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No presente artigo procuraremos reflectir so- bre a influência que as variáveis de natureza so- cial exercem sobre o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem. Assim, iremos apresentar al- guns trabalhos que colocaram em evidência os benefícios que os sujeitos retiram das situações de interacção social, sustentando as explicações dos resultados nalgumas concepções teóricas que explicam a construção do conhecimento pe- lo recurso a modelos ternários do desenvolvi- mento cognitivo (sujeito – outro – objecto). Estas concepções defendem a origem social da inteligência, colocando a tónica nos processos sócio-cognitivos do seu desenvolvimento (Bros- sard, 1995; Gilly, 1995; Maffiolo, 1993). Nesta abordagem do desenvolvimento cogni- tivo e da aprendizagem enquadramos os traba- lhos que se podem reunir sob a designação de Psicologia Social do Desenvolvimento e que procuram operacionalizar o modo como os facto- res sócio-culturais intervêm e influenciam o de- senvolvimento cognitivo. Esta abordagem é fortemente influenciada pela perspectiva vigotskiana do desenvolvimento e da aprendizagem, na qual a maioria das inves- tigações procuram apoio para explicar o modo como os factores sócio-culturais intervêm no de- senvolvimento (Blaye, 1988, 1989; Carugati & Mugny, 1985; Gilly, 1988, 1989a, 1989b; Gilly, Fraisse, & Roux, 1988; Mata, 1991; Mugny, 1985; Peixoto, 1993; Peixoto & Menéres, 1997; Perret-Clermont, 1978). De acordo com Vygotsky (1991) o desenvol- vimento cognitivo consiste, basicamente, na apropriação, por parte do sujeito, do conheci- mento construído ao longo de gerações por uma determinada cultura. Neste contexto, assumem particular relevância as interacções que a criança estabelece com os familiares, amigos, professo- res, etc., pois é através dessas interacções que lhe é possibilitado o acesso aos meios necessá- rios ao desenvolvimento cognitivo. A importância atribuída às interacções sociais é claramente expressa na lei genética do desen- volvimento cultural, na qual Vygotsky (1991) afirma que as funções mentais superiores surgem primeiro no plano das relações inter-individuais (plano inter-psicológico) e só depois no plano 9 Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 9-17 Interacções sociais, desenvolvimento e aprendizagem: O papel do estatuto do par e da mediação semiótica FRANCISCO PEIXOTO (*) VERA MONTEIRO (*) (*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Mem- bros da UIPCDE.
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Nov 28, 2018

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No presente artigo procuraremos reflectir so-bre a influência que as variáveis de natureza so-cial exercem sobre o desenvolvimento cognitivoe a aprendizagem. Assim, iremos apresentar al-guns trabalhos que colocaram em evidência osbenefícios que os sujeitos retiram das situaçõesde interacção social, sustentando as explicaçõesdos resultados nalgumas concepções teóricasque explicam a construção do conhecimento pe-lo recurso a modelos ternários do desenvolvi-mento cognitivo (sujeito – outro – objecto).Estas concepções defendem a origem social dainteligência, colocando a tónica nos processossócio-cognitivos do seu desenvolvimento (Bros-sard, 1995; Gilly, 1995; Maffiolo, 1993).

Nesta abordagem do desenvolvimento cogni-tivo e da aprendizagem enquadramos os traba-lhos que se podem reunir sob a designação dePsicologia Social do Desenvolvimento e queprocuram operacionalizar o modo como os facto-res sócio-culturais intervêm e influenciam o de-senvolvimento cognitivo.

Esta abordagem é fortemente influenciadapela perspectiva vigotskiana do desenvolvimentoe da aprendizagem, na qual a maioria das inves-tigações procuram apoio para explicar o modocomo os factores sócio-culturais intervêm no de-senvolvimento (Blaye, 1988, 1989; Carugati &Mugny, 1985; Gilly, 1988, 1989a, 1989b; Gilly,Fraisse, & Roux, 1988; Mata, 1991; Mugny,1985; Peixoto, 1993; Peixoto & Menéres, 1997;Perret-Clermont, 1978).

De acordo com Vygotsky (1991) o desenvol-vimento cognitivo consiste, basicamente, naapropriação, por parte do sujeito, do conheci-mento construído ao longo de gerações por umadeterminada cultura. Neste contexto, assumemparticular relevância as interacções que a criançaestabelece com os familiares, amigos, professo-res, etc., pois é através dessas interacções quelhe é possibilitado o acesso aos meios necessá-rios ao desenvolvimento cognitivo.

A importância atribuída às interacções sociaisé claramente expressa na lei genética do desen-volvimento cultural, na qual Vygotsky (1991)afirma que as funções mentais superiores surgemprimeiro no plano das relações inter-individuais(plano inter-psicológico) e só depois no plano

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Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 9-17

Interacções sociais, desenvolvimento eaprendizagem: O papel do estatuto dopar e da mediação semiótica

FRANCISCO PEIXOTO (*)VERA MONTEIRO (*)

(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Mem-bros da UIPCDE.

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intra-psicológico. Desta lei poderemos retirarcomo implicação principal a ideia de que a géne-se das estruturas e processos psicológicos apenasse torna possível através da interacção social,procedendo sempre do exterior (plano social)para o interior (plano psicológico). Esta posiçãonão significa, de modo algum, uma transforma-ção linear de processos externos em processosinternos, pois como refere Zinchenko (1985, p.105) «o máximo que obteríamos deste tipo decombinação seria um autómato estúpido». Noentanto, como refere Wertsch (1985, 1991), hámudanças (qualitativas e quantitativas) no planointer-individual que se reflectem em alteraçõesno plano intra-individual. A maior parte dessasmudanças são introduzidas por via da mediaçãosemiótica utilizada no decorrer das situaçõesinteractivas.

O PAPEL DA MEDIAÇÃO SEMIÓTICA NODECURSO DAS INTERACÇÕES SOCIAIS

Um dos principais instrumentos de mediaçãosemiótica é a linguagem, a qual possibilita àcriança, a partir do momento em que esta a con-segue manejar, uma forma radicalmente diferen-te de se relacionar com o mundo. Tal como refe-re Vygotsky (1991) a partir do momento em quea criança dispõe da linguagem a sua acção modi-fica-se profundamente. Attili (1988), na sequên-cia de alguns trabalhos de colaboradores de Vy-gotsky (1991), realizou algumas investigações,as quais permitiram verificar que a linguagemestrutura as actividades práticas da criança e quea importância da linguagem é directamente pro-porcional à complexidade da acção e à abstrac-ção das soluções.

A importância da mediação semiótica no seiodas interacções sociais é ilustrada por algunstrabalhos que temos desenvolvido no seio daUnidade de Psicologia Cognitiva do Desenvolvi-mento e da Educação, os quais têm permitidoevidenciar que um dos aspectos de que dependeo caracter benéfico das interacções se encontraassociado às verbalizações produzidas no de-curso da interacção. Assim, por exemplo, Peixo-to (1993, 1996a, 1996b) utilizando duas tarefasde classificação multiplicativa numa situaçãode interacção mãe-criança, com crianças de 4anos, evidencia diferenças nos mecanismos se-

mióticos, utilizados pela mãe no decurso da si-tuação de interacção, entre as duas tarefas. Am-bas as tarefas tinham por objectivo a classifica-ção de figuras num tabuleiro com quatro casas,utilizando, numa, figuras de animais e, na outra,figuras geométricas. A análise da dinâmica in-teractiva revelou a inexistência de diferençassignificativas entre as duas tarefas no que con-cerne à responsabilidade da regulação da acção,surgindo estas, no entanto, quando se analisava adinâmica interactiva do ponto de vista dos me-canismos semióticos utilizados. Assim, na tarefacom figuras de animais, as mães utilizavam ex-pressões de referência mais informativas, de-signando-as pelas duas características necessá-rias à correcta resolução da tarefa (forma e tama-nho) enquanto que na tarefa com figuras geomé-tricas predominou a utilização da indicação deuma única característica (forma ou tamanho).Estas diferenças verificadas no decurso da situa-ção interactiva repercutem-se no funcionamentointra-psicológico do sujeito, quando em situaçãode resolução individual, uma vez que as crian-ças, no pós-teste imediato, apresentam níveis deresolução superiores na tarefa de classificação defiguras de animais, comparativamente à mesmatarefa com figuras geométricas.

Um outro estudo (Costa, 1995, Peixoto, 1998)permitiu, igualmente, evidenciar a influênciados mecanismos semióticos utilizados pelo adul-to, no decurso das situações de interacção, sobreo funcionamento cognitivo individual. Utili-zando as mesmas tarefas de classificação atrásreferidas, o mesmo adulto interagiu com todas ascrianças. As indicações fornecidas ao adulto fo-ram que mantivesse um padrão de interacção omais homogéneo possível com todas elas, no querespeita à regulação da acção. Por outro lado,foi-lhe pedido que às crianças de um dos grupossinalizasse apenas uma das características da fi-gura e que às do outro grupo sinalizasse as duascaracterísticas necessárias à correcta resoluçãoda tarefa (forma e tamanho). Os resultados per-mitiram evidenciar que, no grupo em que oadulto assinalou as duas características emsimultâneo, existiu um maior número de criançasa resolver correctamente a tarefa comparativa-mente ao grupo em que apenas uma das caracte-rísticas era assinalada de cada vez (Peixoto,1998).

Monteiro (1995), no seu estudo sobre o efeito

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tutor em crianças do 4.º ano de escolaridade, emque alunos do 4.º ano ajudavam colegas do 3.ºano a consultar um dicionário de língua portu-guesa, verificou através da análise qualitativa dealguns aspectos dos diálogos estabelecidos entreos pares algumas diferenças entre tutores mais emenos bem sucedidos na resolução individual datarefa. Nenhuma dessas diferenças, contudo,mostrou uma relação entre a quantidade de ver-balizações e progressos individuais. É, no entan-to, no tipo de categorias verbais que utilizam nainteracção com o seu colega, que se distinguemos tutores que mais evoluiram dos que progredi-ram menos e, em particular, quando estes nãopodem agir directamente sobre a tarefa (Montei-ro, 1995; Subtil, 1997). Com efeito, os tutoresque mais evoluiram podem ser caracterizadoscomo sujeitos que começam por dar muitas ex-plicações e instruções aos seus tutorandos, aomesmo tempo que vão avaliando as suas acções.Fazem perguntas, apresentam sugestões, tentan-do obter respostas por parte dos seus alunos. As-sim, a pesquisa mostrou que os tutores que agi-ram recorrendo mais intensamente à regulaçãoindirecta, utilizando categorias verbais específi-cas, sob a forma de directivas abreviadas, foramos que realizaram progressos individuais maisacentuados. Podemos, deste modo, concluir queo tipo de regulação de acções do parceiro, con-cretizada através de trocas verbais, podem serconsideradas como factores críticos na origemdos progressos cognitivos individuais dos tuto-res.

Também alguns trabalhos incidindo sobre in-teracções entre pares mostram que o seu caracterbenéfico se encontra associado às verbalizaçõesproduzidas no seio da díade. O estudo de Ribeiro(1996), utilizando a resolução de uma tarefa emlinguagem LOGO no computador, com criançasdo primeiro ano de escolaridade, evidencia dife-renças na qualidade da informação verbal vei-culada pelos sujeitos durante a situação deinteracção. Assim, os sujeitos que evoluem apósa situação de interacção, apresentam maior fre-quência de comportamentos verbais de explica-ção, de verbalizações gerais, fornecimento de di-rectrizes e de verbalizações acompanhando aacção. Peixoto e Menéres (1997), num outro tra-balho, utilizando uma tarefa de classificaçãomultiplicativa, com crianças em idade pré-esco-lar constatam também a importância que a lin-

guagem assume na estruturação da representaçãoda tarefa. Neste caso, os sujeitos que evoluíramapresentavam frequências mais elevadas noscomportamentos de verbalização da acção, de or-ganização do trabalho, de indicações estratégicase expressões de referência mais informativasrelativamente aos seus congéneres que, na situa-ção de pós-teste, apresentavam realizações seme-lhantes às evidenciadas no pré-teste.

Estes resultados permitem evidenciar a impor-tância assumida pela linguagem no decurso dasinteracções sociais. Seja em situações de inter-acção adulto-criança, seja em situações de in-teracção entre pares (independentemente de se-rem simétricas ou assimétricas)1 os comporta-mentos verbais evidenciados nas díades cujossujeitos apresentam desempenhos superioresapós a situação de interacção, são comportamen-tos que possibilitam a partilha de informação,permitindo ao outro a consciencialização daexistência de outras soluções possíveis, podendoser o ponto de partida para uma reformulação darepresentação da tarefa e/ou dos procedimentosde resolução.

EFEITOS DO ESTATUTO DO PAR SOBRE ADINÂMICA INTERACTIVA E ASPERFORMANCES INDIVIDUAIS

A maior parte das situações de aprendizagemque se encontram mais frequentemente nos con-textos sociais da vida quotidiana, ocorrem, nor-malmente, entre um sujeito mais competentenuma determinada tarefa e um outro menoscompetente. Este tipo de situação interactiva,normalmente, designada como interacção assi-métrica, caracteriza-se pela diferença nos papéise no estatuto de cada um dos parceiros.

No entanto, uma relação deste tipo pode apre-sentar graus diferentes de assimetria, introduzi-dos por variáveis ligadas ao contexto social (es-tatuto do parceiro, representação do estatuto dooutro), à tarefa (seja o nível de desenvolvimentose se trata de tarefas desenvolvimentais, sejam as

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1 Consideram-se interacções simétricas aquelas emque o estatuto e os papéis dos sujeitos são idênticos eassimétricos aquelas que diferem nestes aspectos.

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competências necessárias para a tarefa, os «sa-ber-fazer» pré-requeridos por essas competên-cias, a representação do problema e os objectivosdos sujeitos implicados se se trata da resoluçãode um problema no sentido cognitivo do termo)e às relações entre os sujeitos implicados, ante-riores à situação (Winnykamen, 1990).

Podemos, assim, ter situações ligeiramenteassimétricas ou situações de grande assimetria.No primeiro caso os trabalhos desenvolvidos po-dem dividir-se em dois grandes grupos: os queincidem sobre situações em que explicitamentese pede a um sujeito que ajude outro na realiza-ção de uma tarefa – os trabalhos sobre situaçõesde tutorado – e aqueles em que os sujeitos sãocolocados numa situação de co-elaboração masem que existe assimetria introduzida por umadiferenciação, por exemplo, ao nível do estatutodos parceiros. As situações de grande assimetriacaracterizam, principalmente, as interacçõesadulto-criança nas quais, na maior parte das si-tuações, existe uma grande diferenciação tantoem termos de competências, como dos estatutose dos papéis.

