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© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2016 38 LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA: OBSERVAÇÕES SOBRE O ACÓRDÃO “KHLAIFIA E OUTROS CONTRA ITÁLIA” DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM 1 ALEXANDRE GUERREIRO 2 ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA 3 RESUMO Numa decisão recente, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pronunciou-se sobre a detenção de três cidadãos tunisinos num centro de recepção situado em Lampedusa, após terem sido interceptados pelas autoridades italianas quando atravessavam o Mar Mediterrâneo. Este acórdão coloca em relevo a questão da discussão em torno de uma eventual violação do direito à liberdade consagrado no artigo 5.º da CEDH e a violação do princípio da proibição de tratamentos desumanos, previsto no artigo 3.º do mesmo instrumento. Com efeito, assinala-se a importância do acórdão em apreço dado que se assiste à manifestação do direito cosmopolita desde que os beneficiários se encontrem em território onde vigoram instrumentos e princípios de Direitos Internacional Humanitário enquanto factores que concorrem para uma maximização da protecção dos direitos humanos. Todavia, assiste-se a um paradoxo que coloca problemas de difícil resolução: por um lado, a responsabilização por falta de meios humanos, sanitários e de acolhimento digno de pessoas por parte de Estados que se tornam alvos de danos colaterais provocados por situações de crises humanitárias; por outro, o desafio com que se deparam de garantir que um cenário de crise humanitária não atenta contra a dignidade da pessoa humana de pessoas que se encontram em situação natural de fragilidade. Palavras-chave: crise humanitária, responsabilidade do Estado, direito internacional humanitário, direito cosmopolita. Histórico do artigo: recebido em 15-02-2016; aprovado em 27-04-2016; publicado em 03-05-2016. 1 Os autores reservam-se o direito de aplicar a grafia anterior ao Acordo Ortográfico e respectivos protocolos adicionais. 2 Assessor Parlamentar da Assembleia da República e doutorando da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]. 3 Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]. Análise Europeia 1 (2016) 38-59
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LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA · eficaz de garantir o acesso de cidadãos egípcios, líbios e tunisinos a países ou localidades onde pudessem sentir-se protegidos face

Dec 09, 2018

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Page 1: LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA · eficaz de garantir o acesso de cidadãos egípcios, líbios e tunisinos a países ou localidades onde pudessem sentir-se protegidos face

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 38

LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA

OBSERVACcedilOtildeES SOBRE O ACOacuteRDAtildeO ldquoKHLAIFIA E OUTROS CONTRA ITAacuteLIArdquo

DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM1

ALEXANDRE GUERREIRO2

ARTUR FLAMIacuteNIO DA SILVA3

RESUMO

Numa decisatildeo recente o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pronunciou-se sobre a detenccedilatildeo de

trecircs cidadatildeos tunisinos num centro de recepccedilatildeo situado em Lampedusa apoacutes terem sido interceptados

pelas autoridades italianas quando atravessavam o Mar Mediterracircneo Este acoacuterdatildeo coloca em relevo a

questatildeo da discussatildeo em torno de uma eventual violaccedilatildeo do direito agrave liberdade consagrado no artigo 5ordm

da CEDH e a violaccedilatildeo do princiacutepio da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos previsto no artigo 3ordm do

mesmo instrumento Com efeito assinala-se a importacircncia do acoacuterdatildeo em apreccedilo dado que se assiste agrave

manifestaccedilatildeo do direito cosmopolita desde que os beneficiaacuterios se encontrem em territoacuterio onde vigoram

instrumentos e princiacutepios de Direitos Internacional Humanitaacuterio enquanto factores que concorrem para

uma maximizaccedilatildeo da protecccedilatildeo dos direitos humanos Todavia assiste-se a um paradoxo que coloca

problemas de difiacutecil resoluccedilatildeo por um lado a responsabilizaccedilatildeo por falta de meios humanos sanitaacuterios e

de acolhimento digno de pessoas por parte de Estados que se tornam alvos de danos colaterais

provocados por situaccedilotildees de crises humanitaacuterias por outro o desafio com que se deparam de garantir que

um cenaacuterio de crise humanitaacuteria natildeo atenta contra a dignidade da pessoa humana de pessoas que se

encontram em situaccedilatildeo natural de fragilidade

Palavras-chave crise humanitaacuteria responsabilidade do Estado direito internacional humanitaacuterio direito

cosmopolita

Histoacuterico do artigo recebido em 15-02-2016 aprovado em 27-04-2016 publicado em 03-05-2016 1 Os autores reservam-se o direito de aplicar a grafia anterior ao Acordo Ortograacutefico e respectivos

protocolos adicionais 2 Assessor Parlamentar da Assembleia da Repuacuteblica e doutorando da Faculdade de Direito da Universidade

Nova de Lisboa Lisboa Portugal E-mail alexandretguerreirogmailcom 3 Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Lisboa Portugal

E-mail arturmicaelsilvagmailcom

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ABSTRACT

Lampedusa and the paradox of human dignity commentary to the judgment delivered by the European Court

of Human Rights in the case of Khlaifa and Others v Italy In a recent judgment the European Court of

Human Rights has decided on the detention of three Tunisian citizens in a reception centre on Lampedusa

after being intercepted by the Italian authorities after they left Tunisia by sea in September 2011Among

other aspects this decision highlights the debate around the alleged violation of both the right to liberty

enshrined in article 5 of the ECHR and the violation of the prohibition of inhuman or degrading treatment

set in article 3 of the same Convention The importance of the present decision should be emphasized as it

stands for the expression of cosmopolitan law whenever those who should take advantage of it are in a

territory where instruments and principles of International Humanitarian Law are in force maximizing the

protection of human rights Nevertheless a paradox emerges on the one hand liability for lack of human

resources sanitary facilities and decent detention conditions by countries that become targets of collateral

damages caused by humanitarian crisis on the other hand the challenge faced by the same countries in

order to guarantee that a humanitarian crisis would not have an adverse effect to the human dignity of

those who are in dire situations

Keywords humanitarian crisis State liability International Humanitarian Law cosmopolitan law

_________________________________________________________________________________________________________________

1 INTRODUCcedilAtildeO

O presente trabalho tem por objecto um comentaacuterio a uma decisatildeo que versa

sobre um tema actual e interessante Com efeito com o crescente aumento de

migraccedilatildeo oriunda de territoacuterios em cenaacuterio de Guerra comeccedilam a revelar-se problemas

juriacutedicos que colocam em evidecircncia o contexto poacutes-nacional 4 decorrente da

globalizaccedilatildeo 5 A macro-problemaacutetica que aqui analisaremos e criticamos pode ser

sintetizada da seguinte forma (i) por um lado os Estados encontram-se obrigados agrave

protecccedilatildeo dos Direitos Humanos e ao cumprimento das suas obrigaccedilotildees internacionais

nomeadamente corporizadas na Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)

(ii) por outro lado ciosos da sua soberania pretendem manter autonomia na

4 Cfr por todos HABERMAS (1998 pp 65 e ss)

5 Cfr sobre a abrangente bibliografia o elucidativo texto de HELD (1995 pp 267 e ss)

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concretizaccedilatildeo destas disposiccedilotildees aplicando com flexibilidade as regras previstas na

CEDH6

Neste contexto encontra-se precisamente em discussatildeo ndash num sentido mais

especulativo ndash como deve ser encarado este pluralismo entre as ordens nacionais e a

ordem normativa cosmopolita que deriva da CEDH 7 Com efeito com a presente

decisatildeo o TEDH coloca em evidecircncia a necessidade de discutir se num contexto de um

mundo cada vez mais globalizado eacute possiacutevel a ldquoconstruccedilatildeo de um constitucionalismo

estadual para o Seacuteculo XXI com base na excessiva valorizaccedilatildeo do Estado de direito - e

em particular dos direitos fundamentais e da jurisdiccedilatildeo constitucional - em detrimento

do princiacutepio democraacuteticordquo (Medeiros 2015 p 97)

Eacute este portanto o pressuposto que estaraacute subjacente agrave nossa anaacutelise tendo

somente como objectivo estudar de forma criacutetica como encarou o TEDH a

possibilidade de flexibilizaccedilatildeo da dignidade humana num cenaacuterio de evidente Estado

excepccedilatildeo 8

2 ENQUADRAMENTO FAacuteCTICO

Em Janeiro de 2011 a intensificaccedilatildeo da revolta popular na Tuniacutesia levou agrave queda

do regime ditatorial do paiacutes liderado por Zine El Abidine Ben Ali provocando um efeito

mimeacutetico que inspiraria a realizaccedilatildeo de acccedilotildees de insurreiccedilatildeo em diversos paiacuteses

magrebino-aacuterabes num momento da Histoacuteria que ficou baptizado de ldquoPrimavera

Aacuteraberdquo910e que ainda hoje produz efeitos em paiacuteses como a Siacuteria11

6 Natildeo trataremos contudo neste texto da interessante questatildeo que envolve a margem livre de apreciaccedilatildeo

dos Estados na interpretaccedilatildeo as normas da CEDH Sobre este problema com indicaccedilotildees cfr MEDEIROS

(2015 pp 347 e ss) cfr igualmente KRISCH (2010 pp 109 e ss) LEGG (2012 pp 32 e ss) TOMUSCHAT

(2014 pp 107 e ss) LORENZ Nina-Louisa Arold et al (2013 pp 69 e ss) 7 Cfr por todos BESSON (2014 pp 170 e ss) Em geral sobre o pluralismo juriacutedico num quadro poacutes-

nacional entre outros cfr BERMAN (2012 pp 141 e ss) 8 Sobre este cfr por exemplo o incontornaacutevel texto de AGAMBEN (2005 pp 1 e ss)

9 Relativamente aos antecedentes da Primavera Aacuterabe e ao impacto que teve na democratizaccedilatildeo das

sociedades muccedilulmanas cfr ESPOSITO John L et al (2016 pp 1-25) Sobre a utilizaccedilatildeo das redes sociais

na Primavera Aacuterabe cfr JAMALI (2014) 10

Para uma anaacutelise aos efeitos da Primavera Aacuterabe na Liacutebia e a forma como a revolta conduziu agrave abertura

de investigaccedilotildees no Tribunal Penal Internacional contra figuras do aparelho de Estado liacutebio cfr

GUERREIRO (2012) KERSTEN (2014 pp 188-207) 11

Para uma comparaccedilatildeo dos resultados da Primavera Aacuterabe no Egipto na Tuniacutesia e na Siacuteria cfr SIKA

(2014 pp 73-97)

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No caso especiacutefico da Tuniacutesia o regime autoritaacuterio que vigorou no paiacutes durante

cinco deacutecadas agravado pela perpetuaccedilatildeo de Ben Ali no poder desde 1987 com

dividendos econoacutemicos para si e para o seu ciacuterculo ao mesmo tempo que muitos

tunisinos reclamavam melhores condiccedilotildees de vida e de participaccedilatildeo na poliacutetica deu

iniacutecio a um movimento de revolta popular rebentou quando a populaccedilatildeo se revoltou

contra a morte de Mohamed Bouazizi um comerciante de 26 anos que se auto-imolou

como protesto pela perseguiccedilatildeo encetada pelo Governo O ecircxito alcanccedilado motivou o

baptismo da revolta com a expressatildeo ldquoRevoluccedilatildeo de Jasmimrdquo em homenagem agrave flor

vendida nas lojas de rua12

Neste quadro desde 2011 que se veio a assistir a um fluxo migratoacuterio sem

precedentes para o continente europeu com forte incidecircncia de actividade no Mar

Mediterracircneo uma vez que se tratava do meio aparentemente menos oneroso e mais

eficaz de garantir o acesso de cidadatildeos egiacutepcios liacutebios e tunisinos a paiacuteses ou

localidades onde pudessem sentir-se protegidos face agrave queda das instituiccedilotildees nos

respectivos paiacuteses e a crescente anarquia que se veio a consolidar nos seus Estados de

origem13

No passado dia 1 de Setembro de 2015 o Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem14 pronunciou-se sobre o pedido formalizado por trecircs cidadatildeos tunisinos contra

o Estado italiano a 9 de Marccedilo de 2012 junto do Tribunal localizado em Estrasburgo

12

Sobre os antecedentes da ldquoRevoluccedilatildeo de Jasmimrdquo e o poacutes-Primavera Aacuterabe na Tuniacutesia cfr MARCOVITZ

(2014 pp 26-38) ESPOSITO John L et al (2016 pp 174-201) 13

A este respeito e agraves ameaccedilas de seguranccedila sobre os paiacuteses do Mediterracircneo decorrentes da Primavera

Aacuterabe cfr BOENING (2014 em especial pp 11-25) 14

Podemos questionar a terminologia adoptada em liacutengua portuguesa tanto para o Tribunal como para a

Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem mais concretamente sobre a referecircncia a ldquoDireitos do

Homemrdquo ou ldquoDireitos Humanosrdquo Em francecircs a designaccedilatildeo oficial eacute ldquoDroits de lrsquoHommerdquo mas em inglecircs e

em castelhano o conceito eacute mais moderno e mais amplo ldquoHuman Rightsrdquo e ldquoDerechos Humanosrdquo

respectivamente A tendecircncia portuguesa para seguir a adaptaccedilatildeo do francecircs natildeo eacute recente tendo as suas

origens no facto de ateacute ao terceiro quartel do seacuteculo XX Portugal manifestar uma aproximaccedilatildeo e uma

afinidade maior com a cultura e poliacutetica francesas A tiacutetulo de exemplo relativamente agrave ldquoDeclaraccedilatildeo

Universal dos Direitos do Homemrdquo o crescente reconhecimento de direitos agraves mulheres e a consequente

intenccedilatildeo de eliminar factores passiacuteveis de prolongarem a discriminaccedilatildeo com base no geacutenero precipitaram

a revisatildeo da terminologia em castelhano mais concretamente de ldquoDerechos del Hombrerdquo para ldquoDerechos

Humanosrdquo em 1952 por via da Resoluccedilatildeo 548 (VI) da Assembleia-Geral das Naccedilotildees Unidas Portugal

nunca procedeu oficialmente agrave mesma alteraccedilatildeo assistindo-se poreacutem a uma referecircncia oficial ora a

ldquoDireitos do Homemrdquo ora a ldquoDireitos Humanosrdquo Com efeito a Declaraccedilatildeo tem a terminologia moderna

reconhecida por oacutergatildeos de soberania como a Assembleia da Repuacuteblica o que natildeo se estende

obrigatoriamente aos restantes

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por factos ocorridos em 201115 numa decisatildeo com impacto consideraacutevel na protecccedilatildeo

dos Direitos Humanos que importa conhecer A decisatildeo que comentamos permite por

um lado discutir os problemas que envolvem a migraccedilatildeo de cidadatildeos de paiacuteses em

cenaacuterio de guerra e por outro permite discutir elementos que se relacionam com a

aplicaccedilatildeo do Direito que deriva da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos no

espaccedilo cosmopolita dos Estados Contratantes

Segundo a mateacuteria sujeita a apreciaccedilatildeo os trecircs requerentes com idades

compreendidas entre os 23 e os 28 anos agrave data da ocorrecircncia dos factos foram

interceptados pela guarda-costeira italiana quando atravessavam o Mar Mediterracircneo

numa embarcaccedilatildeo juntamente com outras pessoas a 16 e 17 de Setembro de 2011

sendo acompanhados ateacute um centro de acolhimento sito na ilha de Lampedusa

Uma vez chegados ao Centro de Contrada Imbriacola foram-lhes prestados os

primeiros socorros e as autoridades procederam agrave recolha da sua identificaccedilatildeo sendo

finalmente encaminhados para um sector do Centro reservado a cidadatildeos tunisinos

adultos

Todavia os requerentes alegam terem sido instalados num espaccedilo sobrelotado

e obrigados a dormir no chatildeo dada a insuficiecircncia de camas para dormir e da maacute

qualidade dos colchotildees As refeiccedilotildees eram tomadas no espaccedilo exterior tendo de se

sentar no chatildeo Todo e qualquer contacto com o exterior era impossiacutevel e o centro

mantinha um sistema de vigilacircncia permanente garantido pelas forccedilas de seguranccedila

A 20 de Setembro de 2011 os migrantes ali detidos organizaram um motim que

degenerou num incecircndio no interior do centro que forccedilou as autoridades transalpinas

a transferirem os requerentes para o parque desportivo de Lampedusa com o fim de ali

passarem a noite No dia seguinte os requerentes juntamente com outros migrantes

lograram romper a barreira de vigilacircncia montada pelas forccedilas de seguranccedila e

chegaram agrave vila de Lampedusa

Uma vez aqui os requerentes juntamente com cerca de 1800 migrantes

organizaram manifestaccedilotildees nas ruas da ilha tendo sido interpelados pelas autoridades

15

O processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 1648312) estaacute disponiacutevel para consulta na paacutegina do

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2015)

Khlaifia et autres c Italie [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

httphudocechrcoeint

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policiais detidos e reconduzidos ao centro de acolhimento junto ao aeroporto de

Lampedusa A 22 de Setembro de 2011 os requerentes embarcaram com destino a

Palermo tendo sido transferidos para navios ali atracados reagrupados nos espaccedilos de

restauraccedilatildeo sem poderem aceder agraves cabines e segundo os mesmos natildeo tiveram outra

alternativa a natildeo ser dormir no chatildeo e esperarem vaacuterias horas para terem acesso agraves

instalaccedilotildees sanitaacuterias dispondo de dois periacuteodos diaacuterios em que podiam deslocar-se

aos varandins do navio Alegaram ter sido insultados e maltratados pelos poliacutecias que

os vigiavam e natildeo terem recebido qualquer tipo de informaccedilatildeo por parte das

autoridades

Permaneceram nesta situaccedilatildeo ateacute aos dias 27 e 29 de Setembro de 2011 datas

em que foram transferidos de Palermo para a Tuniacutesia Durante a permanecircncia nestes

navios os migrantes recebidos pelo cocircnsul da Tuniacutesia e indicaram os seus dados

pessoais por forma a poder formalizar o processo de expatriaccedilatildeo consagrado nos

acordos italo-tunisinos concluiacutedos a 5 de Abril de 2011

Antes da propositura da acccedilatildeo junto do TEDH associaccedilotildees de combate ao

racismo formalizaram uma queixa-crime no Tribunal de Palermo por abuso de funccedilotildees

e detenccedilatildeo ilegal O processo foi arquivado a 3 de Abril de 2012 e o Juiz de Instruccedilatildeo

Criminal do Tribunal de Palermo confirmou esta decisatildeo a 1 de Junho de 2012 A

fundamentaccedilatildeo do JIC incidiu no facto de o Centro de Contrada Imbriacola ter o

objectivo de acolher de auxiliar e fazer face agraves necessidades higieacutenicas dos migrantes

pelo tempo estritamente necessaacuterio antes de encaminhaacute-los para um centro de

identificaccedilatildeo e expulsatildeo ou de tomar decisotildees em seu favor podendo ainda beneficiar

de assistecircncia juriacutedica e obter informaccedilotildees quanto aos procedimentos a tomarem para

darem iniacutecio a um pedido de asilo

Apesar de reconhecer uma certa ldquotendecircncia forccedilada dos requisitos da

intermediaccedilatildeo e da restriccedilatildeo temporaacuteria causada por uma multiplicidade de factores

reconheceu o JIC que estaacute excluiacuteda a ilicitude de tal actuaccedilatildeordquo O JIC realccedilou o facto de

o incecircndio causado pelos tunisinos no Centro ter impossibilitado o Estado italiano de

satisfazer as exigecircncias de acolhimento e resgate dos migrantes situaccedilatildeo que se

agravou e atentou contra a seguranccedila da populaccedilatildeo local quando os cidadatildeos

