Top Banner

of 137

O rosto que precede o sonho.pdf

Jul 06, 2018

Download

Documents

Andrea Chiu
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    1/137

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    2/137

    Copyright  © 2012 by Maurício Gomyde 

    Consultor: James McSill ([email protected]

    Capa: Pedro Porto ([email protected]

    Foto do autor: Junior Aragão ([email protected]

    Rosto da capa: Lillen Vater  

    Foto do rosto da capa: Alessandro Dias 

    Diagramação: Helkton Gomes ([email protected]

    Selo Editorial: Porto71 ([email protected])

    O rosto que precede o sonho. Mauricio Gomyde. Brasília,DF.192 p. 

    ISBN: 978-85-911840-2-6 

    mailto:[email protected]

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    3/137

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    4/137

    Agradecimentos

    amais poderia deixar de agradecer a tantas pessoas que torcem para que tudo sempre dê cerMas, em especial, agradeço a:

    Mi, Ma e Manu, pelo amor, paciência e dedicação infinitos; minha família, em especial mmão Pedro, pela parceria e qualidade do trabalho; Junior, pelo bom-humor gigante e pempre comprar as ideias, por mais malucas que pareçam; Viviane Holmes, pela consultoédica; Paulo Vanzeto, pela consultoria náutica; Carol Lobo e meninas do Borboletário rasília; Márcio Said, Marco Antonio e Ju, pela ajuda com o book trailer; Lillen Vater, por tpado ser a menina da capa; James McSill, pela maestria e sabedoria em expandir me

    orizontes literários; Ana Maria e Kyanja Lee, pela leitura crítica e comentários especiaobson Batt, pelas ideias e conversas sobre a editoria.

    todos os que são inspiração diária para tudo que escrevo.

    or fim, em especial a todos os blogueiros de literatura, pelas parcerias. Sem eles, eu não estaqui hoje.

     A relação completa dos blogs está em:

    mauriciogomyde.com/p/blogs-parceiros.html

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    5/137

     

    Meus livros não são sobre minha vida.Minha vida, sim, é que é toda feita pelos meus livros.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    6/137

     

    No dia em que Tomas Ventura recebeu o convite para participar da trilha sonora de um grandfilme de Hollywood, a proposta de trabalho da sua vida, ele decidiu dizer “não”...

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    7/137

    1º/12/2013 – Segunda-Feira.  No início da noite, Aurora entrou no apartamento do pai, deixou as malas no corred

    eu-lhe um beijo e desceu pelas escadas. Atravessou a rua até o sebo. Abriu a porta de vidroneta tocou.

    Benjamin terminava de atender um cliente. Sorriu ao vê-la e acenou para qguardasse.

    Ela foi para a prateleira de revistas antigas e pegou uma nas mãos. Antes que term ina

    e ler um editorial com a retrospectiva do ano de 1971, Benjam in já estava ao seu lado de braçbertos, perguntando como ela estava. – Seguindo a vida, como tem de ser. – É assim que se fala! – Sabe, olho pra esse lugar aqui e lembro daquele dia incrível. – Memorável, é verdade! – Ele concordou com a cabeça. – Você tem tempo pra um

    onversa? Quer tomar alguma coisa? – Sim, uma água. Tenho todo o tempo do mundo, meu am igo. Vim pra isso.Benjamin, então, fechou as portas da loja, serviu dois copos e sentou para contar todas

    oisas que ela ainda não sabia...

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    8/137

     

    30/08/2013 – Sexta-Feira. Três meses antes. Tomas empurrava a fatia de limão para dentro do gargalo. De repente, virou a cerve

    um gole só. Bateu a garrafa no balcão de madeira, passou a mão na boca. – Hoje de manhã..elena me acordou com uma mensagem no celular: “A gente precisa muito conversar”.

     – Ih, essa frase é o início do fim de qualquer coisa que j á foi pro buraco há muito tempsse Benjamin, enquanto secava um copo do outro lado do balcão. – E como você tá se sentin

    oje?

     – Em relação ao que a Helena falou? – Também . – Bom, confesso que tô cada vez pior. Mas hoje não consigo pensar em outra coisa a n

    er no que ela disse e... Nossa, tô mal! – Tomas apoiou os dois cotovelos na mesa, colocouuas mãos na cabeça raspada e as escorregou para o rosto. – Dá outra cerveja!

    Benjam in abriu o expositor e pegou uma long neck . – Deus do céu! Que foi que ela falou? – “Preciso contar uma coisa, mas não quero que fique chateado”. – Tomas levantou

    abeça e deu um gole. – Daí, eu disse: “Fala”, do jeito mais natural do mundo e já prevendoomba. E ela: “Promete não ficar chateado?”. Essa pergunta me deixou m uito puto! Por miem precisava continuar.

     – Imagino. Até eu já tô indignado. E qual era a bom ba?Tomas respirou fundo e soltou:

     – Simplesmente... “Conheci uma pessoa”.Benjam in arregalou os olhos e coçou a longa barba.

     – Assim, na cara de pau? – Pelo telefone! E eu mal tinha acordado! – E quem é o desgraçado? – Ela não queria falar, mas eu insisti. Se é pra sofrer, que sej a sofrimento completo

    ome dele é Françoá, é um  sommelier . Eles se conheceram há dois meses, numa degustação qu não quis ir. Estão de malas prontas pra Espanha, vão noivar.

     – Noivar? – Do alto de seus quase dois metros, Benjamin pareceu murchar. Espalmouuas mãos sobre o balcão, retesou os braços tatuados e aproximou de Tomas o rosto. – Oureito?

     – Direitinho, sem tirar nem pôr.

     – Nossa, é raro eu beber em serviço, mas até eu vou tomar uma agora! – E sabe como ela finalizou? Com um direto e seco: “Pois é, acontece...”. Acontec

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    9/137

    mples assim? Acontece? Foi um “Morra, desgraçado!”, durante um chute na cabeça. – Pra dizer o mínimo. – Porra, BJ, eu sem pre confiei! Quase um ano juntos e, na medida em que min

    tuação perm ite, juro que tentei me dedicar. Até ontem tava tudo bem. – Dois meses te enganando, meu camarada. – Sempre achei inofensivos estes sujeitos que cheiram a rolha, balançam o copo e mira

    infinito pra sentir as... – Tomas semicerrou os olhos e fez um bico. — Notas amadeiradas

    ensualidade dos tons fascinantes da uva selecionada. Ah, não, muita sacanagem! – De onde m enos se espera, é dali que sai a coisa. E o que você falou? – Falei: “Pelo m enos ele deve adorar transar ao som daquela merda dos Bee Gees!”

    esliguei o telefone. – Matou a pau! Ela ainda gostava disso? Achei que você já tinha tirado essa ideia péssim

    a cabeça dela. – Nada! Tentei convencer com todo tipo de música boa, mas ela ainda achava excita

    scutar, na hora H, aquelas vozes irritantes. E eu nem quis saber explicitamente se tincontecido alguma coisa mais... Digamos assim... Profunda entre eles, porque é óbvio. Respon

    ra mim: alguém pede outra pessoa em casamento, com duas passagens compradas parcelona, sem antes dar aquela conferida minuciosa no material e no estoque? – Tomas aponara o expositor. – Separa dez cervejas aí que hoj e vou me acabar!

     – Vai nada. Aquela vaca não merece que você acabe assim.Tomas jogou o olhar para o infinito e não comentou sobre o “vaca”. Talvez não quises

    dmitir que, por tudo o que estava passando, era como tinha vontade de nominá-la. – Beleza, desculpa. – Benjamin levantou uma das m ãos. – Aliás, se você quer saber, el

    ma tremenda de uma gata e eu ficaria mal também. Mas, no fim das contas, não foi melh

    ssim? Você disse outro dia que não demoraria a terminar, por causa do... – Eu sei, eu sei. Só não precisava ser tão cruel, né? Queria ter ficado com uma b

    mpressão dela. E agora não tem mais jeito. Não acho que eu mereça, apenas isso. – Ninguém nunca merece , é fato. Mas... – Benj amin engrossou a voz e continuou, en

    ausas: — O importante... Quando se passa por aquele portal místico... – Ficou de lado, fechouhos, abaixou a cabeça e apontou para a entrada da loja. – Você bem sabe... – Levantou a mreita, encolheu o dedão, o anelar e o dedo médio. Gritou: – Rock and rooooooll!

     – O bom e velho rock and roll! Aquele que nunca nos trairá! – Isso mesmo. Ao fiel e leal rock and roll! – Benjamin levantou a cerveja. – Aos deuses do rock, que nos protejam da influência m aligna de traidoras que gostam

    exo ao som de música ruim! – Tomas devolveu e bateram as garrafas. – E aí, chegou algumoisa nova esses dias?

     – Alguns livros, CDs, revistas. Quase duzentos LP’s. – Duzentos? E vieram de onde? – Um sujeito entrou aqui hoje cedo, disse que vai se mudar e queria se livrar d

    uinquilharias. Paguei um real por disco e acho que vai dar pra fazer bom dinheiro com elreciso melhorar o faturam ento, pra não fechar.

     – E tem coisa boa? – Acho que sim. Dei uma olhada rápida, mas ainda não tive tempo de mexer. Pedi p

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    10/137

    inha mãe aj eitar nas prateleiras lá do fundo e mais tarde vou organizar. – Posso conferir? Preciso esquecer da Helena. Tô como aquelas mulheres que gastam p

    air da depressão. Hoje vou gastar! – Ótimo! Fica à vontade. A casa agradece. – Sua m ãe tá aí? – Lá em baixo, na cozinha. – Sai espresso com leite?

     – Vou ver. – Benjam in tomou o interfone na mão. – Mãe, faz um espresso com leite pomas... Hum... Concordo... – Ele tapou o bocal. – Ela disse que só se você deixar de ser mducado, descer lá e dar um beijo nela.

     – Tô achando que sua mãe é a mulher da m inha vida. – Olha lá, hein? Ela anda carente. – Prom eto não beijar na boca. – A casa agradece outra vez.Tomas desceu, deu um beijo na Dona Olávia, voltou e foi conferir as novidades. 

    Quando Tomas chegou ao fundo da loja, o tilintar da sineta indicou a entrada de mais uiente. E, por entre vãos de prateleiras tomadas por histórias cantadas pelos heróis de s

    uventude, sua vida começaria a tomar o rumo que e le j amais poderia prever.Rosto lindo, pele bem branca, queixo desenhado, cabelos castanhos, anelados

    ompridos, cintura fina, ombros largos. Vestido verde claro, bolsa quadrada e preta a tiracoma multidão de cores em forma de mulher.

    O mundo desacelerou por alguns segundos, até quase parar diante da imobilidade omas.

     – Minha nossa! – ele sussurrou.Acompanhou com o olhar o caminhar seguro dela para a seção de livros, os cabelos

    m lado para outro, até uma pilastra grossa encobrir a cena. Respirou fundo, voltou a oncentrar nos discos. Foi para a extrema esquerda da prateleira. Puxou o primeiro. Eraosmo’s Factory , do Creedence Clearwater Revival. Southern  Rock   dos anos 60 da mais aualidade. Original. Conservadíssimo.

     – Cacetada! BJ, você precisa vir aqui atrás ver o tipo de quinquilharia que com prouritou. Passou a língua sobre os lábios e colocou o disco debaixo do braço.

