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AS REGRAS POR TRÁS DA EXCEÇÃO – REFLEXÕES SOBRE A TORTURA NOS CHAMADOS “CASOS DE BOMBA-RELÓGIO” THE RULES BEHIND THE EXCEPTION: REFLECTIONS ON THE TORTURE PRACTICES IN THE SO- CALLED “TIME BOMB CASES” LUÍS GRECO ___________________________________________________________ Assistente científico do Prof. Dr. Dr. h. c. mult. Bernd Schünemann na Ludwig Maximilians Universität, Munique, Alemanha. Mestre e Doutor em Direito pela mesma instituição
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  • R. Jurdica, Curitiba, n. 23, Temtica n. 7, p. 185-227, 2009-2.

    Tito Lvio Barichello 229

    AS REGRAS POR TRS DAEXCEO REFLEXES SOBRE A

    TORTURA NOS CHAMADOS CASOSDE BOMBA-RELGIO

    THE RULES BEHIND THEEXCEPTION: REFLECTIONS ON THETORTURE PRACTICES IN THE SO-

    CALLED TIME BOMB CASESLUS GRECO

    ___________________________________________________________

    Assistente cientfico do Prof. Dr. Dr. h. c. mult. Bernd Schnemann naLudwig Maximilians Universitt, Munique, Alemanha. Mestre e Doutor

    em Direito pela mesma instituio

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    SUMRIO1. Introduo; 2. Excees proibio de torturar nos casos de bombas relgio?; 3.Excees e regras, excees como regras; 4. Crtica regra da decadncia; 5. Crtica regra dos custos; 6. Concluso

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    RESUMO

    O inimaginvel j h muito se tornou realidade: est tendo lugar naAlemanha uma discusso doutrinria a respeito da legitimidade da tortura.1As reflexes que seguem querem explicitar algumas premissas, poucasvezes formuladas de modo claro, de que parte o ponto de vista segundoo qual a tortura seria legtima em casos excepcionais a saber, aspremissas de que a dignidade humana pode caducar e de que ela seencontra sujeita a uma reserva de custos e, com isso, submeter esseponto de vista a uma crtica fundamental.

    Palavras-chave: tortura; dignidade humana; terrorismo; direito penal deemergncia; proporcionalidade.

    1 Agora j tarde demais para que o opositor da tortura possa manter-se calado nointeresse da manuteno do tabu (propondo uma tal postura, por exemplo, KRAMER,Wunsch nach Folter, KritJ (33), 2000, pp. 624 e ss., p. 625; ZIZEK, Welcome to thedesert of the real, London/New York 2002, p. 103; HAMM, Schluss der Debatte berAusnahmen vom Folterverbot!, NJW, 2003, p. 946).

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    RESUMEN

    Aquello que era inimaginable es desde hace mucho tiempo realidad: enAlemania tiene lugar una discusin sobre de la legitimidad de la tortura.Las siguientes reflexiones tienen por objeto desarrollar algunas de laspremisas, que pocas veces se formulan con claridad, con respecto alpunto de vista segn el cual la tortura sera legtima en casos excepcionaleses decir, que la dignidad humana podra perderse y encontrarse sujeta areserva de costes y someter a crtica esta perspectiva.

    Palavras-clave: tortura; dignidad humana; terrorismo; derecho penal deemergencia; proporcionalidad

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    ABSTRACT

    The unthinkable is once again real: There is an ongoing discussion inGermany about the legitimacy of torture. The following article tries to clarifyand criticize some of the premises implicit to the point of view according towhich torture might be lawful in exceptional cases, namely that humandignity may be forfeited and that it is subjected to a cost threshold.

    Key words: torture; human dignity; terrorism; balancing of rights

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    1 INTRODUOTorturar proibido. O fundamento desta proibio est em que a

    tortura viola a dignidade humana. Quanto a estas duas afirmativas, em sicarecedoras tanto de preciso quanto de justificao1, h amplo consenso,de maneira que, na presente sede, se cuidar de otra questo, a saberse a proibio da tortura, fundada na dignidade humana, deve ou no serrelativizada em certos grupos de casos. este o objeto da intensadiscusso atual, que, na Alemanha, foi acendida aps o caso v. Metzler-

    2 A primeira questo que deveria ser esclarecida o que se deve, exatamente, entenderpor tortura (no mesmo sentido HILGENDORF, Folter im Rechtsstaat?, JZ, 2004, pp. 331 ess., p. 331). Apesar de amplamente aceita, a definio constante na Conveno Anti-Tortura da ONU um tanto problemtica. Segundo esta definio, a tortura ,fundamentalmente, a causao intencional pelo Estado de considerveis dores ousofrimentos, fsicos ou psquicos (art. 1 I 1). O primeiro defeito a apontar-se que umadefinio calcada na dor ou sofrimento fica presa numa perspectiva psicolgico-naturalista (similar STOBBE, Die Unmenschlichkeit der Folter, em BEESTERMLLER/BRUNKHORST (Eds.), Rckkehr der Folter, 2006, pp. 36 e ss., p. 40; nisso andou melhor adefinio constante no art. 2 da Conveno Interamericana para a preveno e castigoda tortura, de 1985, sobre ela BOSSUYT, Two New Regional Conventions with Respect tothe Prohibition of Torture, em MATSCHER [Ed.], Folterverbot sowie Religionsfreiheit imRechtsvergleich, 1990, pp. 81 e ss., pp. 86-87). Se formos conseqentes, teremos deafirmar a tortura no caso de algum que raspa a cabea de uma modelo que faz fotospara shampoo, causando sofrimentos psquicos enormes, ao mesmo tempo em queteremos de negar a tortura no caso em que algum chicoteie o crente disposto ao martrioou o masoquista. A insuficincia do modelo psicologista percebida pela prpriaConveno, que por isso complementou a definio mencionada com o disposto noobjetvel pargrafo 2, o qual dispe que dores e sofrimentos resultantes de saneslegais no so compreendidos pelo conceito de tortura. Essa limitao cria outrosproblemas, pois torna possvel negar a existncia de tortura por meio da cmoda alegaode que s se est impondo a sano prevista em lei (cf. as fundadas crticas de TOMUSCHAT,Rechtlicher Schutz gegen Folter, em SCHULZ-HAGELEIT [Ed.], Alltag-Macht-Folter, 1989,pp. 95 e ss., p. 102; e de HILGENDORF, JZ, 2004, p. 334 os quais, ainda assim, nochegam a perceber que o psicologismo a raiz do problema). Ao que parece, o aspectodecisivo da tortura no a imposio de dor ou sofrimento, e sim o exerccio da dominaomais completa que se pode imaginar sobre uma pessoa, tendo relevncia aqui o fato deque o torturado se encontra merc do Estado, isto , em sua guarda ou posse(sublinhando o aspecto central da guarda JOERDEN, ber ein vermeintliches Recht (desStaates), aus Menschenliebe zu foltern, Jahrbuch fr Recht und Ethik [13], 2005, pp.495 e ss., p. 517; relevando sobretudo o exerccio de poder REEMTSMA, Wir sind alles frDich, em REEMTSMA [Ed.], Folter, 1991, pp. 7 e ss., p. 13; vide tambm PARRY, Escalationand Necessity, em LEVINSON [Ed.], Torture A collection, Oxford/New York 2004, pp. 145e ss., p. 153, falando no que ele chama de perversidade da tortura, isto , na inversodas concepes tradicionais de ao, consentimento e responsabilidade que a torturaprovoca, uma vez que a tortura teria o significado de que o torturado, ao no cooperar,seria o prprio autor das aes de tortura).

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    Gfgen-Daschner*** e, nos Estados Unidos, depois do atentado contra astorres gmeas em Nova Iorque. 3 Em Israel, pelo contrrio, j se discute

    Em segundo lugar, dever-se-ia explicitar de modo mais preciso em que consisteexatamente a alegada violao da dignidade pela tortura. S ento ser possvel resolvera controvrsia a respeito de se a mera ameaa de imposio de dor fsica como se deuno caso Daschner (vide a prxima nota) representa j tortura (em sentido afirmativo,em geral subsumindo a ameaa sob o conceito de dor psquica JESSBERGER, Wenn dunicht redest, fge ich Dir groe Schmerzen zu, Jura, 2003, pp. 711 e ss., p. 714; GAEDE,Die Fragilitt des Folterverbots, em CAMPRUBI [Ed.], Angst und Streben nach Sicherheitin Gesetzgebung und Praxis, 2004, pp. 155 e ss., p. 165; ELLBOGEN, Zur Unzulssigkeitder Folter (auch) im prventiven Bereich, Jura, 2005, pp. 339 e ss., p. 340; JOERDEN,Jahrbuch fr Recht und Ethik [13], 2005, p. 521; R. MARX, Folter: eine zulssige PolizeilichePrventionsmassnahme?, em GEHL [Ed.], Folter Zulssiges Instrument im Rechtsstaat?,2005, pp. 95 e ss., p. 102 [= KritJ (37), 2004, pp. 278 e ss.]; SCHILD, Folter (androhung)als Straftat, em GEHL [n. 2], pp. 59 e ss., p. 61; a respeito vide, ademais, KINZIG, Notkennt kein Gebot?, em GEHL [n. 2], pp. 11 e ss., p. 19 e s. e ROXIN, Kann staatlicheFolter in Ausnahmefllen zulssig oder wenigstens straflos sein?, em Festschrift frESER, 2005, pp. 461 e ss., p. 464; IDEM, Rettungsfolter?, em Festschrift fr NEHM, 2006,pp. 161 e ss., p. 169, os quais, ao superarem o psicologismo, abrem novas perspectivas,afirmando que a ameaa de dor e a efetiva imposio desta se igualariam em seu efeitode quebrar a vontade; em sentido negativo HILGENDORF, JZ, 2004, p. 338 e s., e sobretudoHERZBERG, Folter und Menschenwrde, JZ, 2005, pp. 321 ss., y p. 325 e s.; KRETSCHMER,Folter in Deutschland, RuP, 2003, pp. 102 e ss., p. 107: no h tortura, mas simtratamento degradante; SCHULZ, Das Folterverbot der EMRK und seine Auswirkungenauf das Strafrecht, em LENZEN [Ed.], Ist Folter erlaubt?, 2006, pp. 77 e ss., p. 87. Osimportantes argumentos de HERZBERG demonstram, a meu ver, menos a inexistncia detortura nos casos de mera ameaa do que a necessidade de se superar a perspectivapsicologista acima criticada).***

    (Nota do Tradutor Eduardo Riggi): Neste mencionado caso, o diretor adjunto dapolcia de Frankfurt am Main, Wolfgang Daschner, ordenou a um subordinado que,durante o interrogatrio (levado a cabo no dia 1 de outubro de 2002) ameaasse odetido, Magnus Gfgen que havia sequestrado, no dia 27 de setembro de 2002, ummenino de 11 anos, Jakob von Metzler para que Gfgen revelasse onde ocultara osequestrado. Se Gfgen no cooperasse, lhe foi dito que sofreria dores inimaginveis.O detido, impressionado com a ameaa, acabou por revelar o paradeiro da criana,que j havia morrido antes do interrogatrio, asfixiada pela fita isolante com a qualhavia sido amordaada. Em 20 de dezembro de 2004, Wolfgang Daschner e o agentede polica que obrou sob seu comando foram condenados pelo delito do 343 StGB,coao para obter uma declarao Aussageerpressung). (cfr. LG Frankfurt, NJW(10), 2005, pp. 692-696; GNGORA MERA, Ein bisschen Folter: Alemania debate sobrela tortura, disponible em http://www.menschenrechte.org/beitraege/menschenrechte/debate_tortura.htm).

    3 Maiores detalhes a respeito da discusso americana no curso do texto. Veja-se R.MARX, Globaler Krieg gegen den Terrorismus und territorial gebrocheneMenschenrechte, KritJ (39), 2006, pp. 151 e ss., p. 153 e s. para a viso do governodos EUA sobre a tortura.

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    h pelo menos duas dcadas a respeito da licitude da utilizao da torturana luta contra o terrorismo.4

    Ainda que prima facie humanitria, a verdade que a proibioabsoluta pode resultar um tanto dolorosa em situaes de necessidade.Pensemos no pior: uma cidade inteira como Munique, Nova Iorque,Barcelona ou Rio de Janeiro, desaparecer do mapa se no se conseguefazer falar o terrorista responsvel pela bomba e que acaba de sercapturado.

