embora a partir dele tudo tenha se tornado claro.

* Pastor Elton Pothin é formado em Teologia pela faculdade de São Leo-poldo (RS). Conta com mais de dois anos de atividades apostólicas em Pe-trópolis junto a sua esposa Karin, que também é pastora. Além destes traba-lhos na cidade serrana exerceu outras atividades em outras comunidades.

Rosa de Lutero

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Diálogo inter-Religioso

Saul Stuart Gefter e Semyramys Frossard

Mishná e Talmud foram os temas abordados pelo Dr. Saul Stuart Gef-ter* e Semyramys Frossard Gonçalves Dias*, no oitavo encontro do curso de extensão – A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja. Assim, dentro da programação do curso, estamos no terceiro bloco, no diálogo inter-religio-so.

Saul iniciou sua exposição, discor-rendo sobre o principal pilar do judaís-mo, a Torá, e de sua importância para os judeus. “Um dos pilares do judaís-mo é o fato da Torá ser eterna e imu-tável palavra de D’us. Na Torá Escrita, D’us proclama a eternidade da Torá e de seus mandamentos: ‘as coisas en-cobertas pertencem ao Senhor, nosso D’us, porém as reveladas nos perten-cem, a nós e a nossos filhos, para sem-pre, para que cumpramos todas as palavras desta Lei’ (Torah) (Devarim/Deuteronômio 29:28)”, completou com uma passagem do Deuteronô-mio.

Apesar de o termo Torah abranger todos os fundamentos, leis e ensi-namentos do judaísmo, literalmente refere-se aos cinco livros que foram transmitidos por D’us, a Moisés no Monte Sinai. Os cinco livros são: Be-reshit (Gênese), Shemot (Êxodo), Vayi-kra (Levítico), Bamidbar (Números) e

Devarim (Deuteronômio), que com-põem o que conhecemos como a Torá escrita ou Torah she-Bichtav. A partir desta elucidação, iniciou-se a explica-ção acerca da codificação da lei oral, isto é, a formação da Mishná.

“Antes de fa-lecer, Moshé escreveu os 13 rolos da Torá e ensinou a Torá Oral ao profeta Josué bin Nun. A Torá Oral foi en-tão transmitida por Josué aos an-

ciãos de Israel; a seguir, aos profetas e, por fim, ao Sanhedrin, corte suprema de Israel, que tinha a missão de guar-dar, interpretar e legislar sobre todos os assuntos acerca das leis da Torá. Durante o período do segundo Tem-plo, o Sanhedrin codificou a Torá Oral. Essa codificação tornou-se conhecida como a Mishná. Uma das razões do por quê desse nome foi constituída pelo propósito de que a codificação da Lei Oral seria revista (em hebraico, Shaná) continuamente, até que fosse memorizada”, comentou Semyramys.

Na segunda parte da aula, Semyra-mys prosseguiu relatando os fatos até o processo de formação dos dois tal-mudes: o Talmud Bavli (Babilônia) e o Talmud Yerushalmi (Jerusalém).

Trezentos anos após a destruição do segundo Templo, o Rabi Yochanan re-digiu o Talmud de Jerusalém (Talmud Yerushalmi). Este Talmud basicamente trata das leis referentes à Terra de Isra-el, de âmbito mais complexo e oculto.

Isto, porque a sabedoria da Terra de Israel é maior e mais profunda do que a de outras terras. Os sábios da Terra de Israel, escreviam seus estudos de forma curta, sem muita explicação, e esta já era suficiente para entendê-los. Contudo, quando as pessoas falam do Talmud, geralmente não se refere ao de Yerushalmi (Jerusalém), mas sim ao Talmud Babilônico, também conheci-do por Guemará.

Em tempos remo-tos, os sábios da Torá estudavam a Lei Oral para, a seguir, fazer a análise de seu traba-lho através de discus-sões. Após ter sido compilada a Mishná, tais discussões – que se tornaram conhe-cidas como a Gue-mará – serviram para esclarecê-la. A Guemará foi transmitida oralmente e preservada durante cerca de 300 anos após ter sido escrita a Mishná. Quando surgiu claramente o perigo da Guemará poder ser esquecida, os dois maiores eruditos da época sobre Torá – Ravina e Rav Ashi – redigiram a Gue-mará por escrito. Com a ajuda de seus discípulos, nas academias de ensino da Babilônia, Ravina e Rav Ashi coleta-ram e ordenaram todas as discussões que compunham a Guemará. Esta compilação da Guemará – que incluía a Mishná – tornou-se conhecida como o Talmud Babilônico ou, em hebraico, Talmud Bavli. Foi finalmente publicado no ano de 4265 (505 a.C.). O Talmud, que literalmente significa “estudo” ou

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“aprendizado”, é, portanto, composto pela Mishná – um livro de Halachá (lei judaica, escrita em hebraico) e pela Guemará, o comentário sobre a Mish-ná (escrito em aramaico/hebraico).

O Talmud Bavlí (Babilônico) foi acei-to pelo povo judeu como autoridade máxima e suprema em todas as ques-tões sobre a religião e a lei judaica. As leis da Torá só têm vínculo legal se fo-rem lastreadas pelo Talmud.

Os palestrantes falaram ainda sobre Maimônides, os treze princípios da fé e a Mishnê Torá, obra magna do es-critor e uma das mais importantes e completas codificações da Halachá. Os palestrantes ainda lembraram de Beit

Yossef e a importância do Shulchan Arukh e de Raschi.

Por fim, Semyramys, com algumas intervenções de sr. Saul, falou sobre o judaísmo contemporâneo, deixando clara a abertura do judaísmo ao diálo-go. Concluíram com algumas palavras sobre os desafios das novas gerações: “Para essa nova geração, a prioridade não é defender o judaísmo. Não é em-preender uma missão salvadora. Não é construir-lhe cercas externas. É fazê--lo viver. Não servi-lo, mas servir-nos. O judaísmo de nosso tempo convive, sem fronteiras, com culturas, com identidades plurais, com comporta-mentos universalizados, cosmopoliti-

zados”, assegurou Semyramys.Semyramys e sr. Saul sintetizaram

que a atual compreensão do pensa-mento e da vida judaica deve se dar a partir da literatura da Mishná e do Talmud. “Recriar o judaísmo para que continue o mesmo, o grande desafio de cada geração é o de trazê-lo de vol-ta para dentro de nós mesmos, pois, em nossos corpos, mentes e espíritos individuais e comunitários, nós somos a única cerca, a única muralha que o protegerá como coisa viva, que o levará para onde formos como parte de nosso ser”, concluiu o sr. Saul Stuart.

Semyramys Frossard

* Saul Stuart Gefter, é natural de New York, USA, estudou Ciências, Administração de Empresas e Direito. Exerceu diversas atividades em assuntos políticos, econômicos, comerciais, auditorias, defensorias e trabalhos diplomáticos em geral. Veio para o Brasil em 1975. Atualmente é consultor Jurídico Internacional; Consultor e Diretor para Assun-tos Internacionais, SPAR – serviços; Pericial Aeronáutico e Marítimo do Rio de Janeiro. Participa de diversas associa-ções, sendo Diretor Executivo da Congregação Judaica P’Nei Or, em Petrópolis. Sr. Saul possui muitas publicações e outras atividades, prêmios e condecorações, além de dominar ao menos cinco línguas.

*Semyramys Frossard Gonçalves Dias, nasceu em Nova Friburgo, Rio de Janeiro, é graduada em Filosofia pela UCP Universidade Católica de Petrópolis, bacharelanda em Teologia pela Faculdade de Teologia do ITF. Dentre as ativida-des acadêmicas, é pesquisadora do CNPq em estética filosófica, antropologia, ética e sociologia. Atua como coorde-nadora de pesquisa de opinião pública.

No nono (18/10) dia de palestras do Curso sobre a Palavra de Deus, a Faculdade de Teologia/Instituto Teo-lógico Franciscano propôs a seus es-tudantes o contato introdutório com o livro sagrado de uma das maiores religiões do mundo: o Alcorão dos muçulmanos. Para este estudo, fo-ram convidados os palestrantes, Frei

Volney Berkenbrok*, professor de Estudo Comparado das Religiões na instituição e, ainda, Wassim Ahmad Zafar*, missionário da comunidade muçulmana Ahmadia do Brasil, se-diada em Petrópolis.

Logo de início, foi explicada a ori-gem do nome Alcorão, ou Corão. O termo vem da palavra “quran”, que

significa recitação, no caso, da Pala-vra de Deus. Segundo a tradição mu-çulmana, Deus se comunica através da Palavra ao profeta, que, por sua vez, a codifica em sinais (alfabetos) e em forma de livro. Se, para o cristão, Deus se fez carne, para o muçulma-no, Deus se tornou livro, através da Palavra de Deus.

Diálogo inter-Religioso

Frei Volney Berkenbrock e Wassim Ahmad Zafar

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A revelação de Deus, feita ao pro-feta Mohammad (ou Maomé) se deu em 4 etapas: no início de tudo, a Pa-lavra estava em Deus. Num dado mo-mento, os anjos compartilharam esta mensagem com os enviados/profe-tas (a primeira revelação é datada em 610 d.C.). Esta Palavra dada a eles deve ser transmitida aos seguintes (outros) tal e qual ela foi entregue ao profeta. Para fazê-lo, o profeta aco-lhe a Palavra e a coloca por escrito. Percebe-se, então, a partir deste de-senvolvimento, que o Alcorão é o fim do processo revelatório de Deus.

O processo de desenvolvimento do Alcorão foi relativamente rápido. A primeira revelação feita ao profeta Mohammad foi em 610 e até o ano 653 ainda não havia nenhuma co-letânea completa das profecias. Foi justamente neste ano que o 3º Cali-fa de Medina ordena a reunião por escrito de todas as recitações. É im-portante ressaltar o valor que o mu-çulmano dá à recitação das profecias do Alcorão, pois Deus se encontra na palavra, portanto, ela não pode ser alterada. Em 653, a vocalização da língua árabe ainda não havia sido fei-ta. Como poderia se preservar a pro-núncia da Palavra revelada? O alfabe-to poderia ser mudado, permitindo o acréscimo de vogais que garantiriam uma uniformização na pronúncia? Foi um longo processo de discussão e somente em 1923 o texto acabou sendo vocalizado e assim o texto pri-mitivo é aceito hoje.

Quanto à autoridade da Palavra de Deus do Alcorão, o muçulmano en-

tende que somente o texto em árabe antigo tem autoridade como tal. As traduções são interpretações de al-guém. Entende-se que a Revelação não é apenas o conteúdo da men-sagem, mas todo o texto, gramáti-ca, sintaxe. A primeira tradução do Alcorão só foi feita em 1143, para o latim; hoje, os textos continuam sen-do traduzidos, mas acrescenta-se no mesmo volume o original em árabe.

O texto do Alcorão é dividido em suratas (ou suras) que, ao todo, so-mam 114. Elas são organizadas das maiores às menores. Sua temática estende-se desde a defesa e con-fissão da fé, com afirmações sobre Deus e os anjos, passando pelas ce-lebrações, jejuns e formas de organi-zação social, como o direito familiar até normativas éticas e morais para os fiéis. O profeta Mohammad sa-bia diferenciar a Revelação de suas próprias interpretações sobre Allah (forma como Deus é nomeado, signi-ficando “o Deus único”).

Atualmente, o Alcorão é o livro árabe mais lido no mundo. Cada co-munidade tem sua própria interpre-tação do texto, embora, como já foi dito, seja conservada também a sua forma original. É costume, quando alguém se refere a qualquer um dos profetas muçulmanos, que expresse o seguinte desejo: “A paz de Deus es-teja com ele”. Jesus é um dos profe-tas e Maria é citada 34 vezes, como mãe de Jesus. Com relação ao Pro-feta Mohammad, não se acrescenta nenhum adendo, pois seu nome já significa “que Deus o abençoe e lhe

de a paz”. Quanto ao idioma da re-velação, o árabe antigo, entende-se que Deus o escolheu para revelar-se, uma vez que ele é considerado a mãe de todos os outros (esta é a Sabedo-ria de Deus).

No final, Frei Antônio Everaldo Pa-lubiak Marinho, tomando a palavra, agradeceu os palestrantes da noite e destacou algumas referências bási-cas, como: a religião muçulmana tem por missão mostrar o verdadeiro en-sinamento do Alcorão; por isso, a im-portância de seu estudo, observando seus ditos, a prática do Profeta e, ao mesmo tempo, seus seguidores sãos instados a praticar de uma forma cer-ta os ensinamentos do Livro sagrado e fazer boas obras (de misericórdia), por exemplo: reconhecer a dignidade de cada pessoa, indiscriminadamen-te. Enfim, é importante observar que o Alcorão é considerado a continua-ção dos outros livros divinos ou inspi-rados. Portanto, respeita-se todos os livros divinos anteriores.

* Frei Volney Berkenbrock, religioso franciscano, é doutor em Teologia pela Rheinische Friedrich-Wilhelm Universi-tät Bonn na Alemanha, redator respon-sável pela revista SEDOC, professor do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e leciona Ecumenis-mo, Estudo Comparado das Religiões, Teologia Sistemática VII: Pneumatologia e Teologia Sistemática II: Escatologiana na Faculdade de Teologia do ITF.

* Wassim Ahmad Zafar é missionário da Comunidade Muçulmana, Ahmadia do Brasil. A comunidade de Petrópolis é a única representante da Comunidade Ahmadia do Islã, no Brasil. A sede mun-dial da Comunidade fica em Londres, embora tenha sido fundada na Índia, em 1835, por Hazrat Mirza Ghulam. O Sr. Wassim veio acompanhado por seus dois filhos, Nadin e Ijaz, e por um mem-bro da Comunidade, Saquib.

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A Interpretação da Bíblia

No dia 25 de outubro o encontro do curso de extensão “A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja” tratou acerca da importância da Sagrada Es-critura para as primeiras comunida-des cristãs, nos primeiros séculos da Igreja, ou seja, no período patrístico. O palestrante foi o Pe. Ronaldo Fiuza Lima* que de forma geral se propôs a fazer uma síntese histórica da exegese nos primeiros séculos do Cristianismo, passando pela exegese dos autores do Novo Testamento até os Santos Padres, aqueles que estabeleceram as bases da doutrina e fé de nossa Igreja.

Segundo a Exortação Apostólica Verbum Domini, o Cristianismo não é uma religião do livro Bíblia, mas a re-ligião do Verbo. Entretanto, antes de o Verbo se fazer carne, Ele já havia se revelado através de um livro: o Antigo Testamento (tomado como um todo). Assim, a Sagrada Escritura é um ver-dadeiro tesouro escondido no campo, encontrado por aqueles que se propõe procurá-lo. Ela confere salvação, co-nhecimento, sabedoria, ciência. Ela é verdadeira “fonte de graça e doçura” (Orígenes, +250).

Os Pais da Igreja, cerca de dois mil au-

tores, são os comentadores da Sagrada Escritura dos sete primeiros séculos, estabelecendo-se como verdadeiras colunas da Igreja, pois fundaram as ba-ses do cristianismo posterior, de nossa fé e tradição. Se deles retirássemos a Bíblia, nada lhes sobraria. Seu trabalho fundamental é o estudo hermenêutico (interpretativo) da Sagrada Escritura, além de se destacar como pregadores, anunciadores do Verbo e do mistério da Encarnação.

