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JULIANNA ROSA DE SOUZA A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS: REFLEXÕES SOBRE ARTE E RELIGIÃO NA PRÁTICA ARTÍSTICA DE AUGUSTO OMOLÚ Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Linha de Pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Maria Brígida de Miranda FLORIANÓPOLIS - SC 2014
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JULIANNA ROSA DE SOUZA

A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS: REFLEXÕES SOBRE ARTE E RELIGIÃO NA PRÁTICA

ARTÍSTICA DE AUGUSTO OMOLÚ

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Linha de Pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Maria Brígida de Miranda

FLORIANÓPOLIS - SC 2014

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Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

S729d Souza, Julianna Rosa de

A dramaturgia da dança dos orixás: reflexões sobre

arte e religião na prática artística de Augusto Omolú.

/ Julianna Rosa de Souza. – 2014.

194 p. : il. color. ; 21 cm.

Orientadora: Maria Brígida de Miranda

Bibliografia: p. 147-155

Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de

Santa Catarina, Centro de Artes, Pós-graduação em

Teatro, Florianópolis, 2014.

1. Dramaturgia. 2. Dança dos Orixás. 3. Augusto

Omolú. I. Miranda, Maria Brígida de. II. Universidade

do Estado de Santa Catarina. Pós-graduação em Teatro.

III. Título.

CDD: 306.484 – 20.ed.

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JULIANNA ROSA DE SOUZA

A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS: REFLEXÕES SOBRE ARTE E RELIGIÃO NA PRÁTICA

ARTÍSTICA DE AUGUSTO OMOLÚ

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Linha de Pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre.

Banca Examinadora: Orientadora: ___________________________________ Profa. Dra Maria Brígida de Miranda Universidade do Estado de Santa Catarina Membros: ___________________________________ Profa. Dra Tereza Franzoni Universidade do Estado de Santa Catarina ___________________________________ Prof. Dr. Julio Tavares Universidade Federal Fluminense

Florianópolis, 26 de março de 2014.

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A Augusto Omolú, in memória, por me mostrar o infinito da criação artística a partir da energia dos orixás. Ao meu companheiro Lau Santos, que com seu amor e generosidade compartilhou cada instante desta escrita.

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AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGT / UDESC) e a CAPES, meus agradecimentos sinceros a estas duas instituições, pelo suporte, apoio e incentivo à pesquisa; a Francini, secretaria do PPGT/UDESC, por sua paciência, disponibilidade e atenção; a Sandra Lima, in memoria, por sua presença radiante no início desta pesquisa; a orientadora, professora doutora Maria Brígida de Miranda, por acompanhar o processo desta dissertação.

À minha mãe, Marlene Rosa, por me acolher sempre em seus braços, por ser amiga, companheira, guerreira e por demonstrar em cada gesto o seu amor incondicional. Ao meu pai, Tulio César de Souza, por estar presente em minha vida. Aos meus irmãos, Lucinéia Ávila, Ricardo Ávila, Luciana Ávila e Júlia Rosa de Souza, por estarem ao meu lado de uma maneira tão simples, generosa e sincera. Agradeço a vocês por me ensinarem ao longo desses anos a preciosidade da palavra família.

À Andreia Rosa, por compartilhar comigo as diferentes etapas desta pesquisa, por ficar acordada nas noites de finalização deste estudo, por sua atenção e carinho, por seu amor que ultrapassa os laços fraternos.

À Neuza Maria Vieira, por abrir as portas de seu lar, estender seus braços, vibrar comigo nos momentos de conquista, não me deixar desanimar frente aos desafios, enfim, obrigada por me presentear com sua amizade.

Às minhas amigas, Paula Regina Corrêa, Elaine Arnold e Pâmela Jung, pelas conversas rápidas, pelos

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debates longos, pelos risos e choros, pela alegria de cada encontro e diálogo.

À Natalia Xavier, pelas aulas divertidas de inglês e por me auxiliar na tradução do abstract desta dissertação.

Ao professor doutor, Edélcio Mostaço, por sua participação na banca de qualificação. A professora doutora, Tereza Franzoni, por sua atenção e dedicação nas aulas de metodologia, pelas sugestões de leitura, pela participação na banca de qualificação e defesa desta dissertação. Ao professor doutor, Júlio Tavares, que além dos diálogos cheios de ginga, aceitou o convite para a banca de qualificação e defesa desta dissertação.

Ao Mestre Garrincha, pelo jogo da capoeira no Rio de Janeiro e pelas conversas sobre esta luta, arte e dança.

Aos amigos artistas de Salvador, Adriana Oliveira, Silvio Almeida, Denise Pitagoras, Firmino Pitanga e Giovanni Luquini que gentilmente abriram suas portas e compartilharam comigo seus saberes.

Aos amigos de Florianópolis, Milena Abreu, Camilla Prats, Gabriela Bresola, Fábio Brüggemann, por me incentivarem, cada um de uma maneira especial, durante este percurso de pesquisa.

Aos amigos escritores de Porto Alegre, Ronald Augusto e Denise Freitas, pelas conversas sobre poesia, identidade e a arte. A Marcelle Coelho por fazer parte do momento inicial desta pesquisa e por sua recepção em Porto Alegre.

A Benjamin Abras e Lorena Rocha, pelos encontros e conversas sobre candomblé, umbanda, ritual, dança, arte visuais, teatro e performance.

A Andrea Duarte, atriz e produtora, que pude conhecer em Salvador durante o Seminário de Augusto Omolú. Obrigada por compartilhar comigo suas

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experiências sobre a cultura indígena. Aos participantes do Seminário - Sarah, Julia,

Pria, Camilo, Marina, Regina, Mayane, Ubirajara, Mestre King e todos que estiveram presentes durante um mês em Salvador, trocando conversas e experiências sobre a dança, o canto e o batuque.

Aos colegas da turma de mestrado e doutorado, especialmente a Juarez Nunes, Michele Louise Schiocchet (Mika), Valquíria Vasconcelos e Zeca Nosé pelas reflexões durantes as aulas enas jornadas teatrais.

A Cássia Miranda, que tive a felicidade de conhecer nestes dois anos do mestrado em teatro, onde compartilhamos as mudanças da pesquisa, a expectativa da qualificação e da defesa.

Por fim, os meus sinceros agradecimentos, a todos/as que de alguma maneira torceram e contribuíram para a realização deste trabalho.

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“O que os livros escondem, as palavras libertam, e não há quem ponha um ponto final na história.” (Conceição Evaristo)

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RESUMO

O objetivo do presente escrito é apresentar a Dramaturgia da Dança dos Orixás de Augusto Omolú, ator/dançarino brasileiro que foi integrante do grupo dinamarquês Odin Teatret, dirigido por Eugenio Barba. Por quase duas décadas, o artista buscou codificar os movimentos da dança dos orixás, prática presente no ritual do candomblé. Este trabalho disserta sobre a energia do orixá como impulso para a criação cênica a partir do discurso do artista. Assim, a dramaturgia era construída entre o movimento, que traz em si a mitologia e a relação do orixá com os elementos da natureza, e o texto dramático. Para tanto, além dos referencias teóricos e bibliográficos, serão utilizados os seguintes materiais: a entrevista feita com o artista, a experiência de observação participante no Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás em Salvador e o material videográfico do espetáculo Orô de Otelo (1994).

Palavras-chave: Dança dos Orixás. Candomblé. Dramaturgia. Augusto Omolú. Antropologia Teatral.

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ABSTRACT

The objective of this writing is to present The Dramaturgy of the Orisha Dance by Augusto Omolú, Brazilian actor/dancer who was a member of the Danish group Odin Teatret, directed by Eugenio Barba. For nearly two decades, the artist sought to codify the orisha dance moves, a practice present in the Candomble ritual. This dissertation discusses, from the discourse of the artist, about the energy of the orishas as an impulse for the scenic creation. In this way, the dramaturgy was built between the movement, that brings in itself the mythology and the relationship of the orishas with the elements of nature, and the dramatic text. Therefore, beyond the theoretical and bibliographical references, the following materials will be used: the interview with the artist, the experience of participant observation in the Dramaturgy Dance of the Orishas Seminar in Salvador and the videographic material from the spectacle Orô de Otelo (1994). Keywords: Dance of the Orishas. Candomble. Dramaturgy. Augusto Omolú. Theatre Anthropology.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................... 19

1 OS SUJEITOS DA PESQUISA: RELATOS, EXPERIÊNCIAS E TRAJETÓRIAS .............................. 27 1.1 SOBRE OS CAMINHOS DA PESQUISA: A ENTREVISTA EM PORTO ALEGRE E A EXPERIÊNCIA NO SEMINÁRIO EM SALVADOR .................................. 29 1.1.1 De chapéu e bengala: o primeiro encontro com o artista pesquisado .................................................... 33 1.1.2 O corpo fala, a fala do corpo: apresentação do aporte teórico para contextualizar a experiência no Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás em Salvador ....................................................................... 40 1.1.3 A experiência: um relato da pesquisadora sobre a observação participante em Salvador .......... 50 1.2 NO BATUQUE DO TERREIRO NASCE A DANÇA DE OMOLÚ: O SUJEITO PESQUISADO E SUA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA ............................................ 63 1.2.1 Ao som dos tambores a dança encontra Omolú: o contato com o candomblé e a descoberta da dança dos orixás .................................................... 64 1.2.2 “Uma dança em outra forma”: a participação de Augusto Omolú na ISTA em Londrina .................. 69 2 A ENERGIA DO ORIXÁ COMO IMPULSO PARA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA E AS TENSÕES NO ENCONTRO COM A ANTROPOLOGIA TEATRAL ..... 79 2.1 A DANÇA DO RITUAL: O FESTEJO E O RELIGIOSO NO CRUZAMENTO DA DANÇA, DO TOQUE E DO CANTO .................................................. 81 2.2 OBSERVAÇÕES SOBRE A ANTROPOLOGIA

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TEATRAL: O MOVIMENTO, O GESTO E A AÇÃO CÊNICA ........................................................................ 91 2.2.1 Uma passagem sobre a pré-expressividade no trabalho do ator ........................................................... 92 2.2.2 O espetáculo da tradição ou uma tradição espetacular? ................................................................ 96 2.2.3 O axé de Augusto Omolú e o sats de Eugenio Barba: diálogos sobre a noção de energia no trabalho do ator ......................................................... 107 3 A CERIMÔNIA DE OTELO: A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS E O TEXTO DRAMÁTICO DE WILLIAM SHAKESPEARE ........................................ 115 3.1 SOBRE O REGISTRO VÍDEOGRAFICO E A MONTAGEM DO ESPETÁCULO ................................ 117 3.2 O MOURO DE VENEZA DE WILLIAM SHAKESPEARE NA DANÇA DOS ORIXÁS DE AUGUSTO OMOLÚ .................................................... 125 3.2.1 Dramaturgia: texto e(m) movimento ............. 127 3.2.2 Três personagens shakesperianos na dança dos orixás de Augusto Omolú ................................. 129 PÁGINAS FINAIS ............................................ 141 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................ 147 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...................... 153 ANEXOS .......................................................... 157

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INTRODUÇÃO

Abro uma página do programa de palavras que está em meu computador. Abro com esta folha um novo espaço, uma possibilidade outra de percepção sobre a pesquisa vivida até aqui. Abro, no sentido metafórico, um espaço de comunicação diferente daquele registrado em folhas anteriores, pois ao abrir este documento faço dois movimentos intencionais, um de estar distante da pesquisa e consequentemente descrevê-la enquanto experiência e o segundo de ser sujeito e ao mesmo tempo objeto de minha própria pesquisa.

Nesse movimento paradoxal, meu corpo é memória das experiências vividas e para traduzir em palavras aquilo que é invisível, a experiência em si, torna-se necessário de tempo em tempo abrir “páginas” e com elas espaços de silêncio. A morte de Augusto Omolú, artista cujo trabalho é foco desta pesquisa, denuncia as brechas do binômio presença/ausência; traz á tona a tarefa desafiante de (re)contar sua prática artística e consequentemente um pouco de sua trajetória.

Antes de apresentar o objetivo da pesquisa e o foco de cada capítulo desta dissertação, peço ao leitor licença para contar um pouco sobre minha trajetória como atriz e pesquisadora e como isto me levou à conhecer a prática artística de Augusto Omolú e consequentemente o interesse em pesquisar o seu trabalho sobre Dramaturgia da Dança dos Orixás.

Aos 17 anos ingressei na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), após prestar vestibular para o curso de Pedagogia. Na mesma época iniciei um curso livre de improvisação e interpretação teatral em uma companhia de teatro de Florianópolis.

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Estas duas áreas, o teatro e a educação, fizeram parte do meu processo de descoberta como uma jovem negra do sul do país, já que neste mesmo percurso recebi o convite do professor doutor Paulino de Jesus Cardoso para trabalhar como bolsista no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB).

A partir de então mais uma área aguçou meu olhar: os estudos étnicorraciais e as discussões sobre identidade cultural, vindas principalmente dos escritos do intelectual jamaicano Stuart Hall que chegavam em minhas mãos através dos debates do NEAB e das aulas da professora doutora Claúdua Mortari sobre a História das Populações Africanas em Santa Catarina, título e tema da disciplina oferecida no curso de História da UDESC.

As pesquisas sobre cultura e história africana e afro-brasileira, os debates sobre multiculturalismo, educação étnicorracial, racismo, estudos culturais aconteciam por meio de congressos, seminários, reuniões e viagens de estudos do Núcleo que permitiam que os professores pesquisadores de outras instituições dialogassem conosco.

Cito, por exemplo, alguns momentos marcantes, como a conferência de abertura, em julho de 2010, no VI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as – sediado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que teve como ministrantes os pesquisadores Kabengele Munanga e Boaventura Sousa Santos; as experiências como bolsista de extensão nas oficinas do Baú de Histórias Africanas; a participação como bolsista voluntária na pesquisa sobre a implementação da Lei 10.639/20031 nas escolas da rede

1 Esta é uma Lei Federal implementada no ano de 2003 que estabelece o ensino de História Africana e Afro-Brasileira como

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estadual e municipal; além do convívio e das conversas diárias no espaço do NEAB entre graduandos, mestrandos e doutorandos das áreas de história, geografia, biblioteconomia e pedagogia.

Como disse anteriormente, em paralelo a esta experiência acadêmica, fiz o curso de interpretação, improvisação e montagem teatral, sendo que entre 2009 e 2010 fui contratada para integrar o elenco de uma companhia teatral de Florianópolis. Estar no palco me trouxe outras reflexões, o que eu representava em cena? Como e o que representar? De um lado, a poeira do palco, de outro a rotina acadêmica como bolsista/pesquisadora.

No segundo semestre de 2010 conheci a professora Fátima Lima e o diretor e artista Lau Santos. Nessa época o coordenador do NEAB propôs à professora do Centro de Artes (CEART) uma parceria e colocou-me como mediadora desse processo. O projeto tinha como objetivo a criação e formação de um grupo teatral, onde pudéssemos estabelecer discussões sobre a representação racial por meio de uma prática artística e política. O público seria qualquer jovem, artista, professor, educador, interessado em uma prática artística política engajada, que possibilitasse discutir e refletir sobre as representações raciais na sociedade.

Com o grupo, participei de algumas manifestações artísticas, mas em 2011, com o intuito de escrever meu trabalho final de curso, disvinculei-me do NEAB e logo da parceria com o CEART. Foi um ano de intensas descobertas para mim, marcado principalmente

obrigatoriedade no sistema de ensino brasileiro, desde a educação básica até o ensino universitário. Sobre isso pode-se pesquisar em http://www.portaldaigualdade.gov.br/.arquivos/leiafrica.pdf acesso em 20 de maio de 2014 ou ainda na página oficial do Ministério da Educação (MEC): http://portal.mec.gov.br/

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pela ida à Salvador e as experiências cênicas na cidade de São José (SC).

Em Salvador fiquei por um mês e tive contato com alguns artistas locais, como Denise Pitágoras, uma artista visual que com muita sensibilidade expõe em suas obras as fronteiras dos arquétipos baianos, ao mesmo tempo que explicita as marcas de uma violência sofrida no período da ditadura.

Conheci também os artistas e produtores audiovisuais Silvio Almeida e Adriana Oliveira, que com suas câmeras e lentes mostraram-me as cores da fotografia e o projeto Mulheres D’Agua, um documentário sobre mulheres lavadeiras e catadoras de mariscos com cantos sobre os orixás d’água, Oxum e Iemanjá. Além do coreógrafo e um dos primeiros negros formados na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Firmino Pitanga, conhecido como Mestre Pitanga, que gentilmente abriu as portas de sua casa na Ilha de Itaparica e me alojou durante a estadia em Salvador.

Em São José, à convite de um grupo pequeno de atores, surgiu o NAN – Núcleo de Atores Negros de São José, com direção de Lau Santos o grupo tinha o objetivo de realizar intervenções artísticas pelo Centro Histórico da cidade. Diferente daquela primeira experiência com o NEAB e o CEART, o NAN visava uma estética teatral que trouxesse elementos culturais da tradição afrocaterinense e até mesmo afrojosefense muitas vezes “esquecidos” pela comunidade local.

Através da estrutura da própria cidade, como o espaço do Museu, o Teatro Adolpho Mello e a Igreja do Bonfim, o NAN recontava as histórias de São José sobre outro prisma, colocando como protagonistas os poetas e artistas negros locais. Alzímiro Lídio Vieira, Pedro Leite, Capitão Amaro e o seu Cacumbi tornaram-se nossos

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“personagens” principais e apareceram nas diversas intervenções do NAN. Estas intervenções aconteciam numa espécie de cortejo, percorrendo vários pontos do Centro Histórico e concentrando-se por fim na Bica da Carioca - um espaço que fora habitado pelas lavadeiras de São José e que nas intervenções do NAN tornava-se palco para as mais diferentes histórias.

As experiências artísticas com o NAN e a viagem à Salvador tinham me instigado, por muito tempo fiquei pensando sobre a noção de identidade cultural analisada por Stuart Hall (2009) em seu texto que já traz no título a intrigante questão: Que “negro” é esse na cultura negra?

Depois de voltar de Salvador era difícil não pensar no cheiro da comida baiana, do aroma do dendê e da tradição do acarajé, da força que tem a palavra axé, do som dos tambores na Praça da Cruz Caída, da roda de capoeira, do candomblé, das Festas de Largo, do carnaval ou simplesmente do modo de caminhar, meio gingado, de quem subia e descia as ladeiras da Cidade Baixa e da Cidade Alta. Essas imagens ficaram em mim e foi no final de 2011 que comecei a sentir a necessidade de uma pesquisa teatral que se concentrasse sobre os cruzamentos entre o teatro e o estudos culturais.

Decidi, então, dar continuidade aos estudos acadêmicos e fazer uma disciplina como aluna especial no Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT) no CEART. Nos corredores, eu sempre ouvia artistas/pesquisadores comentando sobre seus trabalhos e objetivos de pesquisa, poucos falavam sobre o cruzamento entre o teatro e os estudos culturais, mas muitos citavam o grupo dinamarquês Odin Teatret, dirigido por Eugenio Barba, além dos espetáculos de Peter Brook. Parecia-me que o Odin Teatret tinha certa notoriedade, ao menos para alguns colegas deste circuito artístico de Florianópolis.

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Um dia, após uma longa conversa com Lau Santos sobre minha intenção em pesquisar a representação na cena teatral por uma perspectiva crítica e amparada pelos estudos culturais, ele me conta que há um brasileiro no Odin Teatret, cuja pesquisa concentrava-se entre arte e religião, dança e dramaturgia. Na mesma hora fiquei atônita: “como assim um brasileiro no Odin Teatret?” Eu já havia assistido vídeos de demonstração do trabalho do Odin, lido artigos e livros de Eugenio Barba, e ainda havia conversado com muitos colegas sobre o trabalho do grupo dinamarquês, mas o nome de Augusto Omolú nunca fora citado nessas conversas.

Fiquei impressionada por saber que havia um integrante no Odin que era brasileiro, negro, nascido em Salvador e que já estava lá por mais de uma década e que ainda assim, embora o grupo dinamarquês tivesse um reconhecimento considerável neste ambiente que eu frequentava, pouco se sabia sobre o trabalho deste artista brasileiro. Comecei a falar de Augusto Omolú nas rodas de conversa com meus colegas/artistas e minha surpresa foi maior, pois descobri que assim como eu, eles também ficavam surpresos em saber que havia um integrante brasileiro no Odin Teatret.

Augusto Omolú, brasileiro, negro, ator/dançarino e integrante de um dos grupos teatrais de certa repercussão internacional - era a minha deixa, como dizemos nas coxias do teatro; era preciso pesquisar e escrever sobre o trabalho deste artista, falar sobre a sua relação com a arte e a religião e sua experiência no grupo Odin. Nessa época, muitas perguntas começaram a me interessar, por exemplo, como as identidades culturais eram negociadas dentro do grupo Odin e representadas em seus espetáculos?

Porém, alguns estudiosos como Rustom

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Bharucha e Patrice Pavis haviam escrito materiais sob uma perspectiva crítica de uma estética teatral intercultural, questionando os limites entre o colonialismo e o pós-colonialismo em alguns grupos teatrais, como o próprio Odin Teatret. Meu olhar, precisaria ser mais específico, então, voltei-me para a prática artística de Augusto Omolú, especificamente a Dramaturgia da Dança dos Orixás.

Depois da perda do artista, é claro que a pesquisa passou por um longo processo de adaptação e mudança, o foco permaneceu - a Dramaturgia da Dança dos Orixás continua sendo o objeto desta dissertação. Entretanto, foi necessário abrir um espaço para apresentar a trajetória e história do artista. Assim, o primeiro capítulo apresentará a história e trajetória do artista, desde sua formação em ballet, dança moderna e a dança dos orixás até a entrada ao grupo Odin Teatret.

No segundo capítulo a reflexão será sobre a dança dos orixás enquanto prática presente no candomblé e os conceitos da Antropologia Teatral, como a noção de pré-expressividade, ação física e sats. Ainda neste capítulo, discutirei a relação entre o canto, a dança e o batuque – tripé apresentado pelo filósofo congolês Fu-Kiau citado por Zeca Ligiéro (2011).

No terceiro capítulo apresentarei sequências de imagem dos movimentos da dança dos orixás feitas por Augusto Omolú em seu espetáculo Orô de Otelo (1994). Neste capítulo a intenção será apresentar uma reflexão entre a dramaturgia do movimento e o texto dramático, no caso, Otelo de William Shakespeare. É necessário dizer que durante este trabalho, considerarei a Dramaturgia da Dança dos Orixás como uma pesquisa artística em aberto, já que fora interrompida por uma morte brutal do artista, assassinado em sua casa em Salvador, dia 02 de junho de 2013.

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Por se tratar de uma pesquisa cuja metodologia está baseada na entografia e na auto entografia, ao longo do texto utilizarei como fonte a minha própria experiência de observação participante no Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás realizado em Salvador entre janeiro e fevereiro de 2013. Além disso, serão utilizados como materiais de pesquisa: a entrevista feita com Augusto Omolú em maio de 2012 e a experiência como espectadora ao assistir As grandes cidades sob a lua – espetáculo do grupo Odin teatret apresentado no VII Festival Palco Girátorio SESC, em maio de 2012.

Com o intuito de trazer o discurso do próprio artista acrescentarei nesta reflexão como materiais importantes, duas entrevistas publicadas de Augusto Omolú (2010; 2012b) e a carta da integrante do Odin, Julia Varley (2014), escrita após a morte do artista brasileiro.

Nas próximas páginas falarei de energia, orixá, dança, ritmo, atabaque, criação cênica e ritual. Dissertarei sobre os movimentos da dança que junto a mitologia dos orixás transformam-se em dramaturgia. A seguir, apresentarei um artista baiano, negro, que ainda menino viu no terreiro uma dança, ouviu o batuque e viveu em sua trajetória as tensões entre a religiosidade e a arte.

Portanto, quero reinterar a dedicatória feita no início deste trabalho e dedicar as próximas páginas a memória de Augusto Omolú.

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CAPÍTULO UM OS SUJEITOS DA PESQUISA: RELATOS, EXPERIÊNCIAS E TRAJETÓRIAS

“Quando eu era pequeno, seis ou sete anos, tinha mania de imitar os orixás. Os orixás chegavam se manifestavam, ficavam dançando, mas eu também ficava dançando atrás, muito mais como um divertimento, não tinha noção, não tinha ideia do que estava fazendo, mas para mim aquilo tudo era meu mundo, era minha vida ali dentro da roça”.

Augusto Omolú

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Neste capítulo o objetivo é apresentar a metodologia, os materiais da pesquisa e a trajetória artística de Augusto Omolú. Em um primeiro momento, descrevo dois eventos que considero importantes: a entrevista em Porto Alegre com o artista pesquisado e a participação no Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás em Salvador.

Acredito que antes de entrar numa reflexão sobre o objeto deste trabalho é preciso escrever sobre a pesquisa em si e sua metodologia. Aqui, opto por uma estrutura dissertativa que procura valorizar este processo, portanto, dedico logo no primeiro capítulo um tópico que narra o encontro entre a pesquisadora e o sujeito pesquisado; para posteriormente, contextualizar a trajetória e formação artística de Augusto Omolú.

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1.1 SOBRE OS CAMINHOS DA PESQUISA: A ENTREVISTA EM PORTO ALEGRE E A EXPERIÊNCIA NO SEMINÁRIO EM SALVADOR

“pôr-se de ‘fora’ é ainda uma maneira de viver o fato inelutável de que se está dentro” (Simone de Beauvoir)

A metodologia desta pesquisa em teatro

aproxima-se da concepção de etnografia e auto etnogafria na forma como as define Sylvie Fortin (2009). Sobre as contribuições da pesquisa etnográfica para a prática artística, Fortin (2009) - professora do Departamento de Dança da Universidade de Quebéc em Montreal - explica que a etnografia distingui-se por considerar a dimensão cultural, e principalmente a inserção, ou participação, do/a pesquisador/a in loco; e a auto etnografia “se caracteriza por uma escrita do ‘eu’ que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si” (Fortin, 2009, p. 83).

Ao escolher a entografia e auto entografia como metodologia acredito que é possível olhar para a prática artística de Augusto Omolú e suas tensões culturais. Assim, a entografia possibilita descrever, analisar e refletir sobre as brechas existentes entre a dança dos orixás, proveninente de uma prática religiosa, e o processo de criação do artista; enquanto que a auto etnografia acrescenta ao material um relato da minha própria experiência em contato com o artista, marcada principalmente por dois momentos: antes e depois de

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sua morte. Sobre os materiais de pesquisa ou dados

etnográficos a autora supracitada explica que estes podem ser compreendidos por tudo aquilo à que pesquisa se apóia. Forin cita alguns destes materiais, como: “a seleção de documentos, a entrevista e a observação participante” (2009, p. 80). Destaco que no caso da presente pesquisa, situada na área teatral, os dados etnográficos são utilizados a fim de contextualizar a prática artística de Augusto Omolú, não se trata, portanto, de uma pesquisa completamente etnográfica, mas que apresenta características próximas a esta metodologia.

Dessa maneira os materiais utilizados aqui são: a pesquisa de campo e a observação participante feitas no Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás em Salvador, no período de 10 janeiro a 05 de fevereiro de 2013; a entrevista realizada em 06 de maio de 2012 em Porto Alegre; a experiência como espectadora ao assistir as As grandes cidades sob a lua, um dia antes de realizar a entrevista; e as conversas informais com artistas e/ou participantes do Seminário que tiveram contato com Augusto Omolú.

Para além destes materiais, busco também uma metodologia que valoriza a própria corporeidade do/a pesquisador/a. Sobre isso, Forin destaca:

Seleção de documentos, entrevistas e observação participante constituem os tipos de dados etnográficos admitidos nos escritos de metodologia, mas eu destaco aqui uma nova tendência, ao menos aparente no meio da dança: a de considerar as reações somáticas do pesquisador como um tipo de dado etnográfico. A corporeidade do pesquisador, suas sensações e suas

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emoções sobre o campo, são reconhecidas como fontes de informação ao mesmo título que o pode ser uma fotografia de uma obra em curso (Fortin, 2009, p. 80-81).

Considero importante esta inclusão de Forin

(2009) sobre as reações somáticos como materiais de pesquisa, já que no campo artístico parece-me um desafio descrever uma experiência sem citar os estímulos e reações sensórias causados no corpo daquele que participa e observa.

Para acrescentar, cito abaixo a compreensão de Júlio Tavares sobre a importância da etnografia como metodologia para a pesquisa. Tavares é professor doutor e coordenador do Laboratório de Etnografia e Estudos da Comunicação, Cultura e Cognição (LECCC) da Universidade Federal Fluminense (UFF), seus estudos serão utilizados nesta dissertação como referência tanto para o entendimento da etnografia como para as reflexões posteriores sobre o corpo e(m) movimento. Segundo Tavares (2000, p. 80):

O etnógrafo e/ou pesquisador, na lida do campo, trabalha, consciente ou inconscientemente, com a intuição e com a emoção, tópicos que se explorados podem resultar no desenvolvimento da consciência da dimensão orgânica do ato intelectual.