    Apesar de um tanto raras, tais hipteses chamadas casos debomba relgio (ticking-time-bomb-cases) so de enorme relevnciaterica, porque s elas oferecem ao defensor da proibio absoluta aoportunidade de testar a firmeza de sua convico. Por isso, no seoptar no presente trabalho por estratgias um tanto difundidas entre osque defendem a proibio no sentido de se esquivar do caso da bombarelgio, aludindo diminuta probabilidade de sua ocorrncia.5 O casoser levado a srio, para perguntar se de fato no se deve defender umaexceo proibio de torturar. E tampouco sero discutidos os detalhesdo caso concreto ocorrido em Frankfurt.6 O que nos interessa a questoabstrata do carter absoluto ou no da proibio de tortura. Este carterabsoluto s ser submetido prova de fogo se estivermos dispostos adefend-lo mesmo diante do pior.

    Por esta razo nos absteremos, ademais, de discutir aregulamentao jurdico-positiva da tortura. Ainda que o direito positivo,alemo ou brasileiro, parea rechaar de modo suficientemente claro edecidido qualquer exceo proibio de torturar7, no parece despiciendofletir num nvel mais jusfilsofico sobre os fundamentos dessa postura.

    4 Centrais para a discusso cientfica foram sobretudo o parecer da chamada ComissoLandau (resumo publicado em Israel Law Review [IsLR] [23], 1989, pp. 146 e ss., noqual, entre outras coisas, se opina pela juridicidade dos mtodos de interrogatriodo chamado Servio Geral de Segurana [General Security Service, ou GSS], e adeciso do Tribunal Superior [resumo publicado em LEVINSON [n. 2], pp. 165 e ss.).Sobre todo esse debate, resumidamente, EHRLICH/JOHANNSEN, Folter im Dienste derSicherheit?, em HASSE e outros (Eds.), Menschenrechte, 2002, pp. 332 e ss.

    5 Assim, porm, RAESS, Der Schutz vor Folter im Vlkerrecht, 1989, pp. 112 e s.; KRAMER,KritJ (33), 2000, p. 624; SCHLINK, em BRUGGER/SCHLINK, Darf der Staat foltern? EinePodiumsdiskussion HFR 2002, Beitrag 4, p. 6; SHUE, Torture, em LEVINSON (n. 2),pp. 47 ss.. p. 57 e s.; ao que parece tambm ZIZEK (n. 1), p. 104.

    6 A respeito, vide a deciso do LG Frankfurt, NJW, 2005, p. 692 e as referncias naprxima nota.

    7 Para o direito brasileiro, cf. o art. 5 III CF e o art. 1 da Lei 9455/1997. Relevando ocarter unvoco do direito positivo alemo, por exemplo, DX, ZRP, 2002, p. 180;

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    2 EXCEES PROIBIO DE TORTURAR NOS CASOS DEBOMBAS RELGIO?

    O grupo de casos das bombas relgio tem o mrito de deixartransluzir todas as dificuldades do problema. No so muitos os queconseguem resistir tentao que o grupo de casos representa, qualseja, a de tolerar ou permitir a tortura, pelo menos nessas situaesexcepcionais. A atitude de REEMTSMA, que responde afirmativamente pergunta luhmanniana voc faria isso? ao mesmo tempo em quepropugna uma firme defesa da proibio absoluta, representativa dapostura de muitos doutrinadores8. ROXIN, que tampouco tem qualquerdvida a respeito da antijuridicidade de qualquer ao de tortura, considerapensvel uma exculpao supralegal em tais situaes catastrficas.9No faltaram aqueles que, mesmo autodefinindo-se como opositores da

    KRETSCHMER, RuP, 2003, p. 108; JAHN, Gute Folter Schlechte Folter?, KritV, 2004,pp. 24 e ss., p. 35; ROXIN, Rettungsfolter? (n. 2), p. 163; SCHILD, Folter einst undjetzt, em NITSCHKE (Ed.), Rettungsfolter im modernen Rechtstaat?, 2005, pp. 69 ess., p. 80. Sobre a regulamentao jurdico-positiva alem em detalhe (e, em parte,discutindo o caso de Frankfurt) HECKER, Relativierung des Folterverbots in der BRD?,KritJ (36), 2003, pp. 210 e ss., pp. 212 e ss.; JESSBERGER, Jura, 2003, pp. 712 e ss.;KRETSCHMER, RuP, 2003, pp. 102 e ss.; MERTEN, Folterverbot und Grundrechtsdogmatik,JR, 2003, pp. 404 e ss., p. 405 e s.; WELSCH, Die Wiederkehr der Folter als das letzteVerteidigungsmittel des Rechtsstaates?, BayVBl, 2003, pp. 481 e ss., p. 483 e s.;GAEDE (n. 2), pp. 161 e ss.; GUCKELBERGER, Zulssigkeit von Polizeifolter?, VBlBW,2004, pp. 121 e ss.; JAHN, KritV, 2004, pp. 32 e ss.; NEUHAUS, Die Aussageerpressungzur Rettung des Entfhrten: strafbar!, GA, 2004, pp. 521 e ss.; ZIEGLER, DasFolterverbot in der polizeilichen Praxis, KritV, 2004, pp. 50 e ss., p. 51 e ss.; ELLBOGEN,Jura, 2005, pp. 339 e ss.; ESSER, Die menschenrechtliche Konzeption desFolterverbotes im deutschen Strafverfahren, em GEHL (n. 2), pp. 143 e ss.; KINZIG (n.2), pp. 12 e ss.; NOROUZI, Folter in Nothilfe geboten?, JA, 2005, pp. 306 e ss.;HONG, Das grundgesetzliche Folterverbot und der Menschenwrdegehalt derGrundrechte, em BEESTERMLLER/BRUNKHORST (n. 2), pp. 24 e ss.; IPSEN, Folterverbotund Notwehrrecht, em LENZEN (n. 2), pp. 38 e ss.

    8 REEMTSMA, Folter im Rechtsstaat, 2005, p. 122; de modo similar ZIZEK (n. 1), p. 103.LUHMANN, Gibt es in unserer Gesellschaft noch unverzichtbare Normen?, 1993, p. 1formulou a famosa pergunta se, diante do caso da bomba relgio torturar fosse anica sada, voc faria isso?

    9 ROXIN, Staatliche Folter (n. 2), p. 469; tambm IDEM, Rettungsfolter? (n. 2), p. 172;IDEM, Strafrecht, Allgemeiner Teil, t. I, 4 ed, 2006, 22/169; de modo similar ROBINSON,Letter to the Editor, IsLR (23), 1989, pp. 189 e ss., p. 191; GROSS, The Prohibitionson Torture and the Limits of the Law, em LEVINSON (n. 2), pp. 229 e ss., p. 231, 240 es., que descreve sua estratgia como a de um absolutismo pragmtico e umadesobedincia oficial; SCARRY, Five Errors in the Reasoning of Alan Dershowitz, emLEVINSON (n. 2), pp. 281 e ss., p. 282; BIELEFELDT, Die Absolutheit des Folterverbots,

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    tortura, defendem uma justificao nos casos de bombas relgio.10 Entreos poucos que no duvidam acertadamente, como veremos daexistncia, no caso extremo, de um dever fundado em convices moraisde tolerar a prpria morte se encontra o professor espanhol MOLINAFERNNDEZ.11 No sem alguma razo, portanto, que os adversrios daproibio absoluta se orgulham da honestidade de seu ponto de vista, oqual declara de modo aberto a licitude jurdica e moral da opo que,provvel e compreensivelmente, se acabaria por tomar.12 Esses autoresacentuam, sobretudo, que a exceo proibio de torturar que se est

    em BEESTERMLLER/BRUNKHORST (n. 2), pp. 109 e ss., p. 114. O defensor da torturaDERSHOWITZ, Is it Necessary to Apply Physical Pressure to Terrorists and to LieAbout It?, IsLR (23), 1989, pp. 192 e ss., p. 200, queria inicialmente conceder, nomximo, uma exculpao. Partindo da teoria de sistemas tenta POSCHER,Menschenwrde als Tabu, em BEESTERMLLER/BRUNKHORST (n. 2), pp. 75 e ss., p. 83e s., elaborar a racionalidad de uma proibio sem exceo que no ser respeitadaem casos de catstrofes (com modificaes parciais, em IDEM, Menschenwrde imStaatsnotstand, em LENZEN (n. 2), pp. 47 e ss., p. 61 s.); LENCKNER, EM SCHNKE/SCHRDER StGB, 27 ed., 2006, 34/41e, opina que a pergunta nem sequer deveriaser formulada, porque aqui o Estado de direito chega a seus limites.

    10 SHUE (n. 5), pp. 57 e s.; NEUHAUS, GA, 2004, p. 525, n. 23 y p. 529 e s., queenfaticamente defende a punio de Daschner; JOERDEN, Jahrbuch fr Recht undEthik (13), 2005, p. 519 e pp. 522 e s., que por um lado se ope admisso geral datortura, em razo de efeitos de ruptura de dique, por outro defende uma causa dejustificao supralegal para o caso da bomba relgio. Cfr. ademais KADISH, Torture,the State and the Individual, IsLR (23), 1989, pp. 345 e ss., p. 354, defendendo quea proibio de tortura seria absoluta para o Estado, mas s relativa para o indivduo.Um cavalo de Tria entre o campo dos que defendem a proibio absoluta POSNER,Torture, Terrorism, and Interrogation, em LEVINSON (n. 2), pp. 291 e ss., p. 296: apostura mais vantajosa seria a de conservar a proibio tradicional sem implement-la na situao extrema (que compreenderia seguramente o caso da bomba e, talvez,tambm o caso do sequestro).

    11 Cfr. MOLINA FERNNDEZ, La ponderacin de intereses em situaciones de necesidadextrema: es justificable la tortura?, em CUERDA RIEZU (Ed.), La respuesta del Derechoante los nuevos retos, 2006, pp. 265 e ss., pp. 283 e s..

    12 Assim, em particular, o parecer da Comisso Landau, IsLR (23), 1989, p. 183 (opiniocontrria como o caminho dos hipcritas); DERSHOWITZ, Why Terrorism Works, NewHaven/London, 2002, pp. 150 e s.; IDEM, Tortured reasoning, em LEVINSON (n. 2), pp.257 e ss., p. 266, declara: A questo substancial no tanto a tortura como aresponsabilidade, a visibilidade e a honestidade em uma democracia que enfrentauma opo entre dois males; em particular, tambm, pp. 274 e s. DERSHOWITZ famoso por sua proposta de uma ordem judicial de tortura (torture warrant) (cfr., porexemplo, Why Terrorism Works, p. 158; Tortured reasoning, p. 263). Veja-se,ademais, (substancialmente de acordo com DERSHOWITZ) LEVINSON, Precommitmentand Postcommitment: The Ban on Torture in the Wake of September 11", TexasLaw Review (81), 2003, pp. 2013 e ss., p. 2042.

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    introduzindo depende da ocorrncia de situaes verdadeiramenteextraordinrias, de modo que, na prtica, se teria uma proibio quase-absoluta de torturar.13

    Quais as razes mencionadas em favor desta soluo? No presentetrabalho, no ser possvel examinar com igual profundidade os vriosargumentos que se vm oferecendo. Centraremos nossas atenes,assim, naqueles que tm obtido mais peso e reconhecimento na doutrina.14

    13 BRUGGER, Darf der Staat ausnahmsweise foltern?, Der Staat (35), 1996, pp. 66 e ss.,p. 95: s proibies at ento absolutas se acrescenta uma disposio excepcionalpara o grupo de casos aqui mencionado mas apenas para estes casos!. Veja-se,ademais, HILGENDORF, JZ, 2004, p. 331: trata-se unicamente da questo de se sepode ou no torturar em determinados casos excepcionais estreitamente delimitados;LEVINSON, Texas Law Review (81), 2003, p. 2031: A questo se a tortura estjustificada em um nico caso, e no se a tortura sempre ou com frequncia legtima;PARRY (n. 2), p. 159: Para ser justificvel, a tortura deve ser a exceo, e no aregra; JEROUSCHEK, Gefahrenabwendungsfolter Rechtsstaatliches Tabu oderpolizeirechtlich legitimierter Zwangseinsatz?, JuS, 2005, pp. 296 e ss., p. 300.Criticamente, com razo, BIELEFELDT, Das Folterverbot im Rechtsstaat, em NITSCHKE(n. 7), pp. 95 e ss., p. 101; mais detidamente abaixo item 3.

