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Pe. Júlio Maria De Lombaerde e São Luís Maria Grignion de Montfort em diálogo Frt. Antonio Leonardo de Souza, sdn 1 O Pe. Júlio Maria De Lombaerde sempre dizia aos seus religiosos que não deviam ter uma “devoção balofa” ou “sentimentalóide”, mas ao contrário, deviam ter uma devoção firme, convicta, com fundamento e prática. Tal era sua preocupação com isso que grande parte dos livros que escreveu tinham por objetivo instruir os padres, religiosos e religiosas, mas também, e principalmente, todo o povo católico sobre a doutrina da Igreja, as devoções e principalmente a devoção à Maria. Hoje vemos florescer novamente na Igreja, por meio de vários grupos, a devoção à Maria segundo a espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort e seu “Tratado da Verdadeira Devoção à Virgem Maria” (TVD). Sobre esta obra o Pe. Júlio Maria De Lombaerde escreveu um comentário: “O Segredo da Verdadeira Devoção para com a Santíssima Virgem” (SVD). Lendo de modo superficial o Tratado poderíamos ficar de tal modo escandalizados com seu estilo, por exemplo, com a expressão “escravo de Maria”, que isso viesse a ofuscar nossos olhos e nos impedir de ver a estrutura e o fundamento do pensamento do santo. Por isso, na primeira parte, antes de vermos a leitura que o Pe. Júlio Maria faz do Tratado da Verdadeira Devoção, devemos conhecer 1 Religioso da Congregação dos Missionários de Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento. Graduado em Filosofia pela FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, MG.
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Pe. Júlio Maria De Lombaerde e São Maria Luís Grignion de Montfort em diálogo

May 14, 2023

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Pe. Júlio Maria De Lombaerde e São Luís Maria Grignion de Montfort em diálogo

Frt. Antonio Leonardo de Souza, sdn1

O Pe. Júlio Maria De Lombaerde sempre dizia aos seus religiosos que não deviam ter uma “devoção balofa” ou “sentimentalóide”, mas ao contrário, deviam ter uma devoção firme, convicta, com fundamento e prática. Tal era sua preocupação com isso que grande parte dos livros que escreveu tinham por objetivo instruir os padres, religiosos e religiosas, mas também, e principalmente, todo o povo católico sobre a doutrina da Igreja, as devoções e principalmente a devoção à Maria.

Hoje vemos florescer novamente na Igreja, por meio de vários grupos, a devoção à Maria segundo a espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort e seu “Tratado da Verdadeira Devoção à Virgem Maria” (TVD). Sobre esta obra o Pe. Júlio Maria De Lombaerde escreveu um comentário: “O Segredo da Verdadeira Devoção para com a Santíssima Virgem” (SVD).

Lendo de modo superficial o Tratado poderíamos ficar de tal modo escandalizados com seu estilo, por exemplo, com a expressão “escravo de Maria”, que isso viesse a ofuscar nossos olhos e nos impedir de ver a estrutura e o fundamento do pensamento do santo. Por isso, na primeira parte, antes de vermos a leitura que o Pe. Júlio Maria faz do Tratado da Verdadeira Devoção, devemos conhecer

1 Religioso da Congregação dos Missionários de Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento. Graduado em Filosofia pela FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, MG.

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um pouco São Luís Maria, suas influências, o contexto em que viveu e que o levou a escrever esta obra que é de grande importância para a espiritualidade cristã moderna, que inspirou a muitos - inclusive o Pe. Júlio Maria - e continua a inspirar a muitos no caminho do seguimento de Jesus Cristo.

Na segunda parte, veremos de um modo geral o Pe. Júlio Maria, as influências, o contexto em que viveu e que o levou a escrever este comentário, “O Segredo da Verdadeira Devoção”. Veremos nesta obra os pontos para os quais o Pe. Júlio Maria acena como sendo os principais desta devoção e que nos permitem entrever o seu “segredo”.

Ao final indicaremos alguns elementos desta devoção que nos parecem bastante atuais, que falam alto às consciências hodiernas e que podem nos ajudar no caminho do seguimento a Jesus Cristo e na vida da Igreja.

I - SÃO LUÍS MARIA E O TRATADO DA VERDADEIRA DEVOÇÃO

A escola francesa de espiritualidadeUm dos primeiros e principais representantes da “Escola

Francesa” de espiritualidade é Pierre De Bérulle (1575-1629), cardeal e teólogo francês cuja doutrina, em contrapartida ao movimento renascentista que tem como centro o homem, enfatiza a centralidade de Deus, sua adoração e reverência. Para isso ele indica métodos de oração que levam à constante adoração à Santíssima Trindade seguida da devoção ao Verbo Encarnado, a imagem perfeita do homem, alimentada por meio do vínculo de amor com a pessoa de Jesus.

O Verbo Encarnado, para De Bérulle, é, ao mesmo tempo, objeto, meio e modelo de adoração. É objeto porque devemos

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contemplar a Ele, a sua pessoa, suas palavras e gestos, um evento do passado, mas cuja virtude é ainda presente por meio do Espírito de Deus. Deve-se então contemplar em Jesus não só suas palavras e gestos mas também seu estado interior, os méritos que Jesus nos alcança por meio do mistério contemplado, as disposições com as quais Jesus operou esses mistérios. Nesse Cristocentrismo místico, no qual se contempla e se adora a pessoa de Cristo nos seus vários estados, adere-se a Ele e a atitude interior correspondente ao estado. É uma contemplação intelectual mas que inspira sentimentos e disposição de espírito. Assim os mistérios da vida de Jesus não se tornam coisas do passado mas presentes e vivificantes.

E no seu modo de pensar a pessoa de Maria ela é inseparável de Jesus Cristo, tanto que chega a fazer um paralelismo entre ambos. Maria vê a Jesus em cada um dos estados de sua vida, porém o vê indubitavelmente como filho.

Ao lado de Bérrulle figuram também na “Escola Francesa” São João Eudes, Charles Condren e Jean Jacques Olier. João Eudes resume toda sua espiritualidade no Sagrado Coração de Jesus; “Bérrulle defende uma ‘adesão’ de certo modo mais geral à Pessoa do Verbo Encarnado; Condren, uma especial adesão a Cristo morto e ressuscitado; enfim, Olier, uma adesão ao mais profundo, mais reli gioso, mais perseverante e, consequentemente, ao mais ativo e eficaz anulamento do próprio Verbo na Eucaristia”.2

Tal foi a influência desta escola sobre São Luís Maria, que em seus escritos, especialmente no TVD, encontramos com frequência essas e outras ideias fundamentais desta escola, e também referências diretas a esses nomes. Algo comum à essa escola é também a Santa Escravidão, entendida e praticada por cada um deles de modo levemente diverso.

2 BREMOND, H. Histoire littéraire du sentiment religieux em France. Paris, 1916-1933, vol. 3, pp. 490-491.

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Contexto cultural e eclesialSão Luís Maria (1673-1716) viveu na época do iluminismo,

fenômeno que aconteceu gradualmente entre a Revolução Inglesa de 1648 e a Revolução Francesa de 1789. Em síntese, foi um movimento que estabeleceu uma oposição entre a razão e a história, de modo que toda a história deveria doravante ser revisada de modo crítico a fim de aceitar dela apenas o que a razão considerasse aceitável. Na base do iluminismo se encontra o racionalismo cartesiano das ideias claras e distintas, que implica uma vida totalmente sob os ditames da razão.

O movimento iluminista iniciou-se na Inglaterra, mas foi na França que encontrou solo adequado para o seu desenvolvimento. Assim ele uniu o sentido prático da mentalidade inglesa e o espírito lógico-racional francês. Por exemplo, no tempo de São Luís Maria, Pierre Bayle, com seu Dictionnaire historique et critique, quis mostrar o caráter antirracional da Revelação e a necessidade de uma suspensão da razão para tratar dos problemas colocados pela fé.

Apesar do clero da época de São Luís Maria gozar de boa preparação e estrutura, era na maioria das vezes negligente no compromisso pastoral e caritativo. Na época da Revolução veio a se manifestar uma grande crise de vocações, o esfriamento da prática religiosa entre os fiéis, bem como a propagação da secularização da sociedade. A Igreja ia gradualmente perdendo o controle da vida intelectual na Europa e não conseguia mais responder aos filósofos da Revolução.3

São Luís Maria optou por áreas marginalizadas da Igreja de sua época – campesinos, soldados, estudantes, prostitutas – e em vista delas um estilo popular de falar e escrever. Entretanto seus escritos permitem perceber sua posição combativa à incipiente cultura

3  Cf. ROSA, M. Settecento religioso. Politica dela Raggiona e religione del cuore. Venecia, Marsiolio, 1999. p. 115ss.

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racionalista e ao homem que se forjava a partir dela: um homem guiado unicamente a partir dos sentidos e da razão, hedonista, centrado em si e sem fé.

São Luís Maria – vida e obrasNão faremos aqui uma biografia mas vamos apontar apenas

alguns elementos da vida de São Luís Maria que podem iluminar o trajeto por nós delineado.