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tunisinos ameaccedilaram explodir cilindros de gaacutes durante a manifestaccedilatildeo que

organizaram no centro da Vila de Lampedusa o que precipitou a tomada de uma

decisatildeo urgente sustentada no interesse puacuteblico a qual poreacutem natildeo provocou nenhum

ldquodano injustordquo

Relativamente agrave alegada afectaccedilatildeo das condiccedilotildees de sauacutede o JIC salientou que

nenhuma das pessoas a bordo dos navios havia formulado um pedido de asilo e que

quem se encontrava no Centro de Acolhimento antes do incecircndio e formalizou o

pedido fora acompanhado para os centros de Trapani Caltanissetta e Foggia

acrescentando ainda que os menores que se encontravam sozinhos e as graacutevidas

encontravam-se em locais proacuteprios e que todos receberam atendimento meacutedico aacutegua

quente electricidade alimentos e bebidas quentes

Atestou-se ainda que um Deputado do Parlamento italiano visitou os navios

aportados e constatou que se encontravam em boas condiccedilotildees de sauacutede dispondo de

acesso agraves cabines e ainda de locais de culto proacuteprios Foi ainda apurado que o juiz de

paz de Agrigente anulou dois decretos de expatriaccedilatildeo pelo facto de as autoridades

italianas terem tomado 10 e 6 dias respectivamente a decidir numa questatildeo que

afectou a liberdade do destinataacuterio o que por se traduzir numa detenccedilatildeo de facto do

migrante constitui uma violaccedilatildeo agrave Constituiccedilatildeo

Natildeo obstante a decisatildeo e a fundamentaccedilatildeo do poder judicial transalpino o

TEDH condenou o Estado italiano ao pagamento de uma indemnizaccedilatildeo por danos natildeo

patrimoniais no valor de euro10000 a cada um dos requerentes e ao pagamento de

euro934451 pelos trecircs a tiacutetulo de custas e despesas processuais

3 FUNDAMENTACcedilAtildeO DA DECISAtildeO

O colectivo de juiacutezes do TEDH condenou a Itaacutelia por violaccedilatildeo de seis disposiccedilotildees

consagradas na Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos em trecircs verificou-se

unanimidade entre os magistrados nas outras trecircs maioria

Em primeiro lugar o Tribunal apurou que os requerentes natildeo eram livres de

abandonar quer o Centro de Acolhimento quer posteriormente os navios para onde

foram transferidos e que foram designados como uma ldquoextensatildeo do Centro de

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Acolhimentordquo Foram sujeitos a vigilacircncia constante pela poliacutecia e proibidos de

comunicarem com o exterior Face ao exposto entendeu-se ter sido violado o nordm 1 do

artigo 5ordm da CEDH (direito agrave liberdade e agrave seguranccedila) 16

Ainda que este preceito permita que os Estados restrinjam a liberdade de

estrangeiros para fins de controlos migratoacuterios qualquer privaccedilatildeo de liberdade deve

decorrer da aplicaccedilatildeo de uma base legal interna por questotildees de seguranccedila juriacutedica o

que natildeo se verificava no ordenamento juriacutedico italiano onde inexistia qualquer preceito

que expressamente reconhecesse a detenccedilatildeo de migrantes num Centro de

Acolhimento Deste modo ainda que vigorasse um acordo bilateral entre a Itaacutelia e a

Tuniacutesia os migrantes natildeo poderiam prever as consequecircncias de um acordo que natildeo foi

tornado puacuteblico e natildeo puderam beneficiar de protecccedilatildeo contra o tratamento arbitraacuterio

Paralelamente ainda que o Governo italiano tenha emitido decisotildees de

extradiccedilatildeo contra os requerentes os fundamentos que justificaram a sua detenccedilatildeo natildeo

soacute natildeo constaram de qualquer documento como natildeo foram os mesmos notificados ateacute

ao repatriamento para a Tuniacutesia Assim entendeu o Tribunal que se verificou uma

violaccedilatildeo do nordm 2 do artigo 5ordm da CEDH (direito a ser-se informado das razotildees da prisatildeo

no mais breve prazo)

Como consequecircncia do facto de natildeo terem sido informados no mais breve

prazo das razotildees da sua detenccedilatildeo natildeo puderam os requerentes em momento algum

questionar a legalidade da sua privaccedilatildeo de liberdade Por este motivo o Tribunal

concluiu pela verificaccedilatildeo da violaccedilatildeo do nordm 4 do artigo 5ordm da CEDH (direito a avaliaccedilatildeo

da legalidade da detenccedilatildeo)

Assistiu-se ainda a uma violaccedilatildeo ao artigo 4ordm do Protocolo nordm 4 da CEDH

(proibiccedilatildeo de expulsatildeo colectiva de estrangeiros) Com efeito o TEDH enfatizou que

ainda que os requerentes tenham sido notificados individualmente da pena de

repulsatildeo natildeo foram inquiridos individualmente e as decisotildees que os abrangeram

continham a mesma redacccedilatildeo sem referecircncia agrave situaccedilatildeo pessoal de cada um A

natureza da expulsatildeo colectiva dos requerentes foi confirmada pelo facto de os

acordos bilaterais com a Tuniacutesia preverem a repatriaccedilatildeo de migrantes tunisinos ilegais

16

Sobre este artigo da CEDH desenvolvidamente e por exemplo HARRIS David et al (2014 pp 287 e ss)

e MOWBRAY (2012 pp 245 e ss)

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ao abrigo de procedimentos simplificados com base na simples identificaccedilatildeo das

pessoas visadas pelas autoridades consulares tunisinas

Acresce que os requerentes natildeo beneficiaram de qualquer meio para reclamar

das condiccedilotildees de detenccedilatildeo no Centro de Acolhimento uma vez que um recurso para

um magistrado apenas poderia dizer respeito agrave legalidade do seu repatriamento para a

Tuniacutesia o que viola o disposto no artigo 13ordm da CEDH (direito a um recurso efectivo) e

conjuntamente no artigo 3ordm do Protocolo nordm 4 (proibiccedilatildeo de expulsatildeo de nacionais) O

facto de o recurso natildeo produzir efeitos suspensivos constitui uma violaccedilatildeo ao artigo

13ordm em conjunto com o artigo 4ordm do Protocolo nordm 4

Finalmente o Tribunal apreciou ainda uma eventual violaccedilatildeo ao artigo 3ordm da

CEDH (proibiccedilatildeo de tortura e tratamentos desumanos) Os magistrados tiveram em

consideraccedilatildeo o facto de a Primavera Aacuterabe em particular os acontecimentos na Tuniacutesia

e na Liacutebia ter produzido um impacto negativo sobre a ilha de Lampedusa que se

deparou com um fluxo migratoacuterio por via mariacutetima extraordinaacuterio o que levou o

Estado italiano a decretar o estado de emergecircncia humanitaacuteria e teve ainda em

atenccedilatildeo o esforccedilo das autoridades em acomodarem os migrantes apoacutes o motim de 20

de Setembro de 2011

Todavia o TEDH sublinhou que alguns relatoacuterios publicados entre os quais os

da Comissatildeo Extraordinaacuteria do Senado italiano e da Amnistia Internacional atestam

que o Centro de Acolhimento de Contrada Imbriacola deparava-se com seacuterios

problemas de sobrelotaccedilatildeo (migrantes que dormiam nos corredores) higiene (cheiros

e serviccedilos sanitaacuterios inutilizaacuteveis) e ausecircncia de contacto com o exterior O Tribunal

relevou o facto de os requerentes se encontrarem vulneraacuteveis apoacutes a realizaccedilatildeo da

travessia mariacutetima Por este motivo o Tribunal concluiu que mesmo apesar de terem

permanecido detidos por quatro dias a sua detenccedilatildeo nas condiccedilotildees referidas diminuiu

a sua dignidade humana ultrapassando a situaccedilatildeo decorrente do sofrimento resultante

da detenccedilatildeo constituindo antes tratamento desumano que viola o artigo 3ordm da CEDH

Este uacuteltimo ponto natildeo obteve unanimidade Destaque-se por exemplo a

opiniatildeo dos juiacutezes Andraacutes Sajoacute e Nebojša Vučinić que aleacutem de considerarem que os

mecanismos de recurso encontravam-se facilmente disponiacuteveis sublinharam que a

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duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 48

tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 49

portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 50

sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 51

Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

httpwwwunhcrorg

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ABSTRACT

Lampedusa and the paradox of human dignity commentary to the judgment delivered by the European Court

of Human Rights in the case of Khlaifa and Others v Italy In a recent judgment the European Court of

Human Rights has decided on the detention of three Tunisian citizens in a reception centre on Lampedusa

after being intercepted by the Italian authorities after they left Tunisia by sea in September 2011Among

other aspects this decision highlights the debate around the alleged violation of both the right to liberty

enshrined in article 5 of the ECHR and the violation of the prohibition of inhuman or degrading treatment

set in article 3 of the same Convention The importance of the present decision should be emphasized as it

stands for the expression of cosmopolitan law whenever those who should take advantage of it are in a

territory where instruments and principles of International Humanitarian Law are in force maximizing the

protection of human rights Nevertheless a paradox emerges on the one hand liability for lack of human

resources sanitary facilities and decent detention conditions by countries that become targets of collateral

damages caused by humanitarian crisis on the other hand the challenge faced by the same countries in

order to guarantee that a humanitarian crisis would not have an adverse effect to the human dignity of

those who are in dire situations

Keywords humanitarian crisis State liability International Humanitarian Law cosmopolitan law

_________________________________________________________________________________________________________________

1 INTRODUCcedilAtildeO

O presente trabalho tem por objecto um comentaacuterio a uma decisatildeo que versa

sobre um tema actual e interessante Com efeito com o crescente aumento de

migraccedilatildeo oriunda de territoacuterios em cenaacuterio de Guerra comeccedilam a revelar-se problemas

juriacutedicos que colocam em evidecircncia o contexto poacutes-nacional 4 decorrente da

globalizaccedilatildeo 5 A macro-problemaacutetica que aqui analisaremos e criticamos pode ser

sintetizada da seguinte forma (i) por um lado os Estados encontram-se obrigados agrave

protecccedilatildeo dos Direitos Humanos e ao cumprimento das suas obrigaccedilotildees internacionais

nomeadamente corporizadas na Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)

(ii) por outro lado ciosos da sua soberania pretendem manter autonomia na

4 Cfr por todos HABERMAS (1998 pp 65 e ss)

5 Cfr sobre a abrangente bibliografia o elucidativo texto de HELD (1995 pp 267 e ss)

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concretizaccedilatildeo destas disposiccedilotildees aplicando com flexibilidade as regras previstas na

CEDH6

Neste contexto encontra-se precisamente em discussatildeo ndash num sentido mais

especulativo ndash como deve ser encarado este pluralismo entre as ordens nacionais e a

ordem normativa cosmopolita que deriva da CEDH 7 Com efeito com a presente

decisatildeo o TEDH coloca em evidecircncia a necessidade de discutir se num contexto de um

mundo cada vez mais globalizado eacute possiacutevel a ldquoconstruccedilatildeo de um constitucionalismo

estadual para o Seacuteculo XXI com base na excessiva valorizaccedilatildeo do Estado de direito - e

em particular dos direitos fundamentais e da jurisdiccedilatildeo constitucional - em detrimento

do princiacutepio democraacuteticordquo (Medeiros 2015 p 97)

Eacute este portanto o pressuposto que estaraacute subjacente agrave nossa anaacutelise tendo

somente como objectivo estudar de forma criacutetica como encarou o TEDH a

possibilidade de flexibilizaccedilatildeo da dignidade humana num cenaacuterio de evidente Estado

excepccedilatildeo 8

2 ENQUADRAMENTO FAacuteCTICO

Em Janeiro de 2011 a intensificaccedilatildeo da revolta popular na Tuniacutesia levou agrave queda

do regime ditatorial do paiacutes liderado por Zine El Abidine Ben Ali provocando um efeito

mimeacutetico que inspiraria a realizaccedilatildeo de acccedilotildees de insurreiccedilatildeo em diversos paiacuteses

magrebino-aacuterabes num momento da Histoacuteria que ficou baptizado de ldquoPrimavera

Aacuteraberdquo910e que ainda hoje produz efeitos em paiacuteses como a Siacuteria11

6 Natildeo trataremos contudo neste texto da interessante questatildeo que envolve a margem livre de apreciaccedilatildeo

dos Estados na interpretaccedilatildeo as normas da CEDH Sobre este problema com indicaccedilotildees cfr MEDEIROS

(2015 pp 347 e ss) cfr igualmente KRISCH (2010 pp 109 e ss) LEGG (2012 pp 32 e ss) TOMUSCHAT

(2014 pp 107 e ss) LORENZ Nina-Louisa Arold et al (2013 pp 69 e ss) 7 Cfr por todos BESSON (2014 pp 170 e ss) Em geral sobre o pluralismo juriacutedico num quadro poacutes-

nacional entre outros cfr BERMAN (2012 pp 141 e ss) 8 Sobre este cfr por exemplo o incontornaacutevel texto de AGAMBEN (2005 pp 1 e ss)

9 Relativamente aos antecedentes da Primavera Aacuterabe e ao impacto que teve na democratizaccedilatildeo das

sociedades muccedilulmanas cfr ESPOSITO John L et al (2016 pp 1-25) Sobre a utilizaccedilatildeo das redes sociais

na Primavera Aacuterabe cfr JAMALI (2014) 10

Para uma anaacutelise aos efeitos da Primavera Aacuterabe na Liacutebia e a forma como a revolta conduziu agrave abertura

de investigaccedilotildees no Tribunal Penal Internacional contra figuras do aparelho de Estado liacutebio cfr

GUERREIRO (2012) KERSTEN (2014 pp 188-207) 11

Para uma comparaccedilatildeo dos resultados da Primavera Aacuterabe no Egipto na Tuniacutesia e na Siacuteria cfr SIKA

(2014 pp 73-97)

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No caso especiacutefico da Tuniacutesia o regime autoritaacuterio que vigorou no paiacutes durante

cinco deacutecadas agravado pela perpetuaccedilatildeo de Ben Ali no poder desde 1987 com

dividendos econoacutemicos para si e para o seu ciacuterculo ao mesmo tempo que muitos

tunisinos reclamavam melhores condiccedilotildees de vida e de participaccedilatildeo na poliacutetica deu

iniacutecio a um movimento de revolta popular rebentou quando a populaccedilatildeo se revoltou

contra a morte de Mohamed Bouazizi um comerciante de 26 anos que se auto-imolou

como protesto pela perseguiccedilatildeo encetada pelo Governo O ecircxito alcanccedilado motivou o

baptismo da revolta com a expressatildeo ldquoRevoluccedilatildeo de Jasmimrdquo em homenagem agrave flor

vendida nas lojas de rua12

Neste quadro desde 2011 que se veio a assistir a um fluxo migratoacuterio sem

precedentes para o continente europeu com forte incidecircncia de actividade no Mar

Mediterracircneo uma vez que se tratava do meio aparentemente menos oneroso e mais

eficaz de garantir o acesso de cidadatildeos egiacutepcios liacutebios e tunisinos a paiacuteses ou

localidades onde pudessem sentir-se protegidos face agrave queda das instituiccedilotildees nos

respectivos paiacuteses e a crescente anarquia que se veio a consolidar nos seus Estados de

origem13

No passado dia 1 de Setembro de 2015 o Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem14 pronunciou-se sobre o pedido formalizado por trecircs cidadatildeos tunisinos contra

o Estado italiano a 9 de Marccedilo de 2012 junto do Tribunal localizado em Estrasburgo

12

Sobre os antecedentes da ldquoRevoluccedilatildeo de Jasmimrdquo e o poacutes-Primavera Aacuterabe na Tuniacutesia cfr MARCOVITZ

(2014 pp 26-38) ESPOSITO John L et al (2016 pp 174-201) 13

A este respeito e agraves ameaccedilas de seguranccedila sobre os paiacuteses do Mediterracircneo decorrentes da Primavera

Aacuterabe cfr BOENING (2014 em especial pp 11-25) 14

Podemos questionar a terminologia adoptada em liacutengua portuguesa tanto para o Tribunal como para a

Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem mais concretamente sobre a referecircncia a ldquoDireitos do

Homemrdquo ou ldquoDireitos Humanosrdquo Em francecircs a designaccedilatildeo oficial eacute ldquoDroits de lrsquoHommerdquo mas em inglecircs e

em castelhano o conceito eacute mais moderno e mais amplo ldquoHuman Rightsrdquo e ldquoDerechos Humanosrdquo

respectivamente A tendecircncia portuguesa para seguir a adaptaccedilatildeo do francecircs natildeo eacute recente tendo as suas

origens no facto de ateacute ao terceiro quartel do seacuteculo XX Portugal manifestar uma aproximaccedilatildeo e uma

afinidade maior com a cultura e poliacutetica francesas A tiacutetulo de exemplo relativamente agrave ldquoDeclaraccedilatildeo

Universal dos Direitos do Homemrdquo o crescente reconhecimento de direitos agraves mulheres e a consequente

intenccedilatildeo de eliminar factores passiacuteveis de prolongarem a discriminaccedilatildeo com base no geacutenero precipitaram

a revisatildeo da terminologia em castelhano mais concretamente de ldquoDerechos del Hombrerdquo para ldquoDerechos

Humanosrdquo em 1952 por via da Resoluccedilatildeo 548 (VI) da Assembleia-Geral das Naccedilotildees Unidas Portugal

nunca procedeu oficialmente agrave mesma alteraccedilatildeo assistindo-se poreacutem a uma referecircncia oficial ora a

ldquoDireitos do Homemrdquo ora a ldquoDireitos Humanosrdquo Com efeito a Declaraccedilatildeo tem a terminologia moderna

reconhecida por oacutergatildeos de soberania como a Assembleia da Repuacuteblica o que natildeo se estende

obrigatoriamente aos restantes

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por factos ocorridos em 201115 numa decisatildeo com impacto consideraacutevel na protecccedilatildeo

dos Direitos Humanos que importa conhecer A decisatildeo que comentamos permite por

um lado discutir os problemas que envolvem a migraccedilatildeo de cidadatildeos de paiacuteses em

cenaacuterio de guerra e por outro permite discutir elementos que se relacionam com a

aplicaccedilatildeo do Direito que deriva da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos no

espaccedilo cosmopolita dos Estados Contratantes

Segundo a mateacuteria sujeita a apreciaccedilatildeo os trecircs requerentes com idades

compreendidas entre os 23 e os 28 anos agrave data da ocorrecircncia dos factos foram

interceptados pela guarda-costeira italiana quando atravessavam o Mar Mediterracircneo

numa embarcaccedilatildeo juntamente com outras pessoas a 16 e 17 de Setembro de 2011

sendo acompanhados ateacute um centro de acolhimento sito na ilha de Lampedusa

Uma vez chegados ao Centro de Contrada Imbriacola foram-lhes prestados os

primeiros socorros e as autoridades procederam agrave recolha da sua identificaccedilatildeo sendo

finalmente encaminhados para um sector do Centro reservado a cidadatildeos tunisinos

adultos

Todavia os requerentes alegam terem sido instalados num espaccedilo sobrelotado

e obrigados a dormir no chatildeo dada a insuficiecircncia de camas para dormir e da maacute

qualidade dos colchotildees As refeiccedilotildees eram tomadas no espaccedilo exterior tendo de se

sentar no chatildeo Todo e qualquer contacto com o exterior era impossiacutevel e o centro

mantinha um sistema de vigilacircncia permanente garantido pelas forccedilas de seguranccedila

A 20 de Setembro de 2011 os migrantes ali detidos organizaram um motim que

degenerou num incecircndio no interior do centro que forccedilou as autoridades transalpinas

a transferirem os requerentes para o parque desportivo de Lampedusa com o fim de ali

passarem a noite No dia seguinte os requerentes juntamente com outros migrantes

lograram romper a barreira de vigilacircncia montada pelas forccedilas de seguranccedila e

chegaram agrave vila de Lampedusa

Uma vez aqui os requerentes juntamente com cerca de 1800 migrantes

organizaram manifestaccedilotildees nas ruas da ilha tendo sido interpelados pelas autoridades

15

O processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 1648312) estaacute disponiacutevel para consulta na paacutegina do

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2015)

Khlaifia et autres c Italie [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

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policiais detidos e reconduzidos ao centro de acolhimento junto ao aeroporto de

Lampedusa A 22 de Setembro de 2011 os requerentes embarcaram com destino a

Palermo tendo sido transferidos para navios ali atracados reagrupados nos espaccedilos de

restauraccedilatildeo sem poderem aceder agraves cabines e segundo os mesmos natildeo tiveram outra

alternativa a natildeo ser dormir no chatildeo e esperarem vaacuterias horas para terem acesso agraves

instalaccedilotildees sanitaacuterias dispondo de dois periacuteodos diaacuterios em que podiam deslocar-se

aos varandins do navio Alegaram ter sido insultados e maltratados pelos poliacutecias que

os vigiavam e natildeo terem recebido qualquer tipo de informaccedilatildeo por parte das

autoridades

Permaneceram nesta situaccedilatildeo ateacute aos dias 27 e 29 de Setembro de 2011 datas

em que foram transferidos de Palermo para a Tuniacutesia Durante a permanecircncia nestes

navios os migrantes recebidos pelo cocircnsul da Tuniacutesia e indicaram os seus dados

pessoais por forma a poder formalizar o processo de expatriaccedilatildeo consagrado nos

acordos italo-tunisinos concluiacutedos a 5 de Abril de 2011

Antes da propositura da acccedilatildeo junto do TEDH associaccedilotildees de combate ao

racismo formalizaram uma queixa-crime no Tribunal de Palermo por abuso de funccedilotildees

e detenccedilatildeo ilegal O processo foi arquivado a 3 de Abril de 2012 e o Juiz de Instruccedilatildeo