É possível estabelecer claras dife-renças entre a exegética atual e a da patrística. A exegese atual busca so-bremaneira o sentido histórico, antro-pológico, cultural e literal, mantendo um rigor histórico-crítico e filológico. Já a exegese patrística busca o sentido através de alegorias; sua maneira de preservação dos fatos era o da memó-ria (Memoria Dei) e o simbolismo (eles

não possuíam a facilidade de preservar informações que temos atualmente). Ela se utiliza de “Uma espécie de suave intuição das coisas celestes mediante uma admirável penetração de espírito, graças às quais vão mais além nas pro-fundidades da palavra divina” (Pio XII, Carta Enc. Divino Afflante Spiritu). Sua exegese aponta, sobretudo, para um estilo de vida, para um aprofundamen-to catequético e teológico e uma orien-tação básica para a liturgia.

Há uma profunda dependência entre Cristianismo e Judaísmo, pois aquele é derivado deste. No início, aos olhos dos judeus, o cristão não passava de um herege, sectário da religião judai-ca. Como herança do Judaísmo, o Cris-tianismo assumiu os textos do Antigo Testamento e os interpretou sob outra luz: a da ressurreição de Cristo. Mui-tas festas cristãs são versões de festas judaicas, por exemplo, Páscoa e Pen-tecostes. Jesus, Maria, José e os após-tolos eram todos judeus. Os cristãos também reinterpretaram a expectativa messiânica judaica, relacionando-a à parusia (segunda vinda de Cristo). Por outro lado, há uma ruptura determi-nante: Jesus é o Messias esperado no Antigo Testamento (afirmação óbvia para os cristãos), mas para os judeus o Messias ainda é aguardado. Portanto, a Fé de Cristo nos une; a Fé em Cristo nos separa.

As primeiras relações de livros canô-nicos do Novo Testamento devem ser colocadas entre 51 a 95 d.C. No entan-to, a lista definitiva e completa dos li-vros canônicos, ou seja, dos que foram reconhecidos como referência para a Fé, foi estabelecida no segundo e no terceiro século. Neste trabalho, diver-sos livros foram excluídos, que são os apócrifos. Alguns destes livros, embora não incluídos no Cânon, são uma lei-tura lícita, edificante, importante para a piedade e instrução. Infelizmente, encontram-se entre outros textos com equívocos doutrinários (heresias). Sua composição se estende desde o séc. II a.C. até o séc. IV d.C. De forma geral,

“Segundo a Exortação Apostólica Verbum Domini, o Cristianismo não é uma

religião do livro Bíblia, mas a religião do Verbo”.

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um livro não é apócrifo, se representar uma tradição antiga ou apostólica, se contiver pureza doutrinária.

O próprio Jesus realizou um trabalho exegético ao citar as Escrituras, ao fa-zer uma releitura dos Profetas para os discípulos de Emaús (cf. Lc 24,25-27), ao explicar o texto de Isaías na sina-goga (cf. Lc 4,18s). Ele cumpre a Lei e proclama sua validade bem como a dos Profetas. Já Paulo e outros escritores neotestamentários interpretam as Es-crituras em outro nível, especificamen-te, relacionando o mistério de Cristo e da Igreja com os textos (cf. Jo 19,36; Hb 7,1ss; 1Pd 3,20s).

O período dos Pais Apostólicos tem início com Clemente de Roma (3º na sucessão apostólica). Ele apresenta se-melhanças ao método de Paulo e dos demais autores do Novo Testamento. Segundo ele, Abraão, Noé e Ló são exemplos de obediência; enquanto Abraão Jó e Davi são exemplos de hu-mildade. Inácio, outro Padre Apostóli-co, escreve textos sapienciais referen-tes a Cristo. Justino, Irineu, Tertuliano e Hipólito estendem a interpretação cristológica do Antigo Testamento a um número maior de textos, sempre iden-tificando neles “tipos” alegóricos de Cristo, contra os gnósticos e hereges.

A Escola de Alexandria também se destacou neste período, sendo um im-portante centro cultural da antiguida-de e possuindo a maior biblioteca de seu tempo. Desta escola, surgem Fílon de Alexandria, que fez uso da alegoria para explicar a Sagrada Escritura, base-ado no mesmo procedimento dos inte-lectuais gregos para explicar os mitos de Homero; Orígenes, que realizou um trabalho de comparação linguística en-tre os textos bíblicos (hexapla).

No século IV há também a Escola de Antioquia que surgiu como reação ao alegorismo alexandrino. Seu destaque se deve à valorização do literalismo. Marca característica desta Escola é a preocupação com a história, o caráter propedêutico do Antigo Testamento, compreendendo-o como etapa da His-tória da Salvação. Propôs uma mudan-ça no modo de ler o Antigo Testamento, reduzindo a interpretação cristológica de seus textos. Como representantes se destacam: Diodoro de Tarso (+394), João Crisóstomo (+408) e Teodoreto de Ciro (+466).

Entre estas duas escolas, há, pois, al-gumas claras diferenças. A de Alexan-dria defendia o sentido espiritual e mís-tico dos textos bíblicos, enquanto a de Antioquia, o sentido literal e histórico.

Entre os Pais Latinos, destacou-se São Jerônimo (+420). Profundo conhecedor do hebraico e do grego, ele foi o tra-dutor da Bíblia, conhecida como “Vul-gata”. Tinha amor à cultura clássica, mantendo-a, entretanto, subordinada à cultura bíblica. Explicou, versículo por versículo, os textos bíblicos. Para ele, o sentido histórico é fundamento do sen-tido espiritual. Jerônimo consagrou sua vida ao Verbo de Deus, que se fez letra antes de se tornar carne.

Santo Agostinho (+430) foi iniciador de uma nova concepção exegética. Para ele, Cristo é a chave para a correta interpretação de cada passo da Sagra-da Escritura. As diferentes partes en-contram sua unidade e coesão na úni-ca revelação do Verbo encarnado: no Antigo, o Novo está latente; no Novo, o Antigo está patente (evidente). Para ele, o critério de compreensão está na dupla caridade ou amor a Deus e ao próximo. Deus ama os seres humanos

para que estes reconheçam seu amor e procurem amá-Lo como convém.

Em suma, os padres ensinam acer-ca do contato religioso com a Sagra-da Escritura e uma comunhão com a experiência da Igreja. A Bíblia lhes era objeto de incondicionada veneração, argumento constante da pregação, alimento da piedade, alma da teolo-gia. Promoviam a comunhão eclesial, tornando claro o que era específico da identidade cristã: “Não acreditaria no Evangelho, se a autoridade da Igreja católica não me persuadisse a acreditar nele” (Santo Agostinho).

*Pe. Ronaldo Fiuza Lima, doutor em Teologia e Ciências Patrísticas pela Pontificia Università Latera-nense Roma, Itália, é presbítero na diocese de Petrópolis e leciona na UCP (Universidade Católica de Pe-trópolis) e na Faculdade de Teologia do ITF as disciplinas de Patrologia I: Pré-Nicena e Patrologia II: Pós--Nicena.

“Não acreditaria no Evan-gelho, se a autoridade

da Igreja católica não me persuadisse a acreditar

nele” (Santo Agostinho).

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A Interpretação da Bíblia

Na noite do dia 08 de novembro, o curso de extensão “A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja” ofere-ceu um estudo sobre a Interpretação da Bíblia na Igreja, hoje, com a parti-cipação de Frei Antônio Everaldo Palu-biack Marinho* – ITF e Frei Clauzemir Makximovitz*.

Frei Clauzemir, apresentou primei-ramente o “método histórico crítico”, método indispensável para o estudo científico do sentido dos textos anti-gos. Usado pelos estudiosos ao longo dos últimos cem anos. Na exposição destacou os seguintes pontos: Histó-ria do método; Princípios; Descrição; e, Avaliação. Em seguida, ele apresen-tou outros modos de como podemos abordar os textos sagrados, como exemplo: análise narrativa, canônica, sociológica, antropologico-cultural, psicológica e psicanalítica.

Além disso, também são possíveis algumas abordagens contextuais, tais como: a abordagem feminista e a abordagem da libertação que emer-ge de determinados contextos sociais como o da América Latina dos anos 70, a partir de um contexto de gran-de repressão militar. Nesse contexto surgiu o método proposto por Carlos Mesters, chamado de Leitura da Bíblia em Comunidade. Três são os passos básicos: 1- Servir o povo – Partir da re-

alidade; 2- Criar comunidade – Partir da fé da comunidade; 3- Conhecer a Bíblia- Respeitar o texto.

A partir desta perspectiva, observa-mos que Deus não fala somente no passado, mas continua falando hoje. Assim, “a Bíblia é a Palavra de Deus, Jesus está vivo e presente no meio de nós”. (Cf. “A Interpretação da Bíblia na Igreja”, Pontifícia Comissão Bíblica, Documentos 260, Vozes 1994, 30-83; 115).

Após essa apresentação dos méto-dos de leitura, Frei Antônio Everaldo propôs uma análise da passagem do Evangelho de Lucas (10,38-42), que relata o diálogo de Jesus com Marta e Maria.

Através de três traduções diferentes, de uma tradução literal e, ao mesmo tempo, confrontando com o texto gre-go, fez, com os participantes, um exer-cício de análise. Ele mostrou que a in-

terpretação do diálogo de Jesus com Marta e Maria, exige uma contextuali-zação e algumas considerações acerca da autoria e da intenção do redator.

A temática do serviço que caracte-riza fortemente esta perícope e que se relaciona diretamente a Marta e Maria, retrata um contexto bem pos-terior a Jesus, ou seja, a intenção do autor é a de ressaltar a importância da participação das mulheres no serviço (diakoni/a cf. v.40) às comunidades em que se localiza o autor (± 80 dC.) e não a da contraposição entre duas ati-tudes: o “serviço” e o “sentar aos pés do Senhor”. Um serviço que deve unir, ao mesmo tempo, a contemplação, a escuta da Palavra de Deus.

No final da apresentação, Frei Antô-nio Everaldo reforçou a necessidade (para se fazer uma boa interpretação) de um estudo sério que respeite o tex-to bíblico e a intenção do autor. Por isso, a necessidade de métodos, que devem ser estudados.

*Frei Antônio Everaldo Palubiack Marinho é doutor em Exegese Bí-blica e professor de Sagrada Escri-tura na Faculdade de Teologia – ITF.

*Frei Clauzemir Makximovitz é frade franciscano, graduado em Filosofia e estudante do Curso de Teologia – ITF.

Frei Antônio Everaldo Palubiack Marinho eFrei Clauzemir Makximovitz

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Liturgia

No penúltimo encontro (22/11) do curso de extensão “A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igre-ja”, o ilustre convidado Frei Mar-cos Antonio de Andrade*, trouxe aos participantes uma abordagem sobre a Palavra de Deus na Sagra-da Liturgia. Nas palavras do pales-trante, essa noite estava reserva-da para mostrar a visão que um liturgista tem acerca da Palavra de Deus e sua contribuição para a Teologia. Visto que ao longo deste curso muitas foram as visões par-tilhadas, de óticas, por vezes bem diferentes, de um elemento co-mum, a Sagrada Escritura.

Frei Marcos começou a exposi-ção reconhecendo a dificuldade de recolher material literário so-bre este tema, uma vez que ele se dilui em obras de outros assuntos. Mas para começo de conversa ele apresentou alguns “instrumentos litúrgicos”, livros usados na Litur-

gia cristã e alguns específicos da Igreja Católica Apostólica Romana. Por exemplo, o Lecionário, o Mis-sal, a Liturgia das Horas, Hinários, o Liber Usualis, entre outros.

A primeira constatação foi o fato de que a Sagrada Escritura como um todo guarda a memória do evento salvífico, a revelação de Deus. Sendo a Bíblia comunicação, ponto de referência, lugar de sal-vação, ontem, hoje e sempre, ela é memória que atualiza a história da Salvação. Por isso ela é o centro da vida Cristã, pois é Palavra de Deus. Assim, ela é o fundamento de toda ação litúrgica.

A partir desta ideia, Frei Marcos apresentou como a postura de um biblista é diferente da de um litur-gista no tocante à Bíblia. O biblista parte da questão sobre a Liturgia na Sagrada Escritura. O liturgis-ta, por sua vez, parte da questão sobre a Sagrada Escritura na Li-turgia. É uma diferença simples, mas com grandes implicações, que vistas em conjunto na Teolo-gia, confluem para uma realidade única, a celebração da Palavra de Deus. O Texto Sagrado é sincrô-nico e diacrônico, pois ele trata de um evento “primordial”, mas que se atualiza na história pelas

sucessivas repetições, memórias que são feitas nas celebrações. A liturgia, portanto, nasce da Palavra de Deus e é por ela modelada. As-sim conclui-se que somente na fé celebrante da Sagrada Escritura é que se chega à expressão máxima da Palavra de Deus. A isto se soma o caráter canônico que alguns tex-tos adquiriram justamente por seu uso litúrgico, embora isso não possa argumentar categoricamen-te em favor de textos feitos para a liturgia.

O palestrante ainda ressaltou a importância da Palavra de Deus na ação litúrgica não como um livro, mas como Deus que fala. Assim, na estrutura da celebração euca-rística católica, há duas mesas: a mesa da Palavra e a mesa da Euca-ristia. Não são duas coisas separa-das, mas dois momentos distintos que apontam para um mesmo ele-mento “fontal”, primordial e cen-tral, que é Cristo. Pode-se afirmar com toda a certeza que a Palavra de Deus é o fundamento de toda e qualquer ação litúrgica.

Frei Marcos Antonio de Andrade

* Frei Marcos Antonio de Andrade é frade franciscano, mestre em Liturgia e profes-sor na Faculdade de Teologia – ITF.

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Palavra de Deus e Cultura

No último encontro (29/11) do Curso de Extensão “A Palavra de Deus na Vida e Missão da Igreja”, Frei Elói Dionísio Piva* e Frei Mar-cel Freire da Silva* apresentaram a temática “A Palavra de Deus nas Ex-pressões Artísticas” visando estabe-lecer a influência dos textos bíblicos nos trabalhos artísticos no decorrer da história, em duas formas de ex-pressão artística especificamente: a pintura e a música.

Segundo a Verbum Domini nº 112, “a relação entre a Palavra de Deus e cultura encontrou expressão em obras de âmbitos diversos, parti-cularmente no mundo da arte. Por isso a grande tradição do Oriente e

do Ociden-te sempre e s t i m o u as mani-fe sta çõ e s a r t í s t i c a s inspiradas na Sagrada Escr i tura , como, por exemplo, as artes figu-rativas e a arquitetura, a literatura e a músi-ca. Penso t a m b é m na antiga linguagem e x p r e s s a pelos íco-nes que, p a r t i n d o da tradição

oriental, aos poucos se foi espa-lhando por todo o mundo”. Por esta razão, “a Igreja inteira exprime apreço, estima e admiração pelos artistas, ‘enamorados pela beleza’, que se deixaram inspirar pelos tex-tos sagrados; contribuíram para a decoração das nossas igrejas, cele-bração da nossa fé, o enriquecimen-to da nossa liturgia, e muitos deles ajudaram ao mesmo tempo a tor-nar de algum modo perceptível no tempo e no espaço as realidades in-visíveis e eternas”. Isso sem falar, na arquitetura riquíssima que vemos em nossas igrejas. A Igreja incenti-va, assim, uma formação adequada aos artistas para realizarem este im-

portante trabalho em prol da beleza e da fé.

As formas físicas em que impri-mimos os textos sagrados devem ser entendidas como que “supor-te” para a Palavra de Deus: o livro, o pergaminho, os rolos... Todas es-tas formas físicas são como que formas de expressão desta Palavra. No mundo atual, já temos os textos bíblicos presentes na internet, em aplicativos para ipads, celulares... Temos, ainda, os CDs e DVDs... De igual forma, a arquitetura, a litera-tura, a música e pintura também podem ser compreendidas como suportes (meios) para a ideia que o artista tenta expressar, são uma ver-são, sui generis, da Palavra de Deus.