Aos doze anos de idade entrou no colégio jesuíta de São Thomas Becket em Rennes. Aos 20 foi estudar no seminário de São Sulpício, mas acabou vivendo entre os pobres, e estudando na Universidade de Sorbonne. Em 1685 teve a oportunidade de trabalhar em São Sulpício como bibliotecário, o que lhe deu acesso a um grande número de obras de espiritualidade e sobre a Virgem Maria.

Ordenado em 1700, sentiu-se incomodado no início pela falta de oportunidade para pregar missões aos pobres, convicção que aumentava a cada dia. Quando então conseguiu, saiu missionando pela Europa, especialmente entre o povo mais simples e marginalizado, deixando rastros de estímulo e renovação pastoral. O Santo foi ao papa Clemente XI para consultar-lhe sobre seu apostolado, que tinha por objetivo fazer com que o povo cristão fizesse a renovação das promessas batismais, culminando com a consagração à Virgem.

São Luís Maria estudou em São Sulpício, que era o centro irradiador da escola francesa de espiritualidade. Foi por ela profundamente influenciado, e talvez de modo especial por De Bérrulle. Não há um tema dessa escola que ele não tenha tratado. E ele não apenas repetiu mas foi também quem melhor sintetizou o pensamento desta escola.

Após séculos de uma cristologia muito gloriosa, era necessário mostrar também o seu aspecto humano. Foi justamente em Maria

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que isso tornou-se possível. O resgate da figura de Maria foi a oportunidade de voltar também o olhar para a Encarnação de Jesus Cristo, mistério esse que, como dizia São Luís Maria, era o mais oculto, o mais elevado e o menos conhecido dos mistérios de Cristo; é o compêndio de todos os mistérios da vida de Jesus. A maternidade divina de Maria, no qual este mistério se cumpre, se torna fundamento indispensável para o discurso mariológico. E se por um lado a divina maternidade de Maria acontece por intervenção direta de Deus na história, por outro é fruto do expresso consentimento de Maria à vontade de Deus.4

No centro da sua espiritualidade e dos seus escritos está a contemplação de Cristo como a Sabedoria Encarnada e a percepção da vida como uma busca espiritual da verdadeira Sabedoria. E no centro desta experiência está Cristo crucificado, pois só a cruz leva à verdadeira Sabedoria. E Maria é como que o véu que esconde – e revela - a maior obra de Deus.

Isso fica evidente quando vemos as obras que ele escreveu: O amor da Sabedoria Eterna, Carta aos amigos da Cruz, Oração de fogo, O admirável segredo do Santo Rosário, O segredo de Maria e o Tratado da Verdadeira devoção. São Luís Maria não tinha a pretensão de escrever manuais de mariologia, mas como missionário e pregador popular que era, queria que seus escritos iluminassem de algum modo o ponto central da fé, que é a Encarnação de Jesus Cristo, e nela a função que Maria desempenhou.

O Tratado da Verdadeira DevoçãoEis o lugar no qual se encontra o TVD. E embora ele seja a

sua obra mais conhecida, ele se encontra ao lado de outras obras igualmente importantes que têm a mesma finalidade. Assim,

4  Cf. MONTFORT, Luigi Maria Grignion de. Trattato della vera devozione a Maria. Roma, Città Nuova Editrice, 2000. p. 14.

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por exemplo, aquele que é o seu tema mais conhecido, a “Santa Escravidão” – e que é frequentemente utilizado para acusá-lo – reflete um aspecto secundário de seus ensinamentos.

Por conseguinte, talvez seja nossa primeira tarefa mostrar que São Luís Maria não é um mariólatra. O TVD “pode ser perturbador por seu estilo um pouco enfático e barroco, mas é inquestionável a essência das verdades teológicas contidas no mesmo. [...] Seu pensamento mariológico está radicado no Mistério Trinitário e na verdade da Encarnação do Verbo de Deus”.5 O que lemos no TVD é o fruto de anos de estudo, oração e pregação. Fruto da busca de fazer com que os cristãos se aproximassem realmente do Verbo encarnado e compreendessem a grandeza de sua vocação.

Quanto ao seu gênero literário é uma obra dificilmente classificável: “ao mesmo tempo é um escrito teológico e pastoral, ascético e exortativo, de pedagogia espiritual e devocional, onde não temos um ensaio de exegese bíblica e informações de caráter histórico, com citações dos Padres da Igreja e de autores medievais, ou mesmo um escritor contemporâneo. Mais do que o esforço de encontrar o esquema utilizado pelo autor, talvez seja mais útil compreender o seu conteúdo global.”6

Lançando a partir do hoje o nosso olhar sobre esta obra de São Luís encontramos sem dúvidas alguns pontos fracos em seu pensamento como, por exemplo, a debilidade da sua teologia da graça, o seu conceito de mistério pascal, sua eclesiologia. Mas dentro do limite histórico “a totalidade do mistério de Cristo e da Igreja é percebida e contemplada por Montfort. E isto ocorre a partir de um ponto onicompreensivo que se chama Maria”.7

5  JOÃO PAULO II. Don y mistério: en el 50º aniversario de mi sacerdócio. Ciudad del Vaticano, Libr. Ed. Vaticana, 1996, p. 37.6  Cf. MONTFORT, Luigi Maria Grignion de. Trattato della vera devozione a Maria. Roma, Città Nuova Editrice, 2000. p. 12.7  CORTINOVIS, B. Dimensione ecclesiale dela spiritualità di san Luigi Maria Grignion de Montfort. p. 217.

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O CristocentrismoPosto isto, o primeiro aspecto do TVD para qual apontamos é

o cristocentrismo, que é, como dissemos acima, uma das principais características da Escola Francesa de espiritualidade. Podemos assim dizer, já de antemão, que a teologia de São Luís Maria é cristológico-mariana.

O TVD é aberto com a seguinte tese: “Foi por meio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio dela que ele deve reinar no mundo”.8 Esta é uma síntese do Tratado e por tanto contém em si muitos temas. Mas por hora queremos mostrar através dela apenas a centralidade de Cristo em seu pensamento, o que poderia para muitos passar desapercebido. São Luís Maria desde o início deixa muito claro para os seus leitores que ele está falando em primeiro lugar do mistério da Encarnação, que aconteceu por meio de Maria. E a Encarnação, bem como o meio que Deus utilizou para que ele acontecesse, concorrem para o Reino de Cristo.

No primeiro princípio do TVD, sobre a eleição de Maria por Deus para a Encarnação, São Luís diz: “Deus Pai transmitiu a Maria sua fecundidade, na medida em que a podia receber uma simples criatura, para que ela pudesse produzir o seu Filho e todos os membros de seu corpo místico”.9 Deus Pai é quem transmite a Maria, por meio da ação do Espírito Santo, a fecundidade que a Ele pertence em vista da geração de seu Filho e dos seus membros. Tudo para promover o triunfo de Jesus Cristo.10

Dentre as verdades fundamentais da devoção à Santíssima Virgem, São Luís coloca em primeiro lugar a verdade de que Jesus Cristo é o fim: “Jesus Cristo, nosso Salvador, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, deve ser o fim último de todas as nossas devoções;

8  MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 1. 9  Ibid., p. 17; “É por esta razão nossa mãe na ordem da graça.” (LG, 61).10 MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 54.

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de outro modo elas serão falsas e enganosas.”11 Continua ele: “Se a devoção à Santíssima Virgem nos afastasse de Jesus Cristo, seria preciso rejeitá-la como uma ilusão do demônio. [...] Esta devoção só nos é necessária para encontrar Jesus Cristo amá-lo ternamente e fielmente servi-lo.”12 E em várias outras partes ele cita implicitamente diversas passagens cristocêntricas do Novo Testamento para fundamentar a devoção à Maria. Por isso, tanto mais que qualquer outra, a devoção à Maria orienta para Cristo e nos conduz a Ele. Em outra parte, falando sobre as qualidades da verdadeira devoção, diz ele que ela “leva a alma a não buscar a si mesma, mas somente a Deus”13, o que nos recorda o lema de vida que São Luís Maria tomou para si: “Só Deus”.

Em muitas passagens ele nos apresenta Maria como aquela que nos introduzirá nos mistérios de Jesus Cristo, a fim de nos tornarmos verdadeiros discípulos seus, “andando nas pegadas de sua pobreza e humildade, de desprezo do mundo e caridade, ensinando o caminho estreito de Deus na pura verdade, conforme o santo Evangelho, e não pelas máximas do mundo”.14 Ela, Maria, quer tão somente que sejamos unidos e consagrados a Cristo; que pertençamos, amemos e glorifiquemos a Ele, pois nisto se encontra toda a santidade.15 É

11  MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 61.12  Ibid., n. 62.13  Ibid., n. 110.14  Ibid., n. 59; “A Igreja, meditando piedosamente na Virgem, e contemplando-a à luz do Verbo feito homem, penetra mais profundamente, cheia de respeito, no insondável mistério da Encarnação, e mais e mais se conforma com o seu Esposo. Pois Maria, que entrou intimamente na história da salvação, e, por assim dizer, reúne em si e reflete os imperativos mais altos da nossa fé, ao ser exaltada e venerada, atrai os fiéis ao Filho, ao Seu sacrifício e ao amor do Pai.” (LG, 65).15  Cf. MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, nn. 110, 111, 120, 211, 214, 215, 217; “Todo o influxo salvador da Virgem Santíssima sobre os homens se deve ao beneplácito divino e não a qualquer necessidade; deriva da abundância dos méritos de Cristo, funda-se na Sua mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia; de modo nenhum impede a união imediata dos fiéis com Cristo, antes a favorece.” (LG, 60).