Posso dizer, a partir de minhas interpretações,

que tanto Tavares (2000) quanto Forin (2009) indicam caminhos para uma pesquisa que supere descrições isoladas, a etnografia como metodologia pressupõe elaboração, reflexão, análise e descrição de maneira concomitante, assim é possível afirmar que a partir do

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momento que repenso e descrevo a partir de minhas experiências com Augusto Omolú analiso não só o sujeito pesquisado como também o meu próprio papel de pesquisadora. Consequentemente, minhas memórias e percepções tornam-se materiais desta pesquisa.

Nestes dois anos de pesquisa, palavras como energia, orixá, dança, corpo e movimento estiveram presentes nas conversas com Augusto Omolú. Então, como falar de tudo isso sem descrever as reações sensoriais do meu próprio corpo no momento da pesquisa? Pois bem, a partir dessa compreensão metógologica, de uma pesquisa que considere a corporeidade do/a pesquisador/a, apresento a seguir as duas experiências mais marcantes desta pesquisa: a entrevista e o seminário.

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1.1.1 De chapéu e bengala: o primeiro encontro com o artista pesquisado

Título: The Great Cities Under The Moon. Fonte: Odin Teatret & CTLS ARCHIVES. Na foto Augusto Omolú e os integrantes do Odin Teatret. Espetáculo: As grandes cidades sob a lua. Direção de Eugenio Barba, com estréia no ano de 2003. Fotografia de Tony D’Urso. Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/current-performances/the-great-cities.aspx acesso dia 10 de janeiro de 2014.

Era início de maio de 2012, o grupo Odin Teatret

viria participar da sétima edição do Festival Palco Giratório SESC em Porto Alegre e na programação estavam dois espetáculos: As grandes cidades sob a lua (2003) e Ode to Progress (1997), ambos com Augusto Omolú no elenco.

Ansiosa para o primeiro encontro com o artista,

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preparei uma mala pequena com poucas roupas, fiz contato com uma amiga de Porto Alegre para reservar o ingresso e calculei o tempo e os quilômetros entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Tudo pronto, peguei meu uno mille vermelho e fiz quatro horas e meia de viagem, sem paradas. Em Porto Alegre, fui recebida por um casal de escritores, o poeta Ronald Augusto e sua esposa, escritora e historiadora, Denise Freitas. Foi através do poeta negro, Ronald Augusto que pude perceber os poemas de Cruz e Sousa2 sobre outro ponto de vista, aguçando meu olhar para as complexas fronteiras identitárias de ser negro e ser escritor no sul do país.

Depois de muita conversa sobre prosa e poesia, chega, então, o dia do espetáculo. Era um sábado a noite, dia 05 de maio de 2012, o ingresso estava na mão

2 João da Cruz e Sousa foi poeta negro catarinense, filho de escravos e nasceu em 24 de novembro de 1861 em Desterro (atual Florianópolis) e faleceu em 19 de março de 1898. Sobre sua vida e obra é possível encontrar muitas informações, cito aqui a página oficial da Fundação de Cultura Catarinense, especificamente, do Museu Cruz e Sousa, cujo nome é em homenagem ao poeta. Sobre isso consultar: http://www.fcc.sc.gov.br/cruzesousa/ acesso em 03 de maio de 2014. Cruz e Sousa é um dos referencias na literatura brasileira quando se trata de simbolismo, sua poesia possui grande complexidade. Peço licença ao leitor para trazer a voz do poeta e escritor Ronald Augusto, que traz em seu texto Apontamentos marginais: a poesia e a vida de Cruz e Sousa a seguinte afirmação: “Dir-se-ia que a arte de Cruz e Sousa se desenha a partir da interdição do seu corpo negro. Pode ser. E o poema tem algo do estado de coisas do seu espírito. O poeta negro conspira no limite entre vida e arte. Há som, sombra, luz e fúria (húbris) na poesia deste homem da ilha do Desterro. Assim, malgrado a condição emparedada em que o mundo insistia em confiná-lo – ou mesmo, graças a ela -, Cruz e Sousa produziu sua poesia dissoluta, provocante, cuja pulsão libertária sugere-nos que é “escrita em sonho” e escrava da “embriaguez do ritmo, da sonoridade, da música das palavras”” (Augusto, 2011, s/p).

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para assistir As grandes cidades sob a lua3 no Teatro SESC, no Centro Histórico da cidade, com início previsto para as 20h. Cheguei uma hora antes com muita tranquilidade e decidi subir as escadas em busca de uma cafetaria ou um lugar onde pudesse aguardar até o início do espetáculo.

Nesse percurso, notei que a casa estava cheia – como se costuma dizer nas coxias do teatro. Enquanto eu subia as escadas, descia uma mulher com cabelos grisalhos soltos, sandálias de tiras e um sorriso leve no rosto. De repente aquele silêncio, todos os olhos voltavam-se a ela, era Julia Varley, atriz por quase trinta anos no Odin e uma das fundadoras do grupo4 ao lado de Eugenio Barba. Ela estava à procura de rosas vermelhas, material que seria usado na cena do espetáculo.

Depois disso, continuei meu trajeto até a cafeteria. Sentei, li e reli o programa do espetáculo e depois o cronograma do Festival. Observei a quantidade de pessoas, que assim como eu, aguardavam o início do espetáculo do Odin. Finalmente abriram as portas. E lá estava um homem de cabelos brancos nos recebendo, seria ele um personagem? Vestia roupas em um tom de cinza claro, com um jaleco marrom e uma sandália de couro. Fazia gestos simples para indicar as poltronas disponíveis e não dizia uma palavra. Ali, a minha frente, estava Eugenio Barba – diretor do grupo Odin Teatret. No palco com as cortinas abertas estavam os integrantes do Odin, numa espécie de segunda recepção. Busquei imediatamente Augusto Omolú, mas não o encontrei no palco. Procurei a melhor posição para sentar e apreciar 3 Nos anexos deste trabalho encontra-se o material de divulgação deste espetáculo. 4 Esta informação foi retirada do site oficial do grupo Odin Teatret: www.odinteatret.dk

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as cenas deste encontro de 60 minutos. A dramaturgia do espetáculo em questão era,

aos meus olhos, uma composição de várias esquetes ou trabalhos individuais dos integrantes do grupo. A cada momento um dos integrantes tomava o proscênio e tornava-se por alguns instantes protogonista. Aos fundos do palco, sentados em cadeiras, o restante do grupo permanecia dando suporte ao “novo” protagonista da cena, formando uma espécie de coro para aquele/a que estava a frente. Esta base dramática aconteceu durante todo o espetáculo, dando a impressão de uma colagem teatral, com muitas músicas, cantos e textos em diversas línguas, além das partituras corporais individuais (base do trabalho físico do grupo).

No programa do Festival estava a sinopse que divulgava o espetáculo da seguinte maneira:

Um espetáculo-concerto criado pelo Odin Teatret no espírito de Bertold Brecht. A lua observa e paira nas cidades que ardem abaixo, das metrópoles da Europa até as da Ásia Menor, de Hiroshima a Halle, da China Imperial ao Alabama, de Saralevo a Bagdá. Sua voz é irônica ou apavorada, indiferente ou misericordiosa, fria ou incandescente. Sua compaixão ignora a melancolia e o consolo (Trecho Retirado do Programa do 7º Festival Palco Girátorio SESC, maio de 2012, disponível nos anexos deste trabalho).

A descrição poética traz como protoganista do

espetáculo a “lua” e acrescenta o aspecto político ao citar Brecht como inspiração para a criação dramática. Entretanto, como observadora e espectadora tive a sensação de estar vendo um espetáculo com sequências dramáticas fundamentadas no trabalho corporal

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individual de cada integrante, onde a cada minuto um ator/dançarino tomava o palco e com cantos, danças e ações físicas demonstravam ao público a fluidez e o ritmo do trabalho corporal desempenhado no Odin.

Nesse sentido, Augusto Omolú teve uma aparição muito rápida se comparada aos outros integrantes que estiveram presentes no palco desde a abertura do espetáculo. Nos próximos parágrafos, descrevo a sucessão de sensações que tive ao assistir As grandes cidades sob a lua e, principalmente, a expectativa em ver o artista brasileiro contracendo com os outros integrantes do grupo dinamarquês.

O espetáculo inicia-se. Dez minutos e as partituras corporais são apresentadas. Naquele momento senti um estranhamento, pois eu havia assistido alguns vídeos de demonstração de trabalho5 dos atores do Odin, como Traços na Neve (1988) de Roberta Carreri. Neste vídeo, o corpo de Carreri apresentava grande flexibilidade com movimentos quase acrobáticos, diferente do que eu via no palco. A voz desta atriz era algo encantador, em muitos momentos do espetáculo 5 Demontração de trabalho, de acordo com a página oficial do grupo, é uma prática que constite em uma sistematização do treinamento corporal e vocal feito pelo/a ator/atriz. Algumas demonstrações de trabalho, Work Demonstrations, são registradas em vídeos e são comercializadas pelo Odin (sobre isso consultar: http://www.odinteatret.dk/ ). No caso de Roberta Carreri, sua demonstração é Traces in Snow, traduzida por Traços na Neve. A primeira vez em que assisti a demonstração de Carreri - material videográfico disponível no acervo do Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT/UDESC) - foi no segundo semestre de 2011, após fazer a disciplina: Abordagens do Corpo na Arte, Filosofia e Ciência, ministrada pela Prof. Dr. Sandra Meyer Nunes. Entretanto, em janeiro de 2013, no Rio de Janeiro, no Teatro do SESC em Ipanema, pude assistir ao vivo esta mesma demonstração e mais uma vez percebi as diferenças entre os movimentos corporais registrados em vídeo.

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sua voz se destacava. Vinte minutos e uma sucessão de textos ditos em vários idiomas: dinamarquês, italiano, inglês e espanhol. Até aquele momento nem “sombra” do brasileiro, talvez ele apareça em um próximo ato. Trinta minutos e fiquei pensando sobre o virtuosismo dos corpos, algo entre a elasticidade do tempo e a elasticidade do corpo, a essa altura do espetáculo os textos ditos em diferentes idiomas já havia se tornado uníssono para mim. Quarenta minutos e fico aflita, será que aconteceu algo com Augusto Omolú? Será que houve algum imprevisto?

Aos cinquenta minutos entra um homem de terno, chapéu coco e nas mãos uma bengala. Passa pelo corredor, um andar lento, sem pressa. Ele sobe os degraus pelo lado direito do palco, desloca-se de maneira cadência saindo do lado direito para o esquerdo e percorre todo o proscênio. Depois disso faz alguns movimentos corporais que chegam aos meus olhos como passos de jazz. Ao final do espetáculo o brasileiro entra e sai do palco sem dizer uma palavra.

Na hora em que terminou o espetáculo muitas perguntas vieram à tona. Vi Augusto Omolú no palco e fui ao encontro dele. Ele ainda estava com uma parte do figurino, me apresentei, falei dos amigos em comum e por fim da minha pesquisa. Aquele era o primeiro contato, ao vivo, pois já tinha conversado com ele via internet. Perguntei sobre sua disponibilidade para uma entrevista, ele se colocou a disposição e marcamos para o dia seguinte no hall do hotel em que ele estava hospedado.

Naquela noite não fiz nenhum questionamento a Augusto Omolú sobre sua participação no espetáculo As grandes cidades sob a lua, mas hoje as coloco aqui: por que todos/as os integrantes do Odin Teatret estavam no palco desde o início do espetáculo em uma espécie de

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recepção e Augusto Omolú não? Por que todos os integrantes do Odin Teatret demonstraram seu trabalho com extensas partituras corporais e vocais e Augusto Omolú fez uma breve participação coreográfica? Por que todos os integrantes do Odin Teatret falaram textos em três línguas diferentes e Augusto Omolú não mencionou uma palavra?

Na manhã do dia seguinte, fui até o Hotel Plaza, onde ele estava hospedado. Falei sobre a minha pesquisa em teatro e do meu interesse em pesquisar o trabalho artístico dele sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás. Ele me ouviu e logo em seguida começou a falar sobre o início de sua trajetória e do encontro com o diretor Eugenio Barba, depois de quase trinta minutos, ele me perguntou: – Você está gravando tudo, não está? Naquele instante, fui surpreendida; com o gravador na mão percebi que a entrevista já havia começado e a parte inicial da conversa não tinha sido registrada. Em um tom tímido retruquei: – Você pode falar novamente sobre o seu encontro com Barba? Lembro que ele sorriu e voltou a contar: “ – Foi muito engraçado, para mim foi uma grande surpresa, foi meu primeiro encontro com o teatro”. Esta foi a primeira frase, gravada, da entrevista.

Nós conversamos por quase duas horas e este material foi transcrito e segue nos anexos deste trabalho. Antes de sair do hotel, Augusto Omolú convidou-me para o Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás. Assim, no verão de 2013 cheguei a Salvador e lá fiquei por quase um mês acompanhando o trabalho dele.

A seguir apresento dois tópicos, o primeiro tem o objetivo de apresentar o aporte teórico em que me apoio para falar desta experiência do Seminário; e o segundo é o próprio o relato da experiência, destacando principalmente a dinâmica corporal e a relação com espaço, seja no momento de confraternização no Bar do

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Cravinho, como será visto adiante, ou a prática da dança dos orixás na Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB). 1.1.2 O corpo fala, a fala do corpo: apresentação do aporte teórico para contextualizar a experiência no Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás em Salvador

Por que falar dos gestos, movimentos e posturas

corporais? Pois bem, quando escrevo meu corpo se encontra em movimento constante, criando intervalos e/ou acentuando os espaços entre uma palavra e outra. Entretanto, devo buscar a fala do(s) corpo(s) ou sobre os corpos? Parece-me que a palavra ‘sobre’ distancia-se da sinuosidade presente na linguagem e define a comunicação de maneira vertical, isto é, da fala para o corpo, e logo do pensamento para a fala. Para Júlio Tavares (2012, p. 50):

A fala do corpo resulta do ato da fala do próprio corpo e a ele de novo se conecta, de maneira tal que o objeto da reflexão, o corpo em questão, se reverta no próprio sujeito da ação e conquiste o espaço no próprio texto.

A experiência que tive de aproximadamente um

mês em Salvador junto a Augusto Omolú faz parte de meu corpo e para falar desta corporeidade me apoio na reflexão de Tavares apresentada em seu livro Dança de Guerra: arquivo e arma (2012).

Na capital baiana, pude ver o artista brasileiro em sua cidade natal, ou como se costuma dizer: em casa. Lá, vi Augusto Omolú concentrado no espaço da

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Escola de Dança da FUNCEB6, um corpo observador, com a coluna reta e um andar firme; este andar firme também apareceu na tradicional caminhada do Bonfim7,

6 A Escola de Dança localiza-se na Rua da Oração, nº 1, Terreiro de Jesus no Pelourinho. A Escola vincula-se a FUNCEB, Fundação Cultural do Estado da Bahia. Esta por sua vez “é uma entidade vinculada à Secretaria de Cultura do Governo do Estado da Bahia” – informação retirada da pagina oficial da Fundação. De acordo com esta fonte, a Escola de Dança “coordena as políticas, programas e projetos que promovam, incentivem e desenvolvam a formação, a criação, a produção, a pesquisa, a difusão e a memória da Dança da Bahia, em suas diferentes configurações artísticas e atuação na contemporaneidade, bem como possíveis interfaces com outras áreas e com as novas tecnologias”. Portanto, este é um espaço institucional, mantido pelo governo do Estado. Estas informações foram retiradas de http://www.fundacaocultural.ba.gov.br/ com acesso em 21 de fevereiro de 2014. 7 A caminhada do Bonfim acontece, religiosamente, todo ano, na segunda quinta-feira de janeiro. É conhecida também por “Festa do Bonfim” ou “Lavagem do Bonfim” e é uma das “Festas de Largo” de Salvador. Segundo Sabino e Lody (2011, p. 36-37): “a festa do Bonfim [...] une o sentimento religioso do culto a Oxalá – orixá que mora no monte Okê – à imagem da Igreja que fica localizada no monte chamado de Colina Sagrada”. A festa é marcada a todo instante pelo sincretismo e ainda pelas estreitas fronteiras entre o profano e o sagrado. Nas ruas saem blocos em cortejos que se organizam para fazer a caminhada de 8km até a Igreja do Nosso Senhor do Bonfim; devotos amarram as tradicionais fitinhas no muro da Igreja e fazem seus pedidos; as baianas lavam os degraus da Igreja e com um jarro de água nas mãos dão as bênçãos aos devotos. Há também uma celebração que acontece no período da manhã. Depois, a tarde e a noite, torna-se uma grande festa com muitas músicas ao longo das estradas. Quando fui a Salvador para o Seminário de Omolú, participei deste momento e foi uma experiência incrível. No meio da caminhada, encontrei Augusto Omolú e um grupo de participantes do Seminário. Este momento também integrava, de certa maneira, a programação do Seminário. Dias antes da caminhada do Bonfim, foi passada uma lista para ver quem gostaria de fazer este trajeto até a Igreja. Da mesma maneira, aconteceu no dia 02 de fevereiro, dia de Iemanjá no Rio Vermelho,

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mas ali possuía uma leveza e certa descontração; uma descontração que também poderia ser vista, de outra maneira, nos momentos de confraternização com os participantes do Seminário no Bar do Cravinho8.

Em cada lugar eu descobria um Augusto Omolú, e hoje na medida em que escrevo e falo sobre ele, é difícil não citar alguns destes espaços. O Bar do Cravinho era um espaço que ele frequentava quase que de maneira religiosa. Na maioria das vezes, terminávamos as aulas do Seminário e lá íamos, ficávamos em entorno de uma mesa ou em pé formando uma roda em frente ao Cravinho. Para aprofundar sobre esta relação entre o espaço e o corpo, proponho uma apresentação de Augusto Omulú como um corpo em relação com o espaco em que habita.

Para tanto, apoio-me na reflexão feita por Sandra Meyer Nunes (2009) em seu livro Metáforas do Corpo em Cena. De acordo com a pesquisadora:

[...] o corpo não é produto, mas está sempre em processo, assim o é o ambiente em seu entorno. Considerando

onde Augusto Omolú convidou os participantes para entregar, em um barco, as oferendas a Iemanjá. 8 O Bar do Cravinho está localizado no Centro Histórico de Salvador, no Pelourinho. A decoração do bar é feita com madeira, especialmente barril e tonéis. As mesas e cadeiras no fundo do Bar são os próprios barris. Logo na entrada há também uma grande estante com uma variedade de cachaças – especialidade do Bar. Era comum ver pessoas na frente do bar, sentadas em cadeiras na própria calçada. Muitas vezes ficávamos em roda neste ambiente, ou nos deslocávamos para os fundos do Bar, onde havia música ao vivo, como por exemplo, samba. Esta parte dos fundos era chamada de “senzala”. Esta informação se ouvia tanto dos atendentes como também é possível ver no próprio site do Cravinho: http://ocravinho.com.br/principal/

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que o ambiente não é só um espaço geográfico ou um lugar, mas uma rede viva de informações (Nunes, 2010, p. 113).

É através da noção de corpo dinâmico que

apresento a experiência do Seminário e destaco o espaço de confraternização do Cravinho. Este espaço, para além de geográfico, era simbólico, pois funcionava como expõe Nunes (2009) na citação acima, como um ambiente vivo, repleto de informações, criando redes de comunicação entre o meu corpo e o espaço; meu corpo e os outros corpos; nossos corpos e o ambiente, enfim, uma rede que se auto-organizava e gerava modificações em nossas posturas corporais.

Nestes momentos de confraternização, as conversas eram sobre a experiência artística de cada um, sobre os lugares, as culturas e as línguas completamente distintas. Nossos corpos falavam e gesticulavam, e naquele momento a dança era outra, não era mais os movimentos dançados horas atrás, era uma dança com outros movimentos corporais. As roupas, os cabelos, as vozes, tudo isso parecia um mosaico de corpos, de singularidades que poderiam ser vistos e observados sem pressa, diferente da organização das aulas do Seminário que exigia uma concentração direcionada aos exercícios, ao toque e ao movimento impulsionado pelo ritmo da dança.

Naqueles momentos de confraternização existia um som particular. Na realidade nossos corpos eram invadidos por diferentes vibrações rítmicas, ao mesmo tempo em que produziam sonoridades particulares. Os risos espontâneos, as vozes simultâneas sobressaindo algumas em tons graves outras em tons agudos, o incessante deslocamento dos corpos, lembrava de certa maneira a intensidade da roda de capoeira, onde o corpo

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é afetado e ao mesmo tempo gerador de movimentos físicos e energéticos. Alguns sentados, outros em pé. Estas posições variavam constantemente. Havia também uma música da cidade, uma música emanada pelas ladeiras do Pelourinho, que se misturava ao burburinho dos sotaques.

Nestas horas era possível notar expressões particulares de cada um, expressões às vezes escondidas pela intensidade das aulas, mas que ao mesmo tempo também eram potencializadas pelo aprendizado e experiência das mesmas aulas. Lembro-me também que nestes momentos, alguns participantes dançavam e refaziam os movimentos corporais aprendidos nas aulas. Ás vezes, parecia um coro, cantando e dançando pelas ladeiras de Salvador.

Na confraternização existia uma conversa corporal intensa, onde o espectador oscilava a cada momento, isto é, ora observador ora observado. O que busco refletir até o momento é justamente as trocas sensoriais, energéticas e, inclusive física e cognitiva, entre os corpos e consequentemente, entre estes corpos e o espaço/situação específica. Além disso, os momentos de confraternização no Bar do Cravinho podem ser compreendidos – assim entendo – como um espaço de troca, produção e criação artística.

Este espaço permitia, por exemplo, uma aproximação entre os artistas/participantes e gerava, inclusive, possibilidades para outros projetos e criações artísticas desvinculadas ao Seminário, mas que nasciam deste espaço de confraternização do Seminário. Assim, quero frisar que o espaço do Cravinho não era somente um ponto de encontro, era mais uma parte daquela experiência do Seminário, da mesma forma, a caminhada do Bonfim, a ida ao candomblé e a Festa de Iemanjá.

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Entretanto, retomando a noção de trocas sensoriais, acredito, por mais que as dinâmicas existentes nos espaços de sociabilidade e no espaço/palco sejam distintas, diversos estudos teatrais9, e/ou os estudos da performance, têm apontado para a interação, ou melhor, a comunicação entre os corpos de quem está no palco e de quem assiste. Uma dinâmica que, em outras palavras, desestabiliza a posição passiva do espectador, colocando-o como parte e/ou autor do espetáculo.

De acordo com Nunes (2009) é possível perceber uma dinâmica de alteração física e cognitiva:

Enquanto o ator age, outras informações, em tempo presente, atravessam o corpo proveniente dele mesmo, das relações com o eu partner, o ambiente, e das conexões que o agente (ou ator) busca estabelecer a partir de dados e objetivos traçados a priori. Das relações entre estas variáveis emerge a percepção e a ação (entendidas como operações cognitivas do homem em relação com o meio), que passam a ser entendidas como processos vivos em constante elaboração e não o resultado causal final destes acordos (Nunes, 2009, p. 154).

9 Quando digo “diversos” estudos, quero me referir as leituras bibliográficas pesquisadas nesta dissertação. Um exemplo disto é a pesquisa de Sandra Meyer Nunes (2009) que traz um extenso debate sobre o corpo em cena e a relação sobre as emoções do ator, percorrendo desde o entendimento inicial de ação física de Stanislásvki, passando por uma problematização do corpo mecânico de Descartes. Com um rigor teórico e apurado, Nunes (2009) apresenta as trocas incessantes produzidas e sofridas pelo corpo, buscando nas teorias cognitivas de Antonio Damásio e nos estudos sobre o corpomídia de Cristine Greiner, percepções que contribuiem para um olhar complexo e não dicotomizado do corpomente.

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No espaço de representação, ou melhor, no

fenômeno cênico, há uma rede de informações que atravessam o corpo do ator. Os objetos expostos em cena (ou a ausência destes objetos), os figurinos, a sequência de ações cênicas, o corpo do espectador, os corpos que contracenam, enfim, todo este espaço gera uma auto-organização da percepção do próprio ator.

O que Nunes (2009) destaca é a importância de se considerar a fala do corpo do ator, em específico, a partir das teorias cognitivas; e consequentemente, romper com uma visão dicotômica do pensamento, isto é, de uma razão que opera a emoção, ou de uma mente que manipula o corpo. Nesta perspectiva de Nunes:

[...] o corpomente não é veículo ou meio que transporta informações mecanicamente, sem sofrer perdas e transformações no processo de comunicação, mas é mídia de si mesmo, com parâmetros próprios de auto-organização (2009, p. 111, grifos da autora).

Compreendo que este sistema de comunicação,

com base nas teorias cognitivas, permite direcionar meu olhar para o trabalho de Augusto Omolú com uma percepção mais atenta aos processos de auto-organização exercidos e/ou sofridos pelo meu próprio corpo no momento da experiência. Ainda que tenha sido uma experiência de observação participante, as informações presentes naquele ambiente atuaram em meu corpo, tornando possível uma reflexão sobre a fala dos corpos e a produção de gestos e movimentos presentes na dança dos orixás.

Ao trazer os estudos de Nunes (2009) para este

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tópico da dissertação, busco uma compreensão não mecânica do corpo, ou seja, uma reflexão onde a expressão: “o corpo fala”, não apresente uma dimensão abstrata, mas caminhos, inclusive, cognitivos. A pesquisadora Cristine Greiner (2005), juntamente com Helena Katz, tornou-se referência nos estudos das teorias congitivas, agregando as áreas de filosofia e comunicação com pesquisas voltadas para a dança e o teatro. Segundo Greiner (2005, p. 17): “torna-se cada vez mais evidente que o próprio exercício de teorizar também é uma experiência corpórea, uma vez que conceituamos com o sistema sensóriomotor e não apenas com o cérebro [...]”.

Da mesma forma, Tavares (2012) parece concordar com esta reflexão de Greiner (2005) sobre o corpo daquele/a que escreve, ao dizer que:

Um exercício teórico sobre o corpo, é, assim entendo, um trabalho de reflexão que implica, antes de tudo, realizar uma tomada de atitude e consciência diante do próprio corpo daquele que fala; caso contrário, o discurso a seu respeito torna-se vazio (Tavares, 2012, p. 49).

Na medida em que escrevo, busco em alguns momentos perceber10 as posturas corporais, os

10 Esta percepção pode ser compreendida, não enquanto uma consciência corporal, pois isto se aproxima de uma concepção “sobre” o corpo, onde a mente (consciente) desenvolve papel fundamental e vertical em relação ao corpo. Quando digo “perceber”, refiro-me aos movimentos e gestos corporais – que mesmo na tentativa de uma descrição – emergem antes mesmo do discurso verbal ou da enunciação destes. Portanto, concordo com Tavares (2012, p. 54) ao comentar que “é meu corpo que fala antes mesmo de me utilizar do aparelho fonador pelo qual vou emitindo as imagens acústicas que pronuncio, antes de me tornar consciente

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movimentos e gestos que faço. Concordo com Tavares (2012) e Greiner (2005) no que diz respetio à noção de corpo. Às vezes, neste texto escrito, aparecem expressões como “penso que”; “observo que”, ou “compreendo que”. Meu desafio é ultrapassar os limites de uma escrita pressa a lógica da mente, pois acredito que sou corpo e consequentemente este escrito também o é.

Nesse processo de escrita da dissertação, digo deste tópico em específico, muitas vezes dancei, caminhei, me expressei de inúmeras maneiras e cada ação desta produziu em mim reflexões e sentidos que de certa maneira reverberaram neste texto. Assim, quando utilizo expressões como as citadas anteriormente, não tenho o objetivo de reduzir ou centralizar a presença da mente como algo mecânico e vertical direcionado ao corpo. Na verdade quando “compreendo que”, compreendo com meu corpo/mente, quando “observo que”, observo com meu corpo/mente e assim penso com meu corpo/mente.

Continuo, então, com os conceitos de Greiner (2005). Em seu livro, O corpo: pistas para estudos interdisciplinares, a autora traz nas primeiras páginas uma localização histórica sobre as teorias filosóficas do corpo. Nas palavras de Greiner (2005, p. 17), “o substantivo corpo vem do latim corpus e corporis, que são da mesma família de corpulência e incorporar”. Outras nomeações como soma (palavra de origem grega para definir o corpo morto) e demas (palavra de origem grega para definir o corpo vivo) são citadas por Greiner (2005) a fim de mostrar a construção de uma divisão que

do próprio corpo. [...] enuncio minhas intenções, em geral, de forma inconsciente, através de meus gestos e movimentos com todo o corpo [...].”

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segundo a autora, “atravessou séculos e culturas separando o material e o mental, o corpo morto e o corpo vivo” (Greiner, 2005, p. 17).

Para romper com a proposta de um corpo instrumento ou corpo recipiente, Greiner apresenta uma noção de corpomídia, e afirma que “o corpo muda de estado cada vez que percebe o mundo” (2005, p. 122). Além disso, a autora afirma que

O corpo não é um lugar onde as informações que vêm do mundo são processadas para serem depois devolvidas ao mundo. O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão (Greiner, 2005, p. 130-131).