A Bíblia relata a busca do ser hu-mano por Vida e o movimento de Deus para o encontro que se dá em Jesus. Este encontro estabelece verdadeira aliança de amor. A Bí-blia, assim, é suporte (carrega, traz, transmite) da humana experiência religiosa e do evangelho da graça de Deus. Esta experiência é anunciada, proclamada, repassada aos des-cendentes, reconstituída por estes, sempre de novo e de maneira nova: trata-se de uma Tradição viva.

A partir desta ideia da tradição viva é possível entender o erro da idolatria. É a confusão entre meio e mensagem. Ela se manifesta quan-

“A arte é o veículo que o artista tem de levar ao povo a Palavra de Deus”

Sagrada Escritura e Expressões Artísticas

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do alguém ou até uma coletividade se fixa na “roupagem”, no suporte, e não vai além deste, a seu sentido primeiro e último, à ideia ou ideal ou mensagem que o artista quer expressar. No caso da Palavra de Deus que inspira os artistas, estes a expressam em inúmeras formas: palavras (Bíblia, literatura), em pin-tura (iconografia), em sons (músi-ca), em construções (arquitetura)... Idolatria, assim, seria ficar na beleza das formas (estética) que a Palavra de Deus assume como canais, ne-cessários e relativos, tão somente e gloriosamente.

De forma geral, na pintura religio-sa cristã pode-se destacar duas gran-des tradições. Na Tradição Oriental, a opção estética é a da iconografia, que possui conteúdo próprio. Trata--se de uma reprodução gráfica em painel de madeira. Nota-se uma áu-rea sagrada que envolve este tipo de arte. A Iconografia floresceu a partir da liberdade e oficialização do Cristianismo, e recebeu influên-cia da história da região do Médio Oriente, como a passagem das Cru-zadas e invasão muçulmana. O ima-ginário fixou-se da imagem do Im-pério Cristão, cujos representantes e ambientes se refletem nos ícones ou são transferidos para Deus em termos de poder e distanciamento

(por exemplo, Jesus Pantocrator), embora estes também expressem ternura e bondade, a Beleza. Os ícones manifestam uma espiritu-alidade, um bem-estar de corpo e alma do artista, acreditando-se que o divino se utilizaria de suas mãos. Esta é a razão dos ícones não con-ter assinatura de autor. Na figura do Pantocrator, símbolo da Tradição Ortodoxa, Jesus integra masculino e feminino, o microcosmo e o ma-crocosmo. De pé, de corpo inteiro, está entre o céu e a terra; os anjos se aproximam com respeito, os ho-mens o reverenciam; a mão aben-çoa a terra; os dois dedos indicam a união do humano e do divino; os outros três, o Deus uno e trino. O ser humano por inteiro é templo do Espírito. No ícone está projetado ideal do ser humano: o que somos chamados a ser e o Cristo, manifes-tação no humano da plenitude do ser, a Beleza por excelência.

A Tradição Ocidental se concen-trará inicialmente na refeição (mis-sa) e sepultamento. Devido ao cli-ma de “fora da lei” será sobretudo simbólica, alegórica (para iniciados). Importa aqui a vida em comunidade dos que testemunham o Ressuscita-do. Com a oficialização do Cristia-nismo pelo Império Romano, a arte encontrou a liberdade e expansão (por exemplo, nas basílicas e cate-drais).

No final do milênio, a arte já ha-via definido o estilo de constru-ção de igreja (o românico, seguido como coroamento evolutivo de um padrão, o gótico...), uma forma de canto se estabelecera: o canto gre-goriano, música-símbolo deste pe-ríodo da história (e permanente). Como exemplo deste canto, temos o Rorate coeli, expressão da eter-na sede de redenção, de beleza, de vida do ser humano – um canto pró-prio do Advento.

Frei Elói ainda passou pelo Renas-

cimento e acenou para aspectos da pintura moderna que não teve tem-po para apresentar como planejara. Mesmo assim, através de uma rápi-da abordagem da arte no decorrer da história, permitiu aos alunos per-ceber as principais características estéticas de cada período, conju-gando sempre realidades materiais humanas e realidades invisíveis e eternas, ora prevalecendo uma so-bre outra – em linguagem plástica, dinâmica, controvertida, evocativa e bela.

A apresentação da noite sobre pintura sacra foi permeada por mú-sicas que acompanhavam e exem-plificavam de maneira própria os momentos artísticos, fazendo parte de um mesmo momento ou con-junto de vida que se expressa ar-tisticamente de diferentes formas. Tivemos, porquanto o tempo per-mitiu, a apresentação da peça com-posta por Leonard Bernstein sobre o Salmo 131; o Coro dos Escravos Hebreus, de Giuseppe Fortunino Francesco Verdi, Jesus alegria dos Homens, de Johann Sebastian Bach; o Kyrie da missa Papae Marcelli, de Giovanni Pierluigi da Palestrina. To-das as músicas foram contextuali-zadas, traduzidas e sintetizadas em sua temática e momento histórico--artístico por Frei Marcel.

* Frei Elói Dionísio Piva é da Ordem dos Frades Menores, Mestrado e Doutorado em His-tória Eclesiástica pela Pontifí-cia Universidade Gregoriana, Roma, Itália. Atualmente lecio-na na Faculdade de Teologia – ITF, responsável pela biblioteca da mesma e redator da REB.

* Frei Marcel Freire da Silva é frade franciscano, graduado em Filosofia e estudante do Curso de Teologia – ITF.

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Curso de Extensão

Frei Vitório Mazzuco cur-sou Teologia e Filosofia, em Petrópolis, e fez pós--graduação em Teologia Espiritual, na Pontificia

Università Antonianum, em Roma, obtendo o mes-trado. Sua tesina, publicada em forma de livro, leva por título: “Francisco de Assis e o modelo de amor cortês-cavaleiresco: elementos cavaleirescos na per-sonalidade e espiritualidade de Francisco de Assis” (Vozes 1994). Atualmente, ele é reitor do Santuário de Santo Antônio, no Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, professor de Franciscanismo, em Piracicaba, no Rio de Janeiro e em Petrópolis. Tam-bém é pesquisador do IFAN (Instituto Franciscano de Antropologia), entidade ligada à Universidade São Francisco de Assis, em Bragança Paulista, e dedicada às áreas de Franciscanismo, Teologia e Ciências da Religião, Estudos Humanísticos, Estudos da Cultura Moderna e Pastoral.

pós quatro meses, os alunos do curso de espiritualidade terminam os es-tudos com Frei Vitório Mazzuco pe-

dindo ‘bis’. Visto que os quase 50 participantes deste curso avaliaram bem, o ITF no próximo semestre dará continuidade, juntamente com Frei Vitório, agora enfatizando a espiritualidade oriental e ocidental. O curso de extensão “Es-piritualidade para uma vida virtuosa” percor-reu os temas: O que é Espiritualidade?; O que é Virtude?; Os Sete Dons do Espírito Santo (A raiz teológica da Virtuosidade); Os Doze Frutos do Espírito Santo (A raiz devocional da Virtuosida-de); O Código da Cavalaria Medieval (Fonte ins-piracional das Virtudes Franciscanas); Um olhar sobre as Virtudes a partir do modo franciscano; e, Elenco de Virtudes para a iluminação da exis-tência. Tais temas poderão ser encontrados, em forma de texto, na íntegra no site do ITF e na Revista ITF nos números 02 e 03.

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5º Encontro | “O Código da Cavalaria Medieval”

açamos uma reflexão sobre um dos pontos deste nosso

per+curso de Espiritualidade que aborda o Código da Cavalaria Me-dieval como uma Fonte inspiracio-nal das Virtudes sob a ótica fran-ciscana. Francisco e Clara de Assis viveram na época medieval, tempo este que nos revela uma nítida cul-tura de amor. Hoje nós, pós-moder-nos, temos um velado preconceito sobre a Idade Média, que vaza para nós no redutivo conceito do obscu-rantismo, da idade das trevas, da inquisição ou do conservadorismo; mas vamos deixar qualquer leitu-ra ideologicamente assim defini-da, e façamos uma pergunta: tem a nossa atualidade histórica, hoje, uma cultura de Amor? Pois a Idade Média tinha e de um modo muito nítido. É neste período que nasce, cresce e é abraçado como um pro-jeto de vida o Ideal do Amor Cortês Cavaleiresco. O que é, e o que ins-pira o Amor Cortês Cavaleiresco? No meio de uma civilização rude, que conhece as batalhas, ambição, o fastígio da glória e das conquis-tas, o choque entre permanecer no ciclo fechado de feudalismo domi-nando ou abrir-se para uma nova civilização baseada nas comunas (a organização da civitas, o nascimen-to das cidades), entre as tensões do poder dos imperadores (que querem unir reinos) e do papado ( não podemos esquecer que nes-te período a eclesiologia tem força de estado e pensa como os impé-rios); em meio a toda esta ebulição vai surgindo uma nova linguagem, um novo costume, um sentimento novo, um novo código de compor-tamento.

O que a sociedade pós-moderna

de hoje tem a ver com a medieva-lidade ainda tão atraente? Porque ela continua a revelar uma origina-lidade, uma civilização que traz evi-dente modelo de vivência que pode iluminar e elevar o nível da civiliza-ção atual tão carente de modelos de grandeza. A Idade Média, esta época da história tão rica de ex-pressões vitais, nos legou um mo-delo humano em suas dimensões mais variadas: o monge, o campo-nês, o intelectual, o artesão, o cle-ro, o mercador, a mulher, a família, o santo, o guerreiro, o nobre, o le-proso, o excluído. Mas, sobretudo, o mundo medieval nos passou três tipos que marcaram por demais a sociedade cristã: oratores, bellato-res, laboratores. Os que oram, os que combatem, os que trabalham. Estes elementos construíram a pai-sagem social não só deste período, mas encontraram correspondên-cia nos tempos que se sucederam. De todos, escolhemos um modelo deste complexo humano medie-val que remetia a um princípio, a

uma busca, a um projeto de vida. Escolhemos uma grande figura que é um símbolo de toda uma civili-zação: o Cavaleiro Medieval e seu Código da Cavalaria.

O cavaleiro não é somente um célebre arquétipo de um imaginá-rio sempre fascinante, mas foi o meio com o qual o ocidente cristão encarnou, organizou, e defendeu o próprio ideal de humanidade e de sociedade. Um símbolo vindo de longe, porém com uma orientação profunda, que ergueu uma ética e uma espiritualidade diferente da-quela dos círculos eclesiásticos; po-de-se dizer que criou uma moral lei-ga. O cavaleiro surge também como uma figura de edificação moral do combatente autônomo e do exér-cito que servia os senhores feudais, uma afirmação concreta da cristan-dade entre os leigos, uma divulga-ção apaixonada do humano e do sagrado. Aí é que reside o seu ponto de atração ainda hoje vital; e o cha-mado que continua a fazer e exer-citar constitui o lado mais profundo do interesse de hoje sobre a função da civilização medieval, num tempo atual onde vivemos uma profunda e geral crise de valores e falência do caráter.

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“O Cavaleiro é o representan-te de uma liberdade absoluta que se entrega a uma causa”.

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O mundo medieval tem como grande característica no campo das ideias gerais: as concepções religiosas que a tudo invadem e ex-plicam; e, no mundo dos ideais do seleto grupo da nobreza, a inspira-ção cavaleiresca, para reduzir tudo a um belo quadro, onde brilhava a honra e a virtude; um elegante jogo de formas nobres para criar ao menos a ilusão de uma certa ordem. Mas o que é mesmo este ideal cavaleiresco? Enquanto ideal de uma vida bela e justa, a concep-ção cavaleiresca tem uma carac-terística singular: é um ideal esté-tico na sua essência, composto de uma fantasia muito variada, plena de emoção heroica. Quer ser um ideal ético, quer valorizar um ideal

de vida, colocando-se em relação com a piedade religiosa e com as virtudes vividas na nobreza, espe-cificamente na corte. É a misterio-sa mistura de consciência moral e ambição que sobrevive na pessoa humana quando já perdeu tudo: fé, amor, esperança. É aquele sentido de honra que sobrou na pessoa, e que, bem trabalhado, torna-se fon-te de novas forças. Uma positiva ambição pessoal que é desejo de glória; uma vontade apaixonada de ser lembrado pela posteridade. Uma inspiração que não anda se-parada do culto do herói, porque a vida cavaleiresca é uma constante imitação, uma luta constante.

Piedade, coragem, austerida-de, sobriedade e fidelidade era

a imagem de um cavaleiro ideal. Isto não se adquiria sem certa exi-gência, sem certo ascetismo. Este mundo de sentimentos ascéticos é a base sob a qual cresceu o ide-al até chegar a ideia de perfeição (per+facere): uma intensa aspira-ção a uma vida bela, uma energia animadora. O cavaleiro é o repre-sentante de uma liberdade absolu-ta que se entrega a uma causa. Tem a coragem de arriscar a sua vida por algo muito grande na medida em que a causa exige.(Esta reflexão é a síntese de um texto maior e mais aprofundado; cf. MAZZUCO, Vitório. Francisco de Assis e o Modelo de Amor Cortês Cavaleiresco. 5. ed. Petrópolis: Vo-zes, 1994.)

6º Encontro | “Amor Cortês”

Amor Cortês foi a chama que acendeu sentimentos, ideias e virtudes e deu uma forte motivação para um de-

terminado tipo de vida. O trato ascético e o animado espírito de sacrifício estão estreitamente ligados ao Amor, que para o cavaleiro era a transferência ética de um desejo, de um sonho, de um pro-jeto de vida.

A necessidade de dar ao Amor um sentido e uma forma nobre encontra um vasto campo para se manifestar nas conversas corteses, nos jogos e torneios e na poesia das canções de gesta. Em tudo isto o Amor se sublima e se faz ro-mântico. A concepção cavaleiresca do Amor Cortês não nasce da literatura, mas da vida e do exercício de virtudes que elencaremos mais a frente. O mo-tivo do cavaleiro e da sua dama amada estava presente nas relações da vida real. O cavaleiro é um herói por Amor e este era o elã impulsionante, primitivo e invariável, que deve sempre apare-cer e retornar. Mais do que uma paixão sensual é uma abnegação ética, uma necessidade de mostrar a coragem, exi-

bir força, expor-se aos perigos, sofrer, sangrar, passar por desafios e por grandes dificulda-des. É a ação heroica cumprida por Amor. O sonho da ação heroica enche de ânimo, incha o coração de orgulho pessoal e dá vida ao amor.

O tema do herói é importante para a ca-valaria. É um tema que não envelhece em toda a história da humanidade. As Legendas dos Heróis continuam atuais, os feitos inconfundí-veis do herói montado em seu cavalo, armado, invencível, unindo força física e força virtuosa, o justiceiro que alia raça e bondade, doçura e ação. Quem de nós não leu ou assistiu filmes sobre o Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Re-donda, a Busca do Santo Graal, a Can-ção de Rolando, El Cid – O Campeador, Don Quixote, Robin Wood, Lancelot – O primeiro cavaleiro, Os cavaleiros Nibe-lungos; enfim um mundo de obras que

soam como inspiração? Para as Legen-das a história da humanidade tem que ser uma história de inspiração, supera-ção e de edificação. O herói se coloca a serviço de um ideal e nos dá meios para realizar uma tarefa evolutiva. Ele nos re-corda que qualquer um pode empreen-der a jornada interior e assumir a tarefa de se tornar completo.

O tema da Cavalaria pode ser um tema muito questionado; mas é uma instituição feudal que permaneceu no imaginário popular e surge de vários elementos: o econômico (benefícios e privilégios), o social (vassalo, nobre, fre-

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quentador da corte), político (o cavalei-ro possuía imunidade jurídica), religioso (a cristianização do ideal) e militar (uma nova concepção de milícia). Tudo isto gerou o miles, o cavaleiro combatente e o seu conjunto de qualidades e obri-gações.

