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Ano 7 - Nº 7 Revista laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul
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Exceção 07 - 2012

Mar 12, 2016

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Revista Exceção 07- Ano 07 2012
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Ano 7 - Nº 7 Revista laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul

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02

Quanto vale ser ?

Como traduzir a essência da Exceção em um editorial? Mais fácil é começar perguntando quanto vale; quanto vale um semestre intei-ro dedicado a um projeto.

A Revista Exceção não é apenas a revis-ta-laboratório do curso de Jornalismo da Unisc. É, também, um momento muito aguardado pelos acadêmicos. Basicamente porque a revista é um trabalho que, via de regra, procura não seguir padrões prontos, usuais. Sempre que possível e necessário, novos modelos e formatos são pensados, mas nem por isso as decisões são aleatórias, tudo faz sentido.

Comecemos pelo concurso que elegeu o novo logo da publicação: estimulamos a

criatividade e a participação dos estudan-tes dos demais cursos que integram a Co-municação Social. E conseguimos um belo resultado; uma logomarca que atrai por ser simples e arejada.

A construção das matérias, crônicas, en-saios e de todo o conteúdo que recheia a nossa Exceção, por outro lado, não foi ta-refa fácil. Não se trata de um semestre in-teiro produzindo uma matéria, mas de um período dedicado à escolha dos assuntos, das fotos, das ilustrações, da diagramação, da seleção dos anúncios, dos ensaios foto-gráficos, da foto da capa, dos conceitos que fazem cada página ser especial. Ou seja, é muito trabalho!

Inovamos também no formato. A revista está em tamanho menor e, por isso, temos

ExpedienteEditor Chefe - Demétrio Soster Editora - Jaqueline de Lara Gomes Subeditora - Danielle RubimEditor de fotografia - Jardel CarpesEditor Multimídia - Fabrício Goulart Diagramação - Viviane MouraProdução - Berenice Bohnen e Carolina Lopes Núcleo de Relações Públicas - Lilian Alves e Sulimar CenáEstágio em docência - Ricar Düren

ReportagemJaqueline de Lara Gomes Danielle Rubim Fabrício Goulart Berenice BohnenCarolina Lopes Daiane KalsingViviane MouraAdriano Ellwanger Angélica Weise Michele WrasseVanessa Schuler Lucas Baumnhardt Cristiane Inocêncio Vanessa BehlingGeferson Kern Maiara Halmenschlager

Exceção

ContatoBlog: http://revistaexcecao.blogspot.comFacebook: http://www.facebook.com/RevistaEx-cecao Twitter: @RevistaExcecaoSobre a revistaA Exceção é a revista-laboratório do curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul. Ela é desenvolvida pelos acadêmicos da disciplina de Jornalismo de Revista, ministrada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster, em parceria com alunos de todas as outras habilita-ções, na expectativa de exercitar todas as verten-tes comunicacionais.

Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc)Av. Independência, 2293 - Bairro: UniversitárioSanta Cruz do Sul - RS / Brasil CEP: 96815-900 - Fone: (51) 3717-7300Site: www.unisc.br

Tiragem: 500 exemplaresPapel sulfite 90g - MioloPapel Couchê 150g - CapaGráfica: Grafocem - Impressos Gráficos Ltda

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o texto em duas colunas. Também é a pri-meira vez que as páginas estão coladas, o que fez com que surgisse a lombada com os dados de identificação da publicação.

Como tudo tem sua razão, a identificação dos créditos, por meio de ícones, e do índi-ce que leva às matérias pelo viés de cores distintas, foi uma decisão com a intenção de facilitar a leitura e padronizar as formas dentro de um projeto gráfico inovador.

O mesmo ocorre com a capa. Instigante, prende o olhar. É bonita, enfim. Saiba, caro leitor, cara leitora, que nossa capa era outra, mas aos 45 minutos do segundo tempo re-solvemos abrir prorrogação. Foi gol? É você quem pode nos responder.

Em meio a tantas tensões, é natural que também tivéssemos o nosso momento de

crise. Mas, mais importante que os erros que ocorreram no meio do caminho – o que é normal porque estamos aprenden-do -, é observar que, a nossa Exceção não é nem melhor, nem mais bonita do que to-das as outras que lhe antecederam. É, ao mesmo tempo, igual e diferente.

Então, quanto vale? Vale o processo, vale a caminhada, vale o aprendizado, as de-cisões que tomamos ao longo de um se-mestre. Vale o prazer e a satisfação em ver o resultado de um trabalho construído a muitas mãos.

Quanto vale tudo o que vivenciamos e o que levamos para a vida toda também pode ser definido pelo incalculável.

Uma boa leitura a todos.

Legenda

Texto Imagem Arte/edição de imagem

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06ReportagemO som do silêncio

11CrônicaA infinita busca de José

12ReportagemOs colecionistas de Paraíso

17ReportagemO espetáculo começa

um dia antes

20ReportagemAventura sem limites

28ReportagemO trabalho dignifica

o homem?

33ReportagemXucros, mas com coração

38ReportagemPaixão pelo rádio

45CrônicaMar de encontro

46ReportagemA luta de Augusto

50Ensaio Fotográfico

Eterna Infância

Índice

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54Reportagem

O sequestro das

meninas francesas

60Reportagem

Miro poderia

ser mais feliz

66Reportagem

Os colecionistas de Paraíso

70EnsaioQuando agosto chegar

74Reportagem

Diário dos anônimos

78Resenha

Fidelidade e traição na

mesma face de uma história

80Ensao Fotográfico

Mortal Beleza

84Ensaio de capas 88

Reportagem

Para uns, lixo.

Para outros, música

92Reportagem

Infiltradas

02Quem fez e razão de existir

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Michele Wrasse 07

O somdo silêncioAmantes do voo livre o rotulam como o esporte da liberdade

Arquivo pessoal

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De uma forma geral, a palavra “liber-dade” significa a condição de um indivíduo não ser submetido ao do-mínio de outro e, por isso, ter pleno

poder sobre si mesmo e sobre seus atos. O desejo de liberdade é um sentimento profundamente arraigado no ser humano. Situações como: a es-colha da profissão, o casamento e o compromisso político ou religioso, fazem o homem enfrentar a si mesmo e exigem dele uma decisão responsável quanto a seu próprio futuro.

Há pessoas que, na sua ânsia de experimentar uma liberdade genuína, lançam-se em uma louca procura de toda a espécie de prazer, porque, di-zem, só assim é que sentem-se realizadas. E é na busca desses prazeres que surge o vôo livre.

O vôo livre é um esporte radical que utiliza as atividades térmicas e do vento para realizar vôos locais e de grande distância, possibilitando alte-rar tanto a velocidade quanto a trajetória, e ainda escolher o local de pouso. O vôo é silencioso e traz uma sensação de liberdade que não há como sentir, a não ser na prática deste esporte.

Paulo Baptista, Gabriel Drescher, Marcelo Wi-ckert e João Felipe Pich são amantes deste espor-te há vários anos. Eles resumem o vôo livre em apenas uma palavra: liberdade.

“A sensação é inenarrável, é uma disputa do pi-loto com a própria natureza, pois na hora em que

se está voando, problemas de todas as espécies fi-cam em terra firme. No ar, é somente o piloto, a natureza e Deus, integração total do homem com o Criador”, explica o empresário Paulo Roberto Baptista da Silva, 45 anos, que reside na cidade de Agudo, no coração do Rio Grande do Sul.

Ele voa desde 1995 e diz que a atividade faz bem para a sua saúde, pois ajuda a combater o estresse e gera sentimentos de realização pessoal, promovendo a concentração e a disciplina. “Não dá para explicar direito o que se sente. A descarga de adrenalina é intensa antes, durante e no final do salto”, conta Silva.

Já o jovem cachoeirense, Gabriel Drescher, 17 anos, explica que os 40 segundos de queda livre e, logo depois, o relax dos cinco minutos com o pa-raquedas aberto, são impossíveis de explicar ou transmitir à outra pessoa, “sentir o vento a 200 quilômetros por hora batendo no seu rosto, é in-descritível”.

“Eu sempre gostei muito de esportes radicais que proporcionassem aquele medo que te parali-sa na hora de pensar no que vai fazer, mas acredi-to que já está na minha genética o gosto pelo vôo, pois meu pai é professor de pilotos agrônomos e sempre me levava para voar com aviões pequenos no aeroclube de Cachoeira do Sul”, conta, sorrin-do, Gabriel.

Em busca do sentimento de liberdade que seu

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pai Marcelo Drescher, lhe descrevia, Gabriel re-solveu inscrever-se no curso de paraquedismo na cidade de Sapiranga. Lembra-se de como foi o primeiro salto: “A sensação é indescritível, aquele medo gigantesco antes, aquela sensação de o que eu to fazendo aqui. Na verdade, quando abriu a porta do avião eu só pensei uma coisa, uma pala-vra: fudeu. E me joguei”.

Sem saber as sensações que iria sentir na hora do salto, ele só teve uma certeza, o medo. Pois era isso o que ele queria, ir lá e descobrir como era. Subindo no avião descobriu a angústia e, logo depois, o medo ao ver a porta do avião se abrir. Vem a adrenalina ao saltar e a sensação de liber-dade quando ele está voando, mas o medo volta novamente quando é hora de abrir o paraquedas. Depois, vem a sensação de relaxamento, “ver a paisagem linda, o ventinho batendo no rosto, os dedos dos pés com sensação de molhados, pois o vento constante e úmido provoca esse efeito”. Em seguida a esse momento relax, vem a tensão da hora do pouso. E, para finalizar, o misto de sentimentos e a vontade incontrolável de gritar.

A prática de vôo livre feita com asa delta ou parapente foi iniciada por paraquedistas com a intenção de aumentar a permanência nos céus. Diferente dos outros esportes aéreos, que bus-cam emoção durante o momento da queda, no vôo livre a intenção é subir e permanecer no ar,

bem perto do céu.Para muitos, este esporte é apenas um modo de

relaxamento, um hobby, mas, para Marcelo Wi-ckert, 32 anos, este foi apenas um pretexto para começar a saltar de paraglider. “No início era apenas pelo prazer de praticar, hoje busco bater recordes voando distâncias ou em campeonatos”, conta. Wickert já foi Campeão Gaúcho duas ve-zes e também ganhador em competições nos es-tados de Santa Catarina, Paraná e Goiás. “Aquele sentimento de liberdade é insubstituível, poder decidir e fazer o que quiser durante o vôo é mara-vilhoso”, ressalta Marcelo.

Outro apaixonado por vôo livre é o instrutor João Felipe Schwonke Pich, que pratica o esporte

desde 1995. Ele revela que a cada salto a sen-sação é mais intensa: “Na primeira vez você está muito preocupado, tenso, mas nas segunda, ter-ceira, quarta vez consegue relaxar e desfrutar das lindas paisagens que apenas o vôo livre nos pro-porciona”.

João Felipe aconselha para todas as pessoas saltarem ao menos uma vez na vida, pois é um sentimento que jamais sentirão na correria do co-tidiano. “São esses pequenos detalhes que fazem a nossa vida ter mais sentido. Ver tudo lá de cima: as casas, as lavouras, os campos, os lagos, as cida-des é incomparável a qualquer coisa”. Então, fica aqui a dica: voe e sinta a liberdade.

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José mora em um mundo dinâmico. Tudo muda ao seu redor, a todo instan-te. Acompanhar a acelerada velocidade do cotidiano, conforme pensa, é a única alternativa. O tempo de José, tão escasso, já não sobra para um instante de reflexão. Ele não tem tempo para tentar descobrir o motivo de estar sempre em busca de algo, mesmo que não saiba exatamente o quê.José até sabe de seus objetivos mais ime-diatos – um emprego novo, comprar uma casa e conseguir a atenção da moça que conheceu na noite passada. O problema não é este. Depois que ele conseguir tudo isto, já não parecerá mais o suficiente. José criará outro objetivo, mais ousado e distante. E viverá atrás dele como se fosse impossível a vida sem o mesmo.Sim, isto move José, o faz ir sempre além, tira ele de uma acomodação que pode ser

ainda mais frustrante. Quando José vê a possibilidade de alcançar algo, não poupa esforços para isto, sente-se vivo e respon-sável pelo seu destino. Cada objetivo é um desafio, e tudo é válido para alcançá-lo. - Tudo é válido, José?José conseguirá seu novo emprego. Ganhará mais, muito mais. Porém, não terá tempo para aproveitar seu dinheiro. Comprará sua casa, mas não conhecerá qualquer vizinho. Conseguirá a atenção da moça desejada, mas o namoro termi-nará assim que ele a trocar pela rotina.- Tudo é válido José?José procura até hoje uma resposta. Deixou de ser feliz há tempos, de tanto procurar a felicidade. José esqueceu que a dita-cuja pode estar bem ao lado dele, e não sempre em uma esquina à frente.

A infinita buscade José

Jardel Carpes 11Crônica

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Os colecionistas do Paraíso

Eles têm uma forma diferente de passar o tempo

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Angélica Weise 13Eduardo Mesquita

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No centro do Rio Grande do Sul, na pequena cidade de Paraíso do Sul, com aproximadamente 8 mil ha-bitantes, não é difícil caminhar e

se perder pela avenida principal sem movimen-to. Lá o inevitável se faz presente. Região que pertence à chamada Colônia Santo Ângelo, o distrito antes conhecido como Rincão da Porta é novo ainda - tem apenas 24 anos - e carrega em si personagens de história, ‘velhos’ de gerações.