Enquanto Nunes (2009) propõe um corpomente,

Greiner (2005) um corpomídia, Tavares (2012) fala de um corpo signo. Segundo o autor:

[...] dizer que o corpo é um signo é entendê-lo como um momento liminar entre o significante (corpo como matéria viva e física), o significado (memória de equivalência corpórea que se manifesta na resistência, na acomodação, na participação), o sentido (aquilo que oferece significação ao objeto do significante) e o referente (a situação-contexto que é singular a representação) (Tavares, 2012, p. 51, destaque do autor).

Mesmo considerando as particularidades

presentes em cada discurso teórico e reflexivo apresentados anteriormente, destaco o ponto-chave entre eles: é a busca de uma compreensão do corpo que

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não se limite a dicotomias entre o “dentro” e “fora”, ou ainda, o corpo e o espaço. Para esta pesquisa, este é o ponto crucial, pois ao realizar esta pesquisa durante dois anos meu corpo alimentou-se destas redes, passando por territórios distintos, como a ida a Porto Alegre e depois a experiência em Salvador. Meu corpo, minha percepção sobre o espaço, a arte, a religiosidade, o movimento da dança, minhas identidades, minha postura como atriz, mulher e negra, enfim, tudo isso, durante este período da pesquisa esteve em negociação com outras informações, em espaços completamente diferentes.

Trazer estas noções de corpo é destacar, mais uma vez, o que a metodologia desta pesquisa apresentou no início do capítulo, ou seja, uma pesquisa que se fez/faz em contato com outros corpos. Após ter introduzido esta reflexão sobre corpo, passo então ao relato da experiência no Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás em Salvador para posteriormente, apresentar a trajetória artística de Augusto Omolú.

1.1.3 A experiência: um relato da pesquisadora sobre a observação participante em Salvador

Em janeiro de 2013, em pleno verão com o sol a

pino e com quase quarenta graus de temperatura, cheguei a Salvador com o objetivo de acompanhar durante um mês o Seminário Dramaturgia da Dança dos Orixás11. As aulas aconteceram na Escola de Dança da

11 Ressalto que esta experiência aconteceu de 10 janeiro a 05 de fevereiro de 2013. Nos anexos deste trabalho apresento o material de divulgação. Neste material há poucas informações, não há uma programação do Seminário, apenas uma apresentação do artista e uma breve eplicação dos objetivos deste Seminário, isto é feito em

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FUNCEB no Pelourinho. Lembro-me que quando cheguei neste espaço o primeiro aspecto que despertou minha atenção foi o som dos atabaques. Logo depois, fui até a recepção e perguntei sobre a aula de Augusto Omolú, a recepcionista me indicou que subisse as escadas e fosse até a sala “céu”12 .

As aulas do Seminário aconteciam com a presença dos atabaques e músicos convidados por Augusto Omolú. Parecia-me que estes músicos já o acompanhavam em outros seminários. O atabaque era um instrumento musical importante no Seminário. No candomblé os atabaques também possuem grande importância e são confeccionados “com couro de animal esticado sobre aro de madeira ou caixa oca de madeira, tem como parte principal justamente o couro, ponto em que é realizado a percussão” (Sabino; Lody, 2011, p. 93).

No ritual do candomblé há três tipos básicos de atabaques: “Rum, Rumpi e Lé ou Runlé, respectivamente grande, médio e pequeno” (Sabino, Lody, p. 95), variando o som do grave ao agudo13. A importância

dois idiomas: português e inglês. Além disso, neste material o Seminário é chamado de “Workshop”. Optei nesta dissertação pela nomeclatura Seminário, já que era assim que Augusto Omolú e os participantes se referiam ao evento. 12Este era o nome da sala, que eu só entendi o porquê depois de subir os intermináveis degraus. Era uma sala que ficava na parte mais alta do prédio, daí o nome “céu”. 13 Aqui não aprofudarei a complexidade do preparo do atabaque. Há uma série de exigências e preceitos que envolvem a construção e preparação para utilização deste instrumento nos rituais de candomblé. De acordo com Sabino e Lody (2011, p. 98): “Além dos tamanhos dos atabaques e os diferentes toques, outros fatores contribuem para uma melhor compreensão etnográfica do instrumento, como por exemplo as diferentes formas de percutir os couros, tal qual acontece nos canomblés kêtu e jeje, cuja execução se dá com baquetas [...]”.

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deste instrumento no ritual destaca-se no cuidado e tratamento que lhe é dado, desde seu preparo, montagem e escolha do material, como o couro do animal, até a escolha de quem pode ou não manuseia-lo. Sobre isso o bailarino e pesquisador Jorge Sabino, juntamente com o antropólogo Raul Lody, apontam em seu livro Danças de Matriz Africana: Antropologia do Movimento, especificamente no capítulo A identidade do som: instrumentos musicais afrodescentes, o aspecto divino do atabaque:

O atabaque não será apenas um instrumento musical; ele ocupará o papel de uma divinidade e, por isso, será sacralizado, alimentado, vestido; possuirá nome próprio e apenas sacerdotes e pessoas de importância para a comunidade poderão tocá-lo e usá-lo nos rituais. O instrumento fora de seu âmbito sagrado passará a valer pelos resultados sonoros, marcando, na maioria dos casos a base rítmica de conjuntos, acrescidos de pandeiro, agogô, berimbau, entre outros (Sabino; Lody, 2011, p. 95).

Mesmo sendo fora do contexto do ritual, ouso

dizer, pela experiência que tive no Seminário, que este instrumento era imprescindível nas aulas, sem os atabaques e seus músicos as aulas não começavam. É claro que o instrumento não apresentava o aspecto divino específico do ritual, como aponta os autores na citação acima. O toque do atabaque, além de dar o ritmo dos movimentos, criava um ambiente sonoro próprio. O som dos atabaques tinha uma vibração precisa, com marcações rítmicas que variavam de acordo com o toque e com a dança dos orixás. Os atabaques ficavam no canto da sala, geralmente em uma posição, onde os

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músicos pudessem visualizar os movimentos dançados pelos participantes.

Além da importância do instrumento há também um destaque para quem o toca. Nesse sentido, Sabino e Lody (2011, p. 98) afirmam que: “o músico-instrumentista, na hierarquia do candomblé, é da maior importância. Ele estabelece, pela música, contatos com os deuses africanos e participa de quase todos os rituais secretos e públicos”. Há ainda uma identificação para quem toca e pode variar dependendo de cada casa ou terreiro de candomblé. De acordo com estes autores:

Nos candomblés que seguem os modelos dos rituais kêtu-nagô (sistema etnocultural de prodomínio yourbá), os músicos dos atabaques são chamados de ogãs alabês; entre os seguidores dos rituais jeje (fon) são chamados de runtós; e entre os seguidores dos rituais angola-congo (banto) são chamados de xicaringomes (Sabino; Lody, 2011, p. 98).

É interessante destacar que Augusto Omolú era

ogã. Em entrevista ele contou-me que fora escolhido para tocar atabaque ainda quando criança. Nas palavras do entrevistado:

[...] eu era o único ogã da casa pequeno, tinha outros ogãs também, mas o confirmado era eu. Então eu tocava e não aguentava muito, porque eu tinha os braços pequeninos, mas eu adorava aquilo ali, para mim era meu mundo. Tocava muito bem para todos os orixás na maior satisfação, com muita alegria (Omolú, 2012b).

Este conhecimento diferenciava as aulas do

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artista, muitas vezes ele mesmo solicitava o toque específico e exigia dos músicos precisão. Dessa maneira, ele estava atento não só os movimentos dançados como também o ritmo e toque do atabaque.

Por tudo isso, é que afirmo que durante as aulas, os corpos dançantes e o som dos atabaques criavam uma conversa, eu como observadora, muitas vezes notei que além dos participantes, os músicos também suavam, se entregavam e suas mãos eram tão rápidas quanto os movimentos dançados. Minha percepção e observação me levam a crer que existia um diálogo intenso entre o corpo do músico, a vibração do som e o corpo daquele que dança. Esta conexão entre a dança, o canto e o batuque é fundamental para contextualizar não só o Seminário como também o próprio trabalho artístico de Augusto Omolú – no próximo capítulo me concentrarei nestes aspectos do cantar, dançar e batucar.

Em alguns momentos da aula, quando o toque era acelerado14 e o participante estava em sintonia, executando uma sequência rápida de movimentos alternados dentro do ritmo, era comum ouvir gritos dos outros participantes que estavam em pé, no canto da sala, aguardando com entusiasmo para desenvolver a mesma sequência de movimentos.

Além disso, este som preenchia o espaço da

14 Haviam vários toques e estes variavam conforme o movimento do orixá que se estava trabalhando. Cito aqui alguns toques, seguindo as definições dos pesquisadores Jorge Sabino Raul Lody (2011, p. 99-100): “entre os principais toques que formam o elenco da música sagrada temos os sguintes nomes de acordo com as nações: Kêtu (yorubá): Ramonha; ijicá ou jicá; agueré ou aguerê; opanijé; daró ou illu; alujá (toque que é composto pelo “roli” e pani-pani); ibi. Jeje (fon): Bravum; Sato; avamunha; adarrum. Angola-congo (banto): congo; cabula; barravento”.

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FUNCEB, dava para ouvir o toque dos atabaques antes mesmo de entrar na sala. Às vezes eu via alguns participantes correndo pelas escadas, pois se sabia que pela batida, a aula começara. Outro aspecto que observei, além desta importância do instrumento e os músicos, foi a rotina intensa com exercícios e repetições de sequências de movimentos da dança dos orixás, executadas em filas ou em diagonais na sala. Uma rotina que se organizava, resumidamente da seguinte maneira: repetição, repetição e repetição dos movimentos; pausa, explicação; repetição e repetição dos movimentos; fila em diagonal, de ponta a ponta da sala e execução de sequência de movimentos.

Relatando assim, talvez se aproxime de uma descrição tradicional das aulas de dança, onde a preocupação é voltada para o corpo e a execução dos movimentos no tempo/ritmo. A intensificação dos músculos do corpo, a flexibilidade, a agilidade, os corpos suados. Mais diagonais e mais repetição. A aula, como prometia o artista brasileiro, era intensa. Exigia como ele mesmo falava, disciplina, atenção e agilidade.

Recordo de imagens frequentes como participantes cansados e/ou em êxtase. Em sua dissertação de mestrado sobre a dança dos orixás de Augusto Omolú, Antonio Ferreira Junior (2011) narra parte de sua experiência no seminário realizado em 2010, e descreve da seguinte maneira:

São momentos longos, e não sou só eu, todos “morrem”! as pessoas quase não terminam, falta oxigênio, falta força, é um desgaste total e absoluto temos a sensação de que enfiaram uma agulha para sugar energia, mas na realidade essa energia vai se transformar. Isso me toca de maneira muito forte e intrínseca, porque

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chego a sentir que eu vou desfalecer. Totalmente descompensado penso em que momento, do processo, vou realmente passar por essa fase com menos desgaste (Ferreira, 2011, p. 53).

Por quase um mês esta rotina de esgotamento

do corpo e dos exercícios se manteve. E isto me levou a seguinte questão: seria possível pensar o conceito de disciplina15 nas aulas de Augusto Omolú, dada a exigência física e a correspondência dos movimentos dentros dos ritmos? Em outras palavras, ao relembrar das aulas do Seminário, até que ponto o saber das dancas dos orixás estaria passando também por um processo de normatização e disciplina?

Ao problematizar as práticas mais conhecidas de treinamento de atores surgidas no século XX, a partir de conceitos foucaltianos de treinamento e disciplina, a pesquisadora Maria Brígida de Miranda (2003) explica que: “a noção de "disciplina" de Foucault refere-se aos "métodos" que transformam corpos a um estado de "docilidade-utilidade"”16. Mesmo sabendo que aulas do Seminário eram experiências sobre a dança dos orixás, diferentes de técnicas para o treinamento para o ator, busco neste instante uma breve reflexão sobre este conceito foucaultiano.

De modo geral, a organização do Seminário era

15 Conceito teórico exposto por Michel Foucault, principalmente em seu livro Vigiar e Punir: historia da violência nas prisões (2005), o qual consta nas referências deste trabalho. Também acrescentarei a esta breve reflexão o estudo da pesquisadora e professora doutora Maria Brígida de Miranda (2003), que traz esta noção de Foucault para pensar o treinamento do ator. 16 Tradução livre do original em inglês: “Foucault’s notion of “discipline” refers to those “methods” which transform bodies to a state of “docility-utility”” (Miranda, 2003, p. 63).

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de certa maneira flexível, digo isto, pois havia um espaço de demonstração de trabalho, às vezes dos próprios participantes e outras vezes de artistas locais convidados. Os participantes tiveram, além das aulas de dança dos orixás, outras experiências com arstista das áreas de dança, teatro e canto iorubá17. Esta programação por um lado possibilitava uma experiência com outros artistas, mas reduzia de certa forma o tempo das aulas com Augusto Omolú. Nesse sentido, diferente dos procedimentos normativos escolares, o Seminário possuía uma organização particular e aberta, consequentemente, a programação era modificada constantemente, sendo alterada conforme a necessidade diária.

Em relação aos participantes18, posso dizer que o público em geral era formado por dançarinos e atores, um público misto entre homens e mulheres e que, em sua maioria, vinham de diferentes países, como Argentina, Canadá, Estados Unidos, Polônia, Itália, Inglaterra e Holanda. Do Brasil os principais estados eram: São Paulo, Minas Gerais e poucos da Bahia. Esta era uma questão que Augusto Omolú destacava com frequência. Na entrevista que fiz, antes de ir ao Seminário, ele já havia dito que o número de participantes era alto, mas raramente era um público local.

17 Os participantes tiveram aulas com artistas convidados, com cantos em iorubá e aulas de teatro para trabalhar improvisação, composição e redução dos movimentos da dança dos orixás. Dentre os professores convidados, cito os coreógrafos Giovanni Luquini, Mestre King, Flechão e o diretor Lau Santos. 18 O número de participantes era de aproximadamente quarenta pessoas e em algumas aulas chegava a quase sessenta, pois Augusto Omolú convidava os alunos do Projeto Axé, que deveriam ter entre dez a dezessete anos.

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Quanto ao objetivo do Seminário, não estava escrito e formalizado em na programação, mas pela experiência que tive, pude observar que o objetivo do artista brasileiro era repassar o maior número de movimentos possíveis e consequentemente fazer daquele espaço um momento de experiência para os participantes, vindos de diversos lugares do mundo, com estruturas físicas, corporais, línguas e culturas diferentes.

Até agora descrevi de maneira geral o Seminário, levando em consideração as minahs observações e anotações, já que não havia uma programação escrita com uma apresentação metodológica e normativa, aproximando-se mais de uma experiência coletiva. Assim, apresento a concepção foucaltiana de disciplina a fim de perceber se esta aprendizagem da dança estaria embuída de processos disciplinares no corpo dos participantes.

Na definição de Michel Foucault (2005, p. 119): A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “docéis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita.

A partir desta definição foucaltiana, talvez, seja mais pertinente, perguntar que tipo de corpo era fabricados no espaço do Seminário? Acredito que as

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aulas possuíam um ritmo e movimentos ligados ao toque do atabaque, produzindo um corpo atento, porém com o objetivo de conectar: movimento, ação e ritmo. Além disso, é possível pensar em um corpo que se deslocava – principalmente - em dois espaços distintos: o primeiro, da confraternização (Bar do Cravinho, Festas de Largo, Convívio diário entre artistas locais e os outros participantes) que permitia outros processos de aprendizagem, criação e produção artística; e o segundo, o espaço convencional da sala de dança, momento de aprendizagem direta com o artista Augusto Omolú.

Neste segundo espaço, a sala de dança convecional com espelhos e pouca mobília, apresentava certos aspectos que embora se aproxime das normatizações escolares, como: carga horária, certificado e programação de aulas durante um período específico; observei que o próprio artista desestabilizava estas ordens disciplinares. Frequentemente Augusto Omolú modificava a programação do Seminário, convidava outros artistas, trazia a turma de jovens do Projeto Axé para fazer uma manhã de aula com os outros participantes, buscava acrescentar outras experiências como a caminhada do Bonfim e a Festa de Iemanjá.

Estes aspectos, de certa maneira, quebravam com a ideia de normatização da aprendizagem. Por exemplo, nas últimas aulas do Seminário, Augusto Omolú decidiu que seria feita uma apresentação final, um ensaio aberto ao público na Praça Sete de Setembro no centro histórico de Salvador. Esta era uma característica do artista, de considerar o acaso, o instante presente e a partir disso modificar a programação, transformando o aprendizado da dança em experiência.

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Além disso, no Seminário percebi que o corpo era um importante canal de troca sensorial entre o canto, a dança e batuque; funcionando, inclusive, como descoberta de linguagens não-verbais entre os próprios participantes. O objetivo geral do Seminário, a meu ver, era o de construir um coro, onde cada corpo com sua particularidade e especificidade, compartilhasse naquele momento uma experiência com base na dança dos orixás. Para tanto, o impulso para criação do movimento estava no que Augusto Omolú chamava de “energia do orixá” (2012a), a partir disso o diálogo se ressignificava constantemente, pois embora o impulso fosse o mesmo (no caso o mesmo movimento do orixá), buscava-se a todo instante a descoberta pessoal de cada um, em outras palavras, uma comunicação entre o axé19 e o próprio corpo. Ressalto que sobre estes aspectos da energia do orixá e a criação do movimento irei abordar no próximo capítulo.

Diante disso, percebo o trabalho do artista brasileiro como um campo amplo para pesquisas sobre a representação, os processos de criação artísticas e a própria linguagem do corpo. Acredito também que, futuramente, serão necessários outros escritos e pesquisas que possam contribuir para ir além das fronteiras já estabelecidas por Augusto Omolú. Seu trabalho sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás é um start, um impulso para que se possa no campo teatral perceber o sujeito da cena de maneira plena, atravessado de história, memória e corporeidades, assim como, agente e gerador destes elementos.

A partir dos referenciais teóricos abordados até o

19 Sobre isso aprofundo no capítulo dois, no tópico: “O axé de Augusto Omolú e o sats de Eugenio Barba: diálogos sobre a noção de energia no trabalho do ator”.

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momento, concluo que o ator é seu corpo, como é história e memória, assim, cabe a cada instante ou a cada processo criativo a liberdade de transitar sem amarras e reinventar, na medida em que se é reinventado, as memórias e histórias que o atravessam. Minha intenção nesta dissertação é buscar pistas sobre os movimentos corporais da dança dos orixás e sua transformação em ação cênica. Infelizmente, a fatalidade, morte do artista brasileiro em junho de 2013, interrompe a pesquisa sobre a dança dos orixás, e muitas destas reflexões sobre o corpo e os movimentos não foram registradas e/ou não chegaram a ser experimentadas pelo próprio artista.

Dessa maneira, tenho algumas pistas que junto às minhas leituras e experiências durante esta pesquisa no mestrado em teatro, ganham outros sentidos e significados. Destaco ainda que esta reflexão, portanto, é parte do meu olhar como atriz/pesquisadora, não sendo possível hoje compartilhar com Augusto Omolú ou ainda saber quais as modificações seu trabalho teria alcançado20. Após relatar a experiência do Seminário, passo para o proximo tópico deste capítulo, a trajetória do artista. Considero importante apresentar a trajetória para que se possa perceber a relação que o artista tinha com o candomblé e como a dança dos orixás, foco de sua pesquisa e criação artística.

20 Principalmente nestes últimos anos, pois seu objetivo era ficar mais tempo no Brasil e continuar a desenvolver seminários, agregando os trabalhos de outros artistas do teatro e da dança, com o intuito de fomentar e aprofundar a noção de Dramaturgia da Dança dos Orixás. Estas eram suas perspectivas, comentários feitos em vários momentos informais no Seminário em Salvador.

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1.2 NO BATUQUE DO TERREIRO NASCE A DANÇA DE OMOLÚ: O SUJEITO PESQUISADO E SUA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA

Meu foco neste tópico é apresentar o artista

pesquisado, seu contato com o candomblé e o encontro com o grupo de teatro Odin. Como se verá adiante, além da dança dos orixás, a trajetória de Augusto Omolú é marcada por sua formação no ballet e na dança moderna.

No período em que estive em Salvador, acompanhando o Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás, observei sua representatividade como artista local, especialmente como coreógrafo e dançarino; isto porque antes do grupo Odin, ele já havia passado por uma das companhias mais importantes da Bahia: o Balé Teatro Castro Alves (Balé do TCA), criado em 1981. Além disso, durante anos, o artista possuiu vínculo institucional com a FUNCEB, Fundação Cultural do Estado da Bahia, onde lecionou como professor na Escola de Dança.

Dada a importância destas instituições, pesquisei nos respectivos sites, declarações sobre a participação e presença do artista nestes grupos, este material serviu como fonte, complementando as informações sobre a vida e trajetória de Augusto Omolú, já indicadas na entrevista realizada em maio de 2012 em Porto Alegre. Utilizo também outras duas entrevistas: concedida para Antonio Marcos Ferreira Junior em janeiro de 2010, porém publicada em sua dissertação de mestrado em 2011; e concedida para Valmir Santos em agosto de 2012, publicada em junho de 2013 no periódico eletrônico, Teatro Jornal: leituras de cena.

A seguir, apresento então, a trajetória do artista, a começar por seu contato com o universo religioso do candomblé.

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1.2.1 Ao som dos tambores a dança encontra Omolú: o contato com o candomblé e a descoberta da dança dos orixás

Quando penso em falar sobre o candomblé na trajetória de Augusto Omolú a imagem que me invade é o olhar vibrante e o sorriso discreto que vi em seu rosto no dia da entrevista. Foi assim que ele narrou sobre sua infância. Uma infância que aconteceu no espaço do terreiro, vendo os preceitos e os preparativos em dia de festa, vendo a dança e o movimento dos orixás manifestados nos corpos dos iniciados.

Pois bem, quando li outras duas entrevistas de Augusto Omolú (2010; 2012b) percebi que em vários momentos ele afirmou que nasceu e cresceu praticamente dentro do terreiro21, – sobre isso ele diz: “quando não estava com minha família normal, estava com a minha família do candomblé” (Omolú, 2012b). Por volta dos treze anos de idade ele começou a participar de grupos de dança, mas ainda em uma linha folclórica da dança dos orixás. Ele conta que “nos anos cinquenta [1950] foram criados, por exemplo, muitos grupos folclóricos que faziam os orixás no palco” (Omolú, 2012a) e que havia uma imitação do orixá, com vestimentas, expressões faciais e movimentos dançados tal qual nos terreiros no momento da incorporação.

Em contrapartida, ele acreditava numa diferença entre imitar o orixá de maneira folclorizada e trabalhar artisticamente o movimento dançado pelo orixá, esta

21 Terreiro, roça ou barracão são maneiras de se referir ao espaço em que o ritual acontece, isto é, a casa de candomblé. Estas expressões são muito usadas na região de Salvador. Nos encontros com artistas e os próprios participantes do Seminário, era comum ouvir, principalmente, a expressão roça.

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última perspectiva era a base de seu discurso, em suas palavras: “o movimento é também de uma linguagem universal. Ele pertence a uma religião, mas também é uma arte enquanto movimento” (Omolú, 2012a).

Este discurso faz parte de uma fase mais madura, após as pesquisas e experiências sobre a dança dos orixás e os conceitos da Antropologia Teatral, como a noção de dramaturgia que surgiu no contato com Eugenio Barba. Entretanto, quero retornar àquele artista ainda menino, que começou a fazer aulas de dança com Mestre King, a participar do grupo folclórico Viva Bahia de Emília Biancardi e logo depois integra o corpo de bailarinos do Balé do Teatro Castro Alves.

Aos treze anos de idade, ele fez sua primeira viagem internacional, destino: Alemanha, para um festival brasileiro (Omolú, 2012b). Lá, aos moldes do grupo folclórico dançou o orixá Omolu. Nessa época, o adolescente que tinha saído de casa simplesmente para acompanhar a irmã em um curso preparatório de estética no SESC, começa a fazer capoeira e dentro deste espaço conhece o Mestre King, uma figura emblemática em Salvador, conhecido por ser um dos precursores da dança afrobrasileira22.

22 Raimundo Bispo dos Santos, conhecido artisticamente como Mestre King, é um dos pioneiros da dança aforbrasileira, foi mestre de muitos professores de dança, como : Flecha, Pequeno, Gilberto Bahia, Rosângela Silvestre, Tânia Bispo e também Augusto Omolú. Durante o Seminário em Salvador, pude assistir as aulas de King e ainda fazer uma entrevista. Nesta entrevista não publicada, ele conta sobre sua trajetória e sua formação, os dançarinos que passaram por ele e ainda seu reconhecimento na área da dança, além de ser um dos primeiros a se graduar em dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Com setenta anos de idade, King é um dos coreógrafos baianos de maior notabilidade no cenário da dança afro-brasileira, pude observar isto tanto em Salvador, na entrevista, quanto em leituras, como a dissertação de Ferreira

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Na entrevista publicada pelo Teatro Jornal, Augusto Omolú conta sobre este início de sua trajetória artística:

O mestre King, o professor, começou a me ver também como dançarino de orixá, porque eu já trazia isso desde pequeno. Quando vi que estava dentro desse grupo, o Grupo Balú, fazendo capoeira, no qual também tinha dança de orixás, comecei a dançar candomblé, maculelê e samba de roda (Omolú, 2012b).

Ao participar do Grupo Balú coordenado pelo Mestre King a dança dos orixás aparece no corpo de Augusto Omolú de uma maneira diferente, agora não é mais o menino de oito anos que imitava os orixás, aqui os movimentos começam a ser trabalhados de maneira mais artística, embora mantivesse ainda um traço folclórico, como o próprio artista anuncia. Em entrevista (Omolú, 2010), ele conta também que esta representação do orixá, ou imitação como fala o artista, mais tarde começou a incomodá-lo, pois segundo ele: “utilizavam e utilizam muito a figura dos orixás ou às vezes muita coisa de fundamento religioso” (Omolú, 2010).

Embora o próprio artista admita o aspecto folclórico, posso concluir a partir das entrevistas pesquisadas que sua formação como dançarino inicia-se neste período entre as aulas com a professora Emília Biancardi no grupo Viva Bahia e a participação no Grupo Balú de Mestre King. O próprio nome artístico aparece neste momento, pois aquele menino agora precisava de

(2011), e mais especificamente, o escrito de Oliveira (2008) sobre a história e importância de Mestre King – ambas referências estão listadas no final desta dissertação.

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um registro, algo que indicasse este sujeito do palco, e por dançar muito bem o orixá Omolú, agrega ao seu nome, tornando-se: Augusto Omolú. Esta história o artista conta na entrevista publicada pelo Teatro Jornal. Trago nas próximas linhas a voz do artista para narrar este momento de sua trajetória:

Quando voltei, comecei a trabalhar mais, a correr a Bahia, e aí tinha que ter um registro de artista, precisava ter um apelido artístico. Então, como ela [Emilia Biancardi] já me chamava o tempo todo de “Omolú, Omoluzinho”, ficou Augusto Omolú. Por outra coincidência muito grande, quando nasci, em casa, a madrinha que me batizou, a Maria de Lurdes, recebeu a entidade Omolú justamente na hora do meu parto que estava ajudando a fazer (Omolú, 2012b).

A partir de sua fala percebo, mais uma vez, a importante ocupação do candomblé em sua vida. Augusto Omolú conta dois episódios distintos, um sobre o seu nome artístico, vinculando a habilidade em dançar o orixá Omolú e consequentemente o apelido “omoluzinho”, e o outro episódio sobre a presença, incorporada, do orixá Omolu em seu nascimento. Nesta entrevista, ele explica ainda que o orixá Omolu “é um guardião do cemitério, dos mortos. Ele representa também a medicina. A saúde e a doença, a vida e a morte” (Omolú, 2012b).

Entretanto, no caminho da dança, Augusto Omolú se lança para além da dança dos orixás, digo, em sua formação aparece o ballet e a dança moderna. É neste momento que surge o Balé do Teatro Castro Alves, uma companhia de dança com forte representação no estado da Bahia. No site do Balé do TCA, o grupo se

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define como “a primeira companhia de dança oficial do norte-nordeste” (Teatro Castro Alves, 2013).

Na citação que faço a seguir, retirada do site oficial do TCA, é possível notar o peso institucional desta companhia e sua representatividade no estado da Bahia:

O Balé Teatro Castro Alves é a companhia de dança oficial da Bahia, criada em 1º de abril de 1981, pelo Governo do Estado e mantida pela Fundação Cultural - unidade da Secretaria de Cultura. [...] com um corpo artístico formado por 36 bailarinos, o BTCA conta com mais de 50 montagens em seu repertório, sendo uma presença destacada no cenário da dança nacional e internacional. (Teatro Castro Alves, 2013).

