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A D IVERSIDADE DA G EOGRAFIA B RASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 7091 POLÍTICAS DE EXCEÇÃO, RACISMO DE ESTADO E O DIREITO E ACESSO À DOCUMENTAÇÃO CIVIL BÁSICA DA POPULAÇÃO DA RESERVA INDÍGENA DE DOURADOS. NAARA SIQUEIRA DE ARAGÃO 1 ALEXANDRE BERGAMIN VIEIRA 2 RESUMO: Este artigo é fruto da vivência profissional, enquanto Assistente Social no Hospital Universitário da cidade de Dourados e também como representante do Hospital no Comitê Municipal de Erradicação do Sub-Registro de Nascimento e Documentação Básica na cidade de Dourados. O objeto aqui explorado será o direito e acesso à documentação básica dos indígenas aldeados na reserva Indígena - RID da Cidade de Dourados. Demonstrando como seus direitos básicos, garantidos na Declaração dos Direitos Humanos, em seu artigo sexto, e na Constituição Brasileira (1988), têm sido cerceados, refletindo na vida cotidiana da população da reserva Indígena de Dourados, o que caracterizamos como uma política Racista do Estado. Acreditamos que, com este artigo, possamos problematizar a situação emblemática na qual se encontra a população indígena na Reserva Indígena de Dourados e a quais tipos de políticas estão submetidos, buscando, assim, através de novas práticas, desconstruir a realidade para construir novas políticas que de fato sejam efetivas e empoderadoras para esta população. Palavras-chaves: Reserva Indígena de Dourados, Racismo de Estado e Políticas de Exceção. ABSTRACT This article is the result of professional experience as social worker at the University Hospital of the city of Dourados and also as a representative of the Hospital Municipal Committee for the Eradication of Sub-Birth Registration and Basic Documentation in the city of Dourados. The object is explored here the right and access to basic documentation of indigenous villagers in Indian reserves - RID City of Dourados. Demonstrating how their basic rights, guaranteed in the Declaration of Human Rights, in its sixth article, and in the Brazilian Constitution (1988), have been curtailed, reflecting the daily life of the population of the indigenous reserve of Dourados, which we characterized as a racist policy State. We believe that with this article, we discuss the emblematic situation in which the indigenous population is in the Indigenous Reserve of Dourados and what types of policies are submitted, seeking thus through new practices, deconstruct reality to build new policies in fact are effective and empowering for this population. Keywords: Indigenous Reserve of Dourados, State Racism and exception policies. 1 Introdução Neste texto objetivamos tornar visível precisamente o que é invisível, ou seja fazer aparecer o que está tão próximo, o que é tão imediato, o que está então intimamente ligado a nós mesmos que por isso não percebemos. E utilizando da 1 Discente do Programa de Mestrado de Geografia da UFGD. E-mail para contato: [email protected]. 2 Prof. Dr. da Faculdade de Ciências Humanas da UFGD. E-mail para contato: [email protected].
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POLÍTICAS DE EXCEÇÃO, RACISMO DE ESTADO E O … · 2 – Racismo de Estado e as Reservas Indígenas de Dourados (RID) A reserva de Dourados foi instituída por meio do decreto

Feb 11, 2019

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

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POLÍTICAS DE EXCEÇÃO, RACISMO DE ESTADO E O DIREITO E ACESSO À

DOCUMENTAÇÃO CIVIL BÁSICA DA POPULAÇÃO DA RESERVA INDÍGENA DE

DOURADOS.

NAARA SIQUEIRA DE ARAGÃO1 ALEXANDRE BERGAMIN VIEIRA2

RESUMO: Este artigo é fruto da vivência profissional, enquanto Assistente Social no Hospital Universitário da cidade de Dourados e também como representante do Hospital no Comitê Municipal de Erradicação do Sub-Registro de Nascimento e Documentação Básica na cidade de Dourados. O objeto aqui explorado será o direito e acesso à documentação básica dos indígenas aldeados na reserva Indígena - RID da Cidade de Dourados. Demonstrando como seus direitos básicos, garantidos na Declaração dos Direitos Humanos, em seu artigo sexto, e na Constituição Brasileira (1988), têm sido cerceados, refletindo na vida cotidiana da população da reserva Indígena de Dourados, o que caracterizamos como uma política Racista do Estado. Acreditamos que, com este artigo, possamos problematizar a situação emblemática na qual se encontra a população indígena na Reserva Indígena de Dourados e a quais tipos de políticas estão submetidos, buscando, assim, através de novas práticas, desconstruir a realidade para construir novas políticas que de fato sejam efetivas e empoderadoras para esta população. Palavras-chaves: Reserva Indígena de Dourados, Racismo de Estado e Políticas de Exceção.