Quando se fala de Paraíso do Sul, para quem não a conhece vem à cabeça uma cidade que lembra o ‘paraíso’, onde todas as pessoas que vi-vem nesse paraíso são felizes, se conhecem. De certa forma, a afirmação pode ser verdadeira.

A cidade é pequena. Uma avenida principal chamada 1º de Janeiro é o centro da cidade, onde se localizam as lojas, mercados. E perto da avenida 1º de Janeiro é onde algumas pesso-

as ainda guardam o hábito de colecionar coisas, objetos.

Um dos colecionadores é o aposentado Geral-do Luis Schimt (foto 1), 59 anos. Ele coleciona mais de 4 mil canetas, há cerca de 10 anos. A coleção começou ao acaso. E afirma: “Comecei a viajar e guardá-las”. Elas são de diversos luga-res do Brasil. Geraldo também ganhou algumas canetas de amigos que foram viajar para a Ale-manha, Japão, Suíça e Áustria.

Bem guardadas em cima de um armário, den-tro de cinco caixas de sapatos cheias, Schimt as deixa longe dos netos pois acredita que, se dei-xasse para os netos brincarem, “não existiriam mais”. Curioso é que Geraldo afirma que “às ve-zes nem caneta tem para escrever”.

Geraldo complementa: “Não comprei nenhu-ma delas, sempre ganhei ou peguei”. Algumas se destacam por serem diferentes. Há de todas as cores, formatos e tamanhos. Umas mais boni-tas, já outras nem tanto ‘normais’, mas a metade não escreve. O aposentado já pensou em arrumá-las, dispondo organizadamente todas em uma tábua, porém conclui que daria muito trabalho.

Saindo da casa de Geraldo, caminha-se mais um pouco, precisamente uma quadra, e encon-tra-se outro colecionador. Dono de uma loja de sapatos, Edorzinho (foto 2) é um veterano conhecido da cidade de Paraíso. Muito sábio e rico em contar histórias, mostra com orgulho sua coleção de caixas de fósforos. Isso mesmo, Edorzinho faz coleção de caixas de fósforos há mais de cinquenta anos.

São cerca de 3 mil caixas bem guardadas em um suporte de vidro com madeira. A coleção de fósforos é uma verdadeira obra de arte. São diversos tipos, com fotos de signos do zodía-co, aves brasileiras, times e algumas com recei-tas. Algo não imaginável para os dias de hoje. As caixas são de todos os tamanhos, variando de bem pequenas a maiores, mas com algo em comum: o cheiro em especial, cheiro de coisa velha.

Edorzinho ganhou algumas caixas do Chile, de Portugal e até da Alemanha. Há alguns anos ele expõe suas caixas em festas municipais ou

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regionais para mostrar ao público a sua coleção. O hobby de colecioná-las partiu da primeira ida à Festa da Uva em Caxias do Sul, onde viu uma exposição de caixas de fósforos. “Achei graça, e desde aí tenho paixão por elas”, afirmou com um sorriso no rosto.

Tem a coleção completa de fósforo Paraná, uma das mais tradicionais do país. Possui tam-bém a coleção completa da Copa do Mundo de 1962, com 24 jogadores. Com algumas caixas na mão, Edorzinho sente orgulho do que pos-sui. O sorriso que não sai facilmente revela-se quando elogiado pela sua coleção e logo fica emocionado, chora. Para as caixas de fósforo da Copa do Mundo mandou desenhar especial-mente em uma caixa o campo de futebol.

Sentar e conversar com Edor Bernardo Ludke, de 72 anos, é escutar uma aula de história. Ele conta histórias da cidade de Paraíso, do sur-gimento, e relembra como era antigamente o modo de trabalho. E além do seu bom humor, ele é carinhoso com sua esposa, que em alguns momentos relembra de fatos importantes refe-rentes à coleção.

Em um futuro próximo, Edorzinho pretende

obter um espaço na casa de cultura da cidade de Paraíso do Sul para deixar exposta sua obra de arte. Sobre os fósforos de hoje, diz: “Não existem mais fósforos. Naquela época as pessoas viajavam e traziam do hotel, e guardavam”.

Além da maravilhosa coleção de fósforos, ele também tem coleção de lápis antigos, de 50 anos atrás. Lápis de 1962, 1963. Muito bonitos de se ver. No suporte de vidro bem fechado e guardado, os lápis parecem até relíquias. Não há cheiro que os identifique, mas a beleza é in-confundível.

Hoje, aos 72 anos, Edor fica durante a sema-na na sua loja de sapatos, junto com a esposa e um funcionário. E no final de semana, está nos fundos da loja, onde joga paciência, navega na internet e, claro, cuida da sua coleção.

Edor Bernardo Ludke, um personagem pre-sente em Paraíso do Sul, culto, patriota e pai de família, sente-se orgulhoso ao falar da coleção que para ele significa muito. São anos de cole-ção, de vida.

Saindo da casa de Edorzinho, e caminhando algumas casas, chega-se ao Hotel União. Muito conhecido na cidade, lá reside seu Florindo Ivan Kasburg (foto 3). Ele, por sua vez, além de músi-co, é colecionador de chaveirinhos. A última vez que contou, tinha 456. Agora estão abandona-dos em uma caixa, sem muito cuidado, mas mes-mo assim guardados. Antigamente mantinha-os espalhados pelo hotel, mas notando que pessoas que ali frequentavam acabavam por furtar alguns chaveiros, Florindo resolveu guardá-los.

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Os chaveirinhos são da Itália, da Argentina e de diversos lugares do Brasil. Florindo identi-ficava-se com eles, pois afirma: “eu valorizava uma propaganda inteligente que eu encontrava nos chaveirinhos”. Quando vai ao porão buscar a sua coleção, que por coincidência também guarda em caixa de sapatos, volta feliz. “Ainda estão aqui”, fala com um sorriso no rosto.

Dispostos na mesa os chaveirinhos passam pela mão de Florindo. Cada um tem uma his-tória, lembrança. Do mais enferrujado ao mais cuidado, eles ainda são importantes e trazem lembranças de alguns momentos em sua vida. O músico então conta histórias fantásticas. Emocionado, relembra a história de um casal que se aposentou há poucos meses. Esse casal se conheceu quando jovem, trabalhando no seu hotel. Primeiro emprego de ambos. E os dois se casaram e se aposentaram juntos, uma história bonita, conta. E admite: “quando se tem saúde, se trabalha”.

O hotel, que iniciou suas atividades em 1949, ainda é procurado pelas pessoas que trabalham na região. Quando vistos todos os chaveirinhos da caixa, vai à procura do que mais considera e se destaca entre os demais. Ao encontrar, mos-tra escrito no chaveirinho a seguinte frase “O mais importante é cultivar amigos”.

A frase é complementada por Florindo: “É meu lema. Acredito que sem amigos não somos

nada. E também, se não fossem meus amigos, eu não teria esses chaveirinhos”, enfatizou sor-ridente.

Logo mais adiante, não muito distante da principal avenida, outro personagem cole-cionador. Tímido, introspectivo, é assim que poderíamos definir Lauro Roberto Bock, de 53 anos, dono de uma oficina mecânica. Mo-rador de Paraíso do Sul desde pequeno, Lauro em sua adolescência começou a comprar e de-pois colecionar a revista Tex, de histórias em quadrinhos. O cheiro das revistas é propício, aquele cheiro gostoso de revista guardada e bem guardada.

O mecânico tem aproximadamente 300 re-vistas. Estão todas bem guardadas no armário, e jamais pensa em se desfazer delas. As revistas fazem parte da sua adolescência. “Minha única recordação de jovem, lembro que eu terminava de ler e ficava na expectativa da próxima edição, era um vício”. E por que parou? “Porque casei”, brinca. “A revista deixou de ser um vício e con-segui viver sem ela, e depois não comprei mais”, disse Lauro.

Geraldo, Edorzinho, Florindo e Lauro. Qua-tro colecionadores, personagens de Paraíso do Sul. Não são os únicos. Dentre a pequena po-pulação haverá outros mais, perdidos com suas recordações e lembranças na avenida 1º de Ja-neiro, ou ali próximo.

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Adriano Ellwanger 17Whellinton Rocha

O espetáculo começa um dia antes

Artista de rua ganha a vida

unindo técnica e força

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Isso mesmo. O espetáculo diário de um ar-tista de rua cearense começa sempre um dia antes da apresentação. Percorrendo cidades com até 10 mil habitantes pelo país, Fran-

cisco Ulisses Paixão de Souza reúne técnica, força e muitos gritos para arrebentar fios, correntes de aço, rasgar tampinhas metálicas de garrafa e segu-rar durante cinco segundos um automóvel com o motor em alta rotação. Rei do Aço, como é cha-mado, não reclama da vida e por isso não a cha-ma de difícil, mas, em certos casos, de divertida e rentável. A atividade é herança de seu avô e do seu pai, ambos já falecidos.

Com 47 anos, 1 metro e 76 centímetros de altu-ra e 80 quilos, o espetáculo do Rei do Aço chama a atenção em diversos quesitos, desde a forma com que divulga as apresentações em cada cidade, tudo feito de forma bisonhamente improvisada.

Depois de fixar sua família em um ônibus-casa, que fica em uma cidade sede, migra para cidades próximas para se apresentar. Inicia com a divul-gação do evento a bordo de uma judiada motoci-cleta ano 1999, onde estão improvisados um mi-crofone de lapela para falar ao vivo e uma corneta de som.

Na moto ainda estão todos os instrumentos usa-dos na apresentação, alojados numa mochila espe-cial. “Você precisa conhecer, hoje à noite, a partir das sete e meia, o Rei do Aço, ele vai rasgar tampas de garrafas, arrebentar fios e correntes e segurar

um carro em alta rotação”, dizia no alto-falante da moto que ecoava em Boqueirão do Leão, cida-de de pouco mais de 8 mil habitantes, localizada no limite dos vales do Rio Pardo e Taquari, onde apresentou-se no mês de março de 2012. A divul-gação também ocorre nas rádios comunitárias.

Depois de passar o dia anunciando a atração e conversando com autoridades e moradores da ci-dade, ruma para o terreno anunciado e estaciona sua inseparável moto. O veículo serve ainda de apoio para a instalação de uma armação de ferro, que sustenta quatro lâmpadas de 60 watts cada uma, para fazer a iluminação do show. Ele usa o som e a luz à bateria instalados na motocicleta. Mas, das lâmpadas, somente três funcionavam e faziam a iluminação do show.

O “picadeiro” é demarcado em círculo com fa-rinha de milho. O artista, simplesmente, pega um saco com farinha de milho e começa a demarcar o local. Os cerca de 100 espectadores respeitam a marcação e acompanham atentamente a apresen-tação mesclada com lembretes quanto a impor-tância das crianças irem à escola e de não usarem produtos anabolizantes.

Segundo o Rei do Aço, ele é o único do Brasil a fazer atualmente este tipo de apresentação. “Anti-gamente o país possuía muito mais artistas de rua, mas com o passar dos anos está ficando escasso o número de pessoas que fazem da rua o local de trabalho”, destaca.

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1) Rei do Aço pega uma maço com seis fios de luz e pede que o público examine o material e tente arre-bentá-lo. O molho de fios passa de mão em mão, mas ninguém consegue abrir. O artista enrola o fio duas vezes em cada mão. Em dois puxões e um berro os fios arrebentam todos no mesmo lugar.

2) O segundo número é com tampinhas de garrafas. Solicita às crianças tampinhas metálicas para rasgá-las ao meio. Usando apenas os dedos indicadores e polegares, ele faz o prometido: rasga ao meio diversas tampas, atividade acompanhada sempre do tradicio-nal grito de força, como chama o berro que dá sempre ao final de cada “número”.

3) A próxima atração envolve novamente os fios de luz, desta vez desencapados. O artista pede que um integrante da plateia torça no seu braço direito um maço de fios e salienta que o espectador pode usar toda a força. Ele mesmo dá mais uma apertada, o que, inclusive, compromete a circulação sanguínea de seu braço. Numa ação rápida e de muita técnica, dá mais um berro e rompe os fios de luz.

4) Abrir os elos que sustentam uma corrente com comprimento de um metro e vinte centímetros também é um desafio do artista do berro. Novamen-te, muitos examinam, mas ninguém consegue abrir os elos. Ele passa a corrente por baixo dos braços e aperta bastante. Em dois segundos de concentração e ao quarto berro, consegue abrir a corrente que cai no chão. Para consertar o material, faz com que os elos se unam, desta vez sem grito.

5) De um lado está um Chevette ano 1978, que fica desligado e com o freio de mão puxado. Do outro, uma caminhonete Pampa ano 1979, com tração dian-teira, responsável por fazer o motor roncar e tentar escapar da força do Rei. O artista engata um cabo de aço em cada carro, e,no meio deles, pede que o mo-torista acelere. Aos poucos o motorista vai soltando a embreagem e aumentando a rotação do motor. Des-ta vez sem gritos nem berros, durante cinco segundos Rei do Aço não permite que a Caminhonete se mova. A ação não chega a arrastar os pneus do carro, mas ele não se move. O que ficou ainda mais evidente foi a falta do grito de força. Assim, de forma silenciosa, estava encerrado o espetáculo que segue para uma nova cidade e sempre começa um dia antes.