O Balé do TCA, com seus trinta anos de história, é apresentado na citação acima como um grupo do estado da Bahia, mantido pela FUNCEB, Fundação Cultural do Estado da Bahia. Além disso, possui um grande repertório, um número expressivo de bailarinos e ainda seus espetáculos tem circulação no cenário nacional e internacional. Quando entrevistei Augusto Omolú, ele falou da responsabilidade e do compromisso que tinha quando era integrante do Balé do TCA. Em contrapartida a própria história da companhia é marcada pela presença emblemática do artista. Isto se evidencia na seguinte manifestação da equipe do TCA após a notícia de falecimento do artista:

A trajetória de Omolú se confunde com a própria criação do Balé Teatro Castro Alves, já que o artista se juntou ao grupo ainda em 1981, ano de fundação deste que é um dos atuais corpos artísticos do TCA. Augusto Omolú integrou o elenco de diversas produções da companhia e,

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muitas vezes, atuou como solista destes espetáculos. Parceiro constante do grupo nesses mais de 30 anos de história, o baiano se preparava para assumir o cargo de assessor artístico do BTCA (Teatro Castro Alves, 2013).

Ao trazer esta citação, vejo uma trajetória

profissional na área da dança de Augusto Omolú antes da entrada ao grupo dinamarquês dirigido por Eugenio Barba. Sua experiência direcionada para os movimentos da dança dos orixás indica que o artista não chega ao Odin Teatret como um dançarino iniciante. Isto é fundamental para compreender a relação que o artista estabeleceu com o grupo dinamarquês.

É claro que não refuto as contribuições do Odin na trajetória de Augusto Omolú. O próprio artista em entrevista (2012a) conta sobre esse primeiro contato com o teatro, a partir do encontro com Eugenio Barba. Este contato com o diretor italiano permitiu, segundo ele, uma pesquisa mais direcionada para codificação dos movimentos da dança dos orixás. A seguir, escrevo sobre este encontro entre Omolú e Barba, outra fase da trajetória do artista baiano.

1.2.2 “Uma dança em outra forma”: a participação de Augusto Omolú na ISTA em Londrina

Em agosto de 1994, a Escola Internacional de

Antropologia Teatral, conhecida pela sigla em inglês ISTA23, fez um encontro no Brasil, especificamente na cidade de Londrina no Paraná. Um ano antes em 23 Segundo Barba, a ISTA foi fundada em 1979 e “sua primeira sessão foi realizada em Bonn em 1980 e durou um mês inteiro. Participaram como professores artistas de Bali, Taiwan, Japão e Índia” (Barba, 1994, p. 21).

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Salvador, Augusto Omolú conheceu Eugenio Barba e Julia Varley.

Após o falecimento do artista brasileiro, Varley escreveu uma carta publicada online na Revista Performatus, e lá ela conta sobre este encontro da seguinte maneira:

Nós te conhecemos no dia 13 de janeiro de 1993. Eugenio Barba e eu estávamos viajando pelo Brasil para preparar a sessão da ISTA (International School of Theatre Anthropology) que aconteceria em agosto de 1994. Nitis Jacon, a diretora do FILO (Festival Internacional de Londrina), queria que uma tradição brasileira estivesse presente de qualquer maneira ao lado das tradições que vinham do Japão, da Índia, de Bali e da Europa (Varley, 2013).

Foi a partir desta necessidade em ter um

representante brasileiro na ISTA em Londrina, que Barba e Varley começaram a buscar um artista que trabalhasse com a tradição, assim como, os outros integrantes vindos do Japão, Índia e da Europa, os quais já tinham conhecimento sobre a Antropologia Teatral e, portanto, haviam codificado suas “tradições” para uma apresentação do teatro-mundi24. Na carta, Varley segue dizendo que tanto ela quanto Barba eram céticos nesta busca. A atriz e integrante do Odin Teatret continua assim:

Tínhamos dúvidas que conseguiríamos

24 De acordo com o site oficial do grupo, Theatrum Mundi Ensemble: são espetáculos interculturais com a direção de Eugenio Barba. Sobre isso pode-se consultar: http://www.odinteatret.dk/about-us/about-odin-teatret/odin-teatret---en-espa%C3%B1ol.aspx – acesso em 30 de janeiro de 2014.

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encontrar, entre as manifestações populares de espetáculos do Brasil, uma forma estruturada e repetível que pudesse ser comparada às formas codificadas asiáticas. Éramos céticos sobre a possibilidade de encontrar um representante de uma tradição desse tipo, capaz de explicar com palavras e de demonstrar tecnicamente, a frio, os vários níveis de seu saber incorporado – que, na prática artística, é uma unidade –, separando a forma do seu contexto ritual ou festivo (Varley, 2013).

A partir deste trecho, a pergunta que me surge,

como brasileira e atriz, é: seria possível reunir uma forma repetível, codificada, isto é, uma estrutura universal imersa em uma tradição especifica? Parece que Barba (1994) em seu tratado da Antropologia Teatral responde a esta questão trazendo o conceito de pré-expressividade. Entretanto, não aprofundarei neste instante as problemáticas deste conceito, esta é uma reflexão para o próximo capítulo, por enquanto, direciono-me para a trajetória artística de Augusto Omolú e seu encontro com o diretor italiano.

Nesta busca por um representante brasileiro, Varley e Barba que já tinham passado pelo Bumba Meu Boi de São Luís do Maranhão, Brasília e Fortaleza, chegam a Salvador e a partir de Paulo Dourado25 se deslocam para assistir uma aula de dança dos orixás de Augusto Omolú. Após a aula, sentados em uma mesa de bar, próximo ao Teatro Castro Alves, inicia-se a conversa, que a atriz do Odin descreve assim:

25 Diretor baiano e professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Em Salvador, acompanhados pelo diretor e amigo Paulo Dourado, assistimos a ensaios e cursos de vários dançarinos de técnica afro-brasileira e a muitas cerimônias de candomblé e caboclo. Até que um dia, pela manhã, o Paulo nos levou a uma grande sala onde uns setenta dançarinos suavam ao ritmo frenético dos tambores. Você estava começando a ensinar as danças dos vários orixás. Mostrou Oxossi, o caçador, com um passo duplo saltitante, a chicotada do cavaleiro, o dedo médio como a flecha que mira, a corda apertada em torno da caça, o corpo forte e o rosto com expressão vitoriosa. Depois passou para Oxum, a deusa da água doce, da vaidade, do amor e da beleza, que se olha no espelho, que penteia os longos cabelos e se enfeita de joias. E de repente, a sua expressão, que antes era decidida, masculina e vigorosa, torna-se doce, feminina e sedutora. Você não era nem afeminado nem artificial. Estava tomado por uma inexplicável energia que tinha te transformado totalmente diante dos nossos olhos. Eugenio e eu nos olhamos. Sabíamos o que estávamos pensando: só tínhamos visto uma transformação desse tipo vendo dançar Sanjukta Panigrahi, a inesquecível dançarina indiana de Odissi e outra fundadora da ISTA. Foi paixão à primeira vista. Algo parecido que também faz com que vários dos seus alunos se apaixonem por você (Varley, 2013).

Augusto Omolú havia apresentado a dança dos

orixás, mas não somente isso, a energia e as características distintas entre o orixá Oxum eo orixá Oxóssi, mostravam a Barba e Varley a possibilidade de uma dramaturgia, pois cada movimento daquele tinha

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uma história, cada orixá representava um elemento da natureza, e tudo isto poderia servir como material para uma possível partitura, ou seja, para uma sequência de ações físicas, eles haviam encontrado o representante brasileiro que poderia codificar esta manifestação popular e transformá-la em espetáculo junto aos outros integrantes do Odin na ISTA em Londrina.

Porém, era preciso fazer um teste com esta “paixão a primeira vista”. Paulo Dourado acompanhado de Barba e Varley convence Augusto Omolú a leva-los ao terreiro de candomblé. Logo depois, houve um jogo de improvisação entre Varley e Omolú, que ela narra da seguinte maneira:

Eu ainda não tinha nenhuma ideia sobre o significado dos seus movimentos e você ainda não sabia interpretar minhas ações, mas, mesmo assim, tínhamos uma língua em comum. Nossa energia modelava formas precisas, e quando elas se alternavam, fundiam-se e repeliam-se ritmicamente. [...] Naquela tarde, o Eugenio decidiu que você participaria da ISTA. Você não entendia muito bem o que era ISTA, o que era a antropologia teatral. Mas aceitou, e foi o início de um longo processo de aprendizagem recíproca (Varley, 2013).

Augusto Omolú diz que nos primeiros momentos,

aquela linguagem sobre o movimento e a presença cênica, trazia muitas informações para ele, diferentes de sua rotina de bailarino. Na entrevista, ele diz que muitas vezes via Barba com um coreógrafo, ao mesmo tempo em que o diretor italiano enxergava um “grande leque de possibilidades” para a composição e a criação de cena (Omolú, 2012a).

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O artista brasileiro conta ainda, que para cada orixá há mais de vinte ou trinta movimentos corporais. Os orixás quando incorporados comunicam-se através da dança, assim cada movimento dançado possui um significado e está atrelado a mitologia deste orixá e suas característica em relação a natureza. Por exemplo, se eu me direcionar ao orixá Iansã, a mitologia conta que Iansã significa a mãe dos nove filhos, ou ainda, “mãe nove vezes” (Prandi, 2012, p. 294); Iansã é apresentada como mãe dos ventos e das tempestades, logo seus movimentos de dança possuem estas representações. Geralmente, com as palmas das mãos para cima fazendo movimentos de dentro para fora, ou movimentos circulares com as mãos, simbolizando uma ventania, um vendaval.

Todo esse conhecimento Augusto Omolú havia experenciado dentro do candomblé, e também nos anos de dança dos orixás, imitando os movimentos e representando-os em cena. Este material para Barba, como afirmava o artista brasileiro em vários momentos da entrevista, era uma possibilidade infinita, onde cada movimento poderia ser codificado e transportado para cena construindo outras significações. Na carta escrita por Julia Varley, ela conta que Augusto Omolú ainda não havia pensado nos orixás em relação a uma dramaturgia, ou seja, nos “orixás como personagens que pudessem instaurar um diálogo entre si” (Varley, 2013).

De qualquer forma, quando o artista brasileiro compreendeu isto, seus olhos enxergaram outras maneiras de sistematizar e criar tudo aquilo que ele já tinha experenciado com a dança e com o candomblé. Deste processo, surge a montagem do Orô de Otelo (1994), um espetáculo que tinha como objetivo inicial ser apenas uma demonstração na ISTA em Londrina, mas que ganhou destaque em sua trajetória, principalmente

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em sua pesquisa sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás – no capítulo três me concentrarei neste espetáculo, nos movimentos dos orixás e sua relação com os personagens de William Shakespeare.

Nesta fase com o Odin, o artista brasileiro tinha uma posição de colaborador, isto é, participava das sessões da ISTA, e foi assim até 2002, onde passou a integrar o elenco do grupo. A versão de Varley para este momento da trajetória de Augusto Omolú, é narrada assim:

Muitas vezes você me perguntou como é que se entrava no Odin Teatret. O Eugenio tentou te desencorajar de todas as maneiras, mas você tinha certeza: queria crescer artisticamente e ficar em um ambiente que permitiria que isso acontecesse [...]“Como você vai sobreviver ao frio dinamarquês?”, perguntava o Eugenio, “sem conhecer a língua, sem os amigos, sem a família?”. Aquela diferente disciplina de um ator, as pessoas que eram tão reservadas, o isolamento em uma pequena cidade nórdica… Na ISTA, você era tratado com todas as atenções dadas aos mestres, mas entrando no Odin Teatret teria que começar do zero, se tornaria um principiante com deveres e responsabilidades. Mas você insistia (Varley, 2013).

Durante as entrevistas, o artista brasileiro não

faz menção a este episódio, porém, sempre elucida os desafios constantes para estar junto ao grupo dinamarquês. Comenta sobre a distância, a família e os amigos, e ainda quando indagado sobre sua participação, diz assim:

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Como também um contribuidor. Entrei aqui como um colaborador e agora me sinto justamente como um colaborador. Contribui assim como todos os integrantes contribuem comigo também. Aumentei minha visão das artes cênicas, assim como trouxe para eles um leque de possibilidades. É como se houvesse as células de cada um. Cada um dos atores tem uma história aqui dentro. Essas diferenças fazem uma diferença. E o Eugenio trabalha muito com as indiferenças. Ele gosta de coisas assim. Isso me interessa: sinto-me como mais uma das pessoas portadora dessas células, corresponsável pelas linguagens que partilhamos em vários lugares do universo (Omolú, 2012b).

Em seu discurso aparece, sutilmente, as tensões

envolvidas na relação de grupo. Sua história com Eugenio Barba se estendeu por quase duas décadas de pesquisa e trabalho artístico profissional remunerado. O artista brasileiro chega a afirma que a partir do contato com o diretor italiano: “despertou uma nova vida, uma nova condição de sobreviver dentro da minha arte” (Omolú, 2012a). Sem dúvidas, a presença de Barba no grupo é algo marcante.

Sobre o papel do diretor no grupo Odin, Lara T. de Matos, atriz e mestre em teatro, escreve em sua dissertação Intersecções entre prática teatral e vida pessoal no trabalho das atrizes do odin teatret (2012, p. 21) que:

Apesar do grande número de pessoas trabalhando na administração do grupo, é Eugenio Barba quem toma as decisões mais importantes, seja sobre determinada necessidade econômica, ou necessidades

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artísticas de um espetáculo. Eugenio Barba é o único diretor do grupo, é quem mais publica livros e artigos em diversas línguas, ministra conferências, palestras, seminários, além disso, a difusão de técnicas e os impactos de seus projetos artísticos e pedagógicos, o fazem ser considerado um dos importantes diretores do teatro de grupo contemporâneo que segue a linha das revoluções do século XX a partir de Stanislavski.

Dada a posição do diretor, não só na

organização de espetáculos, como também na parte administrativa do grupo, torna-se compreensível, a partir desta citação, o discurso do artista brasileiro, evidenciando a presença de Barba em sua trajetória, como também a notabilidade do grupo dinamarquês no cenário teatral. Ressalto ainda que as citações feitas até aqui foram retiradas das entrevistas encontradas de Augusto Omolú e da carta escrita por Julia Varley, sendo a última fonte um material escrito pela integrante do Odin em um momento após a perda do artista brasileiro. Assim longe de aproximar os dois discuros de Varley e Omolú, o que busquei nesta seção foi compreender a entrada de Augusto Omolú no Odin, partindo de duas perspectivas distintas.

Para falar sobre esta última fase do artista com o grupo dinamarquês, passo para o próximo capítulo, a fim de discutir os conceitos da Antropologia Teatral de Barba, que de certa maneira davam suporte a pesquisa de Augusto Omolú sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás. Os principais conceitos que destacarei são: pré-expressividade, sats, energia, e ação física.

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CAPÍTULO DOIS A ENERGIA DO ORIXÁ COMO IMPULSO PARA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA E AS TENSÕES NO ENCONTRO COM A ANTROPOLOGIA TEATRAL

“É como se o orixá fosse o movimento de partida, e de repente você elimina o orixá e fica somente com a energia”. Augusto Omolú

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No capítulo anterior meu objetivo foi apresentar a trajetória de Augusto Omolú e, ainda, sua ligação com o candomblé. Neste capítulo localizo alguns conceitos da Antropologia Teatral imersos na Dramaturgia da Dança dos Orixás.

Ressalto que a Dramaturgia da Dança dos Orixás era uma pesquisa artística de Augusto Omolú, fruto de suas experiências como dançarino na Bahia e sua participação durante quase vinte anos no grupo Odin Teatret. Mesmo antes de o artista ter ingressado no grupo dinamarquês - embora não tivesse esse nome ou uma percepção da dança como dramaturgia - pode se dizer que havia uma pesquisa prática voltada para os movimentos dançados pelos orixás e a apresentação ou a adaptação destes movimentos para o palco.

Portanto, vou me refir a Dramaturgia da Dança dos Orixás como uma pesquisa e não como técnica ou treinamento do artista, pois este processo ainda estava acontecendo. O segundo capítulo dividi-se em duas seções, a primeira visa localizar algumas noções sobre a dança dos orixás como ritual no candomblé e a segunda é uma reflexão sobre os conceitos da Antropologia Teatral de Eugenio Barba, diretor do grupo dinamarquês.

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2.1 A DANÇA DO RITUAL: O FESTEJO E O RELIGIOSO NO CRUZAMENTO DA DANÇA, DO TOQUE E DO CANTO

“Em muitos aspectos a arte é semelhante à religião” (Kandinsky)

A dança dos orixás é um dos momentos centrais

da cerimônia ou prática religiosa do candomblé. Em outras palavras é o instante onde os orixás já incoporados nos iniciados26 (iaôs) se comunicam através de sua dança, cantos e toques. Nesta seção utilizarei como referencial27 os estudos de Zeca Ligiéro, pesquisador, diretor e professor doutor da UNIRIO. Este autor concentra-se na área teatral, com pesquisas sobre os estudos das performances brasileiras e afro-ameríndias.

O candomblé é uma manifestação religiosa africana, isto é, com origem a partir das práticas culturais trazidas por negros escravizados vindos do continente africano, principalmente, da região subsaariana (Ligiéro, 2011). Para compreender sobre este aspecto, continuo com o escrito de Zeca Ligiéro, citando o seguinte trecho:

26 Iniciados podem ser chamados também de iâos, pessoas que passam por um processo longo de preparação, este processo chama-se bori, isto é, fazer bori, significa preparar sua cabeça (ori) para receber o orixá. Sobre isso consultar Sabino; Lody ( 2011) e também Zeca Ligiéro (2011) sobre a explicação da expressão “fazer a cabeça”, que no caso é esta preparação do ori. Ambas estão citadas nas referências bibliográficas deste trabalho. 27 Ressalto que minha escolha por Zeca Ligiéro é devido a reflexão que este faz entre o ritual e as performances afro-brasileiras na área teatral, porém indico estudos como: Roger Bastide (1985), Pierre Verger (1987; 2000) e Edson Carneiro (1986) para um olhar mais específico sobre as práticas religiosas afro-brasileiras.

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O candomblé é de origem africana, isso já não se discute mais. [...] normalmente ele é hoje mais associado à cultura de origem ioruba, pelo impacto do universo de seus orixás. Entretanto, é notável, nele, ainda forte presença da cultura Fon dos Geges, do antigo Reino de Daomé (Ligiéro, 2011, p. 115).

Ao falar de dança dos orixás e da religião do

candomblé, como coloca Ligiéro acima, muitas vezes se identifica a forte presença iorubana. É comum diferenciar o ritual do candomblé com o nome das nações de origem, como “candomblé ketu”, “candomblé jeje (ou gegê)”, “candomblé Angola” e ainda “candomblé caboclo”, este último traz os elementos das práticas indígenas.

Entretanto, o autor supracitado continua a reflexão e ressalta que

[...] não é possível afirmar a existência de uma matriz apenas, nem de um único candomblé, pois trata-se de uma religião com uma enorme variedade de rituais e de “nações” [...] suas matrizes culturais são de diversas procedências africanas e reelaboradas no Brasil por diferentes grupos étnicos e seus descendentes. De terreiro para terreiro, não muda somente a linguagem dos seus cantos; as próprias divindades cultuadas também mudam (2011, p. 115).

Acrescento que nesta dissertação a escolha pela

palavra orixá indica características do grupo étnico iorubá, . Porém, concordo com o autor sobre as dinâmicas culturais. Adiante aprofundarei esta problemática sobre as matrizes culturais, trazendo a

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partir de Ligiéro (2011) a expressão “motrizes” culturais. Por enquanto, busco localizar estas variantes da religião do candomblé para compreender de onde vinham os movimentos da dança dos orixás de Augusto Omolú.

De acordo com o autor supracitado a palavra candomblé possui em sua própria etmologia o significado de saudação e/ou invocação. Em seu livro Iniciação ao candomblé, ele explica que

a palavra candomblé é de origem quicongo-angola, Ká-n-dón-ind-é ou Ká-n-domb-ed-e, ou, mais frequentemente usado: Ka-n-domb-el-e, que é a “ação de orar”, um substantivo derivado da forma verbal ku-dom-ba ou kulomba: orar, saudar ou invocar. Candomblé significa adoração, louvação e invocação. E, por extensão, o lugar onde as cerimônias são realizadas (Ligiéro, 2004, p. 20).

A dança presente no candomblé, traz aspectos

importantes como a comunicação entre os humanos (fiéis) e seus ancestres, além de apresentar a história, mitologia, destes ancestrais divinos. Sobre isso, mais uma vez, Ligiéro destaca

No candomblé os orixás manifestados têm sua razão de viver na própria dança, pois é através dela, impulsionado pelo canto e pela música e acompanhada pelos fiéis, que os chamados deuses africanos executam suas elaboradas coreografias, que aludem ou mesmo dramatizam passagens de sua vida mítica (2011, p. 117).

Apesar de algumas semelhanças com a

Umbanda, não se deve confundir tais práticas religiosas.

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Esta última têm características do sincretismo católico, kardecista e ainda a influência das tradições indígenas (Ligiéro, 2011). No candomblé cada movimento dançado possuí um significado particular e específico àquele orixá que dança, assim como, as vestimentas, as cores, o toque dos atabaques e a música cantada.

De acordo com o dançarino Jorge Sabino e o antropólogo Raul Lody: “as danças cerimoniais dos orixás assumem sua vocação teatral de contar histórias por meio de coreografias apoiadas e complementadas por roupas e objetos que integram o processo da própria dança” (2011, p. 33). Este conjunto de detalhes é complexo, digo isto pois em minhas experiências e leituras durante esta pesquisa de mestrado pude perceber que as práticas e rituais do candomblé envolvem disciplina, atenção e disposição, ou seja, aquele que passa pelo processo de iniciação no candomblé se dispõe de maneira plena para o ritual; além disso, é necessário uma intensa preparação do corpo.

Retomo ao escrito de Ligiéro (2011), em seu livro Corpo a Corpo: Estudos das Performances Brasileiras, onde apresenta o conceito “motrizes culturais” e ainda o tripé cantar-batucar-dançar do filósofo congolês Bunseki Fu-Kiau para compreender os diversos elementos culturais presentes nas danças de origem africana. O primeiro conceito será desenvolvido com mais afinco no segundo momento deste capítulo, por enquanto vou me ater neste tripé cantar-batucar-dançar, que a meu ver pode contribuir para o entendimento da dança dos orixás.

Segundo Ligiéro (2011, p. 131), pode se observar, de maneira geral, nas diversas danças da região subssariana do continente africano ou mesmo nas performances de origem africana que “[...] o corpo é o

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centro de tudo. Ele se move em direções múltiplas, ondula o torso e se deixa impregnar pelo ritmo percussivo”. De acordo com o filósofo Fu-Kiau, citado por Ligiéro (2011), a dança não deve ser estudada de maneira separada do canto e do batuque. Estes três elementos, canto, dança e batuque, ao se conectarem, permitem uma comunicação dos devotos com seus ancestres.

Neste momento, aparece uma ligação importante entre festa e religião, ou o popular: sagrado e profano. Sobre isso, Ligiéro afirma: “[...] são formas complementares dentro do mesmo ritual” ( 2011, p. 135). A dança dos orixás nos rituais do candomblé, apresenta um conjunto de detalhes e rigor, destaco dois aspectos para perceber esta complemetariedade indicada por Ligiéro (2011): o primeiro é a preparação do corpo para este momento “celebratório-ritualístico” (Ligiéro, 2011, p. 131) e o segundo é a conexão entre o canto, a dança e o batuque.

No candomblé é possível dizer que “o corpo é ritualmente preparado para, desse modo, estar pronto para realizar os gestos, as posturas e demais comportamentos que determinam o lugar da dança em âmbito sagrado” (Sabino; Lody, 2011, p. 82). Assim, na dança dos orixás, o corpo torna-se um dos canais de comunicação entre o mundo material e o mundo imaterial. Os movimentos dançados acompanham os toques dos atabaques, com variações rítmicas nas diferentes direções espaciais. Os pés em posição paralela, a flexibilidade da cintura, a abertura das mãos e dos braços, os joelhos semi-flexionados, dão sustentação aos giros e rodopios, com distintas variações rítmicas de acordo com o toque dos atabaques.

Todo este conhecimento sobre os movimetnos e

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posturas corporais, dentro do terreiro, são repassados por longos processos de ensinamento, que acontecem desde as pequenas atividades de organização dos rituais até a preparação do corpo do iniciado (iaôs) para a dança dos orixás. Dessa maneira:

Saber dançar e conhecer as danças neste campo específico do amplo processo ritual-religioso do candomblé está relacionado com os saberes relativos às folhas, à música vocal e instrumental, às indumentárias, às comidas, aos significados de formas, cores, vocabulários, histórias e mitologias, elementos que juntos fluem e refluem em visão uníssona e, bembém, construttiva da própria dança, especialmente do corpo (Sabino; Lody, 2011, p. 116).

As atividades diárias do terreiro, portanto, são

compreendidos de maneira integrada, isto é, fazem parte do processo de iniciação daquele que chega no terreiro. A dança dos orixás, então, traz valores simbólicos do ensinamento diário, um processo que requer dedicação constante. No trecho abaixo, Ligiéro sublinha esta relação do corpo do iniciado e o orixá, e destaca este processo religioso de preparação e dedicação. Segundo o autor:

Para receber o orixá e dançar por ele, o corpo deve ser preparado como um templo – purificado por rituais e banhos com ervas e outras substâncias sagradas. O transe coroa esse processo como o momento máximo de comunhão entre ser e o seu duplo, a divinidade que vem ao encontro do fiel, conduzindo-o através de uma dança sagrada (Ligiéro, 2011, p. 150).

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No momento da dança, há um encontro entre o orixá e o iniciado e a partir deste encontro/transe é que os movimentos são realizados. Não aprofundarei este ponto sobre a incorporação e/ou transe, pois estes aspectos fazem parte de uma rotina de terreiro que está fundamentada em preceitos religiosos. Por se tratar de uma dissertação na área teatral com foco no trabalho artístico de Augusto Omolú, continuarei apresentando a dança do orixá a fim de destacar os aspectos relacionados à pesquisa deste artista brasileiro, especialmente, as conexões entre o corpo e o movimento; a dança e a dramaturgia.

Destaco que a dança neste espaço do ritual, deve ser compreendida, como coloca o congolês Fu-Kiau citado por Ligiéro (2011), não enquanto uma área separada, mas como um estudo conectado com o “batucar-cantar-dançar”. Da mesma maneira que os movimentos dançados pelos orixás estão conectados aos elementos da natureza, ou como diz Augusto Omolú em entrevista (2012b), “a natureza está no mundo, e os orixás são energias, os orixás são a natureza”.

O autor Reginaldo Prandi, ao reunir em seu livro A Mitologia dos Orixás (2012), explica esta relação entre orixá e a natureza da seguinte maneira:

Para os iorubás tradicionais e os seguidores de sua religião nas Américas, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olocum, também chamado Olofim em Cuba, o Ser Supremo, a incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana (Prandi, 2012, p. 22).

Por visualizar a criação do mundo a partir desta

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ótica, os iorubás tradicionais, como coloca Prandi na citação acima, acreditavam que os orixás eram responsáveis não só pelos aspectos naturais como água, terra, fogo e ar, como também por certas atividades da vida social, como a justiça (orixá Xangô), a batalha (orixá Ogum) e a caça (orixá Oxóssi), para citar alguns. Assim, a mitologia (ou itãns) reune as diversas histórias e passagens de cada orixás, tendo, principalmente, uma relação na criação do mundo.

Sobre os orixás, o professor pesquisador e sacerdote do Candomblé no Ilê Axé Ogunfunmilayo em Minas Gerais, Erisvaldo P. dos Santos (2010, p. 31) afirma:

os orixás, inquices e voduns são uma forma de mediação entre Deus – Olorun – e os seres humanos. Eles são forças da natureza e ancestrais divinizados. Além do transe místico, eles estabelecem relação com os seres humanos através de manifestações da natureza, como a chuva, o vento, as tempestades, as ondas do mar etc.

A dança realizada pelo orixá no corpo do iniciado

não é aleatória, isto é, cada orixá possui uma gama de movimentos próprios que se relacionam com estas características descritas por Santos. Além disso, Ligiéro destaca que:

No candomblé, a dança dos orixás é sem dúvida o ápice da performance Gêge-Iorubá no Brasil. Cada orixá tem uma batida, um canto e uma dança específica. Através dos movimentos precisos dos dançarinos incorporados, podemos identificar o orixá que dança através de seu corpo (2011, p. 150).

Esta especificidade do movimento, apontada na

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citação acima, permite uma comunicação entre a materia corpórea e a dimensão enérgica, como já foi dito, e consequentemente evidencia a importância do corpo, pois ele não é somente um meio, ou suporte de comunicação, ele é parte integrante desta comunicação, ou seja, sem corpo não há dança e consequentemente não há comunicação. Em outras palavras, os movimentos feitos por cada orixá no momento da dança apresentam tanto o sentido mitológico, traduzindo as conexões existentes nas atividades cotidianas e na relação com a natureza, quanto o sentido cósmico, de religamento com os ancestrais. Assim, o canto, os movimentos corporais e o toque dos atabaques vão compondo um cenário épico e religioso presente na dança dos orixás.