As situações de interacção adulto-criança po-dem caracterizar-se como sendo situações detutela. A principal característica deste tipo de si-tuação interactiva é a assimetria quanto ao graude competência na tarefa, a qual determina ospapéis e os estatutos dos sujeitos implicados nainteracção. Temos, assim, um sujeito (o tutor)que deverá transmitir a um outro (o aprendiz) osmeios para resolver um determinado problema,com o qual é confrontado e para o qual não é ca-paz de encontrar a solução sozinho.

De acordo com Deleau, Gandon e Taburet(1993), nas situações de tutela, o adulto (ou parmais competente) deverá cumprir 3 funções: asensibilidade (responsiveness), o enquadramentoda actividade da criança e a regulação da acção.Por sensibilidade, pode-se entender a adaptaçãocontigente da acção do tutor, tendo em conta ascapacidades da criança e as exigências da tarefa.O enquadramento da actividade da criança, re-fere-se às intervenções de cariz metacognitivo,nas quais o tutor analisa as características da si-tuação. A regulação da acção prende-se com ocontrole exercido pelo tutor sobre a actividadedo aprendiz. Deleau et al. (1993) consideram quecada uma destas funções assume importância di-ferente, consoante o grau de autonomia do su-

jeito em relação à realização da tarefa, com asensibilidade e o controlo da acção a assumiremparticular relevância nas fases iniciais da apren-dizagem.

Relativamente às situações ligeiramente assi-métricas iremos distinguir entre as situações deco-elaboração assimétricas e as situações de tu-torado. Estes dois tipos de situações distinguem--se por, na primeira, apesar de existir assimetriaentre os sujeitos em interacção, ela ser parcial-mente elidida, pela instrução fornecida aos su-jeitos: colocarem-se de acordo e trabalharemem parceria para chegar a uma solução comum.Nas situações de tutorado é explicitamente ex-presso que um dos sujeitos irá ajudar o outro naresolução de uma determinada tarefa.

A grande maioria dos trabalhos que se têmpreocupado em analisar os benefícios que os su-jeitos retiram das situações de tutorado, têm inci-dido, sobretudo sobre a verificação da existênciade benefícios no domínio cognitivo. Embora àprimeira vista se possa pensar que os benefícioscognitivos de uma situação tutorial afectem pre-dominantemente o sujeito tutor, uma vez que équem protagoniza a iniciativa de aprender ensi-nando, os resultados de alguns estudos refutamesta ideia (Simões, 1993; Subtil, 1997). Comefeito, os tutorandos verdadeiramente implicadosna dinâmica interactiva estabelecida apresentam,benefícios reais em termos de aprendizagem. Éque a experiência tutorial é em si tão poderosaque desencadeia, naturalmente, efeitos ao níveldos comportamentos de todos os que nela parti-cipam. A relação tutorial, na medida em que im-plica uma atenção dirigida do tutor para o cole-ga, consente uma abertura aos processos infor-mais e propicia o desenvolvimento natural da cu-riosidade e da aprendizagem. Não raro, os tuto-randos afirmam, quando interrogados sobre oseu tutor, que ele «é diferente do professor. Temmais calma comigo e explica-me melhor» (Mon-teiro, 1995).

Aliás, essa atenção continuada, que o tutorconsagra ao seu tutorando, prolonga-se em efei-tos de reforço, desencadeados por um processode feedback em relação às tentativas das criançasnos domínios de saber-fazer, saber-dizer e saberpensar. Partindo de uma atenção cuidada, prolon-gada por um processo de reforço constantementeestimulador, o método tutorial desbloqueia acomunicação entre as crianças e promove tran-

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sacções que ao adulto escapam. É, por certo, aesta cumplicidade da comunicação, tecida peloà-vontade que as idades, as ferramentas mentaise os horizontes culturais compuseram, que aludeo enunciado de um tutorando ao afirmar relativa-mente ao seu tutor que «já o conheço e sinto-memais à-vontade com ele para dizer que não seifazer» (Monteiro, 1995).

De entre os benefícios cognitivos, decorrentesdas situações de tutorado, importa salientar, pelasua importância no processo da aprendizagem,os benefícios relativos às competências relacio-nadas com a aprendizagem da linguagem escritae da matemática. Tratando-se de matérias instru-mentais compreende-se que as estratégias deactuação, desencadeadas no decorrer das situa-ções de tutorado, produzam um impacto diferen-ciado, consoante a fase de aprendizagem em queo sujeito se encontra, traduzindo-se, consequen-temente, em progressos diversificados.

Assim, ao nível da aprendizagem da lingua-gem escrita, a utilização de situações de tutoradotem permitido superar problemas localizados, so-bretudo, na fase do tratamento da informação, anível oral ou escrito. A criança com dificuldadesde expressão e comunicação oral, por exemplo,encontra nas situações tutoriais uma ocasião,para desenvolver a sua capacidade de comunicarcom os outros, a propósito de um tema, ou pro-blema, transformando a sua postura passiva dereceptor, na atitude activa de emissor.

Simões (1993), num estudo sobre as relaçõesde tutela entre pares assimétricos na aprendiza-gem da leitura, trabalhou com 59 crianças, emque 31 pertenciam ao 2.º ano de escolaridade eas restantes 28 constituíam o grupo do 4.º ano. Oestudo consistiu num projecto de leitura a par,em que as díades formadas por um tutor do 4.ºano e um tutorando do 2.º ano se encontraramdiariamente durante 4 semanas. Os resultadosdeste estudo permitiram evidenciar os benefíciosque obtiveram as crianças na resolução de tare-fas relativas às diferentes dimensões da leituraavaliadas (correcção, fluência e compreensão).Neste contexto, os tutores em relação aos seuscolegas não tutores, mostraram progressos signi-ficativos, diferenciando-se de entre eles os quese tinham defrontado com maiores dificuldades.Os tutorandos por seu turno, apresentaramigualmente ganhos significativos pela razão deterem sido ajudados por um colega. A análise

efectuada permitiu ainda constatar a eficáciadas situações de tutorado no que respeita à con-solidação de aprendizagens menos conseguidasdurante o processo de instrução formal.

Em tarefas relacionadas com a aprendizagemda matemática, as situações de tutorado têm,igualmente, revelado ser uma poderosa fonte debenefícios para os sujeitos envolvidos. Porexemplo, Fitz-Gibbon (1990), ao avaliar osefeitos das situações de tutorado em tarefas en-volvendo aprendizagens na área da matemática,concluiu existirem benefícios cognitivos decor-rentes destas situações. Esta autora trabalhoucom uma amostra de alunos com idades, res-pectivamente, de 14 anos (tutores) e de 9 anos(tutorandos), que deviam resolver tarefas sobrefracções. Foi-lhes aplicado um programa de 3dias, em que a investigadora informou os tutorese não tutores sobre os objectivos do trabalho,utilizando para o efeito sessões de role-playing.A análise dos resultados da experimentação per-mitiu afirmar que eram incontestáveis os bene-fícios cognitivos que advinham da aplicação dassituações de tutorado. Fitz-Gibbon (1990), refereque os principais beneficiados das situações detutorado são os sujeitos que experimentaram di-ficuldades na resolução das tarefas matemáticas.

No entanto, apesar dos inegáveis benefíciosque se retiram das situações de tutorado, uma si-tuação de interacção entre um sujeito mais evo-luído e um aprendiz não é condição suficientepara garantir a existência de benefícios cogniti-vos individuais (Nicolet & Grossen, 1992).

Com efeito, os trabalhos que têm procuradoanalisar os efeitos da existência de assimetria emsituações de interacção de co-elaboração pare-cem comprovar que a existência de assimetriacondiciona tanto a forma como os sujeitos in-teragem como os benefícios que retiram da situa-ção de interacção. A análise das dinâmicas inter-activas de díades assimétricas mostram que ossujeitos funcionam de forma verdadeiramenteinteractiva, com a regulação da interacção acargo, sobretudo, do sujeito com estatuto supe-rior (Fraysse, 1991; Verba & Winnykamen,1992; Winnykamen, 1990). No entanto, apesarda prevalência do sujeito com estatuto superiorna regulação da interacção, é possível a coexis-tência de diferentes modos de organização inter-activa, no decorrer de uma mesma situação deinteracção assimétrica. A predominância de um

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determinado modo de regulação será determina-do pelo tipo de relações interpessoais entre ossujeitos envolvidos e por factores contextuais.

Peixoto e Menéres (1997) procuraram eviden-ciar de que modo o estatuto do par condiciona ofuncionamento sócio-cognitivo da díade e o de-sempenho individual. Assim, utilizando uma ta-refa de classificação multiplicativa, 36 sujeitosem idade pré-escolar foram distribuídos por trêscondições experimentais: Interacção Simétrica,Assimetria Induzida e Assimetria Reforçada.Na situação de Assimetria Reforçada, um dos su-jeitos em interacção, resolvera correctamente atarefa na situação de pré-teste e o outro apresen-tara uma estratégia de resolução de nível inter-médio, sendo comunicado a este último que oseu parceiro de interacção resolvia correctamen-te a tarefa. Na situação de Assimetria Induzidaambos os sujeitos apresentaram, no pré-teste,realizações de nível intermédio, sendo dito a umdeles que o seu par resolvia correctamente a tare-fa. Na condição de Interacção Simétrica, ambosos sujeitos apresentaram no pré-teste realizaçõesde nível intermédio e não foi fornecida qualquerinformação acerca das competências do par. Aconsigne fornecida aos sujeitos no início dainteracção foi que tinham uma tarefa pararesolver em conjunto e que teriam que se colocarde acordo sobre a forma de a resolver. A análiserealizada sobre as dinâmicas interactivas mos-trou que as díades em situação de resoluçãoassimétrica (assimetria induzida e assimetria re-forçada) apresentaram uma maior proporção decomportamentos passivos do que os seus congé-neres em situação de interacção simétrica. Rela-tivamente aos desempenhos individuais verifi-cou-se que 75% dos sujeitos do grupo em situa-ção de interacção simétrica evoluíram contra17% no grupo de assimetria induzida e nenhumno grupo de assimetria reforçada.

Estes resultados permitiram evidenciar que oestatuto do par, nas situações de co-resolução,afecta tanto o funcionamento sócio-cognitivoda díade como os desempenhos individuais nasituação de pós-teste.

O carácter simétrico ou assimétrico do estatu-to e papel do sujeito na interacção parece serentão um factor importante na problemática dasinteracções sociais. Subtil (1997), realizou umtrabalho em que um dos seus objectivos foi pre-cisamente verificar em que tipo se situação diá-

dica (simétrica ou assimétrica – situação tutorial)se verificava maior frequência de sujeitos combenefícios cognitivos individuais. A amostra doseu estudo era constituída por crianças em idadepré-escolar que em díade deveriam preencher umquadro de dupla entrada: Cores x Formas geo-métricas. Analisando os resultados obtidos, a au-tora verificou que foi maior a frequência decrianças que obtiveram benefícios cognitivosindividuais quando trabalhavam em díades assi-métricas, numa situação de tutorado. Estas día-des caracterizaram-se por uma maior implicaçãona interacção, traduzida numa maior frequênciade comportamentos interactivos e numa dinâmi-ca mais «viva». Os tutores das díades assimétri-cas exerceram uma função de controlo, a qualsegundo Gilly (1995) favorece uma gestão cons-ciente do desenvolvimento da actividade de reso-lução tendo as díades simétricas utilizado comfrequência muito menor esta função. Também nacategoria «reflexão sobre a acção» se verificouque, embora tenha sido utilizada pelos dois tiposde díades, a sua frequência de utilização foicerca de quatro vezes superior nas díades assi-métricas. Estes comportamentos podem desenca-dear mecanismos de desestabilização (Gilly,1995) que se tornam benéficos pela mudança deprocedimentos e de representações que provo-cam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo dos benefícios retirados das situa-ções de interacção diádicas levam-nos a conside-rar, em primeiro lugar, que as situações de reso-lução em interacção permitem a obtenção de ga-nhos cognitivos individuais sobre as situações deresolução individual. As interacções sociais apa-recem, assim, como sendo centrais ao desenvol-vimento cognitivo, no seio das quais o sujeitoacede aos instrumentos necessários à cognição.

Em segundo lugar gostaríamos de salientar aimportância que os mecanismos semióticos utili-zados no decurso das situações interactivas, no-meadamente a linguagem, assumem para a exis-tência de benefícios cognitivos decorrentes des-sas situações. Como vimos, na maioria dos tra-balhos apresentados os benefícios verificadosencontram-se associados a uma utilização quali-tativamente diferente da linguagem. Deste modo,

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parece-nos lícito concluir que comportamentosverbais de explicação, indicações estratégicas ede reflexão sobre a acção permitem o desenca-dear de reformulações da representação da tarefae/ou dos procedimentos de resolução, isto é,permitem a ocorrência de um dos mecanismosessenciais ao progresso cognitivo: a desestabili-zação (Gilly, 1988, 1989a, 1989b, 1995).

Por outro lado, estes mesmos comportamentospodem ajudar a consolidar os conhecimentos re-cém adquiridos. A este propósito parece-nos in-teressante evidenciar a analogia entre o compor-tamento verbal de reflexão sobre a acção apre-sentado pelos sujeitos que retiram benefícioscognitivos das situações interactivas e a funçãoatribuída à linguagem egocêntrica por Vygotsky(1979, 1991). De acordo com este autor, a lin-guagem egocêntrica seria o elo de ligação entre alinguagem exterior (com uma função, predomi-nantemente, comunicativa) e a linguagem inte-rior, a qual possuiria uma função, essencial-mente, planificadora. A linguagem egocêntricaseria, de acordo com Vygotsky (1979, 1991), umdos passos na internalização da linguagem en-quanto auxiliar do pensamento, altura em que alinguagem já estaria internalizada do ponto devista psíquico (uma vez que cumpre a mesmafunção da linguagem interna), embora o não es-tivesse ainda fisicamente. Deste modo, a verba-lização acompanhando a acção, ou antecipando--a ligeiramente, permite aos sujeitos irem conso-lidando a representação da tarefa e, concomitan-temente, possibilita ao seu parceiro a obtençãode informações, as quais poderão originar umaredefinição da situação e/ou dos procedimentosde resolução. A importância da verbalizaçãoacompanhando a acção, no processo de inter-nalização, é igualmente salientado por Gallimoree Tharp (1990) na operacionalização que fazemdo conceito de Zona de Desenvolvimento Poten-cial às situações de aprendizagem e na qual des-crevem uma fase intermédia em que a verbaliza-ção acompanha a acção.