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Aventura sem limites

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Aventura sem limites

Daiane Laís Kalsing Arquivo pessoal 21

Sensação de liberdade e o desejo de se aventurar

pelos mais variados lugares

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Os churrascos de sábados à tarde. Esse foi o início das aventuras vividas por Felipe Trasel e Gilmar Sbruzzi, em cima de duas rodas. Ambos gostam

muito de andar de moto e têm o desejo em co-mum de fazer algumas aventuras por lugares di-ferentes. Todo motociclista sonha em algum dia fazer uma grande viagem, conhecer lugares, cultu-ras, além de novas aventuras. A ideia da primeira loucura desses parceiros de estrada surgiu em me-ados de 2008, tendo como destino Santiago, no Chile, viagem que se concretizou no ano seguinte.

Após terem enfrentado 11 dias de viagem e per-corrido 5,5 mil quilômetros, a primeira experiên-cia foi aprovada. Porém, Felipe e Gilmar decidi-ram colocar o pé na estrada novamente e ir mais além. Agora, o destino era o Peru, mais precisa-mente Machu Picchu, a cidade perdida dos Incas, viagem realizada em abril de 2012. E fazer uma aventura desse porte exige muita dedicação e pla-nejamento, afinal, a preparação para a primeira viagem levou cerca de um ano.

Destino definido e, para uma aventura bem su-cedida, foi necessário um minucioso e detalhado

planejamento que durou aproximadamente dois anos. E isso não é tão simples quanto pare-ce. “A primeira coisa é decidir qual será o período da viagem. Optamos pelo mês de abril pelo clima

ser menos chuvoso e com temperaturas mais agra-dáveis, ou seja, um clima que seja favorável para a gente”, explica Felipe.

A elaboração do roteiro foi feita a partir de ma-pas impressos, pesquisas na internet e conversas com pessoas que já haviam feito essa viagem. “A preferência é por estradas asfaltadas. Durante quase dois anos foram discutidos vários roteiros e pontos turísticos a serem visitados, através de conversas com pessoas que já conheciam o traje-to. Dessa forma, foi possível elaborar um plano de viagem satisfatório”, conta Gilmar. Ao total os aventureiros iriam percorrer cerca de 10 mil qui-lômetros passando por cinco países (Brasil, Ar-gentina, Chile, Peru e Uruguai). Além disso, eles tinham que conciliar suas férias para o mesmo período.

Felipe a bordo de uma CB600 Hornet /Hon-da e, Gilmar, de uma DL650 Vstrong /Suzuki , eles enfrentariam 21 dias de viagem, percorren-do algumas vezes, até 1 mil quilômetros por dia. Ambas as motos fazem uma média de 15 a 23 quilômetros por litro de gasolina, sendo neces-sário levar um recipiente reserva de combustível, pois em alguns trechos não há postos de gasoli-na. Sem esquecer que antes de colocar o pé na estrada é necessário realizar a revisão completa das motocicletas, afinal, seriam cerca de 10 mil

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quilômetros a serem percorridos.Segundo eles, também é importante levar junto

ferramentas adequadas para a troca de óleo du-rante o trajeto, que é feita por eles mesmos. Com o objetivo de percorrer 1 mil quilômetros diários, os parceiros de estrada decidiram fazer um teste para ver se aguentariam viajar tanto tempo de moto. Para isso, escolheram um final de semana e se aventuraram até a Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina. “O teste foi positivo, mas sabía-mos que isso iria exigir muito da gente”, afirmam. As namoradas entendem perfeitamente as aventu-ras e dão total apoio às loucuras dos companhei-ros. É claro que o fator preocupação existe, mas elas sabem que eles estão fazendo o que gostam.

Para que toda essa distância pudesse ser percor-rida e os prazos cumpridos, Felipe e Gilmar elabo-raram uma estratégia: acordar cedo, tomar café da manhã reforçado e seguir viagem. Segundo eles, quanto mais cedo se chega à fronteira, melhor, pois as chances de fila na alfândega são mínimas. Explicam ainda que evitariam parar para almoçar, pois é muito comum dar sono depois do almoço, o que pode prejudicar a viagem. Assim, a opção seria por comer um lanche rápido e seguir adian-te. À noite, depois de encontrar um bom hotel para descanso, então, aproveitariam para jantar e repor as energias.

Detalhes que fazem a diferença A escolha por viajar no outono foi em decor-

rência das chuvas estarem em baixa no Peru. “Pelo país estar situado na Floresta Amazô-nica, o clima no verão é muito imprevisível. Pode chover a qualquer momento e até mesmo impossibilitar a entrada em Machu Picchu”, contam. Além do clima, também são necessá-rios cuidados com a documentação. Para essa viagem, foi preciso ter carteira de identidade atualizada, vacina contra a febre amarela e carteira internacional de habilitação. “O pas-saporte não é obrigatório para nenhum dos países do Mercosul em que passamos, mas a posse dele ajuda a encurtar o tempo de trâmi-tes alfandegários para entrar e sair dos países”, explica Felipe.

Quanto à bagagem, os aventureiros salien-tam que é necessário estar preparado para en-frentar calor e frio extremos, principalmente na região andina, que possui um clima muito rígido. As roupas utilizadas na viagem são de cordura, um material impermeável e resisten-te à abrasão, além de terem forro térmico para proteger do frio, sendo necessário levar ain-da uma “segunda pele”, específica para baixas temperaturas. “As demais roupas variam de acordo com cada um. Toda a bagagem é guar-

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dada em malas especiais para viagem de moto e baús laterais de alumínio específicos”, frisam.Durante a elaboração do roteiro foi feita uma lista de possíveis hotéis onde Felipe e Gilmar pudessem ficar. As pesquisas foram feitas na internet e os pre-ços variam de acordo com os serviços oferecidos, lo-calização e público-alvo. “As tarifas variaram de 20 dólares a diária com quarto duplo até 400 dólares. Tivemos somente um hotel reservado, situado na ci-dade de Ollantaytambo no Peru, pois lá ficaríamos três dias e, por ser uma cidade muito procurada, decidimos reservar antes da saída. Já nos demais lu-gares, os hotéis foram escolhidos na chegada”, conta Felipe.Gilmar salienta que o orçamento da viagem pode variar muito de acordo com o tipo de hospedagem, refeições, imprevistos. “Não damos preferência para luxos na viagem, o mais importante é ter um local

adequado para guardar as motos. Gasta-se em mé-dia 100 dólares por dia, incluindo gasolina, hospe-dagem e alimentação”. O objetivo principal da aven-tura foi a visita à cidade de Machu Picchu, porém, outros pontos turísticos também faziam parte da aventura como Deserto de Atacama, Geisers Del Tatio (Chile); Lago Titicaca, Ilha Taquile, Puno (Peru), Camino de La Cornisa (Argentina), cidade de Montevideu, entre outros. Ele lembra ainda que o ingresso para Machu Picchu foi comprado com antecedência de um mês, pois o local recebe por dia aproximadamente 2,5 mil visitantes.

RecompensasEncarar uma viagem assim não é para qualquer

um. Felipe e Gilmar afirmam que é preciso muita força de vontade e gostar de andar de moto. “Às ve-zes tu para e pensa: o que eu estou fazendo aqui?

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Tem que gostar muito desse tipo de aventura e estar preparado para as surpresas que as viagens lhe reser-vam”, conta Gilmar. Outro ponto positivo dessas loucuras são as amizades. “Você pode viajar de ôni-bus, de carro ou até mesmo de avião, mas nada se compara a uma viagem de moto. Além da beleza das paisagens, tem as amizades que se conquistam ao longo do caminho. Quando paramos em um posto de gasolina, as motos chamam a atenção, principal-mente quando são de outros países. Você se entrosa mais e sem querer acaba conhecendo pessoas e dife-rentes culturas”.

O retorno da cidade perdida dos Incas ocorreu no dia 10 de maio, com 9,2 mil quilômetros per-corridos. Se a primeira experiência já havia sido boa, a segunda então foi ainda melhor. “Cada povo e cada país têm a sua cultura. A aventura nos proporcionou algo a mais, como dar mais valor às

pequenas e simples coisas que temos que não da-mos valor, pois essas às vezes são a vida de muitas pessoas nas cidades em que passamos. Reclamar menos da vida, pois aqui estamos em um paraíso”, argumenta Felipe.

Para eles, a viagem foi um momento único e in-descritível, afinal, foram dois anos de muita prepa-ração e espera. Quanto ao destino principal, Ma-chu Picchu, eles não cansam de descrever a beleza do lugar. “É lindo demais. Enquanto passeávamos pelo lugar, ficávamos nos perguntando se estáva-mos mesmo ali. É algo indescritível e que não tem como explicar, só estando lá mesmo. O povo do Peru é pobre, mas, apesar disso, estão sempre ale-gres e fazem questão de te ajudar”, enfatizam. E a dupla nem bem retornou de Machu Picchu e já está programando a próxima aventura que segue sem data definida. O destino: Ushuaia.

Durante os 20 dias de viagem, Felipe e Gilmar detalharam todos os momentos em um blog, machupicchu2012.blogspot.com.br uma espécie de diário de viagem, contando como foi o dia além da postagem de fotos.

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”Foi uma viagem muito legal e acima de

tudo incrível. A paisagem de

Machu Picchu é algo indescritível,

só estando lá mesmo pra saber”

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O trabalho dignifica o homem?

Para algumas pessoas, o caminho da dignidade passa pelas grades de uma cadeia

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Lucas Adolfo Baumhardt Pepe Fontanari 29

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Uma noite, um baile, a primeira tragédia. Com a intenção de se di-vertir, Dirceu subia a rua na com-panhia de um amigo em direção

a um baile, no bairro onde morava. Armas na cintura, como de costume já naquela idade, 16 anos. Considerava-se atirador profissional e ex-periente. Praticava desde os 12 anos no que ele considerava um estande de tiros, mas na verda-de era um ponto oculto no meio de um matagal. No meio da rua, uma subida, disse para o amigo que estavam sendo seguidos por um grupo de jovens e seriam alcançados em breve. O amigo compartilhava da mesma opinião. Dirceu, pu-xou a arma para resolver logo o problema.

A intenção era intimidá-los, não atirar, muito menos matá-los. Virou-se e de arma em punho perguntou porque o grupo os seguia. Um dos jovens, que já era conhecido de Dirceu, res-pondeu que não estavam seguindo ninguém, apenas iam para o mesmo lugar. Enquanto Dir-ceu voltava-se para o amigo, antes mesmo de guardar a arma, ouviu o primeiro disparo. Era um tiro para cima que, mesmo não sendo na direção da dupla que andava na frente, causou reação imediata. O clima já tinha ficado tenso mesmo antes da primeira cápsula vazia atingir o chão. Dirceu voltou-se para o grupo de jovens e começou a atirar. Ele não atirava em qualquer um, só quando se sentia ameaçado ou descon-fiava que aquela pessoa pudesse lhe fazer algum mal. Naquela noite, o jovem atingido por Dir-ceu não teria sido o primeiro a levar alguns ti-ros dele, mas foi protagonista do primeiro ho-micídio da vida de crimes que definitivamente começava naquele momento.

Com seis anos já praticava pequenos furtos, como algumas coisas deixadas nos pátios, ou doces e guloseimas nos bares dos bairros por onde passou a infância. Aos nove aumentou seus roubos, entrava nas casas e planejava du-rante o dia para agir à noite. Aos 13, como ele mesmo contou, já se considerava bandido. Co-meçou a usar sua arma para assaltos e, aos 15, deu o primeiro tiro contra uma pessoa. Só pa-rou quando foi capturado aos 18 anos, no dia

24 de agosto de 1998, após tentativa de latrocí-nio (roubo seguido de morte) já com algumas mortes na bagagem.

A primeira foi na noite do baile, aos 16 anos. O mais intrigante de tudo é que ele conta que era por opção que levava esta vida. Era bandido porque gostava, não era por necessidade. Hoje, Dirceu cumpre o resto de sua condenação que, inicialmente, foi estabelecida em 31 anos e um mês em regime fechado. Deixou em 2011 os ou-tros 388 apenados que hoje cumprem pena em reclusão para desfrutar do regime semiaberto e trabalhar na empresa de pufs que ajudou a implantar. Hoje, contrariando as estatísticas ao fazer parte de uma minoria que consegue a rea-bilitação e não volta a cometer o mesmo delito, é o gerente da empresa onde trabalha e conhece como ninguém cada uma das funções de dentro da fábrica. Ensinou e ensina os colegas que têm como objetivo largar a vida do crime e buscar a reinserção na comunidade. Paz com a consciên-cia é a tradução da palavra liberdade para quem a conheceu depois de estar preso.

Seis meses, um ano, 10 anos... E depois? A volta deste apenado para a sociedade depois de cumprida sua pena total ou beneficiado pela transgressão por trabalho e bom comporta-mento, é um assunto que preocupa não só estu-diosos, mas pessoas que vivem de perto a situa-ção das casas prisionais em todo país. Em Santa Cruz do Sul, o serviço penitenciário conta com uma assistente social que desenvolve um traba-lho de ressocialização, o qual ela mesma prefere chamar de reflexão.