Digo isto, pois estes cruzamentos entre a dança, o canto e o batuque estão presentes tanto no momento do ritual do candomblé quanto nas aulas do Seminário de Augusto Omolú. Sem deixar de considerar os aspectos diferenciais e simbólicos particulares a cada uma, sigo a indicação de Bunseki Fu-Kiau, traduzidas por Ligiéro (2011) ao definir o “batucar-dançar-cantar”. De acordo com Fu-Kiau, cada aspecto deste se complementa e evidencia, seja no rito ou na festa, um continuum. Cito a explicação do filósofo congolês, nas palavras de Ligiéro, que possibilitará uma compreensão desta perspectiva:

Fu-Kiau afirma que, quando alguém está tocando um atabaque ou qualquer outro instrumetno, uma linguagem espiritual está sendo articulada. O canto é percebido como a interpretação dessas linguagens para a comunidade presente no aqui e agora. Dançar seria a “aceitação das mensagens espirituais propagadas” através de nosso próprio corpo

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[...].”Batucar-cantar-dançar permite que o círculo social quebrado seja religado (religare), de forma a fazer a energia fluir novamente entre os vivos e os mortos” (Ligiéro, 2011, p. 134-135).

Diante disso, o festejo e o religioso

apresentariam aspectos complementares, isto é, embora a dança dos orixás presente no terreiro tenha outros sentidos simbólicos, como foi visto anteriormente em relação a preparação do corpo, pode-se dizer que a dança dos orixás feita por Augusto Omolú apresenta também aspectos comuns, principalmente, este cruzamento entre a dança, o canto e o batuque.

Entretanto, percebo no trabalho do artista baiano um processo constante de ressignificação do movimento da dança dos orixás. Este processo se inicia quando criança assistindo e participando dos rituais do candomblé, ou ás vezes, como ele mesmo narrou na entrevista, brincando de imitar os orixás; e logo depois passa pelo período da adolescência, onde ele começa a participar de grupos folclóricos de Salvador, neste instante a dança desloca-se do espaço do terreiro para o espaço dos palcos, é quando Augusto Omolú trilha seus passos rumo a formação de dançarino, construindo uma diversidade de experiências em sua trajetória, como foi visto no capítulo um, desde o ballet a dança moderna; e por último, chega ao Odin Teatret como artista e dançarino, e lá com as noções da Antropologia Teatral de Eugenio Barba vê a possibilidade de mapear estes movimentos dos orixás. Nesta fase, como anuncia a epígrafe deste capítulo, o movimento do orixá se torna, então, um impulso para a criação de ações físicas, ou ainda, um material cênico para compor de maneira diferente do folclore, a sua própria dramaturgia.

No próximo tópico, busco então, as noções de

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movimento, gestos e ação. Até que ponto é possível afirmar um tipo de transformação do movimento da dança dos orixás em ação cênica? Quais os limites da tradição e da pré-expressividade? O que é energia? Estas são perguntas que impulsionam o segundo momento deste capítulo. Para isso, me concentrarei em alguns momentos em uma problematização dos conceitos apresentados pela Antropologia Teatral de Eugenio Barba e as fronteiras entre a matriz e as motrizes culturais, acepções de Zeca Ligiéro (2011).

2.2 OBSERVAÇÕES SOBRE A ANTROPOLOGIA TEATRAL: O MOVIMENTO, O GESTO E A AÇÃO CÊNICA

A Canoa de Papel (1994) e A Arte Secreta do Ator (1995) são dois livros expoentes e fundamentais para a compreensão da Antropologia Teatral. Nestes materiais o diretor italiano, Eugenio Barba, apresenta o seu tratado sobre a prática e teoria do trabalho de representação do ator/dançarino, ou melhor, possíveis técnicas para a orientação do fazer cênico. Será a partir destes referencias que desdobrarei a presente reflexão, buscando compreender as camadas fundantes da Dramaturgia da Dança dos Orixás de Augusto Omolú.

Esta incursão nos estudos de Barba ganha espaço nesta dissertação pelo fato de o artista brasileiro ter desenvolvido, por mais de uma década junto ao Odin Teatret, uma pesquisa sobre a dramaturgia do movimento. Minha intenção é buscar nestes materiais sobre a Antropologia Teatral, as bases conceituais que Augusto Omolú em seus seminários, demonstrações de trabalho, espetáculos e workshops algumas vezes

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sinalizou, por exemplo, a noção de energia (palavra que aparece no candomblé como axé e também nos estudos de Barba como sats). Outras palavras surgiram neste período da pesquisa em teatro, em conversas com o artista brasileiro era frequente as palavras: tradição e identidade. Tais palavras também são escritas por Eugenio Barba e junto a conceitos como equilíbrio/desiquilíbrio, dança das oposições, pré-expressividade, krafti/sats e corpo decidido dão sustentação a Antropologia Teatral.

De acordo com Barba (1995), a Antropologia Teatral não busca leis universais, e sim um estudo sobre o comportamento humano em situação de representação, isto é, regras que possam ser úteis ao trabalho do ator/dançarino. Para escrever sobre estas noções da Antroplogia Teatral e consequemente o trabalho de Augusto Omolú, organizei esta seção do capítulo por tópicos conceituais, ou seja, em cada tópico desenvolverei uma reflexão sobre algum aspecto teórico proposto por Barba. Embora, esta metodologia possa parecer execessivamente divisória, compreendo que isto funcionará muito mais como um mapa, um guia com entradas e saídas para diálogos sobre o trabalho do ator, especialmente, o trabalho aqui estudado.

2.2.1 Uma passagem sobre a pré-expressividade no trabalho do ator

Sobre a noção de pré-expressividade, Eugenio

Barba alerta: “não foi inventada por mim nem por [Gordon] Craig28. A única coisa que inventei foi o fato de

28 Edward Gordon Craig, ator, encenador e cenógrafo inglês (1872-1966). “Craig idealizava um ator que unisse uma natureza generosa

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acreditar nela” (1994, p. 1479). Apesar de o diretor destacar isto, este conceito do pré-expressivo ficou amplamente conhecido como um dos alicerces da Antropologia Teatral29. O nível pré-expressivo para Barba (1994) parece ser um espaço comum, um princípio universal daquilo que ele chama de bios cênico30 do ator/dançarino31. Assim, ao trabalhar em um nível pré-

a uma alta inteligência, onde esta governaria a natureza das paixões e o pensamento, o movimento do corpo” (Nunes, 2009, p. 65-66). 29 Muitos estudos têm buscado uma reflexão crítica sobre esta perspectiva antropológica, levantando questionamentos sobre uma versão reducionista ou determinista em relação a cultura e/ou o teatro, cito, especialmente, dois autores: Rustom Bharucha (1996 ) e Patrice Pavis (1996; 2008) que em seus escritos discorrem sobre o teatro intercultural, especialmente, para questionar a visão exótica de cultura e a reafirmação de uma posição colonial. Para iniciar uma relfexão sobre a noção de teatro intercultural, sugiro a leitura da dissertação de Rodrigo Benza Guerra (2013), onde o pesquisador a partir de suas experiências na amazônia peruana, fala sobre as práticas culturais fundamentado em uma concepção dialógica, para utilizar a expressão do autor. Para provocar ainda mais este debate, sugiro também a leitura da tese de Marisa Naspolini (2013), que também busca a partir de sua experiência discutir as fronteiras teatro e cultura, não é por acaso o título: Fronteiras em movimento, porém a experiência de Naspolini se dá com a criação e história do Projeto Magdalena. Consultar nas referências deste trabalho. 30 Segundo Barba (1994) é um dos níveis de organização do trabalho do ator, constituindo um dos princípios da Antropologia Teatral. O diretor enumera três níveis de organização: “o primeiro aspecto é individual. O segundo é comum a todos os que praticam o mesmo gênero espetacular. O terceira concerne aos atores de tempo e cultura diferentes (1994, p. 24). O bios cênico, ou vida cênica, é o terceiro aspecto que está relacionado a “utilização do corpo-mente segundo técnicas extracotidianas que-retornam transculturais” (1994, p. 25). Além disso, sobre o bios cênico, o diretor concluí? “[é] o nível ‘biológico’ do teatro sobre qual se fundam as diversas técnicas, as utilizações particulares da presença cênica e do dinamismo do ator” (1994, p. 25). 31 Este termo: “ator/dançarino”, ou sua variação “ator/bailarino”, é

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expressivo o ator modela suas ações, ou ainda, organiza os singificados que deseja, intencionalmente, mostrar no encontro com o espectador.

O ator, pesquisador e membro do LUME32, Renato Ferracini, retoma os escritos de Barba para explicar tal conceito no trabalho do ator. Em seu livro, A Arte de Não Interpretar Como Poesia Corpórea do Ator, Ferracini sintetiza que “é o nível onde o ator produz e, principalmente, trabalha todos os elementos técnicos e vitais de suas ações físicas e vocais” (2001, p. 99). Ao apresentar tal conceito de Barba, o integrante e pesquisador do LUME deixa explícito que “partindo desse pressuposto [no caso da pré-expressividade], podemos dizer que existe um nível básico de organização, comum a todos os atores, e anterior à expressão em si” (Ferracini, 2001, p. 99).

Seguindo por esta perspectiva, a pré-expressividade é um nível operativo, nas palavras de Barba: “não é um nível que possa ser separado da expressão mas uma categoria pragmática, uma práxis que, durante o processo, tem como objetivo desenvolver e organizar o bios cênico do ator [...]” (Barba, 1994, p. 154), ou ainda, como maneira de organização da

uma proposição de Barba para que não haja uma separação entre o teatro e a dança e logo entre o ator e o bailarino. Logo nas primeiras páginas de seu livro, o diretor alerta: “[...] lendo a palavra “ator”, dever-se-á entender “ator e bailarino”, seja mulher ou homem; e ao ler “teatro” dever-se-á enteder “teatro e dança” (Barba, 1994, p. 22). 32 LUME é Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas da UNICAMP, fundado por Luís Otávio Burnier , na época professor no Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes na mesma universidade. Assim, “em 1985, junto de [Carlos]Simioni e da musicista Denise Garcia, Burnier funda oficialmente o LUME”. Para saber mais sobre o LUME, acessar sua página http://www.lumeteatro.com.br/ - Informações retiradas deste site com acesso em 31 de janeiro de 2014.

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presença do ator. Além disso, o diretor faz questão de enfatizar: “o conceito de ‘pré-expressividade’ só serve para alguma coisa se estiver relacionado com o ator” (1994, p. 155).

Depois de apresentar tal noção, a pergunta que me surge é: a pré-expressividade busca, então, um corpo que existe antes do próprio corpo, um nível de expressão não “contaminado” pelas relações cognitivas, sociais, históricas, permeadas nas experiências de cada ator? Parece-me que os pressupostos da Antropologia Teatral, sustentam-se em uma afirmação categórica de um nível comum presente nas diversas tradições teatrais.

O diretor Eugenio Barba, em Arte secreta do ator (1995), não hesita em suas definições e concluí:

O teatro pode, entretanto, ser aberto às experiências de outros teatros, não para misturar diferentes meios de fazer representações, mas com a finalidade de encontrar princípios básicos comuns e transmitir esses princípios por meio de suas próprias experiências. [...] A antropologia teatral procura estudar tais princípios. [...] Estudando esses princípios dessa maneira, ela prestará um serviço tanto para o ator ocidental quanto para o oriental, para os que têm uma tradição codificada, e para os que sofrem pela falta de uma (Barba, 1995, p. 9)

Ao buscar técnicas orientais de representação

em constrate com as técnicas e treinamentos ocidentais, a Antropologia Teatral possibilita o encontro entre as tradições e ainda, como indica a citação acima, permite codifica-las. Entretanto, até que ponto este encontro entre tradições e uma possível codificação das mesmas

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reforçaria estruturas colonialistas? Em sua tese de doutorado, a pesquisadora Marisa Naspolini (2013) sugere esta tensão ao citar os estudos de Rustom Bharucha, diretor, escritor e crítico cultural. De acordo com Naspolini (2013, p. 67):

Podemos, obviamente, questionar até que ponto estas práticas interculturais não representam uma via de mão única, como levanta Rustom Bharucha, quando apenas um dos lados leva vantagem, configurando só mais um capítulo (disfarçado) na história de apropriação e dominação cultural.

Considero importante esta reflexão de Bharucha,

indicada por Naspolini na citação acima, ainda que meu objetivo não seja uma análise crítica sobre a Antropologia Teatral de Barba e/ou seu teatro intercultural. Porém, não posso deixar de citar esta perspectiva crítica sobre os estudos de Barba, afinal, que tipo de intenção existe no momento em que o diretor europeu seleciona as “tradições” para sua estética e criação? Seria possível pensar que nestas relações do próprio grupo em contato com outras tradições e identidade culturais existiria um princípio comum e universal? No próximo item abordarei estas questões.

2.2.2 O espetáculo da tradição ou uma tradição espetacular?

Para falar sobre tradição, quero retomar neste

item uma pergunta indicada no primeiro capítulo desta dissertação, quando o artista brasileiro foi convidado a participar da ISTA em Londrina como representante da cultura (afro)brasileira. Naquela época, Barba e Varley

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estavam a procura de um artista local que reunisse através de estruturas codificadas a tradição brasiliera, de maneira, que estas estruturas pudessem ser repetidas em partituras corporais. Sobre este momento do encontro, Varley (2013) escreve em sua carta dedicada a Augusto Omolú:

Você não tinha nem demonstração nem espetáculo. Precisava criá-los de qualquer forma para participar da ISTA como um representante da tradição das danças dos orixás. Você nos mostrou várias partes das coreografias que conhecia como bailarino e, também, uma sequência de danças dos orixás. Parecia que você tinha diferentes identidades que dependiam da música que te acompanhava.

Diante disso, a questão principal que surge é:

Augusto Omolú seria, na cena, no momento do espetáculo, um representante da tradição afro-brasileira? De maneira geral, esta pergunta poderia ser também formulada assim: Até que ponto esta representação na cena teatral sugere um ideal de tradição, moldado em um ideal de corpo?

Como foi visto sobre pré-expressividade, Eugenio Barba afirma que há um substrato comum a todas as tradições, em suas palavras: “atores diferentes, em diferentes lugares e épocas, apesar de formas estilísticas específicas às suas tradições, têm compartilhado princípios comuns” (Barba, 1995, p. 8). Buscar este ponto comum, princípio ou fio condutor, entre as culturas ocidentais e orientais é um dos objetivos da Antropologia Teatral.

Em contraponto, cito a partir dos estudos culturais de Stuart Hall (2009; 2011) sobre identidade uma compreensão que vai além desta noção unificada

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de cultura. De acordo com Hall (2011, p. 9): Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados.

Nessa perspectiva a compreensão de sujeito e identidade está no sentido plural, Hall alerta que as identidades estão constantemente em processos de negociação, isto é, estamos a todo instante negociando nossas identidades em relação aos outros e às próprias mudanças sociais. Assim, tanto o sujeito quanto a noção de identidade cultural sofreriam mudanças constantes, uma dinâmica que dificilmente se alinharia em um único eixo. Isto me leva a questionar este princípio pré-expressivo de Barba e além disso a compreensão do diretor sobre a “tradição”. Mais uma vez pergunto, como codificar uma tradição oriental, como codificar uma tradição afro-brasileira? No mínimo terá que se estabelecer um ideal de tradição e codificação, o que imprimiria na estética teatral uma intenção evidente do diretor, um olhar que no caso, passaria a ser eurocêntrico.

Em relação a pesquisa e o contato com Augusto Omolú, posso dizer que muitas vezes me encontrei repensando minhas próprias identidades, o pertencimento ou não a um território e as minhas transformações de posturas corporais em lugares e contextos culturais distintos. Em Salvador, por exemplo,

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constantemente eu era vista como baiana, e quando eu afirmava que era do sul do Brasil, a pergunta seguia num tom de curiosidade: mas há negros em Santa Catarina? Esta noção de pertencimento e associação de um fenótipo a um território e ainda, das relações de pertencimento ou não a uma cultura afro-brasileira, estiveram presentes em muitas conversas informais durante o Seminário. Cito mais uma vez um trecho escrito por Hall, que traz algumas perguntas direcionadas a este aspecto de busca essencializante de identidade cultural.

O autor enumera as seguintes questões: Como podemos conceber ou imaginar a identidade, a diferença e o pertencimento, após a diáspora? Já que “a identidade cultural” carrega consigo tantos traços de unidade essencial, unicidade primordial, indivisibilidade e mesmice, como devemos “pensar” as identidades inscritas nas relações de poder, construídas pela diferença, e disjuntura? (Hall, 2009, p. 28).

Assim, de acordo com Hall, falar sobre identidade

cultural é pensar na noção de instabilidade ou deslocamento de um “eu central”. Esta implosão tem como marca principal o período após a diáspora. Este autor acredita que a busca por uma identidade negra essencial é problemática na medida em que desconsidera os fatores históricos, sociais, culturais e biologizantes. Para compreender melhor sobre isto, destaco o seguinte trecho:

No momento em que o significante “negro” é arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria racial biologicamente constituída,

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valorizamos, pela inversão, a própria base do racismo que estamos tentando desconstruir. Além disso, como sempre acontece quando naturalizamos categorias históricas (pensem em gênero e sexualidade), fixamos esse significante fora da mudança e da intervenção políticas (Hall, 2009, p. 326-327).

É importante, portanto, pensar na fragilidade de

categorias que estabilize ou de alguma maneira exclua os processos políticos, inclusive, as estratégias de resistência desenvolvidas por milhares de africanos e afrodescentes diante da violência e repressão do sistema escravocrata. O que mais uma vez me faz a questionar a posição de Barba ao buscar uma tradição codificada, pois diante de um epísodio histórico tão complexo, como classificar o que é ou não passível de ser codificado como tradição africana e afro-brasileira?

Para complementar a reflexão quero trazer ao debate uma problematização sobre a noção unificadora e homogenizante de negro, mas agora numa perspectiva histórica apontada por Barros (2012) como categoria unificante cunhada durante do comércio e tráfico de escravos, cuja intenção era converger e homogenizar a complexidade e diversidade do continente africano em único bloco (Barros, 2012).

O pesquisador e historiador José D’Assunção Barros reuniu em seu livro, A construção social da cor (2012), um debate extenso e importante sobre as diversas etnias e as estratégias do comércio escravocrata que tinha como um dos objetivos a homogenização do continente africano; estas estratégias são denominadas pelo autor de “indiferenciação” (Barros, 2012, p. 92). De acordo com Barros (2012, p. 40):

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[...] a diferença “negro” foi construída a partir da igualização (ou da indiferenciação, seria melhor dizer) de uma série de outras diferenças étnicas que demarcavam as identidades locais no continente africano, sendo importante ressaltar que isto não ocorreu repentinamente, mas sim no decurso de um processo de quatro séculos que envolveu a implantação, realização e superação do escravismo [...] mas que ao mesmo tempo suprime gradualmente todas estas diferenças na consolidação da representação de “negro”.

Esta indiferenciação provocada pela

homogeneização e classificação do tráfico negreiro, configura um espaço complexo sobre o entendimento de nação e/ou identidade cultural brasileira. Ao falar sobre a dança dos orixás do candomblé, por exemplo, é necessário, a meu ver, apontar este percurso desde o deslocamento de diversas etnias do continente africano até a reorganização destes grupos e suas estratégias de resistência no território brasileiro.

A partir destas leituras de Barros (2012) e Hall (2009; 2011), minha reflexão sobre identidade cultural surge nesta dissertação para além de visualizar os aspectos conflitantes da minha própria identidade como atriz e negra, como também para perceber o discurso de Augusto Omolú sobre o seu trabalho da Dramaturgia da Dança dos Orixás que muitas vezes era interrogado sobre a utlização de uma tradição religiosa em cena. Sobre isso, ele diz em entrevista:

As pessoas precisam ver o candomblé com outros olhos, não só em sua parte religiosa, mas, sobretudo, em sua parte cultural. Temos uma leitura, uma

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explicação, um sentido, enfim, maneiras de estudar e beneficiar a vida profissional por meio da arte. Manter a religião distante, às vezes como uma maneira de protesto, fez a gente perder muito. Por isso a desinformação da nossa cultura geralmente veiculada por igrejas protestantes, evangélicas. E você, como negro, termina até se isolando, discriminando uma coisa que é sua, é sua identidade. Sem isso, você é quem? Qual sua identidade cultural? Quem é você? (Omolú, 2012b).

Há na fala de Augusto Omolú uma crítica

também a concepção de arte, afinal, até que ponto a arte brasileira se molda em uma perspectiva européia? Por que o candomblé, com seus movimentos e dança, não pode ser estudado e compreendido enquanto arte? Há que se considerar os aspectos culturais e históricos existentes nesta religião que por muito tempo tornou-se uma prática de resistência frente a uma cultura dominante. O que Barros aponta sobre a categoria “negro” e Augusto Omolú traz em sua prática são reflexões que a meu ver dilatam nosso olhar, muitas vezes, viciado por uma hegemonia cultural.

A prática artística de Augusto Omolú me faz pensar sobre estas fronteiras culturais que muitas vezes são invisibilizadas em nossa sociedade. Meu discurso não está centrado um ativismo idealizante, o que busco é uma reflexão inclusive sobre uma perspectiva essencializante da própria noção de “matriz” cultural e para isso, os estudos de Zeca Ligiéro (2004; 2011) auxiliarão na compreensão de tradição e identidade cultural dentro do espaço teatral, ou como traz o autor, como performances afro-brasileiras permeadas de “motrizes culturais” (Ligiéro, 2011).

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Ao sugerir o termo “motriz”, Ligiéro destaca a dinamicidade cultural e social e ainda acrescenta que tais dinâmicas, a partir dos estudos da performance, podem ser compreendidas na medida em que são “reprocessadas” no corpo em contato com os fenômenos culturais. De acordo com o autor:

[...] a definição de matriz cultural, válida para muitas áreas e contextos, tem se mostrado insuficiente para conceituar a complexidade dos processos interétnicos e transitórios verificados nas práticas performativas ou performances culturais. [...] em vez de “matriz”, proponho uma definição/conceito e utilizado no plural “motrizes” para conceituar a complexidade das dinâmicas das performances culturais afro-brasileira (Ligiéro, 2011, p 107).

O termo motrizes culturais traz uma noção de

movimento, algo dinâmico e plural e compreende consequentemente o candomblé, a umbanda, o samba como práticas performativas ou performances brasileiras. Além disso, surge como “[...] um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos” 33 (Ligiéro, 2011, p. 107). Diante disso, retomo a pergunta inicial desta reflexão: seria possível encontrar um substrato comum e

33 Embora, não seja aprofundada a noção de “comportamento restaurado” do pesquisador Richard Schechner, digo que Zeca Ligiéro fundamenta-se nesta acepção para falar destas dinâmicas culturais e o modo como estes comportamentos foram recuperados após a diáspora. A partir das teorias de Schechner, Ligiéro afirma que : “a ética e a mítica ioruba foram recuperadas no Brasil através de uma liturgia fortemente calcada numa linguagem de movimentos e gestos dramáticos que compõe a dança sagrada” (2011, p. 150).

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universal nas tradições e manifestações populares, tendo em voga uma noção dinâmica da própria cultura?

Acredito que a noção de performance de Ligiéro em diálogo com os estudos de Richard Schechner aponta para caminhos sobre o teatro e a performance de maneira distinta da visão proposta por Eugenio Barba sobre a Antropologia Teatral, mesmo sabendo que de acordo com Patrice Pavis (2008) ambos estariam sob uma perspectiva de teatro intercultural34, assim como, os diretores: Peter Brook e Ariane Mnouchkine.

Destaco mais um trecho sobre esta perspectiva dinâmica relacionada às motrizes culturais. Nas palavras de Ligiéro (2011, p. 112):

Se, dentro de um contexto de busca da origem, das fontes ou mesmo de conjuntos de saberes africanos, a palavra passou a ter um peso de afirmação de identidade étnica, no decorrer do aprofundamento do estudo das performances como dinâmicas interculturais em que a arte, a religião, a filosofia são reprocessadas por comportamentos lúdico-corporais, o termo matriz se tornou insuficiente. Ele remete a uma única origem, quando o que se observa é que dessas origens, dinâmicas próprias foram preservadas, entretanto, muitas de suas formas iniciais foram perdidas ao contato e contágio com outras culturas. Além do mais, não poderíamos falar em uma única matriz africana, pois incontáveis e díspares são as culturas daquele continente, mesmo considerando somente aquelas provenientes das regiões subsaarianas.

34 Sobre isto pode-se consultar Rustom Bharucha (1996 ) e Patrice Pavis (1996; 2008), citados nas referências deste trabalho.

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A reflexão acima possui grande complexidade, seria necessário uma pesquisa direcionada as motrizes culturais e sua relação com o corpo, um canal de troca e/ou restauração de comportamentos ancestrais. A noção de matriz de certa maneira cristaliza as dinâmicas culturais e históricas, como foi visto anteriormente ao citar Hall (2009; 2011) e Barros (2012).

Até o momento, estes conceitos têm indicado uma compreensão de sujeito e cultura dinâmicos e não essencializantes ou determinantes, o que mais uma vez fragiliza a busca de Barba por uma tradição codificada, ou ainda, um substrato comum e universal existentes em todas as tradições.

Acredito que o conceito de encruzilhada ajudaria na compreensão destas práticas teatrais interculturais, desde considerasse o corpo lugar, espaço, ou melhor, como encruzilhada. Dessa maneira, seria possível perceber as diversas tensões que atravessam o corpo, desde as motrizes culturais até os processos de criação e composição do artista. Porém, esta é uma pesquisa futura, neste momento me limitarei a apresentar um pouco mais sobre o conceito encruzilhada que muitas vezes permeou esta pesquisa, ora em seu aspecto mitológico relacionado ao orixá Exu (a dança, o toque e o canto deste orixá, por exemplo no Seminário) ora como metáfora ao sugerir uma situação conflituosa.

Para isso, cito Leda Maria Martins (2000), dramaturga e pesquisadora sobre ritual e estudos literários, que traz a seguinte compreensão:

A noção de encruzilhada, utilizada como um operador conceitual, oferece-nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emerge dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e dialogam, nem sempre

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amistosamente, registros, concepções e sistemas simbólicos diferenciados (Martins, 2000, p. 64-65).

Mesmo este não sendo o foco do presente trabalho, é importante, a meu ver, apresentar as tensões que surgiram durante esta pesquisa, por exemplo, como traduzir a intensidade enérgica que Augusto Omolú sempre se referia como qualidades dos orixás? Como traduzir nesta pesquisa o ambiente mítico e, novamente, enérgitico criado durante o Seminário em Salvador? Acredito que é neste momento que a encruzilhada foi se apresentando nesta pesquisa, como coloca mais uma vez Martins (2000) e, portanto, cito-a aqui para concordar com sua definição:

Da esfera do rito, e, portanto, da performance, a encruzilhada é lugar radical de centramento e descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos plurais (Martins, 2000, p. 665).

Assim, esta concepção de Martins (2000) sobre

encruzilhada possibilita um olhar mais amplo sobre a complexidade e a tensão entre corpo e identidade, ou ainda, entre ritual e performance. Passo pela encruzilhada, não como um andarilho distraído, este conceito é mencionado aqui a fim de romper com uma visão homogênea de cultura ou de representação desta na cena teatral. Acredito, para continuar a utilizar a metáfora do deslocamento, que é possível olhar para o

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trabalho de Augusto Omolú não como uma via de mão única ou uma estrada de sentido duplo (arte de um lado, religião de outro), e sim como lugar de tensão.

No próximo tópico, trago outra palavra/conceito que surgiu durante esta pesquisa: energia. Portanto, na reflexão seguinte busco apresentar os encontros e desencontros entre a compreensão de energia fundamentada por Eugenio Barba a partir do sats, enquanto Augusto Omolú parecia falar de energia em direção a noção de axé.

2.2.3 O axé de Augusto Omolú e o sats de Eugenio Barba: diálogos sobre a noção de energia no trabalho do ator

Durante a pesquisa desta dissertação, a palavra “energia” apareceu muitas vezes nas rodas de confraternização do Seminário em Salvador, na entrevista com Augusto Omolú e nas leituras sobre o trabalho do ator e o seu processo de criação. No candomblé, palavra axé é uma energia vital, uma força presente nos corpos, na natureza, ou ainda, no contato proprocionado pela vida cotidiana entre aquilo que é visível e aquilo que é invisível (Santos, 2010).

Na Antropologia Teatral, trabalhar com a energia, significa operar no nível pré-expressivo. Assim, propõe Barba, o ator modela sua energia e organiza seu bios cênico. Irei me concentrar neste ponto, pois acredito que embora Augusto Omolú fosse integrante do Odin Teatret e estivesse há alguns anos com Barba, sua compreensão a respeito de energia era, em certa medida, diferente.

Para Barba, “a energia pode ficar suspensa numa imobilidade em movimento” (1994, p. 84). Assim, o sats seria um tipo de momento anterior a ação (pré-ação)

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onde o corpo está decidido a agir. O diretor italiano traz estas definições da seguinte maneira:

A palavra grega enérgheia quer dizer, justamente, estar pronto para a ação, a ponto de produzir trabalho. No comportamento físico, a passagem da intenção à ação constitui um típico exemplo de diferença de potencial. No instante que precede a ação, quando toda a força necessária se encontra pronta para ser liberada no espaço, mas como que suspensa e ainda presa ao punho, o ator experimenta a sua energia em forma de sats, preparação dinâmica (Barba, 1994, p. 84).