Um último aspecto a ter em conta, prende-secom o estatuto dos sujeitos envolvidos, nassituações de interacção entre pares. Das pesqui-sas acerca dos benefícios cognitivos quedecorrem das situações tutoriais pode-se concluirque tanto o tutor como o aprendiz beneficiamdesta situação. Com efeito nos estudos realiza-dos verifica-se que as crianças envolvidas em si-

tuações tutoriais apresentam maiores benefícioscognitivos individuais que os seus colegas queresolveram as mesmas tarefas individualmente.Os tutores beneficiam ao reverem e ao consoli-darem aprendizagens anteriores, preenchem la-cunas e reformulam os seus conhecimentos emnovos quadros conceptuais. Por seu lado, os tu-torandos também beneficiam, pois ao participa-rem em situações tutoriais estes recebem umaatenção individualizada, é feita uma maior regu-lação da sua acção proporcionando-lhe mais be-nefícios cognitivos individuais.

Em termos pedagógicos, a situação tutorialpode provocar uma melhoria qualitativa noprocesso de ensino-aprendizagem, redistribuin-do, no contexto educativo de sala de aula, os pa-péis classicamente pertencentes a professores ealunos. Neste domínio a situação tutorial podecontribuir para que as tarefas de rotina noprocesso de aprendizagem sejam assumidas portutores, o que vai permitir a integração de crian-ças em esquemas de participação motivadora.Nesta perspectiva as situações tutoriais podemcontribuir para a reavaliação de um ensino indi-vidualizado, em que se tem em conta, na evolu-ção do desenvolvimento cognitivo dos alunos apluralidade e a diversidade dos graus de dificul-dade na consecução das tarefas.

No entanto, se a diferenciação no estatuto dossujeitos não constitui problema (podendo, inclu-sive, ser uma mais-valia) nas situações de tuto-rado, como mostra o trabalho de Subtil (1997), omesmo não acontece nas situações de co-elabo-ração. Como referem Peixoto e Menéres (1997),na aplicação destas situações à sala de aula, senão se tem em consideração o estatuto dos sujei-tos envolvidos corre-se o risco de não existiraprendizagem, uma vez que, provavelmente, namaioria das situações interactivas a submissãodo sujeito de estatuto académico inferior ao seupar de estatuto académico superior, será o padrãointeractivo predominante.

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RESUMO

Neste artigo apresentamos os resultados de algunstrabalhos que procuram esclarecer os mecanismos, queno seio das interacções sociais contribuem para o de-senvolvimento e aprendizagem. São discutidos algunsdos mecanismos envolvidos nas interacções entre pa-res e adulto-criança, bem como o papel do estatuto dossujeitos nas interacções entre pares.

Palavras-Chave: Interacções sociais, interacçõesentre pares, mediação semiótica.

ABSTRACT

In this paper we present the results of severalworks that search to clarify the role and the mecha-nisms by which the social interactions contribute to thedevelopment and learning. Some of the mechanismsinvolved in peer and adult-child interactions are dis-cussed as well as the role of subject status in peerinteraction.

Key words: Social interaction, peer interaction, se-miotic mediation.

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1. INTRODUÇÃO: CONTEXTUALIZANDO ASCOGNIÇÕES

A psicologia moderna, herdeira da psicologiafilosófica, que se centrava no estudo da alma, te-ve como uma das suas primeiras preocupações,enquanto ciência, o afastamento dessa entidadecomo objecto de estudo. Numa tentativa de ca-rimbar o passaporte de entrada na cidadela cien-tífica, os behaviouristas expulsaram da sua agen-da tudo o que não fosse visível e explícito, numaclara aproximação aos pressupostos positivistas.Com esta estratégia, a nossa disciplina garantiu asua aceitação na comunidade das ciências, pa-gando para isso o preço do esvaziamento de al-guns dos seus mais interessantes temas de estu-do.

Com a constatação desta perda, os própriosdiscípulos de Watson começaram a recuar nassuas posturas extremistas e, sob a influênciados ventos do positivismo lógico que sopram deViena, começam, ainda que timidamente, a ser

recuperadas algumas das noções «proibidas». Defacto, se as ciências de referência, como são a fí-sica e a química, se permitem formular realida-des invisíveis, como átomos e electrões, para de-pois confirmarem as suas teorias a partir de ex-periências científicas (Leahey, 1994), porquenão poderá a psicologia fazer o mesmo? A axio-matização formal e as definições operacionaisserviriam de bengala epistemológica nessa cami-nhada, e autores como Tolman e Hull tratam defazer as adaptações necessárias para a jovemciência. Tolman será um dos responsáveis da re-cuperação de noções como «intenção» e «cogni-ção», e aos poucos vai sendo levantado o embar-go aos territórios mentais invisiveis à observaçãodirecta.

Com o surgimento do paradigma cognitivista,são definitivamente assumidos como objecto deestudo os processos não directamente acessíveisda mente humana. As suas linhas de investigaçãoprincipais são sobejamente conhecidas, tendovindo a produzir uma impressionante quantidadede trabalhos a partir dos anos sessenta. Algumas,é verdade, respeitam muito pouco o impulso ori-ginal da «revolução cognitiva», já que, na opi-nião de Bruner (1997), o estudo do processamen-to de informação desviou a atenção das questõesda construção de significado que, segundo ele,deveriam ser o centro de interesse das várias dis-ciplinas que constituem as ciências cognitivas.

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Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 19-25

O Paradigma do Problema Absurdo:Contexto teórico e carácter heurístico (*)

ANTÓNIO JOSÉ GONZALEZ (**)

(*) A investigação feita pelo autor do artigo teve oapoio da Junta Nacional de Investigação Científica eTecnológica, através do Programa Praxis XXI.

(**) Instituto Superior de Psicologia Aplicada.Membro da Unidade de Investigação em PsicologiaCognitiva, do Desenvolvimento e da Educação.

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Neste artigo será analisada uma opção meto-dológica menos conhecida, mas que pode serinscrita na visão cognitiva proposta por Bruner.De facto, trata-se de procurar conhecer a utiliza-ção dos recursos cognitivos das crianças emidade escolar, aceitando e pesquisando as rela-ções que ela tem com o contexto social em queos actores estão envolvidos.

2. O PROBLEMA ABSURDO E SUAUTILIZAÇÃO EM INVESTIGAÇÃO

Antes de começar a exposição de várias inves-tigações, será importante referir que o intuitoprincipal deste artigo é o de apresentar propostasde diversas utilizações que a formulação geraldas pesquisas, que a seguir se apresenta, podeter, e não o de as expôr ao pormenor1. Em termoscronológicos, a primeira proposta que apresenta-mos foi feita pelo grupo do I.R.E.M. (lnstitut deRecherche sur l’Enseignement des Mathémati-ques), que se focou nas questões ligadas à didá-tica das matemáticas.

3. ANÁLISE CRÍTICA DO PROCESSO DEENSINO-APRENDIZAGEM

A equipa do I.R.E.M. de Grenoble, no ano de1980, propôs formulações absurdas de proble-mas de aritmética a crianças escolarizadas. Estasforam confrontadas com enunciados como «Nu-ma sala de aula existem 7 filas de 4 mesas. Queidade tem a professora?», ou «Num barco exis-tem 26 carneiros e 10 cabras. Qual a idade doCapitão?») (cit. in Schubauer-Leoni & Grossen,1993; Are, 1988; Martins & Neto, 1990; Gros-sen, 1988). Posteriormente, as crianças eramentrevistadas pelo experimentador, que lhes per-guntava «O que é que pensas deste problema?».Cerca de 75% das crianças resolveram o proble-ma, e apenas 10% delas puseram em causa a suaformulação. A estratégia de «resolução» mais

frequente consistia na utilização das operaçõesde adição e multiplicação sobre os algarismoscontidos no enunciado (passaremos a chamar--lhes «estratégias aritméticas»2).

A leitura que esta equipa fez da investigaçãoligou-se à questão do sentido – ou da sua ausên-cia – no ensino das matemáticas. De facto, o«juntar de alhos com bogalhos», para usar a ex-pressão que muitos teremos ouvido nas respecti-vas salas de aula, é um sintoma de que as crian-ças estarão a passar por cima do significado doque fazem. Todos aqueles que tenham um con-tacto mínimo com a realidade educativa sabemque se trata de um facto inegável, já que as me-canizações, as memorizações automáticas, ocu-pam por vezes lugar de destaque no processoeducativo. Aqui pode então residir uma primeirautilização deste paradigma de investigação: con-frontar-nos com a problemática da «aprendiza-gem significativa». Mas serão necessários algunscuidados para não cair em análises demasiadosimplistas.

O mais fácil – e frequente – é apontar o dedoaos professores, responsabilizando-os pela fugado sentido das aprendizagens nas salas de aula.Estes, por sua vez, defendem-se, passando aresponsabilidade para os seus alunos e as suasincapacidades inultrapassáveis. Mas o «mais fá-cil» é, na maior parte das vezes, reducionista e,neste caso, diriamos que contraproducente. Con-traproducente, porque quem se sente atacado,defende-se, e quem está ocupado a defender-senão tem condições para a mudança (ou, como di-riam os psicodramatistas, a defesa é incompatí-vel com o «campo relaxado», estado privilegiadopara a mudança). Reducionista, porque parte daideia de que toda a aprendizagem tem que estarligada ao sentido, ao significado, e que não seriadifícil promover uma constante «aprendizagemsignificativa».

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1 Num artigo recente, nesta mesma revista, apresen-tei com maior detalhe quer o enquadramento teóricoquer os resultados obtidos nas diversas investigações(Gonzalez, 1998).

2 Note-se que, nas investigações a que tivemosacesso, algumas das quais apresentaremos de seguida,surgiram formas não aritméticas de resolução, talcomo o juntar dos algarismos do enunciado (no pri-meiro enunciado apresentado acima, corresponderia,por exemplo, a juntar o 4 e o 7, originando a resposta«47»), ou o recorrer a raciocínios que nada tem a vercom os índices do enunciado (ex: «30, porque eu seique ela tem 30!»)

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Ora, a aprendizagem é um processo multifa-cetado, e a questão do significado é apenas umadas muitas variáveis nele envolvidas. Não há«aprendizagens associativas / automáticas» ou«aprendizagens significativas». Ambos os pro-cessos, ora recorrendo a automatismos ora àsconstruções activas por parte dos sujeitos, seconjugam nas aprendizagens escolares, e não épor anular os primeiros que se promoverão as se-gundas.

O livro de Pozo (1996) faz uma excelente sín-tese dessa multiplicidade de aspectos que afec-tam esse processo, tão determinante na especi-ficidade da nossa espécie, que é a aprendizagem.Os seus diferentes níveis, que o autor divide emquatro – conexão entre unidades de informação,aquisição e mudança de representações, uso daconsciência reflexiva e construção social do co-nhecimento (op. cit., pp. 105-106) –, e que se in-terrelacionam de várias formas, os novos e gi-gantescos desafios que a «sociedade da infor-mação» lhe coloca, as diferentes formas de a en-carar3, são apenas alguns dos elementos dessacomplexidade. Cruzando esta análise com aquestão, acima esboçada, da pressão constanteque sobre os docentes se exerce, exigindo quetodos os alunos aprendam todos os conteúdos detodos os programas, não podemos deixar de em-patizar de alguma forma com a interrogação, emtom irónico, de Pozo: «como é possível que aaprendizagem funcione tão frequentemente tãobem?»

Brincando com as palavras, esse processo«extremamente complexo» que é a aprendiza-gem pode gerar um «complexo extremo» emeducadores e educandos, e não valorizar isto éum dos erros mais fatais que pode cometer todoaquele que pretende estabelecer uma relação deajuda com os elementos da comunidade edu-cativa, tal como os psicólogos educacionais (ver,a este respeito, os escritos de Emilio Sanchez1995, 1998).

Depois de explorado, de forma não exaustiva,o primeiro nível de análise que nos permitem osresultados obtidos através da utilização do pro-blema absurdo, e após perceber que simplesmen-te constatar a ausência do significado no ensino(neste caso, das matemáticas) e atribuir respon-sabilidades a um ou vários actores do sistemaeducativo é, no mínimo, pobre e estrategicamen-te contraproducente, vejamos de que outras for-mas podemos utilizar os mesmos. Para tal, con-tinuemos a apoiar-nos nas investigações desen-volvidas.

3. «QUEM ESTÁ AÍ?»: ANALISANDO OSEFEITOS DOS CONTRATOS DE

COMUNICAÇÃO

«Quem está aí?». Esta é a frase com que abre«Hamlet». Os sentinelas, para saber como com-portar-se e o que dizer, tem como primeira preo-cupação a identificação do seu interlocutor. Estapreocupação é particularmente aguda nessa géli-da noite, pois circulam rumores de que foi avis-tada uma figura de estatuto desconcertante: opróprio Rei, em forma de espectro! Todo o seucomportamento deve moldar-se a essa eventualpossibilidade de que a figura máxima da autori-dade possa responder às suas palavras. Shakes-peare dá-nos o mote ideal para introduzir aquelaque foi a experiência que motivou as investiga-ções que alguns dos elementos desta Unidade deInvestigação desenvolveram.

De facto, Beatrice Are (1988) fez uma réplicada experiência de Grenoble, mas sob uma novaperspectiva. Será que as elevadas taxas de res-postas ao problema absurdo, e o facto de a esma-gadora maioria das crianças não pôr em causa oseu enunciado só pode ser interpretado comouma sintoma de deficiências nas suas aprendiza-gens? Ou será que há outros aspectos, nomeada-mente de carácter social, que estão a actuar, e en-tão estariamos perante uma ferramenta instru-mental de grande interesse para estudar o efeitodessas variáveis na construção e utilização dosconhecimentos? Será indiferente às crianças o«quem» coloca o problema, isto é, será que estasrespondem de forma semelhante a um professor,a um adulto não docente ou a um colega?

As noções teóricas que interessaram à autoragiravam à volta da ideia de que as relações entre

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3 Segundo o autor, o relativismo proposto por Eins-tein teria reflexo também no relativismo dos saberes,que torna completamente anacrónicas as formas sim-plesmente automáticas de aprendizagem e o ensino deconteúdos fechados, e que obriga a que ela seja enca-rada como um instrumento estratégico e flexível(«aprender a aprender»).

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actores sociais são mediadas por regras, de ca-rácter implícito, que oferecem uma base para oentendimento mútuo. A esse conjunto de regrasdeu-se o nome de «contrato de comunicação».Dentro dos vários aspectos em que esta noção sedesdobra, interessam-nos particularmente as queforam utilizadas por Are, que procurou ver osefeitos das regras do «Contrato Didáctico», do«Contrato Experimental» e do «Contrato Lúdi-co», que dizem respeito, respectivamente, às re-lações das crianças com o professor, o experi-mentador e os seus pares.