ABSTRACT

This article is the result of professional experience as social worker at the University Hospital of the city of Dourados and also as a representative of the Hospital Municipal Committee for the Eradication of Sub-Birth Registration and Basic Documentation in the city of Dourados. The object is explored here the right and access to basic documentation of indigenous villagers in Indian reserves - RID City of Dourados. Demonstrating how their basic rights, guaranteed in the Declaration of Human Rights, in its sixth article, and in the Brazilian Constitution (1988), have been curtailed, reflecting the daily life of the population of the indigenous reserve of Dourados, which we characterized as a racist policy State. We believe that with this article, we discuss the emblematic situation in which the indigenous population is in the Indigenous Reserve of Dourados and what types of policies are submitted, seeking thus through new practices, deconstruct reality to build new policies in fact are effective and empowering for this population. Keywords: Indigenous Reserve of Dourados, State Racism and exception policies.

1 – Introdução Neste texto objetivamos tornar visível precisamente o que é invisível, ou seja

fazer aparecer o que está tão próximo, o que é tão imediato, o que está então

intimamente ligado a nós mesmos que por isso não percebemos. E utilizando da

1 Discente do Programa de Mestrado de Geografia da UFGD. E-mail para contato:

[email protected].

2 Prof. Dr. da Faculdade de Ciências Humanas da UFGD. E-mail para contato:

[email protected].

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ciência no seu papel de fazer conhecer o que nós não vemos ou não queremos ver

e da filosofia fazendo ver o que nós vemos.

Entendemos ser dessa forma que o intelectual pode atuar eficientemente nas

mais diversas lutas, tanto as dirigidas a alvos mais visíveis como aquelas travadas

contra as formas colonialistas, étnicas, lingüísticas, nacionalistas, econômicas de

dominação, ou as lutas políticas contra formas bem conhecidas, jurídicos-políticas,

de poder, quanto as que se opõem a um modo de exercício de poder que, mesmo

encoberto por um manto de invisibilidade, produz amplos efeitos estruturantes na

sociedades atuais (BERNARDES, 2013).

O objeto aqui explorado será o direito e acesso à documentação básica dos

indígenas aldeados nas reservas Indígenas da Cidade de Dourados, demonstrando

como o direito básico garantido tanto na Declaração dos Direitos Humanos em seu

artigo sexto, quanto na Constituição Brasileira tem sido cerceado e refletido

negativamente na vida cotidiana da população da reserva Indígena de Dourados

podendo assim caracterizar como uma política Racista de Estado.

No auge de sua trajetória intelectual, Michel Foucault propôs a oposição entre

tecnologias do poder a tecnologias da vida. As novas técnicas do poder, nascidas

com a expansão do capitalismo, foram indicadas, pela ordem de aparecimento: a

disciplinarização, que adestra e regula os corpos, a normalização, que conforma as

subjetividades e as condutas das pessoas, e o biopoder, que posteriormente atribui

a seu cargo o controle, gestão e ordenação das populações (BERNARDES, 2013).

Para compreender melhor o conceito de Biopoder depende do entendimento

de algumas teses centrais da microfísica foucaltiana do poder, buscando entender

que o poder não é concebido como uma essência, como uma identidade única, nem

é um bem que uns possuem em detrimento dos outros e que o mesmo é sempre

plural e relacional e se exerce em práticas heterogêneas. O que Foucault havia

descoberto não era a impotência do poder soberano, mais sim a maior eficácia de

um conjunto de poderes que em vez de negar e reprimir, atuavam discretamente na

produção de realidades e efeitos desejados por meio de processos disciplinares e

normatizadores. Neste projeto analítico o corpo mostrava-se como a instância

privilegiada de atuação de micropoderes disciplinares (FOUCAULT, 1995).