    14 Por outro lado, a comparao com o denominado disparo mortal final ([Nota deEduardo Riggi]: entende-se por finaler Todesschuss ou por finaler Rettungsschuss -disparo final de salvamento - o uso mortal de arma de fogo pela polcia para salvarterceiros de perigos, por ex. nos casos em que se trata de liberar refns, sendo quenegociaes e uso de armas no letais no oferecem qualquer perspectiva realistade sucesso) e o argumento a maiore ad minus que em seguida se prope, de teorse lcito matar, tem de ser lcito torturar (principalmente BRUGGER, Der Staat [35],1996, p. 75 e s.; IDEM, Vom unbedingten Verbot der Folter zum bedingten Recht aufFolter?, JZ, 2000, pp. 165 e ss., p. 168; IDEM, em BRUGGER/SCHLINK [n. 5], p. 4;IDEM,Freiheit und Sicherheit, 2004, pp. 59 e s.; IDEM, Das andere Auge. Folter alszweitschlechteste Lsung, em NITSCHKE [n. 7], pp. 107 e ss., p. 111 e s.; de acordoISENSEE, Tabu im freiheitlichen Staat, 2003, p. 60; OTTO, Diskurs ber Gerechtigkeit,Menschenwrde und Menschenrechte, JZ, 2005, pp. 473 e ss., p. 480) de fcilrefutao, bastando negar que o disparo mortal seja mais grave que a tortura (porexemplo, porque o disparo mortal exigiria uma omisso, e a tortura uma ao positiva:WELSCH, BayVBl, 2003, p. 485; NEUHAUS, GA, 2004, p. 534; HECKER, KritJ [36], 2003,p. 215 n. 25 [cauteloso]; JAHN, KritV, 2004, p. 43; ENDERS, Die Wrde des Staatesliegt in de Wrde des Menschen Das absolute Verbot staatlicher Folter, em NITSCHKE[n. 7], pp. 133 e ss., p. 139; ou porque a tortura feriria justamente o que o ser humanotem de mais ntimo, GAEDE [n. 2], p. 184; SALIGER, Absolutes im Strafproze?, ZStW[116], 2004, pp. 35 e ss., p. 47; ROXIN, Staatliche Folter [n. 2], p. 464; IDEM, AT, t. I, 4ed., 2006, 16/98; veja-se tambm CHRISTENSEN, Wahrheit, Recht und Folter Einemethodische Betrachtung, em BLASCHKE y otros [Ed.], Sicherheit oder Freiheit?, 2005,pp. 133 e ss., pp. 149 e s.; ou tambm o que seria o ideal resolvendo primeiro oproblema apontado na nota 2, de explicitar a maneira exata como a tortura viola adignidade humana, para depois demonstrar que o caso do disparo mortal diverso

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    Em primeiro lugar, argumenta-se que aquele que deve ser torturadono estranho situao, e sim precisamente o responsvel por ela.Tanto a valorao jurdica do comportamento do terrorista (antijurdica),como a da situao da vtima (conforme ao direito), esto bem claras.15Uma proibio absoluta de torturar significaria que se premia o sanguefrio e a astcia do terrorista.16 Entre o jurdico e o antijurdico, no podeo Estado de Direito portar-se de modo neutro, tendo ele o dever de intervirem favor da vtima.17 Em uma situao em que, faa-se o que se faa, oresultado ser sempre a barbrie, deve o direito colocar-se ao lado davtima e no do autor.18 A tortura afeta um culpado, sua finalidade consisteem salvar um inocente.19 Se o suspeito de fato o terrorista que estpondo em perigo a vida de pessoas inocentes, imperativo de justia queseja ele quem arque com os custos da eliminao desse perigo.20 Por

    [interessante aqui JOERDEN, Jahrbuch fr Recht und Ethik (13), 2005, p. 517 n.90:nos casos de disparo de salvamento final, o sequestrador no se encontraria sob aguarda do Estado; similar KREUZER, Zur Not ein bisschen Folter?, em NITSCHKE (n. 7),p. 44; diversamente GEBAUER Zur Grundlage des absoluten Folterverbots, NVwZ,2004, pp. 1405 e ss., pp. 1408 e s.: nos casos de tortura, o perigo de abuso maior]).O argumento adicional de BRUGGER, segundo o qual o Estado no poderia reduzir asegurana de seus cidados a um nvel mais baixo do que o do estado de natureza,no qual os cidados seguramente torturariam e se salvariam (BRUGGER em BRUGGER /SCHLINK [n. 5], p. 8; IDEM, Freiheit [n. 14], p. 66 e s.; IDEM, em NITSCHKE [n. 7], p. 114;de acordo FAHL, Angewandte Rechtsphilosophie Darf der Staat foltern?, JR, 2004,pp. 182 e ss., p. 189; em sentido similar ERB, Nothilfe durch Folter, Jura, 2005, pp.24 e ss., p. 27; IDEM, Notwehr als Menschenrecht, NStZ 2005, pp. 593 e ss., p.595), esbarra no s na questo preliminar quanto a se o particular tem mesmo umdireito de torturar (contra, por ex. KRETSCHMER, RuP, 2003, p. 113; PERRON, Folternin Notwehr?, Festschrift U. WEBER, 2004, pp. 143 e ss., p. 152 e s.; SCHILD [n. 2], p.71), como e decisivamente pressupe de modo inaceitvel que a garantia dasegurana o ltimo fundamento de legitimidade do Estado. Tal hobbesianismo,que, em razo de sua estrutura conseqencialista, no tem qualquer lugar para limitesinsuperveis, deve ser recusado pelas razes que abaixo sero explicitadas(principalmente nos itens 4 e 5).

    15 BRUGGER, Der Staat (35), 1996, p. 81.16 BRUGGER, Der Staat (35), 1996, p. 88.17 ISENSEE (n. 14), pp. 59 e s.18 BRUGGER, JZ, 2000, p. 173.19 HILGENDORF, JZ, 2004, p. 335. A rigor, no est claro se estas afirmaes no so

    mera aluso a argumentos alheios. Ainda assim, se se levam em conta os resultadosa que chega o autor (p. 338 s.: imposibilidade da tortura, mas apenas de lega lata),parece que, pelo menos ao final, ele acaba por acolh-las.

    20 GUR-ARYE, Can the War against Terror justify the Use of Force in Interrogations?,em LEVINSON (n. 2), pp. 183 e ss., p. 193.

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    fim, esta idia tambm expressada por aqueles que admitem naspresentes hipteses uma legtima defesa em favor de terceiro.21

    A segunda considerao relevante no se refere a uma ao prviadaquele que deve ser torturado, mas sim quilo que dessa ao pode vira resultar: um dano de dimenses desastrosas. A mais grave das torturasno nada em comparao com a ameaa que o terrorista faz aoscidados, de sofrer uma morte atroz por meio da exploso de umabomba.22 A proibio absoluta de torturar significa nada menos que aimposio ao agredido de um dever de aceitar, sem resistncia, adestruio antijurdica de sua existncia fsica23. Conseqncia disso serianada menos que uma barbrie contra os interesses superiores ejustificados de milhes de afetados e, portanto, um escndalo tico24. difcil imaginar um menosprezo mais patente personalidade de um serhumano do que faz-lo saltar pelos ares, contamin-lo com radiotividade,envenen-lo com germes mortais, tudo com o mero fim de semear oterror.25 Em relao vtima, h uma forma qualificada de leso dignidade26, noutras palavras, uma perda de uma posio jurdica emprincpio impondervel.27 Os princpios do Estado de Direito no deveriam

    21 ERB, em Mnchener Kommentar zum Strafgesetzbuch, 2003, 32/173 e s.; IDEM,Jura, 2005, pp. 24 e ss.; IDEM, NStZ, 2005, pp. 593 e ss.; IDEM, em NITSCHKE (n. 7), pp.149 e ss., pp. 154 e s.; IDEM, Folterverbot und Notwehrrecht, em LENZEN (n. 2), pp. 19e ss., pp. 23 e ss.; FAHL, JR, 2004, pp. 186 e s.; JEROUSCHEK/KLBEL, Folter von Staatswegen?, JZ, 2003, pp. 619 e s.; MIEHE, Nochmals: Die Debatte ber Ausnahmenvom Folterverbot, NJW, 2003, pp. 1219 e s., p. 1220; SCHAEFER, Freibrief, NJW,2003, p. 947; GUR-ARYE (n. 20), pp. 191 e s.; LACKNER/KHL, StGB 25 ed., 2004, 32/17a; KHL, AT, 5 ed., 2005, 7/156a; JAEGER, Folterdebatte es gibt kein schwarzoder wei, em GEHL (n. 2), pp. 29 e ss., p. 34; JEROUSCHEK, JuS, 2005, p. 300; OTTO,Grundkurs Strafrecht, 7 ed., 2004, 8/59; IDEM, JZ, 2005, p. 481; BREUER, DasFoltern von Menschen, em BEESTERMLLER/BRUNKHORST, (n. 2), pp. 11 e ss., p. 21; J.SCHULZ (n. 2), p. 87; WAGENLNDER, Zur strafrechtlichen Beurteilung der Rettungsfolter,2006, p. 170. Tambm BRUGGER, Der Staat (35), 1996, p. 83; IDEM, em BRUGGER/SCHLINK (n. 5), p. 8; MOORE, Torture and the Balance of Evils, em PLACING BLAME,Oxford, 1997, pp. 670 e ss., p. 715 e ISENSEE (n. 14), p. 59, tocam neste aspecto.

    22 BRUGGER, Der Staat (35), 1996, p. 79.23 ERB, Jura, 2005, p. 27.24 TRAPP, Individualrechte ernst aber nicht unangemessen ernst genommen, em NIDA-

    RMELIN/VOSSENKUHL (Ed.), Ethische und politische Freiheit, 1997, pp. 448 e ss., p.463.

    25 ERB, Jura, 2005, p. 27.26 GTZ, Das Urteil gegen Daschner im Lichte der Werteordnung des Grundgesetzes,

    NJW, 2005, pp. 953 e ss., p. 956.27 ERB, Notwehr als Menschenrecht, NStZ, 2005, p. 597; IDEM, em NITSCHKE (n. 7), p.

    154; IDEM, em LENZEN (n. 21), p. 29.

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    converter-se em um pacto suicida.28 Nmeros importam, mesmo emdecises de princpios.29 A justificao da tortura por meio das figurasdogmticas do estado de necessidade30 ou da coliso de deveres31 maisuma manifestao desta idia.

    No se pode negar aos dois grupos de idias que acabamos deexpor alguma fora intuitiva. Ser correto dar-se por convencido e, combase nessas duas consideraes, admitir a legitimidade da torturaunicamente para os casos de bomba relgio?

    3 EXCEES E REGRAS, EXCEES COMO REGRASA resposta negativa. E a razo disso algo simples, mas pouco

    visto: em uma argumentao moral ou jurdica, inexistem aspectos ques valem excepcionalmente. Todo aspecto relevante, isto , todo aspectoao qual se atribui relevncia moral diante de algum problema conservaessa relevncia frente a qualquer outro problema equivalente. Dito comoutras palavras: no mundo da argumentao moral e jurdica, no existemexcees, entendidas estas como aspectos que somente tm relevnciasetorial ou ad hoc. Toda exceo expressa uma regra que lhe serve debase, uma regra que regula, justamente, o que se deve fazer no caso daexceo. Infelizmente, esta regra nem sempre formulada de maneiraexplcita, mas ela sempre poder ser extrada dos argumentos com que

    28 Essa expresso, que tem a sua origem no voto do juiz JACKSON em 337 U. S. 1, 37(1949) retomada por DERSHOWITZ, Terrorism (n. 12), p. 191 e tambm, recentemente,por BRUGGER em NITSCHKE (n. 7), p. 117. De maneira similar FAHL, JR, 2004, p. 190 n.105.

    29 DERSHOWITZ, Terrorism (n. 12), p. 189.30 Neste sentido principalmente o parecer da Comisso Landau, IsLR (23), 1989, pp.

    167 ss., pp. 184 e s., 186; e tambm ZAMIR, Human Rights and National Security,IsLR (23), 1989, pp. 375 e ss., p. 395 n. 43; MOORE (n. 21), pp. 724 e s.; MIEHE, NJW,2003, p. 1220; SCHAEFER, NJW, 2003, p. 947; PARRY (n. 2), pp. 158 e s.; JAEGER (n.21), pp. 34 e s.; ao que parece tambm ZELLER, Not actual necessity but possiblejustification; not moderate pressure, but either unlimited or none at all, IsLR(23), 1989, pp. 201 e ss., p. 207, apesar de certas contradies (p. 211 e s.). J oTribunal Supremo de Israel, se bem que falou em estado de necesidade -necessitydefense-, o fez mais no sentido de uma exculpao que de justificao (neste sentidotambm a leitura de GUR-ARYE [n. 20], pp. 188 e s.; j MOLINA FERNNDEZ, [n. 11], pp.273 e s. fala, a meu ver erroneamente, em justificao).