     – Ãhn? – Rapaz, tem um CCR original olhando pra minha cara de tonto neste exato momento.

     – Sério? – Benjamin foi voando.Tomas olhou os bigodudos da capa. Tirou com todo cuidado o vinil de dentro. Posicion

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    11/137

    m diagonal à luz e não havia um arranhão sequer. – Corre, bota lá a Travelin’ Band . Terceira do A. Aumenta o volume.

    Benjam in foi para o meio da loja, gritando: – Ah, velharada, quero ver se vocês continuam tão bons!A menina que havia acabado de entrar na loja, então, chegou à mesma prateleira on

    stava Tomas. Segurava um livro de capa verm elha e branca.Tomas foi fulminado por um lindo par de olhos cor de mel, olhar seguro, firme

    ecidido. Ela foi para a outra extremidade da prateleira e também puxou um disco. – Muito bom! – com entou para si mesma e o colocou embaixo do braço.Ele franziu a testa, andou até ela e interveio:

     – Com licença... Desculpa perguntar, m as... Muito bom o quê? – The Classic Roy Orbison. – Ela mostrou e o voltou para debaixo do braço.Então ele arregalou os olhos, abaixou a cabeça e, sem dizer uma única palavra, correu

    olta para sua extremidade da prateleira. Começou a puxar um disco atrás do outro, numelocidade impressionante. Os que interessavam, colocava debaixo do braço. Os que não, voltaara o lugar. A menina começou a fazer do m esmo jeito. Puxava, olhava, segurava ou volta

    Travelin’ Band  entrou, a voz marcante do Fogerty rasgou a letra. Tomas olhou para o ladcrédulo. Acelerou os movimentos. Precisava verificar a maior quantidade possível de disc

    ntes dela. Foram se aproximando, cada vez mais velozes. Ele, da esquerda para a direita. Ela,entido contrário. Led Zeppelins, Polices, Beatles, Rolling Stones, Lynyrd Skynyrds, Ramonixies, Smiths, Kinks. Um vinil melhor do que o outro. Todos originais e novos em folha. Quanbraço já não aguentava o peso dos discos, Tomas colocou no chão. Já nem olhava o que vinh

    Ele daqui pra lá, ela de lá pra cá, velocidade em estado puro. Olhavam-se enquanto proximavam . Ele, ela, ele, ela. Em pouco mais de dois minutos, cada um varreu sua metade

    rateleira. Quando a canção terminou, os dois pegaram o disco que sobrou no meio do caminhpuxaram , juntos.

    Um disco de capa cinza.As duas mãos se tocaram.O mundo de Tomas, enfim, parou.Olharam-se nos olhos. Ela puxou. Ele não soltou. Ele puxou, ela agarrou com mais forçUm duelo.

     – Peguei primeiro – ela disse. – Minha m ão tá nele tam bém , pelo que me conste.Ela colocou a outra mão.

     – São duas contra uma agora.Ele colocou a outra também.

     – Eu cheguei primeiro na prateleira. – Os últimos serão os primeiros. – Serão, concordo. Mas não hoje. – E onde fica o cavalheirismo nos tempos atuais? – Ela franziu a testa. – Há casos em que o cavalheirismo sucumbe ao desespero.

     – Pois só com uma razão muito plausível eu cederia a esse desespero. – Eu sou músico, mereço ouvir antes.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    12/137

     – Pois eu am o música, e essa razão que você alegou não tem nada a ver. – Tudo bem , mas... Então, que tal pegar seu Ipod  e ouvir uns mp3 novinhos nele? – Eu não tenho Ipod . – Não? – Nunca tive. – Ela deu mais um puxão no disco. – Você é deste planeta? – Sou. Você tem  Ipod ?

     – Nunca tive também . – E de qual planeta você é, então? – A menina arregalou os olhos na direção de Tomas. – Hum ... Eu... Tenho uma proposta: conheço o dono da loja, peço pra ele dar de prese

    ra você um  Backstreet Boys original. Olha só que j oia! – E eu lá tenho cara de alguém que gosta de boy bands, por acaso? – Mulheres novas gostam de boy bands, pelo que dizem por aí. – Sou nova, mas nem tanto. E tenho autocrítica musical. Ora, faça-me o favor! – Pode ser um do Iron Maiden, então, que tal? – Para, eu não quero disco nenhum . Quero este aqui, só este.

     – Ah, eu duvido... – De quê? – De que você entenda mais de m úsica do que eu. – Tomas olhou fixo nos olhos dela. – Aposto este disco. – Mas você nem sabe qual é o disco. – Nem você. E pode ser o pior disco de todos os tempos, porque agora é questão de hon

    var este aqui pra casa. – A menina o encarou e franziu a testa. – Então solta pra eu ver.

     – De jeito nenhum. – Melhor chamar o BJ, meu chapa dono da loja, pra resolver isso aqui. – Pode cham ar. – Ela deu de om bros. – BJ! – Tomas gritou, por entre as prateleiras.Benjamin estava ao redor da vitrola, fingia segurar uma guitarra e tentava um solo

    azio. – Ô BENJAMIN, MEU FILHO! – Opa! – Benj amin torceu a cintura e virou, desconsertado. – Venha cá, faz favor!O amigo chegou e abriu a boca ao ver a prateleira quase vazia e os dois agarrados

    sco. Parou e apontou para a cena. – Perdi alguma coisa? – Seguinte: esta mocinha aqui acha que entende de música mais do que eu, e, por is

    uer ficar com o disco que eu peguei. – Que nós pegamos – ela corrigiu. – Vai, fio, diz pra ela quem eu sou. – Bom... – Benj amin cerrou os olhos e levantou o dedo indicador direito. – Este senh

    qui é o famoso Tomas Ventura, mais conhecido como Tomas Cabeção, compositor de...

     – Cabeção? – ela perguntou, em meio a um sorriso sarcástico. – Pula essa parte, por favor. Conta sobre aquele dia em que o Sting esteve aqui na lo

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    13/137

    ão esconde nada. – Ah, que dia inesquecível! – Benjamin olhou para cima, os olhos brilharam . – Olha a l

    apontou para a parede ao lado da entrada. Sob uma luz direcionada, o quadro com a foto enjamin com cara de bobo ao lado do Sting ocupava lugar de destaque. – Bom, este sujeito qstá segurando o disco com você estava bem aqui e... A propósito, qual é o disco?

     – Ninguém sabe ainda, mas j á não importa também – Tomas foi rápido na resposta. – Então, como eu ia dizendo, há uns anos o Sting estava na cidade pra fazer um show. D

    eio almoçar no sushi ali da esquina com a equipe. Na saída, entraram aqui pra dar uma olhau e o Cabeção... – Tomas... – o próprio corrigiu. – Quase caímos pra trás. Eu não sabia se falava ou apenas m e aj oelhava e me regozija

    om o semideus. Daí eu comecei a gaguejar e ... – Não enrola, conta logo essa lorota, vai – a menina interrompeu. – Bom, o Cabeção tava me mostrando um a nova composição ao violão. Pois o Sting fic

    aquela prateleira ali, folheando os discos e balançando a cabeça. – Balançando a cabeça? Nossa, uma reação surpreendente! No mínimo ele tava pensan

    Meu Deus, pra quem já compôs Every Breath You Take, isso aí é de doer”. – Muito engraçado! BJ, diga pra ela quais foram as palavras dele enquanto me dava u

    utógrafo – Tomas levantou a bola para Benjam in cortar. – Que você tinha futuro e a melodia era muito bonita. – Inclusive. – Tomas pausou e deu um sorriso emocionado. – Não tô insinuando nada, m

    m uma música do disco seguinte dele com a melodia muito parecida. – Ah, conta outra! O Sting te plagiou? – Ela deu risada. – Se plagiou, não sei. O que sei é que o Cabeção ficou dias sem dormir, lembra?

    enjam in deu um tapa nas costas de Tomas. – E sem lavar as mãos também – Tomas completou. – Credo! – A m enina, enfim, largou o disco. – Pode ficar com ele. – Ah, agora não aceito levar assim tão facilmente. Vou mostrar que entendo mais

    úsica do que você e m ereço ganhar o disco. Bota a mão de novo aí, vai! – Tudo bem . Voltou a ser questão de honra. – Ela colocou de volta a mão e ficou dan

    ves puxões para si, encarando-o. 

     – Tomas, olha aqui seu pedido, meu filho! – gritou Dona Olávia, de avental e lenço abeça, enquanto passava o pano em uma das mesas de m adeira.

     – Desafio você durante o lanche. – Tomas franziu a testa para a menina. – Topa um caum sanduíche?

     – Topo. – Dona Olávia, tem aquele sanduichinho de presunto com queijo branco? – Quentinho, com o sempre... – Então traga dois, mais um café e soe as trombetas porque agora é que a coisa

    rver! – Tomas gritou.A menina sorriu.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    14/137

     

    Os dois caminharam até a mesa mais próxima, as quatro mãos ainda no dissbarraram em duas prateleiras e quase derrubaram a conservadíssima SL-1200MK2 Technicsca-discos que ocupava lugar de destaque na loja, o maior investimento de Benjamin des

    uando resolvera abrir o agora tradicional e cultuado “Sebo no Café”.Chegando à mesa, entregaram o disco para Benjamin. Sentaram.

     – BJ, você vai avaliar quem merece ficar com o disco. – Beleza. Como será a disputa?

     – Proponho o seguinte: cada um dos dois vai montar uma banda, e, ao final, você diz qm elhor. Não pode ter mais de um componente da m esma banda de verdade, e nem pode cam repetir o elemento da banda do outro.

     – Entendi. Mas, antes, só pra conhecer os dois concorrentes, respondam à pergunta mmportante da vida de um ser humano. – Benjamin fez um olhar solene para cada um e soltou

    Maior banda de todos os tem pos? – U2 – ela respondeu de pronto. – Legião Urbana, e ainda é da m inha cidade.

    Benjamin puxou uma folha e uma caneta, desenhou uma tabela, fez algumas anotaçõeomeçou:

     – Vocalista? – Aposto que ela vai responder “Bono Vox”. – Tomas deu risada. – Quer montar a minha banda, senhor entendido de música? – Ela arregalou os grand

    hos cor de mel na direção de Tomas e continuou: – Bono Vox. – Canta muito! – Benj am in estalou o dedo e apontou o indicador para ela.Tomas esfregou as mãos e devolveu:

     – Freddie Mercury , anota aí.Dona Olávia chegou com os sanduíches e o café. Sentou-se à mesa ao lado pa

    companhar o confronto. – Baixista? – Benjamin olhou para os dois. – Paul McCartney – ela se apressou em dizer. – Jaco Pastorius! – Tom as gritou quase ao mesmo tempo. – Esse aí eu nunca ouvi falar – a menina comentou. – Viu? A gente podia encerrar por aqui mesmo, j á que ela não conhece o Jaco. – Tom

    meaçou levantar da mesa. – Quem não conhece o Jaco, não conhece música.

     – Mas o Jaco quase ninguém conhece, devem os relevar – Benj amin ponderou. – Mãeenhora conhece o Jaco?