A Europa medieval é um continente que sofre por todos os lados as inva-sões, o assédio, as incursões dos povos bárbaros. Estes povos são dotados de grande mobilidade guerreira e de ardo-rosos combatentes. Isto sacudiu e desa-fiou a capacidade dos defensores da so-ciedade cristã, que perceberam que não bastava apenas a estratégia de intervir rapidamente, mas era preciso ser por demais eficientes e disciplinados. Não podemos deixar de destacar o momen-to onde a cavalaria iluminou-se de ideais cristãos, e os combatentes mais exalta-dos religiosamente correram para as Cruzadas, para a defesa da Terra Santa, para proteger peregrinos pelas terras da Síria e Palestina. Num primeiro momen-to temos a cavalaria como instituição guerreira contra as invasões, com forte influência cristã para transformar a força bruta em força organizada em honra e fé para manter ideais na Igreja e na socie-dade. Num segundo momento temos a cavalaria aventurosa, romântica, galante e lírica; que encontra expressão de sen-timento na defesa dos fracos e o culto à mulher amada, a Dama Encantadora, misteriosa e sempre distante. O terceiro momento é a decadência, uma imitação fictícia, um heroísmo cômico, uma força quase inútil.

Mas então, o que sobrou da Cavala-ria? Um verdadeiro Código de Compor-

tamento, uma ação segundo a verdade, justiça e fortaleza; sob o fundamento da reta consci-ência e da prá-tica da fé. Uma inspiração para uma via espiri-tual, e é via es-piritual porque conduz ao aper-feiçoamento, a uma qualifi-cação interior.

Deve-se arriscar a vida e absorver uma tarefa, ser uma pessoa justa, límpida, correta; o cavaleiro precisa aproximar-se da realidade, graças aos seus dons natu-rais ou adquiridos, ao tipo ideal codifica-do no mito. Não pode ser um cavaleiro verdadeiro sem ser ao mesmo tempo um asceta. Trouxe um modo de com-portar-se que tornou viável a convivên-cia entre o sacro e o profano, uma tarefa complementar. Se o sacerdote era cha-mado à administração dos sacramentos como reparação aos danos sofridos na via espiritual, o cavaleiro era convocado a sanar as consequências dos erros sob a ordem social, devia instaurar e prote-ger a ordem civil. O sacerdote era o guia no que diz respeito ao relacionamento com Deus; o cavaleiro procurava manter o bom relacionamento terreno.

Ser cavaleiro era ter uma Pedagogia Iniciática; ser e viver em constante trei-namento e aprendizado. Devia servir como um valete, um escudeiro, um no-viço que preparava a ação de um grande senhor. Participar de torneios que rea-vivavam os sonhos de glória, desejos e esperança de um possível amor. Ter um ideal humano que atravessava a história a combater por algo que fosse bom e compensador. Ter a poesia como trans-figuração da realidade sufocando a sua rudez. O tema central desta poesia era o Amor e a mulher, o assim chamado

Amor Cortês, um sentimento novo, que não se baseia na atração física, nem na exaltação da sexualidade, mas que fa-zia da mulher uma imagem ideal. É um puro encantamento pela Dama; o femi-nino buscado como ideal distante, como uma afirmação de si mesmo. A Dama, a Princesa, bela e distante, é uma metáfo-ra de busca para demonstrar audácia e valor. A mulher aparece como um valio-so prêmio, representa uma união real e encarnada com os valores buscados.

Marco Bartoli nos diz: “a cultura ca-valeiresca representa uma exaltação do amor e da mulher: na realidade, nas narrativas cavaleirescas, a mulher é sim, colocada como sobre um pedestal, mas quem a coloca é sempre o homem, a quem ela deve esta sua promoção (...) Se registrava uma correspondência pre-cisa entre a vida vivida e a vida sonhada, entre a vivência cotidiana e o imaginário fantástico. As virtudes que eram exigi-das da mulher eram : prudência, silên-cio, discrição, humildade. Todas estas coisas que faziam uma mulher gentil, isto é, como devia ser a filha de um bom “gens”, de uma boa família aristocrática” (BARTOLI, Marco. Chiara d’Assisi. Roma: Istituto Storico dei Cappuccini, 1989, p. 36-39).

Os cavaleiros pertenciam a uma Or-dem Cavaleiresca. O que significa a Or-dem neste caso? Um cavaleiro solitário nem sempre pode manter uma mística completa. Ele precisa de um empenho de vida interior ajudado pelo coletivo. É um encontro entre o aperfeiçoamento pessoal e a força do grupo. Ordem é es-tar unido a uma entidade com legames sagrados, uma força comum, um espí-rito comum que vai tomando forma de grupo para manter, de modo comunitá-rio, o sonho de coragem, fé e fidelidade. É viver em confrarias. Sua entrada nes-tas confrarias não era um sacramento, mas uma série de atos e símbolos com caráter religioso. Havia a Investidura. Pela investidura abençoava-se o cavalei-ro incutindo-lhe favores divinos, a perfei-ção cristã, as graças necessárias para seu estado, a missão de serviço a Deus e à cristandade.

Para aquele que recebia a investidura era exigida a conversio morum (a mu-dança de costumes), a prática de virtu-des (confira o Có-

“O Cavaleiro é um herói por Amor”.

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digo da Cavalaria que trataremos mais adiante). O cavaleiro devia ser sempre um exemplo vivo da conversão dos cos-tumes, prática de caridade, e usar as armas a serviço dos oprimidos e neces-sitados, ter muita disciplina, cuidar do corpo que está a serviço da milícia.

Tinha que ter a consciência que era um peregrino neste mundo e que pre-cisava organizar, cada lugar do mundo, segundo sua bondade, isto é, respeitan-do as forças estabelecidas, organizando, mesmo nas situações mais caóticas, um modelo de ordem celeste. A cavalaria quis ser um estado superior, um modo de viver, por isso soube gozar verdadei-ramente, numa imensidade jamais per-dida, as coisas, os fatos e a vida. Conti-nua ainda a atrair, continua a evocar, no sonho e no mito, e nos vem dizer que ainda existe uma tarefa para se cumprir.

Vamos então ao Código da Cavalaria Medieval. Ele é um conjunto de virtudes buscadas e exercitadas para criar uma prática vigorosa e disciplinada. Vejamos:

FIDELIDADE: É colocar-se a serviço de um valor maior. Ser fiel é acreditar na grandeza da escolha que se fez. Quem se entrega a algo muito grande não tem dificuldade em ser fiel. A fidelidade leva a não arriscar a vida por pouca coisa, mas entregá-la a algo que vale a pena.

LEALDADE: É a virtude daquele que nunca se afasta do que realmente vale a pena. É a presença que acredita numa causa comum, é companheirismo, a for-ça dos que caminham juntos nos mes-mos sonhos, nos mesmos projetos.

OBEDIÊNCIA: A palavra vem do latim medieval ob + audire. Ob significa aber-tura, acolhida ao espírito, acolhida a inspiração, abrir todos os sentidos para perceber o valor. Audire é escutar mais profundamente, é auscultar, ouvir o que vem de dentro. Escutar um valor maior. Quem escuta a plenitude dos sentidos, quem escuta o valor maior não tem di-ficuldade em obedecer. Obediência é, portanto, escutar uma grande convo-cação, uma grande inspiração. É a capa-cidade de ouvir, acolher e assumir o fio condutor que aos poucos vai surgindo e moldando a vida. É ouvido e olhos bem colados na realidade.

CONTROLE DAS PALAVRAS: É contro-lar os exageros e excessos de palavras,

blasfêmias, calú-

nias, juízos, palavrões, gírias, expressões muito agressivas, fofocas. É a palavra bem dita. Diz a Legenda dos Três Com-panheiros, referindo-se a São Francisco: “No entanto, era como que naturalmente cortês nos costumes e nas palavras, não dizendo a ninguém, de acordo com o pro-pósito de seu coração, palavra injuriosa ou obscena; pelo contrário, como era jovem e brincalhão e alegre, propôs jamais res-ponder aos que lhe dissessem coisas ver-gonhosas. Por isso, sua fama se divulgou por quase toda a província, de modo que muitos que o conheciam diziam que ele seria algo de grande”(LTC 1,3).

VASSALIDADE (Ser SERVIÇAL): É ser-vir por Amor. Não é qualquer atividade feita simplesmente por fazer, mas é ter a consciência que se está contribuindo com o Criador e seus atos de cuidado pela vida. É uma ação bem produtiva e bem atenta às necessidades do outro. Não é um fazer visando lucros e honra-rias, mas é o estar voltado, gratuitamen-te, para a pessoa e para a vida. Não fazer por dinheiro, mas por uma causa nobre. Para Francisco de Assis, este espírito de serviço, o moveu a servir leprosos e a trabalhar com camponeses. O serviço faz parte de uma mudança radical de vida, uma conversão. É ir lá e fazer jun-to; o estar junto com determina o lugar social que se quer abraçar e morar. Toda a ação que se faz está na dependência exclusiva de servir. É ser servo e se fazer naturalmente servo. A sua liberdade e autonomia em servir está em ser servidor de um va-lor maior.

NOBREZA DE COSTU-MES: Este é um termo e uma inspiração virtuosa medieval que quer mos-trar algo mais do que uma simples herança, um título, uma tradição familiar do assim chama-do “sangue azul”. Quando se fala de nobreza, neste

contexto, quer se revelar uma identida-de não jurídica, mas sim uma identida-de existencial, um modo de ser daquele que tem uma postura nobre, daquele que é naturalmente nobre. Não é um humano qualquer, um humano que se contenta com o banal. É algo mais for-te, mais vigoroso! Possui um projeto de vida e o persegue com todas as suas for-ças. Quem tem claro um projeto de vida sempre tem algo a transmitir, possui um carisma, uma atração muito especial, revela um humano nobre. Afirma R. De-lort: “o nobre se distingue por um gêne-ro de vida, por uma mentalidade toda particular, por saber morar, saber vestir, saber exprimir um sentimento, por acre-ditar em laços edificantes, por inspirar--se em heróis e ter um modelo de vida, por saber ocupar-se, e pelo espírito de combate” (DELORT, R. La vita quotidia-na nel medioevo. Roma-Bari, 1989, p. 144). Ser nobre é dar um sentido a tudo o que se faz. É não gastar ou desgastar a vida por pouca coisa (cf. Fidelidade, Le-aldade, Obediência), é ter uma medida de grandeza. “A grandeza de uma época depende da quantidade de pessoas ca-pazes de sacrifícios, qualquer que seja o objeto destes sacrifícios. E neste sentido o mundo medieval não está atrás de ne-nhuma época. Dedicação é a sua palavra de ordem! (...) Com que coisa começa a grandeza? Com a empenhada entrega a uma causa. A grandeza é uma ligação entre um determinado espírito e uma de-terminada vontade” (Jacob Burckhardt). Ser nobre é ser transparente, sereno, não agressivo, ser cada vez mais nítido e seguro naquilo que se quer.

PRODIGALIDADE: É a virtude exer-citada em contraposição à avareza e a ambição. É disponibilidade para dar. Uma pessoa é considerada potente e

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pródiga em base do que pode oferecer. Um rei, ou um imperador, por exemplo, quando chegava num castelo, dava um banquete para todos, nobres e plebeus; a sua potência era demonstrada nes-ta generosidade em oferecer, e todos exercitavam a prodigalidade acolhendo o gesto, recebendo com muita abertura. É o saber receber, o que não é tão fácil assim. É um impulso de enamoramen-to e entrega que se precipita para fora e se desprende em direção a algo ou al-guém. Para levar a termo uma entrega é preciso exercitar a acolhida. É dizer: “Sê comigo!”

CORTESIA: É a virtude mais carac-terística do Amor Cortês Cavaleiresco. Quem viveu, conhece , lê ou assiste a realidade e a fantasia das legendas cava-leirescas conhece o reino da cortesia. É um tanto difícil dar uma exata definição de cortesia, pois é todo um vasto mun-do de significados. Dante dizia “Uso di corte, quando ne le corti anticamente le virtudi e li belli costumi s’usavano” (DANTE. Convívio, II, X, 8). Este é um ponto de partida para a compreensão: os costumes e usos da corte para se tra-balhar a virtuosidade. Isto compreende uma série de valores: lealdade, gene-rosidade, prodigalidade, fineza no tra-to, atenção devota à pessoa do outro, gênio do gosto, comunidade dos que amam o belo. Cortesia não é etiqueta, nem regras de civilidade, nem manual

de boa educação, mas é uma expres-são insubornável de um sentimento in-terior; é o modo como o outro(a) deve ser amado(a) de um modo verdadeiro. É um relacionamento de respeito, retidão e sinceridade. É não se desconsertar diante de nenhuma situação ou pessoa. É acolher a pessoa na sua grandeza. É colocá-la num acolhimento de bonda-de, num clima de bondade para que ela se sinta bem. É deixar transparecer uma serenidade existencial. Um tratamento seguro e amável que eleva a pessoa. É o cuidado com as palavras (cfr. acima o Controle das Palavras). Uma palavra dita de um modo sereno e humano motiva e recupera o humano. A cortesia reluz através de gestos de mansidão, frater-nidade, gentileza, paciência, afabilida-de e serenidade. Não esqueçam o que repetimos, como um refrão, em todo o nosso curso: uma virtude puxa outras virtudes.

PRUDÊNCIA: É agir com moderação, sem precipitação. É a pessoa cautelosa, comedida e atenta; aquela que evita ocasiões de erros. Sensatez.

CORAGEM: A palavra coragem tem raiz no latim, cor + agere, e significa agir com o coração, agir com a força que vem de dentro, buscar as forças interiores para realizar algo. A ação vem de um im-pulso da segurança interna. Tem o medo dominado e não precisa de subterfúgios (como armas, por exemplo) para fazer valer o seu poder e seu domínio. O co-rajoso é aquele que está no domínio do próprio poder.

GENTILEZA: Vem de gen, isto é, o que tem um bom gen, o bem nascido, bem educado, bem criado; tem boa verve. Faz com extrema educação.

HEROÍSMO: É a vir-tude do herói. Quem é o herói? O herói é aquela pessoa que, por seu conjunto de virtu-des, é protagonista de atos que o transfor-mam em melhor ven-cedor pelas forças das qualidades que o ha-bitam. Passa por situa-ções difíceis e enfrenta os limites, mas carrega isto com galhardia. É a

mística da resistência. É firme, decidido, seguro. Para o herói não há indecisão, a indecisão é o espírito não amadurecido para dialogar com a vida.