    31 WITTRECK, Menschenwrde und Folterverbot, DV, 2003, pp. .873 e ss., p. 877;IDEM, Menschenwrde als Foltererlaubnis?, em GEHL (n. 2), pp. 37 e ss., p. 45; IDEM,Achtungs- gegen Schutzpflicht? Zur Diskussion und Menschenwrde undFolterverbot, em BLASCHKE entre outros (n. 14), pp. 161 e ss., p. 171.

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    se sustenta a exceo, e isso por consideraes que aqui no precisamser discutidas em profundidade.32

    Quais as regras que se encontram implcitas nas justificaes daexceo proibio da tortura acima mencionadas? Se, apesar de a torturaviolar a dignidade humana, permitido torturar porque, nos casos debomba relgio, o candidato tortura provocou de maneira responsvel asituao, acabou-se por propor implicitamente uma regra de seguinte teor:a dignidade algo que se pode perder em razo de um comportamentoprvio (regra da decadncia). Quem se comporta mal perde, por causade seu mau comportamento, a pretenso de no ser torturado e de que asua dignidade seja respeitada. Segundo esse entendimento, a dignidadehumana seria algo disponvel, que se pode perder dependendo dasdecises que anteriormente se tomem. O ser humano no seria portadorde dignidade per se, pelo mero fato de ser um ser humano. A dignidadeseria uma qualidade externa, que se agrega aos seres humanos que amerecem, e que, por isso, tambm pode ser deles retirada ou sujeita auma condio resolutiva cuja verificao transformaria o afetado numindivduo de segunda categoria.33 Uma vez aceita a regra da decadncia,abre-se um flanco que permite legitimar a pena de morte,34 a castrao

    32 Para tentativas de fundamentar essa pretenso de universalidade dos argumentosmorais cf. por exemplo HARE, The Language of Morals, Oxford, 1952, pp. 137 e ss.,pp. 158 e s.; IDEM, Ethical Theory and Utilitarianism, em SEN/WILLIAMS (Eds.),Utilitarianism and Beyond, Cambridge, 1982, pp. 23 e ss., p. 25, que a reconduz aoprprio significado de expresses morais como bem e dever; HABERMAS,Diskursethik Notizen zu einem Begrndungsprogramm, em Moralbewutsein undkommunikatives Handeln, 7 ed., 1997, pp. 53 e ss., p. 97, para o qual esta pretenso um pressuposto pragmtico trascendental da argumentao moral; e ALEXY, Theorieder juristischen Argumentation, 1983, pp. 234 e s., p. 237, para quem ela se trata deuma regra fundamental do discurso prtico geral. Veja-se extensamente a respeitoWIMMER, Universalisierung em der Ethik, 1980. Na metatica mais recente, o chamadoparticularismo, que nega a pretenso de universalidade de razes morais, vemganhando cada vez mais seguidores, por exemplo, NORRIS LANCE/LITTLE, DefendingMoral Particularism, em J. DREIER (Ed.), Contemporary Debates in Moral Theory,Malden, 2006, pp. 305 e ss., p. 307, com mais referncias. Uma discusso dessapostura superaria, contudo, o marco aqui traado.

    33 Bastante claro MOORE (n. 21), p. 719: se o bote salva-vidas est afundando e algumtem de deix-lo para que os outros se salvem, os assassinos conhecidos entre ospassageiros seriam bons candidatos a serem os primeiros que deveriam ser lanadosao mar.

    34 Corretamente observado por HECKER, KritJ (36), 2003, p. 217. Na verdade, a morteper se no ainda um atentado dignidade. O que faz da pena de morte algoabsolutamente inaceitvel no , a rigor, a morte, mas sim as circunstncias em queessa morte ocorre, a saber, uma situao em que algum se encontra sob a guardado Estado, entregue merc deste sem possibilidade de defender-se.

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    obrigatria de delinquentes sexuais35 ou, inclusive, os assassinatos seletivosde terroristas conhecidos.36 Da mesma maneira, o reconhecimento da regrada decadncia torna mais fcil que se justifique o desrespeito aos direitosfundamentais no trato com a criminalidade organizada.37

    Se essa primeira regra tem carter deontolgico, vez que determinao correto com independentemente de qualquer clculo de conseqncias,por meio de aplicao de consideraes gerais (quais sejam, ocomportamento prvio do beneficirio da proibio), a segunda regra,que subjaz ao segundo grupo de argumentos acima mencionados, conseqencialista, isto , referida a conseqncias.38 O segundo aspectofavorvel tortura nos casos de bombas relgio o que se reporta dimenso do dano esperado. Pois bem, se isso relevante para permitirque se viole a dignidade humana, ento se est aceitando implicitamentea seguinte regra: a dignidade algo que apenas se tem de respeitar namedida em que os custos desse respeito no ultrapassem um determinadolimite (regra dos custos). Se os demais tiverem um interessesuficientemente intenso em que se viole a dignidade de um sujeito, essaviolao estaria permitida. Nao se reconheceria, assim, qualquer ncleoda personalidade absolutamente protegido contra intervenes deterceiros. O ser humano poderia, em sua totalidade, ser instrumentalizadopara fins alheios, se os demais considerarem estes fins suficientementevaliosos. Uma vez admitida a regra dos custos, no h mais razes paraque somente se torture o terrorista e no tambm, por exemplo, seusfilhos, 39 se esta for a nica maneira de faz-lo falar.

    Observe-se que, at agora, no demonstramos que as duas regrasque acabamos de tornar explcitas sejam incorretas. O que fizemos foi

    35 Realado por LDERSSEN, Die Folter bleibt Tabu, em Festschrift fr RUDOLPHI, 2004,pp. 691 e ss., p. 702; de modo similar MOLINA FERNNDEZ (n. 11), p. 281.

    36 Extremo que justificado de modo coerente por DERSHOWITZ, Terrorism (n. 12), p. 183.37 Veja-se por exemplo TRAPP (n. 24), pp. 470 e s., que, partindo de uma variante do

    utilitarismo por ele formulada, qualifica estes direitos de liberal-fundamentalistas.38 Sobre a distino entre conseqencialismo e deontologicismo cfr. BIRNBACHER,

    Analytische Einfhrung in die Ethik, 2003, p. 113 e ss.; NEUMANN, Moralphilosophieund Strafrechtsdogmatik, ARSP (44), 1991, pp. 248 e ss., pp. 250 e s.); IDEM, DieMoral des Rechts, Jahrbuch fr Recht und Ethik (2), 1994, pp. 81 e ss., pp. 82 e s.Segundo LBBE, Konsequenzialismus und Folter, em LENZEN (n. 2), pp. 67 e ss., p.70, o argumento central dos defensores da tortura teria carter deontolgico. Isto s parcialmente correto, como adiante se ver.

    39 Assim tambm KREMNITZER, The Landau Commission Report, IsLR (23), 1989, pp.216 e ss., p. 234; MARX (n. 2), pp. 119 e s.; MOLINA FERNNDEZ (n. 11), p. 280; veja-seo caso do terrorista, Mohammed, de alto escalo dentro da Al-Qaeda, que foi presopelos EUA (para ms detalles, DERSHOWITZ, Terrorism [n. 12], p. 270).

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    apenas desenvolver um modesto argumento de coerncia: no possvelcompatibilizar o reconhecimento dessas regras com outras regrasconstitutivas e fundamentais para a nossa compreenso tradicional doDireito. A nossa tradio se baseia contrariamente regra da decadncia na idia de que existe algo como uma dignidade inalienvel e direitoshumanos inalienveis, dignidade e direitos que no podem ser negadosnem ao pior dos criminosos, 40 e que o indivduo contrariamente regrados custos no est nem disposio da utilidade do Estado, nem dados demais cidados. 41 Enquanto sustentarmos estes princpios, teremosde manter firme o repdio tortura, tambm e precisamente em situaesexcepcionais.42

    Poucos dentre os defensores da soluo flexibilizadora tero acoragem de romper de modo expresso com os princpios que se acabade mencionar. No por acaso que as duas regras que explicitamospraticamente nunca tenham sido defendidas de maneira aberta e que otopos do direito penal do inimigo em sua verso legitimadora-afirmativa,que pode ser entendido como uma tentativa de articular ambas as regras,tenha provocado fundada indignao.43 Como j foi acima dito, em geral

    40 Veja-se, por exemplo, DRIG, Der Grundrechtssatz von der Menschenwrde, AR(81), 1956, pp. 117 e ss., p. 126; BADURA, Generalprvention und Wrde desMenschen, JZ, 1964, pp. 337 e ss., p. 341; HBERLE, Die Menschenwrde alsGrundlage der staatlichen Gemeinschaft, em ISENSEE/KIRCHHOF (Ed.), Handbuch desStaatsrechts, t. I, 1987, 20/44; BVerfGE 87, 228.

    41 Por todos DRIG, AR (81), 1956, pp. 127 e ss. (chamada Objektformel); BVerfGE 87,228.

    42 Muito similar R. MARX (n. 2), p. 121.43 A respeito do direito penal do inimigo veja-se JAKOBS, Brgerstrafrecht und Feindstrafrecht,

    HRRS, 2004, pp. 88 e ss.; IDEM, Terroristen als Personen im Recht?, ZStW (117), 2005,pp. 839 e ss.; criticamente GRECO, ber das sogenannte Feindstrafrecht, GA, 2006, pp.96 e ss., pp. 104 e s. (= Sobre o chamado direito penal do inimigo, RBCC 56 [2005], p.80 e ss.); ROXIN, AT, t. I, 2/127 e s.; SALIGER, Feindstrafrecht: Kritisches oder totalitresStrafrechtskonzept?, JZ, 2006, pp. 756 e ss.; SCHNEMANN, Feindstrafrecht ist keinStrafrecht, Festschrift fr NEHM, 2006, pp. 219 e ss. Traando, com razo, conexesentre o topos do direito penal do inimigo e a tentativa de legitimar a tortura GAEDE (n. 2),pp. 175 e s.; JAHN, Das Strafrecht des Staatsnotstandes, 2004, p. 234; FRANKENBERG,Kritik des Bekmpfungsrechts, KritJ (38), 2005, pp. 370 e ss., pp. 383 e s.; BIELEFELDT (n.13), pp. 103 e s.; BEESTERMLLER, Folter Daumenschrauben an der Wrde desMenschen, em BEESTERMLLER/BRUNKHORST (n. 2), pp. 115 e ss., p. 115; BRUNKHORST,Folter, Wrde und repressiver Liberalismus, em BEESTERMLLER/BRUNKHORST (n. 2) pp.88 e ss., pp. 92 e s. O prprio JAKOBS, ZStW (117), 2005, p. 849 numa recente declarao,que no mnimo ambgua e seguramente acrtica, diz que o Estado ao interrogar terroristastem de ultrapassar os limites do 136a da Strafprozessordnung (que probe, entre outrascoisas, o uso de coao no interrogatrio).

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    se prefere tentar vender a iluso de que se est apenas prevendo umaexceo para um caso excepcional.44

    Ainda assim, seria possvel que o defensor da opinio criticadadefendesse as duas regras de modo aberto. Neste caso, no seria maissuficiente o argumento da coerncia at agora desenvolvido, tornando-se necessrio estabelecer que as duas regras so tambm em si errneas.

    4 CRTICA REGRA DA DECADNCIA

    A dignidade algo que se pode perder por comportamentoinadequado: assim reza a primeira regra. J dissemos que isso no secompatibiliza com a nossa concepo de dignidade. A tarefa a que agoranos voltamos a de demonstrar que a nossa concepo de dignidadetem de ser mantida, que no defensvel modificar nosso conceito. Arigor, teramos de descer aos fundamentos da filosofia poltica paraesclarecer as razes ltimas que aliceram a proibio de violar a dignidademediante a tortura. No presente marco, ser possvel apenas um esboo.