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    15/137

     – O único Jacó que eu conheço é aquele da Bíblia, filho. – É Jaco! Sem acento, mãe. – Hum... Só ouvi falar com acento, filho. – Então, protesto negado. Baterista? – Neil Peart, Neil Peart! – Tom as gritou, antes de ela pensar em falar. – E eu sou a previsível, nossa! Todo mundo acha o baterista do Rush o melhor, mas

    cho que e le é 100% técnica e zero sentimento. Música é em oção, não é contabilidade.

     – Pelo amor dos m eus filhinhos! Não fala assim dos deuses da música, mulher! Cuidaue você pode arder no fogo. – Tomas deu um gole no espresso e apontou para ela. – Faça-m e rir! – a menina desdenhou. – Anota a í meu baterista: Phil Collins. – Guitarrista? – continuou Benjamin, enquanto fazia anotações. – Eric Clapton – ela começou. – Jimi Hendrix, sem dúvida. – Tecladista? – E por acaso banda de rock decente tem tecladista? Logo você, BJ? Ora, faça-m e

    avor! – Tomas fez cara de indignado.

     – Pela primeira vez sou obrigada a concordar com você em alguma coisa – ela disse.Tomas sorriu.

     – Tudo bem, falha minha. – Benj amin levantou a mão dire ita. – Então, vam os montaruas bandas. Escalação do time feminino: Phil Collins, Paul McCartney, Eric Clapton e Boox. Que banda, que banda!

     – Não precisa nem falar a dele. Pode me dar o disco que já tô indo embora – a menomentou, triunfante.

     – Banda do Cabeção: Neil Peart, Jaco Pastorius, Jimi Hendrix e Freddie Mercury .

     – Nóóóóó, humilhei! – Tomas levantou da cadeira e rodou em volta da mesa, braçvantados e punhos cerrados.

     – Em minha opinião, ótimos músicos. Mas um am ontoado. Falta harm onia – agnosticou.

     – Mãe, como presidenta da mesa, a senhora quer dar alguma opinião? – Benjam in tomé do debate.

     – Prefiro não, filho. Considerando que eu não conheço aquele... Esaú, né? – Não, mãe. Esaú, Jacó, é tudo coisa lá da missa da senhora. – É verdade. Melhor eu não falar nada, então. – Bom... – Benj amin olhou para as duas bandas no papel. Ficou em silêncio por algu

    egundos e enfim disse: – Já tenho meu veredito! – Apoiou os dois cotovelos sobre a mentrelaçou os dedos, respirou fundo, fez mais silêncio. Olhou para um... Para outra... Mordeubio... Olhou mais uma vez para cada um deles.

     – Gente do céu, fala logo! – Tomas estava apreensivo.Benjam in segurou a respiração, pausou e expirou de uma vez, baixando os ombros.

     – Ah, eu sou incompetente pra decidir. Deu empate técnico. Minha decisão: o disco fa loja. Quem quiser escutar, que venha aqui tomar um café.

     – Boa, filhão! – Dona Olávia aplaudiu. – Na minha modesta e isenta opinião, minha banda é muito melhor. Mas vou aceita

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    16/137

    ecisão soberana da mesa. O disco fica aqui – Tomas concluiu. – O disco fica – a menina concordou. – E vou pagando e indo embora. Vou levar o livro

    ais estes seis discos aqui. Deixo o resto pro Cabeção se deliciar. Quanto deu? – Peraí que vou ver. – Benjam im pegou a caneta e um bloquinho. – O lanche é por con

    o Cabeção. Pra aprender a não mexer com quem tá quieto.Os três deram risada.Tomas bateu no peito e disse:

     – Deixa comigo.Benjamin continuou: – O Salinger sai por quinze. Mais dez por disco, vezes seis discos... Fica tudo setenta

    nco. Parabéns, só discão: Lennon... Hendrix... Elvis... Acho que nem vou deixar você levarenjamin simulou esconder os discos.

    Ela riu, tirou o dinheiro da bolsa e pagou. – Embrulha pra presente? – ela pediu.Tomas não conseguia tirar os olhos dela enquanto Benjamin embrulhava.

     – Obrigada. Foi um prazer negociar com você.

    Quando a menina colocou a mão na maçaneta da saída, Tomas falou: – Ei, não quer tomar outro café? – Preciso ir. Tenho trabalho a fazer. – Não quer escutar o disco que a gente disputou? – Tô muito atrasada. Pode escutar. – Só vou escutar com você aqui. – Então, quem sabe um dia... – Esse “um dia” pode ser tarde dem ais...

     – Não existe a palavra “tarde” quando algo tem de acontecer. Se for pra acontecer, pocreditar que vai. – Ela fez um olhar doce.

    Ele sorriu, levantou a sobrancelha e perguntou: – E será que tem de acontecer de eu saber pelo menos seu nome?Ela ficou alguns segundos encarando-o. Apertou os olhos e devolveu o sorriso.

     – Acho que você não tá merecendo. – Você volta na loja? – Tomas perguntou. – Talvez? – Podem os trocar outras ideias sobre música, o que acha? – Ué, você entende muito mais do que eu... Ou já mudou de ideia? – Você é uma adversária de peso, sou obrigado a admitir. – Então, talvez eu apareça daqui a uma semana, nesta mesma hora... – E deu um

    scadinha, em meio a um sorriso. Virou-se de costas e desapareceu de vista.Tomas escorregou pela cadeira e soltou:

     – Meu Deus do céu! Para tudo! Quem é essa mulher? – Primeira vez que vem aqui. E pelo visto você já se esqueceu da vaca . – Que vaca?

     – Ótimo. Assim é que se fala! Outra cerveja? – Só se for agora.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    17/137

     

    Benjamin guardou o disco cinza em uma caixa em cima da geladeira, fechou a loja eois ficaram dentro, ao som de ótimos LP’s de rock, entre cervejas e teorias sobre músicaulheres. As muitas prateleiras cheias de raridades, os quadros de bandas e escritores, o lon

    alcão de madeira de dem olição e a vitrola foram testemunhas de palavras carregadas mento e esperança.

     – Sabe, eu acho que a resposta à pergunta “o que faço aqui neste mundo” m ora em algugar entre os Beatles e o Metallica... – Tomas filosofou.

    Benjamin refletiu sobre a frase por alguns segundos e disse: – Então, um brinde a tudo de bom que há no meio. – Opa! – Tomas concordou e levantou a cervej a. – E... Cara, uma mulher como essa q

    eio hoje aqui me faz acreditar que, realmente, o sexo feminino tá num patamar acima do nosDeu um gole longo, passou as costas da mão na boca. – É o momento em que as duas teori

    volucionismo e criacionismo, fazem sentido ao mesmo tempo: homens, descendentes dacacos; mulheres, criadas por Deus.

     – Boa! Devia escrever um livro sobre isso. – Que anj o, que coisa linda, que jeito gostoso de falar! – disse Tom as, olhar ao longe. – E os olhos cor de m el? – Nóóóóó! Que que é aquilo, Jesus meu pai? – Você foi do inferno ao céu em menos de um dia, quem diria! Isso é o que cham o

    elocidade de recuperação! – Benjamin deu risada.

     Conforme o tempo passou e o álcool circulou nas veias, os conceitos tornaram-se menobres:

     – A igualdade entre os sexos é um dos maiores malefícios que a sociedade mundial pôxperimentar ao longo dos tempos! – Tomas gritou, exaltado, como se estivesse num púlpitom meio a um serm ão religioso.

     – Concordo! – Benjam in socou a mesa. – Se a Helena estivesse em casa cuidando ocê, não teria sentido as notas amadeiradas do vinho.

    Tomas riu, já tomado pelo álcool.

     – Verdade. Um brinde às notas amadeiradas que só as traidoras merecem sentir!Bateram as garrafas. Tomas continuou:

     – Ela não merecia um homem fiel como eu, isso é fato! E... Cacetada, que menina quela que veio hoje aqui na loja, homem de Deus? Vamos lá, mais um brinde àquela coinda, que não quis dizer o nome, mas que semana que vem vou encontrar de novo exatamenqui – disse isso batendo o indicador na mesa.

    E em cada uma das diversas vezes em que Tomas se lembrou dela, propôs um brinde.Já quase dez da noite, largou no balcão a última garrafa pela metade, montou em s

    oto Vmax Power Black  e foi para casa. Não se lem brou de levar disco algum.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    18/137

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    19/137

     

    A casa que Tomas tinha escolhido para viver, um veleiro oceânico de 36 pés, flutuaobre o lago de Brasília, ancorada na Marina Norte, a mais bela e bem equipada marionstruída às suas margens. O céu sempre aberto e os morros ao fundo eram testemunhas diáre cada momento de felicidade e tristeza que passava ali. Dinheiro nunca fora problema e, uisesse, poderia ter satisfeito o desejo de quando era adolescente: viver em uma cobertuuplex, cercado de discos, filmes e belas mulheres. Mas os caminhos tortuosos do destinovaram até ali, no que ele sempre dizia ser o perfe ito refúgio de um homem solitário, com na

    ais que o necessário para ser feliz: o violão, o telescópio, a vitrola, os discos e o equipamentoravação.De volta do sebo, Tomas daria continuidade à rotina de outros tempos, quando retorna

    ozinho à marina, após vagar sem rumo certo pela beira do lago da cidade: estacionar a motorea reservada, caminhar até a ponta do píer 5, pular no “Refúgio”, tomar banho frio, calçhinelo de dedo, vestir bermuda e camiseta de m anga longa, empunhar o violão, compor, penas coisas da vida. Por fim, correr a mão pela parede atrás da cama e procurar a ranhura qava acesso ao compartimento onde guardava seu maior segredo. Abrir a portinhola, puxaequena caixa de madeira, reler os papéis que ficavam com os recortes de jornais sobre

    atídico acidente e , mais uma vez, se perguntar: “Por quê?”.  Naquela noite, porém, ele voltaria a ca ixa para o compartimento e tomaria a decis

    unca mais olharia para aqueles papéis. Foi até o pequeno quarto, escolheu um quadro com sua foto preferida, dele próprio sob

    convés de seu barco, sem camisa, o peito forte e queimado pelo esforço empreendido nngos meses cercado apenas pela infinidade do oceano Atlântico. Os longos cabelos revolto

    ara cima, a linha do horizonte não paralela à borda do veleiro, além das velas esticadndicavam que aquele tinha sido um momento difícil. Uma foto capaz de fazer o observadentir a força descomunal do vento em alto mar. Costumava dar risadas quando se lembrava r tido a preocupação de preparar a máquina para registrar aquele que considerava, até entãoomento mais desafiador de sua vida.

    Ledo engano. Se soubesse por tudo o que passaria tempos depois, tiraria de letra a fúria atureza milhares de outras vezes.

    Pois ele abriu a mala de ferramentas, ajoelhou-se na cama, posicionou o quadro sobrompartimento secreto e passou a golpear com força o m artelo sobre longos pregos. Cada batima resposta a todas as coisas pelas quais tinha sofrido nos últimos anos. O quadro foi moldand

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    20/137

    e irregular ao arredondado da parede interna do barco, até racharem as bordas e ficar quampossível de tirar.

    Caiu sobre a cama e se encolheu entre as pernas.A dor do momento só não foi maior porque sabia que não tinha mesmo se dedicado com

    everia ao relacionamento que ora terminava. E sabia também que Helena tinha razão em segm caminho diferente. Outra pessoa ter aparecido não era nada além de mera consequência, resultado final de uma história fadada a ter aquele fim.