Criminal do Tribunal de Palermo confirmou esta decisatildeo a 1 de Junho de 2012 A

fundamentaccedilatildeo do JIC incidiu no facto de o Centro de Contrada Imbriacola ter o

objectivo de acolher de auxiliar e fazer face agraves necessidades higieacutenicas dos migrantes

pelo tempo estritamente necessaacuterio antes de encaminhaacute-los para um centro de

identificaccedilatildeo e expulsatildeo ou de tomar decisotildees em seu favor podendo ainda beneficiar

de assistecircncia juriacutedica e obter informaccedilotildees quanto aos procedimentos a tomarem para

darem iniacutecio a um pedido de asilo

Apesar de reconhecer uma certa ldquotendecircncia forccedilada dos requisitos da

intermediaccedilatildeo e da restriccedilatildeo temporaacuteria causada por uma multiplicidade de factores

reconheceu o JIC que estaacute excluiacuteda a ilicitude de tal actuaccedilatildeordquo O JIC realccedilou o facto de

o incecircndio causado pelos tunisinos no Centro ter impossibilitado o Estado italiano de

satisfazer as exigecircncias de acolhimento e resgate dos migrantes situaccedilatildeo que se

agravou e atentou contra a seguranccedila da populaccedilatildeo local quando os cidadatildeos

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tunisinos ameaccedilaram explodir cilindros de gaacutes durante a manifestaccedilatildeo que

organizaram no centro da Vila de Lampedusa o que precipitou a tomada de uma

decisatildeo urgente sustentada no interesse puacuteblico a qual poreacutem natildeo provocou nenhum

ldquodano injustordquo

Relativamente agrave alegada afectaccedilatildeo das condiccedilotildees de sauacutede o JIC salientou que

nenhuma das pessoas a bordo dos navios havia formulado um pedido de asilo e que

quem se encontrava no Centro de Acolhimento antes do incecircndio e formalizou o

pedido fora acompanhado para os centros de Trapani Caltanissetta e Foggia

acrescentando ainda que os menores que se encontravam sozinhos e as graacutevidas

encontravam-se em locais proacuteprios e que todos receberam atendimento meacutedico aacutegua

quente electricidade alimentos e bebidas quentes

Atestou-se ainda que um Deputado do Parlamento italiano visitou os navios

aportados e constatou que se encontravam em boas condiccedilotildees de sauacutede dispondo de

acesso agraves cabines e ainda de locais de culto proacuteprios Foi ainda apurado que o juiz de

paz de Agrigente anulou dois decretos de expatriaccedilatildeo pelo facto de as autoridades

italianas terem tomado 10 e 6 dias respectivamente a decidir numa questatildeo que

afectou a liberdade do destinataacuterio o que por se traduzir numa detenccedilatildeo de facto do

migrante constitui uma violaccedilatildeo agrave Constituiccedilatildeo

Natildeo obstante a decisatildeo e a fundamentaccedilatildeo do poder judicial transalpino o

TEDH condenou o Estado italiano ao pagamento de uma indemnizaccedilatildeo por danos natildeo

patrimoniais no valor de euro10000 a cada um dos requerentes e ao pagamento de

euro934451 pelos trecircs a tiacutetulo de custas e despesas processuais

3 FUNDAMENTACcedilAtildeO DA DECISAtildeO

O colectivo de juiacutezes do TEDH condenou a Itaacutelia por violaccedilatildeo de seis disposiccedilotildees

consagradas na Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos em trecircs verificou-se

unanimidade entre os magistrados nas outras trecircs maioria

Em primeiro lugar o Tribunal apurou que os requerentes natildeo eram livres de

abandonar quer o Centro de Acolhimento quer posteriormente os navios para onde

foram transferidos e que foram designados como uma ldquoextensatildeo do Centro de

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Acolhimentordquo Foram sujeitos a vigilacircncia constante pela poliacutecia e proibidos de

comunicarem com o exterior Face ao exposto entendeu-se ter sido violado o nordm 1 do

artigo 5ordm da CEDH (direito agrave liberdade e agrave seguranccedila) 16

Ainda que este preceito permita que os Estados restrinjam a liberdade de

estrangeiros para fins de controlos migratoacuterios qualquer privaccedilatildeo de liberdade deve

decorrer da aplicaccedilatildeo de uma base legal interna por questotildees de seguranccedila juriacutedica o

que natildeo se verificava no ordenamento juriacutedico italiano onde inexistia qualquer preceito

que expressamente reconhecesse a detenccedilatildeo de migrantes num Centro de

Acolhimento Deste modo ainda que vigorasse um acordo bilateral entre a Itaacutelia e a

Tuniacutesia os migrantes natildeo poderiam prever as consequecircncias de um acordo que natildeo foi

tornado puacuteblico e natildeo puderam beneficiar de protecccedilatildeo contra o tratamento arbitraacuterio

Paralelamente ainda que o Governo italiano tenha emitido decisotildees de

extradiccedilatildeo contra os requerentes os fundamentos que justificaram a sua detenccedilatildeo natildeo

soacute natildeo constaram de qualquer documento como natildeo foram os mesmos notificados ateacute

ao repatriamento para a Tuniacutesia Assim entendeu o Tribunal que se verificou uma

violaccedilatildeo do nordm 2 do artigo 5ordm da CEDH (direito a ser-se informado das razotildees da prisatildeo

no mais breve prazo)

Como consequecircncia do facto de natildeo terem sido informados no mais breve

prazo das razotildees da sua detenccedilatildeo natildeo puderam os requerentes em momento algum

questionar a legalidade da sua privaccedilatildeo de liberdade Por este motivo o Tribunal

concluiu pela verificaccedilatildeo da violaccedilatildeo do nordm 4 do artigo 5ordm da CEDH (direito a avaliaccedilatildeo

da legalidade da detenccedilatildeo)

Assistiu-se ainda a uma violaccedilatildeo ao artigo 4ordm do Protocolo nordm 4 da CEDH

(proibiccedilatildeo de expulsatildeo colectiva de estrangeiros) Com efeito o TEDH enfatizou que

ainda que os requerentes tenham sido notificados individualmente da pena de

repulsatildeo natildeo foram inquiridos individualmente e as decisotildees que os abrangeram

continham a mesma redacccedilatildeo sem referecircncia agrave situaccedilatildeo pessoal de cada um A

natureza da expulsatildeo colectiva dos requerentes foi confirmada pelo facto de os

acordos bilaterais com a Tuniacutesia preverem a repatriaccedilatildeo de migrantes tunisinos ilegais

16

Sobre este artigo da CEDH desenvolvidamente e por exemplo HARRIS David et al (2014 pp 287 e ss)

e MOWBRAY (2012 pp 245 e ss)

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ao abrigo de procedimentos simplificados com base na simples identificaccedilatildeo das

pessoas visadas pelas autoridades consulares tunisinas

Acresce que os requerentes natildeo beneficiaram de qualquer meio para reclamar

das condiccedilotildees de detenccedilatildeo no Centro de Acolhimento uma vez que um recurso para

um magistrado apenas poderia dizer respeito agrave legalidade do seu repatriamento para a

Tuniacutesia o que viola o disposto no artigo 13ordm da CEDH (direito a um recurso efectivo) e

conjuntamente no artigo 3ordm do Protocolo nordm 4 (proibiccedilatildeo de expulsatildeo de nacionais) O

facto de o recurso natildeo produzir efeitos suspensivos constitui uma violaccedilatildeo ao artigo

13ordm em conjunto com o artigo 4ordm do Protocolo nordm 4

Finalmente o Tribunal apreciou ainda uma eventual violaccedilatildeo ao artigo 3ordm da

CEDH (proibiccedilatildeo de tortura e tratamentos desumanos) Os magistrados tiveram em

consideraccedilatildeo o facto de a Primavera Aacuterabe em particular os acontecimentos na Tuniacutesia

e na Liacutebia ter produzido um impacto negativo sobre a ilha de Lampedusa que se

deparou com um fluxo migratoacuterio por via mariacutetima extraordinaacuterio o que levou o

Estado italiano a decretar o estado de emergecircncia humanitaacuteria e teve ainda em

atenccedilatildeo o esforccedilo das autoridades em acomodarem os migrantes apoacutes o motim de 20

de Setembro de 2011

Todavia o TEDH sublinhou que alguns relatoacuterios publicados entre os quais os

da Comissatildeo Extraordinaacuteria do Senado italiano e da Amnistia Internacional atestam

que o Centro de Acolhimento de Contrada Imbriacola deparava-se com seacuterios

problemas de sobrelotaccedilatildeo (migrantes que dormiam nos corredores) higiene (cheiros

e serviccedilos sanitaacuterios inutilizaacuteveis) e ausecircncia de contacto com o exterior O Tribunal

relevou o facto de os requerentes se encontrarem vulneraacuteveis apoacutes a realizaccedilatildeo da

travessia mariacutetima Por este motivo o Tribunal concluiu que mesmo apesar de terem

permanecido detidos por quatro dias a sua detenccedilatildeo nas condiccedilotildees referidas diminuiu

a sua dignidade humana ultrapassando a situaccedilatildeo decorrente do sofrimento resultante

da detenccedilatildeo constituindo antes tratamento desumano que viola o artigo 3ordm da CEDH

Este uacuteltimo ponto natildeo obteve unanimidade Destaque-se por exemplo a

opiniatildeo dos juiacutezes Andraacutes Sajoacute e Nebojša Vučinić que aleacutem de considerarem que os

mecanismos de recurso encontravam-se facilmente disponiacuteveis sublinharam que a

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duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

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tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

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situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 40

concretizaccedilatildeo destas disposiccedilotildees aplicando com flexibilidade as regras previstas na

CEDH6

Neste contexto encontra-se precisamente em discussatildeo ndash num sentido mais

especulativo ndash como deve ser encarado este pluralismo entre as ordens nacionais e a

ordem normativa cosmopolita que deriva da CEDH 7 Com efeito com a presente

decisatildeo o TEDH coloca em evidecircncia a necessidade de discutir se num contexto de um

mundo cada vez mais globalizado eacute possiacutevel a ldquoconstruccedilatildeo de um constitucionalismo

estadual para o Seacuteculo XXI com base na excessiva valorizaccedilatildeo do Estado de direito - e

em particular dos direitos fundamentais e da jurisdiccedilatildeo constitucional - em detrimento

do princiacutepio democraacuteticordquo (Medeiros 2015 p 97)

Eacute este portanto o pressuposto que estaraacute subjacente agrave nossa anaacutelise tendo

somente como objectivo estudar de forma criacutetica como encarou o TEDH a

possibilidade de flexibilizaccedilatildeo da dignidade humana num cenaacuterio de evidente Estado

excepccedilatildeo 8

2 ENQUADRAMENTO FAacuteCTICO

Em Janeiro de 2011 a intensificaccedilatildeo da revolta popular na Tuniacutesia levou agrave queda

do regime ditatorial do paiacutes liderado por Zine El Abidine Ben Ali provocando um efeito

mimeacutetico que inspiraria a realizaccedilatildeo de acccedilotildees de insurreiccedilatildeo em diversos paiacuteses

magrebino-aacuterabes num momento da Histoacuteria que ficou baptizado de ldquoPrimavera

Aacuteraberdquo910e que ainda hoje produz efeitos em paiacuteses como a Siacuteria11

6 Natildeo trataremos contudo neste texto da interessante questatildeo que envolve a margem livre de apreciaccedilatildeo

dos Estados na interpretaccedilatildeo as normas da CEDH Sobre este problema com indicaccedilotildees cfr MEDEIROS

(2015 pp 347 e ss) cfr igualmente KRISCH (2010 pp 109 e ss) LEGG (2012 pp 32 e ss) TOMUSCHAT

(2014 pp 107 e ss) LORENZ Nina-Louisa Arold et al (2013 pp 69 e ss) 7 Cfr por todos BESSON (2014 pp 170 e ss) Em geral sobre o pluralismo juriacutedico num quadro poacutes-

nacional entre outros cfr BERMAN (2012 pp 141 e ss) 8 Sobre este cfr por exemplo o incontornaacutevel texto de AGAMBEN (2005 pp 1 e ss)

9 Relativamente aos antecedentes da Primavera Aacuterabe e ao impacto que teve na democratizaccedilatildeo das

sociedades muccedilulmanas cfr ESPOSITO John L et al (2016 pp 1-25) Sobre a utilizaccedilatildeo das redes sociais

na Primavera Aacuterabe cfr JAMALI (2014) 10

Para uma anaacutelise aos efeitos da Primavera Aacuterabe na Liacutebia e a forma como a revolta conduziu agrave abertura

de investigaccedilotildees no Tribunal Penal Internacional contra figuras do aparelho de Estado liacutebio cfr

GUERREIRO (2012) KERSTEN (2014 pp 188-207) 11

Para uma comparaccedilatildeo dos resultados da Primavera Aacuterabe no Egipto na Tuniacutesia e na Siacuteria cfr SIKA

(2014 pp 73-97)

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No caso especiacutefico da Tuniacutesia o regime autoritaacuterio que vigorou no paiacutes durante

cinco deacutecadas agravado pela perpetuaccedilatildeo de Ben Ali no poder desde 1987 com

dividendos econoacutemicos para si e para o seu ciacuterculo ao mesmo tempo que muitos

tunisinos reclamavam melhores condiccedilotildees de vida e de participaccedilatildeo na poliacutetica deu

iniacutecio a um movimento de revolta popular rebentou quando a populaccedilatildeo se revoltou

contra a morte de Mohamed Bouazizi um comerciante de 26 anos que se auto-imolou

como protesto pela perseguiccedilatildeo encetada pelo Governo O ecircxito alcanccedilado motivou o

baptismo da revolta com a expressatildeo ldquoRevoluccedilatildeo de Jasmimrdquo em homenagem agrave flor

vendida nas lojas de rua12

Neste quadro desde 2011 que se veio a assistir a um fluxo migratoacuterio sem

precedentes para o continente europeu com forte incidecircncia de actividade no Mar

Mediterracircneo uma vez que se tratava do meio aparentemente menos oneroso e mais

eficaz de garantir o acesso de cidadatildeos egiacutepcios liacutebios e tunisinos a paiacuteses ou

localidades onde pudessem sentir-se protegidos face agrave queda das instituiccedilotildees nos

respectivos paiacuteses e a crescente anarquia que se veio a consolidar nos seus Estados de

origem13

No passado dia 1 de Setembro de 2015 o Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem14 pronunciou-se sobre o pedido formalizado por trecircs cidadatildeos tunisinos contra

o Estado italiano a 9 de Marccedilo de 2012 junto do Tribunal localizado em Estrasburgo

12

Sobre os antecedentes da ldquoRevoluccedilatildeo de Jasmimrdquo e o poacutes-Primavera Aacuterabe na Tuniacutesia cfr MARCOVITZ

(2014 pp 26-38) ESPOSITO John L et al (2016 pp 174-201) 13

A este respeito e agraves ameaccedilas de seguranccedila sobre os paiacuteses do Mediterracircneo decorrentes da Primavera

Aacuterabe cfr BOENING (2014 em especial pp 11-25) 14

Podemos questionar a terminologia adoptada em liacutengua portuguesa tanto para o Tribunal como para a

Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem mais concretamente sobre a referecircncia a ldquoDireitos do

Homemrdquo ou ldquoDireitos Humanosrdquo Em francecircs a designaccedilatildeo oficial eacute ldquoDroits de lrsquoHommerdquo mas em inglecircs e

em castelhano o conceito eacute mais moderno e mais amplo ldquoHuman Rightsrdquo e ldquoDerechos Humanosrdquo

respectivamente A tendecircncia portuguesa para seguir a adaptaccedilatildeo do francecircs natildeo eacute recente tendo as suas

origens no facto de ateacute ao terceiro quartel do seacuteculo XX Portugal manifestar uma aproximaccedilatildeo e uma

afinidade maior com a cultura e poliacutetica francesas A tiacutetulo de exemplo relativamente agrave ldquoDeclaraccedilatildeo

Universal dos Direitos do Homemrdquo o crescente reconhecimento de direitos agraves mulheres e a consequente

intenccedilatildeo de eliminar factores passiacuteveis de prolongarem a discriminaccedilatildeo com base no geacutenero precipitaram

a revisatildeo da terminologia em castelhano mais concretamente de ldquoDerechos del Hombrerdquo para ldquoDerechos

Humanosrdquo em 1952 por via da Resoluccedilatildeo 548 (VI) da Assembleia-Geral das Naccedilotildees Unidas Portugal

nunca procedeu oficialmente agrave mesma alteraccedilatildeo assistindo-se poreacutem a uma referecircncia oficial ora a

ldquoDireitos do Homemrdquo ora a ldquoDireitos Humanosrdquo Com efeito a Declaraccedilatildeo tem a terminologia moderna

reconhecida por oacutergatildeos de soberania como a Assembleia da Repuacuteblica o que natildeo se estende

obrigatoriamente aos restantes

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por factos ocorridos em 201115 numa decisatildeo com impacto consideraacutevel na protecccedilatildeo

dos Direitos Humanos que importa conhecer A decisatildeo que comentamos permite por

um lado discutir os problemas que envolvem a migraccedilatildeo de cidadatildeos de paiacuteses em

cenaacuterio de guerra e por outro permite discutir elementos que se relacionam com a

aplicaccedilatildeo do Direito que deriva da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos no

espaccedilo cosmopolita dos Estados Contratantes

Segundo a mateacuteria sujeita a apreciaccedilatildeo os trecircs requerentes com idades

compreendidas entre os 23 e os 28 anos agrave data da ocorrecircncia dos factos foram

interceptados pela guarda-costeira italiana quando atravessavam o Mar Mediterracircneo

numa embarcaccedilatildeo juntamente com outras pessoas a 16 e 17 de Setembro de 2011

sendo acompanhados ateacute um centro de acolhimento sito na ilha de Lampedusa

Uma vez chegados ao Centro de Contrada Imbriacola foram-lhes prestados os

primeiros socorros e as autoridades procederam agrave recolha da sua identificaccedilatildeo sendo

finalmente encaminhados para um sector do Centro reservado a cidadatildeos tunisinos

adultos

Todavia os requerentes alegam terem sido instalados num espaccedilo sobrelotado

e obrigados a dormir no chatildeo dada a insuficiecircncia de camas para dormir e da maacute

qualidade dos colchotildees As refeiccedilotildees eram tomadas no espaccedilo exterior tendo de se

sentar no chatildeo Todo e qualquer contacto com o exterior era impossiacutevel e o centro

mantinha um sistema de vigilacircncia permanente garantido pelas forccedilas de seguranccedila

A 20 de Setembro de 2011 os migrantes ali detidos organizaram um motim que

degenerou num incecircndio no interior do centro que forccedilou as autoridades transalpinas

a transferirem os requerentes para o parque desportivo de Lampedusa com o fim de ali

passarem a noite No dia seguinte os requerentes juntamente com outros migrantes

lograram romper a barreira de vigilacircncia montada pelas forccedilas de seguranccedila e

chegaram agrave vila de Lampedusa

Uma vez aqui os requerentes juntamente com cerca de 1800 migrantes

organizaram manifestaccedilotildees nas ruas da ilha tendo sido interpelados pelas autoridades

15

O processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 1648312) estaacute disponiacutevel para consulta na paacutegina do

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2015)

Khlaifia et autres c Italie [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

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policiais detidos e reconduzidos ao centro de acolhimento junto ao aeroporto de