    O Estado detm o monoplio do exerccio da violncia emdeterminado territrio. Em outras palavras, ele a instncia superior depoder em determinado territrio. Nisso ele no se diferencia, porm, dobando de ladres agostiniano, pois este tambm a instncia maispoderosa em determinado espao. Ainda assim, o Estado declara-sediferente do bando de ladres, porque afirma exercer no apenas poder,e sim poder legtimo. O Estado se v, assim, diante da necessidade defundamentar juridica e moralmente essa pretenso. Dito de outro modo:o Estado tem de apresentar um ttulo que explique por que o poder estatalpode pretender ser jurdica e moralmente legtimo.

    Tempos atrs, os Estados faziam valer como ttulo, por exemplo,uma ordem divina ou uma tradio familiar. Em certos casos, quefelizmente permaneceram excepcionais, este ttulo foi mesmo a chamada

    44 Vejam-se referncias supra nota de rodap 13. Alm da estratgia de manter silnciosobre as duas regras, muito comum a estratgia de neg-las sem qualquerjustificao, como, por exemplo, OTTO, JZ, 2005, p. 481: mas ele (o torturado)tampouco fica privado de seus direitos em razo de seu comportamento. Vide tambmo parecer da Comisso Landau, IsLR (23), 1989, p. 184, que se por um lado diz queorganizaes que tm como seu objetivo o terrorismo no tem o direito moral deexigir do Estado que mantenha diante delas o respeito s tradicionais liberdadescivis, reitera, contudo, na prxima frase o compromisso de respeito aos direitoshumanos. Entre os poucos que mencionam claramente a regra da decadncia estoBREUER (n. 21), p. 22, e JAKOBS, ZStW (117), 2005, p. 843 n. 8.

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    a que se fundasse uma sociedade racialmente homognea ou sempropriedade privada. O estado atual, sob cujo poder ns vivemos, exibeum outro ttulo: ele diz exercer seu poder em nosso nome. Por conseguinte,ele fundamenta seus direitos e tenta obrigar juridica e moralmente osdestinatrios do exerccio de seu poder no mais apelando a Deus ou tradio, mas sim a estes prprios destinatrios.

    Para que a legitimidade do Estado se converta em algo mais do queuma simples afirmao, ele deve levar realmente a srio aqueles em cujonome pretende falar. Isto no significa apenas que o Estado deve ter certaconsiderao por aquilo que os cidados querem, mas, ainda maisfundamentalmente, que o Estado tem de levar a srio o fato de que oscidados so capazes de querer, de que so seres capazes de vontade. Ottulo de legitimidade estatal pressupe que existam seres humanos quetenham uma vontade, de modo que o Estado que se valha deste ttulo sev vinculado a respeitar esse primeiro dado bsico. Uma representaoque desconhece por completo o representado, porque este sequer tidocomo portador de uma vontade, no uma verdadeira representao. Emtal caso, no se cria qualquer dever moral ou jurdico de respeitar as medidasprovenientes dessa instncia de poder, porque, da perspectiva dos afetados,no h nada que as diferencie das aes do bando de ladres.

    Esclarecendo: o Estado no promete atuar segundo todo e qualquercontedo da vontade de seus cidados. Isto seria mais prprio de uma relaoentre a av e seu neto mimado que da relacao entre o Estado e o cidado.O Estado promete, portanto, respeitar no o contedo da vontade, mas oprprio fato de que os cidados tm uma vontade. Isso mais fundamentale constitui a chave tanto para explicar por que a tortura est proibida, comopor que nenhum comportamento incorreto pode derrogar essa proibio.

    Dessas modestas reflexes se pode deduzir, primeiramente, ainadmissibilidade da tortura: a tortura nega o fato de que o ser humanotenha uma vontade, o que pressuposto de qualquer exerccio de poderlegtimo.45 No se trata, portanto, de que algum sofra algo que no quer,

    45 De modo similar ENDERS (n. 14), p. 142; MARX (n. 2), pp. 118 e s.; mais aprofundadamenteBRUNKHORST (n. 43), pp. 92, 99 e REEMTSMA (n. 8), p. 125, que vem na destruio davontade do cidado um cancelamento das condies do exerccio legtimo de poder.Isso no enxergado por ERB, em NITSCHKE (n. 7), p. 162; IDEM, em LENZEN (n. 21), p.32, que v na tortura nada mais do que um delito de constrangimento ilegal executadomediante vis compulsiva. Prximo posio aqui desenvolvida, mas ainda insuficienteSPIRAKOS, Folter als Problem des Strafrechts, 1990, p. 196 que considera a participaono Estado o bem lesionado pela tortura, o que deveria faz-lo chegar concluso (porele negada, p. 229 e ss.) de que se poderia torturar se houvesse perigo de que oEstado deixasse de existir, no mais se podendo participar nele.

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    mas sim de que algum seja submetido a um tratamento que se mostracompletamente indiferente em relao ao fato de que o afetado tenhauma vontade. A tortura elimina a vontade, e o faz de maneira to completaque o torturado no mais pode constar entre aqueles em cujo nome oEstado pretende atuar. A tortura est proibida porque um ato de excluso,porque ela exclui o indivduo do crculo de cidados em cujo nome o Estadopode pretender atuar.

    Ainda assim, seria cabvel a pergunta quanto a se o cidado nopode auto-excluir-se,46 se no possvel levar em conta a sua vontade dej no ser representado pelo Estado, vendo no comportamento antijurdicoprvio uma razo para torturar. A resposta negativa. Como se afirmou,o mal da tortura no que ela seja incompatvel com o contedo do quese quer, mas sim que ela declara irrelevante o prprio fato de que sepossa em absoluto querer. Por meio da tortura, o Estado declara a vontadede um cidado algo inexistente. Portanto, parece contraditrio recorrerao contedo da vontade da mesma vontade que, independentementede seu contedo, declarada, j como tal, irrelevante pelo ato de torturar e extrair dele a decadncia da pretenso de no ser torturado.

    Alm disso, como objeo adicional regra da decadncia, poderiaacrescentar-se (que uma das circunstncias que tornam ainda menosprovvel a ocorrncia do caso da bomba relgio que se tenha descobertoo terrorista que instalou a bomba. A regra da decadncia imprecisa noque se refere determinao de quem deve ser considerado responsvele, portanto, perder a pretenso de respeito dignidade. Se partirmos dasregras jurdico-penais de imputao de responsabilidade, no apenasquem colocou a bomba poder ver decair sua pretenso de no sertorturado. O mesmo talvez se passe com todo partcipe a ttulo deinstigao ou cumplicidade e mesmo com qualquer pessoa que tenhaconhecimento de onde se encontra a bomba. Pois o no-garante portadorde tal conhecimento por ex., o aliado que no participa, o advogado, ouinclusive a namorada ou a me do terrorista ainda que no intervenhana exploso nem como autor, nem como partcipe, em certo sentido umresponsvel, a saber, a ttulo de omisso de socorro. Por isso, defensores

    46 JAKOBS, ZStW (117), 2005, p. 849, em suas ltimas declaraes sobre o direito penaldo inimigo enfoca este aspecto: a excluso do terrorista seria uma autoexcluso. Deacordo POLAINO-ORTS, Derecho Penal del Enemigo, Lima, 2006, pp. 97, 99 e s., 102,106: O inimigo o porque quer s-lo.

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    conseqentes da regra da decadncia defendem a admissibilidade datortura de tais terceiros no-garantes que tenham apenas conhecimentoda situao.47 Isso acaba por tornar questionvel se a admissibilidade datortura de fato dependeria de um comportamento prvio. Afinal, estariapermitido torturar praticamente todo sujeito que, sem ter intervindo nacolocao da bomba, obtenha qualquer conhecimento que possa ser deutilidade para evitar as ms conseqncias que se temem.48 J quequalquer um, e no apenas quem colocou a bomba, pode serresponsvel, ento qualquer um, e no apenas quem colocou a bomba,pode ver decair a sua dignidade. Com isso, o argumento da perda dadignidade quase reduzido ad absurdum, vez que ele comeadeontologicamente, calcando-se na idia de responsabilidade, para aofinal no se diferenciar-se em praticamente nada de uma posturaconseqencialista, que se apia exclusivamente em custos. De umaperspectiva conseqencialista, tampouco se torturaria uma pessoa queno soubesse como evitar o dano, pois uma medida como esta de nadaserviria para evitar a catstrofe.

    O argumento decisivo contra a regra da decadncia , portanto, oseguinte: a negao fundamental da vontade no pode ser justificada pormeio de qualquer recurso vontade. A regra da decadncia acaba nos sendo falsa, como tambm quase hipcrita, porque ela finge observara vontade do torturado para submeter esta mesma vontade mais profundanegao. Como argumento adicional no deve passar inadvertido que aregra da decadncia quase impassvel de limitaes, vez que oresponsvel pela bomba no somente o terrorista que a coloca, masem ltima anlise qualquer um que tenha dela conhecimento (por causada omisso de socorro).

    47 Assim, principalmente MOORE (n. 21), p. 717; em sentido contrrio GUR-AYRE (n. 20),p. 193. DERSHOWITZ, Terrorism (n. 12), pp. 174 e s. tambm prope que se abandonea distino que faz o direito internacional entre combatentes e no-combatentes, demodo que qualquer um que se beneficie do terrorismo tenha de suportar os custosda luta contra ele (contrariamente, com razo, o j bastante concessivo IGNATIEFF ,The Lesser Evil. Political Ethics in an Age of Terror, Edinburgh, 2005, p. 94).

    48 O nico grupo de casos em que surge uma diferena aquele em que as pessoasque tm o conhecimento so irresponsveis por ex., a filha de 12 anos do terroristasabe de tudo. Se levarmos em conta que a irresponsabilidade destas pessoas derivacomumente de insuficincias intelectuais, a importncia prtica dessa diferena acabasendo insignificante.

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    5 CRTICA REGRA DOS CUSTOS

    Uma crtica mais profunda regra dos custos j foi fornecida noponto 4. Esta regra submete o respeito da dignidade humana a umareserva de custos, o que incompatvel com a idia de que o Estadopretenda exercer seu poder em nome de todos os destinatrios. Submetera dignidade humana a uma reserva de custos , na verdade, renunciar dignidade, vez que dignidade significa, primariamente, um valor intrnsecocompletamente independente dos interesses dos demais. Em outraspalavras, o respeito dignidade humana uma considerao deontolgica(em sentido kantiano), cuja obrigatoriedade de todo independente dasboas e ms conseqncias que o atendimento desta exigncia pode ter.49O prprio estabelecimento da segunda regra j contradiz estas

    49 Explicado claramente por NEUMANN, Die Tyrannei der Wrde, ARSP (84), 1998, pp.153 e ss., p. 154, e HRUSCHKA, Die Wrde des Menschen bei Kant, ARSP (88), 2002,pp. 463 e ss., (pp. 478 e s.: a incompatibilidade entre dignidade e conseqencialismo),e com relao direta ao problema da tortura GAEDE (n. 2), pp. 173 e s.: Para outilitarismo no possvel pensar em algo absoluto no sentido de um direito absolutoe JAHN, KritV, 2004, p. 47. Nesta linha tambm HASSEMER, Unverfgbares imStrafproze, em Festschrift fr MAIHOFER, 1988, pp. 183 e ss., pp. 200 e s. Por isso,so coerentes TRAPP (n. 24), p. 459; IDEM, Wirklich Folter oder nicht vielmehrselbstverschuldete Rettungsbefragung?, em LENZEN (n. 2), pp. 95 e ss., pp. 97, 113e ss. e JOERDEN, Jahrbuch fr Recht und Ethik (13), 2005, p. 515, que, partindo deperspectivas utilitaristas, no admitem regras ou direitos sem exceo, e BRUGGER,JZ, 2000, p. 172; IDEM, Das anthropologische Kreuz der Entscheidung in Politik undRecht, 2005, pp. 166 e s., que em suas publicaes mais tardias professaexpressamente o conseqencialismo. Veja-se j a defesa da tortura realizada porBENTHAM, Of Torture; Of Compulsion and herein of Torture, em TWINING/TWINING,Northern Ireland Legal Quarterly 24 (1973), p. 305 ss., pp. 312 e s., 330 e s.Os autores que falam de um conflito dignidade contra dignidade (as BRUGGER, DerStaat [35], 1996, pp. 79 e s.; IDEM, Menschenwrde, Menschenrechte, Grundrechte,1997, pp. 23 e s.; IDEM, JZ, 2000, p. 169; IDEM, em BRUGGER /SCHLINK [n. 5], p. 4; IDEM,Freiheit [n. 14], pp. 61, 63 e s.; IDEM, em NITSCHKE [n. 7], p. 112; ISENSEE [n. 14], p. 59;WITTRECK, DV 2003, pp. 878 e s.; IDEM, em GEHL [n. 2], pp. 50 y ss; IDEM, em BLASCHKE[n. 14], pp. 177 e s. [com uma rplica pouco convincente pp. 179 e s.], que fala emleso dignidade s em casos especficos, e no j quando houver perigo de vida;GTZ, NJW, 2005, p. 955; WAGENLNDER [n. 21], p. 167; ao que parece tambmBIRNBACHER, Ethisch ja, rechtlich nein ein fauler Kompromiss?, em LENZEN [n. 2],pp. 135 e ss., pp. 142, 145 e 147; soluo diferenciadora em STEINHOFF, WarumFolter manchmal moralisch erlaubt, ihre Institutionalisierung durch Folterbefehle abermoralisch unzulssig ist, em LENZEN [n. 2], pp. 173 e ss., p. 185, que se vale doargumento apenas para fundamentar a moralidade, e no a juridicidade da tortura;indo alm LENZEN, Folter, Menschenwrde und das Recht auf Leben, em LENZEN[n. 2], pp. 200 e ss., pp. 210 e ss., para o qual a vida da vtima j vale mais do que adignidade do autor]) desconhecem que a dignidade no um bem que se deve demodo conseqencialista maximizar, e sim uma limitao deontolgica

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    consideraes, pois a segunda regra reinterpreta a dignidade de modoconseqencialista, ou seja, tornando-se dependente das conseqncias.