Ana Claudia Camilo Porto é assistente social pela Superintendência dos Serviços Penitenciá-rios (Susepe), em Santa Cruz do Sul, e também desenvolve trabalhos em outras cidades da re-gião. Segundo Ana, o primeiro passo para que o apenado não volte a cometer o mesmo deli-to depois de retornar ao convívio extra-muros (tudo que estiver para o lado de fora do presí-dio) é fazer com que este indivíduo sinta-se útil, producente, para que ele perceba que é capaz de fazer algo por alguém, ainda que este alguém seja ele mesmo. Outro fator determinante para

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que este retorno seja positivo para sociedade e para o apenado, é que parta dele próprio o ob-jetivo de se recuperar, de não voltar a cometer o mesmo, nem outros delitos.

Como é o caso de uma jovem senhora de 45 anos, que cumpre sua segunda pena pelo mes-mo motivo da primeira: tráfico de drogas. Foi presa em 14 de fevereiro de 2008 depois de ser flagrada com 250 gramas de maconha.

A vida ficou difícil para Ana Lúcia Machado depois de perder o marido em 2004 e depender apenas de faxinas para sustentar seus seis fi-lhos. Na época, o menor tinha 5 anos e a maior tinha 21, uma das filhas é portadora de defi-ciência física. Alimentação, remédios e condi-ções básicas de moradia começaram a faltar, o que a levou a procurar uma boca de fumo e a se oferecer para ser vendedora. Na primeira noite de trabalho ganhou o suficiente para comprar roupas, comida e pagar algumas contas. Che-gou a ganhar, em um único dia de vendas, R$ 3 mil, contrastando com o que antes chegava a pouco mais de um salário mínimo por mês. O desespero e a falta de uma capacitação profis-sional que lhe dessem condições de conseguir um emprego, fizeram com que Ana fosse con-denada a quatro anos e 10 meses de reclusão.

Um dos principais motivos que causam os inchaços prisionais é, segundo Ana, a falta de trabalho, a falta de emprego, de uma colocação no mercado que leva o apenado a reincidir em seu delito. Em Santa Cruz do Sul, um traba-lho é desenvolvido através de um Protocolo de Ação Conjunta (PAC), que possibilita ao ape-nado que cumpriu um sexto de sua pena (ou um terço se o crime cometido for qualificado como hediondo), aliado ao bom comporta-mento e avaliação por parte dos profissionais que compõem o quadro de atendimento como Assistente Social, Psicólogo e o Diretor do Presídio, a ganhar uma oportunidade de em-prego junto à casa do albergado, onde funcio-na uma fábrica de pequenos estofados, os pufs.

A fábrica conta hoje com 17 colaborado-res, todos apenados, que buscam através desta oportunidade uma forma de se profissionali-

zar e se colocar no mercado de trabalho depois de cumprida suas penas e estarem livres. São 13 homens e quatro mulheres que hoje fazem parte das diversas funções dentro do espaço. Uma espécie de galpão, coberto com zinco e janelas e portas grandes, onde em um mesmo espaço, amplo e arejado os pufs vão tomando forma. Um corta as madeiras, o utro monta a base, outros preparando o pano na costura e assim a cada três dias trabalhados eles reduzem um do total da sua pena e ainda fazem o pró-prio salário.

Quando conquistou a semiliberdade, em 2010, por bom comportamento e trabalho dentro do presídio, e procurou sua família, Ana deparou-se com uma situação ainda pior. Preci-sou procurar pelos filhos durante 18 horas de-pois de encontrar a casa, que tinha começado a construir ainda com o auxílio do marido com-pletamente destruída e sem nenhum móvel, al-guns que não tinham sequer sido pagos.

Voltar às ruas pode ser tentador, como con-tou Dirceu Rufino de Ávila, um homem 32 anos, branco, porte médio, cabelos escuros e um meio-sorriso desconfiado que hoje divide o regime de semiliberdade com outros 139 ape-nados, 16 são colegas de profissão na fábrica. Carro, casa, armas, munição, drogas e muito dinheiro lhe foi oferecido para que retomasse à antiga ocupação: bandido. Mas a força de von-tade de voltar ao convívio com a sociedade foi maior do que a tentação da vida do crime, o que o manteve naquele pequeno índice das pessoas que pagam por seus crimes e não voltam a co-metê-los. Com Ana foi diferente, ela precisou de uma segunda condenação para perceber que a vida pregressa não estava valendo a pena.

No dia 19 de novembro de 2011 ela foi con-denada a mais cinco anos e 10 meses de reclu-são por reincidência no tráfico de drogas. A situação dos filhos, tendo um deles, inclusive, se tornado usuário de drogas, e a falta de opor-tunidade motivaram Ana a voltar a cometer o mesmo delito ao sair pela primeira vez do presí-dio. Agora ela cumpre o resto de sua pena, mas com um diferencial, uma profissão. É costurei-

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ra na fábrica onde trabalha, tendo aprendido a profissão motivada a voltar ao convívio de seus familiares e da sociedade. Ainda está em fase de aprendizado, mas já ganha o seu salário que, aliado, à pensão que recebe pela morte do ma-rido, ela vai conseguir dar uma vida digna aos filhos.

A angústia, a raiva e a agonia de estar no-vamente presa, fazem com que Ana descarte qualquer possibilidade de se envolver de novo com o tráfico. Ela diz que não quer conhecer o segundo neto, que está a caminho, na porta da cadeia como aconteceu com o primeiro que nasceu. Mudar de cidade e procurar um traba-lho no ramo da costura industrial estão entre seus planos de futuro.

É mais fácil entrar na cadeia, do que sair dela.

São centenas os tipos de crime que constam no Código Penal Brasileiro. Basta praticar algum que se enquadre em um artigo, parágrafo ou in-ciso, e passar pelo banco dos réus. Presídios su-perlotados em todo o país são a prova de que a justiça condena e faz cumprir a lei. As penas são as mais diversas possíveis, passando de simples cumprimento de serviço comunitário até cen-tenas de anos, apesar de hoje o Sistema Prisio-nal Brasileiro permitir o cumprimento máximo de 30 anos de reclusão.

Outro tabu que precisa ser quebrado é o pre-conceito da população para com as pessoas que passaram pela cadeia. Acreditar que, apesar de difícil, é possível a reabilitação e que a melhor forma de ajudar estas pessoas é dando um voto de confiança e uma oportunidade.

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Danielle Rubim 33

Xucros, mas com

coraçãoAssim como os cavalos que Joãozinho doma, ele também teve que se domar para a vida

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O domador João Henrique Bock, em seus 25 anos de vida, carrega nos ombros a maturidade de um ho-mem de barba branca. Cedito, ele

acorda ao som do canto dos passarinhos, dos cascalhos da estrada se encontrando com a pas-sagem dos carros de boi e os relinchos de seus cavalos. Seus, não de posse, mas de coração. Na verdade, ele possui apenas um, os outros seis que ficam na baia nos fundos da casa simples de tijolo à vista lhe foram confiados pelos donos.

Joãozinho, assim como é conhecido em Li-nha Mangueirão, 22 quilômetros do centro de Venâncio Aires, é domador de cavalos. Franzi-no, com os olhos tímidos que enganam quem não o conhece, ele fala com propriedade sobre o trabalho que desenvolve com os equinos. Sem internet em casa, ele busca nos livros o apri-moramento do conhecimento sobre os tipos de domas que não judiam dos animais, regra es-sencial de trabalho.

Dizem, pelas bandas de Linha Mangueirão, que ele possui um dom, que fala com os ani-mais como se fossem uma pessoa. Se enganam.

Joãozinho pode até ter o dom, mas não se co-munica com eles como com as pessoas. Para ele, bicho é diferente. Bicho é mais que gente. Tem sensibilidade, sofre, fica feliz, ajuda se percebe que é bem tratado, mas, o que diferencia das pessoas, é que são mais sinceros. Basta um olhar para eles se entenderem.

Ele vem conquistando vários clientes, que, de longe, buscam por seu trabalho. Conquista essa que é o fundamental na relação com os cavalos. “O cavalo é um animal selvagem de origem. Ele não foi feito para ficar preso, carregar peso, cor-rer durante o dia todo. É um bicho desconfiado que, assim como qualquer pessoa, só vai ser teu amigo se confiar em ti. Se tiver a certeza que não vai ser judiado”, comenta.

Na doma tradicional se usa uma corrente de metal inserida na boca, que forceja sempre que ele não respeita um comando. “Como dá pra imaginar, isso machuca muito. Se machu-ca, conclui-se que o bicho tem raiva de quem faz isso com ele. Ele não entende e sofre. É só imaginar alguém fazendo isso com a gente”. No Rio Grande do Sul, o cavalo é um dos símbo-

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los da cultura. São usados nas lidas campeiras e ícones de apreciação de criadores. “A brutali-dade é a principal característica na maioria das domas por aqui”, complementa.

O cavalo deve se moldar às necessidades dos donos e por isso, não importa o médoto usado, o resultado final é o que interessa. Dar pauladas na cabeça do animal, usar esporas que cravam as pontas afiadas nas costelas do bicho e ferir a boca para que aprenda a obedecer os coman-dos, são apenas alguns dos atos cruéis e muito usuais dos gaúchos. “O gaúcho tem um proble-ma de autoafirmação. Precisa judiar, machucar pra mostrar que é homem de verdade. Aquela história de gaúcho macho. Eu acho a maior das ignorâncias pensar assim. Se fosse feito isso com esses homens que tratam os bichos dessa forma, tenho certeza que nunca mais chegariam perto de um cavalo.”

“É um jogo a doma racional. É como se eu pedisse dinheiro emprestado e pagasse tudo direitinho e conquistasse a confiança por ser um bom pagador. Os outros tipos de doma são um assalto. Tu tiras sem pedir. Quem é assal-

tado sempre será desconfiado”. É justamen-te a forma agressiva como algumas domas são feitas que tornam o cavalo tão arrisco. Muitos chegam machucados e ferozes para o Joãozinho domar. E ele percebe logo se o dono é severo só pelo jeito do cavalo se comportar, já sabe como deve comandar os trabalhos. Um dos manda-mentos dele, é fazer com que o animal acredite que é capaz, que é inteligente para que pos-sa desenvolvê-lo, e o mais importante, tratá-lo com muita delicadeza.

InspiraçãoQuem passa pela estrada e vê Joãozinho aga-

chado na frente do cavalo, ambos com o olhar fixo no outro, não entende o que se passa. É um sinal de resignação, de mostrar que ele é igual ao cavalo, que respeita e quer apenas que ele desenvolva suas potencialidades. Ele foi ins-pirado por aquele que chama de seu professor e se emociona ao falar: Amilton Silva, o Miltão.

Domador também, Miltão, 43 anos, começou a doma racional quando ele trabalhava em uma fazenda em Porto Alegre. Ele queria comprar

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um cavalo e o fazendeiro disse que não vende-ria. “Não vou te vender o potro, vou te dar um potro pra tu domares, ele me disse. E falou que queria doma racional. Eu dei risada e disse que não funcionava. Ele não me deu chance e me entregou um livro pra ler sobre o assunto. Domei com o que eu li e deu um cavalo bem bonzinho. “

Miltão, que doma há 15 anos, mora no inte-rior de General Câmara com a esposa e a filha. Para complementar a renda planta fumo e so-nha em se dedicar exclusivamente à doma, que é sua grande paixão. Ele conheceu João pela paixão em comum, os cavalos. Viu no rapaz o talento e o dom. Insistiu até que ele fosse fazer um curso e ele foi. João gostou tanto que tira seu sustento somente da doma e afirma que dá pra viver muito bem. Tanto é que comprou seu primeiro carro com o dinheiro que recebe do trabalho. Em média, 300 reais por mês de cada cavalo. E sempre está com a baia lotada.

Ganhou seu primeiro cavalo aos 15 anos. “Era um baio coisa mais linda”, recorda. Sem-pre trabalhou no campo com os pais, que tiram o sustento plantando milho, feijão e tabaco. Por querer ser independente, foi fazer um curso de ferrador. Trabalhou em fazendas do interior de Venâncio. “Eu sempre fui muito dedicado e como ferrador era muito requisitado por ser caprichoso, mas o problema é ter que lidar com

as pessoas. Eu tinha por mês uns 60 bichos pra ferrar, mas os donos que eram xucros e não sa-biam me tratar direito. Prefiro lidar com bicho do que com gente e isso me fez largar de mão o trabalho de ferrador.”

Foi então que ele, aconselhado por Miltão, buscou cursos sobre a doma racional e índia. Ele lembra da dificuldade que foi fazer o pri-meiro. “Meus pais não tinham muito dinheiro, mas juntaram e eu trabalhei e fui viajar lá pra fronteira. Fui com uma mochila e cobertores em um caminhão boiadeiro. Cheguei moído de cansaço. Fiquei no alojamento junto com o professor e isso me ajudou muito. No horário da aula aprendia como os outros, mas depois vi-rava a noite conversando com o professor e ele me dava dicas. Aproveitei o máximo de tudo, já que as coisas eram difíceis financeiramente.”