Lampedusa A 22 de Setembro de 2011 os requerentes embarcaram com destino a

Palermo tendo sido transferidos para navios ali atracados reagrupados nos espaccedilos de

restauraccedilatildeo sem poderem aceder agraves cabines e segundo os mesmos natildeo tiveram outra

alternativa a natildeo ser dormir no chatildeo e esperarem vaacuterias horas para terem acesso agraves

instalaccedilotildees sanitaacuterias dispondo de dois periacuteodos diaacuterios em que podiam deslocar-se

aos varandins do navio Alegaram ter sido insultados e maltratados pelos poliacutecias que

os vigiavam e natildeo terem recebido qualquer tipo de informaccedilatildeo por parte das

autoridades

Permaneceram nesta situaccedilatildeo ateacute aos dias 27 e 29 de Setembro de 2011 datas

em que foram transferidos de Palermo para a Tuniacutesia Durante a permanecircncia nestes

navios os migrantes recebidos pelo cocircnsul da Tuniacutesia e indicaram os seus dados

pessoais por forma a poder formalizar o processo de expatriaccedilatildeo consagrado nos

acordos italo-tunisinos concluiacutedos a 5 de Abril de 2011

Antes da propositura da acccedilatildeo junto do TEDH associaccedilotildees de combate ao

racismo formalizaram uma queixa-crime no Tribunal de Palermo por abuso de funccedilotildees

e detenccedilatildeo ilegal O processo foi arquivado a 3 de Abril de 2012 e o Juiz de Instruccedilatildeo

Criminal do Tribunal de Palermo confirmou esta decisatildeo a 1 de Junho de 2012 A

fundamentaccedilatildeo do JIC incidiu no facto de o Centro de Contrada Imbriacola ter o

objectivo de acolher de auxiliar e fazer face agraves necessidades higieacutenicas dos migrantes

pelo tempo estritamente necessaacuterio antes de encaminhaacute-los para um centro de

identificaccedilatildeo e expulsatildeo ou de tomar decisotildees em seu favor podendo ainda beneficiar

de assistecircncia juriacutedica e obter informaccedilotildees quanto aos procedimentos a tomarem para

darem iniacutecio a um pedido de asilo

Apesar de reconhecer uma certa ldquotendecircncia forccedilada dos requisitos da

intermediaccedilatildeo e da restriccedilatildeo temporaacuteria causada por uma multiplicidade de factores

reconheceu o JIC que estaacute excluiacuteda a ilicitude de tal actuaccedilatildeordquo O JIC realccedilou o facto de

o incecircndio causado pelos tunisinos no Centro ter impossibilitado o Estado italiano de

satisfazer as exigecircncias de acolhimento e resgate dos migrantes situaccedilatildeo que se

agravou e atentou contra a seguranccedila da populaccedilatildeo local quando os cidadatildeos

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tunisinos ameaccedilaram explodir cilindros de gaacutes durante a manifestaccedilatildeo que

organizaram no centro da Vila de Lampedusa o que precipitou a tomada de uma

decisatildeo urgente sustentada no interesse puacuteblico a qual poreacutem natildeo provocou nenhum

ldquodano injustordquo

Relativamente agrave alegada afectaccedilatildeo das condiccedilotildees de sauacutede o JIC salientou que

nenhuma das pessoas a bordo dos navios havia formulado um pedido de asilo e que

quem se encontrava no Centro de Acolhimento antes do incecircndio e formalizou o

pedido fora acompanhado para os centros de Trapani Caltanissetta e Foggia

acrescentando ainda que os menores que se encontravam sozinhos e as graacutevidas

encontravam-se em locais proacuteprios e que todos receberam atendimento meacutedico aacutegua

quente electricidade alimentos e bebidas quentes

Atestou-se ainda que um Deputado do Parlamento italiano visitou os navios

aportados e constatou que se encontravam em boas condiccedilotildees de sauacutede dispondo de

acesso agraves cabines e ainda de locais de culto proacuteprios Foi ainda apurado que o juiz de

paz de Agrigente anulou dois decretos de expatriaccedilatildeo pelo facto de as autoridades

italianas terem tomado 10 e 6 dias respectivamente a decidir numa questatildeo que

afectou a liberdade do destinataacuterio o que por se traduzir numa detenccedilatildeo de facto do

migrante constitui uma violaccedilatildeo agrave Constituiccedilatildeo

Natildeo obstante a decisatildeo e a fundamentaccedilatildeo do poder judicial transalpino o

TEDH condenou o Estado italiano ao pagamento de uma indemnizaccedilatildeo por danos natildeo

patrimoniais no valor de euro10000 a cada um dos requerentes e ao pagamento de

euro934451 pelos trecircs a tiacutetulo de custas e despesas processuais

3 FUNDAMENTACcedilAtildeO DA DECISAtildeO

O colectivo de juiacutezes do TEDH condenou a Itaacutelia por violaccedilatildeo de seis disposiccedilotildees

consagradas na Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos em trecircs verificou-se

unanimidade entre os magistrados nas outras trecircs maioria

Em primeiro lugar o Tribunal apurou que os requerentes natildeo eram livres de

abandonar quer o Centro de Acolhimento quer posteriormente os navios para onde

foram transferidos e que foram designados como uma ldquoextensatildeo do Centro de

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Acolhimentordquo Foram sujeitos a vigilacircncia constante pela poliacutecia e proibidos de

comunicarem com o exterior Face ao exposto entendeu-se ter sido violado o nordm 1 do

artigo 5ordm da CEDH (direito agrave liberdade e agrave seguranccedila) 16

Ainda que este preceito permita que os Estados restrinjam a liberdade de

estrangeiros para fins de controlos migratoacuterios qualquer privaccedilatildeo de liberdade deve

decorrer da aplicaccedilatildeo de uma base legal interna por questotildees de seguranccedila juriacutedica o

que natildeo se verificava no ordenamento juriacutedico italiano onde inexistia qualquer preceito

que expressamente reconhecesse a detenccedilatildeo de migrantes num Centro de

Acolhimento Deste modo ainda que vigorasse um acordo bilateral entre a Itaacutelia e a

Tuniacutesia os migrantes natildeo poderiam prever as consequecircncias de um acordo que natildeo foi

tornado puacuteblico e natildeo puderam beneficiar de protecccedilatildeo contra o tratamento arbitraacuterio

Paralelamente ainda que o Governo italiano tenha emitido decisotildees de

extradiccedilatildeo contra os requerentes os fundamentos que justificaram a sua detenccedilatildeo natildeo

soacute natildeo constaram de qualquer documento como natildeo foram os mesmos notificados ateacute

ao repatriamento para a Tuniacutesia Assim entendeu o Tribunal que se verificou uma

violaccedilatildeo do nordm 2 do artigo 5ordm da CEDH (direito a ser-se informado das razotildees da prisatildeo

no mais breve prazo)

Como consequecircncia do facto de natildeo terem sido informados no mais breve

prazo das razotildees da sua detenccedilatildeo natildeo puderam os requerentes em momento algum

questionar a legalidade da sua privaccedilatildeo de liberdade Por este motivo o Tribunal

concluiu pela verificaccedilatildeo da violaccedilatildeo do nordm 4 do artigo 5ordm da CEDH (direito a avaliaccedilatildeo

da legalidade da detenccedilatildeo)

Assistiu-se ainda a uma violaccedilatildeo ao artigo 4ordm do Protocolo nordm 4 da CEDH

(proibiccedilatildeo de expulsatildeo colectiva de estrangeiros) Com efeito o TEDH enfatizou que

ainda que os requerentes tenham sido notificados individualmente da pena de

repulsatildeo natildeo foram inquiridos individualmente e as decisotildees que os abrangeram

continham a mesma redacccedilatildeo sem referecircncia agrave situaccedilatildeo pessoal de cada um A

natureza da expulsatildeo colectiva dos requerentes foi confirmada pelo facto de os

acordos bilaterais com a Tuniacutesia preverem a repatriaccedilatildeo de migrantes tunisinos ilegais

16

Sobre este artigo da CEDH desenvolvidamente e por exemplo HARRIS David et al (2014 pp 287 e ss)

e MOWBRAY (2012 pp 245 e ss)

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ao abrigo de procedimentos simplificados com base na simples identificaccedilatildeo das

pessoas visadas pelas autoridades consulares tunisinas

Acresce que os requerentes natildeo beneficiaram de qualquer meio para reclamar

das condiccedilotildees de detenccedilatildeo no Centro de Acolhimento uma vez que um recurso para

um magistrado apenas poderia dizer respeito agrave legalidade do seu repatriamento para a

Tuniacutesia o que viola o disposto no artigo 13ordm da CEDH (direito a um recurso efectivo) e

conjuntamente no artigo 3ordm do Protocolo nordm 4 (proibiccedilatildeo de expulsatildeo de nacionais) O

facto de o recurso natildeo produzir efeitos suspensivos constitui uma violaccedilatildeo ao artigo

13ordm em conjunto com o artigo 4ordm do Protocolo nordm 4

Finalmente o Tribunal apreciou ainda uma eventual violaccedilatildeo ao artigo 3ordm da

CEDH (proibiccedilatildeo de tortura e tratamentos desumanos) Os magistrados tiveram em

consideraccedilatildeo o facto de a Primavera Aacuterabe em particular os acontecimentos na Tuniacutesia

e na Liacutebia ter produzido um impacto negativo sobre a ilha de Lampedusa que se

deparou com um fluxo migratoacuterio por via mariacutetima extraordinaacuterio o que levou o

Estado italiano a decretar o estado de emergecircncia humanitaacuteria e teve ainda em

atenccedilatildeo o esforccedilo das autoridades em acomodarem os migrantes apoacutes o motim de 20

de Setembro de 2011

Todavia o TEDH sublinhou que alguns relatoacuterios publicados entre os quais os

da Comissatildeo Extraordinaacuteria do Senado italiano e da Amnistia Internacional atestam

que o Centro de Acolhimento de Contrada Imbriacola deparava-se com seacuterios

problemas de sobrelotaccedilatildeo (migrantes que dormiam nos corredores) higiene (cheiros

e serviccedilos sanitaacuterios inutilizaacuteveis) e ausecircncia de contacto com o exterior O Tribunal

relevou o facto de os requerentes se encontrarem vulneraacuteveis apoacutes a realizaccedilatildeo da

travessia mariacutetima Por este motivo o Tribunal concluiu que mesmo apesar de terem

permanecido detidos por quatro dias a sua detenccedilatildeo nas condiccedilotildees referidas diminuiu

a sua dignidade humana ultrapassando a situaccedilatildeo decorrente do sofrimento resultante

da detenccedilatildeo constituindo antes tratamento desumano que viola o artigo 3ordm da CEDH

Este uacuteltimo ponto natildeo obteve unanimidade Destaque-se por exemplo a

opiniatildeo dos juiacutezes Andraacutes Sajoacute e Nebojša Vučinić que aleacutem de considerarem que os

mecanismos de recurso encontravam-se facilmente disponiacuteveis sublinharam que a

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duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 48

tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 49

portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 41

No caso especiacutefico da Tuniacutesia o regime autoritaacuterio que vigorou no paiacutes durante

cinco deacutecadas agravado pela perpetuaccedilatildeo de Ben Ali no poder desde 1987 com

dividendos econoacutemicos para si e para o seu ciacuterculo ao mesmo tempo que muitos

tunisinos reclamavam melhores condiccedilotildees de vida e de participaccedilatildeo na poliacutetica deu

iniacutecio a um movimento de revolta popular rebentou quando a populaccedilatildeo se revoltou

contra a morte de Mohamed Bouazizi um comerciante de 26 anos que se auto-imolou

como protesto pela perseguiccedilatildeo encetada pelo Governo O ecircxito alcanccedilado motivou o

baptismo da revolta com a expressatildeo ldquoRevoluccedilatildeo de Jasmimrdquo em homenagem agrave flor

vendida nas lojas de rua12

Neste quadro desde 2011 que se veio a assistir a um fluxo migratoacuterio sem

precedentes para o continente europeu com forte incidecircncia de actividade no Mar

Mediterracircneo uma vez que se tratava do meio aparentemente menos oneroso e mais

eficaz de garantir o acesso de cidadatildeos egiacutepcios liacutebios e tunisinos a paiacuteses ou

localidades onde pudessem sentir-se protegidos face agrave queda das instituiccedilotildees nos

respectivos paiacuteses e a crescente anarquia que se veio a consolidar nos seus Estados de

origem13

No passado dia 1 de Setembro de 2015 o Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem14 pronunciou-se sobre o pedido formalizado por trecircs cidadatildeos tunisinos contra

o Estado italiano a 9 de Marccedilo de 2012 junto do Tribunal localizado em Estrasburgo

12

Sobre os antecedentes da ldquoRevoluccedilatildeo de Jasmimrdquo e o poacutes-Primavera Aacuterabe na Tuniacutesia cfr MARCOVITZ

(2014 pp 26-38) ESPOSITO John L et al (2016 pp 174-201) 13

A este respeito e agraves ameaccedilas de seguranccedila sobre os paiacuteses do Mediterracircneo decorrentes da Primavera

Aacuterabe cfr BOENING (2014 em especial pp 11-25) 14

Podemos questionar a terminologia adoptada em liacutengua portuguesa tanto para o Tribunal como para a

Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem mais concretamente sobre a referecircncia a ldquoDireitos do

Homemrdquo ou ldquoDireitos Humanosrdquo Em francecircs a designaccedilatildeo oficial eacute ldquoDroits de lrsquoHommerdquo mas em inglecircs e

em castelhano o conceito eacute mais moderno e mais amplo ldquoHuman Rightsrdquo e ldquoDerechos Humanosrdquo

respectivamente A tendecircncia portuguesa para seguir a adaptaccedilatildeo do francecircs natildeo eacute recente tendo as suas

origens no facto de ateacute ao terceiro quartel do seacuteculo XX Portugal manifestar uma aproximaccedilatildeo e uma

afinidade maior com a cultura e poliacutetica francesas A tiacutetulo de exemplo relativamente agrave ldquoDeclaraccedilatildeo

Universal dos Direitos do Homemrdquo o crescente reconhecimento de direitos agraves mulheres e a consequente

intenccedilatildeo de eliminar factores passiacuteveis de prolongarem a discriminaccedilatildeo com base no geacutenero precipitaram

a revisatildeo da terminologia em castelhano mais concretamente de ldquoDerechos del Hombrerdquo para ldquoDerechos

Humanosrdquo em 1952 por via da Resoluccedilatildeo 548 (VI) da Assembleia-Geral das Naccedilotildees Unidas Portugal

nunca procedeu oficialmente agrave mesma alteraccedilatildeo assistindo-se poreacutem a uma referecircncia oficial ora a

ldquoDireitos do Homemrdquo ora a ldquoDireitos Humanosrdquo Com efeito a Declaraccedilatildeo tem a terminologia moderna

reconhecida por oacutergatildeos de soberania como a Assembleia da Repuacuteblica o que natildeo se estende

obrigatoriamente aos restantes

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por factos ocorridos em 201115 numa decisatildeo com impacto consideraacutevel na protecccedilatildeo

dos Direitos Humanos que importa conhecer A decisatildeo que comentamos permite por

um lado discutir os problemas que envolvem a migraccedilatildeo de cidadatildeos de paiacuteses em

cenaacuterio de guerra e por outro permite discutir elementos que se relacionam com a

aplicaccedilatildeo do Direito que deriva da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos no

espaccedilo cosmopolita dos Estados Contratantes

Segundo a mateacuteria sujeita a apreciaccedilatildeo os trecircs requerentes com idades

compreendidas entre os 23 e os 28 anos agrave data da ocorrecircncia dos factos foram

interceptados pela guarda-costeira italiana quando atravessavam o Mar Mediterracircneo

numa embarcaccedilatildeo juntamente com outras pessoas a 16 e 17 de Setembro de 2011

sendo acompanhados ateacute um centro de acolhimento sito na ilha de Lampedusa

Uma vez chegados ao Centro de Contrada Imbriacola foram-lhes prestados os

primeiros socorros e as autoridades procederam agrave recolha da sua identificaccedilatildeo sendo

finalmente encaminhados para um sector do Centro reservado a cidadatildeos tunisinos

adultos

Todavia os requerentes alegam terem sido instalados num espaccedilo sobrelotado

e obrigados a dormir no chatildeo dada a insuficiecircncia de camas para dormir e da maacute

qualidade dos colchotildees As refeiccedilotildees eram tomadas no espaccedilo exterior tendo de se

sentar no chatildeo Todo e qualquer contacto com o exterior era impossiacutevel e o centro

mantinha um sistema de vigilacircncia permanente garantido pelas forccedilas de seguranccedila

A 20 de Setembro de 2011 os migrantes ali detidos organizaram um motim que

degenerou num incecircndio no interior do centro que forccedilou as autoridades transalpinas

a transferirem os requerentes para o parque desportivo de Lampedusa com o fim de ali

passarem a noite No dia seguinte os requerentes juntamente com outros migrantes

lograram romper a barreira de vigilacircncia montada pelas forccedilas de seguranccedila e

chegaram agrave vila de Lampedusa

Uma vez aqui os requerentes juntamente com cerca de 1800 migrantes

organizaram manifestaccedilotildees nas ruas da ilha tendo sido interpelados pelas autoridades

15

O processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 1648312) estaacute disponiacutevel para consulta na paacutegina do

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2015)

Khlaifia et autres c Italie [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

httphudocechrcoeint

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 43

policiais detidos e reconduzidos ao centro de acolhimento junto ao aeroporto de

Lampedusa A 22 de Setembro de 2011 os requerentes embarcaram com destino a

Palermo tendo sido transferidos para navios ali atracados reagrupados nos espaccedilos de

restauraccedilatildeo sem poderem aceder agraves cabines e segundo os mesmos natildeo tiveram outra

alternativa a natildeo ser dormir no chatildeo e esperarem vaacuterias horas para terem acesso agraves

instalaccedilotildees sanitaacuterias dispondo de dois periacuteodos diaacuterios em que podiam deslocar-se

aos varandins do navio Alegaram ter sido insultados e maltratados pelos poliacutecias que

os vigiavam e natildeo terem recebido qualquer tipo de informaccedilatildeo por parte das

autoridades

Permaneceram nesta situaccedilatildeo ateacute aos dias 27 e 29 de Setembro de 2011 datas

em que foram transferidos de Palermo para a Tuniacutesia Durante a permanecircncia nestes

navios os migrantes recebidos pelo cocircnsul da Tuniacutesia e indicaram os seus dados

pessoais por forma a poder formalizar o processo de expatriaccedilatildeo consagrado nos

acordos italo-tunisinos concluiacutedos a 5 de Abril de 2011

Antes da propositura da acccedilatildeo junto do TEDH associaccedilotildees de combate ao

racismo formalizaram uma queixa-crime no Tribunal de Palermo por abuso de funccedilotildees

e detenccedilatildeo ilegal O processo foi arquivado a 3 de Abril de 2012 e o Juiz de Instruccedilatildeo

Criminal do Tribunal de Palermo confirmou esta decisatildeo a 1 de Junho de 2012 A

fundamentaccedilatildeo do JIC incidiu no facto de o Centro de Contrada Imbriacola ter o

objectivo de acolher de auxiliar e fazer face agraves necessidades higieacutenicas dos migrantes

pelo tempo estritamente necessaacuterio antes de encaminhaacute-los para um centro de

identificaccedilatildeo e expulsatildeo ou de tomar decisotildees em seu favor podendo ainda beneficiar

de assistecircncia juriacutedica e obter informaccedilotildees quanto aos procedimentos a tomarem para

darem iniacutecio a um pedido de asilo

Apesar de reconhecer uma certa ldquotendecircncia forccedilada dos requisitos da

intermediaccedilatildeo e da restriccedilatildeo temporaacuteria causada por uma multiplicidade de factores

reconheceu o JIC que estaacute excluiacuteda a ilicitude de tal actuaccedilatildeordquo O JIC realccedilou o facto de

o incecircndio causado pelos tunisinos no Centro ter impossibilitado o Estado italiano de

satisfazer as exigecircncias de acolhimento e resgate dos migrantes situaccedilatildeo que se

agravou e atentou contra a seguranccedila da populaccedilatildeo local quando os cidadatildeos