    Ainda que possamos, teoricamente, darmo-nos por satisfeitos comesse esclarecimento, suponhamos, ad argumentandum, que as coisassejam como afirmam os partidrios da exceo proibio de torturar, demaneira que se possa deixar de respeitar a dignidade humana para evitardanos de dimenses catastrficas. Decorreria da a admissibilidade datortura em casos como o que aqui se discute?

    Contrariamente ao que supem os defensores da exceo proibio de torturar, uma resposta afirmativa parece no mnimo duvidosa. verdade que estas dvidas no se referem quilo que ocorreria se nose evitasse a exploso da bomba. No se pretende negar que esse danoteria, de fato, dimenses catastrficas. O que parece questionvel aavaliao dos defensores da tortura, segundo a qual esse dano seriamaior do que o que se produziria se a tortura fosse permitida. Estaafirmativa, que se vende como emprica, a rigor amplamente ideolgica.A repetida advertncia de que permitir a tortura gera perigos de rupturado dique ou um declive escorregadio (slippery slope) , no mnimo,

    maximizao de qualquer bem. Se o deontologicismo for capaz de fundamentardeveres de ao, e no apenas de omisso (neste sentido por ex. HFFE, KategorischeRechtsprinzipien, 1990, p. 189), fica claro que os ltimos permanecem prioritriosem caso de conflito (no mesmo sentido, referindo-se ao caso da tortura MERTEN, JR,2003, p. 407; WELSCH, BayVBl, 2003, p. 484; NEUHAUS, GA, 2004, p. 533; SALIGER,ZStW [116], 2004, p. 47; SCHILD [n. 2], p. 72; WOLBERT, Ausnahmsloses Verbot derFolter?, em GEHL [n. 2], pp. 93 e s.; ademais MARX [n. 2], pp. 120 e s., e ROXIN,Staatliche Folter [n. 2], p. 466; IDEM, Rettungsfolter [n. 2], p. 164; IDEM, AT, t. I, 4 ed., 16/99: os deveres de proteo persistem unicamente dentro dos limites do possvelem um Estado de Direito). Recorde-se, ademais, a importante advertncia jurdico-positiva de HONG (n. 7), p. 26, y CHRISTENSEN (n. 14), p. 138, segundo a qual deveresde proteo por si ss tampouco bastam para legitimar uma interveno na liberdadedos cidados, sendo necessrio, muito mais, lei que o faa expressamente. Cfr. nomesmo sentido, mas sem relao com o debate sobre a tortura, WAHL/MASING, Schutzdurch Eingriff, JZ, 1990, pp. 553 e ss., pp. 557 e s.A estrutura deontolgica do topos da dignidade humana desconhecida tambmpor aqueles que querem determinar o contedo da dignidade do ser humano medianteuma ponderao (por exemplo SCHLEHOFER, Die Menschenwrdegarantie desGrundgesetzes absolute oder relative Begrenzung staatlicher Strafgewalt?, GA,1999, pp. 357 e ss., pp. 362 e s.; NEUHAUS, GA, 2004, pp. 529 e s.; JEROUSCHEK/KLBEL,JZ, 2003, p. 618; HERZBERG, JZ, 2005, pp. 323 e s., especialmente p. 324), ou queconcebem a proibio deontolgica referida dignidade como resultado de umaponderao de segunda ordem (assim SALIGER, ZStW [116], 2004, p. 65), ou queentendem a dignidade como um ideal que deve ser alcanado (WETZ, Die Wrdedes Menschen Ein Phantom?, ARSP [87], 2001, pp. 311 e ss., p. 323).

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    plausvel.50 A admisso da tortura, ainda que para uma situaoexcepcional, significa que se reabilita uma estratgia de soluo deproblemas que deveria permanecer exilada do mbito daquilo que sequerse pode levar em considerao.

    E , primeira vista, surpreendente que esses perigos passemdesapercebidos por quase51 todos os defensores da flexibilizao daproibio absoluta de torturar,52 ou que estes autores no mximo sepreocupem em constest-los com argumentos no mnimo ingnuos.53 Essa

    50 KREMNITZER, IsLR (23), 1989, pp. 260 e s.; RAESS (n. 5), pp. 112 e s.; MORGAN, TheUtilitarian Justification of Torture, Punishment and Society (2), 2000, pp. 181 e ss.,pp. 191 e ss.; EHRLICH/JOHANNSEN (n. 4), pp. 358 e s.; ZIZEK (n. 1), p. 104; HAURAND/VAHLE, Rechtliche Aspekte der Gefahrenabwehr in Entfhrungsfllen, NVwZ, 2003,pp. 514 e s., p. 521; KRETSCHMER, RuP, 2003, p. 114; WELSCH, BayVBl, 2003, p. 485;GEBAUER, NVwZ, 2004, pp. 1408 e s.; ZIEGLER, KritV, 2004, p. 62; GROSS (n. 9), pp. 234e s.; ELLBOGEN, Jura, 2005, p. 342; GUSY, Christian Thomasius: ber die Folter, 1705,NJW, 2005, pp. 239 e ss., p. 240; KREUZER (n. 14), p. 44; MARX (n. 2), pp. 113 e s.;ROXIN, Staatliche Folter (n. 2), pp. 467 e s.; IDEM, Rettungsfolter? (n. 2), pp. 171 e s.;K. GNTHER, Darf der Staat foltern, um Menschenleben zu retten?, em BEESTERMLLER/BRUNKHORST (n. 2), pp. 101 e ss., pp. 106 e s.; HASSEMER, Sicherheit durch Strafrecht,StV, 2006, pp. 321 e ss., p. 330; MOLINA FERNNDEZ (n. 11), pp. 280 e s.; VON DERPFORDTEN, Ist staatliche Folter als fernwirkende Nothilfe ethisch erlaubt?, em LENZEN(n. 2), pp. 149 ss., p. 168; POSCHER, Menschenwrde (n. 9), pp. 50 e ss., p. 53; STEINHOFF(n. 49), pp. 194 e ss.; tambm JAHN (n. 43), p. 255 e WOLBERT (n. 49), pp. 90 e s.; queestes perigos fornecem, no mximo, um argumento adicional, relevado corretamentepor GAEDE (n. 2), 190 e BIELEFELDT (n. 9), pp. 112 e s.

    51 As raras excees so JEROUSCHEK/KLBEL, JZ, 2003, pp. 618 e s. (diferente, contudo,JEROUSCHEK, JuS, 2005, pp. 301-302), e JOERDEN, Jahrbuch fr Recht und Ethik (13),2005, p. 519, que por isso fundamentam a flexibilizao da proibio absoluta demodo mais cauteloso.

    52 Parecer da Comisso Landau, IsLR (23), 1989, pp. 173 e s.; BRUGGER, Der Staat (35),1996, p. 97, chega a discutir as conseqncias mais distantes da relativizao daproibio de torturar, sem dar resposta ao problema; e especialmente IDEM, emNITSCHKE (n. 7), pp. 114 e s. (apesar do ttulo do apartado se chamar ruptura do diquepara dentro e para fora?); IDEM, Kreuz (n. 49), 167; DERSHOWITZ, Terrorism (n. 12), pp.144 e s.; BREUER (n. 21), p. 91.

    53 Cfr. principalmente ERB, NStZ, 2005, p. 601; IDEM, em NITSCHKE (n. 7), pp. 166 e s.;IDEM em LENZEN (n. 21), pp. 35 e s., tambin POSNER (n. 10), pp. 294 e s.; FAHL, JR,2004, 189; WAGENLNDER (n. 21), pp. 167 e s. Chega a ser escandaloso o comentriode POSNER cit., para quem os efeitos corruptores da tortura no se produziriam se elas for praticada no estrangeiro. Deve entender-se como provocao jocosa a inversodo argumento da ruptura do dique proposta por BRUGGER, segundo a qual a proibioabsoluta de torturar teria efeitos negativos incontrolveis (BRUGGER, Freiheit [n. 14],p. 70; IDEM em NITSCHKE [n. 7], p. 116), enquanto a afirmao de WITTRECK de que porrazes de princpio no interesam as conseqncias quando se trata de salvar adignidade da vtima (em BLASCHKE e outros [n. 14], p. 186), representa uma contradiocom as prprias - e talvez inconscientes premissas conseqencialistas.

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    surpresa desaparece, entretanto, se refletirmos a respeito da cargaemocional ou, mais precisamente, ideolgica do exemplo da bombarelgio. O exemplo no problemtico nem por se tratar de uma situaoextraordinria, tampouco por nos induzir, com sua retrica, a que tomemosuma deciso apressada e irrefletida, como se estivssemos a escutar otique-taque da bomba.54 Na verdade, o problemtico que, apesar debandeira conseqencialista que o exemplo ostenta, ele induz a umainfrao de um princpio fundamental da mais importante espcie deconseqencialismo, qual seja, o utilitarismo: o princpio da imparcialidade.55Somos ns que sofremos o dano decorrente da bomba relgio; 56 j osdanos decorrentes da tortura so sofridos por outras pessoas. O caso dabomba nos leva a pensar apenas nos danos diretamente decorrentes daexploso e que deixemos em segundo plano todos os outros danos quepodem indiretamente derivar da autorizao da tortura. No surpresaque quem defenda uma tal anlise custo-benefcio pela metade acabepor considerar desumana 57 a proibio absoluta da tortura. Porque casoa tortura venha a ser permitida, ainda que em situaes excepcionais,no seremos ns quem ter de viver com medo de ser torturado, e sim osmembros de grupos tnicos minoritrios,58 cujos interesses, ao que parece,no so computados no clculo de custo-benefcio. Belo balano custo-benefcio, em que ns desfrutamos dos benefcios e os outros arcamcom os custos.

    54 E, por isso, tampouco que o exemplo se centre numa comunicao grfica, o que apontado por ULBRICH, Die normative Kraft der Bilder: Zur Funktion des Bildhaften inder Diskussion ber die Zulssigkeit staatlicher Folter, em NITSCHKE (n. 7), pp. 119 ess., pp. 122 y 130-131.

    55 Cfr., por exemplo, os conseqencialistas HARE em SEN/WILLIAMS (n. 32), p. 25; TRAPP(n. 24), p. 456; PETTIT, The Conseqentialist Perspectiva, em BARON/PETTIT/SLOTE,Three Methods of Ethics, Malden entre otros, 1997, pp. 92 e ss., pp. 141 e s., 148;GESANG, Eine Verteidigung des Utilitarismus, 2003, pp. 98 y 123. Referindo-se aoproblema da tortura e do parecer Landau KREMNITZER, IsLR (23), 1989, p. 277: Squem for capaz de enxergar-se em ambos os pares de sapatos no do torturador eno do torturado e continuar aceitando a concluso da comisso (no sentido dapermisso da tortura em situaes de necessidade Lus GRECO) um verdadeirodefensor do parecer.

    56 Por isso no surpreende que BRUGGER inicie suas novas verses do caso da bombarelgio da seguinte maneira: O caso se passa na cidade natal do leitor (JZ, 2000, p.165).