Filho único, João criou raízes onde nasceu e não se vê em outro lugar. “Aqui nasci e aqui vou morrer”. Sua pretensão é ser reconhecido pelo trabalho com a doma. “Quero que as pes-soas falem de mim como alguém que doma sem judiar”. Quando falam que ele tem um dom, João, meio envergonhado diz: “Faço meu tra-balho com amor, é diferente dos demais, por-que respeito os cavalos. Tenho muito o que aprender. Dizem que falta tempo nessa vida pra realizar todos os nossos sonhos. O dia não é pequeno, nós que acordamos tarde”, brinca o domador que tem sim, o dom.

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Vanessa Schuler 39

Paixão pelo

rádioA história de um homem que dedicou sua vida para a evolução do radiojornalismo em Santa Cruz do Sul

Arquivo pessoal Luis Fermando Iser

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O ano é 1944. Era dia de inaugura-ção de um monumento no interior de Vila Tereza, hoje município de Vera Cruz, na região central do

Rio Grande do Sul. Dezenas de pessoas, dentre elas jornalistas, formavam um casulo em volta do púlpito onde falariam autoridades. Entre-tanto, um garotinho chamava a atenção entre os jornalistas. Egon Iser, 9 anos, não hesitava em se infiltrar entre os repórteres com um pe-daço de madeira na mão, fingindo estar trans-mitindo as palavras do entrevistado como se fosse um deles. A narrativa do episódio é hoje recontada pelo filho mais velho de Egon, Luiz Fernando Iser, 51 anos.

A paixão pela comunicação brotou cedo no peito do menino moreno e franzino. Em uma época em que ter rádio era artigo de luxo, a comunidade reunia-se no armazém da família Iser para ouvir a programação da Rádio San-ta Cruz – pioneira em radiodifusão regional - que não deixava de observar a performance do garoto imitando os locutores: narrava a chegada de mercadorias, a missa de domingo e também a pelada de futebol entre os irmãos no quintal de casa.

A curiosidade sempre foi o despertar dos olhos castanhos de Iser. Esperto e observador, aprendeu rápido a administrar o comércio da família e a se portar como gente grande. Pois, aos 17 anos, assumiu o sustento da família de nove irmãos, após o pai, Lindolfo Iser, adoe-cer por câncer no intestino. O jovem sonha-dor encontrou no município vizinho a chance de ajudar nas despesas da casa. Com o ensino fundamental incompleto, seu primeiro empre-go foi como balconista em uma loja de depar-tamento na cidade de Santa Cruz do Sul, cerca de 30 quilômetros da vila em que morava per-corridos diariamente de bicicleta.

Porém, o dinheiro que garantia fartura na mesa e conforto dentro de casa não foi o sufi-ciente para manter pulsante o coração de seu pai. O sonho de infância somente ficou mais perto de se tornar realidade quando sua mãe, Irena Iser, decidiu vender o comércio no inte-

rior e se mudar para Santa Cruz com os irmãos. Sem hesitar, Iser se candidatou para a vaga de locutor que a Rádio Santa Cruz oferecia.

A língua presa de Egon não o impediu de se tornar locutor. Uma arriscada façanha de um farmacêutico resolveu o problema. Um peque-no corte na ponta da língua e algumas horas diárias de treino trouxeram a Iser fluência e clareza na locução. “Ele tinha um jeito mui-to peculiar de falar no rádio, fazia com que as pessoas se sentissem parte do que estava acon-tecendo”, declara a nora Marinês Iser.

Foi assim que, na década de 50, o radiojorna-lismo do Vale do Rio Pardo ganhava a ilustre figura de um dos radialistas mais importantes para o desenvolvimento do rádio na região. A sua marca registrada sempre foi a ousadia. Até Iser entrar na rádio, nunca antes houve uma transmissão externa. O jovem aprendiz im-plantou um sistema de cabo – somente usado na Capital - para transmitir bailes, jogos de fu-tebol, além de Festas do Colono e Motorista, comuns na cidade e no interior.

Um marco na carreira de radialista de Iser foi a transmissão da primeira missa da Igreja Ma-triz de Santa Cruz do Sul, às nove horas de um domingo com sol em 1954. Orlando Francisco Preto, 75 anos, mais conhecido como Padre Preto, na época seminarista que acompanhou a transmissão, relembra com saudade do fascí-nio que Egon Iser sentia em levar informação e lazer às pessoas que não podiam comparecer à missa: “O radialismo corria nas suas veias. Guardo boas lembranças deste sonhador.”

Mais de quinhentos metros de cabo percor-riam a Rua Marechal Deodoro, no centro de Santa Cruz do Sul, até a Catedral São João Batista, por cima de árvores e postes de luz. “Egon fazia tudo com muito cuidado e no domingo pela manhã revisava todos os cabos para que a missa fosse transmitida com muita qualidade”, relembra Padre Preto que por 15 anos rezou as missas que Egon transmitia pela rádio Santa Cruz.

A trajetória de Egon na comunicação é mo-tivo de orgulho para o filho Luiz, assim como

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para sua nora Marinês, “ele era um pai pra mim”, suspira ela. Foram 47 anos à frente do jornalismo da rádio Santa Cruz. Mais de qua-tro décadas de histórias e inovações para o for-mato dos programas de rádio. “Meu pai sem-pre pensava além da época que vivia”, comenta Luiz. Sem tecnologia e carro para transportar os equipamentos, a vontade era a força que movia a coragem de Iser para levar voz a quem não conhecia o rádio. “Quem viveu na geração dele, sabe, ele fez coisas que hoje é fácil de fa-zer”, conta Luiz.

Entre programas de auditório e transmissões de eventos, a maneira de lidar com o público deixou no coração de cada ouvinte, um sen-timento de cumplicidade. “Quando meu pai chegava no interior para transmitir os bailes, as pessoas tocavam nele para saber se era de verdade”, relembra Luiz.

Egon percebeu a importância que a rádio ti-nha na vida das pessoas e tornou este meio de comunicação um instrumento de serviço para a comunidade. Surge, então, a hora do recado, onde pessoas mandavam para a rádio recados que eram lidos no ar, durante a programação, para suas famílias e amigos, já que na década de 60, telefone só existia no centro das locali-dades no interior. Luiz retoma da memória al-guns recados que ouvia quando passava as tar-des acompanhando o trabalho do pai na rádio: “João Ribeiro avisa aos pais que está chegando da Capital no domingo pela manhã”.

Em 1993, Vale do Sol emancipou-se de Vera Cruz. A primeira eleição para prefeito da cidade foi acompanhada voto a voto pela equipe da Rádio Santa Cruz. Enquanto a a Justiça Eleitoral fazia a contagem das cédulas, repórteres da rádio também conta-vam, ao vivo, os votos. Quando a apuração chegou ao final, a Justiça Eleitoral anunciou a vitória da candidata Beatriz Krainovic, na época do PDS. Mas, a contagem da rádio apurou que o vencedor era Nelson Michel, do PMDB. Então, a oposição pediu a recon-tagem das cédulas, onde constatou-se que a apuração da rádio estava certa. “Nesse dia, a

Rádio impediu que fosse feita uma injustiça, porque quem teria ganhado, não seria empos-sado”, relembra Luiz.

Locutor, coordenador de programação, dire-tor geral, gerente e até vendedor de publicida-de. Foi na Rádio Santa Cruz que Egon conso-lidou a sua carreira como radialista. Mas em 1º de maio de 2002, realizou mais um sonho, fundou a primeira rádio do município de Vera Cruz, sua cidade Natal. Com a ajuda dos filhos Sérgio e Luiz e do irmão Elpídio Iser, 65 anos, criaram a Rádio Comunitária Vera Cruz com uma programação voltada para integrar a co-munidade vera-cruzense.

Na década de 90, a cidade de Santa Cruz do Sul respirava basquete através da participação do Pitt/Corinthians, time local, na liga Nacio-nal. Sem verba, Egon tirava do próprio bolso o custeio do transporte e hospedagem pelo Bra-

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sil para poder transmitir em tempo real os jo-gos. “Ele não se importava se gastava o dinheiro dele, porque achava que era importante difun-dir a cidade e cobrir o evento para a população saber dos resultados dos jogos enquanto a bola rolava”, comenta Luiz.

Egon pode acompanhar o crescimento e a consolidação do sucesso da Rádio Com em Vera Cruz por oito anos. Em 13 de julho de 2010, o vigor que Egon depositou na evolução do rá-dio em Santa Cruz, se esgotou e o radiojorna-lismo regional perdeu um dos alicerces da sua história. “Ele sempre buscou o que é o novo, o diferencial”, diz Luiz, com os olhos cheios de lágrimas. Foram inúmeras as contribuições que Egon deixou para o rádio, pois ele fez do rádio a sua vida.

Chegou o General da BandaO programa que ficou conhecido em muitas lo-

calidades do interior e em municípios do Vale do

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Rio Pardo e Taquari, também foi fruto da men-te criativa de Egon. Na intensão de diversificar a programação e levar alegria para dentro das casas dos ouvintes, o Programa Chegou o General da Banda, alavancou a carreira de muitas bandas da região. “Não teve uma moça que não limpou a casa ao som das músicas que Seu Egon tocava no Programa”, relembra Marinês.

Por mais de 40 anos, a voz do radialista protago-nizou o programa que ia ao ar aos sábados à tarde, das duas às cinco horas. Nos anos 70, eram realiza-dos bailes com a temática do programa em cidades da região, alguns chegavam a durar 12 horas segui-das. O programa ainda faz parte da programação da Rádio Santa Cruz, mas, hoje, na voz de Fritz Jacó. Foi em uma destas festas que Egon conheceu, em 1958, Dirce Severo Iser, 76 anos, com quem se ca-sou no ano seguinte e teve cinco filhos: Sílvio Pedro Iser, Sérgio Tadeu Iser, Luiz Fernando Iser, Marco Antônio Iser e Lísia Pedroso Iser.

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Testemunha ocularOutro episódio que marcou a vida de Iser foi a

morte do Deputado Estadual pelo PSD, eleito por Santa Cruz do Sul, Euclides Nicolau Kliemann, em agosto de 1963. Iser acompanhava a entrevis-ta ao vivo que Kliemann concedia à Rádio Santa Cruz, na sala de operação de áudio, em frente ao estúdio. Depois de uma hora de discurso e acusa-ções à oposição, Kliemann cedeu o lugar ao ve-reador Floriano Menezes do PTB, conhecido na época como Marechal.

Durante a entrevista do representante da opo-sição, Kliemann ouviu palavras que o levaram ao encontro da morte. No momento em que o Ma-rechal falou que Kliemann também era motivo de acusação entre os integrantes do partido PTB, o Deputado, revoltado, entrou no estúdio para se defender e foi recebido com um tiro à queima rou-pa dado pelas mãos do Marechal.

Luiz narra as palavras ditas pelo pai, enquanto era vivo, da cena que presenciou na noite do dia 31 de agosto de 1963: “Quando Kliemann levou o tiro no peito, ele deu dois passos, colocou a mão na parede, onde, até hoje – antes de uma reforma–

ainda tinha a marca de sangue da mão dele e, só depois, caiu”.

Três gerações no rádioAlém do parentesco, também corre nas veias de

três gerações da família Iser, o sangue de radialis-ta. A dedicação pela prestação de serviço à comu-nidade através do rádio, também se consolidou com três dos cinco filhos de Egon e Dirce. Luiz Fernando, Sérgio e Marcos Iser trabalharam na rádio Santa Cruz quando jovens. Luiz e Marcos seguiram carreira jurídica como advogados. Mas, o filho Sérgio, assim como o neto Lucas, 24 anos, filho de Luiz e Elpídio Iser, 63 anos, irmão de Egon, mantém correndo em suas veias o sangue radialista, perenizando o amor pela comunicação com o trabalho na Rádio Com, em Vera Cruz. Na entrada da Rádio, em Vera Cruz, quem recebe as pessoas é a foto de Egon, alimentando na memória e no coração dos ouvintes, histórias de uma época promissora do rádio na região.

Luis Iser

Lucas Iser

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O lugar era propício, agradável. A vista era imensurável. Imagine o mar.O clima pedia uma cerveja, essa bebida de calor. De se beber, e quando se toma, você se solta, começa a rir, fica mais feliz. No aconchegante restaurante, Olga en-controu-se com Bernardo, que mora a uma quadra do local. O primeiro encontro. E também o primeiro abraço. As conversas fluíram como o vento que soprava levemente naquele início de noite. E que noite. Mesmo com o ambiente fechado, as janelas proporcionavam uma vista magnífica do mar. Mar que é contemplado todos os dias da sacada do apartamento de Bernardo. Olga claro, não deixou a desejar. Simples, mas sedutora, usava uma saia, a meio pal-mo da cocha, blusa vermelha e um casaco preto para dar “ar” de moça mais séria.Bernardo, mais simples ainda, usava uma camiseta preta, deve ser sua cor favorita. E, diga-se de passagem, vestia-lhe bem. Bar-ba por fazer, Bernardo passava levemente a mão em seu rosto, talvez insinuando a segurança que tinha de sobra.Olga, em sua bondade ou desconfiança, olhava com seus olhos oblíquos e caídos para os lados. Seus olhos rubro-negros cha-mavam a atenção até do garçom que insis-tia em lhe oferecer água, ou a bebida que continuavam a tomar.Depois de algumas horas de conversas e risadas o casal se despediu, com um abra-ço de “até breve”. Este “até breve” seria dois dias depois, em uma festa em que Bernardo convidou Olga, com a desculpa de ser uma boa companhia.