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O biopoder é possível quando, no século XIX, a relação entre indivíduo e sociedade começa a ser modificada. Em uma organização social na qual existe o corpo individual de um lado e a sociedade de outro, as estratégias de poder edificam-se de forma disciplinar. A partir do século XIX, como foi apontado, surge um novo problema: não se trata mais do indivíduo em seu meio natural, e sim dos efeitos da cidade, dos processos cada vez mais recrudescidos da urbanização. A urbanização repercute não mais em corpos individuais, mas sim nos indivíduos em seu conjunto - a população. No que tange às práticas de significação, passa a ocorrer outro tipo de jogo: não mais indivíduo-corpo-sociedade, e sim população-espécie-cidade. Isso não quer dizer que as práticas disciplinares e o foco nos indivíduos-corpos deixaram de existir. Emerge, isso sim, outro conjunto de práticas de significação, que traz consigo distintos modos de poder (BERNARDES, 2011).

Em plena época na qual a sociedade se auto proclamou esclarecida,

iluminista episódios de violência extrema, genocídios e humilhação de populações

inteiras, em todas as partes do planeta, ocorrem de modo inegável nos últimos dois

séculos. Autores como Foucault, Bauman, Agambem, Arendt, dentro outros, têm

problematizado as consequências do excesso de poder nos regimes políticos de

todos os matizes ideológicos existentes desde o século XIX. Como numa época de

avanços tecnológicos e científicos, tantas instituições promovem práticas e técnicas

de exclusão e sugerem intimidações? (BERNARDES, 2013).

O neorracismo que se inicia na era do biopoder, por um lado, se exerce

segundo uma crescente e renovável divisão da população em grupos e subgrupos,

em raças e sub-raças, numa escalada virtual sem fim, de modo que seja sempre

possível, no interior de uma sociedade ou coletividade, apontar para grupos

potencialmente inferiores, patológicos, doentes, anormais, em oposição, a grupos

saudáveis, geneticamente bem estruturados. Como alerta Foucault: a morte do

outro, a morte da raça má, da raça inferior, é isto que tornará a vida mais sã e mais

pura (BERNARDES, 2013).

O biopoder utiliza-se, sem dúvida, de uma articulação política entre segurança e potencial de eliminação de parcela da população. Na verdade, entra em cena um novo jogo estratégico: a partir do momento em que o Estado passa a funcionar baseando no biopoder, a função homicida do Estado passa a ser assegurada pelo racismo (FOUCAULT, p.207, 1996).

E não poderia ser diferente pois no sistema econômico capitalista só uma

coisa é universal, o mercado. Não existe Estado universal, justamente porque existe

um mercado universal cujas sedes são os Estados. Ora, ele não é universalizante,

homogeneizante, é uma fantástica fabricação de riqueza e de miséria. Os direitos do

homem não nos obrigarão a abençoar as “alegrias” do capitalismo liberal do qual

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eles participam ativamente. Não há Estado democrático que não esteja

comprometido nesta fabricação da miséria humana. (DELEUSE, 1992 p.217).

Diante disso ressaltamos que entramos de vez na era “pós-politica”, para usar

os termos de Slavoj Zizek (2004), quer dizer: dispositivos variados que mobilizam

recursos institucionais, jurídicos, sociais para identificar os problemas específicos de

cada grupo, definir “públicos-alvo”, propor medidas para corrigir o que não funciona

direito, valorizar a “comunidade” e promover o dito “capital social” como anteparo as

derivas da exclusão e suas supostas patologias violentas (TELLES, 2010).

Essas formas políticas serão evidenciadas aqui neste artigo, demonstrando

seus efeitos na situação emblemática na qual se encontra a população indígena na

Reserva Indígena de Dourados, tendo como objeto o acesso e direito a

documentação básica.

2 – Racismo de Estado e as Reservas Indígenas de Dourados (RID)

A reserva de Dourados foi instituída por meio do decreto n° 401/1917, do

presidente do Estado de Mato Grosso. Em 1925, transforma-se na unidade

administrativa do Serviço de Proteção aos Índios, com uma área de 3,539 hectares.

A intenção do SPI era fazer com que os índios fossem aldeados para que se

tornassem produtivos e, com isso, ingressassem no processo civilizatório: uma

releitura das missões jesuíticas. Mas, nas mãos do Estado brasileiro e de seu

projeto positivista de progresso, o caminho era da assimilação para civilização via

processo “aculturativo”. Assim, necessitariam fazer uma “integração” que

contribuísse com a mão-de-obra para o progresso da região (ALCÂNTARA, 2007).