    57 Neste sentido ERB, Jura, 2005, p. 30.58 KAISER, Folter, Misshandlung und krimineller Machtmissbrauch heute, KrimJ (35),

    2003, pp. 243 e ss., p. 254.

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    Mas h uma segunda razo para a facilidade com que, numa situaocomo a que discutimos, se considera a tortura a alternativa mais benfica.Esta razo a mudana de atitude face ao Estado, mudana que tambm refletida nas pesquisas de opinio pblica sobre a tortura.59 Uma sadiadesconfiana face ao Estado parece ser quase constitutiva do pensamentoliberal.60 O Estado no visto nem como o mbito em que o ser humanorealiza e aperfeioa sua natureza,61 nem como a realizao da idia tico-moral objetivamente racional,62 e sim, em primeira linha, como o Leviat,63ou seja, como uma ameaa constante para os direitos de seus subordinados.Ainda assim, especialmente nos pases que gozam de amplo bem-estar,essa atitude distanciada em relao ao Estado parece estar sendosubstituda por uma considervel confiana, de modo que o objeto primrioda sensao de medo no mais o Estado, e sim grupos criminosos outerroristas dele desvinculados.64 Tambm por isso, a anlise custo-benefcioproposta pelos partidrios da exceo proibio de torturar se revela saparentemente emprica, e predominantemente ideolgica, vez que elapressupe a premissa, repetidamente refutada pela histria, segundo aqual se deve temer mais aos particulares do que ao Estado. Assim, de fato,se manifesta DERSHOWITZ nas primeiras pginas de seu livro: Um princpioimportante das liberdades civis era que os mais intensos perigos para aliberdade vinham do estado poderoso. (...) O fenmeno relativamente novo

    59 Veja-se a respeito SCHNORR/WISSING, ZRP, 2003, p. 142, que tomam estes resultadoscorretamente como expresso de uma decadncia de valores.

    60 Corretamente FERRAJOLI, Diritto e ragione, 5 ed., Roma/Bari, 1998, p. 927.61 Neste sentido a interpretao tradicional de ARISTOTELES, Politik (trad. por Rolfes),

    1995, 1 Libro Cap. II, e de Christian WOLFF, Vernnftige Gedanken von demgesellschaftlichen Leben der Menschen und insonderheit dem Gemeinen Wesen,Ed. Arndt, Hildesheim/New York, 1975, 215 e ss., 218, 224; IDEM, Grundstze desNatur und Vlkerrechts, ed. Thomann, Hildesheim/New York, 1980, especialmente o 9.

    62 HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, 1986, 259. Contra essa interpretaotradicional de HEGEL como filsofo do Estado antiliberal (por todos, POPPER, The OpenSociety and its Enemies, t. 2, 5 ed., New Jersey, 1966, pp. 27 e ss. e HAYEK, TheCounter-Revolution of Science, Indianapolis, 1952, pp. 367 e ss., especialmente p.399), h quem defenda uma releitura de HEGEL como liberal (por exemplo RAWLS,Lectures on the History of Moral Philosophy, Cambridge entre otros, 2000, pp. 352 ess.) ou como politicamente neutro (PAWLIK, Hegel und die Vernnftigkeit desWirklichen, Der Staat [41], 2002, pp. 183 e ss., pp. 193 e s.).

    63 HOBBES, Leviathan, ed. Tuck, Cambridge, 1996, passim.64 Relevado com acerto por LDERSSEN (n. 35), p. 696: as pessoas... se desacostumaram

    a sentir medo do Estado; K. GNTHER (n. 50), p. 105; REEMTSMA (n. 8), p. 100.

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    dos grupos terroristas organizaes que, em si mesmas, no so Estados,mas que, ainda assim, fazem guerra e procuram acesso a armas dedestruio desafia pela primeira vez esse paradigma. O novo paradigma grupos terroristas capazes de causar um estrago de dimenso que,anteriormente, s os Estados conseguiam provocar, mas que no soresponsveis como os Estados exige dos defensores dos direitos civisque repensemos o nosso foco na ao do Estado.65 BRUGGER comea umde seus primeiros artigos com a pergunta quanto a se a proibio absolutade torturar seria tambm vlida, quando o Estado no autoritrio nemtotalitrio, mas se encontra organizado segundo o princpio democrtico edo estado de direito e, no caso concreto, persegue propsitos que, em si,parecem legtimos.66 possvel mencionar inmeras manifestaes nessesentido.67 Tais opinies parecem simplesmente incompreensveis se se

    65 DERSHOWITZ, Terrorism (n. 12), pp. 10 e s.66 BRUGGER, Der Staat (35), 1996, p. 68 (cita), p. 82.67 Por exemplo, HILGENDORF, JZ, 2004, p. 331: De qualquer forma, no se deveria olvidar

    que hoje no se discute o regresso a um Estado torturador totalitrio, ou WAGENLNDER(n. 21), pp. 167 e s., segundo o qual a permisso excepcional da tortura no seriaperigosa em um Estado de Direito.Tambm a frequente afirmao segundo a qual hoje no se estaria debatendo a torturatradicional, mas to somente a tortura salvadora para a qual se cunhou o termoalemo Rettungsfolter (por ejemplo, JEROUSCHEK/KLBEL, JZ, 2003, pp. 614 e s.;HILGENDORF, JZ, 2004, p. 331; BREUER [n. 21], pp. 16 e s.; JEROUSCHEK, JuS, 2005, pp. 297y 300; neste sentido ademais SCHROEDER, ZRP, 2003, p. 180; WOLBERT [n. 49], p. 85;IPSEN [n. 7], p. 39; indo alm ISENSEE [n. 14], p. 60; LENZEN [n. 49], pp. 200 e s. [torturaentre aspas]; TRAPP [n. 49], pp. 99 e ss., pp. 103 e ss., para quem nos casos desalvamento sequer haveria tortura, mas apenas um interrogatrio de salvamento porculpa do interrogado [selbstsverschuldete Rettungsbefragung]. Mas o ovo de Colombofoi encontrado por ERB em NITSCHKE [n. 7], pp. 163 e s.; IDEM, em LENZEN [n. 21], p. 33,para o qual as convenes de direito internacional no haviam pensado nos novosgrupos de casos), tem carter ideolgico, pois sugere que se teria uma nova espciede tortura desconhecida de nossos antepassados, qual no se aplicaria o juzotradicional de condenao (crtico tambm SCHILD [n. 7], p. 78). At mesmo a tortura debruxas foi, ao final, uma instncia de tortura salvadora, pois o que se almejava eracombater os perigos para a alma de cada indivduo que provinham daqueles que, porterem feito um pacto com o demnio, integravam o exrcito dos inimigos de Deus (videSCHILD [n. 7], p. 75 e s., 78 e s.). As proibies jurdico-positivas impassveis de exceoso, isso sim, uma resposta a estratgias argumentativas desde h tempos conhecidas,que queriam justificar a tortura alegando a imprescindibilidade desta para o salvamentode bens importantes (assim tambm KREMNITZER, IsLR [23], 1989, p. 242; HECKER, KritJ[36], 2003, p. 213; JAHN, KritV, 2004, pp. 37 e s.; DORFMAN, The tyranny of terror, emLEVINSON [n. 2], pp. 3 e ss., p. 16; ENDERS [n. 14], p. 145; KINZIG, [n. 2], p. 19; HONG [n. 7],p. 25; MOLINA FERNNDEZ [n. 11], p. 280).

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    levam em conta as atrocidades cometidas pelos Estados no curso de suahistria e, principalmente, na primeira metade do sc. XX. Comparadoscom elas, no s o 11 de setembro cuja importncia no se quer aquiminimizar como mesmo a nossa bomba relgio parecem algo um tantopequeno. As ameaas terroristas at agora histrico-empiricamenteverificadas no oferecem fundamento para crer na anlise custo-benefciodefendida pela opinio que ora recusamos.

    Note-se, por fim, que as consideraes que acabamos de formularcontra a anlise custo-benefcio sustentada pela opinio contrria soespeculaes empricas, que se encontram, assim, sujeitas a uma espciede clusula rebus sic stantibus. Uma proibio de tortura inviolvelquaisquer que sejam as circunstncias e, assim, absoluta, somente podeser fundamentada por quem argumente de uma perspectiva deontolgicae, por isso, independente de qualquer empirismo. De qualquer maneira,podemos concluir que nem mesmo os anteriores argumentosconseqencialistas autorizam os defensores da tortura a suas concluses.

    6 CONCLUSO

    insustentvel distinguir entre situao normal e situao deemergncia e postular regras distintas para a situao normal e para asituao de emergncia, porque toda regra transcende situao. Maisdo que isso: s a exceo demonstra o verdadeiro sentido que damos regra. Ningum percebeu esse fato mais claramente do que o filsofo daexceo, Carl SCHMITT, apesar de sua afirmao de que todo direito direito da situao, cuja vigncia dependeria de determinada situao denormalidade68: O normal no significa nada, a exceo prova tudo. Elano apenas confirma a regra, a regra vive unicamente da exceo.69 Nose pode escapar disso propondo uma tica do excepcional70, um dever doestadista de abrir-se dimenso trgica de sua misso e de sujar as

    68 SCHMITT, Politische Theologie, 8 ed., 2004, p. 19.69 SCHMITT (n. 68), p. 21.70 Veja-se especialmente M. WALZER, Emergency Ethics, em Arguing about War, New

    Haven/London, 2004, pp. 33 e ss., p. 40; de acordo LEVINSON, Texas Law Review(81), 2003, p. 2032; similar GROSS (n. 9), p. 239, que diferencia entre uma perspectivade poltica geral e uma perspectiva do caso catastrfico, e ZUCKERMANN, Coercionand the Judicial Ascertainment of Truth, IsLR (23), 1989, pp. 357 e ss., pp. 372 e s.;ademais TRAPP (n. 24), p. 459.

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    mos71, ou uma diferenciao entre o trato com cidados e o combateaos inimigos72.

    A exceo prova tudo. Por isso, inadequado criticar a opinioaqui defendida, chamando sua disposio de deixar morrer seres humanospor amor de certos princpios abstratos um fetichismo de regras.73 Todaposio que se defenda ser composta de certas regras ou princpiosabstratos. Tambm os defensores da exceo defendem regras, apenasoutras, a saber: de que a dignidade do ser humano pode decair ou de queela est sujeita a uma reserva de custos; regras que, em geral, nem mesmoso defendidas abertamente, porque elas tampouco se mostramdefensveis. A questo no se obedecemos a regras, e sim a que regrasobedecemos: s regras do Estado de direito, que conhece limites absolutosno trato com seres humanos, ou s regras do bando de ladres, que podeesquivar-se sem maiores preocupaes com tais obstculos. O Estado dedireito tem de resistir, inclusive e principalmente face ao pior. Como afirmaROXIN: a sua superioridade moral em relao ao delinqente consiste nofato de que o Estado no se vale dos mesmos mtodos que ele.74

    A regra vive unicamente da exceo: na discusso sobre os casosda bomba relgio, no se trata do nosso comportamento hipottico numasituao imaginria, que oxal nunca venha a ocorrer, mas sim de nossocomportamento presente isto , de nossa renncia tortura e de nossa

    71 Veja-se aqui outra vez M. WALZER, Political Action: The Problem of Dirty Hands,Philosophy & Public Affairs (2), 1972, pp. 160 e ss., pp. 166 e s.; tambm MOORE (n.21), p. 720; ISENSEE, (n. 14), p. 61; e, adicionalmente, ELSHTAIN, Reflection on theProblem of Dirty Hands, em LEVINSON (n. 2), pp. 77 y ss., p. 83.

    72 Veja-se acima n. 43.73 Neste sentido, porm, FRANKE, Wie verbindlich ist das Folterverbot fr den Rechtstaat,

    em NITSCHKE (n. 7), pp. 51 e ss., p. 61; veja-se, ademais, ERB, Jura, 2005, p. 30; IDEM,NStZ, 2005, pp. 600 e s.; IDEM, em NITSCHKE (n. 7), p. 165; IDEM, em LENZ; BRUNKHORST(n. 21), p. 34 s., que fala aqui levianamente de totalitarismo; mais refinado, masmesmo assim inaceitvel ELSHTAIN (n. 71), pp. 83, 86 e s., que reconduz a opinioaqui sustentada tradio teolgica do pietismo rgido, e defende a tradio catlicade uma casustica da responsabilidade concreta.