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também o evangelista São João que de modo singular apresenta no seu evangelho a figura de Maria como aquela que conduz, que leva os discípulos a entrar no mistério de Jesus e do Reino e se colocarem no seguimento de seu Filho (Cf. Jo 2,1-12).

Maria como instrumentoRetornemos ao primeiro ponto do TVD para analisar outro

aspecto: “Foi por meio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio dela que ele deve reinar no mundo”.16 Observemos agora que nele Maria é denominada duas vezes seguidas como meio. Ora, meio pode ser entendido como ambiente, como instrumento, e ainda como aquilo que se encontra entre duas coisas. Respectivamente Maria é o “ambiente” por meio do qual Deus entrou na história; é o “instrumento” escolhido para a obra da Encarnação; e é nossa especial intercessora junto de Cristo17.São Luís quer com isso expressar “o caráter instrumental da Mãe em relação com o Filho e sua missão.”18

Uma imagem muito expressiva que São Luís utiliza para mostrar Maria como meio é a da árvore: “Quem quiser o fruto bem maduro e formado deve ter a árvore que o produz; quem quer possuir o fruto de vida, Jesus Cristo, deve ter a árvore da vida, que é Maria”.19 O fim desta árvore não é ela mesma, mas seu fruto, que é Cristo. E sendo ela a árvore, o fruto não pode ser outro.

Outra imagem que São Luís utiliza, citando Santo Agostinho de Hipona, é a de Maria como a “forma dei”, o molde de Deus. Isso

16 MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 1. 17 Maria não foi instrumento meramente passivo. Pelo contrário, foi instrumento ativo na obra da salvação porque foi livre cooperadora, pela fé e obediência. (Cf. LG, 56).18 MUCCI, Giandomenico. San Luis María Grignion de Montfort: la teoria cristológico-mariana. Revista Humanitas. n. 26.19 MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 164.

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para mostrar que Maria, molde de Deus, é um instrumento do qual Deus se utiliza para conferir a forma de Cristo.20 E adquirir a forma de Cristo é a finalidade da vida cristã. Outra ideia importante, porque muito presente nos escritos de São Luís, é a de que Maria – por graça de Deus – é molde no qual Jesus foi formado, então nada melhor que, para chegar à forma de Cristo, sermos também moldados por Maria.21

“Só se vai a ela – diz São Luís - como ao caminho para atingir o termo que é Jesus Cristo”.22 Disso podemos depreender que “a espiritualidade mariana do santo, inteiramente dirigida em maior medida a Cristo, fim último, e a Maria, meio e fim próximo, é uma espiritualidade cristológica”.23 Cristo, que movido de amor pela humanidade se esvaziou e tomou a forma de escravo, é que está no centro da espiritualidade mariana de São Luís.

A Escravidão de AmorChegamos aqui àquela que é uma importante característica

da Escola Francesa de espiritualidade, mas sobremodo de São Luís Maria: a escravidão de amor. Esta se funda no “exemplo do próprio Cristo, que, por nosso amor, tomou a forma de escravo: “Forman servi accipiens” (Fl 2,7), e da Santíssima Virgem, que se declarou a escrava

20  MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 219.21 “A Virgem Santíssima, predestinada para Mãe de Deus desde toda a eternidade simultâneamente com a encarnação do Verbo, por disposição da divina Providência foi na terra a nobre Mãe do divino Redentor, a Sua mais generosa cooperadora e a escrava humilde do Senhor. Concebendo, gerando e alimentando a Cristo, apresentando-O ao Pai no templo, padecendo com Ele quando agonizava na cruz, cooperou de modo singular, com a sua fé, esperança e ardente caridade, na obra do Salvador, para restaurar nas almas a vida sobrenatural. É por esta razão nossa mãe na ordem da graça.” (LG, 61.)22  MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 94.23  MUCCI, Giandomenico. San Luis María Grignion de Montfort: la teoria cristológico-mariana. Revista Humanitas. n. 26.

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do Senhor (Lc 1,38).24 E a partir do batismo saímos da escravidão do pecado para, como diz São Luís, sermos escravos de Jesus Cristo, e só para ele viver, pois a Ele pertencemos.

“A palavra [escravidão] parece caída em desuso para um ouvido contemporâneo; mas a aspereza e o ar totalitário que nela cintila é algo que não desagrada a Luís Grignion. Assim, em uma primeira impressão, encontra-se quase um impetuoso resíduo medieval de heroísmo cortês em fidelidade àquela que os franceses chamaram “Notre Dame”. Mas gradualmente se descobre o alcance espiritual deste antigo termo, que em concreto, condensa, com a força de certos símbolos, uma notável gama de valores”.25

Aderir voluntariamente essa escravidão é estar acorrentado, unido a Cristo, de um modo radical e eterno. Assim “a imagem monfortana da escravidão expressa esta primazia axiológica de Cristo e a dependência que o cristão tem d’Ele”.26

Falando sobre o mistério ao qual esta devoção está ligada, o mistério da Encarnação, ele diz que nele contemplamos Jesus em Maria, ou, Jesus no seio de Maria. Portanto, “é mais adequado dizer-se ‘a escravidão de Jesus em Maria’”.27 Até porque o próprio São Luís percebeu que a expressão “escravo de Maria” trazia muitas confusões e preconceitos. Hoje estudiosos da espiritualidade monfortana tendem a evitar essa fórmula, reservando-a para estudos mais especializados sobre os escritos do santo, e utilizando outras mais adaptadas à mentalidade contemporânea como “plena

24  MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 72. Logo em seguida São Luís Maria explica que a palavra “servus”, que é empregada no texto, significava outrora apenas escravo. E alhures ele explica que, para esta devoção, a palavra escravo é mais adequada pois significa uma pertença e dependência total ao seu Senhor, e sem espera de recompensa.25  PAPASOGLI, B. Montfort, um uomo per l’ultima Chiesa. Turín, Griaudi, 1979, p. 90.26  MUCCI, Giandomenico. San Luis María Grignion de Montfort: la teoria cristológico-mariana. Revista Humanitas. n. 26.27  MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 246.

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dependência”, “total obediência”, “consagração” como alternativas de inculturar a devoção sem trair ou mutilar o pensamento do santo. Também São João Paulo II chegou a falar de “confiança” como “a resposta ao amor de uma pessoa e em particular ao amor da mãe”.28

Temos, portanto, que compreender que essa expressão é “reflexo da cultura e da linguagem teológica barroca por ele utilizada como um instrumento do qual dispunha para ser veículo de sua experiência e seu pensamento, e que seu conceito de escravidão não inclui os conceitos de opressão e servilismo e somente expressa pertença e posse de caráter sacramental e místico”.29 É uma fórmula “dura”, mas que, como acima dissemos, quer dizer de uma alta meta espiritual à qual todos são chamados.

É pois nessa consagração livremente assumida, nessa “escravidão de Jesus em Maria”, que implica uma perfeita renovação das promessas batismais, que se encontra o caminho da verdadeira liberdade. Ela nos une mais perfeitamente à Trindade, à qual pertencemos desde o dia do nosso batismo, e nos confere grande liberdade interior, a liberdade dos filhos de Deus.30

A Encarnação, método de Deus e caminho de santificaçãoSão Luís diz que o mistério próprio desta devoção é a

Encarnação. Isto já estava patente pela frase de abertura do TVD. Mas agora retornamos a ela para nos determos sobre outro aspecto que ela encerra.

Ei-la: “Foi por meio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio dela que ele deve reinar no mundo”.31 Primeiro chamamos a atenção para o aspecto cristocêntrico

28  JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Redemptoris Mater, n. 45.29  MUCCI, Giandomenico. San Luis María Grignion de Montfort: la teoria cristológico-mariana. Revista Humanitas. n. 26.30  Cf. MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 164.31  Ibid., n. 1.

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desta frase, depois para o fato de que nela Maria aparece como meio. Agora vejamos que logo na primeira frase é evocado o mistério da Encarnação. E esse tema é de primeira importância para São Luís. É da contemplação desse grandioso mistério, da contemplação do ser e do agir de Deus através de Maria e na pessoa de Cristo, que nasce a santa escravidão.

Daí que São Luís compreendeu que “a encarnação é o modelo de toda santificação.”32 E por isso diz que esta devoção “é um caminho que Jesus Cristo abriu quando veio a nós”.33 Justamente porque inspirada na Encarnação do Filho de Deus ela é o próprio caminho aberto por Jesus.