Segundo Girotto (2007), a Constituição da Reserva se deu por desterro e

confinamento:

Desterro, quando abordamos o contexto da criação da Reserva e o aldeamento compulsório que originou a sua conformação étnica, composta, inicialmente, de três etnias – Guarani/Kaiová, Guarani/Ñandeva e Terena. Logo viriam outros habitantes, como paraguaios e “não-Indígenas”, estimulados pelo próprio “Órgão Tutor”, visando o entrosamento étnico com vistas a promover a homogeneização cultural, símbolo da retórica de um país moderno e unido por uma pretensa identidade única, o que significou, sistematicamente, a imposição de novos costumes, balizados pelo conceito de “civilização”, ocidental e capitalista (GIROTTO, p.3,2007).

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A Reserva Indígena de Dourados (RID)3 possui em torno de 11.225 mil

habitantes segundo o censo do IBGE em 2010, é considerada um local com uma

infra-estrutura que se torna pólo de migrações indígenas vindas das aldeias do

entorno e do Paraguai. O fato de estar localizada adjacente ao perímetro urbano da

cidade de Dourados e, ao mesmo tempo, ter uma infra-estrutura que possa atender,

mesmo que minimamente, a população indígena é a razão dessa intensa

movimentação (ALCÂNTARA, 2007).

A paisagem da Reserva lembra muito mais um bairro de periferia do que

propriamente uma reserva indígena. A maior parte da terra é arrendada para os

fazendeiros da região e destinada ao plantio de soja. Com o tempo, ele exaure a

terra em conseqüência do veneno utilizado, que escorre em direção aos açudes. As

arvores são poucas e aquelas que existem na maioria, não são frutíferas. A água

um dos principais problemas, pois é desigualmente distribuída e, na maioria das

vezes, só chega a noite nas residências e no interior da Bororó não existe

fornecimento de água e são poucas as casas com poços. O Saneamento básico e a

iluminação estão concentrados nos arredores da estrada principal que liga as

aldeias, as condições de pobreza são extremas4 a falta de recursos é total e, ainda,

como grande motivador da exclusão social vivida, a dificuldade ou a negação do

direito e acesso à documentação básica torna a população indígena das reservas de

Dourados invisíveis e à margem de todos os direitos sociais (ALCÂNTARA, 2007).

Dessa forma a análise da RID deve ser realizada considerando-se que na

leitura foucaultiana do racismo de Estado “tirar a vida” inclui não só o assassínio

direto senão, também, tudo o que pode ser assassínio indireto, a segregação de

populações empobrecidas nos espaços adjacentes as grandes cidades e

consequente multiplicação, para tais vidas politicamente irrelevantes, do risco de

morte, são praticas reais de racismo de Estado, no cotidiano lidamos com estas 3 A Reserva de Dourados, na verdade, é constituída por duas Aldeias: Jaguapirú e Bororó, contiguas

uma da outra.

4 Souza (2014) ao elaborar mapas da desigualdade socioespacial da cidade de Dourados, incluindo os

setores censitários das reservas indígenas, constatou que para todos os indicadores analisados os setores da

reserva indígena sempre foram classificados com os piores indicadores quando comparados com a área urbana

da cidade.

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praticas e muitas vezes legitimamos e reforçamos esta ideologia racista que há

muitos tem deixado morrer ou não deixado viver (BERNARDES, 2013).

Para usar os termos de Agambem, poder-se-ia dizer que certas periferias,

que podem ser consideradas sinônimo para as aldeias de Dourados, são

verdadeiros “campos” ou aglomerados de exclusão (HAESBAERT, 2004), ou seja

disposições espaciais nas quais habitam as “vidas nuas”que não se inscrevem no

ordenamento jurídico (AGAMBEN, 2007).

As periferias, bem com a RID, podem ser entendidas como esse espaço

“juridicamente vazio”. Justamente porque privados de quase todos os direitos e

expectativas que costumamos atribuir à existência humana e, todavia,

biologicamente ainda vivos, eles vinham a situar-se em um zona-limite entre a vida e

a morte, entre o interno e o externo, na qual não eram mais que vida nua.