SEGREDO: É o saber guardar-se. Num mundo onde somos invadidos e consu-midos por todos os lados, precisamos acreditar naquilo que está oculto, naqui-lo que não deve ser contaminado, nem esvaziado. Não é apenas um simples esconder, mas sim deixar transparecer a força de um grande amor, de um grande projeto de vida. Quem foi tocado pelo Amor guarda segredo. Não é apenas o não contar para ninguém. É muito mais que isto! É estar sempre no apreço; é esperar alguém capaz de apreciar. Se-gredo é comunhão de duas almas e não o barulho da publicidade. É sintonia si-lenciosa e íntima. É ir à clareza de tudo o que vai se criando no silêncio e não no rumor de ser igual a todo mundo. O se-gredo é uma coisa preciosa, íntima, pro-funda. Tem que ser germinado no es-condido. A terra não faz assim? Onde a semente nasce e cresce senão no escon-dido das profundezas do chão? É preciso ser germinado no oculto do espaço da profundidade. O segredo não é posse de si, mas é fenômeno que nasce de si; é o preparo fundamental para o social, para o público. Hoje muita gente fracas-sa publicamente porque não tem o re-colhimento da profundidade pessoal. Se a semente do que buscamos é grande, então é preciso nos recolher para a força da raiz. Quantas vezes não ouvimos esta pergunta que gerou livros, obras, filmes, teatros e ensaios: Qual o segredo de Francisco e Clara? O Amor de Francisco e Clara para com a Dama Pobreza e o Esposo Espelho é algo forte porque des-creve o movimento de um crescimento secreto; quanto mais precioso, mais vai para o oculto da raiz, mais nasce, mais desabrocha. Para o mundo não deve in-teressar o que eles são no segredo dos dois seres sublimados e consagrados; para o mundo deve interessar o que são a partir da obra que realizaram e deixa-ram há 800 anos. O segredo verdadeiro é o movimento dinâmico da dimensão da profundidade humana. Ao crescer bem no particular torna-se força para o fraterno, para o comunitário.

“O Amor de Francisco e Clara para com a Dama Pobreza e

o Esposo Espelho é algo forte porque descreve o movimento de um crescimento secreto”.

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7º Encontro | “Virtudes Franciscanas”

hegamos num ponto de nos-so percurso onde vamos tra-tar das Virtudes tipicamente Franciscanas. Já refletimos, preparando esta parte, so-

bre a Virtus in medio. Esta expressão vem de um ditado latino, muito em evidência no período medieval, que significa: a virtude está no meio. Meio aqui entendido como ponto de equilí-brio, a força que vem da harmonia. Um processo que inspirava os penitentes de então: a contínua eliminação de excessos, para chegar à medida exata do coração, e com serenidade, superar as vicissitudes e perturbações. Como diz Hermógenes Harada: “Há a versão “soft” e a versão “hard” dessa harmo-nia preestabelecida. A “soft” diz que a pessoa virtuosa é sem tribulações e contrariedades. Sem cortes abruptos e sem por limites bruscos na sua per-sonalidade. É como as águas mansas de um lago sem ondas. Está no gozo da harmonia perfeita, natural. Nela, dificuldades e desgastes, suores e so-frimentos do árduo mourejar estão superados e não podem existir. É a se-renidade das águas mansas. A versão

“hard” diz: o vir-

tuoso é um lutador. Deve ser firme, impávido, estóico, imutável e discipli-nado. Domina soberano todas as suas paixões. É senhor de si e das situações. É a fortaleza das rochas no meio das águas impetuosas”.

O caminho das Virtudes tipicamente franciscanas passa pela busca incansá-vel dos dons e frutos do Espírito, pelos Conselhos Evangélicos, que são tantos, mas intensamente convergentes nos três conselhos que se tornam Votos: Obediência, Pobreza (sine proprium) e Pureza de Coração; e tem muita inspi-ração nos votos cavaleirescos. Se a for-ça do Movimento que nasce naquele momento e move Assis, transforma-se em Ordem e abala o mundo, foi um cami-nho de virtuosidade, e que bebeu em seu tempo os anseios por uma qualidade humana; hoje tam-bém estamos numa época, em que na moral, na ética, na teologia, na espiritu-alidade, na filosofia de identidade, volta-

-se a falar de virtudes. Antigos tratados são retomados à luz dos desafios de novos tempos.

Na passagem entre a era industrial e a época pós-mo-derna, a pessoa virtuosa era considerada aquela que tinha ares e práticas consideradas piedosas e beatas. Hoje se destina e molda pessoas de beatitude, isto é, pessoas reali-zadas, felizes, vigorosas, éticas, modelos vivos, engajadas em causas nobres da contempo-raneidade. Hoje pessoas virtu-osas são aquelas que estão no empenho e desempenho de superar-se. Diz Mestre Eckhar-dt (1260-1327): “O humano não deve achar sua obra boa, por melhor que ele a tenha executado, a tal ponto de se sentir nela à vontade e asse-

gurado de si. Pois, se tal acontecer, a sua capacidade de captar, a sua razão se tornará preguiçosa e adormecerá. Antes, deve continuamente se levan-tar e erguer-se, com ambas as forças de seu ser, isto é, com razão e vontade, e neste alçar-se, agarrar o melhor de si, a sua identidade, no mais alto grau. E, com cuidado e ponderação, precaver--se, por dentro e por fora, contra toda e qualquer falha nessa ação. Se assim o fizer, ele jamais perderá o ser em ne-nhuma coisa; antes, crescerá sem ces-sar em alto grau” (ECKHARDT, Meister. O Livro da Divina Consolação e Outros Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1991, p 110).

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Voltemos ao tema das Virtudes tipi-camente Franciscanas. O mundo de se-guidores da vida franciscana tem como modelo São Francisco de Assis, um ho-mem virtuoso. Ele mesmo personaliza-va as virtudes, por isso as chamamos tipicamente franciscanas. Diz o grande historiador Jacques Le Goff: “(Francis-co) revela a profunda marca de um amor cortês que confere admirável expressão aos sentimentos do santo por sua dama, a Senhora Pobreza, e ao seu “amor intenso e genuíno pelo pró-ximo”, sem falar da “cortesia fraterna” em relação a toda criação, inclusive “nossa irmã Morte corporal”, dádiva graciosa de um senhor em quem se encarna um ideal feudal interiorizado em termos de família, pai, mãe, irmão, irmã.”(in: Frugoni, Chiara. Vida de um Homem: Francisco de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 12.).

Por que virtudes tipicamente fran-ciscanas? Por ser o modo, o ponto de vista, ou melhor, o ponto de partida, da aventura do Espírito para eluci-dar o sentido da vida. É o dever ser, a força ética, o jeito próprio de morar e reconstruir a moradia. O “ethos” fran-ciscano tem um jeito típico de educar, disciplinar, cultivar uma identidade so-nhada. É o “eu devo”, “eu posso”, “eu quero” percorrer um caminho virtuo-so. “De boa vontade o farei, Senhor! (LTC, 13) É formar-se, de olho nas Fon-tes Franciscanas e Clarianas, perceber a força que deu qualidade a um grupo humano nobre, fraterno, humano e di-vino ao mesmo tempo. Elas brotaram da verdade de quem olhou as manifes-

tações do Espírito, abraçou como com-prometimento a Boa Nova, as virtudes do Evangelho, Jesus Cristo, Francisco de Assis, Clara de Assis e a essência do humano que daí se revela. Melhorar o humano é entrar numa escola de vir-tudes e dar um acabamento melhor ao humano, experimentando o que a experiência franciscana traçou e viveu como projeto de vida. Nem sempre so-zinho conquisto uma identidade; mas é a tarefa de refazer a boa caminhada de muitos.

Vamos elencar Algumas Virtudes Ti-picamente Franciscanas:

MINORIDADE: É a renúncia do sta-tus de quem tem, pode e sabe. É não apropriar-se do próprio poder, mas conviver com a força de tudo e de to-dos. É a renúncia da superioridade. Se o mar, vindo da potência de sua interioridade, não tivesse a coragem de morrer mansamente na praia, não haveria o espetáculo das ondas, não haveria a magia da praia. Muitos ligam a minoridade à pobreza, ao desapego, a desinstalação. Isto é, apenas uma na-tural consequência, uma irradiação do ser menor. A minoridade é um modo de ser, uma forma de vida. É a confor-midade com a grandeza e onipotência de um Deus que se revelou na simplici-dade de um Menino.

Um Deus, que no seu amor tão grande Encarnou-se em Jesus Cristo e experimentou estábulo, manjedou-ra, fuga para o Egito, ceia, lava-pés, colocou o coração divino nas mãos, nos pés, nas palavras e se misturou na paisagem do humano. A minorida-de remete à vassalidade, ao serviço, ao ser servo. Na Carta aos Fiéis, 47, diz São Francisco: “Nunca devemos desejar estar acima dos outros, mas antes devemos ser servos e submissos a toda humana criatura por causa de Deus”. É não usar o cargo como cargo de mando, mas de serviço prestado por amor. Ser menor é amar com um amor que não faz acepção de pessoas. Ama a todos incondicionalmente, ricos

e pobres, bons e maus, fracos e fortes, amigos e inimigos, simpáticos e anti-páticos. Ser menor é não querer estar acima dos outros ou acima de tudo, mas testemunhar uma presença silen-ciosa e amorosa.

A minoridade é a humanidade da Divindade. É ver a gritante simplici-dade como Deus ama e, sob o filtro do Evangelho, amar assim do jeito do Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo. A minoridade é a consciência e a afir-mação do ser criatura. Ser pequeno diante da grandeza de o todo ser cria-do, ser irmão e irmã de toda família criatural, estar num perene estado de gratidão e graça. É como o primeiro e remelento olhar de criança se abrindo ao mundo num encontro de brilhos. A minoridade é fé; não no sentido de conjunto de doutrinas para se crer, mas como admiração, enamoramento, abandono ao colo da vida. Ver todas as coisas com olhar de poeta e sentir-se um nada diante da grandeza de tudo.

BELO, BOM, BONDADE: O grande mestre de Paris, o franciscano Alexan-dre de Halles, sintetiza esta força vir-tuosa criando a reflexão sobre o Belo e o Bom, a estética franciscana. O que é o belo e o bom? Ele mesmo, entra no hábito franciscano, vai para dentro da academia com os pés descalços e o máximo despojamento, na fluência da transparência do simples e natural. Ele diz que o belo e o bom revelam grande expressividade da mística da Encarna-ção: o Deus Humilde aparece na beleza da Criança, na tessitura da bondade. É a redescoberta do que a vida tem de melhor: convocação divina e convoca-ção do amor! O Belo é o transparente e o transcendente, o Uno e o Vero. O Belo é sempre percepção, chamado, apelo, um grito para perceber o real, o palpável, o sensível. Não podemos estar no grito de abandono de todas as coisas, é preciso vê-las, percebê-las, senti-las. A forma do Belo, (ver a Be-leza de tudo o que é), torna-se amada e imitada, cria o discipulado e arrasta. Não basta só um entusiasmo inicial, é preciso um dinamismo constante, um impulso de vida exercitado na convi-vência com o valor de todas as coisas. Quanto mais você entra neste dina-mismo mais se

“O franciscanismo é um modo místico, espiritual, existencial, cultural e sen-

sível de estar na vida”.

“A minoridade é a humanidade da

Divindade”.

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torna vivaz (percebe a vida que está dentro) e mais a vida floresce; então se descobre a arte da vida. O que é a Arte, ou melhor, a virtuosidade da Arte? É ser um artista da vida. O artista é aquele que vive imerso nas estrutu-ras da vida e nelas coloca a sua pro-fundidade, a sua interioridade, a sua sensibilidade. Neste sentido, é preciso, ser, ter, fazer e conhecer a arte para se ter um projeto de vida.

O franciscanismo é um modo mís-tico, espiritual, existencial, cultural e sensível de estar na vida. Não é só aplicação técnica de uma filosofia de vida ou postura de vida, mas é saber que a vida é Arte Divina e Arte Huma-na, é Lógica de Amor, isto é, um grande encontro entre a inspiração, o sopro, o hálito que dá vida a tudo com o Huma-no, com o Divino e a Fraternidade. A partir daí o belo não basta, é preciso ser bom.

O que faz a pessoa bonita é a Bon-dade. A bondade é uma virtude; e a virtuosidade, como um conjunto de virtudes, é a beleza maior e a mola propulsora de todos os gestos de amor e cuidado. O que faz o mundo bonito é a bondade esparramada de todas as coisas: “Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Água que é mui útil, humil-de, preciosa e casta”.

A fecundidade da vida vem deste movimento. A terra boa é o coração belo e bom. Esta é a síntese da per-feição. O belo é a expressão natural e perfeita do bem. O bom é a plenitude da caridade. Francisco viveu esta ex-periência. O mestre da Paris escreve e impulsiona esta reflexão. Alexandre de Halles descobre a filosofia franciscana da Beleza como difusão do Bem: esta é a verdadeira estética do Simples.

O invisível e o visível, a essência, a medula, a profundidade tomam for-ma, quantidade, cor e qualidade. Sai de si e atinge o humano. Como um ato amoroso da vida toma forma num

corpo. Torna-se

figura, imagem. Como? Com o vigor da simplicidade, da transparência. Para isso é preciso saber sentir, escutar e ver. Sensibilidade à flor da pele, a Pala-vra nos ouvidos e a Imagem nos olhos. Perceber e amar. Escutar e crer. Ver e professar. Disto surge uma bela e boa espiritualidade. Para o franciscanismo ver, falar e escrever e igual a pintar. As virtudes do belo e do bom nos fazem artistas que esculpem e pintam o mais belo quadro da Paisagem do Humano e da Paisagem do Divino. Somente as-sim a palavra ressoa e refulge, encar-na-se, plastifica-se. Somente assim podemos compreender Francisco, o canto das criaturas. Francisco não quer possuir as criaturas, mas cantar o valor e a beleza que elas possuem. É a arte de conhecer e reconhecer os dons e as virtudes da existência. Reconhecer é fazer então uma nova criação. Recriar com o Criador. É perceber que o Belo é alegria e o Bom uma sabedoria criado-ra; enfim, é ver todo o criado impreg-nado de Beleza. Para o franciscanismo o humano é a sinfonia de Deus e por isso deve conquistar a harmonia espe-lhando-se na harmonia do natural.

Quando alguém é unificado por uma intensa experiência afetiva e espi-ritual torna-se uma fonte. O movimen-to franciscano, que brota da estética do belo e do bom, tem sua base em alguém: a experiência concreta e vital de Francisco de Assis, um homem de coração enamorado pela vida e pelo Deus da vida! O seu forte amor pro-

gressivo e cheio de energia faz com que ele e seus seguidores e seguidoras tornassem criadores e criativos. Daí surge uma arte de viver. A fonte da Arte Franciscana é a paixão. O apaixonado é sensível, antenado, real e contempla-tivo. Escolhe o natural e transforma o natural numa linguagem. O natural sempre nos atinge e nos refaz. Existe a Beleza do Simples? O que é a Beleza do Simples? É descobrir e fazer aparecer o modesto em sua força. Uma fragili-dade que é potência. A grandiosidade da vida, do mundo e das pessoas só é dada para quem tem os olhos voltados para esta Beleza.

Queria abrir, neste ponto da refle-xão, um fato que a meu ver é um fenô-meno que vem do Belo e do Bom. São Francisco é o santo mais representado na iconografia. Podemos ir muitas fei-ras de artesanato, em lojas de artigos para presentes, em loja de antiguida-des e outros objetos de decoração, em lojas de artigos religiosos, em bancas de artistas autônomos e anônimos, em galerias de artes e em muitas exposi-ções de pintura e escultura; sempre estará ali uma imagem, um quadro, um banner, um pôster, um arranjo com São Francisco. Muitos artistas, religio-sos ou não, o moldam e pintam. Por quê? Será porque há estudiosos do fenômeno religioso que o apontam como o maior herói religioso depois de Jesus Cristo? Ou porque ele é um arquétipo humano, o melhor de nós, uma expressão cristalina das virtudes que sonhamos. O humano divino que gostaríamos de ser. Ele, no seu modo de ser natural, foi pródigo, nobre, jo-vial, cordial, magnânimo, penitente, generoso, amigo, cavaleiro, terno e fraterno. Criou uma revolução de amor e, por isso mesmo, tornou-se um refor-mulador social e eclesial. Permanece para sempre nas representações da humanidade porque tinha consciên-cia historial, vive intensamente a sua época e mostra algo de novo para o seu tempo. Um homem cheio de en-contro, de amor, de brilho, sem cair no pieguismo. Para o povo e para os ar-tistas ele é a visualização das virtudes que gostaríamos de ter e que podemos ter. Ele é a teologia da imagem. O que é a teologia da imagem?