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tunisinos ameaccedilaram explodir cilindros de gaacutes durante a manifestaccedilatildeo que

organizaram no centro da Vila de Lampedusa o que precipitou a tomada de uma

decisatildeo urgente sustentada no interesse puacuteblico a qual poreacutem natildeo provocou nenhum

ldquodano injustordquo

Relativamente agrave alegada afectaccedilatildeo das condiccedilotildees de sauacutede o JIC salientou que

nenhuma das pessoas a bordo dos navios havia formulado um pedido de asilo e que

quem se encontrava no Centro de Acolhimento antes do incecircndio e formalizou o

pedido fora acompanhado para os centros de Trapani Caltanissetta e Foggia

acrescentando ainda que os menores que se encontravam sozinhos e as graacutevidas

encontravam-se em locais proacuteprios e que todos receberam atendimento meacutedico aacutegua

quente electricidade alimentos e bebidas quentes

Atestou-se ainda que um Deputado do Parlamento italiano visitou os navios

aportados e constatou que se encontravam em boas condiccedilotildees de sauacutede dispondo de

acesso agraves cabines e ainda de locais de culto proacuteprios Foi ainda apurado que o juiz de

paz de Agrigente anulou dois decretos de expatriaccedilatildeo pelo facto de as autoridades

italianas terem tomado 10 e 6 dias respectivamente a decidir numa questatildeo que

afectou a liberdade do destinataacuterio o que por se traduzir numa detenccedilatildeo de facto do

migrante constitui uma violaccedilatildeo agrave Constituiccedilatildeo

Natildeo obstante a decisatildeo e a fundamentaccedilatildeo do poder judicial transalpino o

TEDH condenou o Estado italiano ao pagamento de uma indemnizaccedilatildeo por danos natildeo

patrimoniais no valor de euro10000 a cada um dos requerentes e ao pagamento de

euro934451 pelos trecircs a tiacutetulo de custas e despesas processuais

3 FUNDAMENTACcedilAtildeO DA DECISAtildeO

O colectivo de juiacutezes do TEDH condenou a Itaacutelia por violaccedilatildeo de seis disposiccedilotildees

consagradas na Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos em trecircs verificou-se

unanimidade entre os magistrados nas outras trecircs maioria

Em primeiro lugar o Tribunal apurou que os requerentes natildeo eram livres de

abandonar quer o Centro de Acolhimento quer posteriormente os navios para onde

foram transferidos e que foram designados como uma ldquoextensatildeo do Centro de

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Acolhimentordquo Foram sujeitos a vigilacircncia constante pela poliacutecia e proibidos de

comunicarem com o exterior Face ao exposto entendeu-se ter sido violado o nordm 1 do

artigo 5ordm da CEDH (direito agrave liberdade e agrave seguranccedila) 16

Ainda que este preceito permita que os Estados restrinjam a liberdade de

estrangeiros para fins de controlos migratoacuterios qualquer privaccedilatildeo de liberdade deve

decorrer da aplicaccedilatildeo de uma base legal interna por questotildees de seguranccedila juriacutedica o

que natildeo se verificava no ordenamento juriacutedico italiano onde inexistia qualquer preceito

que expressamente reconhecesse a detenccedilatildeo de migrantes num Centro de

Acolhimento Deste modo ainda que vigorasse um acordo bilateral entre a Itaacutelia e a

Tuniacutesia os migrantes natildeo poderiam prever as consequecircncias de um acordo que natildeo foi

tornado puacuteblico e natildeo puderam beneficiar de protecccedilatildeo contra o tratamento arbitraacuterio

Paralelamente ainda que o Governo italiano tenha emitido decisotildees de

extradiccedilatildeo contra os requerentes os fundamentos que justificaram a sua detenccedilatildeo natildeo

soacute natildeo constaram de qualquer documento como natildeo foram os mesmos notificados ateacute

ao repatriamento para a Tuniacutesia Assim entendeu o Tribunal que se verificou uma

violaccedilatildeo do nordm 2 do artigo 5ordm da CEDH (direito a ser-se informado das razotildees da prisatildeo

no mais breve prazo)

Como consequecircncia do facto de natildeo terem sido informados no mais breve

prazo das razotildees da sua detenccedilatildeo natildeo puderam os requerentes em momento algum

questionar a legalidade da sua privaccedilatildeo de liberdade Por este motivo o Tribunal

concluiu pela verificaccedilatildeo da violaccedilatildeo do nordm 4 do artigo 5ordm da CEDH (direito a avaliaccedilatildeo

da legalidade da detenccedilatildeo)

Assistiu-se ainda a uma violaccedilatildeo ao artigo 4ordm do Protocolo nordm 4 da CEDH

(proibiccedilatildeo de expulsatildeo colectiva de estrangeiros) Com efeito o TEDH enfatizou que

ainda que os requerentes tenham sido notificados individualmente da pena de

repulsatildeo natildeo foram inquiridos individualmente e as decisotildees que os abrangeram

continham a mesma redacccedilatildeo sem referecircncia agrave situaccedilatildeo pessoal de cada um A

natureza da expulsatildeo colectiva dos requerentes foi confirmada pelo facto de os

acordos bilaterais com a Tuniacutesia preverem a repatriaccedilatildeo de migrantes tunisinos ilegais

16

Sobre este artigo da CEDH desenvolvidamente e por exemplo HARRIS David et al (2014 pp 287 e ss)

e MOWBRAY (2012 pp 245 e ss)

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ao abrigo de procedimentos simplificados com base na simples identificaccedilatildeo das

pessoas visadas pelas autoridades consulares tunisinas

Acresce que os requerentes natildeo beneficiaram de qualquer meio para reclamar

das condiccedilotildees de detenccedilatildeo no Centro de Acolhimento uma vez que um recurso para

um magistrado apenas poderia dizer respeito agrave legalidade do seu repatriamento para a

Tuniacutesia o que viola o disposto no artigo 13ordm da CEDH (direito a um recurso efectivo) e

conjuntamente no artigo 3ordm do Protocolo nordm 4 (proibiccedilatildeo de expulsatildeo de nacionais) O

facto de o recurso natildeo produzir efeitos suspensivos constitui uma violaccedilatildeo ao artigo

13ordm em conjunto com o artigo 4ordm do Protocolo nordm 4

Finalmente o Tribunal apreciou ainda uma eventual violaccedilatildeo ao artigo 3ordm da

CEDH (proibiccedilatildeo de tortura e tratamentos desumanos) Os magistrados tiveram em

consideraccedilatildeo o facto de a Primavera Aacuterabe em particular os acontecimentos na Tuniacutesia

e na Liacutebia ter produzido um impacto negativo sobre a ilha de Lampedusa que se

deparou com um fluxo migratoacuterio por via mariacutetima extraordinaacuterio o que levou o

Estado italiano a decretar o estado de emergecircncia humanitaacuteria e teve ainda em

atenccedilatildeo o esforccedilo das autoridades em acomodarem os migrantes apoacutes o motim de 20

de Setembro de 2011

Todavia o TEDH sublinhou que alguns relatoacuterios publicados entre os quais os

da Comissatildeo Extraordinaacuteria do Senado italiano e da Amnistia Internacional atestam

que o Centro de Acolhimento de Contrada Imbriacola deparava-se com seacuterios

problemas de sobrelotaccedilatildeo (migrantes que dormiam nos corredores) higiene (cheiros

e serviccedilos sanitaacuterios inutilizaacuteveis) e ausecircncia de contacto com o exterior O Tribunal

relevou o facto de os requerentes se encontrarem vulneraacuteveis apoacutes a realizaccedilatildeo da

travessia mariacutetima Por este motivo o Tribunal concluiu que mesmo apesar de terem

permanecido detidos por quatro dias a sua detenccedilatildeo nas condiccedilotildees referidas diminuiu

a sua dignidade humana ultrapassando a situaccedilatildeo decorrente do sofrimento resultante

da detenccedilatildeo constituindo antes tratamento desumano que viola o artigo 3ordm da CEDH

Este uacuteltimo ponto natildeo obteve unanimidade Destaque-se por exemplo a

opiniatildeo dos juiacutezes Andraacutes Sajoacute e Nebojša Vučinić que aleacutem de considerarem que os

mecanismos de recurso encontravam-se facilmente disponiacuteveis sublinharam que a

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duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

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tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

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situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

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por factos ocorridos em 201115 numa decisatildeo com impacto consideraacutevel na protecccedilatildeo

dos Direitos Humanos que importa conhecer A decisatildeo que comentamos permite por

um lado discutir os problemas que envolvem a migraccedilatildeo de cidadatildeos de paiacuteses em

cenaacuterio de guerra e por outro permite discutir elementos que se relacionam com a

aplicaccedilatildeo do Direito que deriva da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos no

espaccedilo cosmopolita dos Estados Contratantes

Segundo a mateacuteria sujeita a apreciaccedilatildeo os trecircs requerentes com idades

compreendidas entre os 23 e os 28 anos agrave data da ocorrecircncia dos factos foram

interceptados pela guarda-costeira italiana quando atravessavam o Mar Mediterracircneo

numa embarcaccedilatildeo juntamente com outras pessoas a 16 e 17 de Setembro de 2011

sendo acompanhados ateacute um centro de acolhimento sito na ilha de Lampedusa

Uma vez chegados ao Centro de Contrada Imbriacola foram-lhes prestados os

primeiros socorros e as autoridades procederam agrave recolha da sua identificaccedilatildeo sendo

finalmente encaminhados para um sector do Centro reservado a cidadatildeos tunisinos

adultos

Todavia os requerentes alegam terem sido instalados num espaccedilo sobrelotado

e obrigados a dormir no chatildeo dada a insuficiecircncia de camas para dormir e da maacute

qualidade dos colchotildees As refeiccedilotildees eram tomadas no espaccedilo exterior tendo de se

sentar no chatildeo Todo e qualquer contacto com o exterior era impossiacutevel e o centro

mantinha um sistema de vigilacircncia permanente garantido pelas forccedilas de seguranccedila

A 20 de Setembro de 2011 os migrantes ali detidos organizaram um motim que

degenerou num incecircndio no interior do centro que forccedilou as autoridades transalpinas

a transferirem os requerentes para o parque desportivo de Lampedusa com o fim de ali

passarem a noite No dia seguinte os requerentes juntamente com outros migrantes

lograram romper a barreira de vigilacircncia montada pelas forccedilas de seguranccedila e

chegaram agrave vila de Lampedusa

Uma vez aqui os requerentes juntamente com cerca de 1800 migrantes

organizaram manifestaccedilotildees nas ruas da ilha tendo sido interpelados pelas autoridades

15

O processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 1648312) estaacute disponiacutevel para consulta na paacutegina do

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2015)

Khlaifia et autres c Italie [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

httphudocechrcoeint

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 43

policiais detidos e reconduzidos ao centro de acolhimento junto ao aeroporto de

Lampedusa A 22 de Setembro de 2011 os requerentes embarcaram com destino a

Palermo tendo sido transferidos para navios ali atracados reagrupados nos espaccedilos de

restauraccedilatildeo sem poderem aceder agraves cabines e segundo os mesmos natildeo tiveram outra

alternativa a natildeo ser dormir no chatildeo e esperarem vaacuterias horas para terem acesso agraves

instalaccedilotildees sanitaacuterias dispondo de dois periacuteodos diaacuterios em que podiam deslocar-se

aos varandins do navio Alegaram ter sido insultados e maltratados pelos poliacutecias que

os vigiavam e natildeo terem recebido qualquer tipo de informaccedilatildeo por parte das

autoridades

Permaneceram nesta situaccedilatildeo ateacute aos dias 27 e 29 de Setembro de 2011 datas

em que foram transferidos de Palermo para a Tuniacutesia Durante a permanecircncia nestes

navios os migrantes recebidos pelo cocircnsul da Tuniacutesia e indicaram os seus dados

pessoais por forma a poder formalizar o processo de expatriaccedilatildeo consagrado nos

acordos italo-tunisinos concluiacutedos a 5 de Abril de 2011

Antes da propositura da acccedilatildeo junto do TEDH associaccedilotildees de combate ao

racismo formalizaram uma queixa-crime no Tribunal de Palermo por abuso de funccedilotildees

e detenccedilatildeo ilegal O processo foi arquivado a 3 de Abril de 2012 e o Juiz de Instruccedilatildeo

Criminal do Tribunal de Palermo confirmou esta decisatildeo a 1 de Junho de 2012 A

fundamentaccedilatildeo do JIC incidiu no facto de o Centro de Contrada Imbriacola ter o

objectivo de acolher de auxiliar e fazer face agraves necessidades higieacutenicas dos migrantes

pelo tempo estritamente necessaacuterio antes de encaminhaacute-los para um centro de

identificaccedilatildeo e expulsatildeo ou de tomar decisotildees em seu favor podendo ainda beneficiar

de assistecircncia juriacutedica e obter informaccedilotildees quanto aos procedimentos a tomarem para

darem iniacutecio a um pedido de asilo

Apesar de reconhecer uma certa ldquotendecircncia forccedilada dos requisitos da

intermediaccedilatildeo e da restriccedilatildeo temporaacuteria causada por uma multiplicidade de factores

reconheceu o JIC que estaacute excluiacuteda a ilicitude de tal actuaccedilatildeordquo O JIC realccedilou o facto de

o incecircndio causado pelos tunisinos no Centro ter impossibilitado o Estado italiano de

satisfazer as exigecircncias de acolhimento e resgate dos migrantes situaccedilatildeo que se

agravou e atentou contra a seguranccedila da populaccedilatildeo local quando os cidadatildeos

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 44

tunisinos ameaccedilaram explodir cilindros de gaacutes durante a manifestaccedilatildeo que

organizaram no centro da Vila de Lampedusa o que precipitou a tomada de uma

decisatildeo urgente sustentada no interesse puacuteblico a qual poreacutem natildeo provocou nenhum

ldquodano injustordquo

Relativamente agrave alegada afectaccedilatildeo das condiccedilotildees de sauacutede o JIC salientou que

nenhuma das pessoas a bordo dos navios havia formulado um pedido de asilo e que

quem se encontrava no Centro de Acolhimento antes do incecircndio e formalizou o

pedido fora acompanhado para os centros de Trapani Caltanissetta e Foggia

acrescentando ainda que os menores que se encontravam sozinhos e as graacutevidas

encontravam-se em locais proacuteprios e que todos receberam atendimento meacutedico aacutegua

quente electricidade alimentos e bebidas quentes

Atestou-se ainda que um Deputado do Parlamento italiano visitou os navios

aportados e constatou que se encontravam em boas condiccedilotildees de sauacutede dispondo de

acesso agraves cabines e ainda de locais de culto proacuteprios Foi ainda apurado que o juiz de

paz de Agrigente anulou dois decretos de expatriaccedilatildeo pelo facto de as autoridades

italianas terem tomado 10 e 6 dias respectivamente a decidir numa questatildeo que

afectou a liberdade do destinataacuterio o que por se traduzir numa detenccedilatildeo de facto do

migrante constitui uma violaccedilatildeo agrave Constituiccedilatildeo

Natildeo obstante a decisatildeo e a fundamentaccedilatildeo do poder judicial transalpino o

TEDH condenou o Estado italiano ao pagamento de uma indemnizaccedilatildeo por danos natildeo

patrimoniais no valor de euro10000 a cada um dos requerentes e ao pagamento de

euro934451 pelos trecircs a tiacutetulo de custas e despesas processuais

3 FUNDAMENTACcedilAtildeO DA DECISAtildeO

O colectivo de juiacutezes do TEDH condenou a Itaacutelia por violaccedilatildeo de seis disposiccedilotildees

consagradas na Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos em trecircs verificou-se

unanimidade entre os magistrados nas outras trecircs maioria

Em primeiro lugar o Tribunal apurou que os requerentes natildeo eram livres de

abandonar quer o Centro de Acolhimento quer posteriormente os navios para onde

foram transferidos e que foram designados como uma ldquoextensatildeo do Centro de

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 45

Acolhimentordquo Foram sujeitos a vigilacircncia constante pela poliacutecia e proibidos de

comunicarem com o exterior Face ao exposto entendeu-se ter sido violado o nordm 1 do

artigo 5ordm da CEDH (direito agrave liberdade e agrave seguranccedila) 16

Ainda que este preceito permita que os Estados restrinjam a liberdade de

estrangeiros para fins de controlos migratoacuterios qualquer privaccedilatildeo de liberdade deve

decorrer da aplicaccedilatildeo de uma base legal interna por questotildees de seguranccedila juriacutedica o

que natildeo se verificava no ordenamento juriacutedico italiano onde inexistia qualquer preceito

que expressamente reconhecesse a detenccedilatildeo de migrantes num Centro de

Acolhimento Deste modo ainda que vigorasse um acordo bilateral entre a Itaacutelia e a

Tuniacutesia os migrantes natildeo poderiam prever as consequecircncias de um acordo que natildeo foi

tornado puacuteblico e natildeo puderam beneficiar de protecccedilatildeo contra o tratamento arbitraacuterio

Paralelamente ainda que o Governo italiano tenha emitido decisotildees de

extradiccedilatildeo contra os requerentes os fundamentos que justificaram a sua detenccedilatildeo natildeo

soacute natildeo constaram de qualquer documento como natildeo foram os mesmos notificados ateacute

ao repatriamento para a Tuniacutesia Assim entendeu o Tribunal que se verificou uma

violaccedilatildeo do nordm 2 do artigo 5ordm da CEDH (direito a ser-se informado das razotildees da prisatildeo

no mais breve prazo)

Como consequecircncia do facto de natildeo terem sido informados no mais breve

prazo das razotildees da sua detenccedilatildeo natildeo puderam os requerentes em momento algum

questionar a legalidade da sua privaccedilatildeo de liberdade Por este motivo o Tribunal

concluiu pela verificaccedilatildeo da violaccedilatildeo do nordm 4 do artigo 5ordm da CEDH (direito a avaliaccedilatildeo

da legalidade da detenccedilatildeo)

Assistiu-se ainda a uma violaccedilatildeo ao artigo 4ordm do Protocolo nordm 4 da CEDH

(proibiccedilatildeo de expulsatildeo colectiva de estrangeiros) Com efeito o TEDH enfatizou que

ainda que os requerentes tenham sido notificados individualmente da pena de

repulsatildeo natildeo foram inquiridos individualmente e as decisotildees que os abrangeram

continham a mesma redacccedilatildeo sem referecircncia agrave situaccedilatildeo pessoal de cada um A

natureza da expulsatildeo colectiva dos requerentes foi confirmada pelo facto de os

acordos bilaterais com a Tuniacutesia preverem a repatriaccedilatildeo de migrantes tunisinos ilegais

16

Sobre este artigo da CEDH desenvolvidamente e por exemplo HARRIS David et al (2014 pp 287 e ss)

e MOWBRAY (2012 pp 245 e ss)

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ao abrigo de procedimentos simplificados com base na simples identificaccedilatildeo das

pessoas visadas pelas autoridades consulares tunisinas

Acresce que os requerentes natildeo beneficiaram de qualquer meio para reclamar

das condiccedilotildees de detenccedilatildeo no Centro de Acolhimento uma vez que um recurso para

um magistrado apenas poderia dizer respeito agrave legalidade do seu repatriamento para a

Tuniacutesia o que viola o disposto no artigo 13ordm da CEDH (direito a um recurso efectivo) e

conjuntamente no artigo 3ordm do Protocolo nordm 4 (proibiccedilatildeo de expulsatildeo de nacionais) O

facto de o recurso natildeo produzir efeitos suspensivos constitui uma violaccedilatildeo ao artigo

13ordm em conjunto com o artigo 4ordm do Protocolo nordm 4

Finalmente o Tribunal apreciou ainda uma eventual violaccedilatildeo ao artigo 3ordm da

CEDH (proibiccedilatildeo de tortura e tratamentos desumanos) Os magistrados tiveram em

consideraccedilatildeo o facto de a Primavera Aacuterabe em particular os acontecimentos na Tuniacutesia

e na Liacutebia ter produzido um impacto negativo sobre a ilha de Lampedusa que se

deparou com um fluxo migratoacuterio por via mariacutetima extraordinaacuterio o que levou o

Estado italiano a decretar o estado de emergecircncia humanitaacuteria e teve ainda em

atenccedilatildeo o esforccedilo das autoridades em acomodarem os migrantes apoacutes o motim de 20

de Setembro de 2011

Todavia o TEDH sublinhou que alguns relatoacuterios publicados entre os quais os

da Comissatildeo Extraordinaacuteria do Senado italiano e da Amnistia Internacional atestam

que o Centro de Acolhimento de Contrada Imbriacola deparava-se com seacuterios

problemas de sobrelotaccedilatildeo (migrantes que dormiam nos corredores) higiene (cheiros

e serviccedilos sanitaacuterios inutilizaacuteveis) e ausecircncia de contacto com o exterior O Tribunal

relevou o facto de os requerentes se encontrarem vulneraacuteveis apoacutes a realizaccedilatildeo da

travessia mariacutetima Por este motivo o Tribunal concluiu que mesmo apesar de terem

permanecido detidos por quatro dias a sua detenccedilatildeo nas condiccedilotildees referidas diminuiu

a sua dignidade humana ultrapassando a situaccedilatildeo decorrente do sofrimento resultante

da detenccedilatildeo constituindo antes tratamento desumano que viola o artigo 3ordm da CEDH