Condenados a morte e habitantes do campo são, portanto, de algum modo

inconscientemente assemelhados a homines sacri, a uma vida que pode ser morta

sem que se cometa homicídio. O intervalo entre a condenação à morte e a execução

assim como recinto dos lager, delimita um limiar extratemporal e extraterrritorial, no

qual o corpo humano é desligado de estatuto político normal e, em estado de

exceção, é abandonado as mais extremas peripécias (AGABEN, 2007).

Hannah Arendt uma vez observou que nos campos emerge em plena luz o principio que rege o domínio totalitário e que o senso comum recusa-se obstinadamente a admitir, ou seja, o principio segundo o qual “tudo é possível” Somente porque os campos constituem no sentido que se viu, um espaço de exceção, no qual não apenas a lei é integralmente suspensa, mas, alem disso, fato e direito se confundem sem resíduos, neles tudo é verdadeiramente possível. Quem entrava num campo movia-se em uma zona de indistinção entre externo e interno, exceção e regra, licito e ilícito, na qual os próprios conceitos de direito subjetivo e de proteção jurídica não faziam mais sentido (AGAMBEN, p.177, 2007).

Diante de tantas problemáticas instauradas desde a criação da Reserva

Indígena de Dourados e suas características de exceção, que tem se tornado regra

geral, abordaremos no próximo tópico com um pouco mais de especificidade a

problemática do tema deste artigo, a qual compreendemos como primordial para

compreensão das demais situações problema.

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3 – Discussão sobre o direito e acesso a documentação civil básica dos

indígenas da Reserva Indígena de Dourados – vivência profissional.

No hospital Universitário de Dourados, desde a implantação do serviço de

Maternidade no ano de 2011, verificou-se a problemática acerca da documentação

das famílias indígenas que vinham a nascer. Pois por não possuírem documentação

civil era impossibilitado que seu filho recém-nascido o fizesse também. Ou seja, toda

criança indígena nascida em Dourados nas instituições Hospitalares não sai da

internação com a certidão de Nascimento como preconizado pelo Ministério da

Saúde e assegurado às não-indígenas, somente é orientado às mães indígenas que

levem o registro de nascido vivo (DNV) ao polo da FUNAI da Aldeia ou Reserva para

fazer o RANI – Registro de Nascimento Indígena, documento este que não tem valor

civil nenhum.

O assento de nascimento é uma ato de direito civil. Com base nesse registro

civil, é emitida a certidão de nascimento, primeiro documento civil de validade

jurídica, chamado de documento originário porque é condição para obtenção dos

demais documentos civis (FUNAI, 2014).

Todos os cidadãos brasileiros têm o direito à documentação básica, e o

indígena é cidadão pleno, ou seja, tem todos os direitos do cidadão comum, além

daqueles direitos específicos garantidos pela Constituição Federal aos povos

indígenas (CF, 1988).

A documentação básica (Certidão de Nascimento, Carteira de Identidade –

RG, Cadastro de Pessoa Física – CPF, Carteira de Trabalho e Previdência Social –

CTPS, entre outros) é requisito para acessar direitos sociais e de cidadania, como

realizar matrícula na escola, acessar direitos trabalhistas e previdenciários

(aposentadoria, salário-maternidade, auxílio-doença), acessar programas sociais

como o bolsa-família, programas habitacionais, programa luz para todos, entre

outros, e também para exercer o direito ao voto. A documentação básica não anula

nem prejudica nenhum direito garantido pela Constituição aos povos indígenas,

como o direito às terras tradicionais que ocupam ou o respeito à sua organização

social, costumes, línguas, crenças e tradições (FUNAI, 2014).

Para os cidadãos não-indígenas, a documentação básica é um direito e ao

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mesmo tempo um dever, é obrigatória. Para os indígenas, o registro civil de

nascimento e a documentação básica não são obrigatórios, mas um direito e uma

opção de cada indígena. Só que para acessar qualquer dos direitos acima citado é

necessário possuí-la o que acaba tornando obrigatório sua aquisição. Diante da não

obrigação observa-se uma conduta lenta das políticas públicas de garantia de

direitos as populações indígenas das Aldeias Jaguapirú e Bororó neste aspecto e

quando realizada de forma paliativa sem efetivar o direito em si (FUNAI, 2014).