“Louvado sejas, meu Se-nhor, pela Irmã Água que é mui útil, humilde, pre-

ciosa e casta”.

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É perceber que a transparência é ca-risma maior. Ser uma pessoa verdadei-ramente espiritual é a maior evangeli-zação, a maior missão, a maior pastoral que existe. Ele é o que é! Onde passa, toca, fala e acolhe, ali nasce alguma coisa. Ele é o santo do Amor, da paz, da convivência. Ama intensamente e deixa que o Amor viva intensamen-te nele. O Amor se fez forma nele e o estigmatizou. Ele incorporou todos os dons que um humano pode receber do Divino.

As imagens, quadros e esculturas sobre Francisco querem dizer o que? Elas são uma constante recordação de que precisamos a cada dia encher a nossa vida do Belo e do Bom. Ele é

uma coisa boa de ver-se! Olhar o santo e encher-se de graça. Não é a adoração de um ídolo, mas é abraçar um modelo referencial de grandeza. São Francisco desejou ardentemente fazer o bem. Quem faz ardentemente o bem em vida continua fazendo o bem após a morte. Quem ama intensamente sem-pre se eterniza em todas as represen-tações. Quem não vive para si mesmo ultrapassa a barreira do tempo e se atualiza numa obra perene.

Ele teve a firme e forte vontade de realizar tudo o que queria, por isso permanece. Ao vê-lo nós refazemos a nossa vontade, às vezes tão fragmen-tada. Olhamos para ele para cuidar do Espírito. Hoje, o mundo das agências

de top models olha para a representa-ção humana para cuidar de que?

Francisco transmite uma energia divina vivendo no humano. Ele é a ex-pressão simples e reveladora da pureza de coração, da mansidão, da fortaleza, do amor fecundo. Ele é uma sensibili-dade suspensa no ar, numa vitalidade que transparece. Num coração aberto para o Absoluto, o Pai sempre deposi-ta sua beleza. Os artistas captam isso com mais facilidade e mostram que o espírito sempre trabalha na imagem. Não seria este o segredo de tantas representações? Quem vê um belo panorama se enamora, se encanta.Se nos colocarmos diante do vazio, como apaixonarmos?

8º Encontro | “Virtudes Franciscanas - 02”

UIDADO (o Saber Cuidar): É uma virtude que está sendo res-gatada. Nunca se falou tanto de

cuidado. A luta hoje é resgatar o cuidado. O cuidado é fundamental para que possa-mos elevar o nosso patamar civilizatório. A essência do humano não está na razão, na técnica, na inteligência ou na capacidade de criar condições materiais para a subsis-tência. A essência do humano está no cui-dado. Se o ser humano não cuida da vida a vida não subsiste; a falta de cuidado leva sempre a grandes crises. Se começamos a cuidar tudo começa a dar certo. O cui-dado traz as virtudes essenciais da carida-de, da solidariedade, da hospitalidade, da cortesia, da generosidade, fraternidade, gentileza, reverência, respeito, sensibili-

dade, e a vassalida-de (o ser serviçal). A estrutura básica do humano não é a razão, mas o afeto, antes da razão vem o afeto e o afeto é fundamental para o cuidado.

A nossa con-temporaneidade beatificou e santi-ficou duas heroí-

nas do cuidado: Madre Tereza de Calcutá e Irmã Dulce da Bahia, que cuidaram da vida moribunda da rua. Governos cuidam de bancos, empresas, grupos de interes-ses, mas não cuidam de pessoas. Querem a obra social, mas não querem o doente, o mutilado, o fétido, o sem nada. Escolas cuidam de preparar para o mercado, mas não cuidam da solidariedade. Igrejas cui-dam do status hierárquico, da precisão litúrgicas, das pompas cerimonialísticas... e a pessoa, a pessoa é prioridade para es-tas grandes instituições que existem com a única finalidade de cuidar do humano? Quem quer o detalhado espírito de fineza e sensibilidade? Temos que voltar a pen-sar, procurar e imitar as figuras exempla-res da sociedade que nos testemunharam um total cuidado pela vida em todas as suas dimensões. Hoje buscamos muitas

terapias para curar, erradicar, sanar, mas temos que estar cientes que a única for-ma de cura é cuidar; esta é a grande clíni-ca do humano, a clínica do coração e do afeto.

Francisco de Assis viveu há 800 anos e é sempre novo. Por quê? Porque foi o homem do enternecimento, da aproxi-mação com o excluído, da ternura e vigor, da paz, da valorização de cada detalhe da natureza, de não perder nunca a sua humanidade e transformar em prece a sua alma: Meu Deus é meu Tudo! Fez de cada ação um projeto infinito, no simples, no modesto; no humilde fez aparecer o grande. Nós, modernos, temos muito que aprender com ele. Nós, herdeiros de uma cultura que tudo materializa e tudo vende, entregamos o espiritual para as religiões. Ele entregou o espiritual para a louvação de todas as criaturas, colocou o espiritual presente em tudo, mostrou que o universo está empapado do Espírito de Senhor e por isso não pode ser maltrata-do. Mostrou para nós que religião, mais do que professar é sentir, como diz uma paradigmática canção franciscana: “Doce é sentir, em meu coração, humildemente vai nascendo o Amor... doce é saber, não estou sozinho, sou uma parte de uma imensa vida...” Em tudo, Francisco de Assis redescobriu a grande fraternidade universal e o uni-

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versalismo fraterno e recriou o mundo com o Criador. Ele nos inspira a cuidar da vida em seu todo, a cuidar da natureza. Isto não é apenas um gerenciamento ra-cional e sustentável de recursos da natu-reza, mas é o modo de relacionar-se com a natureza, o modo de relacionar-se com a realidade total da existência: o físico, o mineral, o vegetal, o biológico, o animal, o consciente, o espiritual... onde tudo nos irmana, tudo se integra, nada se separa. A vida é uma rede de relações; nada existe fora disto. Se não cuido desta integração posso esfacelar a vida. O cuidado pela vida carrega uma promessa, um futuro. Deus mesmo nos ensinou o universo das relações cuidadosas, e o amoroso cuidado por todos os seres. Ele mesmo é uma fon-te originária (Pai e Mãe), que está acima de nós com a sua fontal presença. Ele está dentro de nós (numa comunhão de amor, o Espírito Santo que preenche toda a terra com seu sopro criador e renova todas as coisas); Ele está ao nosso lado na irman-dade, consanguinidade e fraternidade filial (o Filho). Cuidar é não separar fé, na-tureza e universo, cosmo, planeta, terra e espécie humana.

O que precisamos cuidar? Em primeiro lugar precisamos parar de trabalhar exa-geradamente com a nossa negatividade. Parar com este discurso de jornal televisi-vo de que tudo está ruim: a vida, a con-juntura, as relações, o mundo, as coisas, as pessoas, a rua, a cidade, a qualidade de vida, a política, a família e a comida. Pre-cisamos vibrar mais com a positividade, cuidar da positividade, este lado sadio da existência. Investir mais na integridade, na inteireza do ser, respirar e transpirar mais o belo e o bom (confira a reflexão anterior), deixar a boa energia passar. Evi-tar esta carga pesada de excesso de preo-cupações, doenças, anfetaminas, ritalina, receitas e queixas. Evitar as preocupações

econômico-financeiras que nos levam, cada dia, às peregrinações aos caixas ele-trônicos, lugar de consulta, aplicações, re-servas e poupanças. É bom e necessário que isto exista, mas vamos aprender com São Francisco, ele nos ensinou que dinhei-ro não é para acumular, mas sim para cui-dar da vida.

Precisamos cuidar do afeto. Não repri-mir o afeto, o amor, a ternura. Muito cui-dado com discursos religiosos que repri-mem o afeto! Religião que diz muito não é sadia. Condenar o afeto é reprimir o Amor. Precisamos ter o cuidado de não impedir o desejo de ser melhor, o desejo de pleni-tude, o desejo das bem aventuranças. Es-tar sempre ao lado da vida para vencer o medo da morte. Vencer os medos é escu-tar mais os desejos do coração. É preciso cuidar do sentimento. Cuidar de fazer fluir o amor que se direciona para algo, para alguém, para um grande projeto de vida. O que passa pelo coração naturalmente e necessariamente se transforma em amor. Isto nos leva prioritariamente a cuidar de alguém. Cuidar do que é humano, são e santo. Não separe o humano aquilo que Deus uniu. E o que Deus uniu? Humano e divino, espírito e matéria, efetividade e afetividade.

É preciso cuidar do emotivo e do afeti-vo; mergulhar na sensibilidade. Não pode faltar o Bem Amado, a Bem Amada como razão da existência. “Só o Bem Amado dá sentido à vida. É melhor viver no inferno com Ele, do que no céu sem Ele. Ele é o Bem, todo o Bem, o Bem Universal, a ple-nitude do Bem. Ele á força propulsora, a atração enamorante, o êxtase transfigu-rante e mortal. Ele é a vida e a morte, a dor que vale a pena ser abraçada, o ca-minho que tem que ser seguido. Ele é a palavra que sustenta a fé, o móvel que nos descentra, a voz que nos cha-ma. Por causa d’Ele, a lepra é doçura e o deserto um de-safio que esconde uma terra prometida. Ele é tudo! Como diz Ângelus Silesius: “Ele é verdade e palavra, luz e vida, alimento e bebida, caminho e peregrino, porta e repouso, bastão, luz, brinquedo, pai, irmão e filho, mãe e namora-da, esposa e filha. Ele é genu-flexório onde nos ajoelhamos para adorá-lo. Ele é a familia-

ridade que buscamos e a identidade mais profunda que temos e somos. Ele só é atingido quando não somos mais nós que vivemos, mas quando Ele vive em nós. O nosso eu é Ele e Ele toma o lugar do nosso Eu, marcando-nos com as chagas de seu intenso Amor”.

É preciso cuidar de escutar sempre a voz interior! Há uma convocação para existir! Ser atravessado por esta grande convocação, ser atravessado por uma pre-sença. Ser atravessado por esta presença que me diz que eu tenho que fazer na vida algo de muito grande, que ninguém pode fazer por mim. O modo de amar de cada um não é igual ao do outro. A água mo-lha todas as flores, mas cada uma nasce com a cor e o viço próprio. Esta convoca-ção para amar já é um caminho espiritual. “Francisco, vai! Reconstrói a minha casa!” É a escuta da voz interior. É a revelação de um fazer a partir da mais profunda identi-dade. Quem vê o rio tem que perceber a presença da fonte... e quem me vê, quem vê o meu ser...vê o quê?

É preciso cuidar da qualidade das rela-ções. Na qualidade da relação existe uma revelação. Cuidar da atenção, ser muito presente, ser muito perceptível, muito atento. Nutrir-se do aqui e do agora, ser sempre um ser de encontro. Cuidar da utopia humana, cuidar do humano pleno. Refazer a experiência de Jesus, Francisco, Clara. Eles são seres que dão testemunho de uma plenitude e nos ensinam que nós podemos aprender e evoluir. Eles nos aju-dam a nos identificarmos com o melhor e

“É preciso cuidar de escutar sempre

a voz interior!”

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a ser tudo o que pudermos ser para atingir o melhor... e não descansar. A verdadeira transformação só é possível quando você se torna quem você é! Isto é relevante para a vida humana. Cuidar nos ensina a ver para além de nós mesmos, nos ensina a ver a vida em suas relações espirituais, afetivas, sociais, políticas e profissionais. É uma ação de envolvimento de pessoas, uma reciprocidade ativa. É comunhão, inspiração para relações fraternas... en-fim, cuidar é elevar a qualidade de vida. Cuidar é transformar! É fazer surgir um novo ser humano (cf. BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. Petrópolis: Vozes, 1999; LE-LOUP, Jean-Yves. Uma arte de cuidar. Pe-trópolis: Vozes, 2007).

DISCIPULADO: A tarefa do discípulo é estar aos pés do Mestre. O discípulo é aquele que está sempre num contínuo aprendizado; é tarefa para toda vida, é o eterno aprendiz. Aprender vem da raiz latina discere e daí derivam as palavras discípulo, discipulado, disciplina. Estar aos pés do Mestre e escutar seu ensinamento, escutar a sua palavra e ampliar. Afeiçoado ao Mestre experimenta o seguimento e a imitação. O discipulado traz as virtudes do respeito e da reverência. Diante do Mes-tre reconhece a sua originalidade, a sua autenticidade a sua coerência e se sente cativado por ela. Dá um sim de absoluta confiança. Não arrisca a vida por qualquer coisa, mas pelo direcionamento positivo do Mestre. O discipulado é a virtude que traz constância, firmeza, perseverança na busca, tenacidade. O discipulado reen-canta a obediência como precisão da von-tade. Obedecer é descobrir um grande valor, é compreender a própria vida à luz de uma grande convocação, é interpretar a lógica de amor nos detalhes da vida, é discernimento, é agir criativo.

O discípulo não mede esforços para es-tar junto ao Mestre e aprender. Diz Her-mógenes Harada: “O discípulo busca ter grande desejo e se engaja na obra discipu-lar. O discípulo, quando quer, uma vez de-

cidido, imediatamente, simplesmente faz. Querer é fazer. Ele não diz querer é poder; diz antes, humildemente: querer é fazer. Mas pode fazer tudo o que quer? Sim, mas da seguinte maneira: realiza a obra, muitas vezes pequenina, o que pode, o que sabe e em grande desejo o que não pode. [...] O grande desejo significa aque-la abertura na reverência e positividade absoluta à tarefa proposta. É uma postura na qual jamais está em jogo ou em dúvida a decisão de gostar, admirar, querer, de se empenhar para conseguir. Esse grande desejo garante de antemão a continuida-de do trabalho, a ausência do desânimo, a eliminação, a imunização contra a toxi-na do ressentimento e frustração por não progredir ou não poder gozar de imedia-to o fruto desejado. A dinâmica do gran-de desejo, o discípulo cultiva sempre de novo, olhando com grande desejo o fim, se afeiçoando cada vez mais a ele, e en-tão, a partir desse esquentamento, faz a obra do que pode fazer. Concentra toda a energia acumulada no grande desejo para descarregar a energia infinita na pequena obra bem finita e determinada da hora presente, como se estivesse realizando a maior obra. Busca pois o infinito no finito e encontra o finito como infinito.”

Diante da convocação do Crucifixo de São Damião, Francisco de Assis responde: “De boa vontade o farei, Senhor!” (LTC 5,13). No discipulado é essencial apresen-tar-se com boa vontade. Aqui a vontade

é enraizada na vontade do Mestre, é a vontade obediente, aberta, disposta, vi-gorosa, animada. É deixar fluir na própria vontade a vontade de Deus. A boa vonta-de traz o cultivo das virtudes da humilda-de, docilidade, fortaleza, paciência, tena-cidade, resistência. Esta boa vontade gera uma forte espiritualidade como aquela espiritualidade que nos deram Domingos, Inácio, Teresa, Francisco, os mestres do seguimento.

GENEROSIDADE: É a ação baseada em valores já trabalhados a partir do nascido, isto é, da boa educação recebida desde o berço e que continua gerando muita disponibilidade. É estar sempre disposto, bem preparado para fazer o que deve ser feito com qualidade. Este preparo vem da terra da própria formação pessoal, fami-liar e fraterna. Com naturalidade e inicia-tiva faz com espontaneidade e segurança.

DIÁLOGO: Através da palavra, da co-municação, através da fala e de uma gran-de capacidade de escuta, entra no mundo das ideias num intercâmbio de compreen-são. O diálogo recupera uma fala e uma escuta terapêutica: faz bem e permite atravessar os medos e incertezas. Dialo-gar é também saber silenciar. O falar e o pensar têm muito a ver com o silenciar.