Este uacuteltimo ponto natildeo obteve unanimidade Destaque-se por exemplo a

opiniatildeo dos juiacutezes Andraacutes Sajoacute e Nebojša Vučinić que aleacutem de considerarem que os

mecanismos de recurso encontravam-se facilmente disponiacuteveis sublinharam que a

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 47

duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

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tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 49

portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 51

Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

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policiais detidos e reconduzidos ao centro de acolhimento junto ao aeroporto de

Lampedusa A 22 de Setembro de 2011 os requerentes embarcaram com destino a

Palermo tendo sido transferidos para navios ali atracados reagrupados nos espaccedilos de

restauraccedilatildeo sem poderem aceder agraves cabines e segundo os mesmos natildeo tiveram outra

alternativa a natildeo ser dormir no chatildeo e esperarem vaacuterias horas para terem acesso agraves

instalaccedilotildees sanitaacuterias dispondo de dois periacuteodos diaacuterios em que podiam deslocar-se

aos varandins do navio Alegaram ter sido insultados e maltratados pelos poliacutecias que

os vigiavam e natildeo terem recebido qualquer tipo de informaccedilatildeo por parte das

autoridades

Permaneceram nesta situaccedilatildeo ateacute aos dias 27 e 29 de Setembro de 2011 datas

em que foram transferidos de Palermo para a Tuniacutesia Durante a permanecircncia nestes

navios os migrantes recebidos pelo cocircnsul da Tuniacutesia e indicaram os seus dados

pessoais por forma a poder formalizar o processo de expatriaccedilatildeo consagrado nos

acordos italo-tunisinos concluiacutedos a 5 de Abril de 2011

Antes da propositura da acccedilatildeo junto do TEDH associaccedilotildees de combate ao

racismo formalizaram uma queixa-crime no Tribunal de Palermo por abuso de funccedilotildees

e detenccedilatildeo ilegal O processo foi arquivado a 3 de Abril de 2012 e o Juiz de Instruccedilatildeo

Criminal do Tribunal de Palermo confirmou esta decisatildeo a 1 de Junho de 2012 A

fundamentaccedilatildeo do JIC incidiu no facto de o Centro de Contrada Imbriacola ter o

objectivo de acolher de auxiliar e fazer face agraves necessidades higieacutenicas dos migrantes

pelo tempo estritamente necessaacuterio antes de encaminhaacute-los para um centro de

identificaccedilatildeo e expulsatildeo ou de tomar decisotildees em seu favor podendo ainda beneficiar

de assistecircncia juriacutedica e obter informaccedilotildees quanto aos procedimentos a tomarem para

darem iniacutecio a um pedido de asilo

Apesar de reconhecer uma certa ldquotendecircncia forccedilada dos requisitos da

intermediaccedilatildeo e da restriccedilatildeo temporaacuteria causada por uma multiplicidade de factores

reconheceu o JIC que estaacute excluiacuteda a ilicitude de tal actuaccedilatildeordquo O JIC realccedilou o facto de

o incecircndio causado pelos tunisinos no Centro ter impossibilitado o Estado italiano de

satisfazer as exigecircncias de acolhimento e resgate dos migrantes situaccedilatildeo que se

agravou e atentou contra a seguranccedila da populaccedilatildeo local quando os cidadatildeos

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tunisinos ameaccedilaram explodir cilindros de gaacutes durante a manifestaccedilatildeo que

organizaram no centro da Vila de Lampedusa o que precipitou a tomada de uma

decisatildeo urgente sustentada no interesse puacuteblico a qual poreacutem natildeo provocou nenhum

ldquodano injustordquo

Relativamente agrave alegada afectaccedilatildeo das condiccedilotildees de sauacutede o JIC salientou que

nenhuma das pessoas a bordo dos navios havia formulado um pedido de asilo e que

quem se encontrava no Centro de Acolhimento antes do incecircndio e formalizou o

pedido fora acompanhado para os centros de Trapani Caltanissetta e Foggia

acrescentando ainda que os menores que se encontravam sozinhos e as graacutevidas

encontravam-se em locais proacuteprios e que todos receberam atendimento meacutedico aacutegua

quente electricidade alimentos e bebidas quentes

Atestou-se ainda que um Deputado do Parlamento italiano visitou os navios

aportados e constatou que se encontravam em boas condiccedilotildees de sauacutede dispondo de

acesso agraves cabines e ainda de locais de culto proacuteprios Foi ainda apurado que o juiz de

paz de Agrigente anulou dois decretos de expatriaccedilatildeo pelo facto de as autoridades

italianas terem tomado 10 e 6 dias respectivamente a decidir numa questatildeo que

afectou a liberdade do destinataacuterio o que por se traduzir numa detenccedilatildeo de facto do

migrante constitui uma violaccedilatildeo agrave Constituiccedilatildeo

Natildeo obstante a decisatildeo e a fundamentaccedilatildeo do poder judicial transalpino o

TEDH condenou o Estado italiano ao pagamento de uma indemnizaccedilatildeo por danos natildeo

patrimoniais no valor de euro10000 a cada um dos requerentes e ao pagamento de

euro934451 pelos trecircs a tiacutetulo de custas e despesas processuais

3 FUNDAMENTACcedilAtildeO DA DECISAtildeO

O colectivo de juiacutezes do TEDH condenou a Itaacutelia por violaccedilatildeo de seis disposiccedilotildees

consagradas na Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos em trecircs verificou-se

unanimidade entre os magistrados nas outras trecircs maioria

Em primeiro lugar o Tribunal apurou que os requerentes natildeo eram livres de

abandonar quer o Centro de Acolhimento quer posteriormente os navios para onde

foram transferidos e que foram designados como uma ldquoextensatildeo do Centro de

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Acolhimentordquo Foram sujeitos a vigilacircncia constante pela poliacutecia e proibidos de

comunicarem com o exterior Face ao exposto entendeu-se ter sido violado o nordm 1 do

artigo 5ordm da CEDH (direito agrave liberdade e agrave seguranccedila) 16

Ainda que este preceito permita que os Estados restrinjam a liberdade de

estrangeiros para fins de controlos migratoacuterios qualquer privaccedilatildeo de liberdade deve

decorrer da aplicaccedilatildeo de uma base legal interna por questotildees de seguranccedila juriacutedica o

que natildeo se verificava no ordenamento juriacutedico italiano onde inexistia qualquer preceito

que expressamente reconhecesse a detenccedilatildeo de migrantes num Centro de

Acolhimento Deste modo ainda que vigorasse um acordo bilateral entre a Itaacutelia e a

Tuniacutesia os migrantes natildeo poderiam prever as consequecircncias de um acordo que natildeo foi

tornado puacuteblico e natildeo puderam beneficiar de protecccedilatildeo contra o tratamento arbitraacuterio

Paralelamente ainda que o Governo italiano tenha emitido decisotildees de

extradiccedilatildeo contra os requerentes os fundamentos que justificaram a sua detenccedilatildeo natildeo

soacute natildeo constaram de qualquer documento como natildeo foram os mesmos notificados ateacute

ao repatriamento para a Tuniacutesia Assim entendeu o Tribunal que se verificou uma

violaccedilatildeo do nordm 2 do artigo 5ordm da CEDH (direito a ser-se informado das razotildees da prisatildeo

no mais breve prazo)

Como consequecircncia do facto de natildeo terem sido informados no mais breve

prazo das razotildees da sua detenccedilatildeo natildeo puderam os requerentes em momento algum

questionar a legalidade da sua privaccedilatildeo de liberdade Por este motivo o Tribunal

concluiu pela verificaccedilatildeo da violaccedilatildeo do nordm 4 do artigo 5ordm da CEDH (direito a avaliaccedilatildeo

da legalidade da detenccedilatildeo)

Assistiu-se ainda a uma violaccedilatildeo ao artigo 4ordm do Protocolo nordm 4 da CEDH

(proibiccedilatildeo de expulsatildeo colectiva de estrangeiros) Com efeito o TEDH enfatizou que

ainda que os requerentes tenham sido notificados individualmente da pena de

repulsatildeo natildeo foram inquiridos individualmente e as decisotildees que os abrangeram

continham a mesma redacccedilatildeo sem referecircncia agrave situaccedilatildeo pessoal de cada um A

natureza da expulsatildeo colectiva dos requerentes foi confirmada pelo facto de os

acordos bilaterais com a Tuniacutesia preverem a repatriaccedilatildeo de migrantes tunisinos ilegais

16

Sobre este artigo da CEDH desenvolvidamente e por exemplo HARRIS David et al (2014 pp 287 e ss)

e MOWBRAY (2012 pp 245 e ss)

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ao abrigo de procedimentos simplificados com base na simples identificaccedilatildeo das

pessoas visadas pelas autoridades consulares tunisinas

Acresce que os requerentes natildeo beneficiaram de qualquer meio para reclamar

das condiccedilotildees de detenccedilatildeo no Centro de Acolhimento uma vez que um recurso para

um magistrado apenas poderia dizer respeito agrave legalidade do seu repatriamento para a

Tuniacutesia o que viola o disposto no artigo 13ordm da CEDH (direito a um recurso efectivo) e

conjuntamente no artigo 3ordm do Protocolo nordm 4 (proibiccedilatildeo de expulsatildeo de nacionais) O

facto de o recurso natildeo produzir efeitos suspensivos constitui uma violaccedilatildeo ao artigo

13ordm em conjunto com o artigo 4ordm do Protocolo nordm 4

Finalmente o Tribunal apreciou ainda uma eventual violaccedilatildeo ao artigo 3ordm da

CEDH (proibiccedilatildeo de tortura e tratamentos desumanos) Os magistrados tiveram em

consideraccedilatildeo o facto de a Primavera Aacuterabe em particular os acontecimentos na Tuniacutesia

e na Liacutebia ter produzido um impacto negativo sobre a ilha de Lampedusa que se

deparou com um fluxo migratoacuterio por via mariacutetima extraordinaacuterio o que levou o

Estado italiano a decretar o estado de emergecircncia humanitaacuteria e teve ainda em

atenccedilatildeo o esforccedilo das autoridades em acomodarem os migrantes apoacutes o motim de 20

de Setembro de 2011

Todavia o TEDH sublinhou que alguns relatoacuterios publicados entre os quais os

da Comissatildeo Extraordinaacuteria do Senado italiano e da Amnistia Internacional atestam

que o Centro de Acolhimento de Contrada Imbriacola deparava-se com seacuterios

problemas de sobrelotaccedilatildeo (migrantes que dormiam nos corredores) higiene (cheiros

e serviccedilos sanitaacuterios inutilizaacuteveis) e ausecircncia de contacto com o exterior O Tribunal

relevou o facto de os requerentes se encontrarem vulneraacuteveis apoacutes a realizaccedilatildeo da

travessia mariacutetima Por este motivo o Tribunal concluiu que mesmo apesar de terem

permanecido detidos por quatro dias a sua detenccedilatildeo nas condiccedilotildees referidas diminuiu

a sua dignidade humana ultrapassando a situaccedilatildeo decorrente do sofrimento resultante

da detenccedilatildeo constituindo antes tratamento desumano que viola o artigo 3ordm da CEDH

Este uacuteltimo ponto natildeo obteve unanimidade Destaque-se por exemplo a

opiniatildeo dos juiacutezes Andraacutes Sajoacute e Nebojša Vučinić que aleacutem de considerarem que os

mecanismos de recurso encontravam-se facilmente disponiacuteveis sublinharam que a

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 47

duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 48

tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 49

portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

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tunisinos ameaccedilaram explodir cilindros de gaacutes durante a manifestaccedilatildeo que

organizaram no centro da Vila de Lampedusa o que precipitou a tomada de uma

decisatildeo urgente sustentada no interesse puacuteblico a qual poreacutem natildeo provocou nenhum

ldquodano injustordquo

Relativamente agrave alegada afectaccedilatildeo das condiccedilotildees de sauacutede o JIC salientou que

nenhuma das pessoas a bordo dos navios havia formulado um pedido de asilo e que

quem se encontrava no Centro de Acolhimento antes do incecircndio e formalizou o

pedido fora acompanhado para os centros de Trapani Caltanissetta e Foggia

acrescentando ainda que os menores que se encontravam sozinhos e as graacutevidas

encontravam-se em locais proacuteprios e que todos receberam atendimento meacutedico aacutegua

quente electricidade alimentos e bebidas quentes

Atestou-se ainda que um Deputado do Parlamento italiano visitou os navios

aportados e constatou que se encontravam em boas condiccedilotildees de sauacutede dispondo de

acesso agraves cabines e ainda de locais de culto proacuteprios Foi ainda apurado que o juiz de

paz de Agrigente anulou dois decretos de expatriaccedilatildeo pelo facto de as autoridades

italianas terem tomado 10 e 6 dias respectivamente a decidir numa questatildeo que

afectou a liberdade do destinataacuterio o que por se traduzir numa detenccedilatildeo de facto do

migrante constitui uma violaccedilatildeo agrave Constituiccedilatildeo

Natildeo obstante a decisatildeo e a fundamentaccedilatildeo do poder judicial transalpino o

TEDH condenou o Estado italiano ao pagamento de uma indemnizaccedilatildeo por danos natildeo

patrimoniais no valor de euro10000 a cada um dos requerentes e ao pagamento de

euro934451 pelos trecircs a tiacutetulo de custas e despesas processuais

3 FUNDAMENTACcedilAtildeO DA DECISAtildeO

O colectivo de juiacutezes do TEDH condenou a Itaacutelia por violaccedilatildeo de seis disposiccedilotildees

consagradas na Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos em trecircs verificou-se

unanimidade entre os magistrados nas outras trecircs maioria

Em primeiro lugar o Tribunal apurou que os requerentes natildeo eram livres de

abandonar quer o Centro de Acolhimento quer posteriormente os navios para onde

foram transferidos e que foram designados como uma ldquoextensatildeo do Centro de

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Acolhimentordquo Foram sujeitos a vigilacircncia constante pela poliacutecia e proibidos de

comunicarem com o exterior Face ao exposto entendeu-se ter sido violado o nordm 1 do

artigo 5ordm da CEDH (direito agrave liberdade e agrave seguranccedila) 16

Ainda que este preceito permita que os Estados restrinjam a liberdade de

estrangeiros para fins de controlos migratoacuterios qualquer privaccedilatildeo de liberdade deve

decorrer da aplicaccedilatildeo de uma base legal interna por questotildees de seguranccedila juriacutedica o

que natildeo se verificava no ordenamento juriacutedico italiano onde inexistia qualquer preceito

que expressamente reconhecesse a detenccedilatildeo de migrantes num Centro de

Acolhimento Deste modo ainda que vigorasse um acordo bilateral entre a Itaacutelia e a

Tuniacutesia os migrantes natildeo poderiam prever as consequecircncias de um acordo que natildeo foi

tornado puacuteblico e natildeo puderam beneficiar de protecccedilatildeo contra o tratamento arbitraacuterio

Paralelamente ainda que o Governo italiano tenha emitido decisotildees de

extradiccedilatildeo contra os requerentes os fundamentos que justificaram a sua detenccedilatildeo natildeo

soacute natildeo constaram de qualquer documento como natildeo foram os mesmos notificados ateacute

ao repatriamento para a Tuniacutesia Assim entendeu o Tribunal que se verificou uma

violaccedilatildeo do nordm 2 do artigo 5ordm da CEDH (direito a ser-se informado das razotildees da prisatildeo

no mais breve prazo)

Como consequecircncia do facto de natildeo terem sido informados no mais breve

prazo das razotildees da sua detenccedilatildeo natildeo puderam os requerentes em momento algum

questionar a legalidade da sua privaccedilatildeo de liberdade Por este motivo o Tribunal

concluiu pela verificaccedilatildeo da violaccedilatildeo do nordm 4 do artigo 5ordm da CEDH (direito a avaliaccedilatildeo

da legalidade da detenccedilatildeo)

Assistiu-se ainda a uma violaccedilatildeo ao artigo 4ordm do Protocolo nordm 4 da CEDH

(proibiccedilatildeo de expulsatildeo colectiva de estrangeiros) Com efeito o TEDH enfatizou que

ainda que os requerentes tenham sido notificados individualmente da pena de

repulsatildeo natildeo foram inquiridos individualmente e as decisotildees que os abrangeram

continham a mesma redacccedilatildeo sem referecircncia agrave situaccedilatildeo pessoal de cada um A

natureza da expulsatildeo colectiva dos requerentes foi confirmada pelo facto de os

acordos bilaterais com a Tuniacutesia preverem a repatriaccedilatildeo de migrantes tunisinos ilegais

16

Sobre este artigo da CEDH desenvolvidamente e por exemplo HARRIS David et al (2014 pp 287 e ss)

e MOWBRAY (2012 pp 245 e ss)

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ao abrigo de procedimentos simplificados com base na simples identificaccedilatildeo das

pessoas visadas pelas autoridades consulares tunisinas

Acresce que os requerentes natildeo beneficiaram de qualquer meio para reclamar

das condiccedilotildees de detenccedilatildeo no Centro de Acolhimento uma vez que um recurso para

um magistrado apenas poderia dizer respeito agrave legalidade do seu repatriamento para a

Tuniacutesia o que viola o disposto no artigo 13ordm da CEDH (direito a um recurso efectivo) e

conjuntamente no artigo 3ordm do Protocolo nordm 4 (proibiccedilatildeo de expulsatildeo de nacionais) O

facto de o recurso natildeo produzir efeitos suspensivos constitui uma violaccedilatildeo ao artigo

13ordm em conjunto com o artigo 4ordm do Protocolo nordm 4

Finalmente o Tribunal apreciou ainda uma eventual violaccedilatildeo ao artigo 3ordm da

CEDH (proibiccedilatildeo de tortura e tratamentos desumanos) Os magistrados tiveram em

consideraccedilatildeo o facto de a Primavera Aacuterabe em particular os acontecimentos na Tuniacutesia

e na Liacutebia ter produzido um impacto negativo sobre a ilha de Lampedusa que se

deparou com um fluxo migratoacuterio por via mariacutetima extraordinaacuterio o que levou o

Estado italiano a decretar o estado de emergecircncia humanitaacuteria e teve ainda em

atenccedilatildeo o esforccedilo das autoridades em acomodarem os migrantes apoacutes o motim de 20

de Setembro de 2011

Todavia o TEDH sublinhou que alguns relatoacuterios publicados entre os quais os

da Comissatildeo Extraordinaacuteria do Senado italiano e da Amnistia Internacional atestam

que o Centro de Acolhimento de Contrada Imbriacola deparava-se com seacuterios

problemas de sobrelotaccedilatildeo (migrantes que dormiam nos corredores) higiene (cheiros

e serviccedilos sanitaacuterios inutilizaacuteveis) e ausecircncia de contacto com o exterior O Tribunal

relevou o facto de os requerentes se encontrarem vulneraacuteveis apoacutes a realizaccedilatildeo da

travessia mariacutetima Por este motivo o Tribunal concluiu que mesmo apesar de terem

permanecido detidos por quatro dias a sua detenccedilatildeo nas condiccedilotildees referidas diminuiu

a sua dignidade humana ultrapassando a situaccedilatildeo decorrente do sofrimento resultante

da detenccedilatildeo constituindo antes tratamento desumano que viola o artigo 3ordm da CEDH

Este uacuteltimo ponto natildeo obteve unanimidade Destaque-se por exemplo a

opiniatildeo dos juiacutezes Andraacutes Sajoacute e Nebojša Vučinić que aleacutem de considerarem que os

mecanismos de recurso encontravam-se facilmente disponiacuteveis sublinharam que a

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duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

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tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 51

Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 52

Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 53

Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

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situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

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Acolhimentordquo Foram sujeitos a vigilacircncia constante pela poliacutecia e proibidos de

comunicarem com o exterior Face ao exposto entendeu-se ter sido violado o nordm 1 do

artigo 5ordm da CEDH (direito agrave liberdade e agrave seguranccedila) 16

Ainda que este preceito permita que os Estados restrinjam a liberdade de

estrangeiros para fins de controlos migratoacuterios qualquer privaccedilatildeo de liberdade deve

decorrer da aplicaccedilatildeo de uma base legal interna por questotildees de seguranccedila juriacutedica o

que natildeo se verificava no ordenamento juriacutedico italiano onde inexistia qualquer preceito

que expressamente reconhecesse a detenccedilatildeo de migrantes num Centro de

Acolhimento Deste modo ainda que vigorasse um acordo bilateral entre a Itaacutelia e a