Em 2007, o Governo Federal publicou o Decreto 6.289/07 , que institui o

Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento, até o

momento, os principais frutos desse acordo foram a realização de vários mutirões de

documentação dirigidos especialmente para a população indígena, o que resolve

paliativamente o problema.

O comitê Municipal de Erradicação do Sub-registro de Dourados foi criado em

Agosto de 2014 com a participação de várias entidades (Hospital, Cartório,

Assistência Social, FUNAI, FUNASA, Polícia, Receita Federal, Coordenadoria de

Políticas para Indígenas), tendo como objetivo a vigilância social para erradicação

do sub-registro e a realização de mutirões para emissão de documentação básica

nas Aldeias e Reservas indígenas de Dourados.

A problemática do direito e acesso à documentação básica não é vista como

emergencial e nem é alvo de grandes mobilizações sociais pois muitos vem como

questão secundaria. Só que na verdade ela é decisiva pois, só a partir de sua

existência, o sujeito pode adquirir seus direitos. Então o direito de viver está sendo

impossibilitado na sua essência quando você invisibiliza sujeitos, tanto em sua vida

quanto em sua morte.

No Sistema Único de Saúde, por exemplo, para qualquer serviço é necessário

possuir o Cartão do SUS que só é possível adquirir tendo o CPF, que para fazer

precisa do registro civil, da mesma forma os atendimento previdenciários, a

educação e o acesso ao emprego formal. Os direitos são interdependentes, a

garantia de um direito reflete sobre a observância do conjunto de direitos. Quando

um deles é violado, repercute nos demais.

O número estimado pelo Comitê Estadual de Erradicação do Sub-Registro de

Nascimento e acesso a documentação Básica é que em torno de 2.675 crianças até

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10 anos não possuam Registro de Nascimento Civil, não sendo possível estimar o

número total de pessoas que não possuam outra documentação básica como RG,

CPF, Titulo de Eleitor e Carteira de Trabalho.

Desde sua implantação, no início do mês de Agosto de 2014 o Comitê em

Dourados iniciou os trabalhos para realização de um mutirão com a expectativa de

atendimento de cerca de 3000 pessoas. Para a realização desta ação foram

convocadas reuniões nas duas aldeias da RID com as lideranças (Cacique, capitão

e conselheiros indígenas) e o Comitê para verificar a aceitação dos mesmos para

realização da Ação e possíveis escolas, data e horário para realização.

Nas duas aldeias da RID, quando questionado sobre a importância da

documentação os indígenas foram incisivos nas dificuldades que tem encontrado

para garantia do direito e acesso à documentação básica, questionando as políticas

públicas a esse respeito e demonstrando as dificuldades de acesso a outras

documentações mesmo após conseguir acessar o registro cível de nascimento.

Solicitaram a implantação de serviço cartorário na Reserva Indigena, serviço

de Registro Geral (RG) e de Cadastro de Pessoa Física. Informaram as limitações

de muitos indígenas que não entendem o português para dirigirem-se até a cidade e

solicitarem o que necessitam. Também relataram que muitos indígenas já se

envolveram em acidentes na rodovia e alguns foram a óbito no trânsito quando iam

buscar seus direitos na cidade.

Após os diversos encontros com as lideranças e a definição dos dias, horários

e aceitação da comunidade, observando a urgência de ações de resposta a esta

problemática, quando informado e solicitado à prefeitura das necessidades de

infraestrutura para realização das ações, a mesma não autorizou a realização do

mutirão para o ano 2014, fazendo a população indígena esperar até o próximo ano e

quando possível a realização das ações programadas para emissão de documentos.

Para compreendermos como as ações de cadastramento são importantes é

interessante relatar as vivências dos membros do comitê. Em uma das reuniões do

comitê com as lideranças na Aldeia Jaguapirú havia uma fila de pessoas em frente

ao posto da FUNAI na Reserva, nos esperando e imaginando que naquele dia já

iríamos emitir documentos e outros tentando saber como conseguir retirar seu

Registro de Nascimento Indígena (RANI) tardio, pois nem esse documento alguns

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possuíam.