PERSEVERANÇA: É a tenacidade dos que não desistem nunca. É manter o rit-mo da persistência na busca apaixonada em atingir uma meta. É não entregar-se jamais! Esta virtude tem a ver com o he-roísmo, que é feito da busca incessante, da pertinácia incansável daqueles que não param à beira do caminho. É perma-necer no sonho. Como diz Walter Hugo de Almeida: “Somente os que acreditam na verdade dos sonhos é que chegam à vitória”.

SENSIBILIDADE: É o sprit de finesse, isto é, o espírito de plena atenção, fineza e cuidado. Colocar todos os sentidos para perceber a vida e os detalhes da vida. Não deixar nada passar despercebido. Afinar o espírito para ver, sentir, exercitar a aten-ção constante. O franciscanismo (cf. O Belo e o Bom) nos ajuda a criar uma esté-tica de muita sensibilidade, isto é, de ter gestos de leveza, delicadeza, sutileza nas atitudes e relações. Uma grande sensibi-lidade para com as pessoas, para com a vida e para com todos os seres.

“Obedecer é descobrir um grande valor, é compreender a própria vida à luz de uma grande convocação, é inter-pretar a lógica de amor nos detalhes da vida, é discerni-

mento, é agir criativo”.

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9º Encontro | “Elenco de Virtudes para a iluminação da existência”

OLIDARIEDADE: Francisco de Assis agrupou pessoas para viver com elas valores en-raizados no Evangelho e no

sonho da Fraternidade. O grupo pri-mitivo de Francisco não passou des-percebido porque teve um modo origi-nal de se expressar socialmente: viver simples, vestir-se simples, estar entre os simples, cuidar dos chagados e aju-dar camponeses. Seus primeiros com-panheiros e pouco tempo depois, Clara de Assis e suas companheiras que se juntaram a eles, vieram de várias cate-gorias sociais; mas o seu propósito tão claro, criou uma única classe humana: a dos que fazem o Amor ser realmente

amado! Escolhem

a itinerância e a contemplação como um modo de vida e isso os ajuda a vi-ver o desprendimento, a mobilidade, o privilégio de não ter privilégios, a li-berdade, a igualdade, e uma prática da caridade que garante a realização do Evangelho e uma visão de mundo mui-to sensível. Este grupo, sem usar este termo, viveu a solidariedade como a fecundidade social do amor.

Fazem a experiência de dar e re-ceber; a experiência de esmolar; e a esmola não era só o que se recebia como doação ou que se oferecia prodi-gamente, mas era, sobretudo, estar no lugar onde estavam as necessidades dos doentes e leprosos, dos pobres e fracos, dos mendigos, dos lascados,

dos excluídos, dos irmãos e irmãs, da gente marginalizada e desprezada. Aqui começa para esta fraternidade a primeira prática solidária: o que eu tenho eu dou, porque é preciso viver não para si mesmo, mas em favor dos que necessitam; e viver era suprir, ofe-recer, estar junto dividir, providenciar o necessário (cf. Rnb 9). Assim cresce-ram eles e todos os que participavam deste modo de ser, pois quem vai ao encontro da necessidade alheia devol-ve à pessoa a sua beleza e dignidade.

Porque decidiram viver nas ruas e pelos caminhos Assis, pelas estradas da Úmbria e do mundo, da portaria do mosteiro de São Damião a todas as portas abertas das necessidades

S

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sociais, perceberam os malvistos, os malcuidados, os mal educados, os ba-nidos e os que são vítimas de precon-ceitos de castas e credos. É assim mes-mo! Quem decidiu seguir as sendas de Jesus Cristo, consegue ver melhor o faminto, o preso, o nu, o sedento, o pequeno, o sofrido e o paralítico. Não tem como não filtrar tudo pelos olhos do Evangelho e suas práticas.

Na sua origem o Projeto Francis-cano, teologicamente, é centrado na Encarnação, na Paixão e na Eucaristia. A Encarnação é de um Deus que vem morar junto, é humano, é carne da nossa carne, é raça, é Filho do Homem, é um atencioso pleno de cuidado soli-dário. A Paixão mostra que a Cruz não é fim; é fonte! Fonte de capacidade do Amor se entregar até as últimas con-sequências. Morrer prometendo ao contrário o paraíso e arrumando uma Mãe para o discípulo e para o mundo. A Cruz fala em meio a enigmas, entre-gas e incompreensões, mas sempre fala e manda reconstruir! A Eucaristia lembra, cada dia e em todos os luga-res, a partilha, o fortalecer a caminha-da, o dar um pedaço de si, revelando nele a própria natureza, alimentando de um Deus que se faz humildade e comida para tocar o humano nas suas entranhas. É fazer-se inteiro em cada pedaço! A Eucaristia faz ir para a mesa quem mais precisa.

Francisco de Assis ensinou a solida-riedade através do Cântico das Criatu-ras, isto é, a destinação universal de todos os bens, a fraternidade universal e o universalismo fraterno. O Altíssimo Onipotente é sempre um Bom Senhor, o Sumo Bem, é o Deus de nosso cora-ção que nos convoca a um Amor Uni-versal, inaugura a fraternidade e a soli-

dariedade de todos os seres, de todas as criaturas, de todas as pessoas. Todo ser criado nos remete à fecundidade social do amor. A verdadeira fraterni-dade humana se ampara na comunhão de valores e de bens fundamentais para a vida: a terra, a água, o ar, o fogo, a luz, o verde das plantas, a habitação, o mundo limpo e bonito, partilhado e cuidado para oferecer a todos as me-lhores condições de viver. Ao dividir tudo isso, conquistamos a verdade, a justiça, o amor, a solidariedade, a liber-dade, a mais plena comunhão de bens e de dons.

Com o Projeto Franciscano apren-demos que solidariedade é energia de amor e generosidade, que é busca incansável do bem, do dom de si à fra-ternidade humana; uma atitude per-manente de renúncia e serviço; de ge-rar recursos para viver e trabalhar em benefício de todos. Aprendemos que Pobreza não é contrária ao sonho de ter, nem é a angústia de não ter, mas é gerar recursos, trabalhar e dividir com todos. Aprendemos que Obedi-ência é atitude constante de escutar o Amor e dizer: “De boa vontade o farei, Senhor!” e, a partir daí, ter paixão na vontade e nos projetos. Aprendemos que a Pureza de Coração é epifania de um Amor Solidário e Universal.

Com Francisco de Assis aprendemos que ser solidário é a identificação com a Pobreza e com o Pobre; que ser soli-dário é ser irmão e irmã de todos; é ver o mundo no coração da experiência de alguém que está experimentando uma grande carência. Isto é o que transfor-ma as práticas e o modo de estar no mundo, tornando “o amargo em doçu-ra de corpo e alma” (Test 3).

Francisco não está preso aos proje-tos do mundo. Ele se recusa a ter um pensamento utilitarista, isto é, ter o melhor uso dos recursos para o melhor funcionamento dos sistemas; um pro-

cesso que continua industrializando e mercantilizando mentes e corações (cf. o filme: “Quanto vale ou é por quilo?”, de Sérgio Bianchi). Ele é um pobre, um livre, um diferente, um irmão que mostra que a verdadeira solidarieda-de é apontar para a desumanidade; é notar a negatividade e as injustiças presentes nos processos sociais e lutar contra isso; é questionar as promessas que o sistema faz e não cumpre; é dei-xar as pessoas falarem; é educar para a originalidade; cuidar da singularidade da pessoa para que ela seja cada vez mais ela mesma e não apenas vítima; pregar e viver a sensibilidade, a fine-za, a cordialidade; ser um instrumento de paz, e paz é garantir a quem precisa o melhor! Temos que perguntar: que Espiritualidade brota desta prática so-lidária?

Com São Francisco de Assis temos a inspiração de reconstruir e transfor-mar, viver e praticar a solidariedade como serviço! Tudo isto gera uma Es-piritualidade comprometida; reacende um modo de crer. A fé instaura a es-perança de que algo precisa mudar e a esperança instaura um dever ser me-lhor. É sempre um projeto a ser realiza-do e não uma tarefa já cumprida. Dizia Francisco pouco antes da sua morte: “Irmãos até agora nada fizemos, vamos recomeçar!” Nós precisamos ter fé no Deus da Vida e na vida que precisa de cuidado para poder mudar, ultrapassar, transcender e transformar. Crer não é dominar a vida, mas servi-la! Mostrar que as misérias não podem ficar para-das no absurdo. É preciso instaurar a dinâmica da Utopia (não entender uto-pia como fuga da realidade), a lingua-gem e a prática do princípio-esperança do dever-ser. É a capacidade humana de poder contestar, transgredir, estar além de qualquer

“Francisco de Assis ensinou a solidariedade através do Cântico das Criaturas, isto é, a destinação universal

de todos os bens, a frater-nidade universal e o uni-

versalismo fraterno”.

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situação que é dada. É a proclamação e a realização de uma promessa orien-tada para um cumprimento: atravessar desertos e chegar à Terra Prometida. A Espiritualidade não quer a vida, quer a Vida Eterna; não quer o amor, mas o Amor sem fim; não quer isto ou aquilo, quer Tudo, quer o melhor!

A Espiritualidade tem que falar divi-namente do humano; falar em nome do Divino que habita o humano e que não pode ser violado, injustiçado, subornado, por nada, por nenhuma ideologia, por nenhum arranjo político, por ninguém. Ao fazer isso a Espiritualidade presta um serviço incontestável a toda humanida-de, aos humilhados e ofendidos, para que a sua dignidade e sacralidade seja respeitada. A Espiritualidade tem que acordar a denúncia profética, para que os opressores sejam julgados já na histó-ria, pela voz da própria consciência que é a voz de Deus falando e julgando de den-tro dos corações ofendidos. A Espirituali-dade deve ajudar a pessoa a conquistar e reconquistar a sua humanidade.

A Espiritualidade não pode falar de um Deus qualquer; mas do Deus de nos-sos pais, do Deus dos profetas, do Deus de Jesus Cristo, de um Deus que não compactua com a iniquidade. Um Deus

onipotente e for-

te, Senhor do Cântico das Criaturas e de muita ternura para com o seu povo; um Deus que não permite que a vida seja destruída.

A Espiritualidade ajuda a voltar o olhar para o céu e encontrar ali este Deus que ensina a ver a terra, e perceber a pessoa ao lado, sofrida e necessitada. Uma Es-piritualidade tem que trazer Deus das nuvens ao chão; tem que ajudar a trans-formar a história, reconstruir a casa, vi-ver o Evangelho não para uma pregação piedosa, mas para uma maior humaniza-ção. O que adianta uma Espiritualidade que não se comprometa com o processo histórico de um povo? Tem que estar por detrás um processo de mudanças e não apenas livros e cheiros adocicados de incenso. Tem que ter um compromisso pela justiça. É momento de iluminação e animação de práticas e não fuga de rea-lidades conflitivas. Do que adianta ficar-mos recitando salmos, orar em línguas e cantar mantras enquanto há exploração das grandes maiorias e acumulação es-candalosa nas mãos de minorias? Uma Espiritualidade não pede só a transfor-mação da pessoa, pede também a trans-formação das estruturas. Ou será que a realidade não ocupou um lugar privile-giado na pregação de Jesus e dos gran-des Mestres?

A Espiritualidade muda não só a cons-ciência, mas convida à ação: transfor-mação interior e a mudança do mundo. Conhecer a realidade do mundo. Conhe-cer para transformar. O divino, o religio-so, o espiritual, o social, são dimensões que atravessam tudo. Viver é fazer esta travessia. Diz o teólogo Congar: “nós só podemos ter a teologia da nossa própria prática”. Ser espiritual é humanizar a vida. Abraçar uma Espiritualidade é ser levado a práticas de Amor; é nascer no-vamente de atos concretos de Amor.

A Espiritualidade é necessária para a luta na vida e pela vida, para o funda-mento das convicções. É estar entre o povo com muito amor pelo povo. Não ter só um protagonismo individual, mas um protagonismo de homens e mulhe-res novos. É amar o povo como se ama a pessoa amada. Construir uma sociedade melhor é refazer o sonho de Jesus: ins-taurar o Reino de Deus.

A Espiritualidade tem que sonhar e re-alizar a prosperidade. Não perder a von-

tade de crescer, de evoluir, de ser criati-vo. Ser mais, amar mais, ter mais, saber mais, multiplicar mais; sem superiorida-de, mas de forma compartilhada. O ne-cessário não pode faltar para ninguém, contudo não precisamos mais do que o necessário, se não vamos comprometer o futuro do planeta e das pessoas.

A Espiritualidade faz nascer em nós uma certa rebeldia: dizer um não à do-mesticação, à escravidão, à manipula-ção, à rotulação. Precisamos ter lucidez crítica, cobrar coerência e apontar injus-tiças sem medo.

Enfim, existe uma Espiritualidade que brota da Solidariedade. Não temos muito que dizer. É melhor ler um trecho da carta de um pai revolucionário aos seus filhos: “Se sentires a dor dos outros como a tua dor, se a injustiça no corpo do oprimido for a injustiça que fere a tua própria pele, se a lágrima que cair do rosto desesperado for a lágrima que você derrama, se o sonho dos deserda-dos desta sociedade cruel e sem piedade for o teu sonho de uma Terra Prometida, então, serás um revolucionário, terás vi-vido a solidariedade essencial”.

A Espiritualidade muda não só a cons-ciência, mas convida à ação: transforma-ção interior e a mu-dança do mundo.

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10º Encontro | “Elenco de Virtudes para a iluminação da existência - 02”

Já ao término do nosso percurso vamos elencar mais algumas vir-tudes vividas sob o filtro da espiri-tualidade franciscana. Durante os nossos encontros repetimos como um refrão: cada virtude puxa um encadeamento de outras virtudes, cada uma está implícita em muitas. Muitos destes conteúdos já con-templamos nas virtudes anterior-mente citadas. Este é apenas um resumo de tudo o que refletimos. Vejamos:

CORDIALIDADE: Para a lingua-gem da espiritualidade e da mística o órgão do conhecimento não é o intelecto, mas sim o coração. Nós só retemos em nossa mente aquilo que é filtrado pelo coração. O que toma o nosso coração toma conta

de nosso corpo inteiro, da nossa vida, da nossa história e de nossas práticas. Nós somos o que colo-camos em nosso coração. Quem não tem nada no coração não é ninguém. A cordialidade é acolher a vida , como diz Guimarães Rosa, “coraçãomente”. É receber alguém com boa energia do sentimento, do afeto, da delicadeza que está no coração. A pessoal cordial sente a vida pulsar em todos os detalhes. E recebe o outro como na visita que Maria fez a Isabel: faz vibrar o coração quando alguém chega. Encontrar-se é fazer vibrar a inte-rioridade. “ Quem dá coração, tem corações!”

GRATUIDADE (GRATIDÃO): É a capacidade de maravilhar-se dian-

te de tudo o que se recebe da vida. Agradecer é reconhecer. É a afirma-ção de ser criatura, tão frágil, mas tão privilegiada. É estar encantado por tantos dons e bens recebidos.

FRATERNIDADE: A pessoa se fir-ma e se defina pelas suas relações qualificadas. Na fraternidade po-demos viver a qualidade de nossas relações. Nas qualidades de nossas relações há sempre uma revelação. A fraternidade ajuda a abrir mão de interesses puramente egoístas. Uma coisa é viver junto, ser um agrupamento de pessoas; outra coisa é estar num grupo que tem uma consangüinidade espiritual, possui uma tradição que vem de longa data, tem espírito comum e objetivo

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comum. Mesmo vivendo dentro de uma estrutura ou de um institui-ção, assume com liberdade a cor-responsabilidade de assumir uma causa pessoal filtrada pela causa de todos. A fraternidade é o lugar do relacionamento com o projeto comum, universal, vital, na vitalida-de de um carisma que nos desafia a viver com uma identidade comum sem interferir na identidade pes-soal. Temos um sangue biológico e um sangue espiritual. Este sangue espiritual é a força, a essência e o fundamento da vida que escolhe-mos para viver juntos.