Nessa perspectiva, o sats é uma espécie de

tensão entre as forças opositórias do impulso e do contra-impulso que atuam antes da ação, é o intervalo onde o ator se encontra decidido, a ponto de fazer a ação, por isso, o sats pode ser compreendido como uma pré-ação, ou melhor sublinhado pelo autor como “[...] um momento de transição que desemboca numa nova postura bem precisa, uma mudança de tonicidade do corpo inteiro” (Barba, 1994, p. 86).

O diretor polonês Jerzy Grotowski35 tinha uma

35 Jerzy Grotowski (1933-1999) foi um importante diretor do século XX, que aprofundou as pesquisas do diretor russo Constantin Stanisláski sobre o trabalho do ator. Segundo Nunes (2009, p. 75): “Tanto Stanislavski quanto Grotowski situaram o trabalho sobre as ações e o comprometimento do corpo como chave para o contato com a memória, as emoções, os sentimentos e demais estados considerados anímicos. As ações permitiram o acesso a um potencial criativo e orgânico [...]”. Ao lado de Grotowski, estiveram Peter Brook, Eugenio Barba e Thomas Richards, sendo este último o assistente mais recente que em seu livro Trabalhar com Grotowski: sobre as ações físicas (2012 ) revisita os conceitos do diretor

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atenção voltada também para a energia, especialmente, o que defendia como impulso (Ferracini, 2011). Seja impulso ou sats, ambos, buscam a partir disso a intencionalidade e organicidade em uma ação física. De acordo com Ferracini (2011, p. 105), “[...] existe uma espécie de pré-ação e uma pré-expressividade latentes, antes mesmo do nascimento de qualquer ação física orgânica visível no espaço”. Assim, o pesquisador e membro do LUME continua a explicar que estes pré-elementos: intenção, élan e impulso/contra-impulso são preparadores para ação (no caso a ação física). Tendo localizado estes conceitos do trabalho do ator, numa perspectiva de Barba, é necessário explicitar também as diferenças entre movimento, gesto e ação física.

Para falar sobre isso, não posso deixar de citar que o estudo sobre a ação física no trabalho do ator inicia-se com o diretor russo Constantin Stanislásvki, e logo após ganha maior atenção com Grotowski. Nessa trajetória final, surge Barba, um diretor italiano que em contato com Grotowski desenvolve suas pesquisas sobre a presença cênica do ator, buscando através da Antropologia Teatral, uma organização do trabalho físico do ator.

Pois bem, há uma definição de Grotowski sobre estas diferenças entre movimentos, gestos, atividades cotidianas e a ação física. Em seu livro Trabalhar com Grotowski: Sobre as Ações Físicas, Thomas Richards destaca que “Grotowski sempre apontou para a diferença entre ações físcias, de um lado, e atividades, movimentos, gestos e sintomas do outro [...]” (2012, p.

polonês. O escrito de maior repercussão de Grotowski é Em busca de um teatro pobre, organizado para a publicação por Eugenio Barba, com data da primeira publicação em português em 1971, nas referências deste trabalho cito este livro numa versão da segunda edição.

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85). Assim, Richards transcreve parte da fala de Grotowski feita em uma conferencia em Santacarcangelo em 1988. Naquela ocasião, o diretor polonês explicou:

É fácil confundir ações físicas com movimentos. Se estou caminhando em direção à porta, não é uma ação, é um movimento. Mas se estou caminhando em direção à porta para contestar “suas perguntas estúpidas”, para ameaçá-lo de interromper a conferência, então haverá um ciclo de pequenas ações, e não um movimento (Grotowski apud Richards, 2012, p. 86-87).

E continuando sua explicação, Grotowski separa

os gestos das ações físicas. Assim, o gesto seriam os movimentos que acontecem na periferia do corpo, ou seja, o gesto nasce – segundo Grotowski – de fora para dentro; quando a ação física busca uma intenção e que seja de maneira orgânica. Para diferenciar as atividades cotidianas, os movimentos, os gestos e as ações físicas, Richards (2012) sugere que se pense em três perguntas no momento do trabalho do ator: por quê? para quem? ou contra quem?

Para obter este movimento intencional e por consequência gerar a ação física de maneira orgânica é necessário uma busca interna (Nunes, 2009). Pode se dizer que esta busca intencional e orgânica, cria uma divisão entre o que está dentro e o que está fora do corpo, sublinhando a dicotomia: interior e exterior. Nessas perspectivas, “os movimentos que nascem de uma espécie de impulso vital se conformam como ação física; se nascerem das extremidades (mãos e rosto), tendem a ser classificados como gestos” (Nunes, 2009, p. 91).

Na dança dos orixás haveria uma separação

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entre movimento e ação? Parece-me que, especialmente no candomblé, movimento é ação. Cada movimento, mesmo que seja periférico surge da relação entre o axé e o corpo. Dessa maneira, mesmo um movimento que utilize só as mãos, estará envolvendo todo o corpo, fazendo com que a energia desloque-se e concentre-se nesta parte “periférica”. Para acrescentar cito:

O santo, através do seu iaô, simpatizante ou adepto, realiza diferentes danças que demonstram quem ele é, a sua história mítica e o seu papel na natureza e no mundo. Dançar para o santo, ou simplesmente dançar, nesse contexto da comunidade/terreiro, significa o mesmo que ritual religioso em seu aspecto público. Há, assim, um valor litúrgico em cada coreografia, que além de ser descritiva, teatralmente dramática e de expressão estética, é funcional, desempenhando um tema, um complemento sagrado no amplo processo vivo e dinâmico que é o culto dos orixás (Sabino; Lody, 2011, p. 118).

Por todo este conjunto de detalhes presentes na dança dos orixás, acredito que a dramaturgia, então, no trabalho de Augusto Omolú poderia ser entendida neste limiar entre os significados existentes (mitologia) e a criação de outros significados (processo de criação individual do artista). Sobre isso, o artista brasileiro disse em entrevista: “quando crio um personagem, tenho que estabelecer relação com todas as energias dos orixás” (Omolú, 2012b).

Parece-me que a compreensão de Augusto Omolú sobre energia está direcionada também ao axé, a força vital de cada orixá. Na dança dos orixás no terreiro, esta força vital tem um aspecto de ligação com o cosmos, com o universo, ou melhor, a religação entre os

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ancestres e o corpo daquele que dança. Este “fio” invisível de energia aparece na construção de personagem do artista como um impulso, resgatado como diz o artista por uma memória. Cito abaixo um trecho da entrevista em que ele explica isto:

Eu não penso, porque são coisas que não dá para você pensar, não dá para você programar, são energias. E eu também já vivia isto desde pequeno. Para mim a grande dificuldade talvez seja a de pensar. Quando eu penso, eu não faço. Eu trabalho também com outra memória. Isso Barba me ajudou muito, a reconhecer essa outra memória, que é uma memória física (Omolú, 2012a).

A concepção de memória física e a busca por

uma organicidade no trabalho do ator são contribuições de Grotowski e que refletem nos princípios da Antroplogia Teatral de Barba e consequentemente no treinamento e na construção de espetáculos com seus atores do Odin. O diretor polonês, Grotowski, encontra nos rituais a possibilidade de tornar as ações do ator no palco mais orgânicas e menos artificiais. Segundo Nunes (2009, p. 78):

[...] no final dos anos 50 do século XX, Grotowski acreditava na possibilidade de renascer o ritual [...]. Foi na força coletiva viva e originária dos ritos de diferentes tradições que o encenador buscou as fontes para re-instaurar a organicidade necessária a relação ator e espectador. Os procedimentos eram baseados em um compromisso físico, tanto do ator quanto do espectador, procedimentos estes já evocados por [Antonin] Artaud em sua crítica a discursividade do teatro.

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Assim, Grotowski buscava, continuando a citar

Nunes, um “rito sem ritual” (2009, p. 79). Parece-me que esta concepção do diretor polonês pode ser observada também no trabalho de Augusto Omolú sobre a dança dos orixás. Durante o processo de criação, a energia do orixá é ressignificada pela memória física, pelas posturas e os movimentos corporais. No momento da dança no terreiro, por exemplo, em que posição os pés se encontravam? Como o orixá Ogum apresentava sua espada e seu escudo, em que altura as mãos estavam? Qual o tipo de intensidade e força presentes no corpo daquele que dançava? Esta força é de ataque e defesa? O que diz a mitologia sobre este movimento?

Enfim, ao tentar responder estas perguntas, inicia-se o processo de transformação daquele movimento dançado no espaço do terreiro para uma ressignificação no espaço cênico, adquiri-se, então, um grau de dramaturgia, a dramaturgia do movimento. No próximo capítulo, meu objetivo será mapear no material videográfico do espetáculo Orô de Otelo (1994) de Augusto Omolú, a relação entre a dramaturgia da dança, entre a mitologia e qualidade de energia do orixá em diálogo ou contraponto com uma dramaturgia de William Shakespeare, o clássico Otelo.

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CAPÍTULO TRÊS

A CERIMÔNIA DE OTELO: A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS E O TEXTO DRAMÁTICO DE WILLIAM SHAKESPEARE

“Otelo é meu carro-chefe. Quando sinto alguma dificuldade, sei que vou encontrar respostas em Otelo.” Augusto Omolú

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O objetivo deste capítulo é identificar, a partir do espetáculo Orô de Otelo (1994), os elementos presentes na Dramaturgia da Dança dos Orixás, desde o seu aspecto mitólico até as tensões que esta pode sugerir com o texto teatral de William Shakespeare.

No segundo momento deste capítulo, concentro-me na compreensão de dramaturgia, apresentando a perspectiva de Eugenio Barba e os aspectos da mitologia que também podem ser compreendidos como dramaturgia do orixá. Portanto, neste capítulo direciono-me para a pesquisa do artista brasileiro, foco desta dissertação, trazendo imagens dos movimentos da dança dos orixás.

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3.1 SOBRE O REGISTRO VÍDEOGRAFICO E A MONTAGEM DO ESPETÁCULO

Augusto Omolu in Oro de Otelo36 – Esta é a frase de abertura do material videografico encontrado, um fragmento com duração de nove minutos e vinte e três segundos de apresentação postado em uma página da web. O espetáculo ao vivo tem duração de uma hora e dez minutos.

Há poucas informações sobre o vídeo e na medida em que assisto crio suposições em relação a este registro fílmico. A imagem retrata uma parede ao fundo com barras de apoio, o que sugere uma sala tradicional de dança. O público, no ângulo filmado, não aparece, pela posição do artista posso deduzir que se há um público assistindo, este se encontra na mesma posição da câmera37. A todo tempo, o enquadramento é direcionado ao artista brasileiro, não há cortes e nem variações de ângulo, o que me sugere uma única câmera fixa, produzindo uma imagem estável e que em alguns momentos varia em quadros abertos e fechados (close-up).

No espetáculo ao vivo, existe uma trilha sonora composta pelo som gravado da ópera de Otelo de Giuseppe Verdi que é acompanhada pelo som ao vivo

36 Orô de Otelo é o primeiro solo de Augusto Omolú com direção de Eugenio Barba, apresentando a primeira vez na ISTA em Londrina em 1994. Depois de quase duas décadas de trabalho com o Odin Teatret e as colaborações na ISTA, este espetáculo torna-se referência para a compreensão da pesquisa sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás que o artista brasileiro desenvolvia. Este fragmento está disponível em http://www.youtube.com/watch?v=wsAozYpkvPM com data de publicação em 24 de novembro de 2011. 37 A palavra correta é câmara, entretanto, opto neste escrito por “câmera”. Sobre estas diferenças consultar Santos (2012).

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dos atabaques em cena, sobre isso o artista brasileiro fala que:

O Orô é feito com música ao vivo, idealmente. Surgiu com o formato de acompanhamento de três músicos, como ocorre no ritual do candomblé. Você tem os três atabaques (grande, médio e pequeno) com os três ogãs que tocam e cantam (Omolú, 2012b).

Contudo, neste vídeo não há som e ainda os

atabaques não aparecem no recorte filmado, sendo assim, não é possível saber se no momento da apresentação tinha algum tipo de trilha acompanhando os movimentos do artista brasileiro e/ou a presença de músicos. A descrição, em italiano, do material videografico limita-se a breve resumo do espetáculo ao vivo, não há indicações sobre data, local, público ou tipo de evento em que aconteceu esta apresentação.

No site oficial do grupo dinamarquês, o espetáculo ao vivo é classificado como uma produção da ISTA e aparece como parte do Multicultural Projects (Projetos Multiculturais). Diferente dos outros integrantes do Odin, o trabalho do artista brasileiro sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás é pouco comentado no site, sendo possível encontrar principalmente no OTA38 – Odin Teatret Archives, alguns vídeos e fotos do artista brasileiro em workshops e apresentações nos eventos da ISTA. Em contato por email com a administração do OTA fui informada que não há uma gravação do espetáculo ao vivo disponível para comercialização e que talvez, existisse um pequeno registro de alguma apresentação, mas que esta não 38 OTA – Odin Teatret Archives – Consultar em http://www.odinteatretarchives.com/

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poderia ser emprestada fora da sede do Odin. O discurso de Augusto Omolú nas entrevistas

(2010; 2012a; 2012b) ressalta a importância do espetáculo, como aparece na epígrafe deste capítulo, ele afirma que este era o “carro-chefe” de sua pesquisa. Na carta de Julia Varley (2013), ela descreve em longos parágrafos o processo de montagem de Orô de Otelo. E mesmo no site oficial do Odin, são apresentados os festivais pelos quais o espetáculo percorreu, como: I Festival Internacional de Artes Cênicas do Ceará, III Encontro Internacional de Artes Cênicas do TJA, ambos em Fortaleza e ainda Shakespeare International Festival, em Bucharest, Romania – todos datados no ano de 2012, último ano de apresentação.

A pergunta que me surge é: sendo o Orô de Otelo um importante espetáculo na trajetória de Augusto Omolú, marcando sua entrada como colaborador na ISTA e ainda traduzindo, de certa forma, os elementos de sua pesquisa sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás, por que são apresentadas tais limitações em relação a divulgação, registro e até mesmo comercialização do material videografico? Além do mais, isto me levar a outra questão: com quase duas décadas de trabalho com este grupo, qual era o grau de participação39 do artista brasileiro no Odin Teatret?

Na introdução deste trabalho, contei sobre minha experiência ao assistir o espetáculo As grandes cidades sob a lua (2003), onde os atores e atrizes do Odin estão

39 Como foi visto no primeiro capítulo desta dissertação, Augusto Omolú entra em 1994 como colaborador na ISTA, e ano de 2002 ele se torna integrante do Odin. No entanto, em entrevista (2012b), quando indagado sobre sua participação no grupo dinamarquês, ele responde que se vê como um colaborador, e diz assim: “Entrei aqui como um colaborador e agora me sinto justamente como um colaborador” (entrevista realizada um ano antes de seu falecimento).

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em cena a todo instante e Augusto Omolú surge nos minutos finais com uma breve participação. Mesmo com as limitações de áudio e ausência de informações, este é o material encontrado para dissertar sobre o primeiro espetáculo solo de Augusto Omolú dirigido por Eugenio Barba. Dada a sua importância, concentro-me, então, no próximo item sobre o processo de montagem do espetáculo em questão.

Nas entrevistas pesquisadas, Augusto Omolú afirma em vários momentos o quanto foi intenso e ao mesmo tempo desafiante o processo de montagem de Orô de Otelo, pois ele sabia dançar os movimentos dos orixás, mas não tinha a compreensão dos conceitos teatrais da Antropologia Teatral. Ele conta ainda que a cada movimento do orixá, o diretor italiano interrompia e “tinha mil explicações para dar” (Omolú, 2012a).

Ao lado de Barba e Omolú estava Julia Varley, atriz e integrante do Odin por mais de trinta anos. No grupo dinamarquês, os atores mais antigos repassam os ensinamentos da Antropologia Teatral durante um período de treinamento aos atores recém-chegados, depois disso, o treinamento passa a ser individual. Após realizar uma residência artística em Hostebro na sede o Odin Teatret em 2012, durante sua pesquisa de mestrado, Lara T. de Matos (2012) explica uma das formas de relação de aprendizado criadas pelos integrantes do grupo dinamarquês:

[...] os membros do grupo criaram um esquema onde cada ator “adota” uma pessoa de fora do grupo, ou seja, fica responsável por sua comida, seu treinamento, pela casa onde mora até que este ator esteja apto a fazer parte dos espetáculos e se tornar um indivíduo do grupo (Matos, 2012, p. 24).

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Entretanto, a participação de Augusto Omolú diferencia-se deste status de residência, ou ainda, de “adoção” pelo grupo como coloca a atriz e pesquisadora na citação acima. Embora Julia Varley acompanhasse os ensaios e apresentasse os conceitos do grupo, destaco que o artista brasileiro fora convidado pelo diretor italiano a ocupar uma posição de representante de uma tradição. Em Holstebro, o artista teve contato com os outros integrantes do Odin e ainda pode fazer improvisões junto a dançarina do Odissi Sanjukta Panigrahi40, como se pode ver nas fotos das próximas páginas.

40 Sanjukta Panigrahi (1944 – 1997) dançarina de Odissi, uma dança clássica indiana. Na carta de varley, ela diz que Sanjukta foi uma das fundadoras da ISTA . Eugenio Barba, por sua vez, cita a importante presença da dançarina indiana em seu livro A canoa de papel. Além disso, no livro A arte secreta do ator, há muitas imagens de Sanjukta danaçdno, com movimentos de oposição, de equilíbrio e desequilíbrio feitos na dança indiana.

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Na foto acima, Augusto Omolú e Sanjukta. Fotografia de Jan Rüsz. Disponível em http://performatus.net/uma-carta-para-recordar/

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Nas fotos acima: Augusto Omolú, Sanjukta Panigrahi e Julia Varley. Ambas em Holstebro, Dinamarca, 1993. Fotografia de Jan Rüsz. Disponível em http://performatus.net/uma-carta-para-recordar/

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Observo nas fotos o jogo de improvisação entre a dança dos orixás e a dança clássica indiana. Nesta época, Augusto Omolú ficou sob as orientações de Varley, ele estava sendo “preparado” para a ISTA em Londrina. Assim, conforme aparece nas entrevistas e na carta de Varley, o espetáculo Orô de Otelo não tinha o objetivo de se tornar um solo, mas de ser uma demonstração de uma tradição brasileira dentro dos princípios da Antropologia Teatral para ser apresentada no encontro da ISTA em Londrina. Sobre o desafio em transformar esta demonstração em um espetáculo, ele conta em entrevista:

Levou um tempo para eu tomar posse disso tudo. Até que aquilo começou a fazer parte de mim, fui buscando em mim mesmo um poder dentro desse espetáculo. Ele poderia não existir hoje se ainda tivesse com a conotação de uma demonstração. Foi ficando claro para mim que estava fazendo um espetáculo. Fui buscando a cada ensaio (Omolú, 2012b).

Como foi visto no capítulo anterior, Barba busca

um nível comum, uma base pré-expressiva existente em todas as tradições. O diretor italiano fala também de distintas técnicas corporais, ele define que:

No contexto cotidiano, a técnica do corpo está condicionada pela cultura, pelo estado social e pelo ofício. Em uma situação de representação existe uma diferente técnica do corpo. Pode-se então distinguir uma técnica cotidiana de uma técnica extracotidiana (Barba, 1994, p. 30).

Esta tensão entre cotidiano e extracotidiano, isto

é, gestos e posturas corporais dentro de um contexto

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cotidiano de determinada tradição em contraposição a técnicas extracoditianas é outro princípio da Antropologia Teatral de Eugenio Barba. Digo isto, pois este contato entre Sanjukta Panigrahi e Augusto Omolú, mediado por Julia varley, ilustra a maneira pela qual o diretor italiano desenvolve sua pesquisa sobre o teatro intercultural e o nível pré-expressivo, já discutido no capítulo anterior.

A seguir apresento imagens retiradas do material videográfico a fim de perceber os movimentos da dança e sua relação com a mitologia do orixá e o texto dramático de William Shakespeare.

3.2 O MOURO DE VENEZA DE WILLIAM SHAKESPEARE NA DANÇA DOS ORIXÁS DE AUGUSTO OMOLÚ

“Quem de Orô se aproxima, de dia ou de noite, pode escutar sua voz cavernosa e horripilante, grave como o som dos berrantes” (Trecho da Mitologia de Orô)

O que é Orô? Segundo o artista brasileiro: “Orô é

uma homenagem, uma festa, um nome. Orô de Otelo [o espetáculo] é como oferecer uma festa a você, uma homenagem a você” (Omolú, 2012b). Entretanto, Reginaldo Prandi afirma que “presentes na memória de poucos sobreviventes das antigas gerações de candomblé estão Orô, o temido espírito da floresta, de rugido assustador [...]” (Prandi, 2012, p. 23). Assim, com

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significados completamente diferentes, pode-se dizer que Orô é tanto um espírito da floresta quanto uma cerimônia.

Nesta cerimônia, o artista brasileiro re/apresenta, a partir da dança dos orixás, os personagens centrais do texto teatral Otelo do dramaturgo Inglês William Shakespeare41. O texto do autor inglês e a dança dos orixás são os pontos que geram as tensões dramatúrgicas do espetáculo. A sinopse, disponível na página oficial do Odin, anuncia:

Lendo o texto Otelo de Shakespeare, o performer, um homem negro elegantemente vestido, se deixa levar pela história. O artista encena os principais personagens - Otelo , Desdêmona , Iago , de acordo com as palavras que são cantadas em “Otello" [ópera] de [Giuseppe] Verdi. O performer muda de um personagem para outro, construindo diálogos entre eles, mas também reagindo aos personagens que ele interpreta42.

Nos primeiros minutos do vídeo encontrado,

Augusto Omolú aparece sentado, vestido com blusa e

41 Esta peça foi escrita entre 1603 e 1604. Utilizarei aqui a obra publicada no ano de 2011 com tradução de Barba Heliodora, da Editora Nova Fronteira. A referência bibliográfica completa desta obra segue nas páginas finais desta dissertação. 42 Tradução livre do original em inglês: “Reading Shakespeare's "Othello", the performer, an elegantly dressed black man, gets carried away by the story. The performer enacts the main characters - Othello, Desdemona, Iago, according to the words which are sung in Verdi's "Otello". The performer changes from one character to another, building dialogues between them, but also reacting to the characters he interprets” - publicado na página do Odin Teatret. Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/multicultural-projects/or%C3%B4-de-otelo.aspx acesso dia 22 de janeiro de 2014.

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calça brancas, um cinto marrom escuro e de pés descalços. Ainda sentado, ele faz uma sequência de ações que se referem justamente a esta descrição da sinopse, de alguém que embarca em uma história através da leitura.

Sobre a escolha deste enredo, o artista brasileiro conta:

Na concepção do Eugênio [Barba], a história do Otelo se casaria com a minha própria história, por isso entro vestido de branco. Além de ter uma formação em dança clássica e moderna, eu venho primitivamente lá do candomblé, da religião. Daí a junção de um negro clássico com a ópera e os atabaques. Resultou um bom casamento (Omolú, 2012b).

Parece-me que as tensões entre a história

pessoal do artista brasileiro e a estrura ficcional do texo do dramaturgo inglês foram as grandes motivações do diretor italiano para a criação cênica de Orô de Otelo. Nos próximos tópicos, escrevo sobre a dramaturgia do espetáculo e ainda apresento imagens recortadas a partir do vídeo para que se possa visualizar alguns movimentos da dança do orixá e as tensões com o texto dramático.

3.2.1 Dramaturgia: texto e(m) movimento Neste tópico, localizo a noção de dramaturgia, a

partir da Antropologia Teatral de Eugenio Barba, pois foi neste encontro com o diretor italiano que Augusto Omolú deu início a uma pesquisa voltada para a dramaturgia dos movimentos da dança dos orixás.

De acordo com Barba, a dramaturgia não se

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limita ao texto dramático, mas constitui-se por tudo que está em cena, desde a cenografia até as ações do ator. Nesta perspectiva, a dramaturgia é “o ‘trabalho das ações’ na representação” (Barba, 1995, p. 68). Assim, o diretor explica:

Numa representação, as ações (isto é tudo que tem a ver com a dramaturgia) não são somente aquilo que é dito e feito, mas também os sons, as luzes e as mudanças no espaço. [...] Os objetos usados na representação também são ações. Eles são transformados, adquirem diferentes significados e colorações emotivas distintas (Barba, 1995, p. 68).

É a partir desta noção que o diretor italiano vai falar que o trabalho do ator concentra-se nas ações e por consequência imprime uma dramaturgia, a “dramaturgia do ator” (Barba, 1995). No caso de Augusto Omolú e seu espetáculo Orô de Otelo, as suas ações estão fundamentadas na dança dos orixás, logo a dança adquire uma dramaturgia própria, a dramaturgia do movimento.

A dramaturgia do movimento, especificamente, no espetáculo supracitado pode ser compreendida como um entrelaçamento da mitologia dos orixás com o próprio texto dramático de Shakespeare. Além do aspecto mitológico, a dança dos orixás, como foi visto no capítulo dois, conecta-se com os elementos da natureza, pois “cada elemento da natureza – terra, ar, fogo e água – apoia e indica como o orixá vai caracterizar suas danças para, assim, ser reconhecido publicamente” (Sabino; Lody, 2011, p. 155).

Sobre a relação da mitologia e da dança dos orixás, no sentido do ritual, isto é, dentro do terreiro, os

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pesquisadores Jorge Sabino e Raul Lody afirmam: A dramaturgia que se revela na dança de cada orixá confirma um misto de linguagens que une dança, teatro, performance, música instrumental, música vocal, indumentária e cenários, que são os próprios ambientes dos terreiros decorados, com bandeirinhas de papel, folhas, tecidos, entre outros elementos. Esses elementos são específicos em cores, formatos e materiais, de acordo com a cerimônia, a festa (Sabino; Lody, 2011, p. 156).

Portanto, a dança do orixá é mais do que uma

série de movimentos ou coreografias. O canto, o toque, os elementos da natureza, as cores das vestimentas, tudo isso configura uma rede de significados. A partir disso, não é somente o movimento que está em cena, mas todos os aspectos que compõe a dança em si. A mitologia é, consequentemente, a dramaturgia do orixá.

Para visualizar esta relação entre a mitologia e os diálogos ou tensões com o texto de Otelo de William Shakespeare, trago nas próximas páginas imagens dos movimentos dos orixás retiradas do material videográfico encontrado, a fim de perceber a dramaturgia (ou dramaturgias) deste espetáculo.

3.2.2 Três personagens shakesperianos na dança dos orixás de Augusto Omolú

Neste tópico trago imagens para visualizar

alguns movimentos da dança dos orixás utilizados por Augusto Omolú na criação do espetáculo Orô de Otelo. É importante evidenciar que os movimentos dos orixás

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foram impulsos para a criação e composição cênica. As interpretações que faço aqui são enquanto pesquisadora, minha escrita neste momento objetiva encontrar elementos da Dramaturgia da Dança dos Orixás e, portanto, cada movimento apresenta um conjunto complexo de significados que vão desde os elementos da natureza relacionados a cada orixá até a mitologia que cada dança representa.

Partirei dos movimentos dos orixás femininos: Oxum, Iemanjá e Iansã, utilizados, principalmente, para representar a personagem Desdêmona de Shakespeare. Oxum é conhecida por ser a “divindade das águas doces” (Ligiéro, 2004, p. 94). Além disso, “seu poder de sedução transparece na beleza física, na doçura da voz, na delicadeza de seus gestos. [...] É muito vaidosa” (Ligiéro, 2004, p. 94).

Ações como pentear, perfurmar, colocar joais e se banhar diante do espelho são características deste orixá. Pode-se dizer que Oxum “é, sem dúvida, o orixá que tem na estética o seu mais notável argumento de sedução e de comunicação com os outros orixás e com os homens” (Sabino; Lody, 2011, p. 151).

A seguir apresento uma sequência com três imagens de Augusto Omolú e que podem ser identificadas como movimentos da dança de Oxum. O que me leva a esta afirmação é, principalmente, o gesto feito com a mão, uma representação do espelho, ou abebê43, utilizado por Oxum.

43 Além dos elementos da natureza, dos toques e cantos, cores e roupas específicas para cada orixá, há também a ferramenta que cada orixá traz. Assim, estas ferramentas são compreendidas como “[...] insígnias que identificam o caráter, a função e as histórias dos orixás. São elas: Ogó para Exu; Obé para Ogum; Damatá ou ofá para Odé; Ofá e abebê para Logun Edé; Xaxará para Omolu; Dã para Oxumaré; Abebê para Oxum e Iemanjá; Abiri para Nanã; Oxê

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Destaco abaixo, outra sequência em que

aparece a representação deste espelho. Diferente das imagens acima, Augusto Omlú aparece em pé, com postura ereta. Com uma das mãos, ele faz o movimento de pentear os cabelos, com um olhar fixo ao espelho, representado no alto pela outra mão.

Parece-me que os movimentos acima podem ser

compreendidos como uma variação da dança do orixá Oxum e também com aspectos da dança de Iemanjá. Enfatizo que, apesar de trazer tais imagens e ainda contextualizar a dramaturgia, no sentido mitológico, que cada movimento pode conter, a criação e composição do artista brasileiro apresenta transformações e diferenças

para Xangô; Eruexim para Oiá; espada e escudo para Oxaguiã e Opaxorô para Oxalufã” (Sabino; Lody, 2011, p. 164).