Cada um destes contratos de comunicaçãooriginou uma situação experimental. Na primeira(«Contrato Didáctico») o problema absurdo,com uma formulação semelhante à anteriormenteapresentada, era colocado às crianças pela pro-fessora, no contexto habitual da sala de aula. Nasegunda («Contrato Experimental»), era umadulto, não professor, que se apresentava comoalguém que estava interessado em percebercomo é que as crianças resolvem problemas, quepropunha o enunciado. Por último, na situaçãode «Contrato Lúdico», o problema era colocadopor um colega.

Os resultados confirmaram os obtidos pelaequipa do I.R.E.M., mas só na primeira das si-tuações. De facto, quando foi o professor ointerlocutor, apenas 10% dos alunos rejeitaram oproblema, e a maioria dos que o resolveram uti-lizou estratégias de tipo aritmético. Mas tudo foidiferente nas restantes situações. A taxa de re-jeições subiu para 28% na situação de «ContratoExperimental» e atingiu os 42% na de «ContratoLúdico», tendo as estratégias utilizadas sidoprogressivamente mais diversificadas.

Resultados semelhantes foram obtidos porMargarida Alves Martins e Fernanda Neto(1990), na réplica do estudo que fizeram emPortugal, e que constituiu a primeira de váriasinvestigações feitas no nosso país, coordenadapela primeira das autoras.

Façamos um ponto da situação, explorandomais uma das possibilidades de leitura sobre osprocessos de aprendizagem humana que esteparadigma nos dá. A análise dos resultados glo-bais das investigações sugere-nos, antes de mais,que uma leitura da aprendizagem apenas focadanos processos cognitivos e no mundo interior dosujeito é reducionista. Os saberes são saberesnum mundo social. As estratégias cognitivas

não habitam um vazio social, antes se actualizamnas inter-relações do sujeito com o mundo envol-vente. Dependendo do «quem me pergunta oquê?», as minhas respostas podem variar, mesmose o «quê» se mantiver constante. Diferentesactores e diferentes contextos sugerem respostasdiferentes. Assim, o «Quem vem lá?» do senti-nela do Hamlet tem implícito um «És Rei ou la-caio?», e em função da resposta as suas condutasapresentar-se-ão bastante diversas. Para bem de-le...

As investigações apontaram ainda outras pis-tas, das quais sublinharemos apenas algumas.Uma das variáveis controlados em várias das in-vestigações foi o estatuto académico dos alunos.Apesar de os professores, entrevistados porGiosué (cit. in Schubauer-Leoni & Grossen,1993, p. 458), esperarem que os seus bons alu-nos rejeitassem o problema absurdo sem muitasdúvidas, tal não foi o caso. De facto, isso sóaconteceu nas situações em que o enunciado eraapresentado pelo experimentador ou, com muitomais frequência, pelo colega. Podemos assim di-zer que uma das características dos «bons alu-nos» é a de serem mais sensíveis ao contrato, jáque, no caso de ser o professor a colocar o pro-blema, estes eram lestos na obtenção de uma res-posta «como mandam as regras», isto é, atravésde uma «adequadíssima» operação de aritmética,tal como o professor ensinou nas aulas. Às ve-zes, só quando o Rei não é Rei é que vai nú...

Outros estudos, feitos ainda no I.S.P.A., tenta-ram conhecer os efeitos da interacção das va-riáveis «contexto de apresentação» e «estatutoescolar» daquele que coloca o problema nasrespostas dos seus colegas (Ruas, 1996), bemcomo as diferenças entre os efeitos da apresen-tação do problema por um «bom aluno» e porum «mau aluno» (Caracóis, 1996).

Estes estudos podem assim ser inseridos na li-nha que se dedica ao estudo da construção e uti-lização social dos saberes. De seguida veremosmais uma «variação sobre o tema» do papel docontexto nos desempenhos cognitivos.

4. PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA:A FORÇA DO CONTRATO

Em 1997 apresentei, como dissertação doMestrado em Psicologia Educacional, uma in-

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vestigação na qual procurei uma nova utilizaçãodeste paradigma. Em vez de fazer variar o actorque apresentava o problema (professor, experi-mentados ou colega), mantive o professor nessepapel em ambas as condições experimentais eprocurei conhecer os efeitos de uma mudança doespaço fisico de resolução nas respostas.

Mantendo a mesma formulação geral que autilizada nas investigações anteriores4, tomei,num dos grupos, a situação de sala de aula aindamais formal, já que o problema foi apresentadoinserido numa ficha de avaliação de matemática.Esperava que esta situação de maior constrangi-mento tornasse ainda mais «obrigatórias» quer aaceitação e consequente resolução do problema,quer a opção por estratégias de tipo aritmético.De facto, isso confirmou-se, já que 94% dascrianças resolveu o problema e, entre, elas, ape-nas 12% usaram estratégias não aritméticas.

Na 2.ª situação experimental, as crianças ti-nham a oportunidade de se confrontar com oproblema proposto pelo professor fora do recintoda escola, já que o mesmo aparecia inserido nostrabalhos escolares («T.P.C.») que habitualmentelevavam para casa no fim-de-semana. Esperavaque esse afastamento em relação ao edifício es-colar levasse a uma diluição da força do Contra-to Didáctico. Foi com algum espanto que meconfrontei com os resultados: apesar de, nas en-trevistas, algumas crianças terem referido que ti-nham tido algumas dúvidas iniciais e que, comotal, tinham pedido auxílio aos pais ou educadores(muitos resolveram os trabalhos no A.T.L.), to-das elas, na segunda-feira seguinte, traziam oproblema resolvido, quase sempre através deuma resolução de tipo aritmético (94%).

Estes resultados permitem-nos ter uma ideiaacerca da potência dos efeitos do Contrato Di-dáctico. Assim, este parece transvasar as paredesda escola, e a sua força não se vê diminuida naausência da figura do professor. A partir do mo-mento em que é este o agente que coloca o pro-blema, toda a interpretação da situação se faz deacordo com as exigências implícitas do referido

contrato5. Mais ainda: ele parece ser partilhadopela comunidade educativa, já que os pais, emvárias situações de que tive testemunho no de-correr das entrevistas às crianças, apesar de algu-mas dúvidas que chegaram a ser colocadas à«qualidade» do enunciado do problema, acaba-vam por validá-lo e aceitar que, nos trabalhosque os filhos devolveram à professora, constasseque 8 mesas e 4 janelas se conjugam aritmetica-mente, resultando numa professora de 32 anos.

Esperamos que, nesta fase da leitura do artigo,o leitor ultrapasse já a tendência a adjectivar, deforma pouco lisonjeira, as capacidades inte-lectuais destes educadores. De facto, temos vistodados que nos permitem propôr que os saberesdevem ser situados, contextualizados, e estespais, mesmo que de uma forma inconsciente,preferem, em nome do percurso académico dosseus filhos, não insistir em explorar algo quecognitivamente é, no mínimo, suspeito, evitandoassim quebrar regras partilhadas pelas gerações,sobre a relação com a escola. «O professor sabeo que faz...», e pôr este em causa, por tudo e pornada, não é um bom augúrio para uma carreiraacadémica brilhante...

5. REFLEXÕES FINAIS: UM PARADIGMA DEMÚLTIPLOS POTENCIAIS

Na obra de Pirandello «Um, ninguém e cemmil», o personagem central é obrigado a rever-sepor um comentário quase fortuito da sua esposa,acerca de um aspecto dele próprio em que nuncatinha reparado. Apercebe-se de que, para cada

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4 Lembro que o enunciado utilizado foi o seguinte:«Numa sala de aula existem 8 mesas e 4 janelas.Quantos anos tem a professora?»

5 Para Bourdieu (in Schubauer-Leoni, 1986, p. 141),o contrato didáctico inclui termos tais como: o pro-fessor ensina e os alunos aprendem; o professor gereos tempos e os temas; o professor tem o direito decolocar questões, e esperar respostas por parte dosalunos; o professor tem o direito de avaliar os alunos;as questões colocadas pelo professor tem, pelo menos,uma resposta considerada correcta; nas respostas àsquestões, é suposto que se utilizem os saberes apren-didos nas aulas (por ex., as operações de adição, sub-tracção, multiplicação, divisão, etc., no caso de opera-ções de aritmética); a autoridade do professor («auto-ridade de função») não é para ser constantementeposta em causa, não havendo grandes alterações narelação professor-aluno em curtos espaços de tempo.

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pessoa que o olha, é um ser diferente, e toda aobra se desenrola seguindo a crise que estaconsciência provoca nele. Com este artigo, pro-curei contribuir para que o problema absurdofosse olhado sob várias perspectivas e a partir dehipóteses diferentes. Exploramos algumas dasanálises que a manipulação de um problema«sem sentido» tem permitido. Esta análise assu-me-se como não exaustiva, e propõe-se como ca-talizadora de outras potenciais formas de utiliza-ção do paradigma de investigação apresentado.Muitas outras formulações de problemas absur-dos foram feitas, algumas das quais refiro emartigos anteriores, outros tipos de utilização en-saiados, outras conclusões sugeridas. Aqui se-guimos o percurso daquelas que mais se aproxi-mam das que foram desenvolvidas por elementosda Unidade de Investigação em PsicologiaCognitiva, de Desenvolvimento e da Educação,bem como das investigações orientadas por al-guns dos seus membros. Agradecemos quaisquersugestões e/ou propostas para continuar a explo-rar esta linha de estudos.

Pessoalmente, sinto que há ainda um enormepotencial neste paradigma de investigação. Ele é,aliás, uma boa metáfora à agenda cognitivista:através de uma formulação que «quebra o con-trato», o implícito, o invisível, o pressuposto, to-ma-se evidente. Alguns poderão considerar«absurdo» que um investigador faça perguntastão desconcertantes a crianças, e que queira cha-mar a isso ciência. É verdade que obtive – feliz-mente – algumas respostas bastante inesperadasao meu questionar sobre a idade da professora.Uma menina, com os seus recém cumpridos 9anos, fez corar e engasgar-se o autor destas li-nhas, num misto de surpresa e tentativa de contera gargalhada, ao responder – à altura, dirão al-guns –, com voz inocente e ar angélico, que a so-lução do problema seria que a professora tinha, epasso a citar, «um ânus!». A partir daí, quandome perguntam o que aprendi com a minha inves-tigação, uma das minhas respostas, ao lembrar--me dessa menina, é a de que agora perceboporque me ensinaram, criança ainda (cá estáuma regra importante do nosso «contrato so-cial»...), a nunca perguntar a idade de uma se-nhora (hoje acrescento: especialmente, de umasenhora professora...). Mas, felizmente, conti-nuo, como investigador, a acreditar piamenteque, em ciência, não há perguntas proibidas...

REFERÊNCIAS

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RESUMO

Neste artigo, é feita uma exposição sucinta de algu-mas das possíveis utilizações que o paradigma do pro-blema absurdo, explorado por alguns dos elementos daUnidade de Investigação em Psicologia Cognitiva,do Desenvolvimento e da Aprendizagem, pode ter. Sãopropostas análises sobre a questão dos significados noprocesso de ensino-aprendizagem (tendo por base ainvestigação do I.R.E.M. de Grenoble), sobre osefeitos diferenciados de situações diversas de apresen-

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tação do problema (explorando as noções de «ContratoDidáctico», «Contrato Experimental» e «Contrato Lú-dico») (investigações de Are, Martins, & Neto, entreoutras) e ainda sobre a potência do «ContratoDidáctico» (Gonzalez).

Palavras-chave: Problema absurdo, cognição, con-texto, construção social dos saberes.

ABSTRACT

The author exposes some of the different ways of

using the absurd problem paradigm, some of wich we-re explored by members of the Investigation Unit onCognitive Psychology of Development and EducationPsychology. The main analysis are on the question ofthe meaning in the teaching-learning process, theeffects of different contexts in the use of knowledge,and the power of «Didactic Contract».

Key Words: Absurd problem, cognition, context,social construction of knowledge.

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1. INTRODUÇÃO

1.1. A Memória e as Práticas Sociais

Até há algum tempo atrás, considerava-seque as crianças pequenas tinham poucas capaci-dades de memória. Estranhamente, qualquer pai,mãe ou simplesmente, bom observador, deve terregistado a crença oposta. Do ponto de vista dapesquisa, a grande alteração surgiu quando a par-tir da década de 70 se deixou de olhar para amemória como um processo distinto e separadodos outros processos cognitivos mas antes, como

uma actividade cognitiva embebida nas tarefascognitivas e sociais (Hudson & Fivush, 1990).Esta nova tendência no estudo da memória e noseu suporte social, deu origem a um crescentenúmero de estudos em torno das representaçõessobre o conhecimento e a forma como ele estáorganizado, relacionando os assuntos da vidareal e o contexto em que a criança está (Mandler,1983).

Foi Vygotsky (1989) que sublinhou de formadecisiva a importância da actividade social comopromotora do desenvolvimento cognitivo. Nestaacepção, as funções psíquicas superiores, entreas quais a memória voluntária, são vividas ini-cialmente num plano inter-individual, nas inter-acções sociais e posteriormente, adquiridas inter-namente pelo sujeito, num plano intra-indivi-dual. Neste sentido, através das interacções so-ciais e de verdadeiras experiências com o mun-do, as crianças desenvolvem representações que

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Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 27-38

Efeitos do tipo de instrução/objectivona memorização e recordação

MARTA GUERREIRO (*)ISABEL MATTA (**)

Diz-me, eu esquecerei.Ensina-me, eu aprenderei.Envolve-me, eu lembrar-me-ei.

(Ditado Popular Chinês)

(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Mem-bro da UIPCDE. Email: [email protected]

(**) Instituto Superior de Psicologia Aplicada.Membro da UIPCDE.

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espelham o que conhecem, memorizam e recor-dam dele.

De acordo com Matta (1998), antes de um ra-ciocínio puramente abstracto, distanciado darealidade, existe uma forma de pensar organiza-da e sistemática que se apoia nas representaçõesgeneralizadas das experiências reais de vida.Existe assim, um sistema que se baseia no co-nhecimento dos acontecimentos reais, quotidia-nos, que funciona como organizador cognitivo,facilitando a progressiva descontextualizaçãodo pensamento.