PRUDÊNCIA: é agir com muita moderação, com muita sensatez, sem precipitação. Agir de um modo cauteloso, comedido, com plena atenção que evita ocasiões de erro.

RESPEITO: Sensibilidade para captar a verdade presente no dife-rente de mim mesmo. Olhar para alguém e ver a sua qualidade, o seu ritmo, a sua diferença a sua iden-tidade única, sua tradição, cultura, bagagem e costumes. Acolher a ca-pacidade do outro(a) que é única e capaz de acrescentar algo em mi-nha existência. É dizer: “ A minha alma engrandece por ter encon-

trado você!” É

ser sal da terra segundo o jeito do Evangelho: sentir o gosto especial daquilo que tempera a minha vida.

HUMILDADE: Vem de húmus, isto é, a fecundidade que está no subsolo da vitalidade. A força es-condida que faz tudo desabrochar. A capacidade de assumir a grande-za do próprio tamanho sem apa-rentar ser maior ou menor, mas sim ser a arte de ser o que se é. É a silencioso e oculta consistência in-terna que dá tempo para que tudo ganhe vida, floresça, desabroche. O humilde se submete à condição de ser um inútil que deixa trans-parecer a utilidade sem barulho. Tem a coragem de não aparecer, mas revelar mansamente o misté-rio e o valor da pessoa e de todas as coisas.

SIMPLICIDADE: É a transparên-cia do humilde. O simples revela a força do humilde. Visibiliza aquilo que o humilde esconde, mas de um modo discreto. É gritante, mas não gritado. É a emergência do hú-mus. A simplicidade se apóia numa experiência profunda de vida e não precisa de publicidade. O simples é natural e faz fluir a vida. Como gosta de lembrar o Mestre Frei José Carlos Pedroso OFMCap : simplici-dade vem do latim simpliciter, pli-citer, plicas= dobras, pregas. Uma saia pliçada é esteticamente lin-da mas difícil de lavar e de passar. Quando se cria uma dobra temos um aplique, duas dobras duplicam, três dobras triplicam...é preciso tirar as dobras, tornar fácil o ca-minho, afastar os obstáculos. Sim-plicidade é facilitar o caminho da vida; é descomplicar.

JUSTIÇA: Está ligado ao que re-fletimos sobre a solidariedade. É a virtude que induz a cumprir o que é reto, o que é devido como exigên-cia de ordem e harmonia mandato. É fazer conscientemente o dever, é cumprimento, mandato. É a dis-posição permanente e dinâmica do bem valor. É a retidão de vida em

consonância com a verdade que se abraçou.

UNIÃO: é arte de unir pedaços e moldar um mosaico que revela uma força comum. Um ícone de unidade; uma mandala de ver-dades unidas pelo mesmo laço. A virtuosidade vivida na união é a reunião do munus (cum+munus), isto é, o papel de cada um numa tarefa forte com a força de todos. É unir diferenças para criar laços , para criar um todo. A diferença é condição para criar a união. Se não houver o diferente como criar? Não somos linha de montagem que produz tudo igual. Somos a rique-za diversificada de cada identidade que cria a unicidade.

ITINERÂNCIA: A palavra tem raiz latina iter que significa caminho, via, percurso, senda, meta, dar um passo, fazer estrada. É mobilidade, busca, dinamismo. Para a mística e a espiritualidade tudo começa por um passo. O caminho se faz ao andar. É a mística de Santiago. É seguimento, imitação, entrar no ritmo dos passos do Valor Maior. São Francisco dizia: “A regra e a vida é esta: seguir e ensinamento e as pegadas de Nosso Senhor Je-sus Cristo” (cfr. Rnb 1) . Sempre é bom lembrar o mítico poema de Antonio Machado, poeta de Sevi-lha (1875-1939) que escreveu es-tes versos que estão em seu grande poema “Provérbios y Cantares”:

“Caminhante, o caminho são tuas pegadasE nada mais que pegadas;Caminhante, não há caminho:Faz-se caminho ao caminhar.Caminhando, se faz caminhoE quando olhas para trás,Verás a trilha que nunca maisVoltarás a trilhar.Caminhante, não há caminho,Sobram apenas sulcos no mar”

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No último item acima explicita-do falamos do iter, o caminho. Vamos encerrar esta série de reflexão sobre a Espiritualidade com três elementos essenciais deste caminho. Precisamos vi-brar mais com a nossa força es-piritual e com a espiritualidade. Todas as espiritualidades são maravilhosas porque falam de verdades maravilhosas. Vamos então lembrar três elementos do caminho espiritual:

1. O INICIADO - Muitas reli-giões falam da Iniciação, o cristia-nismo católico fala dos sacramen-tos da iniciação; porém muitos entendem (e talvez esta seja a prática) a iniciação como prepa-rar para o dia do batismo, para o dia da primeira comunhão, para o dia do crisma... e depois que pas-sar este dia? Será que este tempo termina com a festa entre pais, pa-drinhos, amigos, parentes regada com cerveja e refrigerante, macar-ronada , frango e maionese? Não é esta a proposta de uma Pedagogia Iniciática. A Iniciação é tarefa para toda a vida, é a tarefa essencial de tornar-se plenamente humano, tornar-se cada vez mais espiritual

no decorrer do dia a dia. É uma via interior. É um trabalho constante que tem um início, mas que está na contínua tarefa de aprender a aprender. É ser eternamente discí-pulo. O aprendizado é evolução; e está em todo momento religando a razão ao coração e vice versa. Liga a ciência à consciência, a efetivida-de à afetividade, a existência à es-sência. O Iniciado está no caminho do aprendizado e este caminho o leva a: ser, conhecer, fazer, con-

viver. Aprender é evoluir. Abre o olhar para si mesmo, para o Sagrado, para o Universo, para o outro e para o Gran-de Outro, o Mestre. Não só abre o olhar como leva à uma fantástica mudança. Muda o olhar para mudar o mundo. A

iniciação educa para ser. Educa para que nunca esqueçamos que devemos ser seres de ligação entre Deus e o Ser Humano, entre Céu e Terra, entre Matéria e Espírito.

O Iniciado faz um real caminho da busca pela verdade. No “Eu sou” do Mestre vai burilando o seu “Eu sou”, a subjetividade profunda , a filosofia de identidade que o pre-para para grandes tarefas comuns, que o prepara para o mundo e para o social. O Iniciado fortalece o espi-ritual. Vai à fundo nas opções e não se contenta com o discurso pseu-do religioso da satisfação imedia-ta. Ele é paciente e cuidadoso em chegar a verdade de si mesmo, de Deus e de todos os seres. Ao fazer bem o discurso do profundamente humano,a humanidade vê nele o divino. Existe sempre algo miste-rioso a ser descoberto. Espiritua-lidade é um passo a mais. Dar um

11º Encontro | “Espiritualidade para uma Vida Virtuosa”

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passo a mais a partir de onde esta-mos. O Iniciado é o ser do caminho. Identifica tendências, segue indica-ções profundas. Procurar ser tudo o que puder ser de melhor. Não descansa nunca. O Iniciado sabe que a verdadeira transformação é quando torna-se fervorosamente o que se é.

2. O DESPERTO - É aquele que acorda o sagrado que dorme den-tro de si. Traz para o visível carnal o invisível espiritual. Aproxima-se do mistério e escuta a fala audível do mistério. Não deixa de estar atento ao fio que liga céu e terra. Olha a vida a partir do espaço da sua pro-fundidade, é o olho do anjo no olho humano. Vive num estado de alma e acorda a sua inteligência contem-plativa. Desperta uma consciência pura. Faz de sua alma um espelho límpido que reflete a dimensão es-piritual, que reflete algo que está para além da existência. Vive num estado de vigília para não perder esta sua essência. Como diz Tei-lhard de Chardin, é a antropologia da vastidão; um fenômeno huma-no espiritual. Não é suficiente ser eu, dentro de mim há algo maior que eu mesmo. É acordar este de-sejo mais íntimo que é o desejo da vida eterna, da vontade de Deus. É acordar o santo que está dentro de si. É dizer todos os dias: eu desejo a santidade! Comemorar o dia de to-dos os santos como o seu dia tam-bém. Quem vive a plenitude de um modo permanente é santo. O san-to está em nós, é preciso despertá--lo. Não se forma um santo, mas se acorda a imagem e semelhança divina que está em nós.

Alguém viu a Alma? Existe algo em nós que não é corpo, que não é matéria. O ser humano é uma es-sência, uma alma existencializada. É uma maneira única de encarnar o

amor de Deus no mundo. Cuidar da alma, cuidar do espírito é quando a gente se ultrapassa em direção ao outro. Isto é ser nobre e sagrado. É cada dia acordar perguntas em nós: quem sou eu? Qual a imagem do absoluta que me habita? Quem acorda para esta verdade sabe bem o que é a vida.

3. O CONTEMPLATIVO - Faz do tempo um templo. O caminho ini-ciático é passar do espaço tempo para o espaço templo. Recolhe. Silencia. Medita. Vê. Escuta pro-fundamente. O falar e o pensar correto tem muito a ver com o con-templar. Deus é um grande inter-valo( Fernando Pessoa) . É aquela pausa para refazer-se. Respirar. Ex-pirar. Transpirar. Quando esvazia-mos a mente o cálice transborda. O contemplativo consolida uma

plena atenção. É atento e presen-te. Nutre-se pelo aqui e pelo ago-ra. É sempre um ser de encontros. Faz ressurgir a função de templo em cada momento. Ao conquistar Deus reúne todo o universo. O con-templativo faz uma prece com to-dos os elementos do mundo. Per-cebe o algo mais e o maravilhoso. Percebe Deus nas nuances da vida. Conhece o Ser que o faz ser.

O contemplativo tem o silêncio antes das palavras; o silêncio antes da comunicação; o silêncio antes da ação. Traz a fala da palavra in-terior. Tem a calma e silêncio de comunhão. Mais do que uma fala é o templo da presença. O contem-plativo é filho do tempo e da eter-nidade; sempre está acordado para o que não morre.

Frei Vitório Mazzuco, OFM

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Agen

da do

ITF

2012

Janeiro03 a 09 Matrículas – 1ª etapa17 a 27 Matrículas – 2ª etapa

Fevereiro 16 a 25 Planejamento acadêmico20 a 22 Recesso Carnaval27 Início das aulas Março 16 e 17 Recesso Aniversário da Cidade de Petrópolis22 Reunião Ordinária do Conselho Diretor29 Reunião Ordinária do Conselho Acadêmico

Abril 02 a 07 Recesso Semana Santa09 Pasquela11 Noite Cultural12 Reunião Ordinária Conselho Diretor21 Feriado: Tiradentes23 Feriado: São Jorge

Maio 01 Feriado: Dia do Trabalhador05 Caminhada Ecológica10 Reunião Ordinária do Conselho Diretor

Junho 01 a 30 3° Ano da Faculdade: Protocolar Monografia07 a 09 Recesso Corpus Christi13 Fórum Professores e Alunos / Reunião do Conselho Acadêmico / Noite Cultural21 Reunião Ordinária do Conselho Diretor22 Festa Junina (Confraternização)29 e 30 Recesso do dia do Colono

Julho 02 a 14 Lançamentos de notas

Agosto 06 Início das aulas do 2º semestre16 Reunião Ordinária do Conselho Diretor30 Reunião Ordinária do Conselho AcadêmicoSetembro 07 e 08 Recesso do Feriado da Independência do Brasil12 Noite Cultural13 Reunião Ordinária do Conselho DiretorAté 30 4° Ano da Faculdade: Registrar Monografia Outubro 04 Recesso Dia de São Francisco11 Reunião Ordinária do Conselho Diretor12 e 13 Recesso Feriado N. Srª Aparecida15 Recesso: Dia do Professor24 a 26 SEMANA TEOLÓGICA (ITF) Novembro 02 e 03 Recesso Feriado de Finados07 Noite Cultural08 Reunião Ordinária do Conselho Acadêmico12 Início das exposições das Monografias14 Prazo de Entrega do texto da Monografia ao Orientador15 a 17 Recesso do dia da Proclamação da República19 e 20 Recesso Feriado da Consciência Negra22 Reunião Ordinária do Conselho Diretor30 Exame Oral para a PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE “ANTONIANUM” Dezembro01 a 05 Lançamentos de notas 06 Colação de Grau – Encerramento do Ano Letivo

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*** Algumas datas estão sujeitas a mudanças no decorrer do ano letivo ***

Equipe de Comunicação do ITF - 2011Frei Antônio Everaldo Palubiack Marinho;

Frei André Luiz da Rocha Henriques;Frei Clauzemir Makximovitz;Frei Douglas Paulo Machado;

Frei Elói Dionísio Piva;Frei Leonardo Pinto;

Ir. Lucinalva Soares da Silva;Frei Marcel Freire;

Frei Marcos Rubens Ferreira;Frei Osvaldo Maffei;

Frei Paulijacson Pessoa de Moura;Frei Rodrigo da Silva Santos;

Semyramys Frossard Gonçalves Dias;Frei Weliton Bortolon.

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Biblioteca Frei Constantino Koser

Livros Novos na Estante

O acervo da Biblioteca Frei Constantino é composto em sua maioria por obras teológicas, mas também nas diversas áreas de educação, filosofia, ecologia, psicologia, antropologia e públicações antigas e recentes da Editora Vozes.

FRUGONI, Chiara. Vida de um homem: Francisco de

Assis. Prefácio de Jacques Le Goff; tradução de Federico Carotti. São Paulo: Compa-

nhia das Letras, 2011. 169p., il. ISBN 978-85-359-1865-6.

Revistas: 1.100 títulos | 500 correntes | Obras: +100.000

Acesso on line a Biblioteca:Consulte nosso acervo em:http://www.franciscanos.org.br/itf/biblioteca/

Aviso:Recesso de 21/12/2011 a 02/01/2012

Horário de FuncionamentoSegunda à Sexta-feira7h30 às 12h | 13h às 17h30

BETTO, Frei. Sinfonia uni-versal: a cosmovisão de

Theilhard de Chardin. nov.ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

127p. ISBN 978-85-326-4163-2.

ANTUNES, Celso. A atenção: saldo ou déficit? Petrópolis: Vozes, 2011. 99p. (Na sala de aula, 19). ISBN 978-85-

326-4192-2.

MAZZAROLO, Isidoro. Jesus e a física quântica. Rio de

Janeiro: PUC-Rio, 2011. 214p. ISBN 978-85-8006-

035-5.

MEGALE, Nilza Botelho. Devoções a Nossa Senhora: como surgiram as invoca-

ções a Maria no século XX. Petrópolis: Vozes, 2011. 173p. ISBN 978-85-326-

4141-0.

PRADO, José Luiz Gonzaga do. Jesus, a Boa Notícia! :

catequese com adultos. Pe-trópolis: Vozes, 2011. 120p., il. ISBN 978-85-326-4159-5.

POLIZELLI, Demerval Luiz. Meio ambiente e gestão do conhecimen-to: Dos higienistas à sociedade da

informação : o papel da administra-ção e uso das redes sociais para a era da “desfabricação em massa”. São Paulo: Almedina, 2011. 225p. ISBN

978-85-62937-14-9.

Page 69: Revista ITF nº3

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