    74 ROXIN (n. 2), p. 466; tambm IDEM, AT, t. I 16/99. Vejam-se ademais HASSEMER (n.49), p. 200; RAESS (n. 5), p. 112; CHRISTENSEN (n. 14), p. 159; BIELEFELDT (n. 13), p. 102:Um Estado de Direito no pode entrar numa corrida de barbrie; ENDERS (n. 14), pp.147 e s.; BRIESKORN, Folter, em BEESTERMLLER/BRUNKHORST (n. 2), p. 52; HETZER, IstFreiheit durch Sicherheit korrumpierbar?, em StraFo, 2006, pp. 140 e ss., p. 144.Similar tambm a argumentao fundada em nossa identidade como Estado de Direitoem REEMTSMA, Zur Diskussion ber die Re-Legitimierung der Folter, emBEESTERMLLER/BRUNKHORST (n. 2), pp. 71 e s.; IDEM, (n. 8), pp. 81, 87 e s., pp. 91 e s.,pp. 99, 117, 122 e s. e p. 129.

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    condenao a esta prtica e das razes que realmente o sustentam.Propor uma exceo regra da proibio de torturar significa querecusamos esta prtica no porque ela lesiona a dignidade de um serhumano, e sim porque ele ainda no se comportou mal, ou porque notemos ainda nenhum interesse suficientemente forte em torturar essapessoa. Para o Estado de Direito, o que deve importar a dignidade.

    *Artigo publicado conforme enviado pelo autor.

    Comentrio ao estudo de Lus Greco*

    Bernd Schnemann**

    Resumo: O autor dirige algumas consideraes cticas argumentao de Greco e doutrina dominante.

    Palavras-chave: tortura; dignidade humana; terrorismo; direitopenal de emergncia; proporcionalidade.

    Resumen: El autor formula consideraciones escpticas a losargumentos de Greco y de la doctrina dominante.

    Palavras-clave: tortura; dignidad humana; terrorismo; derechopenal de emergencia; proporcionalidad

    Abstract: The author makes sceptical remarks on the argumentsproposed by Greco and by the majority opinion.

    Key words: torture; human dignity; terrorism; balancing of rights

    1. O artigo de GRECO no apenas documenta e sintetiza de modocompleto o debate, que vem sendo travado com uma intensidade atento desconhecida, sobre a valorao jurdica da tortura salvadora emsituaes extremas, como tambm contribui para a maior clareza dadiscusso, e isso de trs maneiras: primeiramente, no que atine ao conceitode tortura (com a aluso, feita infelizmente apenas de passagem, ao critriodo exerccio da dominao mais completa que se pode imaginar sobreuma pessoa, nas notas 2 e 15); em segundo lugar, esclarecendo que oconceito de exceo, freqentemente usado no presente debate como

    * Traduo, por LUS GRECO, do original Kommentar zur Abhandlung von Lus Greco,publicado em GA 2007, p. 644 e ss.

    ** Prof. Dr. Dres. h. c. Universidade Ludwig Maximilian, Munique.

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    difuso subterfgio, no se refere apenas a casos individuais, e sim a umanorma de exceo que impe uma restrio proibio geral de torturar;e, em terceiro lugar, reconduzindo as possveis razes para uma tal normade exceo a dois princpios, que GRECO chama de regra da decadnciae regra dos custos (com o sentido de uma ponderao de bens e deinteresses). De certa maneira, as duas regras representam umatransferrencia do tradicional debate sobre as teorias da pena questoda tortura, uma vez que a regra da decadncia, como a chamada teoriaabsoluta, trata de uma legitimao valorativo-racional em face afetado,enquanto a regra dos custos trata da necessidade teleolgico-racionalsegundo o modelo das teorias relativas. Se tentarmos levar esse modelode legitimao binrio, que a teoria correta para a justificao do direitopenal,1 deste setor para a tortura salvadora e procedermos a uma exameda tortura salvadora com base neste modelo, sem nos deixarmosdesorientar pela montanha de idias produzida pela dogmtica tradicional,parece que chegaremos a uma concluso surpreendente, uma vez que alegitimao valorativo-racional e a necessidade teleolgico-racional dapena, se comparadas ao caso da bomba relgio a respeito do qual refleteGRECO, se mostram altamente duvidosas: a admisso do poder-agir-diversamente, pressuposto do juzo de reprovao da culpabilidade,2pressupe num nvel geral uma tomada de posio um tanto problemticaem favor do indeterminismo e num nvel especial uma ousada capacidadepsiquitrica, e tendo em vista o depressivo balano de custos e benefciosda execuo da pena privativa de liberdade, a necessidade teleolgico-racional se fundamenta no altamente controvertido clculo da prevenogeral pela cominao da pena, que se mostra implausvel justamente noscasos mais graves (como o homicdio praticado num estado de emooou paixo contra o parceiro amoroso).3 Se pensarmos na priso preventiva,

    1 A respeito SCHNEMANN, Zum Stellenwert der positiven Generalprvention in einerdualistischen Straftheorie, em SCHNEMANN/V. HIRSCH/JAREBORG (eds.), PositiveGeneralprvention, 1998, p. 109 e ss. (114 e ss.). (N. T.: H verso espanhola Sobrela Crtica a la Teora de la Prevencin General Positiva, em SILVA SNCHEZ [ed.], PolticaCriminal y Nuevo Derecho Penal, Libro Homenaje a Claus Roxin, Barcelona, 1997,p. 89 e ss.)

    2 Mais detalhes em SCHNEMANN, Zum gegenwrtigen Stand der Lehre von derStrafrechtsschuld, in: Festschrift fr Lampe, 2003, p. 537 e ss. (547 e ss.). (N. T.: Hverso espanhola La Culpabilidad: Estado de la Custion, em: SILVA SNCHEZ [ed.],Sobre el Estado de la Teora del Delito, Madrid, 2000, p. 91 e ss.).

    3 Para o estado atual da investigao emprica sobre a preveno especial e geral cf.KAISER, Kriminologie, 3 ed. 1996, p. 258 e ss., 265 e ss.; P.-A. ALBRECHT, Kriminologie,3 ed. 2005, p. 48 e ss., 58 e ss.; STRENG, Strafrechtliche Sanktionen, 2 ed. 2002, p.30 e ss., 34 e ss.

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    que se encontra entre os clssicos instrumentos da justia penal e que,apesar da existncia de modernas alternativas como o monitoramentoeletrnico, at hoje preservada pelos juzes com bastante astcia porcausa da comprovada eficcia em obter coativamente confisses epossibilitar uma transao penal, veremos que j no dia-a-dia de nossajustia penal h algo que pode ser subsumido sob o conceito de torturade GRECO, e esse instrumento usado apenas para a garantir a execuoda pena, algo cuja utilidade social tamanhamente questionvel.

    Em comparao, parece at trivial justificar a tortura para salvarvidas em face do terorrista responsvel. Em primeiro lugar, inexisteprospectivamente qualquer dvida quanto possibilidade de evitao (comoparalelo ao poder-agir-diversamente, necessrio para a pena). Em segundolugar, a contraposio entre o salvamento de um sem-nmero de pessoasinocentes, cujo assassinato planejado pelo clculo misantrpico doterrorista, e a passageira interveno na integridade fsica deste faz comque a anlise custo-benefcio tenha resultado positivo, o que fica aindamais evidente em comparao com os questionveis argumentos que seaceitam tanto para a pena, quanto para a priso preventiva. Se tomarmoscomo ulterior base de comparao o direito de matar em legtima defesaquem est cometendo um roubo, direito esse indiscutidamente reconhecidoem nosso ordenamento jurdico, ou a meno que se faz de passagem nadogmtica do risco permitido, no sentido de que se aceita a morte de milharesde vtimas em razo do interesse no funcionamento do trfego rodado,surge a grave suspeita de que a tese claramente dominante em favor dotabu da tortura para salvar vidas (vide as completas referncias no textode GRECO) no passe de ideologia ou, no caso dos autores que esperamque a proibio abstratamente defendida seja violada em casos deemergncias, com o que acabam em segredo considerando a tortura algocorreto, mesmo de hipocrisia.

    2. Ser essa comparao prima-facie uma reao a uma aporiaocultada pela doutrina dominante com admirvel esforo retrico, ou serela mesma uma falsa intuio capital? compreensvel que, na discussosobre a tortura salvadora, haja uma enorme dificuldade de superar asassociaes com os bestiais pores de tortura dos regimes totalitrios(em que a rigor se perseguiam finalidades diametralmente diversas),razo pela qual a sbria anlise de GRECO se mostra extraordinariamentevaliosa, valor esse que no diminudo pelo fato de que ela acabe, a meujuzo provavelmente sem querer, desconstruindo de modo inevitvel adoutrina dominante at a exposio de seu fundamento ltimo, que decarter religioso.

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    a) GRECO quer refutar a regra da decadncia atribuindo-lhe umacontradio interna, uma vez que a tortura desconsidera de modoabsoluto a vontade do cidado (destruindo, assim, a indispensvel basede legitimidade do estado), de modo que ela no poderia ser justificadafazendo referncia vontade m do autor. Esta objeo faz recordar apesar de que sua finalidade seja exatamente inversa de modosurpreendente as teorias absolutas da pena, que supem deduzir aconseqncia jurdica pena de uma contradio com o ordenamentojurdico implicitamente declarada pelo comportamento do autor ou mesmode uma contradio lgica que se manifesta no prprio comportamento.4Mas supor que exista uma tal contradio , na verdade, um feitio denosso entendimento por meio da linguagem,* produzida por um processode abstrao questionvel e at deformador do fenmeno real: recusar orespeito, por ex., vontade de um terrorista que quer por um motivo ftilassassinar milhes de pessoas, deixando tambm de considerar acorrelata vontade de omitir a ao salvadora juridicamente obrigatria,tem (dito abstratamente) como conseqncia prtica a execuo dessaobrigao jurdica. S se teria uma contradio, se se estivesse violandouma vontade juridicamente merecedora de respeito.5

    b) Com muito menos razo posso reconhecer na recusa regrados custos algo logicamente necessrio. Esta recusa me parece muitomais uma concluso circular. Se per definitionem se fixa um conceito dedignidade humana, segundo o qual no seu bojo no possvel qualquerponderao, est claro que no ocorrer mais ponderao alguma masaqui se v com clareza que um tal conceito s pode ser proposto

    4 Em Aporien der Straftheorie in Philosophie und Literatur, Festschrift fr Lderssen,2002, p. 327 e ss. (329) falei com intenes levemente polmicas na tentativa de sevaler da pena com o mero objetivo de possibilitar uma homoestase hermenutica(N.T.: h traduo para o espanhol em InDret 2/2008 Nr. 531); para uma tentativa derefutar o delito partindo-se dele mesmo, com base no exemplo do furto, cf. KANT, DieMetaphysik der Sitten, 2 ed. 1798, p. 229 e s.; HEGEL, Grundlinien der Philosophie desRechts, 1821, 100; SCHMITZ, Zur Legitimitt der Kriminalstrafe, 2001, p. 116 e ss.* (N. T.): Trata-se de uma aluso a uma famosa passagem do 109 das InvestigaesFilosficas de WITTGENSTEIN.

    5 Ainda que a tortura continua com a peculiariedade de desumanizar de um modoespecfico, a saber dobrando o entendimento e a vontade por meio de uma exploraode um aspecto mais primitivo de nossa condio, qual seja a sensibilidade do corpo dor. Mas como tambm a existncia do prisioneiro reduzida de uma criaturamantida numa jaula, temos na tortura (apenas) um incremento quantitativo, o queno pode legitimar o salto qualitativo para o mundo do absoluto (em forma de umaimponderabilidade), do qual no fazem parte quaisquer coisas terrenas.

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    pressupondo-se uma concepo do absoluto religiosamente fundada, que mesmo absurda face a uma sociedade voltada para as questes finitasdeste mundo e ao direito que a ela se restringe: basta que se extenda ocaso hipottico da bomba relgio, imaginando a situao j no de todofantasiosa em que exista o perigo de uma guerra nuclear que levaria ofim de toda a humanidade,6 e com isso se ver o impressionante paraleloque existe entre a opinio dominante e a teoria absoluta da pena, emespecial reconhecvel na afirmao de IMMANUEL KANT, de que sedesaparecer a justia, no h mais valor algum na existncia de sereshumanos sobre a terra.7

    3. Observe-se que a presente crtica metodolgica opiniodominante no implica uma tomada de posio no que se refere questoem si, o que seria ademais inadequado num breve comentrio. O que meinteressa advertir contra o empobrecimento da anlise jurdica, que, aonegar a existncia do caso extremo, acaba deixando a pessoa que se vdeparada com um tal caso sem qualque