Os acontecimentos reais e quotidianos sãomuito variados e as suas características poderãoinfluenciar as representações que as criançasconstroem, nomeadamente, a frequência comque ocorrem (Nelson, 1990), os afectos que sãogerados (Liwag & Stein, 1995), o papel que acriança desempenha, o número de acções que osconfiguram e a sua estrutura temporal e causal(Bauer & Wewerka, 1995; Fivush & Mandler,1985). Depois, essas representações podem re-flectir-se no que as crianças expõem e descrevemverbalmente (Bauer & Dow, 1994; Machado,1997) e no que efectivamente, memorizam erecordam.

Neste sentido, as crianças pequenas não têmuma memória deficiente, existem sim, algumasdiferenças quantitativas e qualitativas – as crian-ças mais velhas lembram-se de mais elementos eas mais pequenas parecem ser mais dependentesde esquemas, de pistas e de orientações especí-ficas (Hudson & Fivush, 1990; Nelson, 1990;Newcombe, Drummey, & Lie, 1995; Salmon,Bidrose, & Pipe, 1995).

Nelson (1981) apresenta o Script como o pri-meiro modelo de representação dos aconteci-mentos reais, vividos pelas crianças. Trata-se deum nível básico de representação do conheci-mento que tem uma natureza concreta. A autoraexplicita:

O Script é uma representação geral de umacontecimento que deriva e se aplica noscontextos sociais. É basicamente uma se-quência de acções relacionadas com umcontexto espacio-temporal particular, or-ganizada em torno de um objectivo. (p.181)

Por sua vez, no script especificam-se papéis e

propriedades e definem-se acções obrigatórias eopcionais.

De acordo com esta sugestão, a criança vai vi-venciando os acontecimentos e com base noque usualmente acontece, constrói uma determi-nada sequência esperada (Script). As experiên-cias reais e conhecidas são generalizadas atravésdos Scripts. Uma vez formados, passam a servirde guias ou organizadores sociais e cognitivos,orientando as pessoas no que fazer em situaçõesfamiliares, possibilitando acções e comporta-mentos adequados, assim como ajudando a pro-cessar informações pertinentes e a resolver pro-blemas.

1.2. A Memória e a sua funcionalidade

O papel que o adulto desempenha junto dacriança, na promoção da aplicação de estratégiasapropriadas de memorização e recordação é in-discutível. A par dele, também se tem enfatizadoa relação estreita entre as capacidades mnésicas,a funcionalidade e o contexto de utilização, va-riáveis que implicam não só a forma de repre-sentação do problema, como o objectivo da suaresolução.

Na vida quotidiana, utilizamos a memóriapara alcançar determinados objectivos em vez deser ela o fim em si mesmo da actividade. Assim,memorizamos uma lista de compras para irmos aum supermercado, ou por exemplo, uma moradae todas as respectivas indicações para irmos auma festa de anos.

É a escola, como instituição formal, que apa-rece relacionada com a situação de se ter quememorizar algo para alguém poder ver e avaliar(Rogoff & Mistry, 1990). Para além disso, o pro-cesso de escolarização leva a criança a exercitaras suas capacidades mnésicas e a saber quando ecomo utilizar as melhores estratégias para me-morizar e recordar (Ratner & Schell, 1987). Nostestes de memória é também uma postura des-contextualizada que é usualmente utilizada.

Rogoff e Mistry (1990), num enquadramentoem que consideram as performances individuaisem actividades que integram o que é recordado,o propósito da recordação e o seu contexto so-cial, constataram que a recordação livre dascrianças em idade pré-escolar, é influenciada pe-lo seu envolvimento nas tarefas. Este envolvi-mento é conseguido através da atribuição de um

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propósito prático à tarefa. Quando as tarefas dememória são inseridas num contexto significa-tivo, as pessoas usam o seu conhecimento sobreas relações usuais entre os objectos para memo-rizarem e recordarem. Quando por outro lado,essas tarefas são desprovidas de um sentido prá-tico, constituídas por peças de informação semrelação, podem ser melhor recordadas se os su-jeitos adoptarem estratégias para coordenar oselementos. Essas estratégias diferem e podemenvolver por exemplo, a repetição, a organizaçãoatravés de uma categorização e ligação semân-tica dos itens, ou ainda, a elaboração de cone-xões entre os itens (uma criança pequena terámais dificuldade em utilizar estas estratégias doque uma criança mais velha) (Rogoff & Mistry,1990).

Wadell & Rogoff (1981, 1987), realizaram vá-rios estudos, comparando a memória de adultospara informação espacial em duas situações dis-tintas: informação contextualmente organizada(condição que utilizava um panorama de umavila com os elementos integrados como casas,montanhas, etc.), e descontextualizada (condiçãoque utilizava os mesmos elementos que o pano-rama mas colocados num conjunto de cubículosindividuais). Na comparação entre as duas situa-ções, constataram resultados superiores na 1.ª si-tuação: os adultos mais velhos tinham mais di-ficuldade em relembrar informação descontex-tualizada, sem relação, e tinham boas competên-cias quando essa informação era integrada numcontexto significativo.

No domínio verbal, Istomina (citada por Ro-goff & Mistry, 1990) veio depositar de formamarcante, a atenção dos pesquisadores no papelque um propósito significativo desempenha namemorização/recordação. Assim, de acordo comesta autora, a recordação é melhorada quandopara a criança, recordar os itens, é essencial parauma actividade significativa (por exemplo, umasituação de um jogo de compras numa loja).Contrastando com estes resultados, Weisser eParis (citados por Rogoff & Mistry, 1990) en-contraram uma performance mais fraca nacondição de jogo que implicava memorizar/re-cordar itens para serem comprados numa loja.Mais tarde, os resultados de um estudo de Ro-goff e Mistry (1990) a partir da comparação damemorização/recordação de um conjunto deitens entre a situação em que as crianças tinham

de pedi-los a um empregado de um supermerca-do, de forma a constituirem o seu saco de almo-ço e a situação de terem que referi-los a um ex-perimentador, vieram confirmar o estudo de Isto-mina e reforçar a ideia de que a presença de umobjectivo prático e significativo na memoriza-ção/recordação facilita estes processos.

Como ponto comum a estes estudos, salienta--se a análise das performances individuais dememória, ligadas funcionalmente ao contexto dasua utilização.

O presente estudo, pretendeu avaliar os efeitosda variação da funcionalidade da memorização erecordação nas performances individuais dascrianças em idade escolar. Para tal, utilizou-seuma lista de elementos (itens), tendo-se variadoa funcionalidade e o propósito da actividadeatravés das instruções que foram dadas pelo ex-perimentador. Comparou-se a memorização/re-cordação dos itens para realizar um piqueniquecom a memorização/recordação dos itens paratransmiti-los ao experimentador. Procurou-seainda analisar os conteúdos das recordações e omodo como as crianças recordaram nestas duassituações.

2. QUESTÕES E HIPÓTESES

À luz das posições teóricas e explicações quese construiram relacionadas com: a) as práticassociais e a memória, nomeadamente a perspecti-va vygotskiana, os trabalhos de Hudson e Fivush(1990) e Nelson (1981); b) os desempenhosmnésicos das crianças e os factores que osafectam, nomeadamente a funcionalidade e opropósito da memorização/recordação abordadospor Rogoff e Mistry (1990) e Wadell e Rogoff(1981, 1987), pretendeu-se estabelecer um con-junto de comparações e de relações entre o tipode instrução/objectivo presente na tarefa de me-mória e os efeitos que se desenvolvem ao níveldas actividades mnésicas das crianças.

Solicitar a memorização de um determinadomaterial e a sua recordação a partir das instru-ções dadas, apoiando-nos nas produções verbaisdas crianças, requer algum cuidado na escolhados níveis etários com que se pretende trabalhar.É fulcral que as crianças compreendam a tarefa e

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o que o experimentador lhes solicita. Neste estu-do, escolheram-se as idades 6/7 anos, isto é 1.ºAno de escolaridade do Ensino Básico porque seconsiderou que nestes níveis etários as criançasjá possuem um nível linguístico e de conheci-mentos adequado às exigências da tarefa. Paraalém disso, considerou-se também, que elas játêm uma compreensão apropriada das instruções.

2.1. Tipo de instrução e o nível de memoriza-ção/recordação

A presença de um objectivo significativo,funcional e prático numa tarefa de memorização//recordação, remetendo a criança para um acon-tecimento real, permite o confronto do materialcom o conhecimento e a representação que acriança tem desse acontecimento, que umobjectivo não significativo e não funcional, nãopermite. Para além disso, atribuir à memorizaçãouma funcionalidade prática, servindo de instru-mento para alcançar um determinado objectivo,que não a memorização em si mesma, podetambém levar a criança a ficar internamentemotivada a lembrar os itens que compõem a lis-ta.

Destes vários pontos de vista, decorre umaprimeira questão e é extraída uma hipótese:

1.ª Questão – Será que o tipo de instrução da-da numa tarefa de memorização, variando-se afuncionalidade e o objectivo da actividade, teminfluência nos processos de Memorização/Recor-dação?

Hipótese – As crianças que recebem uma ins-trução com um objectivo funcional, prático esignificativo para a memorização de uma lista deitens (palavras), recordam um número superiorde palavras do que aquelas que recebem umainstrução sem um objectivo funcional, prático esignificativo.

2.2. Tipo de instrução e o modo como o ma-terial é recordado

O factor de existência ou inexistência de umobjectivo funcional, prático e significativo nainstrução para memorizar, permitiu-nos analisarnão só os níveis de memorização e recordação,mas também o modo como os sujeitos recordamnestas duas situações. Neste sentido, pareceu-nospertinente a formulação de uma segunda ques-tão, de índole exploratória:

2.ª Questão – Será que as crianças organizammais facilmente o material que é recordadoquando a tarefa é precedida de uma instruçãocom um objectivo prático, funcional e significa-tivo do que quando é precedida de uma instruçãosem um objectivo prático, funcional e significa-tivo?

3. METODOLOGIA

3.1. Amostra

Neste estudo participaram 64 crianças comuma média de 6 anos de idade. Foram seleccio-nadas de três escolas da região de Lisboa e fre-quentavam todas o 1.º ano de escolaridade doEnsino Básico. Do número de crianças de cadaescola, foram aleatoriamente seleccionadas me-tade para fazerem parte do grupo experimental emetade para para fazerem parte do grupo decontrolo. Desta forma, cada um dos grupos foiconstituido por 32 crianças, das escolas 1, 2, 3,respectivamente. A distribuição da amostra podeser visualizada no Quadro 1.

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QUADRO 1Resumo da distribuição dos sujeitos da amostra

Grupo Experimental Grupo de Controlo Total

Escola 1 11 11 22Escola 2 11 11 22Escola 3 10 10 20

Total 32 32 64

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3.2. Instrumento

A tarefa escolhida foi uma tarefa de memori-zação/recordação de uma lista de itens (palavras,substantivos concretos) apresentada em duas si-tuações: uma que designaremos por condiçãocom objectivo significativo (grupo experimen-tal), que consistia na memorização dos itens apartir de uma instrução com um objectivo prá-tico, funcional e significativo, onde a memoriza-ção serve para o alcance de outra actividade eoutra, que designaremos por condição semobjectivo significativo (grupo de controlo), idên-tica à primeira, mas com uma instrução sem umobjectivo prático e significativo, onde a memori-zação é um fim em si mesmo.

Nestas duas situações, a lista de itens apresen-tada era a mesma e era constituída por 12 pala-vras (distribuídas aleatoriamente) e referentes aquatro categorias semânticas:

Objectos Gerais – cesto, chapéu, toalha;Alimentos – Sandes, bolachas, bolo;Bebidas – água, sumo, leite;Acessórios para a Refeição – copo, prato, guardanapo.

Esta lista foi construida a partir de uma reco-lha de informação prévia, feita com 40 crianças,com idades compreendidas entre os 5 e os 9 anosde idade, a quem se perguntou o que levariam sefossem fazer um piquenique. Dos protocolosdestas crianças, foram isolados os substantivosmais familiares e foram identificadas as res-pectivas categorias semânticas. Da aleatorizaçãodas palavras no interior da lista, resultou a ver-são que foi apresentada às crianças: copo, prato,sandes, sumo, guardanapo, cesto, chapéu, água,bolachas, toalha, bolo, leite.

3.3. Procedimento

Neste projecto, foi necessário um contactoprévio com as crianças com o intuito destas sefamiliarizarem com o experimentador e de acei-tarem participar no estudo. Ultrapassados estescontactos iniciais, as crianças foram aleatoria-mente repartidas em dois grupos, o grupo expe-rimental, composto por 32 crianças e o grupo decontrolo, composto também por 32 crianças. Oinício da tarefa consistia em sentar a criança,perguntar-lhe o nome e a idade. Depois, o expe-

rimentador começava por dar as instruções: - Ins-trução com objectivo significativo para o grupoexperimental, «Tu vais fazer um piquenique e euvou dizer-te uma série de coisas que precisas delevar. A seguir, vamos ver se te lembras delas»; - Ins-trução sem objectivo significativo para o grupode controlo, «Eu vou dizer-te uma série de coisasque precisas de saber. A seguir, vamos ver se telembras delas».

Prosseguia então com a leitura da lista, umavez e uniformemente. Após a apresentação dalista, cada criança recordava oralmente os ele-mentos, não tendo um tempo limite para o fazer.Deixou-se que os elementos fossem recordadoslivremente até a criança dizer «já está». Se acriança não dava sinal de ter terminado, era o ex-perimentador, ao aperceber-se que a criança jánão recordava mais itens, que lhe perguntava «jáestá?».

Toda a recolha dos dados foi gravada com umgravador portátil. Por fim, os protocolos foramdesgravados permitindo o registo de todos oselementos recordados por cada criança, segundoa sua ordem de aparecimento.

4. RESULTADOS E SUA ANÁLISE

4.1. Efeitos do tipo de instrução no nível dememorização/recordação

4.1.1. Resultados gerais – o que foi recordado

No sentido de testarmos a nossa hipótese,procedemos a uma comparação entre do desem-penho mnésico das crianças do grupo experi-mental e do grupo de controlo, quanto ao núme-ro de itens recordados, pertencentes à lista.

Pela análise geral do Quadro 2 podemos ve-rificar que no grupo experimental houve uma re-cordação de um maior número de itens (187) doque no grupo de controlo (137). As 32 criançasque formaram o grupo experimental, recordaramem média 6 palavras enquanto que as do grupode controlo 4. Assim pudemos verificar uma su-perioridade saliente do grupo experimental, emrelação ao número de palavras recordadas, per-tencentes à lista (58% de itens recordados, per-

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tencentes à lista, com uma diferença de 16% amais de itens recordados do que no grupo decontrolo).