    “Você nunca quis nada sério, nem comigo e nem com ninguém ”, era o que Helena dizomas argumentava que não era bem assim, mas não avançava na discussão. Desde o meio no ele vinha se isolando cada vez mais e, no íntimo, tinha a noção exata do verdadeiro motivo rmino da história com Helena.

    Além dele, apenas Benjamin sabia qual era esse motivo...

     

    O resto da noite teria como trilha sonora nada além do som das pequenas ondas qatiam nos cascos do seu e dos outros barcos ancorados, misturado às m elodias que o vento fue vinha do lago costumava assobiar por ali. Os veleiros apagados dos três vizinhos e únicutros moradores da Marina Norte, além dele e dos marinheiros que mantinham o locdicavam que não haveria movimento algum. Nelson, aposentado, o coroa enxuto do píer ysandra, promotora de eventos, a linda ruiva do píer 4; e Sérgio, o solteiro convicto do píer 1:ês amigos que formavam , com ele, o “Com Domínio da Vela”, festa quinzenal em que bebiaomiam e debatiam problemas relacionados à vida na marina. Porém, ainda que algum destivesse por perto, Tomas evitaria conversar.

    A máquina fotográfica profissional, comprada havia m enos de um ano, junto a uma caom doze latas de cerveja, seriam suas companheiras. Para apagar de vez Helena de sua vida.

    O início do namoro em um show do Jack Johnson; a viagem para o Rio de Janeiro; o fe semana em Buenos Aires; a festa à fantasia, ela de smurfete e ele de cogumelo. A câmeapresentava, um a um, registros de muitos momentos legais que vivera ao longo do último an

    Momentos que não cabiam mais em sua vida, a não ser como lembrança rem ota.

    Decidira apagar, inclusive, a filmagem do inesquecível striptease   que Helena fizera esmo, numa madrugada quente de abril. Haviam voltado de um casamento em um salão stas também na orla do lago, e acabaram fazendo amor no barco até amanhecer. Bêbada,

    rotagonizaria a cena mem orável, com seus cabelos negros e lisos, olhos negros, corscultural. Ao som de Stayin’ Alive, a única dos Bee Gees que Tomas tolerava, ela tirou tudo.

     – Helena, Helena... Vou sentir saudade, mas é melhor você ir embora de uma vez pdas. Você não merece ficar nesta m áquina.

    Onze cervejas e dezenas de fotos foram sumindo, uma após outra. Virava a lata, olha

    ara a câmera, lembrava-se do episódio, dava risada, ficava sério, apertava o botão da lixeira.Ao final, máquina com apenas fotos suas e livre de quaisquer vestígios da ex-namora

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    21/137

    em noção da realidade, ele virou a lente para si e começou a se filmar. – Por que eu? Diz pra mim, se é que alguém tem a resposta. Alguém tem a resposta? –

    lmagem foi para o céu escuro e ele gritou: – Ei, aí em cima, alguém tem a resposta? Se teesce aqui pra conversar... Tô aqui esperando, vai. – Esmurrou algumas vezes o próprio peitoontinuou. – Por que é que nunca aparece? Quem é o covarde aqui? Eu?

    Colocou a câmera de qualquer jeito sobre o convés, foi até a beirada do barco. Subiu orda, abriu os braços, fechou os olhos e gritou ainda mais alto:

     – Por que eu, porra?A câmera registrava tudo, imagem torta, e pegava apenas alguns traços da cena. Ente voltou para o lado da câmera, pegou outra cerveja, a filmagem voltou para seu rosto. E

    orriu e começou: – Ah, olá, pessoal. Sou eu, o Tomas Cabeção... – Acenou para a câmera, olhar bai

    oca mole. – Cabeção que eu tinha na infância, adm ito. Admito, admito, não vou contestarhegou o nariz perto da lente e sussurrou: – Aliás, agradeço ao pessoal da Escola Americana pr aliviado para “ Long Head ”. Em homenagem a vocês, olha o nome do meu barco.ebruçou-se sobre a lateral do barco e quase caiu na água. – Leiam ali, ó. – E apontou pa

    nscrição em verde sobre a lateral branca: “ Lonhed’s Refuge”. – Bom, voltando... Olha eu aqais uma vez sozinho no meu refúgio. Abandonado. Mas feliz, sabem por quê? Porque, mesm

    abendo que fui traído por dois meses, hoje conheci uma menina ma... ra... vi... – Virou todosto da lata de cerveja. A imagem trem eu, mostrou o céu e o chão em movimentos frenéticoltou para o rosto dele. — Lhosa. E sabem o nome dela? Não? Pois eu não vou contar. Ne

    dianta vocês pedirem e... Tá bom, tá bom. Eu confesso. Não faço a menor ideia do nome dela não quis dizer, fazer o quê? Bem que tentei, mas ela não falou. Fui incompetente, é fato! Vham ar de Menina dos Olhos Cor de Mel. Pronto. Não importa mais o nome e ...

    Parou de falar, olhou por alguns segundos a lente, quieto. Colocou de qualquer jeitoâmera ao lado, sobre a bolsa da máquina. Esqueceu-se de desligá-la. A filmagem continuoua tela da máquina sobrou apenas a lateral de m adeira do convés com o céu ameaçando clareo fundo.

    O balançar das águas transformou o barco em berço. E, tomado pelo sono avassalade balbuciou mais algumas coisas. Na mente, apenas a menina dos olhos cor de mel.

    Apagou.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    22/137

     

    Tomas Ventura tinha trinta e dois anos. Nasceu às vinte e três horas e dez minutos do diae dezembro de 1980, na noite em que John Lennon morreu. Utilizou a coincidência eúmeras cantadas à época em que frequentava boates com os amigos, à procura de nada m

    ue uma boa noite com uma bela garota.Há quase sete anos, data que seria completada dali a pouco menos de um mês, ele er

    nico membro da fam ília.Morte: o inevitável que o perseguia de perto desde o dia 29 de setembro de 2006.

    Se pudesse, apagaria do calendário o dia em que seus pais morreram.Pelas pequenas janelas redondas da cabine de seu veleiro, Tomas costumava olhezenas de embarcações cobertas pelas lonas azuis com o logotipo da marina, que balançavantas como sepulturas vivas de um cemitério em que cada mastro formava uma cruz fúnebso o lembrava das canções, da poesia, dos números, do sonho que teve no dia do acidente. P

    ue não ligou os pontos? A autossuficiência traduzida no gesto comum aos jovens, de bater eito e dizer “eu não acredito em nada, só em mim”, ca iu por terra no exato instante em qcebeu a notícia.

    O voo que traria os pais de volta a Brasília desapareceu dos radares pouco antes das cin

    a tarde, no momento em que um jato Legacy  atropelou o Boeing   737-800 em que os dstavam. A ideia do resort   às margens do Rio Negro, perto de Manaus, havia sido do própomas, e, por isso, ele se culpava pela morte dos dois. Se ao menos tivesse percebido sinais qoincidência ou não, pularam à sua frente na madrugada e manhã do mesmo dia, e se tivesmado alguma providência a respeito, talvez evitasse que os dois entrassem naquele avião. Mé então, nunca havia acreditado em sinais, ou o que ele chamava de “coisas para frac

    nseguros, gente que acha que há algum tipo de plano pré-determinado para a vida de cada umm plano bolado por um roteirista engenhoso, como um carimbo na alma da pessoa ao nasc

    e há o plano, então a solução seria resignar-se? Alterá-lo, uma atitude impossível? Não foi o qassou a achar. Poderia ter subvertido o plano, sim. Poderia ter alterado, sim, a cena final quoteirista escrevera para as duas pessoas que mais amava na vida.

    Quando tinha sete anos, seu pai lhe trouxe de presente de uma viagem à Europa uextante de metal. Explicou-lhe que o instrumento era usado para estimar a posição do barcoar. O menino ficou fascinado. Os dois brincavam medindo a distância entre os objetosomas sempre sonhou com o dia em que o testariam num oceano de verdade.

    De modo que, após o acidente, quando se viu sozinho no mundo, Tomas decidiu que ehegada a hora de realizar a viagem que não havia feito com o pai. Parte da enorme heranue lhe coube foi aplicada no veleiro. Guardou no banco o resto do dinheiro. A ponto de fi

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    23/137

    aluco, isolou-se. Trancar a faculdade de música, no penúltimo semestre, foi a decisão mfícil que tomou. Mas era incompatível com o curso para velejador e o projeto de viajar pange dali. Estudou, aprendeu, passou a conhecer a fundo o céu, estrelas, ventos, nuve

    orrentes, marés. Treinos exaustivos por um ano. Velejar sozinho pela costa leste das Américaor dez meses, a forma que optou para se reencontrar. Visitou os mais belos portos, meditzou e conheceu pessoas, em busca da paz que percebeu que só encontraria dentro de si mesm

    Certo dia, ancorado em Cozumel, litoral do México, após uma noitada perfeita no Carlo

    harlies, onde cansou de dançar salsa e beijar uma morena local, teve uma dor de cabempressionante. Acudido por um pescador, acordou dia seguinte num hospital. E, naqunstante, decidiu regressar para o lugar de onde havia partido. A cidade em forma de avião, a qvia sob o céu que ele não tinha visto em nenhum dos inúmeros locais que visitou.

     Na noite do primeiro dia em que o barco entrou de volta no lago de Brasília, sozinentado na proa, vento no rosto, ele pegou um papel e começou a escrever sobre a efemeridaa vida. Precisava colocar para fora coisas sobre as quais nunca tinha precisado pensarspeito. Ideias muito mais rápidas do que a mão.

     

    “Cá estou recomeçando tudo. Não mais do zero, afinal de contas já fiz muita coisa. [...]”. Então, retomou a vida. Reformou o Refúgio, comprou a moto, terminou a faculdade

    úsica, decidiu dedicar a cada momento o melhor que conseguisse, da forma que todos eerecessem.

    Tocava a vida, e o resto deixava a cargo do tal roteirista. 

    “Tocar a vida” era mais do que um lema, era seu ofício. Havia alguns anos stabelecera como o mais demandado compositor de trilhas sonoras da cidade, e um dos mrocurados por agências de propaganda e estúdios de cinema do País. Seu nome virou gr

    uando, três anos antes, ajudou uma grande agência de São Paulo a ganhar um Leão de Ouroutro de Bronze em Cannes. O tom emocional e melancólico das duas composições qmbalaram as campanhas, uma sobre alcoólatras ao volante e outra sobre um sedan hevrolet, dizem, foi fundamental para a vitória. Garantiu-lhe, a partir de então, stabelecimento no mercado e a possibilidade de voos mais altos.

    A entrada no cinema foi o cam inho natural.Trabalho virtual, por conta própria. Tinha a melhor conexão de internet disponível.

    rramentas de trabalho: um violão, um pequeno teclado, um microfone e  softwares  instaladm um MacBook , estavam sempre a postos para o registro dos momentos de inspiração. Contaelo Skype. Contratavam, mandavam a ideia, ele trabalhava. Aprontavam o filme, enviavam,

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    24/137

    unha a trilha e devolvia, escutavam, ajeitavam , sugeriam, ele refinava no vaivém atéprovação final. Depositavam o dinheiro em sua conta. Simples assim.