Considerando Deus como imutável, e que por consequência Deus é sempre o mesmo no seu modo de agir, é que São Luís, citando Santo Agostinho, diz: “A Santíssima Virgem é o meio de que Nosso Senhor se serviu para vir a nós; e é o meio de que nós devemos servir para ir a ele.”34 Portanto, se por meio dela Jesus veio a nós, por ela é que nós deveremos ir a ele. E para o Santo não há nenhuma contradição nisso, pois “a mais forte inclinação de Maria é unir-nos a Jesus Cristo, seu divino Filho; e a mais forte inclinação do Filho é que vamos a ele por meio de sua Mãe Santíssima.”35

Por este motivo, segundo São Luís, aquele que vive a verdadeira devoção para com a Virgem Maria será sem erro conduzido a Jesus, pois é o caminho que ele mesmo abriu para nós. “A consagração é feita conjuntamente à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo; à Santíssima Virgem como ao meio perfeito que Jesus Cristo escolheu para se unir a nós e nós a ele; e a Nosso Senhor como o nosso fim último, ao qual devemos tudo o que somos, como a nosso Redentor e nosso Deus.”36

32  MUCCI, Giandomenico. San Luis María Grignion de Montfort: la teoria cristológico-mariana. Revista Humanitas. n. 26.33 MONTFORT, Luís Maria Grignion. Tratado da Verdadeira Devoção, n. 152.34 Ibid., nn. 75, 157.35 Ibid., n. 75.36 Ibid., n. 124.

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Ao abrir este caminho para nós Jesus Cristo “deu-se a nós sem reserva”. Por consequência, a nossa atitude para trilhar esse caminho que nos conduz a Cristo deve ser a mesma d’Ele. Devemos também dar-nos, entregar-nos a Ele sem reserva. “Foi ele o primeiro a ser liberal para conosco; sejamos também generosos para com sua liberalidade, durante a vida, na hora da morte e por toda a eternidade.”37 Portanto, ele não só abriu o caminho mas mostrou também como trilhá-lo:

Este bom Mestre não desdenhou encerrar-se no seio da Santíssima Virgem, como um cativo, um escravo amoroso, e submeter-se a ela, obedecendo-lhe durante trinta anos. É aqui, repito, que o espírito humano se confunde, quando reflete seriamente nesta atitude da divina Sabedoria encarnada, que não quis, embora podendo, dar-se diretamente aos homens, preferindo fazê-lo por intermédio da Santíssima Virgem; que não quis aparecer no mundo em plena idade viril, independentemente de quem quer que fosse, mas como uma criancinha dependendo dos cuidados de sua Mãe Santíssima, e mantida por ela. Esta Sabedoria infinita, cheia de um desejo imenso de glorificar a Deus seu Pai e de salvar os homens, não encontrou meio algum mais perfeito nem mais simples de fazê-lo, do que submetendo-se em todas as coisas à Santíssima Virgem, não só durante oito, dez ou quinze anos, mas durante trinta anos; e ele deu mais glória a Deus seu Pai durante todo esse tempo de submissão à Santíssima Virgem, como não lhe deu empregando os últimos três anos de sua vida a fazer prodígios, e pregar por toda parte, a converter os homens. Oh! que grande glória damos a Deus, submetendo-nos a Maria, a exemplo de Jesus. Com um exemplo tão visível e conhecido por todo mundo, seremos insensatos a ponto de pensar que encontraremos um meio mais perfeito e mais certo submetendo-nos a Maria, a exemplo de seu Filho?” 38

37 Ibid., n. 138.38 Ibid., n. 140.

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212 Um caminho de espiritualidade

Com isso fica explicitado o modo como Jesus se deu a nós totalmente: por meio de Maria. Então, segundo São Luís, o modo de dar-nos totalmente a Deus é dar-nos, confiarmo-nos totalmente à Maria. É confiando esta matéria informe que somos nós a este molde que seremos plasmados à imagem de Cristo e seremos perfeitamente unidos a Ele.

“O Espírito Santo formou Jesus Cristo por meio dela, e por meio dela forma os membros de sou corpo místico...”.39 Assim, a Verdadeira Devoção para com Maria concorre de modo singular para a nossa incorporação ao Corpo Místico de Cristo que se iniciou no dia do nosso batismo.

A Consagração Batismal e a Consagração à MariaA Consagração à Virgem Maria, ou a escravidão de Jesus em

Maria, é pois um aprofundamento da união mística com Cristo. Por isso São Luís a identifica com a Renovação dos votos do Batismo. E sob esse prisma é possível inclusive fazer até uma analogia da Verdadeira Devoção com a Vida Religiosa Consagrada, pois ambas existem para ser um desdobramento das riquezas do batismo e aprofundar a sua vivência.

São Luís percebeu em sua época que o esfriamento da vida de fé se devia em grande parte ao esquecimento das promessas feitas no dia do batismo. Foi nesta devoção que São Luís encontrou um meio perfeito de relembrar aos cristãos as promessas batismais: “Não é natural que se faça isto presentemente, de um modo perfeito, por esta devoção e consagração a Nosso Senhor, por intermédio de sua Mãe Santíssima? Digo “de um modo perfeito” porque nos servimos, nesta consagração a Jesus Cristo, do mais perfeito de todos os meios, que é a Santíssima Virgem.”40

39  Ibid., n. 140.40  Ibid., n. 130.

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213Pe. Júlio Maria De Lombaerde

Uma devoção é tanto mais verdadeira e perfeita, diz São Luís, quanto mais ela nos conduz a Cristo, nos une a Ele, e nos conforma a Ele, pois este é o fim da vida cristã. Se São Paulo pode dizer à sua comunidade “sede meus imitadores como sou de Cristo” (1Cor 11,1), tanto mais Maria poderia dizê-lo. Logo ela é o modelo mais próximo de nós no qual podemos nos espelhar e conformar, e por consequência nos conformaremos a Cristo. Daí o motivo de São Luís afirmar que quanto mais uma pessoa se consagra a Maria tanto mais consagrada ela será a Jesus Cristo, pois Maria é toda relativa a Deus.

Eis os motivos pelos quais São Luís coloca a perfeita consagração tão unida ao batismo e em função dele, a serviço da nossa vida em Cristo, pois ela “nada mais é que uma perfeita e inteira consagração à Santíssima Virgem, e nisto consiste a devoção que eu ensino; ou, por outra, uma perfeita renovação dos votos e promessas do santo batismo.”41

“A contemplação e o estudo de São Luís Maria colocou a Mãe de Deus no centro da economia da salvação, colocando-a em íntima correlação com a consagração batismal, e deu à escravidão por ele ensinada um caráter de ciência e práxis dos filhos de Deus”.42 É pois a partir dessa compreensão da Verdadeira Devoção como ciência e práxis43 dos filhos de Deus é que se faz ainda mais necessário conhecê-la e vivê-la melhor. E nesse caminho nos guiará o Servo de Deus Pe. Júlio Maria De Lombaerde com o “Segredo da Verdadeira Devoção”.

41  Ibid., n. 120.42  MUCCI, Giandomenico. San Luis María Grignion de Montfort: la teoria cristológico-mariana. Revista Humanitas. n. 26.43  Aqui devemos compreender “práxis” no sentido aristotélico de um ato inteligente e livre da razão prática, ordenado à ação e não simplesmente ao conhecimento; e esta entendida como uma ação “completa” pelo fato de ter intrinsecamente um télos, uma finalidade.

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214 Um caminho de espiritualidade

II - PE. JÚLIO MARIA E O SEGREDO DA VERDADEIRA DEVOÇÃO

A influência da escola francesa de espiritualidadePe. Júlio Maria De Lombaerde nasceu na Bélgica (1878) mas foi

fortemente influenciado pela cultura francesa. Não só, ele também foi fortemente influenciado pela escola francesa de espiritualidade e seus autores, como nos conta o Pe. Paschoal Rangel:

 Lembro-me de uma tarde de domingo em que fui pedir emprestado ao Pe. Júlio Maria um livro de teologia (eu cursava Teologia em Belo Horizonte e estava passando as férias em nosso Seminário de Manhumirim) e ele me confidenciou, não sei mais a propósito de quê, que, em matéria de espiritualidade, ele sempre se sentiu atraído pela chamada Escola Francesa, de De Bérulle, Olier, Condren, Louis M. Grignion de Montfort... Só que, nos últimos tempos, sentia certa dificuldade de comunicar essa doutrina aos seus religiosos.Nunca mais me esqueci disso e sempre andei atrás dos livros desses autores, não facilmente encontráveis. Na própria biblioteca do nosso Fundador, que pude conhecer muito bem depois de sua morte, não havia nenhum livro do cardeal de Bérulle. E, além do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, do Segredo de Maria e do Método de Rezar o Rosário, todos de Montfort, ele tinha apenas dois volumes encadernados do Venerável Olier sobre a “Vie intérieure de la Tres-Sainte Vierge”, obra composta de vasta coletânea tirada dos escritos de Olier (Imprimerie de Salviucci, Roma, 1866) e o famosíssimo livro de Charles de Condren, Idée du sacerdoce et du sacrifice de Jésus-Christ, Paris, 1901, que infelizmente desapareceu.44

Não por acaso temas comuns à escola francesa de espiritualidade e também sua mariologia estão fortemente presentes nos escritos do Pe. Júlio Maria. O próprio livro que doravante comentaremos está repleto de influências desses nomes da escola francesa.

44 RANGEL, Paschoal. Pe. Júlio Maria, mestre espiritual.

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215Pe. Júlio Maria De Lombaerde

Pe. Júlio Maria – vida e obrasO Pe. Júlio Maria escreveu ao longo de sua vida mais de 80

livros. Deles, ao menos 08 dedicadas à Maria45. Isso porque ele entendeu, desde cedo, que escrever era uma das suas principais atividades missionárias. O livro - O Segredo da Verdadeira Devoção - foi escrito quando ele ainda missionava na França, como pregador.