Após análise estatística, utilizando-se o TesteU de Mann-Whitney, encontrou-se uma diferen-ça significativa entre o número de palavras re-cordadas nos dois grupos (U(32,32)=265 paraP<0.001). Deste modo, constatámos que a exis-tência de uma instrução com um objectivo signi-ficativo favoreceu o desempenho dos sujeitos eparalelamente, a resolução da tarefa. Assim, pu-demos verificar a importância da existência deobjectivos significativos na memorização erecordação.

4.1.2. Análise específica – itens acrescentados

Na continuação da testagem da nossa hipótesee para avaliarmos outros possíveis benefíciosdecorrentes de uma instrução com um objectivoprático e significativo para a memorização e re-cordação, analisámos o número de itens recor-dados, não pertencentes à lista apresentada, masacrescentados correctamente, isto é, pertencentes

a uma das quatro categorias semânticas presentesno material (Objectos Gerais, Alimentos, Bebi-das, Acessórios Para a Refeição), como porexemplo, as palavras maçã e pano.

Estas palavras «novas» são semanticamentecorrectas e o seu aparecimento pode ser conside-rado como um produto dos processos de organi-zação. Os dados do Quadro 3 mostram que am-bos os grupos acrescentaram poucos itens. Poroutro lado, verifica-se que a diferença entre osdois grupos é pouco reveladora (apenas 1 item).Parece-nos que as palavras recordadas activaramoutras, pertencentes às mesmas categorias.

Houve ainda crianças que acrescentaram itensestranhos, ou seja, que não pertenciam à listanem a nenhuma das categorias semânticaspresentes (exemplos disso foram as palavraschuveiro, gato, gata).

No que se refere a palavras totalmente estra-nhas, verifica-se que a sua frequência é bastantebaixa em ambos os grupos. Um número muitoreduzido de crianças apresentou itens estranhosna sua recordação. A diferença entre os dois gru-

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QUADRO 2Total de itens recordados pelo grupo experimental e pelo grupo de controlo, pertencentes à lista

Situação Total de itens recordados Média Desvio Padrão Percentagem do grupo

Grupo Experimental 187 6 1.9 58%(c/ objectivo significativo)

Grupo de Controlo 137 4 0.8 42%(s/ objectivo significativo)

QUADRO 3Total de itens acrescentados correctamente pelo grupo experimental e pelo grupo de controlo

Situação Total de itens acrescentados Média Desvio Padrão

Grupo Experimental 13 0.36 0.6(c/ objectivo significativo)

Grupo de Controlo 12 0.28 0.6(s/ objectivo significativo)

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pos é pequena, no entanto, é no grupo de contro-lo que aparece um total de itens estranhos maiselevado. Note-se que estes itens indicam um des-vio em relação à tarefa e que neste caso, foi li-geiramente superior no grupo em que não existiauma funcionalidade prática e significativa (grupode controlo).

É de salientar também, que as crianças, gene-ricamente, acrescentaram um maior número depalavras correctas do ponto de vista semânticodo que palavras estranhas, revelando a ocorrên-cia de associações semânticas entre os elemen-tos.

4.2. Efeitos do tipo de instrução no modo co-mo o material é recordado

4.2.1. Que conteúdos foram recordados

No sentido de conhecermos os conteúdos darecordação dos sujeitos, estes foram explicitadospermitindo avaliar quer os conteúdos, quer ascategorias mais evocadas.

A análise do Gráfico 1 mostra-nos que a pa-lavra copo foi sem dúvida, a mais recordada pe-los dois grupos, seguida pelos itens prato e san-

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QUADRO 4Total de itens estranhos referidos pelo grupo experimental e pelo grupo de controlo

Situação Itens Estranhos Média Desvio Padrão

Grupo Experimental 1 0.03 0.17(c/ objectivo significativo)

Grupo de Controlo 3 0.09 0.52(s/ objectivo significativo)

GRÁFICO 1Resultados referentes ao número de vezes que cada conteúdo foi referido em cada grupo

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des no grupo experimental e sandes e leite nogrupo de controlo. O item mais difícil de recor-dar e menos frequente foi chapéu, para ambos osgrupos. É de notar que o grupo experimentalapresenta sempre frequências superiores em to-dos os itens, com a excepção do item copo (ondeo grupo de controlo é superior) e do item leite(onde ambos têm o mesmo valor). As maioresdiferenças entre os dois grupos registam-se nositens água e toalha (com 9 referências a mais, afavor do grupo experimental). De algum modo,esta diferença é reveladora da condição em quecada grupo se encontrava porque estes dois itenssão de facto essenciais para um piquenique, sen-do menos importantes e significativos para ogrupo de controlo.

Por outro lado, é de ressaltar a ocorrência doschamados efeitos de inibição ou seja, dentrodas séries a posição relativa que cada elementoocupa é por si, um factor que afecta a memoriza-ção: os elementos iniciais e finais são melhormemorizados. Neste sentido, considera-se a po-sição intermédia perto do fim, como a mais des-favorável, facto este, que é nitidamente observa-do no item chapéu.

A partir destes dados, fomos considerar os re-sultados em cada categoria semântica, compa-rando os dois grupos (Quadro 5).

Na análise do Quadro 5 e como é visível noGráfico 2, verificamos que para ambos os gru-pos, a ordenação por categorias é igual, isto é: acategoria mais frequente é «Acessórios para a

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QUADRO 5Resultados referentes a cada categoria semântica

Grupo Experimental Grupo de controlo

Categorias Total de Referências Total de Referências

Objectos Gerais 37 20Alimentos 50 36Bebidas 41 27Acessórios Para a Refeição 59 54

Total 187 137

GRÁFICO 2Percentagens da distribuição da Recordação por categorias nos dois Grupos

Acessóriospara a

Refeição

Alimentos Bebidas ObjectosGerais

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Refeição», seguida por ordem decrescente dascategorias «Alimentos», «Bebidas», e «ObjectosGerais». Este paralelismo leva-nos a afirmarque o tipo de instrução não afectou diferencial-mente os grupos na importância dada a cada umadas categorias.

Assim parece que, independentemente daexistência ou não de objectivos práticos, funcio-nais e significativos há categorias que são maissignificativas por si só, acedendo-se a elas deforma mais frequente.

4.2.2. Como foram recordados os conteúdos

Para prosseguirmos na análise dos efeitos dotipo de instrução/objectivo no modo como omaterial é recordado, fomos avaliar a organiza-ção da recordação que as crianças efectuaram.Os itens da lista foram apresentados em série edistribuidos aleatoriamente. Pertencendo eles aquatro categorias semânticas, havia a possibili-dade de se proceder a uma organização por rea-grupamentos semânticos.

No Quadro 6 apresentamos os resultados obti-dos em relação ao modo como as crianças recor-daram, comparando o número de palavras recor-dadas isoladamente (sem ligação anterior nemposterior com a mesma categoria) com o númerode palavras recordadas em sequências (perten-centes a uma mesma categoria semântica). Nestaanálise foram incluídas as palavras acrescentadascorrectamente.

Avaliando os totais, verifica-se que ambos os

grupos apresentam ou recordam mais palavrasisoladas do que integradas em sequências (56% e60% de palavras isoladas para os grupos experi-mental e de controlo, respectivamente). De acor-do com as nossas expectativas, não esperaríamosencontrar um domínio das palavras integradasem sequências sobre as palavras isoladas, vistoque esta é uma capacidade evolutiva e encontra-se aos 6 anos, numa fase inicial do seu desenvol-vimento (as estratégias de organização sofremdiferenças quantitativas e qualitativas, quer atra-vés da idade, quer ao longo da escolarização).De alguma maneira, podíamos sim, suspeitar quedentro do volume da recordação organizada oseu peso fosse maior, no grupo com objectivoprático, funcional e significativo (grupo experi-mental). Esta suspeita confirmou-se visto que foineste grupo que a diferença entre palavras isola-das e palavras em sequência foi menor (12%contra 20% no grupo de controlo).

Olhando para o Gráfico 3, podemos ver aindaa variação do desempenho de cada grupo. Veri-fica-se para ambos os grupos que à medida queaumenta o tamanho das sequências, diminui apercentagem dos reagrupamentos. Na orga-nização efectuada pelas crianças (palavras recor-dadas em sequência) primaram as sequências deduas palavras. Em suma, estes dados levaram--nos a concluir que o grupo experimental teveuma maior tendência para organizar o material edemonstrou um melhor desempenho da tarefa.No que diz respeito ao grupo de controlo, os re-sultados fizeram-nos pensar que, não tendo este

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QUADRO 6Distribuição do modo como as crianças recordaram nos dois grupos

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grupo, qualquer orientação prática, funcional esignificativa nas instruções que receberam, fize-ram um maior esforço de organização, com re-sultados tendencialmente inferiores.

5. DISCUSSÃO GERAL E CONCLUSÕES

O presente trabalho procurou avaliar a in-fluência do tipo de instrução/objectivo dado àtarefa no nível de memorização/recordação domaterial e ainda no modo como as crianças o re-cordaram. Neste sentido, a nossa hipótese foielaborada, estabelecendo-se que existiam dife-renças individuais decorrentes do tipo de instru-ção/objectivo da tarefa, consoante as crianças aresolviam com um objectivo prático, funcional esignificativo ou não. Como pudemos verificar, ascrianças que receberam uma instrução com umobjectivo significativo, prático e funcional (gru-po experimental) apresentaram um número signi-ficativamente superior de itens recordados, emrelação às crianças que resolveram a tarefa comuma instrução sem um objectivo prático e signi-ficativo (grupo de controlo). A nossa hipótese foiconfirmada, levando-nos a afirmar que o tipo deinstrução/objectivo presente na resolução da ta-refa desencadeou diferentes desempenhos mnési-cos individuais.

Estes resultados corroboram a eficácia daexistência de objectivos significativos na promo-ção dos desempenhos mnésicos das crianças eestão em conformidade com os resultados encon-

trados por outros autores com outras tarefas (Is-tomina citada por Rogoff & Mistry, 1990; Wa-dell & Rogoff, 1981, 1987).

As diversas posições teóricas apresentadas,interpretam este fenómeno referente ao benefícioindividual retirado duma tarefa de memorizaçãocom um propósito significativo, funcional e prá-tico, acentuando a possibilidade de se tirar par-tido dos esquemas de conhecimento que se pos-sui do mundo real (Nelson, 1990), a menor ne-cessidade de orientação para situações familiarestornando-se a memorização entendida e signifi-cativa para a criança e não apenas para o adulto(Hudson & Fivush, 1990) e o envolvimento decapacidades ligadas funcionalmente ao contextoda sua utilização, isto é, que a organização damemorização/recordação se baseia nas caracte-rísticas das actividades onde estes processosocorrem (Rogoff & Mistry, 1990). Na nossaperspectiva interpretativa, cada uma destas posi-ções contribui substancialmente para a compre-ensão deste fenómeno. Ao atribuirmos um pro-pósito significativo, facilitámos a actualização deum script (fazer um piquenique), assim como co-nexões semânticas (ex: prato-copo) e funcionais(copo-água) entre os «bits de informação». Ascrianças puderam usar o seu conhecimento sobreas relações usuais entre os objectos e o desenro-lar do acontecimento para organizarem a sua me-morização/recordação.

Organizar os itens, relacionando-os ou estabe-lecendo associações é uma capacidade mnésicaimportante e que neste trabalho se revelou ligei-

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GRÁFICO 3Distribuição da Recordação em Ambos os Grupos

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ramente superior no grupo experimental, respon-dendo deste modo, à nossa questão sobre o modocomo as crianças recordaram consoante o tipo deinstrução/objectivo presente na resolução da ta-refa.

Gostariamos de salientar e de enfatizar a im-portância e necessidade de objectivos significa-tivos nas actividades cognitivas e no desenvol-vimento cognitivo geral. Do ponto de vista dasimplicações pedagógicas destes resultados, nãopodemos deixar de referir que se a passagem deinformação descontextualizada não é muitousual fora da escola, dentro dela já é mais co-mum. Vimos que a memorização/recordação émelhorada quando memorizar e recordar os itensé algo essencial para uma actividade significa-tiva, fornecendo-se uma situação familiar ecriando-se uma motivação para recordar. Crian-ças que possam ter dificuldades nas tarefas dememorização podem ser especialmente boasquando o material ou a actividade é interessantee integrada. Serão as situações em que a memo-rização e a recordação são descontextualizadasque acentuarão as diferenças individuais, cogni-tivas, de desenvolvimento e culturais. Ressalta-mos a importância da utilização de contextossignificativos e familiares ao nível escolar, sendouma forma de tornar a criança agente da suaaprendizagem e de agir de maneira instrumental,contribuindo assim, para o uso de estratégias etécnicas efectivas para memorizar, recordar eaprender.

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RESUMO

Este artigo descreve um trabalho desenvolvido

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com crianças de 6 anos do 1.º ano de escolaridade doensino básico, sobre a influência do tipo de instru-ção/objectivo nos processos de memorização e recor-dação. Comparámos uma instrução com um objectivosignificativo, prático e funcional com uma instruçãosem um objectivo prático, funcional e significativo. Atarefa apresentada consistiu na apresentação de umalista de palavras às crianças. Na análise de resultadosverificámos que a existência de um objectivo signifi-cativo se assumiu como um importante meio de me-morização e recordação. As crianças memorizarammais facilmente o material com uma instrução com umobjectivo prático, funcional e significativo.

Palavras-chave: Desempenho mnésico, crianças,objectivos, instruções, tarefas de memória significati-vas.

ABSTRACT

The main objective of the present research is tostudy the effects of the type of instruction/goal on theprocesses of memory and recall. Two groups of 6 yearold children were interviewed. The task consisted inpresenting to the children a list of words that they hadto memorize. Children were divided in two groups: theexperimental group received an instruction that wasmeaningful, functional and practical, while the controlgroup received an instruction without meaningfulpurpose. Results revealed significant differences bet-ween the two groups. The experimental group memo-rized more words than the control group. This researchsuggests the importance of a meaningful purpose toboth memory and recall activity.

Key words: Memory performance, children, goals,instructions, meaningful memory tasks.

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1. OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS

É já clássica a ideia de que o processo de de-senvolvimento é inseparável do meio envolven-te. Ideia aliás, defendida por dois grandes teó-ricos deste século: Piaget e Vygotsky. Mas, en-quanto na perspectiva Piagetiana o postulado in-teraccionista conduz a uma visão do desenvolvi-mento de centração individual, a uma visão daevolução do indíviduo em interacção com omeio físico e social. A perspectiva de Vygotsky(1934/1985, 1978/1994), sublinha explicitamen-te, a raiz social do desenvolvimento, não só aoenfatisar a componente interactiva, mas também(entre outros aspectos), a importância da apro-priação dos instrumentos socio-históricos, quevão possibilitar uma actividade intelectual me-diada semioticamente.