    Compunha ancorado. Quando a inspiração ia embora, Tomas soltava as amarraselejava. Às vezes, ancorava em alguma enseada perto da barragem do lago e, sob os mais beores do sol, era invadido por rajadas de ideias que gravava ali mesmo.

    Há três meses respirava sucesso. O “Fora de Ordem”, filme nacional que tinha estouras bilheterias brasileiras e traçava bela carreira na Europa e Estados Unidos, tinha trilha sono

    ompleta feita por ele. Comentaristas de sites especializados afirmavam, inclusive, ter rehances de ser indicado na edição do Oscar de 2014 não para a categoria de melhor filmstrangeiro, mas para a categoria principal, de m elhor filme.

     Porém, desde aquele filme, Tomas não aceitava mais nenhuma das inúmeras propos

    e trabalho que recebia...

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    25/137

     

     – Ei, marujo... MARUJO! – gritou o velho Nelson. – Ãhn? – Tomas abriu os olhos. Fechou repentinam ente pela luz do sol, colocou a palm

    a mão sobre o rosto. – Dorm ir ao relento não é boa ideia, vizinho. Vai pegar pneum onia – disse o amigo,

    ermuda e sem cam isa, em pé na popa do “Vida Mansa”. Manobrava seu veleiro em direçãodo norte do lago.

     – Nossa, bebi demais, apaguei aqui mesmo. Ai! – Tomas levantou as costas e sentiu

    sgada de dor pela falta do colchão. Olhou para o relógio. Oito da manhã. Desligou a máquiotográfica, que filmara todo seu amanhecer como naqueles filmes conceituais em quemagem m al se move.

     – Vi você de madrugada pelo binóculo, gritando de braços abertos e falando sozinho pâmera fotográfica. Pensei em vir aqui antes que você caísse na água, mas achei que sua cava muito podre pra querer companhia.

    Tomas deu risada. – Podia ter vindo. Voltei a ser solteiro ontem , e bons conselhos de um cara experiente m

    udariam muito.

     – Mulheres...Tomas completou:

     — A razão de viver e a desgraça da vida do homem! – Verdade. Não vai botar este barco pra nadar hoje? Sabadão, todo mundo na água

    aneta convocando seus melhores habitantes pra interm inável festa da vida. Olha este solelson abriu os braços.

     – Hoje não. Vou ficar por aqui mesmo, aproveitar a ressaca moral e tentar compguma canção. Na tristeza costumam sair boas ideias. – Tomas levantou e se espreguiçou.

     – Então, na hora do almoço encosto aqui, a gente abre um vinho e você me conta, que tNelson gritou já de longe. – Ih, vinho me lembra de coisas que prefiro esquecer. Coca-Cola! – Fechado! Pede uma pizza e a gente racha. – Fechou! Exercícios físicos, mais do que por vaidade, tinham virado necessidade nas longas

    olitárias viagens que Tomas fizera pelo oceano. Não poderia jamais se dar ao luxo de urpreendido por uma intempérie da natureza. Ele bem sabia que Força é elemento fundamenuando não se tem mais ninguém a quem recorrer na imensidão do mundo. De modo que desc

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    26/137

    ara a cabine e tomou o rápido café da manhã que costumava preparar: sanduíche de pntegral com queijo branco e suco de laranja na caixinha. Logo em seguida, voltou ao convara se exercitar . Flexões de braço e abdominais com as pernas trancadas no tirante e a pauperior do corpo toda para fora do veleiro. Em seguida, caiu na água e nadou por meia hontre os cinco píeres da marina.

     Pouco depois das duas da tarde, Nelson voltou. Sem camisa, descalço, medalhão no pe

    a inseparável boina branca. Pulou dentro do Refúgio. Tomas tinha aj eitado uma pequena meo cockpit , sobre a qual esperavam uma pizza de calabresa e duas Cocas de 600 ml. – Muita gente na água? – Tomas quis saber. – Lá perto da barragem tá cheio. Perguntaram por você. – Quem? – Aquela maravilha da Alana Diniz. Tava na lancha dela fazendo churrasco com um

    rma. Só carne de primeira.Tomas deu risada.

     – E o que você disse?

     – Que você tava solteiro, solitário e sedento. Precisa ver o sorriso na cara dela. – Você é uma figura! Mas prefiro ficar quieto um pouco. – É, maruj o, isso é que é chegar ao fundo do poço! Uma gostosa que nem a Alana e vo

    em se anima? Complicado! E sua cara tá horrível, se quer saber. – A paulada que tomei foi forte. Demissão sumária sem aviso prévio. – Sei bem como é isso. Na verdade, a gente nunca se recupera. Pode até nem ser aqu

    ue consideram os o grande amor da nossa vida, mas elas sempre deixam cicatrizes.Cada um pegou um pedaço de pizza no guardanapo. As Cocas foram no gargalo mesmo

     – Verdade. A dor passa, mas a cicatriz fica – Tomas disse, olhar ao longe. – Ela te traiu, pelo visto. – Aham. – Isso sempre acontece. – Nelson apontou o indicador para Tomas. – Não vam os generalizar . Nem todas são traidoras. – Não tô me referindo à traição, mas ao fato de que, quando a gente deixa de d

    ssistência, elas cansam. Mulher precisa de atenção. Aliás, todo mundo precisa, m as com mulhcoisa é sempre m ais intensa.

     – Talvez você tenha razão. Admito que, nos últimos tempos, andei meio aéreo. – Pois é. Daí, já viu, né? A mulher fragilizada, e coisa e tal... – Pois agora é tarde. – Nunca é bom ficar sozinho, posso garantir. – Nelson deu um gole na Coca. – Olha quem fala! Quantas chances você já teve de se casar de novo? Uma dezena, p

    ue me conste. E você foge disso que nem o demônio da cruz. – Casam ento é outra coisa. Envolve um comprom isso que não tô preparado pra assum

    e novo. – E você tem falado com sua ex? – Tomas passou o guardanapo na boca.

     – Só naqueles momentos necessários mesmo. Natal, ano novo, aniversário. Ela casou ovo, então melhor não ficar muito perto. O problema continua sendo minha filha.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    27/137

     – Ela ainda não quer saber de você? – Já tentei a reconciliação, mas ela ficou do lado da mãe mesm o. E eu meio que desi

    abe? – Nelson passou a mão nos cabelos. – O tempo vai dar conta de colocar tudo no devido lugar, pode acreditar. Vocês vão

    aproximar. – Enquanto eu tiver saúde, a esperança é essa. – Então, pode botar tempo aí. Se eu chegasse à sua idade com a saúde que você te

    staria bem demais. – Vai chegar, pode acreditar. Você é um jovem que sabe curtir a vida, do jeito que empre fiz. Olha só pra isso... – Nelson apontou com o queixo. – Este céu, este lago, este sol. Com visual assim na porta de casa, não tem como morrer cedo. E, se morrer, pelo menos vaber que aproveitou cada segundo.

     – Pois é, nunca se pode prever o dia de amanhã. Sabe, eu queria achar alguém diferenive boas namoradas, mas acho que nenhuma que eu dissesse “É ela”. Uma que entendesseue penso, que estivesse na mesma sintonia que a minha. Aquela com quem eu conversasse ual pra igual sobre cinema, livros, música, as coisas do mundo. Ou que, no mínimo, tive

    teresse genuíno nas coisas que faço. – E que fosse linda, claro! – Nelson completou. – Sabe o que eu acho? Que, no fim das contas, isso nem é o cerne da questão. Olha

    elena: linda demais e deu no que deu. – Bom, pense que ela não merecia sua dedicação. Quando eu era jovem , tam bém que

    udo isso aí. Mas com o tem po a gente percebe que mulher boa é mulher companheira, que cua gente, que sorri quando a vida tá brava e topa o que der e vier. Aquela para quem a geneve encher a boca e dizer: “Eu te amo”.

     – Essa é uma frase difícil pra mim. – Tomas levantou as sobrancelhas. – Por quê? – Ah, sei lá. Nunca disse pra ninguém. Talvez por medo, falta de hábito, ou de não sab

    xatamente o que significa. – Talvez você apenas não tenha encontrado alguém que m ereça escutar. – Nelson deu u

    ole no refrigerante. – Nessa hora, a frase sai fácil. – Pode até ser. Mas é engraçado, porque não consigo mesm o me imaginar dizendo “eu

    mo”. Quando eu era pequeno, tinha pesadelos sempre. Acordava de madrugada e ia pra camos meus pais, só pra ouvir minha mãe dizer que me amava. Mesmo sendo criança e seenhum tipo de vergonha, nunca respondi. Imagina, então, falar hoje pra uma m ulher.

     – A gente diz tanta bobagem por aí, e, na hora mais importante, ficamos com vergonhão devemos ter medo de expor os sentimentos, sempre é bom lembrar.

     – E se tua ex era tão boa, por que terminou? – Não a mereci. Deixei escapar. Eu queria saber só das minhas coisas, das minh

    gatas, de beber com a rapaziada. O tempo acabou com a admiração que ela um dia teve pim, e isso é o pior que pode acontecer numa relação. Quando percebi... puf, minhas ma

    stavam no corredor.

     – E como você ficou? – Mal dem ais! Tentei voltar, disse que me regeneraria, que admitia os erros, mas e

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    28/137

    rde. Bebi feito um condenado. Só não morri por causa disso aqui ó. – E bateu no casco arco.

     – Que bom que sobreviveu. Um brinde a dois marujos náufragos. – Saúde! – Bateram as garrafas. Nelson continuou: – Só digo uma coisa... Quan

    ncontrar a mulher da sua vida, você saberá. E um conselho: não deixe escapar, vai por miá uma só reservada pra cada um de nós. Se você deixa que ela se vá, perdeu a grande chan

    a sua vida.

     – O trem que passa uma vez só. – Antes e depois só passam carroças. – Nelson riu do próprio comentário. – Pois é, ontem mesmo conheci uma menina que... Putz! – Viu? – Nelson aplaudiu. – Não deu tem po nem de o defunto esfriar e ele já tá na luta

    ovo.Tomas sorriu, mordeu a pizza.

     – Conheci lá no BJ, ao som de Creedence. – Abençoado pelo Creedence? Tem futuro! – Pensar em futuro é sem pre algo complicado. E talvez nem a veja de novo.

     – Não pegou o telefone? – Não consegui nem o nome. – Deve ser casada, ou tem nam orado. – Pode até ser. Ela comprou de presente pra alguém um livro e uma série de disc

    timos. Se for pro nam orado, sorte do cara. – Tinha aliança? – Nem reparei na mão. Os olhos dela m e deixaram hipnotizado. – Poético isso.

     – Ela tem alguma coisa diferente, o jeito, o olhar, algo que eu não sei explicar o que é. – E por que não tenta descobrir? Vá à luta, homem! Lem bre-se do trem passando. L

    ro BJ, vê se e le tem o telefone dela. De repente tem no cadastro da loja, sei lá. – É pena, mas ele não tem . Ainda tô com o gosto e o cheiro do corpo da Helena na bo

    é melhor deixar a poeira baixar. Vou seguir pra onde o vento mandar. – Ótimo! Um brinde, então, a um náufrago que começa a ser resgatado a partir de hoje – Um brinde.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    29/137

     

    Dois dias depois, o “Com Domínio da Vela” começou às 20h30. Sérgio, encarregado ez de receber Tomas, Nelson e Lysandra, os três outros condôminos, havia feito batida aracujá no saquê e de kiwi na vodka, comprado ovinhos de amendoim e preparado torrad

    om patê de atum. Como rezava a tradição, luzes apagadas. Ambiente apenas à luz da lua e elas em vidros que circundavam as bordas do convés.