Tuniacutesia os migrantes natildeo poderiam prever as consequecircncias de um acordo que natildeo foi

tornado puacuteblico e natildeo puderam beneficiar de protecccedilatildeo contra o tratamento arbitraacuterio

Paralelamente ainda que o Governo italiano tenha emitido decisotildees de

extradiccedilatildeo contra os requerentes os fundamentos que justificaram a sua detenccedilatildeo natildeo

soacute natildeo constaram de qualquer documento como natildeo foram os mesmos notificados ateacute

ao repatriamento para a Tuniacutesia Assim entendeu o Tribunal que se verificou uma

violaccedilatildeo do nordm 2 do artigo 5ordm da CEDH (direito a ser-se informado das razotildees da prisatildeo

no mais breve prazo)

Como consequecircncia do facto de natildeo terem sido informados no mais breve

prazo das razotildees da sua detenccedilatildeo natildeo puderam os requerentes em momento algum

questionar a legalidade da sua privaccedilatildeo de liberdade Por este motivo o Tribunal

concluiu pela verificaccedilatildeo da violaccedilatildeo do nordm 4 do artigo 5ordm da CEDH (direito a avaliaccedilatildeo

da legalidade da detenccedilatildeo)

Assistiu-se ainda a uma violaccedilatildeo ao artigo 4ordm do Protocolo nordm 4 da CEDH

(proibiccedilatildeo de expulsatildeo colectiva de estrangeiros) Com efeito o TEDH enfatizou que

ainda que os requerentes tenham sido notificados individualmente da pena de

repulsatildeo natildeo foram inquiridos individualmente e as decisotildees que os abrangeram

continham a mesma redacccedilatildeo sem referecircncia agrave situaccedilatildeo pessoal de cada um A

natureza da expulsatildeo colectiva dos requerentes foi confirmada pelo facto de os

acordos bilaterais com a Tuniacutesia preverem a repatriaccedilatildeo de migrantes tunisinos ilegais

16

Sobre este artigo da CEDH desenvolvidamente e por exemplo HARRIS David et al (2014 pp 287 e ss)

e MOWBRAY (2012 pp 245 e ss)

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ao abrigo de procedimentos simplificados com base na simples identificaccedilatildeo das

pessoas visadas pelas autoridades consulares tunisinas

Acresce que os requerentes natildeo beneficiaram de qualquer meio para reclamar

das condiccedilotildees de detenccedilatildeo no Centro de Acolhimento uma vez que um recurso para

um magistrado apenas poderia dizer respeito agrave legalidade do seu repatriamento para a

Tuniacutesia o que viola o disposto no artigo 13ordm da CEDH (direito a um recurso efectivo) e

conjuntamente no artigo 3ordm do Protocolo nordm 4 (proibiccedilatildeo de expulsatildeo de nacionais) O

facto de o recurso natildeo produzir efeitos suspensivos constitui uma violaccedilatildeo ao artigo

13ordm em conjunto com o artigo 4ordm do Protocolo nordm 4

Finalmente o Tribunal apreciou ainda uma eventual violaccedilatildeo ao artigo 3ordm da

CEDH (proibiccedilatildeo de tortura e tratamentos desumanos) Os magistrados tiveram em

consideraccedilatildeo o facto de a Primavera Aacuterabe em particular os acontecimentos na Tuniacutesia

e na Liacutebia ter produzido um impacto negativo sobre a ilha de Lampedusa que se

deparou com um fluxo migratoacuterio por via mariacutetima extraordinaacuterio o que levou o

Estado italiano a decretar o estado de emergecircncia humanitaacuteria e teve ainda em

atenccedilatildeo o esforccedilo das autoridades em acomodarem os migrantes apoacutes o motim de 20

de Setembro de 2011

Todavia o TEDH sublinhou que alguns relatoacuterios publicados entre os quais os

da Comissatildeo Extraordinaacuteria do Senado italiano e da Amnistia Internacional atestam

que o Centro de Acolhimento de Contrada Imbriacola deparava-se com seacuterios

problemas de sobrelotaccedilatildeo (migrantes que dormiam nos corredores) higiene (cheiros

e serviccedilos sanitaacuterios inutilizaacuteveis) e ausecircncia de contacto com o exterior O Tribunal

relevou o facto de os requerentes se encontrarem vulneraacuteveis apoacutes a realizaccedilatildeo da

travessia mariacutetima Por este motivo o Tribunal concluiu que mesmo apesar de terem

permanecido detidos por quatro dias a sua detenccedilatildeo nas condiccedilotildees referidas diminuiu

a sua dignidade humana ultrapassando a situaccedilatildeo decorrente do sofrimento resultante

da detenccedilatildeo constituindo antes tratamento desumano que viola o artigo 3ordm da CEDH

Este uacuteltimo ponto natildeo obteve unanimidade Destaque-se por exemplo a

opiniatildeo dos juiacutezes Andraacutes Sajoacute e Nebojša Vučinić que aleacutem de considerarem que os

mecanismos de recurso encontravam-se facilmente disponiacuteveis sublinharam que a

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duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 48

tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 49

portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

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Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

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ao abrigo de procedimentos simplificados com base na simples identificaccedilatildeo das

pessoas visadas pelas autoridades consulares tunisinas

Acresce que os requerentes natildeo beneficiaram de qualquer meio para reclamar

das condiccedilotildees de detenccedilatildeo no Centro de Acolhimento uma vez que um recurso para

um magistrado apenas poderia dizer respeito agrave legalidade do seu repatriamento para a

Tuniacutesia o que viola o disposto no artigo 13ordm da CEDH (direito a um recurso efectivo) e

conjuntamente no artigo 3ordm do Protocolo nordm 4 (proibiccedilatildeo de expulsatildeo de nacionais) O

facto de o recurso natildeo produzir efeitos suspensivos constitui uma violaccedilatildeo ao artigo

13ordm em conjunto com o artigo 4ordm do Protocolo nordm 4

Finalmente o Tribunal apreciou ainda uma eventual violaccedilatildeo ao artigo 3ordm da

CEDH (proibiccedilatildeo de tortura e tratamentos desumanos) Os magistrados tiveram em

consideraccedilatildeo o facto de a Primavera Aacuterabe em particular os acontecimentos na Tuniacutesia

e na Liacutebia ter produzido um impacto negativo sobre a ilha de Lampedusa que se

deparou com um fluxo migratoacuterio por via mariacutetima extraordinaacuterio o que levou o

Estado italiano a decretar o estado de emergecircncia humanitaacuteria e teve ainda em

atenccedilatildeo o esforccedilo das autoridades em acomodarem os migrantes apoacutes o motim de 20

de Setembro de 2011

Todavia o TEDH sublinhou que alguns relatoacuterios publicados entre os quais os

da Comissatildeo Extraordinaacuteria do Senado italiano e da Amnistia Internacional atestam

que o Centro de Acolhimento de Contrada Imbriacola deparava-se com seacuterios

problemas de sobrelotaccedilatildeo (migrantes que dormiam nos corredores) higiene (cheiros

e serviccedilos sanitaacuterios inutilizaacuteveis) e ausecircncia de contacto com o exterior O Tribunal

relevou o facto de os requerentes se encontrarem vulneraacuteveis apoacutes a realizaccedilatildeo da

travessia mariacutetima Por este motivo o Tribunal concluiu que mesmo apesar de terem

permanecido detidos por quatro dias a sua detenccedilatildeo nas condiccedilotildees referidas diminuiu

a sua dignidade humana ultrapassando a situaccedilatildeo decorrente do sofrimento resultante

da detenccedilatildeo constituindo antes tratamento desumano que viola o artigo 3ordm da CEDH

Este uacuteltimo ponto natildeo obteve unanimidade Destaque-se por exemplo a

opiniatildeo dos juiacutezes Andraacutes Sajoacute e Nebojša Vučinić que aleacutem de considerarem que os

mecanismos de recurso encontravam-se facilmente disponiacuteveis sublinharam que a

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duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

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tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 47

duraccedilatildeo dos tratamentos desumanos eacute um factor determinante para a verificaccedilatildeo da

violaccedilatildeo do artigo 3ordm do CEDH recordando acoacuterdatildeos do TEDH nesse sentido 17

Aleacutem de questionarem que as condiccedilotildees descritas atentaram contra a sauacutede dos

requerentes reforccedilam que embora se possa concluir pela verificaccedilatildeo de tratamento

desumano num curto espaccedilo de tempo o TEDH concluiu por diversas vezes que tal

ocorre quando se verificam outros elementos especialmente graves que satildeo decisivos

para a determinaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo pelo que agora o reconhecimento do Tribunal

segundo o qual a sujeiccedilatildeo agraves condiccedilotildees de detenccedilatildeo ocorreu num curto espaccedilo de

tempo deveria ser decisivo para rejeitar a verificaccedilatildeo de tratamentos desumanos pelo

Estado italiano18

Os dois magistrados questionam ainda a verificaccedilatildeo de ldquoexpulsatildeo colectivardquo

uma vez que este conceito embora privilegie o princiacutepio fundamental do tratamento

individual tem sido aplicado pelo TEDH em situaccedilotildees raras19 e tende a ser aplicaacutevel a

casos de expulsatildeo em massa de um grupo pelas caracteriacutesticas em comum que tecircm

entre si20 distinguindo-se do conceito de ldquoexpulsatildeo simultacircneardquo de um certo nuacutemero

de pessoas que se encontram em situaccedilatildeo semelhante

Assim o facto de os requerentes natildeo terem sido expulsos por pertencerem a

um grupo eacutetnico religioso ou nacional e natildeo terem formalizado pedido de asilo

permite concluir que o presente caso eacute semelhante ao processo ldquoMA contra Chiprerdquo

(nordm 4187210) onde o TEDH considerou que ldquoo facto de os decretos de expulsatildeo e os

documentos correspondentes terem sido concebidos em formato padratildeo sendo como

17

Mais concretamente os processos ldquoGorea contra Moldaacuteviardquo (nordm 2198405) ldquoTerziev contra Bulgaacuteriardquo (nordm

6259400) ldquoKaralevicius contra Lituacircniardquo (nordm 5325499) e mais recentemente ldquoTarakhel contra Suiacuteccedilardquo (nordm

2921712) 18

Por exemplo em situaccedilotildees de detenccedilatildeo de deficientes mentais de obrigaccedilatildeo de o detido passar a noite

num espaccedilo reduzido onde natildeo se possa instalar convenientemente ou aceder aos sanitaacuterios ou o

confinamento a um local natildeo adaptado ao acolhimento de pessoas ou que se revele perigoso 19

O TEDH considerou que ocorreu ldquoexpulsatildeo colectivardquo em quatro processos e de duas formas distintas

atraveacutes da identificaccedilatildeo de indiviacuteduos em vias de expulsatildeo com base na sua pertenccedila a um grupo com

caracteriacutesticas comuns como sucedeu nos processos ldquoConka contra Beacutelgicardquo (nordm 5156499) ldquoGeoacutergia

contra Ruacutessiardquo (nordm 1325507) e atraveacutes da identificaccedilatildeo de um grupo de indiviacuteduos que se encontram

fisicamente juntos sem considerar a identidade dos mesmos conforme se verificou nos processos ldquoHirsi

Jamma e outros contra Itaacuteliardquo (nordm 2776509) e ldquoSharifi e outros contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm 1664309) 20

Por exemplo criteacuterios eacutetnicos

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 48

tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 49

portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 51

Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 52

Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 53

Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

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tal idecircnticos e o facto de natildeo mencionarem expressamente as decisotildees precedentes

relativamente ao processo de asilordquo natildeo eacute ldquorevelador de uma expulsatildeo colectivardquo21

4 O CONTEXTO COSMOPOLITA E A CEDH

A decisatildeo que se analisa eacute uma demonstraccedilatildeo inegaacutevel da emergecircncia de um

direito cosmopolita (ou se preferirmos um direito global)22 Na verdade a possibilidade

de os particulares (inclusivamente organizaccedilotildees natildeo governamentais) poderem

demandar um Estado pela violaccedilatildeo da CEDH23 ndash ultrapassando assim a concepccedilatildeo de

que o Direito Internacional Puacuteblico eacute um mero Direito entre Estados ndash permite desde

logo demonstrar que as regras previstas na CEDH protegem os particulares de

violaccedilotildees aos direitos humanos que ocorram no espaccedilo das fronteiras do Estado e da

comunidade poliacutetica em que se inserem24 Com efeito este direito cosmopolita implica

primacialmente a emergecircncia de ldquoum sistema juriacutedico em que o poder puacuteblico tem

como obrigaccedilatildeo de no seio da sua jurisdiccedilatildeo assegurar o respeito pelos direitos

fundamentais de qualquer pessoa independente da nacionalidade ou cidadania da

mesmardquo25

Esta constataccedilatildeo eacute passiacutevel de contextualizaccedilatildeo agrave luz das vaacuterias concepccedilotildees do

direito cosmopolita sem prejuiacutezo de uma anaacutelise exaustiva que natildeo cabe no presente

trabalho26 Na sua origem eacute consensual que a conceptualizaccedilatildeo do direito cosmopolita

eacute profundamente tributaacuteria do trabalho de IMMANUEL KANT Este autor entendia que a

existecircncia de um direito mundial (Weltrecht) estabelece uma garantia global de o

cidadatildeo do mundo ser tratado em todos os locais do mundo como tal sendo

21

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2013) Case of MA v Cyprus [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em httphudocechrcoeint sect246 22

Considerando precisamente ndash ao analisar o direito cosmopolita de Ulrich Beck ndash que ldquoIt is the reality of

our timesrdquo Cfr BLANK (2014 pp 65 e ss) 23

Com efeito nos termos do artigo 34ordm da CEDH ldquoO Tribunal pode receber peticcedilotildees de qualquer pessoa

singular organizaccedilatildeo natildeo governamental ou grupo de particulares que se considere viacutetima de violaccedilatildeo por

qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenccedilatildeo ou nos seus protocolos As Altas

Partes Contratantes comprometem-se a natildeo criar qualquer entrave ao exerciacutecio efectivo desse direitordquo

Sobre o indiviacuteduo como sujeito de direito internacional cfr entre outros ESTEVES (1986 pp 185 e ss) e

VILELA (2014 pp 779 e ss) 24

Cfr DOMINGO (2010 p 36) 25

SWEET (2012 p 60) 26

Cfr por todos KOumlHLER (2006 pp 32 e ss)

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 49

portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 51

Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 52

Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 53

Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

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Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 49

portanto exigiacutevel que obtenha um tratamento paciacutefico 27 e de acordo com a sua

condiccedilatildeo 28

O direito cosmopolita eacute no entanto ainda uma arena propiacutecia a debates e a

divergecircncias que tornam a construccedilatildeo cosmopolita permeaacutevel a um desafio que

envolve tambeacutem o ordenamento juriacutedico nacional Eacute que natildeo se encontra ainda

resolvida a interacccedilatildeo entre este direito cosmopolita e o Estado nacional soberano que

impotildee limites e regras que ainda natildeo tutelam adequadamente os direitos e as posiccedilotildees

juriacutedicas dos refugiados29

Na verdade a crescente vaga de refugiados que ndash numa dimensatildeo sem

precedentes no seacutec XXI ndash colocou em particular os Estados mais procurados por estes

num cenaacuterio de insuficiecircncia30 ndash que natildeo eacute todavia autoprovocado ndash de meios

humanos e fiacutesicos para acolher aqueles que mais precisam de auxiacutelio para fugir de um

panorama aterrador no seu paiacutes de origem

Esta circunstacircncia coloca em crise um dos supostos pressupostos do direito

cosmopolita kantiano o tratamento dos migrantes como cidadatildeos cosmopolitas 31

Sem condiccedilotildees para receber condignamente os cidadatildeos mundiais (migrantes) torna-

se imperativo perceber qual a soluccedilatildeo para um dilema acentuado que se manifesta da

seguinte forma (i) ou os migrantes satildeo simplesmente repatriados (ii) ou poderatildeo ser

recebidos no Estado de acolhimento sem condiccedilotildees suficientes dignas para a sua

condiccedilatildeo humana e de cidadatildeos mundiais (iii) ou por uacuteltimo o Estado de acolhimento

tem a responsabilidade de garantir aos migrantes todas as condiccedilotildees econoacutemicas e de

27

Sobre este contexto no projecto de paz de Kant cfr WOOD (1998 pp 59 e ss) 28

Sobre a questatildeo com indicaccedilotildees cfr SCHMALZ (2016 pp 226 e ss) A Convenccedilatildeo de Genebra relativa

ao Estatuto dos Refugiados adopta precisamente esta concepccedilatildeo ao estabelecer no artigo 32ordm nordm 1 que

ldquoNenhum dos Estados Contratantes expulsaraacute ou repeliraacute um refugiado seja de que maneira for para as

fronteiras dos territoacuterios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaccedilados em virtude da sua raccedila

religiatildeo nacionalidade filiaccedilatildeo em certo grupo social ou opiniotildees poliacuteticasrdquo 29

Neste sentido cfr SCHMALZ (2016 p 237) Sobre as interacccedilotildees entre o direito nacional e o direito

cosmopolita em mateacuteria de refugiados cfr BUCKEL (2013 pp 49 e ss) e BABAN (2013 pp 217 e ss) 30

Satildeo conhecidas as condiccedilotildees em que os refugiados satildeo acolhidos sujeitando-se a viver em habitaccedilotildees

precaacuterias durante vaacuterios anos com as limitaccedilotildees evidentes que envolvem a vida num campo de refugiado

Sobre esta questatildeo cfr por todos AGUIER (2011 pp 36 e ss) 31

Sem prejuiacutezo de se discutir inclusivamente se existe um direito humano agrave migraccedilatildeo cfr VALADEZ (2010

pp 221 e ss)

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sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 51

Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 52

Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 53

Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

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Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

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Page 13: LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA · eficaz de garantir o acesso de cidadãos egípcios, líbios e tunisinos a países ou localidades onde pudessem sentir-se protegidos face

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 50

sobrevivecircncia que merecem todos os seres humanos mas natildeo o podendo fazer tecircm

que responsabilizar-se pela inexistecircncia daquelas condiccedilotildees32

A soluccedilatildeo pode variar consoante a compreensatildeo teoacuterica que se adopte em

torno do direito cosmopolita (Held 2010 pp 14 e ss) Com efeito na decisatildeo

analisada parece-nos que o TEDH parte de uma concepccedilatildeo adequada do conteuacutedo do

direito cosmopolita na medida em que compreende que este deve consubstanciar um

compromisso de protecccedilatildeo dos direitos humanos de qualquer cidadatildeo que se encontre

no territoacuterio de uma das partes contratantes

O direito cosmopolita deixa assim de ser entendido como uma forma de

unitarizaccedilatildeo (e de imposiccedilatildeo da maioria agrave minoria) dos valores de uma determinada

comunidade33 sendo que os respectivos mecanismos de protecccedilatildeo natildeo se dirigem

somente aos cidadatildeos de uma determinada comunidade mas tambeacutem aos cidadatildeos

mundiais34 O conteuacutedo do direito cosmopolita do TEDH permite portanto assumir

uma inclusatildeo dos cidadatildeos do mundo num direito de aplicaccedilatildeo universal mas que

protege direitos humanos seguindo uma loacutegica de que os cidadatildeos

(independentemente da sua comunidade de origem) tecircm uma igualdade axioloacutegica

(Ingram 2013 pp 226 e ss) Eacute assim portanto que o sistema de protecccedilatildeo da CEDH

evita ldquopassa[r] a oferecer cauccedilatildeo a todo e qualquer sistema desde que funcionalrdquo

(Coutinho 2009 p 537)

32

Importa proceder agrave distinccedilatildeo entre os conceitos de refugiado e migrante O primeiro tem como base

desde logo a Convenccedilatildeo de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados e serve para qualificar

uma pessoa humana que se encontra fora do paiacutes da sua nacionalidade por ser ou temer ser perseguida

por motivos de raccedila religiatildeo nacionalidade grupo social ou opiniotildees poliacuteticas e agrave qual eacute garantido asilo

No plano europeu o conceito de perseguiccedilatildeo refere aparentemente situaccedilotildees mais concretas de

perseguiccedilatildeo conforme resulta das Directivas nordms 200483CE do Conselho de 29 de Abril 200585CE do