Há, na perspectiva de Vygotsky, uma duplaenfatisação da raiz social dos instrumentos psi-cológicos: por um lado, estes instrumentos se-mióticos são o produto de uma evolução socio-

-cultural, foram desenvolvidos ao longo dostempos no seio do grupo social; por outro lado,há o reconhecimento da importância da expe-riência social na apropriação por parte da crian-ça, destes instrumentos semióticos (Wertsch,1985).

A exploração empírica dos postulados de Vy-gotsky levou a uma proliferação de trabalhos so-bre situações interactivas, frequentemente si-tuações diádicas, com enfâse na análise doscomportamentos verbais. Menos frequente têmsido a exploração de outras experiências de na-tureza social, que possibilitam à criança a cons-trução de um conhecimento sobre situações eacontecimentos, sobre formas de estar e de agir.Por vezes, não existem nestas situações compor-tamentos interactivos explícitos e a apropriaçãode um conhecimento socio-cultural não passa pe-la interacção, mas pela observação e/ou partici-pação em situações que envolvem o indivíduonum mundo social de acontecimentos significa-tivos.

Como sublinham Nicolopoulou e Weintraub(1998), a cultura é mais do que uma soma de co-municações e interacções. Ela inclui sobretudo,sistemas conceptuais e simbólicos que fornecemestruturas decisivas, modelos e recursos para opensamento e acção humana (op. cit., p. 219).

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Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 39-48

As representações de experiências sociaisenquanto mediadoras do processo deconstrução de significações partilhadas

ISABEL MATTA (*)

(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Mem-bro da Unidade de Investigação em Psicologia Cogni-tiva do Desenvolvimento e da Educação.

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Enquanto produtos culturais estes instrumentoscognitivos e simbólicos são importantes, não sópara estruturar e levar a cabo a interacção e a co-municação, mas também, enquanto organizado-res da cognição, como instrumentos para ordenara realidade, moldar a experiência e estruturar aspráticas.

Da mesma forma Rogoff (1990, 1995), realçaque os comportamentos de suporte ultrapassamos comportamentos explicitos de ensino. A par-ticipação orientada inclui a estruturação tácita eintuitiva da comunicação, assim como a prepara-ção de contextos e de actividades para a criança.Rogoff (1995), sublinha a importância do estudodos processos comunitários, inter-individuais eindividuais, processos que se implicam mutua-mente e que integram todas as actividades emque a criança participa com outras crianças eadultos. A estes três planos correspondem nestaperspectiva: a aprendizagem, pela participaçãoem actividades organizadas socio-culturalmente;a participação orientada pela coordenação mú-tua e comunicação entre parceiros sociais impli-cados em actividades; e a apropriação participa-tiva geradora de mudanças individuais, permi-tindo ao indivíduo a participação noutras situa-ções idênticas.

O estudo dos modos de participação em acti-vidades sócio-culturais e as transformações aonível da compreensão e da responsabilidade nes-ta participação será fundamental numa aborda-gem do processo de desenvolvimento, entendidocomo: a apropriação participativa graças àparticipação guiada em actividades socio-cul-turais (Rogoff, 1995).

1.1. Processos socio-culturais/processos indi-viduais

A importância dos contextos socio-culturaisna explicação do processo de desenvolvimento eda educação tem sido realçada por diferentes au-tores, mas frequentemente estes trabalhos reve-lam uma dicotomia entre processos socio-cultu-rais e processos individuais. Só as últimas ver-sões da psicologia socio-cultural, conduziram auma abordagem do desenvolvimento como umprocesso intrinsecamente social (Gilly, 1990,1995; Rogoff & Chavajay, 1995).

Alguns destes trabalhos focam exclusivamen-te a componente externa e inter-individual do de-

senvolvimento (Marti, 1994; Valsiner, 1994), ainfluência dos contextos socio-culturais (inter-acções e instrumentos), no processo de desenvol-vimento, a criança absorvendo a cultura externatransmitida pela interacção com o adulto. Marti(1994), sublinha que para evitar considerar o de-senvolvimento como uma viagem individual oude gupo organizado (op. cit., p. 8), é necessário,e de acordo com Valsiner (1994), considerar ocarácter co-construtivo do desenvolvimento aonivel das acções e ao nível semiótico (construçãode um sentido pessoal à medida que a criançainterage com o meio).

Têm sido múltiplos os esforços para integrarnum mesmo quadro teórico, a componente cons-tructivista e socio-cultural do desenvolvimento(e.g. Bruner, 1991; Nelson, 1986; Rogoff, 1990;Valsiner, 1989; Wertsch, 1991).

Começa-se a explorar a complexidade do pro-cesso dinâmico de natureza intra-psicológica. Aactividade da criança, o sentido, as transforma-ções e reconstruções que imprime às experiên-cias socio-culturais (a cultura pessoal, segundoValsiner, 1994).

Como tem sido demonstrado em estudos di-versos, a criança joga uma parte activa em todoeste processo, criando, transformando e repro-duzindo parcialmente os conhecimentos a quetem acesso. Conhecimentos, informações e habi-lidades não são transmitidas, mas transformam--se num processo de apropriação. Esta apro-priação processa-se pela participação em aconte-cimentos, contextos que frequentemente, sãoconstruídos e mantidos por causa da criança.Ora, de acordo com o seu nível de desenvolvi-mento, o seu grau de compreensão e envolvi-mento, a criança ao participar em contextos vaifixar-se em alguns aspectos e ignorar outros, vaidar-lhes uma interpretação pessoal.

Assim, se a interacção verbal guia a partici-pação das crianças em situações, ajuda a estru-turar a sua acção e a organizar a sua compreen-são, a participação em actividades diárias roti-neiras, que frequentemente não implicam diálo-go, tem um papel fulcral na construção da auto-nomia da criança na partilhada de valores esignificados. A criança desenvolve-se a partir deum envolvimento em experiências sociais quo-tidianas, com outras pessoas e com instrumentosculturais, onde são construídas significaçõespartilhadas. Como realça Valsiner (1994), a natu-

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reza profundamente socio-cultural do desenvol-vimento é manifesta neste processo de apropria-ção e domínio destes instrumentos culturais,condição elementar do progresso do pensamentoe da acção humana. Esta abordagem implicaconsiderar num processo de desenvolvimento, aapropriação dos instrumentos e tecnologias le-gadas pelo grupo social tais como: a linguagem,o sistema de escrita e numérico, os mapas, oscomputadores, assim como um sistema de valo-res, normas e scripts que vão permitir ao indiví-duo abordar diferentes situações (Rogoff, 1990).

1.2. A participação em actividades rotineirase a sua representação

A participação da criança em acontecimentosquotidianos, onde são partilhados modos defuncionamento e objectivos, aparece cada vezcom mais importância num processo de desen-volvimento.

Desde bebé que a criança observa e/ou parti-cipa em situações mais ou menos rotinizadas. Obebé interessa-se pela actividade dos outros e fazum esforço para compreender o mundo social.Começa a elaborar, desde o primeiro ano de vi-da, um conhecimento sobre cenas e aconteci-mentos permitindo-lhe progressivamente, irreconhecendo e criando expectativas sobreobjectos e contextos sociais (Bauer & Mandler,1992; Bauer & Wewerka, 1995; Bruner, 1983;Deleau, 1990; Mandler, 1983; Mandler &McDonough, 1995; Nelson, 1985, 1986; Schank& Abelson, 1977).

Primeiro reconhecendo pessoas, gestos e si-tuações, depois antecipando sequências de acçãoem presença de determinados indicadores e fi-nalmente, construindo representações mais oumenos estáveis e distanciadas de acontecimentosrotineiros quotidianos, de tal forma que ao nivelpré-escolar, a criança mostra já um conheci-mento representado de elevado grau de comple-xidade, sobre experiências e acontecimentos doquotidiano.

Se aos 3 anos a criança é capaz de falar deacontecimentos familiares de uma forma orga-nizada, com uma certa generalidade e sequencia-lidade, aos 5-6 anos estes relatos são mais ricosrevelando maior possibilidade de decomposiçãoda estrutura geral em cenas mais específicas(Fivush & Slackman, 1986; Nelson & Grundel,

1981, 1986; Slackman, Hudson, & Fivush,1986).

Os acontecimentos rotineiros envolvem pes-soas a realizar acções com determinados objecti-vos. Pessoas em contextos vários, usandoobjectos e interagindo com outras pessoas paraalcançar determinados resultados (e.g. tomar opequeno-almoço; ir para à escola; ir às compras,etc.). Dentro dos acontecimentos os comporta-mentos têm um carácter funcional, (e.g memo-riza-se, planifica-se, conta-se uma história poralguma razão). Os próprios acontecimentos têmuma estrutura sequencial: desenrolam-se no tem-po, no espaço e com causalidade. Os aconteci-mentos são pois, unidades definidas cultural-mente, são situações sociais dinâmicas e signifi-cativas.

Algumas representações esquemáticas deacontecimentos têm uma estrutura idêntica àdas situações reais. Estas representações geraisresultam de experiências rotineiras, que se repe-tem segundo a mesma sequência e em contextosespacio-temporais idênticos. Após os trabalhosde Schank e Abelson (1977), este tipo de repre-sentações tem sido denominada de scripts, querdizer uma organização cognitiva estruturada esequencial de um acontecimento.

De acordo com vários autores (Mandler,1983; Nelson, 1981, 1985, 1986; Roux & Gilly,1994; Sigel, 1997), o pensamento representativoé uma capacidade resultante de experiências nomeio sócio-cultural. Nelson e colaboradores (Lu-cariello, Kyratzis, & Engel, 1986; Nelson, 1985,1986), consideram que a criança elabora repre-sentações cognitivas dos acontecimentos socio--interactivos. Os autores propõem o conceito deRepresentação Generalizada de Acontecimentoscomo a contra parte cognitiva de formatos e ro-tinas.

Roux e Gilly (1994), também sublinham quepara além de uma função reguladora das trocassociais, as regularidades presentes nas práticassociais rotineiras têm um carácter organizador dacognição estando na origem dos modos de trata-mento pragmáticos e na construção de estruturasesquemáticas (organizações socio-cognitivas)subordinadas às experiências sociais.

Em consonância com estas perspectivas, Sigel(1997), refere que a representação mental internaconsiste num processo interior no qual a expe-riência se transforma em algo diferente ou seja

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numa imagem, numa rede semiótica ou outraforma de referência à experiência externa. Con-forme o maior ou menor grau de facilidade comque a criança se move no plano simbólico, maiorserá a capacidade da criança de distanciação, deplanificação, de recordação e de projecção paraalém do presente imediato.

As representações gerais de acontecimentosfamiliares rotineiros constituem assim, uma dasprimeiras formas de representação mental. Antesde poder construir conhecimentos por mediaçãode meios semióticos, tais como a linguagem, obebé vai apoiar-se sobre a sua experiência realde situações rotineiras. A função referencial daspalavras vai emergir progressivamente, das ro-tinas e das convenções utilizadas em situaçõesparticulares, cumprindo uma função performati-va (Bates, Benigni, Bretherton, Camaioni, &Volterra, 1979; Bruner, 1983; Caselli, Bates,Casadio, Fenson, Fenson, Sanderl, & Weir, 1995;Nelson, 1985). Não será possível utilizar a lin-guagem com uma função significativa, parasimbolizar, para estabelecer relações entre con-ceitos, senão quando existe uma representaçãodistanciada e relativamente complexa de aconte-cimentos.

As mudanças ao nível das representações deacontecimentos são intrínsecas a mudanças aonível do pensamento, da linguagem e da acção.Estas representações suportam comportamentosassim como mudanças ao nível do funcionamen-to cognitivo, permitindo a conquista do pensa-mento abstracto (Nelson, 1985, 1986).

Existe assim, uma evolução com a aquisiçãoda linguagem, com a idade e com a experiênciaacumulada, manifesta pelo tipo e organização dainformação representada, nomeadamente pelasua organização hierárquica. Quando uma situa-ção está de tal forma compreendida que permitaa sua representação distanciada e organizada, es-ta representação possibilita a compreensão e aparticipação em acontecimentos, a interpretaçãode discursos, assim como a realização deinferências e predicções. Os scripts fornecem umconhecimento partilhado, sendo organizadoresda actividade social e cognitiva (Nelson, 1981,1985, 1986).

Se a experiência social continuada é funda-mental para a flexibilidade, manipulação da in-formação e sua transferência, a apropriação dalinguagem, enquanto código de representação, é

sem dúvida um factor muito importante. A lin-guagem é um instrumento representacional comuma dupla função (interna e externa comunica-tiva) jogando um papel crucial no desenvolvi-mento, nomeadamente, porque permite a nego-ciação do significado, o confronto entre a cons-trução individual de conhecimento e os sistemade conhecimento culturalmente construído.

1.3. A narrativa

Mas existem outras estruturas esquemáticas,que não são própriamente as representaçõesgerais de acontecimentos e que têm um papelsubjacente e organizador da actividade social ecognitiva, sendo instrumentos importantes demediação de uma significação partilhada, porexemplo: os contos ou histórias (Bruner, 1991;Nicolopoulou & Weintraub, 1998; Wells, 1987;Wertsch 1991, 1995; Wertsch, Tulviste, & Hags-trom, 1993).

Wertsch (Wertsch, 1991, 1995, 1995a; Wertsch,Tulviste, & Hagstrom, 1993), parte das ideias deVygotsky, assim como da posição de Bakhtin so-bre os géneros do discurso, enquanto formas re-lativamente estávéis dos enunciados (Bakhtin,citado por Wertsch, 1995a, p. 280). Os génerosdo discurso são modos de representação quetransparecem formas colectivas e particulares deorganizar a realidade. São construções culturaisque são apreendidos e re-elaborados pelo sujeitoa partir da participação na actividade social.Enquanto instrumento semiótico, o género dis-cursivo emerge da participação em contextos,havendo contextos socio-culturais em que certosgéneros discursivos são previlegiados em condi-ções culturais, institucionais e históricas particu-lares.

Assim, segundo Wertsch, as formas de funcio-namento mental são socio-culturalmente situa-das, e os géneros discursivos têm um papel me-diador da actividade individual em contexto: Odiscurso é uma forma de acção mediada onde osgéneros discursivos (assim como outros aspectosda linguagem) são meios mediacionais (...)(Wertsch, 1995a, p. 282). O género discursivo éassim, um instrumento semiótico entre outros,disponíveis na caixa de ferramentas culturais(cultural tool kit, Bruner, 1991; Wertsch, 1991).O género discursivo modula os enunciados pela

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criação de um espaço discursivo no qual a perti-nência da informação é definida.