No Brasil, especialmente, suas obras foram uma resposta à necessidade pastoral. Uma das primeiras coisas que percebeu quando aqui chegou foi a ignorância do povo brasileiro a respeito da fé católica e o avanço da mentalidade e cultura modernista. Tão logo buscou meios de instruir o povo por meio de catequeses, confrarias, mas também por meio da imprensa e da publicação de livros. Exatamente por causa do público que queria alcançar sempre utilizou uma linguagem clara e simples – mesmo em temas mais complexos - para conseguir atingir o maior número possível de pessoas. Não somente sua linguagem era sempre muito clara mas tinha também objetivos muito claros. Não ficava apenas em temas abstratos mas queria realmente levar os seu leitores a crescerem na vida de fé e na intimidade com Deus.

No Brasil ele traduziu e reeditou as obras que já tinha escrito sobre Maria e escreveu outras. Escreveu diversas obras de defesa da fé católica e escreveu também preciosos comentários aos evangelhos, onde de modo especial vemos o seu coração e a sua espiritualidade transbordarem de modo límpido.

45 Meu dia com Maria (1913) [até onde temos conhecimento este teve ao menos 14 edições na França, 4 na Espanha, e 3 no Brasil], O segredo da verdadeira devoção (1920), Princípios da Vida de Intimidade com Maria Santíssima (1922), Espiritu de la vida de intimidad com Maria Santíssima (1922), A mulher e a serpente (1930), Por que amo Maria? (1933), A Mulher Bendita (1936), Maria e a Eucaristia (1937).

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216 Um caminho de espiritualidade

É a partir desse contexto, da necessidade de instruir o povo católico e levá-los a progredir na vida de fé, que devemos ver os livros que escreveu sobre Maria Santíssima. Maria, sendo “a criatura que mais se aproxima da Beleza de Deus e que dele trouxe o reflexo mais puro”46, é aquela que, depois de Cristo, pode melhor mostrar o que é a Igreja, o que é a vocação cristã e como devemos vivê-la.

E é claro que o Pe. Júlio Maria escreveu muito sobre Nossa Senhora porque muito a amava, mas também porque viveu no “século mariano”, quando a devoção à Maria era muito difundida e exaltada.

O Segredo da Verdadeira DevoçãoO Pe. Júlio Maria abre o Segredo da Verdadeira Devoção (SVD)

com as seguintes palavras: “Destina-se o presente livro às almas sinceramente desejosas de se santificar de modo eficaz”47.

Este é um tema frequente em seus escritos que reflete sua maior preocupação: mostrar que o caminho da santidade é para todos, mas que para trilhar esse caminho é preciso decisão e disposição. E é aqui que encontramos o lugar da Verdadeira Devoção, como um meio de atingir a meta da santidade.

Um primeiro e comum equívoco que o Pe. Júlio Maria quer desfazer com este livro é o de um suposto poder ex opere operato atribuído a esta devoção. Justamente por isso ele insiste em mostrar que a devoção gera em nós uma disposição da alma. Mas essa disposição de alma é disposição para algo, orientada para a prática de algo. Como ele diz: “A devoção [...] é uma disposição da lama, que nos leva dedicar-nos ao serviço de Deus, pelo cumprimento do nosso dever”48.

46  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. Por que amo Maria. 47  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. O Segredo da Verdadeira Devoção. p. 7.48  Ibid., p. 7.

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217Pe. Júlio Maria De Lombaerde

A devoção não tem um fim em si, mas ela existe para ajudar o cristão a trilhar o caminho de santidade, a viver a vida de filho de Deus recebida no dia do batismo. Por isso quando o Pe. Júlio Maria fala sobre “cumprimento do nosso dever” devemos pensar primeiramente na vocação cristã, e também em outras específicas. Pois, viver bem a própria vocação (seja ela qual for) é viver a santidade - e esse é o nosso dever. E justamente viver a nossa vocação é dedicar-nos ao serviço de Deus. A devoção da consagração total à Maria dirige-se a Deus; é o ato da vontade pelo qual nos oferecemos a Deus para serví-lo.49

Por isso tão logo o Pe. Júlio Maria fala que o critério para escolhermos uma devoção não deve ser sentimental, estético, ou coisa semelhante. O critério para escolher uma devoção é o bem de nossa alma, o bem de nossa vida cristã: “Tanto melhor é uma devoção quanto mais nos ajude a santificar-nos e a glorificar a Deus.”50 Ou, tanto melhor é uma devoção quanto mais nos une a Cristo e nos torna semelhantes a Ele.

Por este motivo, no primeiro capítulo, ao comparar outras espiritualidades com a espiritualidade de São Luís, ele mostra também que o fim dessas outras devoções, muito comuns em sua época, é o mesmo. Mas cada uma delas se encaixa melhor em determinadas pessoas, e somente quando isso acontece a devoção atinge o seu fim.

O livro, que já chama a atenção dos leitores pelo título “O Segredo...”, quer mostrar justamente aquilo que não se pode perceber com algumas poucas e superficiais leituras, ou uma leitura desligada da vida. Por isso na presente obra ele busca explanar, esclarecer mas também aplicar os ensinamentos de São Luís à vida, sem o que seria uma devoção inútil.

49  Cf. DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. Princípios da Vida de Intimidade com Maria Santíssima. p. 302.50  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. O Segredo da Verdadeira Devoção. p. 8.

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Não faremos aqui uma explicação parte por parte da obra, mas tomaremos aleatoriamente alguns temas que nos parecem de maior importância, de modo que venham a servir como chave de leitura da obra. Assim também ser-nos-á possível ver a contribuição do Pe. Júlio Maria para essa espiritualidade.

Um caminho de santidadeO tema da santidade, como dissemos, é uma constante nos

escritos do Pe. Júlio Maria. E sempre diz que ela é para todos.A própria expressão “caminho de santidade”, que

frequentemente utilizamos, traz consigo um metáfora cuja riqueza nem sempre percebemos. Um caminho, para que exista, depende que alguém, em busca de algo trilhe um lugar até antes deserto, e talvez cheio de obstáculos. E então, vendo a necessidade e a utilidade desse caminho para si e também para outras pessoas, decide marcar a trilha. Em seguida, com o aumento do fluxo, abre-se uma estrada.

Poderíamos dizer que – para sermos fiéis ao pensamento de São Luís – este caminho foi aberto por Cristo. A este caminho Maria nos conduz e nele ela nos acompanha, como aquela que ocupa o primeiro e especial lugar dentre todos os santos e santas que nos guiam nessa estrada. “Que é preciso para estar seguro em um caminho? [...] Ter um guia prático e hábil, capaz de atingir o lugar que se deseja. [...] Para atingir nosso fim, quem seria mais capaz de nos conduzir que Maria?”51

Mas, mesmo tendo um caminho aberto, guias e companheiros de caminhada, não é possível transpô-lo se não houver a disposição e o desprendimento. Sem isto podemos até começar com entusiasmo o caminho, mas em seguida desfalecemos. O que nos faz lembrar a parábola do Semeador e as sementes que caíram sobre as pedras e entre os espinhos, que logo começaram a crescer, mas foram

51  Ibid., pp. 149-150.

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sufocadas (Cf. Mt 13,1-9.20-22). Assim também não faz sentido estar no caminho mas sem vontade de mover os pés e de se colocar a caminhar.

Para que avancemos no caminho da santidade, nos recorda o Pe. Júlio Maria, é preciso desprendimento. Diz ele: “A medida de nosso progresso está na proporção de nosso desprendimento. Ora, na Santa Escravidão temos o caso de um desprendimento completo.”52 Portanto, uma das disposições de alma gerada pela devoção da Santa Escravidão é o desprendimento. Mas, toda disposição que a devoção nos inspira é ainda dependente de nossa cooperação para que possa chegar ao seu termo.

Ainda sobre a disposição gerada por essa devoção, diz o Pe. Júlio Maria em Princípios da Vida de Intimidade com Maria Santíssima: “É uma disposição interior e habitual, fruto de um grande amor por esta Rainha de nossos corações, segundo a qual uma alma está sempre atenta para lhe prestar seus serviços, para invocá-la, para imitá-la.”53

Algo que acrescenta à metáfora do caminho e ao tema da progressão neste caminho, é a descrição que o Pe. Júlio Maria faz da Vida de intimidade com Maria – que é uma dimensão mística da Consagração: esta “é uma vida. Ora, a vida é o desenvolvimento, o crescimento, é a procura de um estado mais perfeito. A vida de intimidade com Maria é pois o desenvolvimento em nós da vida de Maria, é o crescimento das suas virtudes em nós; é a procura da perfeição, da santidade sobre a terra...”.54

Não basta ser cristão e, portanto, chamado à santidade. É preciso entrar de verdade nesse caminho e progredir. Progressão. É algo que acontece gradualmente, com paciência, perseverança e esforço. Por isso o livro O Segredo da Verdadeira Devoção quer mostrar que

52  Ibid., p. 117.53  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. Princípios da Vida de Intimidade com Maria Santíssima. p. 295.54  Ibid., pp. 318-319.