Conselho de 1 de Dezembro 201195UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro

201332UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho e 201333UE do Parlamento

Europeu e do Conselho de 26 de Junho Por outro lado o conceito de migrante eacute aplicaacutevel agraves pessoas

humanas que abandonam o paiacutes da sua nacionalidade rumo a um terceiro Estado tendo motivaccedilotildees

puramente econoacutemicas Embora um migrante possa ambicionar a concessatildeo de asilo enquanto a

protecccedilatildeo natildeo lhe eacute concedida manter-se-aacute como migrante ou mero requerente de asilo natildeo sendo

portanto um refugiado Neste sentido cfr Guerreiro (2016 pp 165-170) 33

Conforme reconhece Schmalz (2016 p 237) a questatildeo natildeo estaacute tanto em saber se o direito cosmopolita

eacute uma soluccedilatildeo mas qual o direito cosmopolita e na necessidade de incorporar elementos criacuteticos na

construccedilatildeo teoacuterica que envolve soluccedilotildees globais 34

Afastamo-nos portanto das consequecircncias que se retiram da concepccedilatildeo de Walzer (2002 pp 125 e ss)

que nega a existecircncia de cidadatildeos mundiais

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 51

Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 52

Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 53

Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

httpwwwunhcrorg

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

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Page 14: LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA · eficaz de garantir o acesso de cidadãos egípcios, líbios e tunisinos a países ou localidades onde pudessem sentir-se protegidos face

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 51

Com efeito eacute perfeitamente plausiacutevel afirmar que ldquoo reforccedilo do regime

internacional de prote[c]ccedilatildeo de direitos humanos ndash com a progressiva afirmaccedilatildeo de um

princiacutepio de equiparaccedilatildeo entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos em nome o princiacutepio da

dignidade humanardquo se assume determinante para a ldquodesvalorizaccedilatildeo da nacionalidaderdquo

(Medeiros 2014 pp 303 e 304) e implica ldquouma esperanccedila de aproximaccedilatildeo dos

indiviacuteduos libertando-os do fardo de terem nascido num local inoacutespito e esquecido do

planetardquo (Roque 2014 p 875)

Neste sentido podemos desde logo concluir que a primeira opccedilatildeo das

soluccedilotildees que apontaacutemos para resolver o dilema do acolhimento de migrantes eacute sem

margem para duacutevidas a que menos seguranccedila na sustentaccedilatildeo de um dever de

hospitalidade para com os cidadatildeos cosmopolitas (no sentido kantiano) oferece As

restantes duas satildeo as mais adequadas a cumprir mas natildeo deixam ser controversas

(como se veraacute seguidamente)

5 APRECIACcedilAtildeO CRIacuteTICA DA DECISAtildeO

A potencialidade maior e com mais relevacircncia relativamente a uma anaacutelise desta

decisatildeo reside desde logo na importacircncia atribuiacuteda agrave indisponibilidade da dignidade

da pessoa humana (Rothhaar 2015 pp 4 e ss) sendo portanto um limite

intransponiacutevel para o legislador nacional no tocante aos direitos humanos consagrados

na CEDH Esta soluccedilatildeo comporta no entanto um paradoxo jaacute anteriormente ensaiado

a hipoacutetese de conciliaccedilatildeo da indisponibilidade da dignidade humana dos migrantes

com a falta de meios e condiccedilotildees dos Estados para os receber

Eacute certo que existe segundo a argumentaccedilatildeo do TEDH um dever juriacutedico de

proteger (com total dignidade) os estrangeiros que entram num territoacuterio contra as

regras de entrada e permanecircncia de pessoas em vigor nesse Estado o que eacute justificado

pela situaccedilatildeo de especial fragilidade que apresentam Em todo o caso deve ser

ponderada a hipoacutetese de ser compaginaacutevel a concomitante violaccedilatildeo da CEDH quando

os Estados simplesmente natildeo tecircm capacidade para o fazer quando se deparam com

uma situaccedilatildeo de emergecircncia natildeo se encontrando preparados para lidar com a crise

humanitaacuteria instalada

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 52

Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 53

Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

httpwwwunhcrorg

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 57

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Page 15: LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA · eficaz de garantir o acesso de cidadãos egípcios, líbios e tunisinos a países ou localidades onde pudessem sentir-se protegidos face

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 52

Com efeito faz sentido que se pondere no longo prazo se o Estado de

acolhimento natildeo tem uma posiccedilatildeo activa na melhoria das condiccedilotildees de vida dos

migrantes ou na sua integraccedilatildeo Um desses exemplos seria uma eternizaccedilatildeo da

condiccedilatildeo de migrante (e eventualmente de refugiado) em campos adaptados para o

efeito mas que com o decurso de alguns anos mais natildeo servem do que para

marginalizar estes seres humanos numa loacutegica de que satildeo simplesmente natildeo-cidadatildeos

Mas cumpre na verdade questionar como pode o Estado de acolhimento ser

relativamente responsabilizado por um estado de emergecircncia que ele proacuteprio natildeo

provocou Eacute esta a questatildeo em aberto que merece ser discutida Com efeito enfatize-se

que a exemplo do que sucedeu nos acoacuterdatildeos ldquoSharifi contra Itaacutelia e Greacuteciardquo (nordm

1664309) e ldquoHirsi Jamaa e outros contra Itaacuteliardquo(nordm 2776509) ainda que os Estados

costeiros adoptem medidas preventivas mesmo em alto mar que visem reduzir uma

maior exposiccedilatildeo a fluxos migratoacuterios passiacuteveis de afectar a situaccedilatildeo social do paiacutes que

decorre das suas caracteriacutesticas geograacuteficas satildeo confrontados com a aplicaccedilatildeo

extraterritorial da CEDH (Barreto 2015 p 491)

Ora tais constataccedilotildees merecem uma reflexatildeo mais profunda no acircmbito de uma

confrontaccedilatildeo com outras decisotildees do TEDH e com a doutrina no sentido de reconhecer

que a ldquonatureza aparentemente absoluta do direito de deixar um paiacutes incluindo o seu

pode vir a ser atenuadardquo condicionando-se o direito de algueacutem poder ir para um paiacutes

da sua escolha desde que este lhe admita a entrada35 Satildeo aliaacutes vaacuterias as decisotildees que

concluem que ldquoa Convenccedilatildeo natildeo garante o direito a um estrangeiro de entrar residir

ou estabelecer-se num determinado paiacutesrdquo (Barreto 2015 p 490)

Na praacutetica natildeo apenas respondem por actos que impeccedilam migrantes ilegais de

entrarem no seu territoacuterio como respondem pela obrigaccedilatildeo de os acolherem (ainda

que temporariamente) e de lhes fornecerem cuidados de primeira necessidade

Todavia em todas as decisotildees o Tribunal parece menosprezar as condicionantes que

motivam alguns Estados mais vulneraacuteveis a assumirem medidas preventivas que

permitam dar a resposta assumida como possiacutevel face agrave sua capacidade

35

Cfr BARRETO Ireneu Cabral A Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 5ordf ed revista e actualizada

Coimbra Almedina 2015 p 491

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 53

Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

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situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

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devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

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ROTHHAAR Markus (2015) Die Menschenwuumlrdeals Prinzip des Rechts Tubinga Mohr

Siebeck

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 59

SCHMALZ Dana (2016) Kosmopolitismuszwischen Vereinigung und Differenz

Transkulturelle Politische Theorie Eine Einfuumlhrung Wiesbaden Springer pp 221

e ss

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WOOD Allen W (1998) Kantrsquos Project for Perpetual Peace Cosmopolitics Thinking and

Feeling Beyond the Nation Minneapolis University of Minnesota Press pp 59 e

ss

Page 16: LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA · eficaz de garantir o acesso de cidadãos egípcios, líbios e tunisinos a países ou localidades onde pudessem sentir-se protegidos face

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 53

Outro problema importante eacute neste contexto uma situaccedilatildeo conexa mas

delicada Resta-nos com efeito perceber qual a bitola pela qual deve ser guiada a

anaacutelise em torno da dignidade da pessoa humana Ora eacute possiacutevel que um acolhimento

temporaacuterio e num cenaacuterio de crise com condiccedilotildees de higiene e de espaccedilo limitadas

possa configurar uma violaccedilatildeo das obrigaccedilotildees dos Estados contratantes da CEDH

Eacute certo que os migrantes se encontram numa situaccedilatildeo de especial fragilidade

necessitando como eacute evidente de condiccedilotildees de acolhimento que permitam atenuar o

grande sofrimento de que padecem mas teratildeo os Estados de ser responsaacuteveis por

violaccedilatildeo da CEDH quando num periacuteodo transitoacuterio natildeo podem apresentar as

condiccedilotildees de higiene e de dignidade que seria em regra de esperar num cenaacuterio em

que natildeo existisse uma crise humanitaacuteria Qual seria a alternativa

Com efeito importa recordar o entendimento de que ldquoo mau tratamento teraacute

de atingir um miacutenimo de gravidade a definir de acordo com apelo a elementos

diversos como por exemplo a sua duraccedilatildeo os efeitos fiacutesicos ou psicoloacutegicos a idade

o sexo ou o estado de sauacutede da viacutetima natildeo sendo suficiente que o tratamento seja

ilegal desonroso repreensiacutevel ou desagradaacutevelrdquo (Barreto 2015 p 93)

Eacute certo que a interpretaccedilatildeo da CEDH deve favorecer a protecccedilatildeo da dignidade

da pessoa humana Poreacutem no caso em apreccedilo essa protecccedilatildeo parece assumir uma

dimensatildeo incondicional ao ponto de ignorar factores cujo controlo natildeo estaacute ao alcance

dos Estados questionando-se se a ponderaccedilatildeo natildeo deveraacute ser mais equilibrada de

modo a impedir uma aplicaccedilatildeo fundamentalista e desajustada de uma realidade que

cada vez mais parece seguir no sentido de exigir um niacutevel de sacrifiacutecio financeiro e um

destacamento ceacutelere de meios a que os Estados poderatildeo natildeo conseguir corresponder

Ainda neste sentido atente-se por exemplo ao importante acoacuterdatildeo ldquoTarakhel

contra Suiacuteccedilardquo (nordm 2921712) no qual o Tribunal determina que os Estados devem

disponibilizar condiccedilotildees ajustadas a acolher crianccedilas de modo a assegurar que as

condiccedilotildees natildeo degeneram em situaccedilotildees de stress e ansiedade passiacuteveis de deixar

sequelas traumaacuteticas36

36

Cfr TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (2014) Case of Tarakhel v Switzerland [Em linha]

[Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em lthttphudocechrcoeintgt sect119-122

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

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Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 54

O acoacuterdatildeo eacute mais abrangente sendo que tambeacutem aqui se repudia a ausecircncia

de condiccedilotildees de acolhimento para todos os requerentes de asilo algo que merece

reflexatildeo igualmente em sede de Uniatildeo Europeia como um todo jaacute que conforme

sublinhado anteriormente alguns Estados estatildeo mais expostos a fluxos migratoacuterios do

que outros sem que se assista a um espiacuterito de solidariedade de facto por parte dos

que geograficamente se encontram mais protegidos e menos susceptiacuteveis a este

fenoacutemeno e como tal acabam por ser excluiacutedos da responsabilizaccedilatildeo a que estatildeo

sujeitos os Estados que marcam a fronteira entre o espaccedilo Schengen e terceiros

Estados

Em suma aleacutem da CEDH poderaacute tambeacutem estar em causa o cumprimento da

Directiva nordm 200309CE do Conselho de 27 de Janeiro de 2003 que estabelece

normas miacutenimas em mateacuteria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-

Membros Eacute assim importante que as instacircncias comunitaacuterias e em particular o TEDH

demonstrem alguma toleracircncia e flexibilidade para com eventuais situaccedilotildees de violaccedilatildeo

excepcional e justificada das normas em apreccedilo em mateacuteria de direitos liberdades e

garantias deixando de olhar para tais violaccedilotildees como transtornos ou censurando tais

condutas como se o incumprimento de tais princiacutepios e valores reflectissem situaccedilotildees

de pura responsabilidade objectiva estatal

6 CONCLUSOtildeES

A circulaccedilatildeo de pessoas entre Estados tenham a qualidade de migrantes ou de

refugiados emerge como tema dominante num contexto de globalizaccedilatildeo no qual a

soberania dos Estados eacute desafiada relativamente agrave tomada de decisatildeo sobre a quem

entre os estrangeiros deve ser concedida ou recusada entrada e permanecircncia no seu

territoacuterio bem como agraves condiccedilotildees que um Estado deve e poderaacute proporcionar ao

estrangeiro durante o espaccedilo de tempo em que toma esta decisatildeo

Independentemente da qualidade que o estrangeiro venha a assumir no futuro

eacute expectaacutevel e exigiacutevel que essa condiccedilatildeo seja temporaacuteria seja porque na situaccedilatildeo

migratoacuteria ainda natildeo atingiu o seu destino final ndash devendo caso pretenda estabelecer-

se no paiacutes de entrada proceder agrave regularizaccedilatildeo da sua permanecircncia ndash seja porque em

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

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devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

httpwwwunhcrorg

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JAMALI Reza (2014) Online Arab Spring Social Media and Fundamental Change EUA

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KRISCH Nico (2010) Beyond Constitutionalism Oxford Oxford University Press

LEGG Andrew (2012) The Margin of Appreciation in International Human Rights Law

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MEDEIROS Rui (2015) A Constituiccedilatildeo num contexto Global Lisboa Catoacutelica Editora

MOWBRAY Alastair (2012) Cases Materials and Commentary on the European

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ROQUE Miguel Prata (2014) O Direito Administrativo Transnacional Lisboa AAFDL

ROTHHAAR Markus (2015) Die Menschenwuumlrdeals Prinzip des Rechts Tubinga Mohr

Siebeck

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 59

SCHMALZ Dana (2016) Kosmopolitismuszwischen Vereinigung und Differenz

Transkulturelle Politische Theorie Eine Einfuumlhrung Wiesbaden Springer pp 221

e ss

SIKA Nadine (2014) The Arab State and Social Contestation Beyond the Arab Spring

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particular da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem Para Jorge Leite

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WALZER Michael (2002) Spheres of Afection For The Love of The Country Boston

Beacon Press pp 125 e ss

WOOD Allen W (1998) Kantrsquos Project for Perpetual Peace Cosmopolitics Thinking and

Feeling Beyond the Nation Minneapolis University of Minnesota Press pp 59 e

ss

Page 18: LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA · eficaz de garantir o acesso de cidadãos egípcios, líbios e tunisinos a países ou localidades onde pudessem sentir-se protegidos face

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

Anaacutelise Europeia - Revista da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 1 (1) 55

situaccedilotildees de asilo a causa que justifica o seu estatuto de refugiado deva cessar por

estar comprometida a protecccedilatildeo do indiviacuteduo enquanto Ser Humano

No processo ldquoKhlaifia e outros contra Itaacuteliardquo o colectivo de juiacutezes decide num

sentido que deixa mais duacutevidas do que respostas relativamente aos deveres dos

Estados-Partes para com os migrantes Desde logo eacute possiacutevel aferir das conclusotildees do

TEDH que o direito agrave liberdade e agrave seguranccedila poderaacute natildeo estar comprometido se os

Estados positivarem uma norma que legitime o confinamento de migrantes que entram

ilegalmente no territoacuterio de um Estado Parte a um espaccedilo que os prive de contactos

com o exterior e os sujeite a vigilacircncia das autoridades

Com efeito eacute neste sentido que o Tribunal parece apontar ao afastar o regime

aplicaacutevel aos beneficiaacuterios de asilo que reconhece a liberdade de circulaccedilatildeo dos

refugiados no territoacuterio onde se encontram do previsto para os migrantes ilegais ao

direccionar as criacuteticas para a lotaccedilatildeo do centro de Lampedusa na altura dos

acontecimentos e para o facto de estas instalaccedilotildees natildeo terem correspondecircncia legal

que as qualifique como centro de acolhimento de migrantes ilegais motivo pelo qual

se recomenda que as autoridades italianas procedam agrave clarificaccedilatildeo do estatuto da

infra-estrutura utilizada como centro de detenccedilatildeo

Simultaneamente o simples facto de migrantes terem em comum a

nacionalidade constituiraacute fundamento suficiente para se presumir a verificaccedilatildeo de

expulsatildeo colectiva motivada neste elemento se forem emitidos documentos tipo de

expulsatildeo mas dirigidos aos destinataacuterios correctos e os documentos natildeo padecerem de

viacutecios materiais A ser assim como podem os Estados em tempos de crise garantir o

cumprimento da prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo das razotildees da prisatildeo no mais breve prazo e

individualizar a redacccedilatildeo da documentaccedilatildeo necessaacuteria sem evitar a violaccedilatildeo da

Convenccedilatildeo por manter os migrantes detidos durante um periacuteodo prolongado

Por outro lado conforme referido anteriormente parece que o TEDH

considerou uma aplicaccedilatildeo ampla e abstracta da proibiccedilatildeo de tratamentos desumanos

ignorando o surto inesperado de uma crise humanitaacuteria deixando a ideia de que ainda

que os Estados Partes natildeo tenham intenccedilatildeo de proporcionar um tratamento desumano

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

Segundo dados oficiais em actualizaccedilatildeo permanente do Alto Comissariado das Naccedilotildees Unidas para os

Refugiados Cfr ALTO COMISSARIADO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (2016) 2015 UNHCR

country operations profile ndash Turkey [Em linha] [Consultado a 15 de Fevereiro de 2016] Disponiacutevel em

httpwwwunhcrorg

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

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copy Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Europeus 2016 56

devem estar preparados para responder a situaccedilotildees de crise extraordinaacuterias sob pena

de responderem por violaccedilatildeo da CEDH

Assim seraacute que a prioridade deixa de ser a garantia de protecccedilatildeo a migrantes

cujas caracteriacutesticas lhes poderaacute permitir beneficiar de asilo garantia esta que passaria

a tomar-se por adquirida ainda que os Estados natildeo a pudessem prever nem fossem

por elas responsaacuteveis para passar a ser a disponibilizaccedilatildeo de instalaccedilotildees em condiccedilotildees

que privilegiem o acolhimento individual

No mesmo sentido coloca-se a questatildeo de saber se se tornaraacute irrelevante o

periacuteodo de tempo e a razatildeo que sustenta a verificaccedilatildeo da diminuiccedilatildeo da dignidade

humana ocorrendo violaccedilatildeo do artigo 3ordm da CEDH a colocaccedilatildeo de migrantes num

contexto de sobrelotaccedilatildeo e condiccedilotildees de higiene deficientes o que parece opor-se ao

entendimento geral do Tribunal ateacute ao momento37

Em suma a decisatildeo do TEDH no acircmbito do processo ldquoKhlaifia e outros contra

Itaacuteliardquo assume um grau de importacircncia fulcral para reflectir se se tratou esta de uma

decisatildeo excepcional ou se o processo em apreccedilo marca a inversatildeo da tendecircncia e o

reconhecimento de uma responsabilidade acrescida para os Estados Estaratildeo

verificadas as condiccedilotildees para que migrantes e refugiados colocados em campos de

acolhimento na Turquia Estado Parte da CEDH possam propor acccedilotildees de condenaccedilatildeo

de Ancara com base nos mesmos princiacutepios ignorando-se o facto de o territoacuterio turco

acolher cerca de 183 milhotildees de refugiados em condiccedilotildees inferiores agraves que a Itaacutelia

garante38

Estas e muitas outras questotildees permanecem de momento sem resposta mas

mantecircm aberto o debate e devem promover a participaccedilatildeo e a tomada de decisatildeo por

parte dos diversos Estados Partes na CEDH

37

Relativamente a situaccedilotildees similares com o caso em apreccedilo vejam-se as decisotildees dos processos

ldquoGavrilovici contra Moldaacuteviardquo (nordm 2546405) ldquoAliev contra Turquiardquo (nordm 3051811) e ldquoT e A contra Turquiardquo

(nordm 4714611) 38

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Page 20: LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA · eficaz de garantir o acesso de cidadãos egípcios, líbios e tunisinos a países ou localidades onde pudessem sentir-se protegidos face

Alexandre Guerreiro e Artur Flamiacutenio da Silva Anaacutelise Europeia 1 (2016) 38-59

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Page 21: LAMPEDUSA E O PARADOXO DA DIGNIDADE HUMANA · eficaz de garantir o acesso de cidadãos egípcios, líbios e tunisinos a países ou localidades onde pudessem sentir-se protegidos face

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