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das danças que são representadas dentro do terreiro, isto é, da dança dos orixás no candomblé.

Apresento então o segundo orixá feminino, Iemanjá que apesar de sua beleza e sensualidade, é conhecida por seu caráter materno. De acordo com Ligiéro, Iemanjá “é a mãe que se desdobra em amores e compreensão de seus filhos” (2004, p. 98), além de ser a mãe das águas, “é mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o equilíbrio emocional e a loucura, talvez o orixá mais conhecido no Brasil” (Prandi, 2012, p. 22).

Há muitos mitos que falam de Iemanjá enquanto mãe protetora e ainda como orixá importante na criação do mundo. Sobre isso, Prandi afirma que Iemanjá “no Brasil ganhou a soberania dos mares e oceanos, regidos na África por Olocum, orixá esquecido no Brasil e pouco lembrado em Cuba [...]” (Prandi, 2012, p. 22). Sobre a dança deste orixá, Jorge Sabino e Raul Lody consideram que:

Muitas coreografias de Iemanjá traduzem sua relação com a água, com o mar, mostrando uma intimidade de nadadora, com mergulhos e flutuação, realizando também gestos maternais e de guerreira, além do sentido sexualizado de algumas danças (Sabino; Lody, 2011, p. 155).

No vídeo é possível notar uma movimentação parecida com esta descrição da dança de Iemanjá. Em alguns momentos, entre um movimento e outro, o artista brasileiro faz uma sequência de ações que traz a sensação de tocar as águas com as mãos, movimentos ondulares, feitos lentamente, uma vibração que muitas vezes começa nos ombros e termina nas mãos. Como já disse, muitos dos movimentos da dança dos orixás são ressignificados pelo artista brasileiro, os recortes que

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trago aqui buscam apresenta movimentos que estão neste limiar: entre a dança dos orixás e sua dramaturgia, seja no aspecto mitológico ou na própria ação dramática shakesperiana.

Sendo assim, passo para o outro orixá feminino que fundamenta esta representação de Desdêmona, é Iansã ou também conhecida por Oiá. É referenciada como “a deusa dos ventos e das tempestades” (Ligiéro, 2004, p. 90), e geralmente associada a imagem de uma mulher guerreira. Assim, os movimentos de Iansã traduzem a força dos ventos e a explosão das tempestades. Em outras palavras:

As danças de expansão de Iansã mostram diálogos coreográficos com o vento e com o ar, seu principal elemento. Em suas coreografias há muita movimentação, exigindo-se rápidos deslocamentos e trabalhos intensos com os braços (Sabino; Lody, 2011, p. 141).

Abaixo uma sequência desta movimentação de Iansã, onde o artista brasileiro com as palmas das mãos viradas para cima faz uma ação de tocar o ar, sugerindo uma ventania.

Os ventos de Iansã no espetáculo de Augusto

Omolú podem tanto representar a rivalidade entre Otelo

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e Cassio, alimentada por Iago, como também para refereir-se aos sentimentos Otelo por Desdêmona. No primeito ato, o protagonista diz a sua amada: “é com toda alegria quanto assombro que eu te vejo, alegria da minh’alma! Se toda tempestade traz tal calma, que os ventos soprem acordando a morte [...]” (Shakespeare, 2011, p. 47).

Há na mitologia de Iansã muitas passagens que a descrevem com atos de coragem e esperteza, porém, parece-me que os mitos de disputa entre Xangô e Ogum vão ao encontro desta cerimônia para Otelo. Na peça teatral de Shakespeare, Iago provoca a ira de Otelo ao insinuar a traição de Desdêmona com Cassio e isto a leva a morte, sendo asfixiada inocentemente por Otelo. Entretanto, quando ele percebe que fora enganado por Iago, sente grande arrependimento e a saída - como prega as tramas engenhosas de Shakespeare – é somente uma: a morte. Apunhalando-se, Otelo cai sobre a cama e morre, mas antes diz: “a beijei ao matá-la; e a saída é sobre um beijo eu acabar com a vida” (Shakespeare, 2011, p. 152).

No livro Mitologia dos Orixás (Prandi, 2012) é possível encontrar passagens que narram batalhas épicas entre Xangô e Ogum para ficar com Oiá. Conta-se que “Ogum é o ferreiro. [...] a agressividade e a violência são as características de que ele necessita para abrir espaço no mundo e conquistar os recursos que garantam sua sobrevivência” (Ligiéro, 2004, p. 58). Enquanto que Xangô: “na natureza, ele é o trovão, o fogo do céu. [...] Guerreiro forte, viril e apaixonado, Xangô resolve as questões de justiça e não dá descanso aos que mentem ou cometem crimes” (Ligiéro, 2004, p. 86).

As danças de Ogum são dinâmicas com saltos e rolamentos, já que “Ogum desloca-se com velocidade,

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empreendendo trajetórias contínuas, como se estevisse caminhando apressadamente ou mesmo correndo ao encontro da caça [...]” (Sabino; Lody, 2011, p. 130). Já a dança de Xangô:

[...] é caracterizada pelo sentido de majestade, pela solenidade em estilo marcial, cadenciado. Em determinados momentos da coreografia, esse orixá representa o ato de lançar pedras e as atira sobre o mundo. Essas pedras são os coriscos, pedras do raio, das trovoadas, dos relâmpagos que anunciam o poder do fogo, o poder do rei (Sabino; Lody, 2011, p. 145-146).

No vídeo encontrado, é possível perceber

movimentos da dança de Xangô e de Ogum, intercalados com os movimentos de Iansã. O embate entre estes dois orixás parece representar no Orô as diversas situações de batalha, luta e guerra presentes no texto de Shakespeare – por exemplo, a cena final, a morte de Desdêmona. Assim, a guerra percorre o texto dramático, cria uma situação e/ou base do conflito dramático. Do primeiro ato ao quinto ato, seja nas rubricas ou nas falas dos personagens, a guerra aparece como um emblema de coragem e luta, em alguns casos associada até a personalidade ou a moral do personagem, é o caso de Otelo que diz a Iago: “na guerra matei homens por ofício, mas tenho como base de consciência jamais matar com premeditação” (Shakespeare, 2011, p. 20).

Em outro momento do texto de Shakespeare, Otelo, atormentado cada vez mais pela ideia de ser traído por Desdêmona diz a Iago: “faça-me ver, ou ter tal prova ao menos, que não me reste aspecto nem detalhe que deixe dúvida: pois, senão, morre!” (Shakespeare,

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2011, p. 86). Estas emoções poderiam ser representadas pelo

ator, tradicionalmente, por gestos e expressões que singificassem ódio, maldade, amor e bondade. Entretanto, em Orô de Otelo, a dramaturgia inglesa é afetada pelas tensões da dramaturgia da dança dos orixás. A raiva de Otelo torna-se o trovão de Xangô; o desespero de Desdêmona são ventos e tempestades de Iansã, alternados pela vaidade de Oxum e a paciência de Iemanjá; a luta entre Cassio, Iago e Otelo transforma-se em sequências de cavalgadas de Ogum, com o olhar atento de Odé (ou Oxóssi) e o machado de dois lados de Xangô.

Sobre a composição desta dramaturgia da dança dos orixás, o artista brasileiro afirma o seguinte:

Quando eu faço qualquer movimento está sempre relacionado há algo, as imagens, assim como os orixás se relacionam sempre a algo. Por exemplo, a espada é elemento característico de Ogum, a espada, os escudos, os movimentos de ataque, defesa e proteção, a energia de guerra. (Omolú, 2012a).

Na próxima página, apresento uma imagem do

material videográfico, especificamente este movimento de Ogum com a espada e o escudo, citado pelo artista brasileiro.

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O escudo e a espada são as armas de Ogum,

estas armas “são usadas na defesa, na proteção e na manutenção do seu reino – Irê -, pois Ogum é também chamado de Oni Irê” (Sabino; Lody, 2011, p. 129). No segundo ato da peça de Shakespeare, mais uma vez Otelo anuncia: “[...] vida militar deita em paz e acorda pra lutar” (Shakespeare, 2011, p. 63).

Em relação a Iago, pode-se associar os movimentos da dança de Oxumarê. Esta dança apresenta movimentos sinuosos, representa principalmente a mobilidade e a transformação dinâmica deste orixá (Sabino; Lody, 2011). Como se pode ver nesta sequência de Oxumarê, o movimento inicia-se com a cabeça no chão e terminar em pé, representando a relação deste orixá com a terra e o céu.

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Esta transição indica a dualidade do orixá, ora

serpente que se rasteja no chão ora arco-íris que surge nos céus, além de ser os extremos: céu e terra; este orixá é também homem e mulher. A mitologia conta que “Oxumarê era filho de Nanã. No seu destino estava inscrito que ele deveria ser seis meses um monstro e seis meses uma linda mulher” (Prandi, 2012, p. 227). Sobre isso Ligiéro afirma:

Oxumarê é a serpente arco-íris, que vive girando em redor do mundo. Durante seis meses é homem e nos outros seis meses é mulher, chamando-se Bessém. [...] Sua principal característica é a dualidade, e talvez por isso ele seja um Orixá tão exigente e inconstante. Sob a forma de serpente é perigoso, mas sob a forma de um arco-íris é benfazejo e extremamente belo (2004, p. 78).

A dualidade na trama shakesperiana pode ser

interpreta em relação a Iago, que a todo o tempo demonstra amor e ódio; verdade e mentira; compaixão e maldade, enfim, emoções opostas e que indicam um personagem inconstante, porém central para o desencadear das ações, ou seja, sem Iago não há conflito dramático.

Por fim, trago a imagem de um último orixá que

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aparece no final do vídeo, no momento do desfecho, que interpreto como a cena final: a morte de Desdêmona e Otelo. Este orixá é o caçador, Oxóssi. Representado na mitologia como o senhor das matas (Prandi, 2012; Sabino; Lody, 2011).

A seguir, uma sequência de Oxóssi com movimentos rápidos e as mãos em um gesto que representa o arco e a flecha, ferramenta deste orixá.

Sobre as danças de Oxóssi, os pesquisadores

Sabino e Lody afirmam: Há uma ação coreográfica marcante e que identifica Odé. Isso se observa no uso das mãos – como se estivesse apontando uma flecha -, a esquerda apontando o dedo indicador e, lateralmente, o polegar; o indicador da mão esquerda une-se ao polegar da mão direita, representando, dessa maneira, a sua principal ferramenta: o ofá ou damatá, feito de metal (Sabino; Lody, 2011, p. 134).

A descrição feita pelos autores pode ser

visualizada na sequência apresentada anteriormente. Além disso, a posição dos joelhos flexionados demonstra a concentração e agilidade que o caçador precisa ter na mata, estar atento a todos os ruídos.

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De maneira geral, apresentei aqui a partir das imagens retiradas do vídeo do espetáculo Orô de Otelo sete orixás: Oxum, Iemanjá, Iansã, Ogum, Xangô, Oxumarê e Oxóssi44. Neste capítulo meu objetivo foi citar algumas destas danças a fim de perceber as nuances entre a dramaturgia da dança e a dramaturgia shakesperiana.

O material videográfico, a entrevista e a minha experiência no Seminário, serviram como materiais e fontes para que eu pudesse apresentar alguns movimentos da pesquisa e prática artística de Augusto Omolú sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás.

Portanto, a seguir apresento minhas considerações sobre esta dissertação, destacando principalmente o processo e as transformações da pesquisa.

44 Em Orô de Otelo foram utilizadas outras danças de orixás, como Nanã, Ossaim e Omolu. Entretanto, como estes movimentos dançados são executados de maneira rápida, não foi possível parar o frame e recortar como imagem para analisar, assim escolhi os principais orixás, partindo dos três personagens de Shakespeare. Além disso, acredito que o artista conseguiu criar em seu espetáculo uma fluidez entre os movimentos dos orixás, o que muitas vezes torna impossível dizer passo a passo o movimento específico do orixá. Para isso, seria necessária a presença do artista em vida para que ele mesmo pudesse explicar a sua criação e composição junto ao diretor.

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PÁGINAS FINAIS

Durante dois anos me deparei com os limites

entre a religiosidade e a arte de uma dança que nasce no terreiro e transforma-se em dramaturgia no palco. Como a energia do orixá tornava-se impulso para a criação artística de Augusto Omolú? Esta foi uma das perguntas a me perseguir e para tentar compreende-la tive que sair de minha cidade e ultrapassar as barreiras de um olhar objetivo.

A perda do artista tornou-se parte da pesquisa. Depois de um período longo com registros da experiência em Salvador e um planejamento pronto para uma segunda etapa, sou surpreendida por algo impensável. Uma situação inesperada faz com que eu reveja a pesquisa de um ano, ajuste meu foco para sua prática artística, mas antes de tudo, sendo necessário, um olhar cuidadoso sobre sua trajetória.

Depois do dia 02 de junho de 2013 ele se tornou memória, sua história e trajetória seriam recontadas não só por mim, mas por todos aqueles/as que estiveram ali, acompanhando ou simplesmente vivendo por alguns dias a experiência de estar ao lado de um artista sensível. Eu, como pesquisadora, me vi diante de uma encruzilhada, que caminho escolher? Como continuar a pesquisa sem o artista? Seus discursos estavam espalhados em vídeos, fotos de espetáculos, conversas e memórias de outros artistas que tiveram contato com ele; era necessário, então, reunir tudo isso.

Como falar sem se emocionar? Como escrever sem ao menos lembrar que minhas dúvidas, perguntas sobre sua prática artística e o processo de criação não poderiam ser respondidas por sua voz grave. Fiquei alguns meses em um processo de silêncio. Cada página,

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cada texto relido e reescrito mexia comigo, pois me colocava cara a cara com o fato de que ele já não estava mais aqui. Foi necessário aceitar que a pesquisa seguiria adiante, mas não sem o artista, e sim para o artista.

Para continuar precisei de coragem e também de intuição, passei pela encruza, pedi licença e tomei meu caminho. Busquei a voz de Augusto Omolú, mas antes, decidi que minha voz neste escrito não poderia ser distanciada, eu precisava resgatar minhas lembranças, falar de meu corpo, e consequentemente falar do trabalho do artista.

Para isso, transformei a experiência do Seminário em relato, busquei as imagens do espetáculo Orô de Otelo (1994), os discursos na entrevista publicada online na página do Teatro Jornal (2012) e na dissertação de mestrado de Antonio Ferreira Junior (2011), além da carta de Julia Varley (2013), atriz integrante do Odin. Esses materiais foram de grande importância e deram suporte para as reflexões feitas em cada capítulo.

O caminho encontrado foi a etnografia, a partir desta metodologia foi possível considerar a minha experiência e logo as memórias do Seminário. Por isso, logo no primeiro capítulo, escrevi sobre a relação corpo e mente no trabalho do ator. No processo de escrita sobre este tópico, me vi imersa em um mundo sensorial, muitas vezes deixava as leituras de lado, colocava uma música e dançava por entre os livros espalhados no chão. Posso dizer que a pesquisa proporcionou um conhecimento para além da Dramaturgia da Dança dos Orixás, eu conheci a dança do meu próprio corpo.

Muitos autores com seus escritos e pesquisas me ajudaram nesta caminhada. Encontrei, por exemplo, nos escritos de Zeca Ligiéro (2011) a noção de “motrizes culturais” para problematizar o entendimento de matriz;

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observei a partir do filósofo congolês Fu-Kiau a conexão entre a dança, o canto e o batuque, o que me permitiu olhar para a prática artística de Augusto Omolú e para o ritual do candomblé como fenômenos como processos dinâmicos.

Ao falar da prática artística de Augusto Omolú falei do candomblé e por isso, no segundo capítulo, o primeiro item tratou de apresentar algumas noções importantes, como as diferentes nações, a compreensão de orixá e a relação com os elementos da natureza. Depois, em um segundo momento, direcionei-me para os conceitos da Antropologia Teatral de Eugenio Barba, pois a participação na ISTA e a entrada como integrante no grupo Odin trouxeram para a Dança dos Orixás, de Augusto Omolú, a palavra: Dramaturgia.

Ao passar pela Antropologia Teatral de Barba me vi intrigada com as definições de tradição e identidade nacional, seria possível codificar uma tradição? Ao considerar a dinâmica do corpo e o movimento (motriz) existente na cultura, até que ponto as representações de Barba com o grupo Odin, buscam um ideal de corpo e tradição? Nesse momento, foi preciso retomar as leituras de Stuart Hall, conhecidas da época da graduação. Reli suas reflexões sobre identidade cultural e como negociamos nossas identidades. Cheguei, junto com Hall (2009), a outra questão: é possível, ainda hoje, buscar um ideal de identidade negra? O próprio autor já indica: “ [...] nossas diferenças raciais não nos constituem inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferenças” (Hall, 2009, p.328). A pesquisa e o contato com Augusto Omolú me trouxeram de forma evidente esta afirmação de Hall. Em muitos momentos me vi negociando minhas diferenças e questionando uma noção essencializante de negro. Afinal, aquela pergunta

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antiga de Hall (2009) nunca saiu da minha cabeça: “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”

Embora o discurso de Augusto Omolú, muitas vezes, reforçasse a busca por uma identidade “nossa”, uma identidade brasileira – percebi que sua própria prática artística buscava extrapolar as fronteiras de uma representação folclórica do orixá. Ele mesmo havia observado, no início de sua trajetória em Salvador, os limites da dança de seus mestres: Emília Biancardi e Mestre King. Continuou sua trajetória e encontrou Eugenio Barba e a Antropologia Teatral, se aventurou em terras desconhecidas, foi para o frio da Dinamarca, tornou-se integrante do grupo de teatro Odin, descobriu que sua dança poderia ser pensada como dramaturgia, que a mitologia presente nos movimentos dos orixás poderia ser explícita ou contida, dependendo das intenções dramáticas que se queria obter na criação cênica.

A Dramaturgia da Dança dos Orixás foi interrompida, mas através das imagens de um pequeno registro videográfico pude apresentar no capítulo três alguns movimentos dos orixás criados para o espetáculo Orô de Otelo. O último capítulo buscou não uma ilustração, mas uma reflexão acompanhada de descrições dos movimentos – um passeio entre a mitologia dos orixás e a dramaturgia shakesperiana.

Por quase duas décadas Augusto Omolú transitou entre Salvador e Holstebro. No Seminário, ele havia me dito que queria voltar ao Brasil, ficar mais tempo em Salvador, sua intenção era fazer o Seminário duas vezes no ano, nas férias de janeiro e de julho. Seus planos foram também interrompidos, sua pesquisa ficou na memória corporal dos participantes, dos dançarinos, jovens, amigos, pesquisadores que estiveram próximo a ele. Sua dança e dramaturgia tornaram-se nestas

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páginas registros, relatos, reflexões e diálogos. A arte e a religião estavam presentes em seu

cotidiano, ás vezes habitavam espaços completamente distintos, mas ao final sempre ocupavam o mesmo lugar: o corpo. Para quem deseja se aventurar no universo de uma dança que se torna além de dramaturgia, um ritual artístico impulsionado pela energia do orixá, apresentei nesta dissertação um dos precursores deste movimento. Augusto Omolú foi um ator/dançarino atento, curioso e, sem dúvidas, um pesquisador incasável sobre as conexões entre a arte da dança, do teatro e da religião.

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ANEXOS A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS45: ENTREVISTA COM AUGUSTO OMOLÚ46

Foto feita durante o Seminário Dramaturgia da Dança dos Orixás, em Salvador, janeiro de 2013. Arquivo pessoal da pesquisadora.

45 Entrevista concedida por Augusto Omolú para Julianna Rosa no dia 06 de maio de 2012, em Porto Alegre (RS) no Hotel Plaza Porto Alegre, durante o 7° Festival Palco Giratório-SESC. 46 No dia 02 de junho de 2013 Augusto Omolú foi brutalmente assassinado em sua chácara (Chácara Omolú) no Bairro Buraquinho na cidade de Salvador (Bahia – Brasil). Augusto era ator/dançarino integrante do grupo dinamarquês Odin Teatret, dirigido por Eugenio Barba.

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Julianna Rosa47 (J.R.): Augusto Omolú você podia contar um pouco da sua trajetória e como conheceu Eugenio Barba? Augusto Omolú (A.O.): Foi muito engraçado, para mim foi uma grande surpresa, foi meu primeiro encontro com o teatro. Para mim não era problema. Não era novidade nenhuma, porque desde pequeno, quando eu tinha oito anos de idade, fui confirmado para Ogum lá na minha roça. A família toda já fazia parte, a minha mãe também. Então, praticamente nascido e criado dentro do candomblé. Quando eu era pequeno, seis ou sete anos, tinha mania de imitar os orixás. Os orixás chegavam se manifestavam, ficavam dançando, mas eu também ficava dançando atrás, muito mais como um divertimento, não tinha noção, não tinha ideia do que estava fazendo, mas para mim aquilo tudo era meu mundo, era minha vida ali dentro da roça. Preparar ebó, sair para pegar folha, assistir as obrigações, a cerimônia das iáos, tira iáo, tocar [atabaque]. Eu tocava, naquela época eu tocava muito porque eu era o único ogã da casa pequeno, tinha outros ogãs também, mas o confirmado era eu. Então eu tocava e não aguentava muito, porque eu tinha os braços pequeninos, mas eu adorava aquilo ali, para mim era meu mundo. Tocava muito bem para todos os orixás na maior satisfação, com muita alegria. E isso foi tudo muito natural para mim. Quando ele [Eugenio Barba] pediu para eu dançar orixá na cadeira, bom, eu danço orixá até deitado na cama, isso não é problema [risos]. Era um teste, mas eu não sabia que aquilo ali já era um teste, mas fiz. Quando comecei a contracenar com a Júlia

47 A presente entrevista faz parte da pesquisa de mestrado em teatro de Julianna Rosa, bolsista CAPES e Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT-UDESC).

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[Varley] também foi muito interessante. Chamou minha atenção porque eu já tinha uma experiência na dança. Eu tenho formação na área de balé clássico, durante muitos anos, trinta anos. Também tenho experiência em dança moderna, trabalhei com vários coreógrafos. Fui o primeiro bailarino na Companhia [Balé do Teatro Castro Alves (TCA)]. Tinha muito compromisso com a Companhia. Então, ver Júlia fazendo aqueles gestos, movimentos, ações, me chamou muita atenção, uma dança em outra forma. E comecei a passar os movimentos dos orixás, dentro do que ela pedia eu correspondia com outra energia. E começamos a trocar. Deu-se inicio aos trabalhos, e então fui viajar para Dinamarca. Comecei a trabalhar com os atores e depois voltamos a Salvador. Começamos - Eugenio Barba e eu - o processo de montagem de Otelo, que foi muito interessante este processo. Por que eu não tinha ideia do que ele queria, não tinha ideia mesmo. Eu já tinha ido à Dinamarca, voltado para Salvador. Eugenio tinha chegado a Salvador e fomos fazer a montagem. Mas eu não tinha ideia do que ele queria ou então, eu o via como um coreógrafo. Eu via Eugenio Barba como um coreógrafo. E como um costume nosso, de bailarino, o coreógrafo faz a sua coreografia e nós bailarinos a executamos. Nós executamos a coreografia que o coreógrafo criou. Depois a assistente faz a limpeza técnica daquela coreografia, você como bailarino tem pouca participação criativa da obra. O coreógrafo tem tudo na cabeça e no corpo e então ele passa tudo para você e você como bailarino só executa, entende? Você não participa do processo de montagem. E isso foram muitos e muitos anos. E me incomodava muito essa coisa no balé do Teatro Castro Alves. Porque como bailarino eu sempre queria mais do que dançar. Essa coisa de sempre estar fazendo a coreografia do

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coreógrafo é como se você não tivesse nenhuma participação, não é sua. Você não coloca sua emoção, você não acrescenta nada seu, está lá como um boneco, um robô. E isso me incomodava muito na Companhia. Eu já estava um pouco cansado, eu queria outras coisas, tinha outras ambições, eu estava cansado também tinha mais de vinte anos. Enfim, quando tive esse contato com Barba e começamos o processo de Otelo, me chamou mais a atenção, porque eu tinha todo o conhecimento dos movimentos dos orixás, eu já fazia os movimentos dos orixás. E Eugenio sempre pedia mais e mais, e eu sempre recusava, dava só o limite. Eu segurava um pouquinho, até porque o candomblé para mim era sagrado, algo religioso. Então, eu ainda tinha aquele problema de não me abrir muito, de não permitir. Ele [Eugenio Barba] me pedia coisas que eu não podia passar para ele, coisas de fundamento do candomblé. Eu só podia passar aquilo que era permitido. J.R.: Como é para você a relação entre a religiosidade e a arte, digo, como é trabalhar com a religião e a arte? A.O: Isso a principio foi um pouco difícil, até pelas questões de proteção. Mas quando você vai desenvolvendo uma linguagem, passando para outra visão, como arte, você começa a perceber outros valores, começa a entender que não está ferindo a religiosidade, o candomblé, pelo contrário está contribuindo mais para os valores do candomblé, principalmente os valores da religião. Então eu comecei a ceder mais um pouco, porque eu estava vendo outra coisa e não tinha nada a ver com o terreiro. Nos anos cinquenta [1950] foi criado, por exemplo, muitos grupos folclóricos que faziam os orixás no palco. Da forma que

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estava sendo trabalhado não é que estava imitando o orixá, entende? É diferente da época dos orixás do grupo folclórico, na época eram pessoas que imitavam os orixás, como se estivessem incorporado, faziam caras, bicos e tudo mais, isso sim eu acho que era algo que feria a religiosidade. Mas, trabalhar o movimento do orixá, não. O movimento é também de uma linguagem universal. Ela pertence a uma religião, mas ela também é uma arte enquanto movimento. E isto também é visto na Índia, em Bali, então, por que também o orixá não buscar dentro desse movimento uma qualidade, ou até um estilo próprio para o que eu pensava naquela época. Porque quando eu estava trabalhando, eu sempre trabalhei dança clássica, dança moderna, mas eu sentia uma necessidade muito grande de ter uma técnica especificamente nossa brasileira. Por que eu tenho que ficar o tempo todo estudando algo que não faz parte da minha cultura? Tenho que estudar o tempo todo balé clássico, mas eu não vou ser nenhum bailarino clássico, nunca, porque eu tenho um bundão, o pé não estica, porque essa é minha anatomia, minha cultura é essa. Então eu comecei a trabalhar a dança dos orixás com dança clássica, com a dança moderna. Isso eu já fazia antes, em oitenta e três [1983] em um curso livre que eu criei no Teatro Castro Alves [TCA] que tinha este objetivo: juntar técnicas com o movimento dos orixás e criar uma técnica brasileira, talvez um estilo brasileiro. Eu dava o nome de “dança afro contemporânea brasileira”. Era um pouco o movimento dos orixás, com uma pirueta, uma contração de Martha Graham e fui desenvolvendo outras coisas. Eu criei um grupo “CHAMA” também, o qual mostrava todo este trabalho pesquisado. Eu e Armando Pequeno. E pronto. Então, esse contato com o Barba foi um leque de possibilidades que me veio. Cada movimento do orixá que eu fazia, ele

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pedia para eu parar de dançar o orixá e então, para aquele movimento ele tinha mil explicações para dar. Imagina que cada dança dos orixás pode ter de vinte a trinta movimentos, porque os orixás se comunicam com os movimentos, com as codificações. E a cada movimento daquele ele tinha mil explicações, isso começou a me chamar a atenção. Neste processo fui ficando mais interessado, porque eu sabia dançar os orixás, mas não sabia do conhecimento, sabia dançar, mas não tinha o conhecimento e todas estas informações. Isso foi dentro do processo de Otelo. Ele [Eugenio Barba] sabia o que queria, pois tinha o entendimento da Antropologia Teatral, das ações físicas, dos movimentos, das codificações. Então, ele [Eugenio Barba] fez o quebra-cabeça dele dentro do que eu tinha de material. Enquanto eu fui adquirindo o que era rico para mim, além de ter uma participação no processo da montagem. Depois da partitura preparada, ele [Eugenio Barba] veio com a música. Mais ou menos três meses depois. E nesse período também, Eugenio [Barba] me deixou trabalhando quando a Júlia [Varley] para estar sempre recordando os ensinamentos. Mais tarde acrescentou a Ópera de Verdi cantada por Pavarotti. Todas as partituras selecionadas por Eugenio Barba começaram a se encaixar dentro da Ópera. Essa foi a montagem do espetáculo Orô de Otelo. Então você vê que não teve muito a participação da religião, foi uma visão realmente artística. É claro que Eugenio também respeitou, nunca pediu para trabalhar a religião do candomblé. Ele queria conhecer sim para então ter uma informação sobre, para trabalhar depois com a base e os princípios da Antropologia Teatral. Isto foi muito forte como forma de contribuição. Foi muito bom como processo. Cada momento era muito rico, me surpreendia sempre. Como movimentar os braços, por exemplo,