     – Sej am bem -vindos ao meu hum ilde lar! – Foi a recepção de Sérgio. – Deixa de frescura! Se as batidas não estiverem boas, nada disso adianta – Nels

    trucou. – Então prova e me diz. – Sérgio estufou o peito. Nelson deu um gole. Jogou o líquido de uma bochecha para outra, gargarejou, engo

    firmou com a cabeça. – Tudo bem , aprovada!Sérgio tomou a palavra:

     – Bom, então, pelo poder a mim conferido de síndico da vez, abro a reunião com o brinficial.

    Os quatro levantaram os copos. Sérgio, em tom solene, professou:

     – Que nossas m ulheres sejam sem pre felizes, que os homens da Lys sejam eternam eéis, que os ventos batam forte nas velas, e que nossos cascos demorem a estragar.

     – Saúde – disse Tom as. – Deus te ouça – com pletou Lysandra.Sérgio continuou:

     – Comecemos com os problemas do condom ínio e que precisam de solução urgenroblem a um: os ventos estão fortes.

     – Problemão! – disse Nelson.

     – Problema número dois: a água está molhada. – Absurdo! – soltou Tomas. – Terceiro problem a, o mais grave de todos: tem feito sol direto. – Não aguento mais tanto problema – com pletou Lysandra. – Desde a última reunião do condomínio, nada foi feito a respeito – finalizou Sérgio. – AINDA BEM! – gritaram os quatro. – Bom, agora vamos ao que interessa. Alguém quer contar o que de importante acontec

    esde a última reunião?Tomas tomou a palavra:

     – Fui traído por dois meses. Soube há dois dias.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    30/137

     – Ninguém quis casar comigo – disse Nelson. – O Edgar não era nada do que prometia. Pulei fora – Lysandra soltou. – Peguei só quatro lindas, queria mais – com pletou Sérgio. – E, mais uma vez recorren

    o poder a mim conferido, escolho a coisa importante do Tomas como a coisa importante do mundo aqui hoje.

     – Também acho – interveio Nelson. – Traição é foda! – Tem meu voto – votou Lysandra.

     – O que o marujo tem a dizer em defesa própria? – perguntou Nelson. – Ah, eu já relevei. Se não era pra ter sido, não foi. Ponto. Fim da história. – Não, gente, assim não pode! Dois dias e você já relevou? Cadê sua honra? – Sér

    stava indignado. – Pois eu acho que quem vai sair perdendo é ela – comentou Ly sandra. – Você é um ca

    uperinteressante, e eu duvido que o outro seja metade de você. – Bom, ele deve ter lá suas qualidades, né? Pelo menos de vinho entende mais do que

    Tomas deu risada. – Ai, ai... É do tipo tomador de vinho? – perguntou Sérgio.

     – Da espécie mais baixa e asquerosa – respondeu Tomas. – Se quiser, eu cham o a galera do j iu-j itsu pra dar um pau nele. – Sérgio socou a palm

    a mão. – Coisa simples, rápida, que e le não vai esquecer tão cedo e... – Não, não, nada de violência! – Tomas gargalhou. – Há momentos na vida em que

    ente deve reconhecer a derrota e se recolher. Ela m e deixou, e em breve estará em Barcelomando vinho. Paciência!

     Nelson levantou o copo. – Um brinde, então, a todos aqueles que foram deixados por outro...

     — E por outra – acrescentou Lysandra. — Por outro e por outra – corrigiu Nelson. – E que se fodam e nos deixem em paz!Sérgio gritou:

     – Que se foooodam! – Tudo bem , vai, que se fodam os dois! – Tomas bebeu um gole da batida. – Mas é sér

    essoal. Vai ficar tudo bem. – Muito vagabunda! – Sérgio meneou a cabeça. – Se você quiser, apresento algum

    miga. Tem a Soraia, a Fernandinha, a Consuelo. Você não imagina o que são as pernas onsuelo!

     – Meu Deus do céu, vocês homens só pensam nisso? – Lysandra olhou para cimaocês olham pra uma mulher e enxergam pedaços de carne. Peitos, lombos, coxas. A vida nãm açougue, minha gente! E a beleza interior, onde fica?

    Os três entreolharam-se. Sérgio tomou a palavra, em nome da ala masculina: – Eu até tento ver a beleza interior, mas o problema é que nem todas me deixam ent

    ra conferir. Nelson e Tomas caíram na gargalhada. – Você é um galinha mesmo, nossa senhora! Desse jeito, vai morrer sozinho. Escuta

    ue tô dizendo. – Lysandra apontou para Sérgio. – Você quer tentar me regenerar? Prometo que serei fiel a você. – Sérgio subiu e desc

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    31/137

    sobrancelha, fixou o olhar nas pernas dela e tentou uma pose de galã. – De jeito nenhum! Você não tem salvação. É uma alma condenada a penar no infer

    a solidão, depois desta vida dedicada à luxúria. – Então tenho de aproveitar enquanto é tempo, não? Apresenta pra mim uma de su

    migas, vai! Já vi cada uma tomando sol lá no seu convés que... Meu Deus! – Serei obrigado a concordar – disse Nelson. – Idem. – Tomas balançou a cabeça.

    Lysandra deu uma gargalhada. – E eu lá quero perder as am igas? Nem sonhando! E você, Tomas, o que vai fazer agor – Ah, não vou procurar nada. Vou deixar o veleiro ir pra onde o vento apontar. – E se ele apontar pra uma tempestade? – ela retrucou. – Eu acelero e encaro, j á que não terei saída. A gente não aprende, no dia-a-dia do m

    ue depois da tempestade sem pre vem um dia de sol com um arco-íris lá no fundo da cena? Às duas da manhã, os quatro bêbados. Em meio a inúmeros conselhos já sem o men

    entido, uma ideia útil apareceu, vinda da Lys:

     – Tom, canta uma música pra gente.Tomas cambaleou até seu veleiro, quase caiu na água e trouxe o violão. Veio pelo p

    cando, andando em linhas tortas e cantando Your Song , do Elton John. Emendou em “Você”, im Maia, e depois em “Escotilha”, do Maskavo Roots. Essa última os quatro cantaram, edida da afinação possível: “ É bom lembrar, marinheiro, quando se olha pra trás, que navegar

    reciso, viver em terra jamais. Poder mudar pra bem longe, longe de onde se está. E ter o rumaçado pelo balanço do mar...“.

    Ele voltou para casa com o sol nascendo ao fundo e com a certeza de que não há na

    ais importante na vida do que amigos de verdade.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    32/137

    Há m uito tempo, Tomas não ficava daquele jeito, como o adolescente que se prepara dara a festa do fim de sem ana em que encontrará o primeiro amor. Ele contou as horas paraexta-feira seguinte, o dia em que a menina dos olhos cor de mel tinha dito que voltaria ao seboi só nela em quem conseguiu pensar. E também se ela se lembraria dele, se estaria lá, se texpectativa semelhante à que o estava acometendo. Se ela era, de verdade, tudo aquilo que enha achado, ou nada além de uma construção valorizada de sua imaginação.

     – Primeiro amor. – Ele suspirou. – Será o último?

      Na sexta-feira, Tomas levantou cedo. Ansioso. Tomou café e abriu o notebook   paonferir os e-mails. Apenas dois novos.

    O primeiro, um convite para uma festa na mesma noite, promovida pela maior agênce publicidade da cidade. A bordo de um barco, daquelas que prometiam. Havia uma série mbarcações ancoradas nas marinas ao longo do lago, adaptadas para eventos que ocorriam anais de semana. Como boates ambulantes, pareciam caixotes com dois andares e um mootente. Sem pre festas exclusivas, bem frequentadas, entre 100 e 120 convidados. Tradição doites da cidade. Saíam de algum clube e passeavam entre as quatro pontes por 4 ou 5 horas.

    Ele nem cogitou aparecer.A segunda e inacreditável mensagem  era do produtor do “Fora de Ordem ”: “Grande Tomas!Tudo bem? Aqui tudo ótimo, na correria pela divulgação do filme. Tem acompanhado

    strago que estamos fazendo? Estou feliz demais, e parte disso tudo é culpa sua. Se formdicados ao Oscar, pode esperar que você estará lá do meu lado. E quando é que vai aparec

    qui no Rio pra gente tomar uma? Está sentado? Se não, senta... (pausa pra você se sentar). Bom, considerando que você

    entou, olha só isto: acabei de receber um e-mail do John Wilkinson. Isso mesmo, “O” direohn Wilkinson!!! (Pausa pra você se recuperar... rs). Perguntou por você e pediu que entre eontato, porque tem uma proposta de trabalho, cara. (Pausa pra você pensar, se recomporeixar de frescura). Sei que você não tem aceitado nada desde nosso filme, mas acho que esocê não pode recusar. Anota aí: [email protected].

     Agora é contigo. Abração, Alexandre.” 

     – John Wilkinson? Meu Deus! 

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    33/137

    Tomas era fã da obra do diretor desde a adolescência, quando havia assistido ao cRumos Cruzados”, vencedor de seis Oscars. Trabalhar com ele seria a realização do sonho ualquer profissional do meio. Ainda assim, a dúvida se devia ou não entrar em contato tomaonta de seus pensamentos. Sabia que, a depender da proposta, seria impossível recusar.

    Passou o resto da manhã avaliando o que fazer, mas a curiosidade falou mais alto queecisão de nunca mais assumir qualquer trabalho.

    Escreveu o texto, apresentou-se, agradeceu o contato, enviou o e-mail .

      No início da tarde chegou a resposta, com a proposta de trabalho que imaginarecusável, aquela que poderia colocar de vez seu nome no mundo do cinema. A palavra quos ouvidos de todo profissional, soaria como música: Hollywood!

    “The Face That Preceeds the Dream” era o título provisório da produção que estrearia ício do ano seguinte, estrelada pela americana Cynthia Bell, atriz que Tomas consideravaais bonita do mundo. Utilizariam canções conhecidas, regravadas por artistas promissores

    enário musical americano e garimpados na internet. Mas queriam um tema instrumennédito, selecionado em um desafio. O diretor já havia entrado em contato com dois outr

    ompositores também novos no mercado, um americano e uma australiana, e proposto a mesmdeia. Ambos com sucessos em filmes recentes. O Diretor selecionaria a melhor canção dens três.

     – Cynthia Bell, nossa senhora! – Tomas deixou o corpo cair na cama e fixou o olhar to do veleiro.

    Pensou demais, mas, outra vez, decidiu dizer “não”.Precisava pensar na melhor maneira de recusar.E não respondeu o e-mail .

     

     No m eio da tarde, Tomas ligou para Benjamin e perguntou se a menina dos olhos cor el tinha aparecido.

     – Nossa, que ansiedade é essa? Infelizmente, ainda não apareceu. Chega aí que a genma alguma coisa e você espera.

    Tomas pegou a moto e foi até o sebo. Não era, ainda, o horário em que a menina tinto que iria, e, nem se quisesse, ele conseguiria esconder o nervosismo.