Posição semelhante é assumida por Bruner(1991), e por Bronckart (1995), que enfatizam opapel da narrativa não só enquanto instrumentode representação, mas como constituinte da rea-lidade.

Elaborado culturalmente, o género narrativofornece um modelo para organizar e interpretaras experiências de vida. As histórias são instru-mentos importantes no processo de inserção dascrianças na cultura do seu grupo social. O seuestatuto, as suas características, a sua estrutura eo seu conteúdo (entre o real e o imaginário), tor-nam as histórias um instrumento previlegiadono processo de negociação social de significa-ções. A narrativa organiza as vivências, forneceum esquema organizador do que é normal, mastambém enquadra os desvios, o que é estranho einquietante. A narrativa é pois, uma prática so-cial importante na vida social.

Como acabamos de ver a perspectiva socio--cultural oferece a possibilidade de superar a di-cotomia sujeito/contexto, a partir da unidade deanálise proposta: a actividade socialmente me-diada, que integra aspectos individuais do com-portamento, com aspectos socio-culturais domeio. Como sublinham diversos autores, estaperspectiva abre um campo interessante e inova-dor no estudo do processo de desenvolvimento.

2. O TRABALHO EMPÍRICO

É partilhando das posições teóricas que sucin-tamente abordámos no ponto anterior, que temosdesenvolvido algumas das nossas investigações.Tentaremos de seguida resumir os seus parâme-tros gerais e conclusões principais.

2.1. Interacção mãe-criança

Conduzimos uma série de trabalhos a partir daobservação e análise de situações de interacçãomãe-criança (Matta, 1998; Matta, 1998a).

Observámos pares mãe-criança de 1-2 aos 7-8anos em dois tipos de situação empírica:

- Situação de troca verbal, em que pedimos àmãe e ao seu filho para falarem/contarem

uma história, a partir de duas figuras repre-sentando um conjunto de flores e de ani-mais.

- Situação de jogo em que pedimos aos paresmãe-criança para brincarem com um con-junto de figuras representando animais eflores.

Neste trabalho estudámos a relação entre oprocesso de desenvolvimento de conceitos cate-goriais, os comportamentos de categorizaçãoassociados e as características evolutivas das in-teracções mãe-criança. Partimos do princípio deque a construção da organização taxionómica ca-tegorial de categorias naturais, de que flores eanimais são exemplo, seria intrínseca a mudan-ças ao nível da estruturação das situações inter-activas mãe-criança, assim como à descontextua-lização progressiva de instrumentos semióticos.

Reflectiremos de seguida sobre os resultadosencontrados ao nível da organização das situa-ções de interacção.

2.1.1. Sobre a interacção verbal mãe-criança

No que respeita à primeira situação (Matta,1998; Matta, 1998a), em que observamos asmães e as crianças a conversarem sobre flores eanimais, vimos que:

- A princípio as situações de troca verbal entremãe-criança são massivamente, caracterizadaspor rotinas referenciais. A linguagem aparece li-gada ao desenrolar da situação. Há da parte dasmães, um esforço para ajudar o seu filho de 1-2anos, a descobrir o valor referencial das pala-vras, associado a um esforço para o ajudar noprocesso de descoberta das características e no-mes dos objectos. Este comportamento, onde alinguagem tem sobretudo uma função referen-cial, de identificação e descrição dos objectospresentes, é evidente também na população dascrianças dos 3-4 anos. Assim, nas situações in-teractivas das primeiras idades o discurso refe-rencial está na base de uma vontade de coopera-ção social, tendo toda esta actividade referencialum papel determinante na construção de umprimeiro nível de intersubjectividade.

Quando a criança domina a função referencialdas palavras e existe um acordo mãe-criança nadesignação dos objectos, a mãe começa a fazerapelo às experiências de vida na estruturação da

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situação interactiva. As díades começam a fazerrecurso a representações de acontecimentos reaisou imaginários (acontecimentos da vida real ouhistórias fantasiadas), sob a forma de script oude narrativa.

Estes géneros discursivos, são primeiro intro-duzidos pelas mães (desde a idade de 3-4 anosdos seus filhos), e depois também utilizadospelas suas crianças. Com efeito, estas estruturasaparecem nos protocolos das crianças desde os3-4 anos, registando-se uma progressão aos 5-6anos e sendo massivos nos discursos das crian-ças de 7-8 anos.

Assim, uma vez partilhadas as regras básicasde funcionamento dos contextos comunicativos eo valor referencial da linguagem, a representaçãoverbalizada de experiências de vida aparece co-mo forma de enquadramento dos conhecimentossobre as flores e os animais. Estas estruturas es-quemáticas estão na base do progresso ao nívelda significação partilhada, de uma organizaçãoconceptual mais complexa e de um uso mais des-contextualizado da linguagem.

É de realçar o facto das mães utilizarem estessuportes (narrativos e do tipo script), com crian-ças que ainda não são capazes de os utilizar, oque mostra que a criança mesmo antes de ser ca-paz de verbalizar estas estruturas esquemáticas,pode a elas fazer recurso para compreender ememorizar informações. Estes dados estão aliásde acordo com vários autores (Bauer & Wewer-ka, 1995; Bruner, 1991; Ellis & Rogoff, 1982;Fivush & Hamond, 1990; Hudson, 1990; Mand-ler, 1983; Mullen & Yi, 1995; Nelson, 1986,1990, 1993; Reese, Haden, & Fivush, 1993).

Podemos assim afirmar que as mães recorrema estas estruturas discursivas com vários fun-ções: para ensinar os seus filhos a partilhar expe-riências de vida; mas também com uma funçãode suporte da interacção social; e como media-doras na organização do conhecimento.

Todos estes resultados corroboram as pro-postas teóricas resumidas anteriormente sobre opapel construtivo da criança na apropriação dosinstrumentos culturais e sobre o papel funda-mental das representações de acontecimentos, esuas verbalizações do tipo script e/ou narrativo,enquanto instrumentos mediadores no processode construção de uma significação partilhada(Bruner, 1991; Bronckart, 1995; Nelson, 1986;

Nicolopoulou & Weintraub, 1998; Roux & Gilly,1994; Wells, 1987; Wertsch, 1991, 1995a).

2.1.2. Sobre a interacção lúdica mãe-criança

Os dados da situação interactiva lúdica na pre-sença de objectos, vão no mesmo sentido dos an-teriores (Matta, 1998).

Notámos que nas díades mãe-bebé de 1-2anos, no quadro de jogos ritualizados, a mãe falamuito, tenta focalizar a atenção da criança, põequestões e responde, nomeia e assinala caracte-rísticas dos objectos. Toda esta actividade damãe tem por objectivo a construção de um pri-meiro universo de significação partilhado, a par-tir de rotinas onde a actividade referencial e dedenominação têm um papel fulcral. Há assim,um esforço conjunto da mãe e do seu bebé, parauma convergência e partilha de focos de atençãoe formas de assinalar informações interessantes,como realça Bruner (1983, 1991).

Com as crianças de 3-4 e 5-6 anos, quandoestas já têm um conhecimento da linguagemque lhes permite nomear e explicitar caracterís-ticas de objectos, as mães começam a reduzir asua intervenção verbal. Para além de falaremmenos, as mães vão progressivamente, falar deforma diferente: falam mais de aspectos relacio-nais, fazem mais sugestões e colocam verdadei-ras questões.

As mães estimulam e incitam a criança a par-tilhar o desenrolar da situação. Por sua vez acriança colabora activamente desde os 3-4 anosidentificando e descrevendo os objectos sistema-ticamente. Mas aos 5-6 anos esta colaboraçãoacentua-se. Neste nível de idade, as mães ajudamos seus filhos a construir situações esquemáticas,situações que permitem a inserção dos objectosem quadros representados de situações familia-res (e.g. jardins, florista, quinta, jardim zoológi-co). Estas representações de situações e de acon-tecimentos têm uma função organizadora daacção e da interacção, ajudando a criança a ante-cipar, planear e estruturar o seu comportamentoem situação, mas também um papel na compre-ensão progressiva da complexidade de relaçõespresentes no mundo envolvente.

À medida que a criança cresce, é encorajada aassumir uma certa autonomia e responsabilidadena construção da situação lúdica. A mãe restrin-ge as suas solicitações e sugestões. Supervisiona

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a actividade da criança, faz comentários de natu-reza metacognitiva, dá respostas às solicitaçõesda criança. A criança por sua vez, vai fazer re-curso a situações e acontecimentos represen-tados, como suporte na sua responsabilidade so-bre o desenrolar da actividade.

Esta evolução ao nível da dinâmica interactivamãe-criança está de acordo com a teoria de Vy-gotsky e com a análise das condutas de suportede vários autores (momeadamente Brossard,1993; Rogoff, 1990 e Winnykamen, 1997). Estáde acordo também com a hipótese de Nelson(1985, 1986), sobre o papel estruturante das re-presentações de acontecimentos enquanto orga-nizadores da actividade comunicativa e cognitivada criança.

De uma forma geral, podemos concluir que osresultados destes trabalhos mostram que as prá-ticas sociais, nomeadamente as característicasorganizativas dos contextos interactivos e a utili-zação da linguagem, têm um papel enquanto ins-trumentos de mediação socio-cognitiva na cons-trução de uma significação partilhada.

2.2. Trabalhos em curso: sobre a evolução doconhecimento representado de situaçõese acontecimentos e seu papel enquantoorganizador da cognição

Temos também desenvolvido e orientado al-guns trabalhos sobre a evolução da estrutura descript e da narrativa em crianças de 3 a 9 anos(Assumpção, 1998; Matta & Brito, 1998; Matta& Loureiro, 1998; Salvado, 1999).

De um modo geral, a metodologia seguidanestes trabalhos consiste em pedir às criançasque nos contem uma história ou que falem sobreum tema proposto (e.g. um dia de escola, umafesta de aniversário).

Estes trabalhos mostram uma evolução muitonítida entre estes níveis de idade, no sentido deuma distinção clara entre a estrutura de script e aestrutura narrativa. Assim como uma complexi-ficação progressiva dos relatos das criança.

Temos encontrado uma estrutura subjacentede carácter narrativo desde os 3-4 anos. Estascrianças têm já alguma noção do que é umahistória, embora muito frequentemente baseadasobre as suas vivências. Os seus relatos são umcompromisso entre uma organização do tiposcript e a narrativa. A apropriação do esquema

canónico narrativo aparece tardiamente, resulta-dos aliás de acordo com uma diversidade grandede autores (Bronckart, 1995; Bruner, 1983, 1991;Esperet, 1990; Fayol, 1985; Fivush & Slackman,1986; Mandler, 1983; Nelson, 1986; Nelson &Grundel, 1981, 1986; Slackman, Hudson, & Fi-vush, 1986).

Da mesma forma, os resultados têm reveladouma diferença na complexidade e organizaçãodas histórias e dos relatos tipo script em funçãodo estímulo apresentado. Acontecimentos comuma estruturação mais rica e mais familiares(e.g., um dia de escola) originam relatos bastantemais ricos e complexos.

Estes resultados têm sido reveladores do pro-cesso complexo e dialéctico de apropriação derepresentações colectivas.

A par com a preocupação em estudar a orga-nização e complexidade evolutiva das estruturasesquemáticas do tipo narrativo e script, asso-ciadas a experiências reais de vida com caracte-rísticas diferenciadas, temos também exploradoo papel destas estruturas esquemáticas enquantomediadores da actividade cognitiva.

Assim, realizámos um estudo que mostra aimportância destas estruturas esquemáticas naresolução de problemas de classificação emcrianças de 8-9 anos (Matta, 1998). E nestemomento, começamos a explorar o seu papel naretenção de conhecimentos e organização damemória (e.g. Guerreiro & Matta, neste núme-ro), assim como na actualização de conheci-mentos de ordem linguística em crianças peque-nas (Matta, Machado, & Pires, 1998) e na reso-lução de problemas de aritmética.

3. EM CONCLUSÃO

A teoria histórico-cultural de Vygotsky, no-meadamente o seu postulado do carácter intrin-secamente social e cultural das actividades dascrianças e do seu desenvolvimento, permiteclarificar alguns elementos na articulação deaspectos socio-culturais no desenvolvimento. Odesenvolvimento deve ser explicado tendo emconta a interacção social, mas o progresso aonível dos processos psicológicos relaciona-setambém, com a apropriação dos instrumentosculturais que mediatizam a actividade da criança.Neste processo de apropriação existe uma activi-

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dade reconstrutiva da parte da criança, a partir daparticipação activa em experiências de naturezasocio-cultural diversificadas.

As nossas investigações sobre a representaçãode acontecimentos têm permitido por em evidên-cia as relações entre os contextos interactivos ecognitivos. Os resultados revelam que a partilhade conhecimentos e a progressiva autonomia dacriança passa, no quadro dos contextos inter-activos, pelo suporte do contexto cognitivofornecido pelas representações de acontecimen-tos.

A construção de representações generalizadasde acontecimentos, assim como a apropriaçãocriativa de géneros discursivos, enquanto siste-mas integradores de conhecimentos, têm uma in-fluência na evolução na forma de organizar o co-nhecimento e de resolver problemas, numa pala-vra no pensar.

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RESUMO

O nosso trabalho inspira-se na dupla enfatização docarácter socio-cultural do desenvolvimento, presentena obra de Vygotsky: a importância da interacção so-cial e a apropriação dos instrumentos culturais, quevão possibilitar uma actividade mediada.

Temos explorado o papel das representações de ex-

periências sociais, enquanto mediadores da interacçãosocial e da actividade cognitiva.

Os resultados mostram como o processo de apro-priação de estruturas esquemáticas (de tipo script eformato narrativo) é revelador da grande complexi-dade presente no processo de reconstrução a nível re-presentativo da experiência social. Mostram ainda, aimportância deste tipo de estruturas esquemáticasenquanto organizadores da actividade socio-cognitiva.

Palavras-chave: Experiência social, interacção so-cial, scripts, narrativa, mediação semiótica, represen-tação de acontecimentos.

ABSTRACT

Our research is based on the Vygotskian sociocul-tural theory and on the premise that children´s deve-lopment is inherent to participation in social life.From this point social interaction and appropriation ofmediational tools are crucial to a developmental pro-cess.

In our presentation, we explore the assumptionthat child representational system is based on un-derstanding events of everyday life. Familiar routineevents are schematized in the child’s knowledge repre-sentational system (e.g. as scripts/narratives). Thesesymbolic representations provide a contextual supportto interaction and to cognitive and linguistic develop-ment.

Key words: Sociocultural experience, social inter-action, scripts, narrative, event representations, moda-lities of semiotic mediation.

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