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esta devoção não santifica por si, nem muito menos imediatamente após proferida a fórmula de consagração. É um caminho de subida. Por isso o Pe. Júlio Maria tenta mostrar que há várias etapas, ou graus, pelos quais, à medida de nosso desejo e empenho, e também à medida da graça que Deus concede a cada um, vamos subindo, rumo à entrega e abandono total a Deus pelas mãos de Maria.

Pe. Júlio Maria, numa outra obra de grande importância, “A Contemplação Sobrenatural”55, insiste sobre a santidade, que é para todos. Está ao alcance de todas as pessoas generosas. E um meio importante e necessário para isto é a oração, onde alcançamos a graça, a disposição para a virtude e assim uma maior união com Deus. “O caminho está aberto... basta percorrê-lo”56 e então Deus fará também a nós tudo quanto fez aos santos e santas.

A vivência do Batismo Ser batizado é entrar para o corpo daqueles que buscam a

santidade. A Crisma nos confirma e fortalece nesse caminho. Tanto mais a Eucaristia, que nos une de modo radical a Cristo e a seu corpo eclesial, e é o alimento por excelência dos que empreendem essa jornada. Como vimos, o próprio São Luís define a Consagração como uma renovação das promessas batismais. Renovar as promessas batismais é assumir novamente aquilo que foi prometido um dia. É afirmar e confirmar: estou no caminho certo, quero continuar a trilhá-lo. E, então, fazê-lo com vontade e certeza redobrada. Diz o Pe. Júlio Maria: “Entregando-nos à Rainha do céu, proclamando-nos seus escravos, não fazemos mais que ratificar, aprovar um estado de coisas já existentes; em outros termos, não fazemos mais que renovar nossas promessas do Batismo”57.

55  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. A Contemplação sobrenatural. Vozes, 1936.56  Ibid., p. 167.57  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. O Segredo da Verdadeira Devoção. p. 86.

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Está aí a grande necessidade e eficácia desta devoção. Lembremo-nos do contexto no qual viveu São Luís: a fé do povo estava esfriando, os católicos se tornavam cada vez mais relapsos em seus compromissos mais fundamentais da vida cristã. Foi esta a principal motivação de São Luís ao assumir esta devoção, que como ele mesmo diz já existia há muito tempo, como meio de acordar a consciência cristã de seus contemporâneos. De modo semelhante, o Pe. Júlio Maria encontrou por onde passou, na França e especialmente no Brasil, a fé se apagando, esfriando; uma indiferença crescente em relação aos valores evangélicos. A Igreja tinha se transformado tão somente em um espaço social e cultural no qual se vivia apenas por tradição. Foi a constatação que ele fez, logo quando chegou ao Brasil. Desse modo, também no Brasil, as várias devoções e confrarias, sobremodo a consagração à Maria Santíssima, foram meio eficaz para reavivar no povo a consciência do ser cristão.

Como relembra o Pe. Júlio Maria, citando aquele que era o mote de São Luís: O fim é Deus só. Este é o fim de toda devoção quando bem vivida. E “o meio de conseguir este fim é revificar o espírito cristão pela renovação dos votos do Batismo, relembrando aos homens, à luz da fé, que eles são o bem, a propriedade, os escravos de Jesus Cristo”.58

Citando A. Lhoumeau, ele diz que “o pensamento fundamental da religião é a ideia verdadeira do Santo Batismo; é o que de mais radical existe em nós como homens e como cristãos”.59 Por aí podemos ver que o Pe. Júlio Maria percebe, como São Luís, a grandeza do batismo. É o que há de mais radical em nós porque nos une ao próprio Deus fazendo-nos seus filhos; fazendo-nos verdadeiros membros de Cristo; fazendo-nos templos vivos do Espírito Santo, onde Deus é adorado em espírito e em verdade. Leva-nos de modo direto à raiz do nosso ser, da nossa existência.

58  Ibid., p. 210.59  Ibid., p. 134.

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Diz ainda o Pe. Júlio Maria sobre a Consagração: a “perfeita devoção é uma renovação dos votos do Santo Batismo. Bastaria, portanto, compreender o valor e o alcance destes santos votos para compreender o valor e o alcance da Santa Escravidão. Antes do Batismo, éramos escravos do demônio. Pelo sacramento da regeneração rompemos as cadeias, renunciamos a Satanás, a suas pompas, a suas obras, e nos unimos a Jesus, para sempre. De escravos, obrigados que éramos do demônio, nos tornamos escravos do amor de Nosso Senhor e de sua Santa Mãe”.60 Assim, a Consagração não existe por si, nem para si. Está a serviço daquilo que de mais precioso temos: o batismo, por meio do qual somos todos chamados à santidade.

A Santa EscravidãoComo já acenamos na primeira parte, o nome “Santa Escravidão”

sempre causa espanto. O próprio São Luís já havia percebido isto. Mas é justamente um nome que expressa a profundidade e o alcance espiritual desta devoção. Os termos “Santa” e “Escravidão” se complementam para nomear e explicar esta devoção: “A escravidão é um estado de rebaixamento da dignidade humana. A palavra Santa, porém, corrige a dureza do nome, elevando o estado às alturas da virtude sublime, que chamamos a sujeição total de nós mesmos a Deus, ou abnegação. É esta a dependência total, que forma a base de toda a perfeição e que o santo indica como segredo de santificação”.61

Como explica o Pe. Júlio Maria, esta devoção é, paradoxalmente, um estado de rebaixamento que eleva. Mas é este um estado que não exclui de modo algum a amizade com Deus: “Como o escravo feito amigo de seu príncipe, podemos tornar-nos “Amigos de Deus”, sem cessar de sermos escravos.”62 Ainda mais, o estado de rebaixamento, de humildade e dependência que inspiram esta devoção podem ser

60  Ibid., p. 90.61  Ibid., p. 9.62  Ibid., p. 56.

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223Pe. Júlio Maria De Lombaerde

um meio para estreitar a nossa união e amizade com Deus: “Se a Santa Escravidão é o meio mais poderoso para de novo adquirir a amizade de Deus, pode-se dizer que é o auxílio mais eficaz ainda para progredir na virtude”.63

A escravidão é por sua natureza a dependência absoluta de uma pessoa. E é espírito de dependência que esta devoção quer formar. A escravidão “é a dependência total, que forma a base de toda a perfeição e o que o santo indica como segredo de santificação”.64

A fé não é outra coisa se não uma confiança tal que nos leva a abandonar-nos totalmente a Deus. A Santa Escravidão é justamente um meio de fazer o cristão progredir na caridade, na esperança, mas também na fé. Diz-nos o Pe. Júlio Maria:“Não é suficiente dar-se; é preciso abandonar-se. Este santo abandono, que poderia intitular-se o espírito da Santa Escravidão, é, de fato, como uma conclusão de tudo”.65

Uma outra explicação muito interessante que nos dá o Pe. Júlio Maria sobre a Santa Escravidão é a de que nela nós não somente proclamamo-nos, por nós mesmos, escravos do Senhor. Mas nós nos unimos a Maria para participar da sua vida de entrega a Deus e, por consequência, de seu título de “Escrava do Senhor”: “A Santa Escravidão não é um jugo pesado, vergonhoso, deprimente, como se poderia pensar. É, pelo contrário um título de honra. Maria disse que era escrava do Senhor – “Ancilla Domini”. Ora, nada mais honroso que participar do título de que se gloria a Mãe de Deus. Unamo-nos, pois, a Ela, proclamando-nos “escravos do Senhor”.66

63  Ibid., p. 116.64  Ibid., p. 9.65  Ibid., p. 113.66  Ibid., p. 167.

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224 Um caminho de espiritualidade

A infância espiritualO Pe. Júlio Maria compara a Santa Escravidão com outras

espiritualidades. Mas percebemos um acento sobre a infância espiritual, segundo Santa Teresinha do Menino Jesus. Não só nesta obra, O Segredo da Verdadeira Devoção, mas também em outras obras, especialmente A Contemplação Sobrenatural, a mesma santa aparece como exemplo para aquilo que ele quer ensinar.

A principal característica em comum entre a Santa Escravidão e a Infância Espiritual, segundo o Pe. Júlio Maria, é a humildade. Mas não basta ser humilde é preciso amar a vida de humildade em que se vive. Este caminho de humildade da Infância Espiritual tem seu ponto alto no estado de abandono. Ambas espiritualidades querem levar a este mesmo fim.

Vejamos as palavras de Santa Teresinha que o Pe. Júlio Maria cita como sendo o resumo de sua espiritualidade: “Ser pequeno – diz a amável santinha – é não atribuir a si mesmo as virtudes praticadas, nem reputar-se capaz de qualquer coisa; é, sim, reconhecer que é o bom Deus, que põe nas mãos de seus filhinhos os tesouros da virtude, de que Ele se serve quando precisa, porquanto a virtude permanece sempre tesouro de Deus. O que agrada a Jesus em minha pequenina alma é ver que amo a minha pequenez e minha pobreza, é a cega esperança que tenho em sua misericórdia”.67

Este caminho de humildade, abandono e amor a este estado, que fez a santinha de Lisieux, diz o Pe. Júlio Maria, redunda na Santa Escravidão de São Luís. Ele chega a dizer que a Infância Espiritual e a Santa Escravidão não se diferenciam em nada, a não ser pelo nome.68

67  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. O Segredo da Verdadeira Devoção. p. 13.68  Cf. Ibid., p. 229.