    Entrou pisando fofo. – Fala, BJ! – Fala, meu velho. – E aí? – Tomas levantou a sobrancelha e sussurrou: – Ela tá aqui?

    Benjamin deu risada. – Calma que, se ela disse que vem, então vem.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    34/137

     – Então me dá um suco de laranja. – Vou fazer de m aracujá, pra ver se diminui o nervosismo.Tomas aceitou a sugestão.

     – Bicho, eu passei a semana pensando nessa menina. Nunca m e aconteceu antes, juro. – Que bom! Faz bem pro espírito, e é o que você m ais precisa nesta fase. – Concordo e... Ah, queria contar uma coisa que me aconteceu hoje. – Fala.

     – Recebi uma proposta de trabalho. – Novidade... – Benjam in desdenhou. – É um filme com a Cynthia Bell. Preciso bater a canção de dois outros compositores q

    stão no páreo também. – Tomas fingiu desinteresse, batucando os dedos no balcão. – Ãhn? – Benj amin arregalou os olhos. – Sério? Cynthia Bell? AQUELA Cynthia Be

    mericana? Hollywood? A deusa? – A própria. – Claro que você j á aceitou, né? – Decidi não aceitar. Mas não comuniquei ainda.

     – Pirou de vez! – Benjam in colocou as duas mãos na cabeça. – É sua chance de fago que é o sonho de todo compositor, cara! Mas já que não comunicou ainda, pensa direito.

     – Beleza, prometo pensar. Mas, me diz uma coisa: será que ela vem? – É, j á vi que você não vai esquecer deste assunto mesmo. Faz o seguinte: senta naqu

    esa ali, de frente pra porta, e faz pensamento positivo. “Entra, entra, entra!”. De repente, entra e... Não, melhor não. Daí você vai dizer que é um sinal e vou ter de ouvir de novo aqustória maluca de sinais.

     – Nunca desdenhe dos sinais! – Tomas levantou o indicador. – Fiz isso uma vez e me

    ais poderiam estar aqui hoje . – O.k., você tem razão. Quer escutar aquele disco que disputou com ela, enquanto esper – De jeito nenhum. Prom eti não ouvir sozinho. – E se ela nunca mais aparecer? – Então o disco morre lá em cima da geladeira. 

    Pois as horas passaram e a menina dos olhos cor de mel não apareceu. No início da noomas disse:

     – É, meu caro, ela não vem . É sem pre assim. Melhor seria se eu não tivesse criaxpectativa.

     – Relaxa. Tem cada vez mais m ulher no mundo. Dizem que tem mais mulheres do q

    omens, até. Li que só aqui na cidade tem um vírgula dois mulheres pra cada homem. – Então tem alguém desfilando com três vírgula seis mulheres por aí, porque eu e vo

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    35/137

    stamos sozinhos. – Tomas se abriu de rir. Benjam in fechou a loja e os dois saíram juntos.

     – Valeu, meu cam arada. Foi bom enquanto durou – Tomas disse, semblante resignadbraçaram-se.

     – Vai fazer o quê hoje? – Benjamin quis saber. – Acho que nada. Tenho uma festa pra ir, mas tô sem vontade. A mesma turma

    empre, publicitários com o ego na lua. É num barco, e não terei pra onde correr caso estehata. Por quê? Qual a boa pra noite? – Preciso cuidar da minha m ãe. Ela tá gripada, nem veio trabalhar. Vou pegar um film

    omprar pipoca e refrigerante. Topa? – Valeu. Não tô numa fase muito boa pra encarar programas tão radicais. Manda u

    eijo e m elhoras pra ela.Benjamin deu risada. Despediram-se.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    36/137

     

    Passava das dez e meia da noite. Tomas deitou para dormir e, olhos fechados, onseguia ver a imagem daquela menina que, ao que parecia, do jeito que veio foi embora.

    Adormeceu... Acordou assustado, olhou no relógio. Apenas vinte minutos haviam se passado. Sono q

    areceu durar a eternidade. Rolou na cama prum lado e pro outro. Sexta-Feira, a cidade todavertindo. Disse para si mesmo:

     – Ah... Quer saber?Levantou, tomou banho, vestiu-se, passou perfume, trancou tudo e saiu correndo. A fearparia da Marina Sul às onze e meia. Ligou a moto e saiu à m áxima velocidade.

    Soltaram as amarras cinco minutos depois de ele chegar. Na parte de baixo, a pista ança apinhada de gente. Techno, House, Trance . Subiu direto, para esperar o show da banda overs de rock dos anos oitenta e noventa.

    Tomas encontrou alguns amigos, e teve de contar, mais vezes do que gostaria, sobrexperiência com o “Fora de Ordem”. Não queria falar sobre aquilo. Queria apenas espaireconhecer alguma garota legal, curtir um som. Difícil. O ego da turma da publicidade esta

    uito acima de onde pudesse alcançar, e ele foi mais monossilábico do que o normal.Só teve sossego quando a banda começou. Foi para o canto, cerveja na mão, cheio

    ontade de dar uma canja. No meio de What a Wonderful World , versão Joey Ramone, recebm abraço por trás.

     – Oi, lindo! – a voz veio no ouvido.Virou-se.

     – Alana Diniz! – Ele sorriu. Abraçaram-se.Linda, loira, queimada, tomara que caia, marca do biquíni no ombro à mostra, ca

    ans colada, salto alto. Uma taça na mão e um leve cheiro de bebida misturado ao perfumoce. – Fiquei sabendo que tem alguém aqui que agora é um homem solteiro. – Ela tocou

    edo no nariz dele. – Nossa, as notícias correm rápido! Isto aqui é uma cidade grande, mas parece

    terior. – Tomas sorriu. – Nem tanto. O Nelsão me contou na sem ana passada. – Verdade, ele me falou que te encontrou na água. Mas... O que uma mulher bonita q

    em você faz sozinha por aqui? – Infelizmente, não estou sozinha. Mas ele está agora lá embaixo.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    37/137

     – Ah. – Se eu soubesse que te encontraria aqui, não viria acompanhada. – Alana entrelaçou

    ãos por trás da nuca de Tomas.Ele olhou fundo nos olhos dela. Não era do seu estilo se meter em encrenca. – Olha, s

    brigado a admitir que você tá maravilhosa. Mas seu namorado veio e não temos pra onorrer.

     – Não é m eu nam orado. Apenas uma com panhia casual.

     – Que sej a. Ele veio com você, né? – E vai dispensar uma noite comigo, então? – E tenho alternativa?Ela começou a beijar seu pescoço, puxando-o para si.

     – Melhor não, Alana. Na boa. – Ele se afastou. – Vam os conversar. Me conta como vagência. Você tá na criação ou nas vendas?

     – Criação. Mas aquilo é uma chatice! Os clientes nunca sabem o que querem e... Ah, má um beijo, vai.

     – Sossega, menina! – Tomas abraçou-a e continuou, em seu ouvido: – Quem sabe num

    utra oportunidade... – Bom, você é quem sabe. – Ela lambeu a orelha dele e se afastou, sorrindo. Virou-se

    ostas, levantou a taça e saiu dizendo: – Só me resta descer, então. – Vá lá. Cuidado com a escada. 

    Logo depois, a banda terminou e a maioria das pessoas desceu. Som ambiente em cimoate em baixo. O barco já retornava, chegaria à Marina Sul em vinte minutos. Tomas pegou uoquetel e, apoiado no parapeito de alumínio e vidro, passou a admirar as luzes da cidade. Estacostumado a ter a visão oposta durante as noites, da cidade para o lago. Sentiu uma ponta isteza estranha por estar ali.

    Foi então que começou a tocar With or Without You e ele cerrou os olhos. O vento sopr

    o rosto uma boa sensação de paz. Mal sabia que aquela seria a trilha sonora do instante que, eguns segundos, mudaria sua vida para sempre...

      – Em um cenário lindo assim, o fundo musical só podia mesmo ser U2.Tomas abriu os olhos e pareceu não acreditar. A menina dos olhos cor de mel, apoiada

    arapeito, tam bém olhava para a cidade. Fitou-a por alguns segundos. Voltou a olhar para frenperguntou, sorrindo:

     – E o que te diz esta canção?

    Ela pensou um pouco. – Sleight of hand and twist of fate. Num passe de mágica, o destino muda a direção.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    38/137

    Tomas olhou para ela. – E você acredita nisso? Em que um detalhe pode mudar toda sua vida?Ela o encarou.

     – Não chamo de detalhe, m as de “Encruzilhada da Vida”. – Como você ter entrado no sebo sem ana passada? – Talvez... – Se você tivesse optado por ir lá um dia antes, ou um depois, não estaríamos aqui ten

    sta conversa. – Acho que eu olharia ali de longe e acharia que você é um bonitão solitário, que beozinho enquanto a festa toda está lá em baixo.

     – E fugiria de um a conversa comigo... Sei... Não tiro sua razão. – Ele sorriu. – Talvez não. Gostei do jeito que você dispensou a loira turbinada. E lembre-se de q

    eu negócio é rock. Não suporto techno. – Ela sorriu de volta. – Sou obrigado a admitir que você é a melhor adversária que já tive. Passei a sem a

    uestionando a banda que montei. Era um amontoado mesmo. Você m erecia o disco. – Eu não queria o disco.

     – Nem eu. – E por que disputou? – Ela franziu a testa e apertou o lábio. – Pra te conhecer. E você? – Pra tirar do seu rosto aquele ar irritante de superioridade.Tomas deu uma gargalhada.

     – Não queria me conhecer? – Ele franziu a testa. – Não pensei nisso na hora. – Você é sem pre tão segura?

     – Não sei qual seu conceito de segurança. – Todo mundo tem suas inseguranças, mas alguns tentam escondê-las. E não percebe

    ue é ali onde ficam as melhores partes. – Nas inseguranças? – Aham. – Tomas balançou a cabeça. – É uma teoria... E por que motivo acha que devem ser reveladas? – Porque é só assim que se conhece a pessoa que está na frente. – E que tipo de insegurança você acha que eu escondo? – Ela levantou as du

    obrancelhas. – Não sei ainda. E acho que não terei com o descobrir, porque não sei nem se vou v

    ocê outra vez na vida. – Se aquele dia no sebo foi uma encruzilhada, pode apostar que sim. – Pois eu achava que era. Fui lá hoje pra te encontrar, m as você não apareceu. – Ah, desculpa! Não pude ir. Talvez o destino estivesse mais uma vez fazendo das sua

    reparando este momento. Adm ito que, ao menos no quesito “cenário”, estamos bem melhoqui.

     – Agradeçamos ao destino, então. Afinal de contas há m ilhões de pessoas na cidade. Aq

    ouco m ais de cem. – De repente isto aqui é outra encruzilhada.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    39/137

     – Se for, você vai pra que lado? – Não sou daqui, não conheço os melhores lados. – Ela sorriu. – Um a forasteira... Interessante... – Tom as segurou o queixo com uma mão e balançou

    abeça. – Errando pelo mundo em busca de instantâneos mágicos. – Fotógrafa! – Ele estalou o dedo e apontou para ela. – Por isso a bolsa quadrada e pr

    quele dia.

     – Observador! E você... Deixa ver se adivinho... – Ela fechou os olhos e colocou os ddicadores nas têmporas. Fingiu concentração. Abriu os olhos. – Publicitário!Ele deu risada.