Esses procedimentos políticos estabelecem uma cesura na população: a

distinção entre grupos no interior da população; a qualificação de grupos como

superiores e inferiores; a objetivação daquilo que deve viver e daquilo que pode

morrer, ou seja, aquilo que qualifica culturalmente, de modo positivo e negativo, os

grupos constitutivos de uma população. Agora, a população não é um conjunto de

indivíduos, um contínuo biológico, e sim um conjunto subdividido de espécies, em

subgrupos, que encontrará, como modo de organização da Nação, o que Foucault

(2005) nomeia de racismo de Estado.

As políticas públicas são mecanismos que marcam essas distinções, que

fragmentam o contínuo biológico da população. Nesse caso, as políticas públicas

são práticas de significação, pois trazem, em si mesmas, conjuntos de sentidos que

justificam as próprias estratégias de poder, na medida em que a cesura da

população será possível em razão das formas de objetivação dos diversos grupos

constitutivos da Nação, das normas de regulação que a tornam possível. Isso não

significa que a política pública não seja fundamental, entretanto, é importante marcar

que aquilo que seria um mecanismo de equalização de direitos e suportes sociais

acaba, justamente, por criar e recrudescer diferenças de acesso ao direito e aos

suportes sociais uma diferença marcada pelo racismo de Estado, e não pela

alteridade (BERNARDES, 2011).

Nessas circunstâncias, o que pode ocorrer em termos de estratégias ou mecanismos de “controle territorial” são processos que preferimos denominar como sendo predominantemente de “contenção” territorial, frente à impossibilidade e/ou debilitamento dos mecanismos de fechamento ou “reclusão”. O “fechamento” estando praticamente inviabilizado pelos processos de “exclusão inclusiva” (em contraponto à “inclusão excludente” dos mecanismos disciplinares), trata-se agora de, pelo menos, tentar “conter” os fluxos daqueles que, não sendo passíveis de inserção mais diretamente “regulada” na sociedade de exceção, tornam-se “homini sacri” politicamente (ir)relevantes apenas enquanto “vida nua”, em sua reprodução e circulação físico-biológica (HAESBAERT, p.16, 2008).

Trata-se, contudo, nos “territórios de exceção”, de uma espécie de última

tentativa de controle das “populações” (enquanto “vida nua”), que de certa forma já

nasce fracassada, pelo simples fato de transformar a exceção em regra e expandi-la

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a ponto de confundir “estado de direito” e “estado de natureza”. Essas novas formas

de (des)territorialização são sempre ambivalentes e, como tais, não possuem mais a

eficácia de outrora. Os mecanismos de “confinamento” ou de “reclusão” territorial,

marcas das sociedades disciplinares, tornam-se agora meras simulações de

reclusão, e isto não só pelo fracasso das instituições disciplinares mas pelo próprio

fato de que o “campo” enquanto espaço de exceção subverte as noções de dentro e

fora, pautado no princípio da “exclusão por inclusão” (HAESBAERT, 2008).

4 – Considerações Finais

Diante do exposto podemos observar que desde o início da criação da

reserva indígena de Dourados já se observa características desta exclusão por

inclusão e desta normalização similares aos campos, e que historicamente tem se

problematizado e refletido de forma contundente na população indígena douradense.

População esta que, em seu direito inicial de ser reconhecido como cidadão

brasileiro, encontra desafios que ainda estão longe de serem resolvidos.

Enquanto profissionais, pesquisadores, atores sociais é necessário dar voz a

esta população e demonstrar e denunciar o Estado e suas políticas racistas que tem,

a décadas, deixado esta população em condições desumanas e entregues a morte.

Acreditamos que com este artigo possamos problematizar a situação

emblemática na qual se encontra a população na Reserva Indígena de Dourados e a

que tipos de políticas estão submetidos, buscando assim através de novas práticas,

desconstruir para construir novas políticas que de fato sejam efetivas e

empoderadoras para esta população. O ultimo Foucault mais otimista lembra que a

vida sempre escapa ao poder ou seja há uma alternativa social a tais praticas saindo

assim de uma situação de assujeitamento para a subjetivação .

Page 12: POLÍTICAS DE EXCEÇÃO, RACISMO DE ESTADO E O … · 2 – Racismo de Estado e as Reservas Indígenas de Dourados (RID) A reserva de Dourados foi instituída por meio do decreto

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

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