Para Olga não havia, porém, nenhum im-pedimento. Solteira e com todo o amor do mundo, queria se aventurar algumas horas na companhia de Bernardo, que também não era comprometido.Noite de luar de sexta-feira. Olga, sozinha, foi na festa se encontrar com Bernardo. Lá, o óbvio aconteceu. O óbvio já estava na per-gunta, no convite para a festa, o óbvio já es-tava há dois dias. E claro, o óbvio surpreen-deu. Depois de alguns copos de bebidas, o casal dançou na pista. Olhares se cruzaram, mãos se encostaram e as bocas se beijaram. Fato. A festa terminou no apartamento de Bernardo, algumas quadras dali.Música alta, beijos e mais beijos, o casal vi-veu o óbvio que já se mostrava presente no primeiro olhar. Na sacada, dançavam sem pressa e na maior intensidade. Olga e Ber-nardo se mostravam repletos ou completos em suas companhias. A reciprocidade era tanta que o casal amanheceu junto. De olhos fechados os dois se beijavam, como se fosse a única e talvez a última vez. De olhos abertos, os dois sorriam como se fossem os mais apaixonados. De pés descal-ços, os dois cresciam como se fossem dois adultos. De mãos dadas, os dois se mostra-vam mais fortes, como se fossem indepen-dentes. Inexplicável explicar o inesquecível. O que muda; o que fica; o que vai, o que restou. Se é que restou! No caso de Bernardo e Olga, o que ficou foi o vazio de uma xícara de café. Assim se despediram. Falando dos sonhos e se “enamorando”, com uma xícara de café. O sonho aconteceu, o encontro acabou, e o café terminou.

Mar de encontroAngélica Weise 45Viviane Moura

Crônica

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A luta de Augusto

Vanessa Behling 47

A deficiência motora não impede o garoto de praticar judô, estudar e sonhar

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Augusto Pacheco tem deficiência motora, mas isso não o impede de praticar judô em busca da cura

O sonho de ser goleiro de futebol pode não se realizar. Pelo menos é a convic-ção da mãe, Carina Christmann, e do próprio Augusto André Pacheco, de apenas 11 anos. Nem por isso o pequeno Guto deixa de sorrir, brincar, estudar e praticar outras atividades. O menino nasceu com deficiência motora, o que só foi diagnosticado alguns dias depois de chegar ao mundo. O problema o impossibilita de andar. “O sonho da vida dele é ser jogador de futebol. Ele diz que tem habilidade como goleiro, mas sabemos que é impossível. É com-plicado colocar um deficiente numa escolinha de futebol de meninos normais. Só se teria a possibilidade de colocá-lo num time todo de cadeirantes”, explica a mãe.

Há cerca de um ano, Carina recebeu uma proposta de emprego e precisou encontrar algum lugar para deixar o garoto enquanto trabalhava. Carina procurou o Centro Social Infanto Juvenil de Venâncio Aires, que se dis-pôs a encontrar atividades para Augusto no período da tarde, já que o menino estuda no período da manhã na 6ª Série do Colégio Par-ticular Gaspar Silveira Martins. Foi então que apareceu o professor Marco Antônio Pretto, da Academia de Judô Gloc, do Colégio Parti-cular José de Oliveira Castilhos. Pretto o con-vidou a participar das atividades na academia. “Quando ele começou a ir às aulas, e a relação com o professor começou a se solidificar, no-tou-se uma grande melhora, sem contar que ficou mais comunicativo”, conta a mãe.

A participação de Augusto nas aulas foi tão efetiva que, no final de 2011, o menino passou de faixa branca para a cinza, entregue aos que sempre estão presentes nas aulas e são discipli-nados. Para passar da cinza para a azul é ne-cessário que o atleta esteja registrado na Fede-ração Gaúcha de Judô. Pelas limitações físicas, Augusto não consegue obter o registro na FGJ, mesmo que tenha ótimo conhecimentos teó-ricos de regras e posturas que o esporte exige.

Apesar das limitações, quando está senta-do no tatame vermelho e verde da academia, Guto se esforça e realiza todas as atividades propostas. Com muita vontade de se exercitar como os demais, seu olhar o entrega. Os cole-gas lutam, brincam e aprendem. Augusto fica sentado, quieto e sorridente esperando a sua hora de ter a atenção do professor. Quando este se aproxima e senta ao seu lado, o garo-to vive o momento intensamente. Conversa, puxa o kimono do professor, mexe os braços e sorri muito. Ao final, é ele que é responsável pelo encerramento da aula. Guto dá as instru-ções aos colegas que se ajoelham, em silêncio, saúdam a foto do mestre fundador do judô, Ji-goro Kano, fixada na parede. Em seguida, os pequenos aprendizes levantam e a saudação se repete, e por fim realizam um cumprimento ao professor. “O Guto me ajuda a programar atividades para os colegas, exercitando a men-te. Em alguns exercícios ele é limitado, então procuro trabalhar atividades para movimentar os seus braços, tentar movimentá-lo para lhe dar mais força. Por exemplo, o faço pegar meu kimono, peço para que tente me derrubar. Isso o mantém em atividade. Para ele é muito bom estar em cima do tatame, mesmo que fique mais tempo sentado. Procuro conversar bas-tante com ele, falamos do Grêmio. O garoto é sempre muito positivo, sempre coloca a gente pra cima”, fala Pretto.

Augusto não tem a presença do pai, que mora no nordeste do país e está separado da mãe há quase 10 anos. Guto não o vê há mais de dois anos. Ele não gosta de falar sobre o assunto, mas seu olhar entrega a saudade e a falta que a figura paterna lhe faz.

A mãe Carina, que encarou a missão de criar dois filhos sozinha, “matou no peito” as difi-culdades e não vê o filho como um problema, e sim como uma bênção. “Quando fiquei sa-bendo do problema dele senti um aperto, mas para mim, agora, é muito normal, uma criança normal, estuda, não toma medicação, faz tudo normal. Só não consegue caminhar e escrever. Ninguém nunca me disse ‘olha, o Augusto não

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vai voltar a andar’. A única coisa que se sabe é que ele nunca pode deixar de fazer exercícios físicos. Ele faz equoterapia e fisioterapia”.

Em 2012, Guto alcançou um grande avan-ço na sua condição física. A mãe se emociona quando lembra a primeira vez que o filho, aos 11 anos, conseguiu escrever à mão o nome dos dois num papel, já que esta atividade sempre era feita com o apoio de um notebook, onde nas aulas faz suas atividades e provas.

Na escola, enquanto o garoto é destaque como estudante pelo bom desempenho nas aulas onde não apresenta dificuldades, a lo-comoção de um lugar para outro é o maior problema. Com o apoio de um andador, que permanece no educandário, Augusto consegue se deslocar ao longo dos corredores. Para subir e descer as escadas precisa do auxílio de fun-cionários e colegas da escola. A mãe diz que em casa a convivência já está acostumada. “O trabalho de levá-lo de um lugar para outro, da cama para a cadeira, da cadeira para o sofá, o banho que tem que ser sentado, isso tudo já está na nossa rotina. Apesar de tudo, ele é muito feliz. De vez em quando bate a tristeza. Pergunta se eu acho que um dia vai caminhar, mas ele sabe das suas condições. O Guto nun-

ca reclama, apesar de todos os empecilhos que encontra no caminho”, salienta Carina.

O professor de judô da academia Gloc, Mar-co Antônio Pretto, diz que o menino é muito mais que um aluno, é um presente que ganhou. “O Augusto é um presente e um desafio para mim. Preciso me esforçar para aprender a lidar com a deficiência dele, mas ele é muito que-rido, nunca reclama de nada, nunca pede pra ir ao banheiro ou tomar água no meio da aula como os demais alunos. Então para mim é uma satisfação muito grande ter ele no tatame. Ele é um exemplo a ser seguido, é esforçado, é uma dádiva para mim. Reclamamos tanto da vida e não vemos ao nosso lado quem, com tantas di-ficuldades, está sempre sorrindo e brincando”.

Augusto é deficiente, mas não se atém a isso. Ele é amante do esporte, do futebol, do Grê-mio, do judô,. E, é alguém que está em busca de alcançar seus objetivos, da realização de so-nhos. Abraçar uma atividade física pode trans-formar o dia-a-dia de um atleta especial e ain-da fazer bem para a saúde do corpo e da mente. Movimentar-se é a palavra de ordem. Não im-porta se o atleta tem como objetivo jogar pro-fissionalmente ou de forma amadora, mesmo porque Augusto já provou que é um campeão.

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EternaInfânciaA infância continua, os brinquedos é que mudam

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Fernanda Pfeifer

EternaInfância

51Modelos: Marina König e Giovane Thomas

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O sequestro das meninas francesas

Há 75 anos um drama familiar tirou a tranquilidade de Monte Alverne

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Berenice Bohnen 55Reprodução

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Há 75 anos um drama familiar tirou a tranqüilidade de Monte Alverne, Distrito de Santa Cruz do Sul, dis-tante 28 km da sede. O ano de 1937

já estava pela metade quando o pequeno vilarejo foi palco de um sequestro internacional. Até hoje os moradores recordam o caso do rapto das meninas francesas.

É só abrir a porta de sua casa e um turbilhão de lembranças invade a memória de Célia Maria Geller Ullmann. A mão de pele enrugada passa entre os ca-belos grisalhos e os olhos se fixam em direção ao ca-sarão antigo, no momento rodeado por andaimes da equipe que trabalha em sua restauração, situado em frente à sua residência. Dona Célia, na consciência plena de seus 94 anos, não esquece a ocasião em que a casa, na época pertencente ao médico Pedro Egller, virou manchete na imprensa internacional.

A década de 30 já passava da metade. A pequena Riothal, ou Vale do Rio, hoje chamada Monte Al-verne, contava com uma população de 200 habitan-tes. Em meados de 1937 a traquilidade do local deu lugar a uma série de acontecimentos espetaculares. Célia Ullmann, na época com 18 anos, recorda de todos os detalhes. “Lembro perfeitamente do dia em que um casal, com aparência muito refinada, acom-panhado de duas crianças e uma senhora de mais idade, chegou a nossa vila e, imediatamente, virou comentário entre os moradores”.

Tratava-se do casal argentino Marie Louise e Jean Bovet, as filhas francesas dela, Beatrice, 13 anos, e Maria José, 9 anos, e a governanta da família, a su-íça Johanna. Sempre muito discretos, os desconhe-cidos se hospedaram no Hotel Moritzen. Até esse momento os moradores não suspeitavam os motivos daquela família, que aparentava ter um alto poder aquisitivo, vir se hospedar no pequeno vilarejo que estava tão distante da civilização. Ninguém podia imaginar que aquelas pessoas estavam envolvidas em um sequestro internacional que iniciou na França.

A fugaA série “Sequestro em Monte Alverne”, escrita pela

jornalista Mara Pante e publicada no jornal Gazeta do Sul em 1998, conta que, órfã e herdeira de uma fortuna de seis milhões de pesos, a argentina Marie Louise Hileret foi morar com parentes franceses.

Lá se casou com Louis Albert, alto funcionário do governo francês. A vida de casada, que prometia ser um conto de fadas, acabou se transformando num drama. Vinte anos mais velho, Aubert não demons-trava menor afeto pela esposa. Marie Louise, cansa-da de tanta adversidade, pediu o divórcio.

Nas reportagens consta que, segundo os jornais argentinos da época, depois do processo de separa-ção a guarda das filhas acabou ficando com o pai. Para evitar o afastamento, a argentina, aproveitando uma das longas viagens do ex-marido, fugiu com as meninas para sua terra natal. Quando Louis Aubert descobriu o sumiço das filhas, Marie Louise já esta-va casada com Jean Robert Bovet, que conheceu na França e acabou reencontrando na Argentina. Bo-vet e a governanta suíça Johanna, que acompanhou a fuga das três, acabaram se tornando cúmplices do rapto das filhas de Aubert.

Na França a polícia não soube dar conta do para-deiro das fugitivas. Louis Aubert se lançou em per-seguição internacional ao descobrir que elas haviam embarcado para a Argentina. Quando teve conhe-cimento das buscas do ex-marido, Marie Louise, temendo uma possível decisão negativa da Justiça, partiu com seu novo esposo, a governanta e as filhas, rumo ao Brasil.

No Rio Grande do Sul os fugitivos passaram por Uruguaiana, Porto Alegre e Rio Pardo. Na capital travaram relações com pessoas influentes, inclusive o governador Flores da Cunha. Em Santa Cruz do Sul encontraram um refúgio. Foi no distrito de Rio-thal, hoje chamado Monte Alverne. A pequena ci-dade parecia segura ao casal que ganhou a proteção do médico do lugarejo, doutor Pedro Eggler, ami-go do governador do Estado. Enquanto isso Louis Aubert não descansava e continuava as buscas pela ex-mulher e as filhas.