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225Pe. Júlio Maria De Lombaerde

O segredo: a práticaChegamos à parte mais importante de nosso estudo, justamente

porque parece ser a mais importante para o Pe. Júlio Maria, e o motivo pelo qual escreveu “O Segredo da Verdadeira Devoção”: a prática, pois “a prática, e só a prática, revela o segredo”.69

Não por acaso o Pe. Júlio Maria intitula este seu comentário ao Tratado da Verdadeira Devoção de “O Segredo da Verdadeira Devoção”. O próprio São Luís em seu Tratado diz que esta devoção é um segredo que nem todos chegariam a descobrir. Não é por meio de várias leituras e comentários que se chega à compreensão do segredo escondido por detrás destas páginas, mas através da prática. Não a prática pura e simples dos atos de piedade recomendados por esta devoção, mas na prática da vida cristã como um todo, que é o verdadeiro caminho de santidade.

Muitas passagens referidas a este tema poderíamos citar. Para termos uma ideia, só a palavra “prática” aparece mais de 150 vezes ao longo do livro. Fora as referências indiretas ou por meio de palavras sinônimas. Mas, para não tornar o texto exaustivo limitamo-nos a citar apenas aquelas passagens que nos parecem mais relevantes.

Diz-nos o Pe. Júlio Maria: “Viver esta Consagração – este é o segredo. E à medida que tal vida se desenvolver em nós, o segredo descobrir-se-á mais e mais, até que o possuamos mais completamente. Desde modo, a Santa Escravidão de Montfort não é simplesmente uma devoção; é mais que isso: é um método eficaz de santificação. A devoção é por muitos conhecida e praticada. O método de santificação porém o é muito pouco. Entretanto, os dois devem dar-se as mãos, devem ser ambos praticados para produzir o que devem – a santidade.”70

Não é que haja de fato esta separação entre a devoção e o método de santidade. Os dois são um só. Pelo que escreve o Pe.

69  Ibid., p. 197.70  Ibid., p. 18.

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226 Um caminho de espiritualidade

Júlio Maria no início do livro podemos entender que no seu tempo muitos eram os que se interessavam por esta devoção, até aderiam a ela, mas não a viviam; ficavam apenas com a parte “sentimental” e “exterior”. Não por acaso ele também apresenta outras devoções (ou espiritualidades) correntes em seu tempo como paralelas à Santa Escravidão, como que para dizer que uma devoção é tanto melhor quanto mais nos leva a progredir no caminho da santidade, da conformação nossa com Cristo. Somente a partir daí podemos compreender porque o Pe. Júlio Maria fala que a devoção e o método de santidade devem se dar as mãos, pois a Santa Escravidão só existe verdadeiramente à medida em que ela for uma devoção que seja necessariamente um método de santidade. E, por conseguinte, a Santa Escravidão só cumpre seu fim à medida que levar aqueles que possuem o nome de cristão a viverem como tal; que levar aqueles que foram consagrados a Deus pelo batismo a viverem de fato sua consagração. Entrará no espírito da Santa Escravidão “Aquele a quem o Espírito Santo revelar o segredo. E este tal, sob o impulso do mesmo Espírito Santo, há de subir de virtude em virtude, de graça em graça, até chegar à transformação de si mesmo em Jesus Cristo”.71

Assim, esta devoção alimenta em nós o princípio vital (união com Deus) que deve se traduzir em atos, por meio de nossas faculdades. Ou seja, alimenta em nós a vida da graça que recebemos um dia no batismo, que nos fez participantes da vida de Deus, fazendo-nos sair do pecado e aprofundar nossa união com Ele. Isso acontece, como disse o Pe. Júlio Maria, pela ação do Espírito Santo que infunde as graças e os dons.

O progresso na vida da graça é a própria santificação que nos leva gradualmente à identificação com Cristo. Mas não é possível verdadeiro progresso na vida da graça se não subirmos “de virtude em virtude”, que é justamente viver a fé na esperança e na prática da caridade, como Cristo nos ensinou (Cf. Jo 15,12). Tal progresso na

71  Ibid., p. 214.

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virtude exige o esforço humano para cooperar com a graça através de atitudes firmes que nos levem a viver aquilo que contemplamos. Pois “progredirás na virtude na medida de teu esforço”.72 Destarte, se por um lado a vida de união com Deus nos leva ao progresso nas virtudes, a prática destas nos dispõe à vida em Deus.73

Em “Almas Sacramentinas”, livro no qual o Pe. Júlio Maria narra a vida de três religiosas que tinha como santas, falando sobre a Ir. Celeste diz: “Seu espírito prático desce logo da altura das piedosas considerações para a prática da vida. A prática, ou melhor, a união à doce Virgem fecundada pelo exercício da virtude - este era o seu segredo”.74 Isto é, a vida mística e prática da virtude.

Desta forma, toda a preparação indicada por São Luís para a Consagração, e o próprio Ato de Consagração, são como que uma pedra de toque. É um exercício que prepara e forma para um oferecimento contínuo, como diz o Pe. Júlio Maria: “Na Consagração é preciso fazer distinção entre o ato inicial, que é a própria doação, e o estado de doação contínua, que é o seu resultado.”75 O objetivo desta devoção é o “estado de doação contínua” de que fala São Paulo: “Eu vos exorto, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: este é o vosso verdadeiro culto” (Rm 12,1).

Ainda, segundo o Pe. Júlio Maria, a Santa Escravidão é um estado que não se adquire de imediato, mas à medida do progresso: “Ensina-nos São Luís Maria Grignion de Montfort as virtudes, obras a praticar e as disposições de que devemos nos revestir, para alcançar

72  Ibid., p. 71.73  “Os fiéis lembrem-se de que a verdadeira devoção não consiste numa emoção estéril e passageira, mas nasce da fé, que nos faz reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a nossa mãe e a imitar as suas virtudes.” (LG, 67)74  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. Almas Sacramentinas. p. 49.75  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. O Segredo da Verdadeira Devoção. p. 122.

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esta Santa Escravidão...”76. Justamente porque, para Ele, somente aderir às práticas devocionais não leva ninguém a este estado da Santa Escravidão. É preciso verdadeira entrega, verdadeiro empenho.

Citando Santo Agostinho, diz o Pe. Júlio Maria que “o resumo da religião consiste em imitar o que honramos”77. E a Santa Escravidão tem por objetivo justamente levar à imitação de Cristo, primeiramente, e de Maria, secundariamente. Imitar a Cristo, que “assumiu a condição de escravo” (Fl 2,7), que foi formado por Maria, e deixou ser por ela plasmado até que chegasse a hora. Imitar a Maria, que se fez a “escrava do Senhor” (Lc 1,38), na sua atitude diante da vontade de Deus, no seu perfeito seguimento de seu Filho, nas suas virtudes. Ele, viveu perfeita e integralmente, até ao sacrifício, o amor ao Pai e aos que lhe foram confiados. Ela acolheu a grande surpresa de ser mãe de Deus, e por isto, desde cedo sofreu, com e pelo seu Filho. “Preza-se ainda o amor de Deus. Mas esta palavra é por si tão abstrata... – diz o Pe Júlio Maria - Esquecem que amor é sacrifício, que amar é dedicar-se, dar-se, sacrificar-se.”78

Por fim, vejamos um trecho no qual o Pe. Júlio Maria resume a questão da prática interior e exterior da Santa Escravidão:

Adotar a prática exterior é hipocrisia. Adotar só a interior é respeito humano. Nossas práticas devem, pois, abranger o interior e o exterior. Isto é tanto verdade para o culto, quanto para as práticas da Santa Escravidão. Algumas vezes, almas generosas, ardentes e dedicadas, que aspiram a progredir custe o que custar, queixam-se do pouco progresso. Pode haver nisto humildade, que se desconhece. Quase sempre, porém, é verdade. E por que não progridem? Porque se contentam somente com o interior. O corpo e a alma, o exterior e o interior dessas almas não caminham igualmente.

76  Ibid., p. 14.77  Ibid., p. 9.78  Ibid., p. 66.

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Montfort, de vista perspicaz, e sobretudo de grande experiência, viu esse perigo; e por isso não se descuidou de determinar práticas exteriores à Santa Escravidão: devem elas seguir o mesmo passo que as práticas interiores. Montfort, é, antes de tudo um santo prático. Não se contenta com virtudes especulativas. Quer atos, lutas, vitórias. E eis porque se encontra em seus escritos essa mistura encantadora e verdadeiramente evangélica de doçura e de austeridade, de amor à oração e à penitência, de desejo de solidão e de ação. É o santo que anda com a cabeça e o coração no céu, e os pés nos espinhos.”79

Não deixa de chamar nossa atenção também a quarta parte do Segredo da Verdadeira Devoção, dedicada à narração da vida de vários santos e candidatos aos altares que viveram a espiritualidade da Santa Escravidão, mesmo que não através do método de São Luís. Por um lado poder-se-ia dizer que é para justificar esta devoção. Mas, por outro lado, talvez seja para mostrar com a vida, ou com vidas concretas, como se vive verdadeiramente esta devoção. E que só uma devoção verdadeiramente vivida é capaz de santificar. Dessa forma o Pe. Júlio Maria quer deixar claro que “o amor à Mãe de Jesus não é um fator teológico, especulativo, nem simplesmente afetivo em nossa educação espiritual: é um princípio de transformação e santidade”80.