     – Aposta óbvia, j á que estamos no meio de um monte deles. Mas, se eu fosse um, já teontado sobre alguma propaganda que fiz ou algum prêmio que quase ganhei.

     – É verdade. Três ou quatro vieram puxar conversa e em cinco minutos eu já sabia do. Nada de interessante pra descobrir.

     – Então estou com crédito, afinal de contas você não sabe nada de mim. – Sei que é um sujeito arrogante em relação à música, que é solitário nas festas, que

    isterioso. – Ela foi contando nos dedos. – Ai, fui descoberto! – Tomas deu um soco no ar. – E agora vou precisar inventar algum

    oisa de última hora pra você não querer pular na água e nadar até a borda. – Fez cara esespero, seguido de uma risada.

     – Eu aguentarei até o fim da festa, prom eto. E a água deve estar um gelo. Valeacrifício de ficar aqui. – Ela sorriu, apoiando-se no parapeito e conferindo a altura até a água.

     – Bom, então já que ficaremos j untos nestes próximos minutos, melhor eu saber o nome quem vai me aturar... Ou não mereço saber ainda? – Tomas levantou as duas sobrancelhas.

    Ela estendeu a mão. Apertaram-nas. – Aurora. – Muito prazer! Tom as... — Cabeção. – Aurora completou e riu, enquanto sacudiam as mãos.Ele franziu a testa e começou a rir também.

     – Apelido de infância que pegou, nada de m ais. Sem traumas. – E o que o senhor faz, j á que se passaram mais de cinco minutos e não me contou na

    nda? – Sou compositor de trilhas. Componho pro m ercado publicitário tam bém, e às vezes m

    onvidam pra essas festas. E você, que bons ventos te trazem aqui, senhora fotógrafa? – Não conheço quase ninguém na cidade além de meu pai. Estou por conta de u

    abalho temporário. Vim à festa a convite de uma am iga, a Sabrina, da agência Foco. – Acho que sei quem é, mas não conheço pessoalmente. E fica a té quando? – Vou em bora daqui a menos de um mês, dia primeiro de outubro. Depois viajo e v

    otografar o lugar pra onde m e m andarem. O destino dos errantes é este: sem porto, sem raiz. – Uma bela forma de viver a vida, isso sim. E veio fotografar o quê? – Borboletas.

     – Hum... Quem é o patrão gente boa que oferece um trabalho legal assim? – Trabalho na National Geographic, moro em Washington. Sou formada em Engenha

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    40/137

    mbiental. A fotografia foi por obra de uma destas encruzilhadas da vida. Junto as duas coisvulgo o que acho importante, tento abrir os olhos do mundo com minhas fotos.

     – Uma contribuição para a salvação do planeta... – Pequena, mas não deixa de ser um a contribuição. – Bonito isso, ter um sonho e concretizá-lo de uma forma tão legal. – Pois é. Viaj o pelo mundo acompanhando às vezes uma equipe grande, às ve

    equena, outras vou sozinha. Filmam , preparam a matéria, eu fotografo. Quando sai a revis

    ca a sensação do dever cumprido. – Isso é que é emprego! E veio parar em Brasília... – Desta vez forcei pra vir. Foi aniversário do meu pai semana passada. Propus a matér

    es gostaram. “Borboletas do Cerrado Brasileiro”. O nome é bonito, o custo baixo, o resultaode ficar fantástico. Passo um tempo com ele, já que o vejo pouco. Moro fora do País desdnício da faculdade e não há muita chance de vir. Descanso, mato a saudade e depois sigo eente. E você, que trabalho tem feito?

    Tomas estufou o peito e fez voz de locutor: – Bom, eu faço propagandas para quase ganhar diversos prêmios e... – Deram risada,

    aixou os ombros. – Ah, depois de saber que estou diante de uma salvadora do planeta e ótimotógrafa, nada do que eu disser vai ter alguma relevância.

     – Tenta. – Bom, eu tenho composto trilhas de cinema. Dei um tempo na publicidade pra m

    edicar a isso. É difícil, mas prazeroso. Às vezes dá bom dinheiro.O garçom se aproximou com uma bandeja de coquetéis de frutas. Cada um pegou um.

     – E que prêm ios você quase ganhou? – Ela tomou um gole, olhos fixos nos olhos dele. – Ai ai... Se eu falar sobre isso, vou me igualar a outros três ou quatro que você dispenso

     – No seu caso, vou relevar. Afinal de contas, estamos quase chegando e não sabemnda se nos veremos outra vez.

     – Sabe o “Fora de Ordem”? – O filme? – Então, a trilha é m inha. –Sério? Nossa, é linda! Adorei o filme, assisti em Washington. Tá muito bem cotado

    ora. – Pois é. A turma tem gostado bastante. Acho que eu tava inspirado na época. – Hum... E o que te inspira? – O céu, a água, a vida, momentos como este aqui. Aproveito cada segundo que ten

    empre. Não sei o que será de amanhã, se estarei vivo, se vou vê-la de novo, por exem plo. Entob esta ótica, o máximo que conseguir olhar pros seus olhos cor de mel pode dar um trecho frão, uma linha melódica. No mínimo, uma lembrança inesquecível.

     – Estou em dúvida sobre qual das duas qualidades complementam a descrição que fizocê há pouco. Não sei se você é sedutor ou se é louco.

     – Já diria Zorba, o Grego: o homem precisa ser um pouco louco, senão ele nunca usar se soltar e ser livre.

     – Citações... Sedutor! – Ela mordeu o lábio inferior. – Elas ajudam quando não sabemos o que queremos dizer.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    41/137

     – Pois eu acho que você sabe sempre exatamente o que quer dizer. – Será? 

    O barco encostou, desligaram a música. Os convidados começaram a desembarcar. – Ufa! – Tomas fingiu enxugar o suor da testa. – Sabe que nunca tenho pressentimen

    uito bons em relação a estas festas? – Por quê? – Não sei. Não acho estes barcos muito seguros. Sem pre acho que colocam mais gente

    ue suportam. Eu sei nadar, então m e garanto. Mas... Ah, sei lá. Só um pensamento alto mesm

     – Mas pense que se você não viesse à festa ela não seria uma encruzilhada. – E eu voltarei mais vivo do que entrei, pode acreditar. – Tom as piscou para ela.Sabrina, a amiga da Aurora, chegou bêbada e pendurada no pescoço de um publicitá

    os que sempre quase ganham uma série de prêmios. Os dois começaram a se despedir, coeijos efusivos e ardentes, apertos para lá e para cá . Tomas e Aurora deram alguns passos pardo.

     – Bom, preciso ir. – Aurora apontou para a amiga. – Antes dela resolver querer dirigir pasa.

     – Foi muito legal te conhecer – Tom as devolveu. – Foi sim. – Desculpa pela arrogância musical aquele dia. – Tudo bem. Eu não entendo quase nada de música mesmo. Fui comprar os discos

    resente pro meu pai, que é quem entende de alguma coisa. O pouco que sei foi ele quem mnsinou.

     – Um segredo seu revelado. – Você não faz ideia de quantos tenho... – Ela piscou para ele. – Será que terei a chance de descobrir? Ou terei de apostar também no destino e espe

    par com você em outra festa? Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar.Aurora ficou em silêncio por alguns segundos. Em seguida soltou:

     – O que vai fazer quarta pela manhã? – Acabei de desmarcar.Ela sorriu.

     – Então me encontra às 8h30 em frente ao sebo. Vou te levar pra ver uma coisa. – Se você não aparecer, tudo bem. Já estou acostumado. Eu m e consolo com o BJ.Aurora sorriu outra vez, puxou a amiga pelo braço e as duas foram em bora.

     

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    42/137

     Tomas montou na moto e foi para casa, com o capacete amarrado atrás. Queria senti

    ento no rosto e registrar cada instante do resto daquela noite. – MEU DEUS, quem é essa mulher? Uhuuuu! – o grito quase abafou o ronco do mot

    evantou as mãos e fechou os olhos. Dois ou três segundos eternos. Irresponsabilidade comual não se preocupou, ou que não precisava mais se preocupar.

    A moto balançou, ele abriu os olhos, segurou firme no guidão. Mais à frente, viu umérie de luzes vermelhas. Uma barreira do Departamento de Trânsito. A agente fez sinal paue ele enconstasse.

     – Documentos, por favor.Tomas entregou, em meio a um sorriso aberto. Ela verificou que estava tudo em orde

    om a documentação. E continuou: – Dirigindo sem capacete... – A senhora não imagina como é bom sentir o vento no rosto, respirar vida, observar e

    éu estrelado com a velocidade na mente e sem a viseira.A agente pareceu surpresa com a resposta. Mas manteve-se impassível:

     – E você sabe que conduzir moto sem capacete é falta gravíssima? Sete pontos e retença carteira?

     – Sei, sim. Mas o que são pontos numa carteira, minha amiga? A vida é curta, e o que va quantidade de pontos que os momentos inesquecíveis registram na nossa alma. A senhora tearido, filhos?

     – Tenho. Por quê? – Quando sair daqui vá para casa. Daqui a pouco o sol nasce, é sábado. Pegue as crianç

    á fazer um piquenique no parque, aproveite cada momento que tiver. Sete, quatorze, vinte e uontos eternos na vida de vocês. – E sorriu.

     – Tá bom, senhor feliz da vida. – A agente devolveu o sorriso com o canto da boca. – endo o capacete amarrado aí atrás. Vou aliviar desta vez. Coloca na cabeça, senão sofre ucidente e amanhã nem vai conseguir ir ao parque também.

     – Se quiser dar a multa pode dar. Eu sei que errei. Sem problema nenhum , sério.

    Ela preencheu o papel e entregou, com jeito de quem não entendia nada. – Toma cuidado, porque da próxima vez podem apreender a moto e o custo pra tirar epósito é alto.

     – Maravilha! – Tomas gritou, colocou o capacete, agradeceu e foi. Na primeira curogou o papel da multa para o alto e acelerou para casa.

  • 8/17/2019 O rosto que precede o sonho.pdf

    43/137

     

    Chegando, a primeira coisa que fez foi abrir o notebook . – É por você que vou aceitar este trabalho, Aurora, menina dos olhos cor de mel –

    sse sorrindo, enquanto digitava o e-mail  para o diretor.Enfim, após tanto tempo, Tomas tinha achado um sentido para entrar de cabeça em u

    ovo desafio.Colocou na vitrola o Abbey Road , dos Beatles, e a trilha sonora do momento foi Somethi

    do o que ele tinha vontade de dizer sobre Aurora aquele dia: “Something in the way she mov

    ttracts me like no other lover…”1. 

     No fim da tarde do dia seguinte, quando John Wilkinson apareceu na tela do Skype

    oração de Tomas quase saiu pela boca. Segurou-se para não demonstrar nervosismo, controansiedade. Escutou elogios à sensibilidade que teve com as composições do ”Fora de Ordemsoube que o convite era uma aposta pessoal. Comentou, em resposta, sobre a grande admiraçue sempre teve pelo trabalho do diretor.

    Os dois assistiram juntos a trechos do filme, Tomas recebeu a sinopse da história e tentaptar a essência do clima pretendido para as cenas. Anotou o nome das outras canções scolhidas para o restante da trilha.

    Recebeu o pré-contrato digitalizado. Leu com calma. Contrato de risco. Pa