O RefúgioEm Monte Alverne, depois de alguns meses hos-

pedados em um hotel, os Bovet compraram uma casa de esquina com 11 mil metros quadrados na rua principal do vilarejo. Aos poucos foram chegando móveis de luxo e cavalos. Os franceses começaram a se integrar com a comunidade com o apoio de Pedro Eggler. Dona Célia, filha de Martin Geller, que aju-dava na loja de secos e molhados do pai, conta que

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a madame, como foi chamada entre os moradores, era uma mulher muito refinada, mas que apreciava as coisas simples. “Fiz crochê para ela”.

A série da Gazeta do Sul, “Sequestro em Monte Alverne”, conta que Marie Louise e as duas filhas já estavam havia meses escondidas na localidade quando, em Santa Cruz, Pedro Eggler soube que uma viatura da polícia estava à caminho do distrito em busca dos fugitivos. Eggler conseguiu atalhar pelas terras de um amigo em Linha Santa Cruz e chegou a Monte Alverne a tempo de avisar os fran-ceses da proximidade da polícia. A partir desse mo-mento o clima de tensão tomou contou da peque-na cidade.

Quando a viatura chegou, Eggler, tranquilamen-te, fazia uma cirurgia em seu hospital, como se nada houvesse acontecido. Na casa dele, Marie Louise e o restante da família Bovet estavam ocultos atrás de um grande guarda-roupa, com fundo removível. Atrás deste, uma cavidade na parede dava acesso a um sótão lateral, na inclinação do telhado. “Os po-liciais revistaram o local, mas nada encontraram” conta Célia Ullmann, vizinha da frente do casarão de Pedro Eggler.

No mesmo dia também foi revistada a casa de Helvetia, filha mais velha de Eggler, que ficava nos fundos da mansão. No momento ela se preparava para amamentar e os policiais desistiram da revista,

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sem saber que, debaixo do colchão do bebê, estava escondido o fuzil de propriedade de Jean Bovet e, na cesta de roupas sujas, as jóias da madamme.

O mesmo refúgio ainda seria usado muitas vezes, mas o cerco policial apertou tanto que, quando houve a ameaça de trancar as entradas de Riothal, impedindo inclusive a chegada de alimentos, a fa-mília Bovet decidiu abandonar o esconderijo.

Segundo a série, o cônsul frances Louis Aubert, chegado a Porto Alegre havia pouco, tomou co-nhecimento do paradeiro das filhas e partiu para Santa Cruz do Sul, acompanhado de um advogado. Extrajudicialmente, as tentativas de entendimento entre Aubert e Marie Louise duraram dois dias, mas não houve consenso. A mãe não concordava com algumas cláusulas do processo tocante ao fu-turo das filhas. Nesse momento a polícia estadual tem posse de um mandado expedido pelo juiz fe-deral com a medida a ser tomada: a apreensão das crianças.

Célia lembra que na hora do embarque quase toda a população do pequeno vilarejo parou para se despedir das meninas, da madamme e de Jean Bovet. Nos poucos meses que ficou em Monte Al-verne, Marie Louise conquistou inúmeras amiza-des. Bovet ficou na localidade por mais um tempo, para resolver negócios pendentes.

A governanta suíça resolveu ficar depois de se apaixonar por um imigrante alemão. A filha dela, Beatrice Gaertner, 72 anos, reside até hoje em Monte Alverne e recorda o grande afeto que a mãe tinha pelos franceses. “Passávamos noites ouvindo as histórias que ela contava, às vezes até algumas lágrimas caiam do rosto dela que, sentia muitas saudades da madamme e das crianças”.

Marie Louise e as filhas foram de carro para a Re-partição Central da Polícia em Porto Alegre, onde foi selado um acordo de paz. As duas meninas se-riam internadas em um colégio e a mãe teria direito a uma visita semanal. Em 14 de outubro de 1937, Beatrice e Maria José partiram para o Rio de Janei-ro, em companhia do pai Louis Aubert. Madame Marie Louise seguiu também para Paris, junto com o marido, Jean Bovet. Depois disto, nunca mais se ouviu falar no paradeiro dos protagonistas desta história.

O caso virou série de jornalAté 1998 os moradores de Monte Alverne desco-

nheciam detalhes do acontecimento que movimen-tou a localidade na década de 30. No dia 15 de julho daquele ano uma manchete na contracapa do jornal Gazeta do Sul chamou à atenção dos residentes. O título da matéria (Monte Alverne vira cenário de se-questro internacional) com a foto do casarão mais antigo do distrito instigou a curiosidade de todos que acompanharam, durante 11 dias, a série “Se-questro em Monte Alverne”, escrita pela jornalista Mara Pante.

A ideia da série surgiu em uma conversa com o pároco que atendia a localidade naquele ano, Padre Miguel Wagner, hoje já falecido. “Ele me mostrou um livreto da paróquia, contou fatos locais, curiosi-dades e falou do seqüestro ocorrido em 37. Na hora me encantei e me propus a escrever a série, mas des-conhecia a dimensão da história e a repercussão que teria”, conta a jornalista.

Com o apoio do pesquisador Heinz Weiss, afilha-do de Marie Louise e neto de Pedro Eggler, Mara foi até o distrito, conheceu a casa que abrigou os fugi-tivos e começou a investigação. Até esse momento Weiss já havia passado muitos anos investigando a história da madrinha. Foram mais de 30 pessoas en-trevistadas entre argentinos, franceses e moradores de Monte Alverne.

Depois de veiculada, a série, que rendeu a repór-ter uma comenda rotária em jornalismo, repercutiu até fora do país pelos diversos contatos feitos com a Argentina e a França, mas Mara Pante conta que a história ficou sem o fim que ela desejava. “Fui atrás do paradeiro das meninas, hoje senhoras de idade, mas não obtive resultados concretos. Os familiares e conhecidos se negavam a falar, possivelmente com medo de represálias ou por estarem ainda ocultando o paradeiro das francesas” relata.

A série “Sequestro em Monte Alverne” é considera-da por Mara a melhor de todas que já escreveu. “Pelo conteúdo romanesco e pelo envolvimento que tive nos dois meses que levei para montar a reportagem, chegava a sonhar com a história e seus personagens” conta. Muitos moradores de Monte Alverne pos-suem a série, que é o único registro na região sobe o acontecimento, encartada e guardada em suas casas.

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Miro

Ele vive com um sorriso fácil no bairro mais carente de Vera Cruz

poderia ser

mais feliz

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Jaqueline Gomes 61

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Olmírio da Silva não é um homem triste, mas poderia ser mais feliz. Pela rua estreita e desnivelada do bairro São Francisco, o mais ca-

rente de Vera Cruz, não é difícil encontrá-lo. Basta seguir em frente ao amontoado de casas de paredes grudadas umas às outras, a maioria erguida de forma irregular, para enxergar o ci-dadão de 71 anos sentado à porta do casebre. Vive ali há oito anos, entre duas casas que, pelo colorido das janelas, são, provavelmente, das mais bonitas do bairro.

O cenário não é de conforto, mas (por pouco) também não é daqueles em que falta comida na mesa. É onde Olmírio, o seu Miro, exibe sor-riso fácil. Solta gargalhadas. Sorri para ironizar as dificuldades, a falta de sorte e até para dis-farçar quando não entende a conversa. Miro faz balaios. É o artesanato que por muitos anos lhe garantiu o sustento e dos dois filhos - uma me-nina de 16 anos, que sofre de deficiência men-tal, e um menino de 11, que cria sozinho depois que enviuvou pela segunda vez.

Miro é um trabalhador. Nasceu em 1941, mas não sabe a idade que tem, tampouco a data do aniversário. Precisa exibir o documento de iden-tidade, guardado com cuidado entre as roupas largadas em prateleiras de madeira improvisa-das nas paredes, para ele mesmo ter certeza que é um cidadão vera-cruzense. Miro, o ‘fazedor’ de balaios do bairro São Francisco, é um traba-lhador sem salário. Mas, quando era moço, che-gou a ter emprego. “Me criei na colônia. Che-guei a ter emprego. Trabalhei na construção, de pedreiro, mas não durou muito tempo. Eu era muito invocado e bebia”, lembra.

O vício da cachaça logo trouxe a demissão. Foi aí que ele aprendeu a fazer balaios. Por conta de nunca ter tido carteira de trabalho ou qualquer registro como profissional assalariado, Miro chegou à idade de se aposentar sem conhecer o significado do que é essa fase da vida chamada de melhor idade. Vive com o dinheiro da con-fecção dos balaios. Agora que está doente, ergue as mãos para os céus por ter conseguido, depois de muito tempo, encaminhar uma pensão, um

benefício por causa da doença mental da filha.Miro não tem vergonha de falar da situação

em que vive. Apesar de todo aperto, garante ser um homem trabalhador, mas que não teve sor-te na vida. Olmírio da Silva vem de uma famí-lia simples, de nove irmãos – cinco homens e quatro mulheres. Hoje não têm mais contato, estão perdidos no mundo, mas lembra que to-dos tiveram a oportunidade de estudar. Nesse momento, fica cabisbaixo, mas logo disfarça com um sorriso largo. Miro nunca conseguiu aprender. Ficou na escola, no interior, por cin-co anos. “Mas eu saí no mesmo ano (série) que entrei. Saí burro igual”. Foi depois de muita ida-de que conseguiu aprender a rabiscar o nome. “Mas quando estou com a cabeça muito cheia não consigo”, emenda.

O vera-cruzense Olmírio da Silva já esteve na cadeia. Quando tinha 39 anos foi parar no Presídio por conta de uma briga em que acabou matando um homem. Apesar de ser um pouco briguento – por causa da bebida, ele confessa – foi para se defender. Como não tinha dinhei-ro para pagar advogado, foi condenado. Ficou preso por quatro anos. Hoje, garante que parou com os vícios – o único é o chimarrão – para poder cuidar bem dos filhos, que quer ter sem-pre ao alcance dos olhos.

As coisas na casa de seu Miro são simples. É escuro. A lâmpada pendurada pelos fios mal ajeitados no madeiramento do telhado não dá conta do ambiente. Não há armário para as rou-pas e para as louças. O pouco que tem fica sob a pia e o fogão. A geladeira, doada por estranhos, divide na pequena construção cheia de frestas entre as madeiras o que é a cozinha e o quarto. Miro mal consegue cuidar de fazer as refeições, que quase sempre têm feijão e um pedaço de carne. Enquanto coloca uma panela para fer-ver no fogão, escora-se no banco pregado sob medida para o ambiente. As feridas nas pernas lhe impedem de ficar muito tempo de pé. Mas o homem de pele escura, cabelo e barba mal apa-rados, ainda se esforça. Caminha, como quem já não tem mais estabilidade nas pernas, desce o degrau da porta - encurtado com um pedra na

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soleira - para mostrar os balaios que trançou nos últimos dias.

Leva dois, três, quatro dias, para fazer o serviço que antes parecia fácil. Assim como pode, meio trambaleando as pernas, sai de casa e caminha mais de três horas para ir para o mato, em Dona Josefa, catar os cipós para fazer os balaios. E traz os cipós nas costas. Cada balaio, “bem trançado e com alça”, custa em média R$ 30 a R$ 40. O ofício aprendeu depois que saiu da prisão.

Ele já não vende muitos balaios. Não conse-gue mais juntar o cipó e a taquara. Quando tem a matéria-prima em casa, passa o dia a rachar a taquara e trançar o cipó. Não tem segredo, se-gundo ele. É só girar e trançar firme. O proble-ma é que tem semanas que ele não vende, não consegue nem aprontar as encomendas. “Mas eu tenho muito conhecimento na rua. Faço conta no mercado para pagar no fim do mês”, conta, satisfeito porque seu Miro é homem em que se pode confiar, ele controla as contas di-reitinho. “Não deixo acumular muita coisa. Se não tenho passo aperto em casa, mas não fico devendo”, garante.

Satisfeito por ser homem honrado nas contas, o que Miro não gosta é de pedir. Mas tudo o que

vem doado ele aceita de bom grado.O orçamento familiar de seu Miro dos Balaios

é apertado, mas ele garante que dá para viver com comida no prato. Por isso, controla bem as con-tas que consegue fazer graças à pensão que ga-nha para cuidar da filha, dinheiro que só chegou depois que enviuvou. Com crédito na praça, no final do mês – com açougue, mercado, padeiro e farmácia – as despesas chegam a R$ 600.

A conta às vezes estoura por causa das regalias dos filhos. E ele não se queixa. Faz questão de deixar alguns mimos quando eles vão ao merca-do para não terem motivo de roubar ou procu-rar as drogas. “As pessoas dizem que sou burro, que meus filhos estão gordos e eu passo mal, mas como não vou gostar de ver eles gordos. Tenho muito amor pelos meus filhos”, indaga.

Se é certo ou errado, só Miro pode dizer. O fato é quem que entra na casa dificilmente não perceberá o contraste das tábuas, já escoradas nos pilares por causa do risco de desabarem, com a televisão, o vídeo-game, e o telefone celular na mão do filho mais novo. “Como eu não vou dar? Se ele não ganhar, vai querer roubar”. replica o seu Miro.