ConclusãoConfesso que senti-me inclinado a dar a este artigo o seguinte

título: “Pe. Júlio Maria e sua leitura do Tratado da Verdadeira Devoção”. Mas percebi que este título não seria adequado, pois nosso estudo não se restringe àquilo que o Pe. Júlio Maria escreveu e ensinou sobre o Tratado da Verdadeira Devoção; nem tampouco queremos dizer que ele tenha feito uma leitura inusitada desta obra.

79  Ibid., p. 161.80  Ibid., p. 47.

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Embora tenhamos tratado na maior parte do tempo dos conteúdos referentes às duas obras, podemos perceber, lendo uma e outra, dois corações de verdadeiros pastores que amaram e zelaram pelo seu rebanho e de muitos modos mostraram-lhe o caminho da santidade. Vemos também dois missionários que encontraram na devoção à Maria Santíssima um caminho seguro e eficaz para a renovação e o incremento da vida cristã. Eis o âmago do diálogo entre os dois.

Com vimos, no contexto em que viveu São Luís, a Consagração foi o meio que ele encontrou de reavivar no povo a chama da fé relembrando-lhes o compromisso batismal; o amor a Jesus, Sabedoria Encarnada do Pai; e a devoção a Maria conduzindo infalivelmente a seu Filho. Prova da eficácia desse apostolado por ele empreendido é que onde missionou foi justamente onde a fé cristã permaneceu mais viva durante e após as revoluções e o auge do iluminismo.

De igual modo o Pe. Júlio Maria, especialmente no Brasil, encontrou na Consagração e na devoção à Maria um meio de restituir no povo o fervor da fé. Uma das primeiras impressões que teve e registrou em seu diário81 foi a de que um dos principais motivos pelo qual o povo estava voltando ao paganismo era a ausência da devoção à Maria, como ele constatou entre os habitantes da Amazônia. Ele faz questão de frisar que a causa disto – da falta da devoção a Maria e o crescente paganismo -, é a ignorância, a falta de alguém que instrua o povo sobre a fé em sua inteireza. Tanto é que ele diz que o povo tem uma predisposição muito grande para aprender sobre a fé e, por consequência, acolher a devoção à Maria. Vale a pena recordar aqui também o início do seu apostolado em Manhumirim que teve como marco inicial as celebrações marianas do mês de maio para promover um reavivamento católico, e por meio destas alcançou bons e duradouros resultados.82 Sem contar

81  DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. Diário Missionário. pp. 255-258.82  SIMÕES, Daniel Soares. O Rebanho de Pedro e os Filhos de Lutero: O Pe.

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que os temas marianos foram muitas vezes o ponto de partida de muitas disputas com os pastores protestantes. Não por acaso ele escreveu diversos livros para instruir o povo católico sobre Jesus Cristo, a Igreja, e muito frequentemente sobre Maria. Deste modo - e contando também com outros recursos pastorais como as catequeses para o povo e as associações católicas – ele conseguiu reavivar a vida paroquial. Através dos seus livros e do jornal ‘O Lutador’ fez com que seu apostolado alcançasse milhares de pessoas Brasil afora.

***

Chegando ao fim desse nosso estudo, que se deteve mais nos elementos fundamentais do Tratado da Verdadeira Devoção e do Segredo da Verdadeira Devoção, convém tomar um pouco de distância e levantarmos algumas questões83: Hoje, num tempo em que assistimos cada vez mais o eclipse do sagrado, num tempo que muitos já não acreditam ser possível qualquer intervenção do Absoluto na história, qual é mesmo o lugar da consagração? Dentro da Igreja mesma, muitos teólogos fazem críticas à consagração como se esta fosse um resíduo mágico-sacral, derivado de uma compreensão dicotômica, sendo, portanto, contrária ao cristianismo que é na sua essência comunhão. Qual o lugar da Consagração na vida cristã? Se a consagração se refere diretamente ao Absoluto - Deus, é realmente válida a consagração por meio de Maria? Reconhecendo sua validade, qual a sua necessidade, uma vez que todos somos consagrados a Deus por meio do batismo?

Júlio Maria De Lombaerde e a Polêmica Antiprotestante no Brasil (1928-1944) . (Dissertação de Mestrado) 2008. p. 1383  Doravante inspiramo-nos no verbete “Consagração” do Dicionário de Mariologia.

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É o apóstolo Paulo que diz, de modo contundente, que devemos nos consagrar a Deus transformando nossa existência em um verdadeiro culto, vivendo para Jesus Cristo (Cf. Rm 6,11-13). Tal culto, dirigido a Deus Pai por meio de Cristo, é o reconhecimento de Deus como criador e redentor, fim último de todas as coisas, aquele que deve ser adorado e amado acima de tudo. Neste sentido a consagração não pode ser dirigida a Maria, senão numa acepção semântica distinta. Assim a consagração à Trindade, realizada no batismo, é o contexto necessário de toda e qualquer consagração posterior, que será por sua vez sempre dependente e dirigida a ela. Até porque a consagração, antes de ser um compromisso a cumprir, é uma ação de Deus mesmo que toca que transforma o ser humano em sua realidade mais profunda.

Deste modo, a Consagração, segundo o método de Montfort, está correta pois é no fundo uma renovação dos compromissos batismais e um meio de vivê-los mais intensamente. Não é uma consagração autônoma, mas totalmente dependente da consagração fundamental que é o batismo. Não só depende mas está a serviço da consagração batismal, pois pretende ser um despertar da consciência batismal, que leva o cristão a uma atitude de acolhida da graça de Deus e o ajuda no caminho de fidelidade a Ele. Enfim, é uma consagração que, se bem vivida, nos ajuda a crescer na vida cristã, pois ser cristão é ser justamente aquele que se deixa conduzir pelo Espírito, amado pelo Pai e unido a Cristo. Ela alcança seu fim quando nos leva a viver uma espiritualidade mariana, no sentido de sermos pobres, abertos e disponíveis ao projeto de Deus.

Assim, a proposta de viver mais intensamente a consagração batismal por meio da consagração à Maria, para o cristão de hoje, é como que uma terapia para aqueles cujo sentido religioso pode estar atrofiado. Claro, deve-se ter muito cuidado para não cair no erro de propor uma ideia inexata de sagrado e de consagração ou

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uma mariologia maximalista.84 A consagração não é em primeiro lugar “separação”, mas é principalmente uma “imersão na corrente de vida trinitária em uma transfinalização do ser humano”. Assim, consagrar-se significa aceitar esta relação com o Deus-Trindade e vivê-la na comunidade dos cristãos, a Igreja. É deixar ser guiado pelo exemplo de Maria e ajudado por sua intercessão na busca e na realização do sentido da vida cristã.

Outro ponto importante a ser destacado é a dimensão eclesial da consagração. A consagração não é um ato de extrema generosidade do indivíduo que por sua capacidade se consagra a Deus. Antes, o homem é que é consagrado por Deus para Deus como membro do corpo de Cristo, a Igreja, povo de Deus. Deste modo consagrar-se a Jesus, tendo como guia e exemplo Maria Santíssima, é fazer despontar na Igreja aquela natureza que lhe é mais própria e mais íntima, a de ser um povo consagrado ao Senhor. E à medida que esta nos orienta para Deus, também os laços de fraternidade e de comunhão com a Igreja e todos os seus membros devem ser estreitados.

E, por fim, acenamos para um último tema, de grande pertinência. No mundo em que vivemos, onde o homem é cada vez mais independente, autônomo e capaz; onde, como dissemos, vai-se perdendo cada vez mais sentido do sagrado, falar em Escravidão/Serviço, ou mesmo em Consagração Total, já não chama tanto a atenção de muitos. Mas, por outro lado, ao mesmo tempo que internamente se reconhece a necessidade de rever algumas coisas

84 Tanto São Luís como o Pe. Júlio Maria viveram em períodos em que a mariologia tendia para um “maximalismo”, uma exaltação excessiva da figura de Maria. Mas como vimos, apesar do maximalismo próprio de suas épocas, Maria é situada de algum modo dentro do mistério de Cristo e da Igreja e é para ele orientado. Hoje, como sabiamente nos orienta a Igreja através do Concílio Vaticano II, deve-se evitar tanto um falso exagero na exaltação da figura de Maria, como também uma exagerada estreiteza na consideração da sua singular dignidade de Mãe de Deus (Cf. LG, 67).

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na consagração a Maria, como o nome e algumas de suas práticas, acontece um despertar espiritual do sagrado, contrariando muitos sociólogos. “A crise da racionalidade burocrático-formal alarga o espaço do sagrado, o exalta como alternativa, como ocasião e como instrumento de sobrevivência humana... O paradoxo do sagrado, reduzido ao essencial, é o seguinte: o sagrado é o meta-humano de que mais se necessita na convivência humana, é uma pena vulgarizar o achatamento da vida e perder o sentido do problema; é uma pena perder o que há de propriamente humano no homem.”85

O amor é a característica mais própria de Deus, é o sagrado de que o ser humano mais necessita. Por isso, a consagração é, no dizer de Karl Rahner, “o sério intento, meditado e concentrado de realizar o momento da eternidade no tempo, como ato de amor”.86

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