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quando o orixá era iansã, orixá dos raios e dos ventos, eu mostrava o movimento e a energia do movimento. Então, ele [Eugenio Barba] queria que eu mostrasse toda a energia do movimento, mas com o movimento reduzido. [Aqui Augusto Omolú demonstra os movimentos e exemplifica com o próprio o corpo as noções de redução e ampliação do movimento]. Isso para mim era um pouco difícil, pois era algo novo, era outra história para mim. Eu não achava ruim, ao contrário comecei a curtir e me permitir. Foi muito rico aprender a linguagem. Isso me deixou muito apaixonado, pois eu já estava com esse problema com o balé. Quando eu tive esta parceria com Eugenio, parece que ele despertou uma nova vida, uma nova condição de sobreviver dentro da minha arte. Além de me aprofundar dentro da pesquisa, dentro do que eu queria como identidade. Porque estava muito mais próximo para criar um estilo próprio, basicamente brasileira a partir da dança dos orixás. Isso foi estimulante, porque eu já tinha uma ideia de pesquisa e quando me encontrei com ele [Eugenio Barba] percebi que era isso mesmo que eu queria. Enfim, eu fui “namorando” esse processo e acredito que ele [Eugenio Barba] também curtia muito, porque ele [Eugenio Barba] tinha uma grande caixa de movimentos e de ações. Porque imagina, com dezesseis orixás, cada orixá com trinta movimentos diferentes. Para ele [Eugenio Barba] era muito material. Com movimentos diferentes, codificações diferentes e energias diferentes, pois cada orixá conta uma história. Então este encontro foi fantástico. J.R.: É interessante quando você fala desta diferença do balé, do corpo do balé clássico, porque além da anatomia entra a questão do ritmo e eu percebo em suas partituras um ritmo diferente. Como é isto para

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você, como funciona este processo de criação, o que você pensa sobre isso? A.O: Eu não penso. As coisas acontecem. [risos]. Eu não penso, porque são coisas que não dá para você pensar, não dá para você programar, são energias. E eu também já vivia isto desde pequeno. Para mim a grande dificuldade talvez seja a de pensar. Quando eu penso, eu não faço. Eu trabalho também com outra memória. Isso Barba me ajudou muito, a reconhecer essa outra memória, que é uma memória física. Então, é despertar esta memória física. Quando eu faço qualquer movimento está sempre relacionado há algo, as imagens, assim como os orixás se relacionam sempre a algo. Por exemplo, a espada é elemento característico de Ogum, a espada, os escudos, os movimentos de ataque, defesa e proteção, a energia de guerra. Você tem as imagens e têm os elementos, você incorpora tudo isso. Não é que você vai pensar em construir aquilo, os orixás já oferecem toda a condição para você criar como base de um treinamento. Imagina se você não tem nada e tem que criar alguma coisa, é diferente, entende. O Odin [Teatret], os atores, por exemplo, criam e improvisam sempre buscando algum elemento, eu tenho os orixás. Se eu vou criar uma partitura para um personagem, eu posso utilizar um ou dois orixás e a partir de então improvisar com os elementos. Eu procuro conservar a energia de cada orixá, improvisei [demonstra o movimento] não mostro o Ogum, mas a energia de Ogum [sinaliza com as mãos indicando o movimento da espada de Ogum]. Você tem que construir interiormente, a alma está ali. Não é algo que você pensa e vem, ao contrário já tem que estar lá. E você precisa construir muito e muito tempo. Trabalhar com todas as condições e qualidades para poder ir armazenando e juntando

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todas as informações, depois tudo isso naturalmente aparece. Tem outro sentido que traz, entende, quando você pensa, você já está. Eu não vou pensar em como extrair. Não. Já está lá. Criou-se, então, uma estrutura interior com todas estas informações, qualidades de energias. Quando fizemos Hamlet, criou-se partituras e a nossa linguagem, minha e de Eugenio, não era a força do movimento e sim o nome do orixá. Ele dizia: “Augusto entre com ogum, com oxóssi, agora oxalá”. Então, ele usava o nome do orixá e eu entrava com a energia do orixá, não tinha nada a ver com o orixá em si, mas a energia sim. Criamos assim outras relações a partir de outras possibilidades. J.R.: Podes falar mais sobre essa relação de troca, por exemplo, como o teatro começou a aparecer para ti? A.O: Sim. Exatamente. Eu começo a perceber a parte do teatro. Inclusive, eu trabalho isto em minhas aulas, com os alunos, onde inicio com orixás, os movimentos e depois trabalhamos com a improvisação. Então, vamos transformando todos os movimentos de dança em ações. Até que você já não vê mais o orixá. É como se o orixá fosse o movimento de partida, e de repente você elimina o orixá e fica somente com a energia. Nesse momento, é transformar a dança em teatro, o movimento da dança é transformado em ações. Mas, você precisa trabalhar com todo o conhecimento. Trabalhar a redução do movimento, mas manter a intensidade forte da energia. Buscar as possibilidades de caminhada, posições. Buscando sempre outras possibilidades. Como Ogum, a corrida de Ogum em cima de um cavalo. Um movimento, meio-movimento, a parte da frente, atrás. Cria-se um jogo com tudo isso. Você está transformando, então eu

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vejo o teatro. Para se ter esta visão do que é dança e do que é teatro, você tem que ter muita informação. J.R: Augusto, você trabalha com muitos workshops, oficinas, tem contato com pessoas do mundo inteiro. Queria saber se você percebe, por exemplo, a diferença entre aqueles atores, atrizes, negros, negras, pessoas que já possuem um conhecimento maior sobre a cultura africana e afro-brasileira ou um contato com a religiosidade, se há uma diferença em trabalhar esta técnica da dança dos orixás?

A.O: Não existe essa diferença, mas me deixa muito surpreso isso tudo. Porque muitas vezes eu consigo um resultado maior quando estou trabalhando com os estrangeiros. Quando eu estou trabalhando com pessoas da nossa cultura mesmo eu sinto mais dificuldade. É como se eles não estivessem muito preocupados com isso. Tem sempre aquela coisa assim: “é meu”, “eu já sei”, “é da minha cultura”, “é da minha raiz”. Mas no final das contas não sabe de nada. Porque eu trabalho isso no exterior, por exemplo, na China, na França, na Dinamarca e sinto que os estrangeiros respondem muito mais, como se já tivesse um conhecimento. Eles [os estrangeiros] criam uma identificação muito maior com os orixás, mais do que o povo daqui [brasileiros]. Tanto que eu sinto uma presença de Ogum, Oxóssi, lá [indicando com dedo o exterior]. Aqui eu sinto que ainda há uma dificuldade. Porque lá, eles [os estrangeiros] trabalham com outras ideias, como não faz parte da cultura deles, então estão mais abertos. E aqui como faz parte da cultura ainda tem muito preconceito. É muito difícil quebrar isso. Eu tento, eu estou tentando. Temos muitos problemas no Brasil, preconceito em conhecer,

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em se aproximar. Meu grande desafio é desenvolver o meu trabalho, minha linguagem, aqui. As pessoas não querem estudar sua cultura e a linguagem dessa forma. Há ainda muito preconceito, daquele que não tem o candomblé como religião, que está na igreja protestante, por exemplo, não quer nem ouvir o nome do orixá, muito menos utilizar o movimento. E quando se fala o nome do orixá, então, logo dizem “está amarrado, está amarrado”, não querem nem ouvir o nome [risos]. Mas são negros. [silêncio]. São negros. E estão negando sua própria cultura, porque não precisa estar dentro da religião para ter conhecimento profundo sobre isso, sobre as influências, sobre a relação que tem os orixás com os elementos da natureza. É muito rico, porque a natureza está no mundo, e os orixás são energias, os orixás são a natureza. Os orixás não estão somente na Bahia, no Brasil ou na África. Os orixás estão no mundo, porque eles são a natureza. Quando você começa a trabalhar com a natureza, levando a energia dos deuses, as pessoas começam então a criar uma identificação muito grande. Há pessoas que choram. Choram de emoção, sentem, por exemplo, oxum e começam a se descobrir. Começam a ter uma relação muito grande com a água, com a terra, com o ar. Olha onde estão indo os orixás! O que os orixás estão fazendo lá do outro lado do mundo. Olha que força tem! Mas quando chega aqui não é bem dessa forma. É assim, como já foi dito, aqui as pessoas falam: “é religião”. Mas isso também aconteceu há muitos e muitos anos. E por isso muitas coisas se perderam, foram acabando. Porque também as grandes babalorixás e ialorixás foram muito massacradas na época, sofreram muito, porque o candomblé era muito perseguido. E eles guardavam tudo isso com muito segredo e morreram com todo o segredo. Hoje não podemos guardar tanto assim, temos que ter outra visão

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para valorizar tudo isso que também é segredo ou tudo isso que é sagrado. Temos que ter outra visão para valorizar, senão se perde. Ou então continuamos sem identidade? Não. Eu quero buscar ainda mais forte a nossa identidade. Ter uma forma de discutir sobre a nossa identidade cultural em todo lugar do mundo para que seja visto também como valores. O Brasil não pode apenas ser visto como o samba de roda, a capoeira e mulatas. Não, não é isso. A nossa religião também tem uma arte que pode ser discutida. Tanto que você vê a música sendo cantada por Carlinhos Brown, e faz muito sucesso, e é música de candomblé. Não é? Então, os antropólogos também escrevem sobre isso, como o Pierre Verger fez muitos livros comparando a África e o Brasil. Tudo sobre o candomblé está aí, quem quiser abrir um terreiro só com livros ou internet, pode abrir. [risos]. Mas, eu acho importante nós buscarmos estes tipos de valores. Eu fico feliz, por exemplo, quando tem alguém como você que está interessada em desenvolver um trabalho, como há outros também que me procuram. Eu me deixo muito disponível para contribuir e ajudar nesse grande objetivo de termos uma grande família, a família de pensadores, os quais estão ali pensando, estudando, criando novos objetivos, pensamentos, conhecimentos, pensando outras estruturas. É uma luta. Você vê todo começo de ano eu faço um Seminário, de um mês, inicia em janeiro e termina em fevereiro lá em Salvador. Vêm pessoas de todos os lugares do mundo, mas brasileiros vem cinco. Às vezes um de Minas [Gerais], um de São Paulo outro do Rio [de Janeiro]. E de Salvador? Nenhum. Mas acontece lá em Salvador. Em Salvador, ás vezes aparece os ex-alunos, ou então, eu chamo e dou uma bolsa para vir estudar. Porque é muito triste ter quarenta pessoas e de repente somente cinco brasileiros, e da Bahia nenhum. Então você vê que

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não tem muito interesse. Todos ali [Salvador] já se acham a mãe do santo, o pai do santo, a tia do santo, todo mundo é dono do santo, e de quem é o santo então? [risos]. Todo mundo se acha dono do orixá, cheio de poderes, então fica difícil quebrar essa corrente. Ás vezes eu penso que o Brasil, ou especificamente a Bahia, perdeu toda uma referência, porque não se sabe o que se está fazendo. E isso para mim, me dá a maior agonia. Entende? Porque quando estávamos lá na Bahia, nós agitávamos tudo. É como eu falei antes, pegava a dança clássica e a dança dos orixás, estava sempre buscando novidades, algo diferente. E ainda tinha os alunos, que eram multiplicadores. Depois, parou. Agora está todo mundo fora [fala dos professores, mestres e outros companheiros que também saíram de Salvador para fazer trabalhos fora do Brasil]. Então, agora virou algo muito comercial. Ás vezes se faz dança de orixá para ganhar dinheiro de turista, e fica lá ensinando turista a dançar o orixá com cara e com bico, para quê? Então, quando você pergunta a este sujeito o porquê daquele movimento, não sabe responder. Sabe-se dançar o orixá, porque precisa ganhar dinheiro. É claro, o candomblé é uma escola, mas pare para falar de cada movimento, do significado, das energias. Quando essas pessoas com experiência, de candomblé, vêm para a minha aula, o que acontece? Elas ficam paradas, não conseguem se mexer. Porque estão cheio de vícios. Quando eu vejo, eu paro e pergunto: O que você está fazendo, me diz de onde veio este movimento? Como está sua mão? E começam a gaguejar e não sabem explicar nada. Então, iniciamos o trabalho com todas as noções das qualidades, dos movimentos e das intenções. É por isso que trabalhar aqui [no Brasil] para mim é diferente, voltando a sua pergunta. Porque aqui [no Brasil] as pessoas acham que já sabem.

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J.R.: Como você se vê agora depois de tanto tempo trabalhando com o Eugenio Barba? A.O: Amadureci muito. E até mesmo criou condições e possibilidade para eu chegar até o outro lado do mundo. Isso ajudou muito, mas também você tem que querer. Porque eu passei por situações muito difíceis, distante da minha família, distante cultura, distante de tudo para estar lá, porque era aquilo que eu acreditava, naquela linguagem. A língua não falava, inglês, francês e outras línguas, mas a linguagem sim. E isso era o mais interessante para mim, pois era o que eu queria estar ali. O que Eugenio [Barba] falava eu compreendia, e então comecei a trabalhar com outras visões, a leitura do movimento, das ações. Você tem que abrir mão de algumas coisas. Porque se eu estivesse lá com outros interesses, outras ambições, como talvez a de aprender uma língua, o dinamarquês ou inglês, enfim, talvez eu não tivesse tanta informação e conhecimento. Quem sabe teria a língua que todos têm, mas não teria a linguagem. E o que me interessava entre tudo era a linguagem, e me interessa até hoje a linguagem. É o que eu estou defendendo. E por isso ainda estou trabalhando com Barba. J.R.: Augusto, obrigada pelo tempo disposto, pela sua atenção e por ter permitido acontecer esta entrevista. Agradeço imensamente, pelo registro e pelas tuas contribuições.

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Sinopse na íntegra do espetáculo Orô de Otelo Orô de Otelo - Uma produção ISTA Lendo o texto Otelo de Shakespeare, o performer, um homem negro elegantemente vestido, se deixa levar pela história. O artista encena os principais personagens - Otelo , Desdêmona , Iago , de acordo com as palavras que são cantadas em “Otello" [ópera] de [Giuseppe] Verdi. O performer muda de um personagem para outro, construindo diálogos entre eles, mas também reagindo aos personagens que ele interpreta. A música ópera de Verdi é comentada, apoiada ou em contraponto ao ritmo tradicional dos tambores do Candomblé. O espetáculo (ou a performance) é baseado exclusivamente na codificação da dança dos orixás: todos os gestos, passos e movimentos originam-se das danças dos santos e deuses da religião Candomblé. Orô é uma palavra usada para indicar uma cerimônia. Nas performances de Orixás são diferentes manifestações das paixões humanas que animam os principais episódios do jogo. Os acontecimentos dramáticos evocados pela história de Otelo conduzem lentamente o performer para um Xirê. Durante o Xirê, em uma cerimônia de candomblé, os tambores cumprimentam e chamam os diferentes Orixás para que eles possam descer e montar o devoto que está dançando. A performance termina com uma avania, a dança final e ritmo saudação com a saída de todos os Orixás. Performer : Augusto Omolú Músico : Cleber Conceição da Paixão Diretor: Eugenio Barba Assistente de direção : Julia Varley Música: ritmos de tambores das tradicionais cerimônias

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do candomblé e fragmentos de uma gravação da ópera " Otello " de Giuseppe Verdi. Tradução minha do original em inglês, disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/multicultural-projects/or%C3%B4-de-otelo.aspx acesso em 25 de janeiro de 2014

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Espetáculos com o grupo Odin Teatret, apresento nas próximas páginas fotos dos espetáculos com participação de Augusto Omolú esteve. Esta classificação retirada da página oficial do grupo, disponível em http://www.odinteatret.dk/ com acesso 10 de janeiro de 2014.

1. Ode ao progresso (1997)

Esta foi a única foto encontrada com o artista em cena. Na foto Iben Nagel Rasmussen e Augusto Omolú contracenando. Título original: Ode to progress. Direção de Eugenio Barba. Fotografia de Estudio Blau. Imagem disponível em http://performatus.net/uma-carta-para-recordar/ com acesso em 10 de janeiro de 2014.

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2. As grandes cidades sob a lua (2003)

Na foto Augusto Omolú e os integrantes do Odin Teatret. Título original The Great Cities under the Moon. Direção de Eugenio Barba. Fotografia de Tony D’Urso. Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/current-performances/the-great-cities.aspx acesso em 10 de janeiro de 2014.

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3. O sonho de Andersen (2004)

Na foto Augusto Omolú e Torgeir Wethal. Título original: Andersen's Dream. Direção de Eugenio Barba. Fotografia de Jan Rüsz. Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/past-productions/andersen's-dream.aspx

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Na foto Augusto Omolú e Iben Nagel Rasmussen. Título original: Andersen's Dream. Direção de Eugenio Barba. Fotografia de Jan Rüsz. Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/past-productions/andersen's-dream.aspx

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4. Orô de Otelo (1994)

Nas fotos que seguem, estão em cena Augusto Omolú e os músicos ao fundo, tocando atabaque ao vivo. Direção Eugenio Barba. Fotografias de Giovanna Talá. Todas as fotos são do espetáculo Orô de Otelo e estão disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/multicultural-projects/or%C3%B4-de-otelo.aspx com acesso em de 10 de janeiro de 2014.

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5. Participação nas performances do Theatrum Mundi ou Multicultural Projects: Ur-Hamlet (2006)

Na foto Augusto Omolú, Ni Wayan Pia e Julia Varley. Direção de Eugenio Barba. Disponível em http://www.odinteatretarchives.com/close-up/ur-hamlet/images/scheda-image.php?id=53 acesso em 10 de janeiro de 2014

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O casamento de Medea (2008)

Foto do cartaz do espetáculo. Título original: The Marriage of Medea. Direção Eugenio Barba. Elenco: MEDEA: Ni Made Partini; JASON: Tage Larsen; CLOTHO: Julia Varley; DIONYSOS: Augusto Omolú; MEDEA'S FATHER: I Wayan Bawa; THE PRIEST: Cristina Wistari Formaggia. Disponível em http://www.odinteatret.dk/productions/multicultural-projects/the-marriage-of-medea.aspx acesso em 10 de janeiro de 2014

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Ego Faust (2000)

Performance criada para XII Sessão da ISTA. Acima foto de Augusto Omolú, capa do DVD, disponível para streaming em http://www.odinteatretarchives.com/streaming/video.php?id=65&id_lang=undefined acesso em 10 de janeiro de 2014

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A ilha de labirintos (1996) Performance feita em Maio de 1996 durante a ISTA, em Copenhague, Dinamarca. Título original: The Island of Labyrinths. Direção de Eugenio Barba. Não foi encontrado foto e/ou cartaz de divulgação. Há um vídeo disponível em http://www.odinteatretarchives.com/losarchivos/el-archivo-de-material-filmico/examples/video-the-island-of-labyrinths-2-in-copenaghen-1996 Quatro poemas para Sanjukta (1998) Performance feita em homenagem a dançarina do Odissi, Sanjukta Panigrahi. Título original: Four Poems for Sanjukta. Direção de Eugenio Barba. Não foi encontrado foto e/ou cartaz de divulgação. Há um vídeo disponível em http://www.odinteatretarchives.com/losarchivos/el-archivo-de-material-filmico/examples/video-four-poems-for-sanjukta-1998

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Material de divulgação do espetáculo As grandes cidades sob a lua, assistido dia 05 de maio de 2012, no Teatro SESC no centro histórico de Porto Alegre.

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Material de divulgação do Seminário da Dramaturgia da Dança dos Orixás, observação participante feita de 10 de janeiro a 05 de fevereiro de 2013. No mateial abaixo encontra-se escrito “Workshop”, entretanto, durante o período que estive em Salvador, tanto Augusto Omolú quanto os participantes referiam-se a Seminário, portanto, utilizei a segunda nomeclatura neste trabalho, já que na pesquisa de campo era assim que se referiam a esta experiência da dança dos orixás.

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Nota de falecimento de Augusto Omolú, publicada por Odin Teatret

Publicada em quatro idiomas: Dinamarquês, italiano, espanhol e inglês. Mesmo sendo o artista brasileiro, não foi encontrado na página oficial do grupo, nota de falecimento em português. Abaixo, segue na integra a nota publicada pelo grupo. Disponível em http://www.odinteatret.dk/news/augusto-omol%C3%BA-%281962---2013%29.aspx acessado dia agosto de 2013.

Augusto Omolú (1962 - 2013)

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Odin Teatret i sorg (Dinamarquês) Danser, koreograf og skuespiller, Augusto Omolú, kunstnerisk medarbejder på Odin Teatret i Holstebro siden 2002, blev i går stukket ihjel ved et brutalt røveri i sit hjem i Salvador, Brasilien. Omolú blev 50 år gammel. Augusto Omolú blev født i Salvador, staten Bahia i Brasilien, i 1962. Han voksede op i traditionen af den afro-brasilianske religion, Candomblé, hvor han fik status som ogan (ceremoniel assistent). Han begyndte at danse i 1976 med ensemblet Viva Bahia, ledet af Emília Biancardi. Efter at have studeret klassisk ballet og moderne dans indtrådte han i Casto AlvesBalletten i Salvador, hvor han fra 1982 var ansvarlig for den "afro-brasilianske teknik". 1983 -1985 skabte han kompagniet Chama, hvor han arbejdede både som danser og koreograf. Augusto Omolú blev i 1994 knyttet til ISTA - International School of Theatre Anthropology, ledet af Odin Teatrets Eugenio Barba. I 2002 begyndte han at arbejde som skuespiller på Odin Teatret og flyttede derfor til Holstebro. I sin ansættelse på Odin Teatret har han, ud over at medvirke i flere af teatrets forestillinger, organiseret kurser i orixá danseteknikker (baseret på dansemønstre fra Candomblé-religionen) for danse- og teaterstuderende verden over og samtidigt skabt en række koreografier for ballet- og moderne dansekompagnier i Danmark, Brasilien og Italien. Hans forestilling, Orô de Otelo, instrueret af Eugenio Barba, forener erfaringer fra Candomblé-traditionen og teaterteknikker fra Odin Teatret og ISTA. Augusto Omolú medvirkede i følgende Odin Teatret-forestillinger: Ode til fremskridtet,De store byer under månen og Andersens drøm. I ISTA-sammenhæng optrådte han med Orô de Otelo og var med i Theatrum Mundi-forestillingerne Medeas bryllup, Ur-Hamlet, Fire digte til Sanjukta, Ego FaustsamtLabyrinternes ø. I Holstebro blev Augusto Omolú en meget eftertragtet leder af kurser i dans i forskellige, lokale miljøer. Også som gæstelærer på Balletskolen blev han højt værdsat af både elever og personale. Augusto Omolú bliver begravet i sin hjemby, Salvador, tirsdag den 4. juni 2013. ... Odin Teatret in mourning (Inglês) Dancer, choreographer and actor, Augusto Omolú, artistic collaborator of Odin Teatret, Holstebro since 2002, was stabbed to death in a violent robbery at his home in Salvador, Brazil, yesterday.

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Omolú was 50 years old. Born in Salvador, in the state of Bahia, Brazil, in 1962, Augusto Omolú grew up with the Afro-Brazilian religion, Candomblé, where he was ogan (ceremonial assistant). He began as a dancer in 1976 with the ensemble Viva Bahia, led by Emília Biancardi. After having studied classical ballet and modern dance, he joined theCastro Alves Ballet in Salvador, where he from 1982 was responsible for the "Afro-Brazilian technique" In 1983 he created Chama, a company in which he both worked as a dancer and choreographer until 1985. Augusto Omolú joined ISTA - International School of Theatre Anthropology, led by Eugenio Barba, Odin Teatret, in 1994. And in 2002 he began his work as an actor at Odin Teatret and subsequently moved to Holstebro. During his employment at Odin Teatret, Augusto not only participated in several of its performances, he also organised courses in the Orixá dance techniques (based on the traditional Candomblé-religion) for dance- and theatre students worldwide, and created a number of choreographies for ballet and modern dance companies in Denmark, Brazil and Italy. His performance, Orô de Otelo, directed by Eugenio Barba, unites experiences from the Candomblé-tradition and theatre techniques from Odin Teatret and ISTA. Augusto Omolú took part in the following Odin Teatret performances: Ode to Progress, The Great Cities under the Moon and Andersen's Dream. In connection with ISTA he performed Orô de Otelo and he was part of the Theatrum Mundi performances The Marriage of Medea, Ur-Hamlet, Four Poems for Sanjukta,Ego Faust as well as The Island of the Labyrinths. Augusto Omolú was a very popular director of dance courses in various local environments in and around Holstebro. Also as a guest teacher at the Ballet School was Augusto highly valued by both students and staff alike. Augusto Omolú will be buried in his home town, Salvador, Tuesday 4th June 2013. ... Odin Teatret de duelo (espanhol) El bailarín, coreógrafo y actor Augusto Omolú, actor del Odin Teatret en Holstebro desde el 2002, fue muerto ayer durante un robo brutal en su casa en Salvador, Brazil. Omolú tenía 50 años. Augusto nació en Salvador Bahía , Brazil, en 1962. Creció bajo la tradición religiosa afro-brasileña Candomblé, donde tenía el estatus de ogan (asistente de ceremonia). En 1976 comenzó a danzar en el ensamble Viva

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Bahia, dirigido por Emilia Biancardi. Luego de haber estudiado ballet clásico y moderno ingresó en el ballet Castro Alvesde Salvador, donde fue responsable de las técnicas afro-brasileñas desde 1982. Del 1983 al 1985 creó la compañía Chama, donde trabajó como bailarían y coreógrafo. Augusto Omolú se integró en 1994 a la ISTA - International School of Theatre Anthropology, dirigida por Eugenio Barba del Odin Teatret. En el 2002 comenzó a trabajar como actor del Odin Teatret, trasladándose por consecuencia a Holstebro. Durante su empleo en el Odin Teatret ha participado - además de los espectáculos - organizando cursos de técnica de danza de Orixá para bailarines y estudiantes de teatro de todo el mundo y, al mismo tiempo, creó una serie de coreografías para compañías de ballet y danza moderna en Dinamarca, Brazil e Italia. Su espectáculo Orô de Otelo, dirigido por Eugenio Barba, reúne la experiencia de la tradición Candomblé y la técnica teatral del Odin Teatret y la ISTA. Augusto Omolú participó de los siguientes espectáculos del Odin Teatret: Oda al progreso, Las grandes ciudades bajo la luna y El sueño de Andersen. En Holstebro Augusto Omolú era muy apreciado para dirigir cursos de danza en diferentes ambientes locales. También el personal y alumnos de la Escuela de Ballet de Holstebro valoraban enormemente su aporte como maestro externo. El funeral de Augusto Omolú se realizará en su ciudad natal, Salvador, el martes 4 de junio del 2013. ... Odin Teatret in lutto (italiano) Augusto Omolú, ballerino, coreografo e attore, collaboratore fisso dell'Odin Teatret dal 2002, é stato pugnalato a morte durante una rapina nella sua casa il 2 giugno a Salvador, Brasile. Augusto Omolú aveva 50 anni. Nato a Salvador, nello stato di Bahia in Brasile nel 1962, Augusto Omolú é cresciuto nell'ambito della religione Afro-Brasiliana del Candomblé, diventando un ogan (un assistente alle cerimonie). Iniziò come ballerino nel 1976 con l'ensemble Viva Bahia, diretto da Emília Biancardi. Dopo aver concluso gli studi come ballerino di danza classica e moderna, si unì al Castro Alves Ballet a Salvador, dove, fin dal 1982 fu insegnante responsabile per la tecnica Afro-Braziliana. Nel 1983 creò Chama, una compagnia nella quale lavorò sia come ballerino che come coreografo fino al 1985. Augusto Omolú si unì come maestro all'ISTA - International School of Theatre Anthropology, diretta da Eugenio Barba, Odin Teatret, nel

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1994. Nel 2002 iniziò a lavorare come attore all'Odin Teatret, trasferendosi a Holstebro. Durante i suoi anni con l'Odin Teatret, Augusto ha partecipato a numerosi spettacoli, e organizzato seminari sulle tecniche della danza degli Orixá (le cui radici si fondano nella religione del Candomblé) per ballerini e attori in tutto il mondo. Ha creato, inoltre, numerose coreografie per compagnie di danza classica e moderna in Brasile, Danimarca e Italia. Il suo spettacolo, Orô de Otelo, con la regia di Eugenio Barba, unisce l'esperienza della tradizione del Candomblé alle tecniche teatrali dell'Odin Teatret e dell'ISTA. Augusto Omolú ha preso parte nei seguenti spettacoli dell'Odin Teatret: Ode al progresso, Le grandi città sotto la luna e Il sogno di Andersen. In connessione con l'ISTA creò fu il protagonista di Orô de Otelo (Cerimonia per Otello) e prese parte agli spettacoli del Theatrum Mundi: Il matrimonio di Medea, Ur-Hamlet, Quattro poesie per Sanjukta, Ego Faust e L'isola dei labirinti. Augusto Omolú era molto conosciuto nell'ambiente della danza. Le sue capacità di ballerino e coreografo erano apprezzate sia dagli studenti che dallo staff della Scuola di Balletto di Holstebro, con la quale collaborava regolarmente in qualità di pedagogo ospite. Augusto Omolú sarà seppellito nella sua città natale, Salvador, il 4 giugno 2013.