Por isso, mesmo que se prive de comprar coisas

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Miro quer ter uma casa de verdade

para si mesmo, o homem dos balaios não se im-porta. “Para mim, qualquer arroz com batata ou mandioca serve”.

Usa as roupas doadas pelos vizinhos ou pela as-sistência social e faz questão de dar os presentes para os filhos. O chapéu que veste até parece já fazer parte dos seus traços físicos. É do Comando Abutre, extinta equipe de Vera Cruz, a Capital das Gincanas.

Ele aproveita para lembrar que no mercado, o que as crianças mais gostam é dos pacotes de bo-lachas recheadas e de bife empanado.

- Por causa deles tenho três prestações na loja.Seu Miro diz que pelo menos assim consegue

mantê-los perto do seu olhar.A vida não parece fácil para Olmírio da Silva, o

homem dos balaios. Mesmo assim, ele faz ques-tão de deixar claro que não é uma pessoa triste. Conta que muita coisa deu errado, mas não para de batalhar. “Acho que é por isso que eu não dou sorte. Eles me veem trabalhando, daí acham que eu não preciso. É assim até na hora de me convi-dar para a festa dos idosos. Eu nunca ganho con-vite”, reclama.

Miro não tem vergonha das dificuldades. Tem orgulho da honestidade. O que o faz feliz não é um sonho distante. É ter os filhos por perto e honrar as contas no final do mês.

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É feliz com pouco, mas sonha em ter um lar. Onde ele mora no bairro São Francisco, diz ele: “é pior que uma estrebaria”. E continua: “Queria ter uma casinha. Aqui não é casa. Alí (mostra a parede da casa do vizinho, que também é sua proteção), quando cho-ve molha tudo como no lado de fora. Até boi e cavalo tem lugar melhor do que eu”.O homem dos balaios mora no casebre há oito anos. Nem mesmo as quatro paredes da casa são suas. Depois de fazer um em-préstimo de R$ 1,8 mil no banco, Miro er-gueu o telhado da moradia aproveitando, de um lado, a parede da casa do vizinho. Assim, seu Miro relembra o passado, mas tem os olhos voltados ao desejo de um futuro melhor. “Com uma parte do dinheiro eu comprei uma charrete brochada com cavalo para ir buscar o cipó, mas tive que vender para cobrir a casa. Se eu pudesse, queria ter um lugar de verdade pra morar”. Quem sabe, um dia a sorte vira, e seu Miro ganha um lar.

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Paz, carnaval e bocha

No interior do estado, ela chega a competir em popularidade com o futebol – e faz a alegria de muita gente

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Geferson Kern 67

Há uma destas músicas recentes, do baianíssimo estilo axé, cujo refrão exalta, alto e bom som, três reco-nhecidas paixões tupiniquins: a paz,

o carnaval e o futebol. Pois em Venâncio Aires, in-terior do Rio Grande do Sul, distante mais de mil quilômetros do provável ponto de composição da tal canção, essa lógica é levemente alterada. Nin-guém dispensa um pouco de sossego ou a descon-tração da folia carnavalesca. O futebol, na verda-de, também não fica de lado, mas precisa competir com outro esporte que, por aqui, é tão popular quanto ele. E não estamos falando de basquete, vôlei ou futsal. Com o perdão do trocadilho, aqui quem dá bola é a bocha.

É terça-feira, 12 de junho, dia dos namorados. A temperatura chega a quase 20 graus e a umida-de relativa do ar é alta. Nada disso, porém, altera o tradicional encontro de bochófilos na sede da AABB, na região central do município. Afinal, o grupo, que se reúne há cerca de três anos sempre no mesmo dia da semana e chega a contabilizar mais de 20 jogadores, estaria ali mesmo se tivesse chuva, frio ou granizo, seja dia de serão no traba-lho ou feriado de proclamação da república. En-quanto o tradicional jantar pós-jogo é preparado, eles se revezam na formação das equipes. Pois mais importante que o resultado de cada partida é a sa-tisfação por estar ali outra vez.

“Em primeiro lugar, a bocha é uma integração, uma reunião entre amigos”, define José Cassiano Braga, 66 anos, já aposentado da função de pro-fessor de língua portuguesa. Praticante há nada menos do que seis décadas, ele é uma autoridade local no assunto e diz que nunca envolveu di-nheiro em seu hobby predileto. “Aqui, o jogo é por uma risada”, continua. E ele tem razão. Entre cada estrondo provocado pelo choque entre as bochas, há uma gargalhada, um comentário ana-lítico do jogo ou, tão somente, um desafio que quem está do lado de fora sopra aos que estão em ação. “É um lugar para ‘tocar flauta’”, diverte-se José Guarienti, 59 anos, escrivão de Polícia apo-sentado e responsável pelo jantar – parte indis-pensável do ritual de cada encontro.

A média de idade por aqui, é elevada. A maio-ria dos praticantes tem mais de 50 anos de ida-de – embora a bocha seja vista por eles como um esporte para pessoas “dos 8 aos 80 anos”, como descreve Braga. O grupo, porém, é unânime ao analisar que a renovação é difícil, mas não impos-sível. Prova disso é o garoto Vantuir, de apenas 16 anos e que começou a jogar entre os adultos, em uma cancha próxima de sua casa. Afinal, os bochófilos também costumam preservar o lado familiar do esporte – no âmbito da competição, há até mesmo um campeonato no Estado volta-do a duplas formadas por pais e filhos. “A bocha teve fama de ser ponto de bebedeira e até de bri-gas, mas o esporte se disciplinou”, avalia Guarien-ti. “Um colega de trabalho dizia que bocha era coisa de ‘bagaceiro’. Até que um dia, o Papa João Paulo II veio ao Brasil e foi fotografado rolando uma bocha em uma cancha. Foi a nossa desfor-ra”, relembra o ex-bancário Astor Kronbauer, 63 anos, se valendo de um termo comum na região para classificar os apreciadores da boemia.

O ambiente familiar e as disputas em cancha não são vistos somente na região central. É pos-sível ainda localizar focos de bochófilos em so-ciedades como a dos Motoristas, há cinco quilô-metros do centro da cidade, ou na região de Vila Deodoro, há mais de 30 quilômetros do distrito-sede. E numa região em que a economia gira ba-sicamente em torno da fumicultura, o cigarro, a despeito das recentes inquietações antitabagistas no Brasil e no mundo, tem presença liberada – ao lado da cerveja, para os mais empolgados; ou, para os mais contidos, do refrigerante de cola, invariavelmente servido nas velhas garrafas de vidro de 290 mililitros. Nem sempre, porém, o jogo é por prazer. Há torneios semiprofissionais e atletas que chegam a ganhar R$ 200 por noite de competição. “Nos campeonatos locais, a bocha tomou o mesmo caminho que o futebol”, reflete o professor Braga. A avaliação encontra eco no número de participantes do campeonato mu-nicipal da modalidade – que já teve mais de 50 equipes, mas hoje fica na casa dos 20.

A posição de Venâncio Aires como cidade-refe-

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rência do esporte ultrapassa fronteiras. “Na Festa Nacional do Chimarrão, a Fenachim, já recebe-mos até um Mundialito”, conta Kronbauer, orgu-lhoso, enquanto mostra os troféus conquistados pela equipe da AABB – em ocasiões que as ha-bilidades treinadas nas noites de diversão foram postas em prova. Durante o Mundialito de Bocha, além dos nativos locais, aglomeraram-se, dentro e fora das canchas, jogadores de países tão distintos quanto Itália, Argentina e Japão. A presença do público, como não poderia ser diferente nestes pa-gos, foi maciça. A popularidade também se reflete na imprensa municipal: cálculos dos repórteres responsáveis pelas páginas esportivas dos jornais e rádios locais calculam que pelo menos metade de seus espaços sejam destinados, com amplo en-foque na bocha, ao esporte amador. Todos os dias, sem falhar.

Mas, porque a bocha? “É o que resta para quem parou de jogar futebol”, diverte-se Guarienti, já ti-

rando da churrasqueira alguns gomos de salsichão para serem servidos como aperitivo para o ban-quete. “Aqui tem de tudo: taxista, professor, agri-cultor... e até ex-prefeito”, conta. De repente, outro jogador interrompe a roda de conversa e brada: “Astor, liga para o teu compadre e chama ele para jogar!”. A frase é simples e utilizada de forma corri-queira, mas resume bem o espírito que vigora aqui.

Histórias, locais e atletas para a prática da bo-cha, não faltam. Gente que trabalha, vê TV, vai à igreja, joga ou pelo menos assiste futebol nos cam-pos da várzea, mas não deixa seu passatempo de lado de forma alguma. Poderia ser a canastra ou o bolão (e até é, em menor escala), mas é a bocha. Que como a paz, o carnaval e o futebol, não mata, não engorda e nem faz mal. Pelo contrário. Ela é a responsável por alguns dos melhores momentos de descontração e de alegria dessa gente que passa horas tentando colocar suas bochas cada vez mais próximas do bolim. E se diverte muito por isso.

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Quando agosto chegar

Ensaio

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Neste exato momento, mesmo que ba-lance a cabeça demonstrando nega- tiva, admita: se você não acredita, pelo menos já ouviu falar dos mitos que cercam o oitavo mês do ano. Popularmente agosto é conhecido como o mês do desgosto ou mês do cachorro louco. Não se sabe ao certo qual é a origem dos mitos que envol-vem estes trinta e um dias, mas algumas tentativas são encontradas.A história mostra que o nome Agosto foi dado pelos romanos como uma home-nagem ao imperador Augusto, devido à conquista do Egito e do título de Cônsul. Historicamente alguns acontecimentos registrados neste mês reforçam ainda mais os enigmas que cercam este mês. Foi em agosto de 1914 que começou a Primeira Guerra Mundial. Em agosto de 1945, as cidades de Hiroshima e Nagasaki foram atacadas pelos norte-americanos com bombas atômicas. Em agosto Adolf Hitler se tornou Líder de Estado da Alemanha, e no mesmo local, em agosto de 1961, começou a construção do Muro de Berlim. Já no Brasil, o presidente Getúlio Vargas suicidou-se na madrugada do dia 24 de agosto de 1954. Jânio Quadros renun-ciou à Presidência da República em 25 de agosto de 1961.De acordo com a Igreja Católica, é no mês de agosto, mais precisamente no dia 24, que se comemora o martírio do

Maiara Halmenschlager 71Whellinton Rocha

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apóstolo São Bartolomeu. Segundo consta, as conversões ao cristianismo que o após-tolo teria promovido na Armênia teriam provocado a inveja dos sacerdotes locais, o que teria motivado sua execução. O dia 24 deste mês é ainda considerado o “dia do diabo”, ancorado na explicação de que quando Jesus prometeu dar a Pedro as chaves que ligava e desligava as coisas do céu (Mateus 16:19) , logo em seguida cha-mou Pedro de Satanás: “Jesus disse a Pedro: Para trás de mim, Satanás!” (Mateus 16:23). Assim como prometido, Pedro passou a ter as chaves do céu e do inferno. Segundo a lenda, é justamente em agosto que o infer-no é aberto por ele e no dia 24 o próprio diabo seria libertado. A missão de colocar o diabo novamente no inferno seria de São Bartolomeu.Algumas mulheres católicas também parecem levar a sério a crença. A explica-ção vem do século XVI, época das grandes navegações. As mulheres portuguesas não casavam nunca em agosto porque era a época em que os navios das expedições saíam à procura de novas terras. Casar em agosto significava ficar só, sem lua de mel e, às vezes, até mesmo viúvas. Os coloniza-dores portugueses trouxeram esta crença para o Brasil e segundo o escritor Mário Souto Maior, a tradição se consagrou com a frase “casar em agosto traz desgosto”, que foi resumida para nossa conhecida “agosto, mês do desgosto”.E, ao que tudo indica, inclusive os números, as santa-cruzenses que sonham em cele-brar a aliança do matrimônio, se não o fize-ram até agosto, não estão se importando em esperar setembro chegar. A comprova-ção está lá, no livro de registros do Cartório de Registro Civil da cidade. Com exceção de maio, a média de casamentos realizados nos outros meses é de cerca de 40 casa-mentos. Já em agosto, o número despenca para no máximo, 16. Se tratando apenas das noivas católicas, a situação escasseia

ainda mais, pois nos últimos três anos, pelo menos, nenhum casamento foi celebrado na maior igreja da cidade.Embora não existam casamentos oficiais no mundo animal, a relação entre machos e fêmeas também parece sofrer alterações em agosto. Segundo veterinários, é nes-te mês que aumenta a concentração de cadelas no cio, em função das condições climáticas. Com as fêmeas no período fértil, os cachorros ficam loucos e brigam para conquistá-la. Além disso, diz a sabedoria popular que a luta feroz entre os machos em busca da fêmea faz com que a raiva, doença transmitida pela saliva canina, se espalhe mais. E os cachorros infectados pela raiva babam muito e ficam com aspec-to de loucos. Aí estaria a explicação para agosto ser o mês do cachorro louco.No entanto, independente de tudo que foi lido até aqui, é importante lembrar que o ano ainda possui mais onze meses, além de agosto. Meses de frio, calor, alegrias, tristezas, trabalho, descanso, expectativas, frustrações. Dessa forma, não deposite toda sua expectativa ou toda sua frustra-ção somente no oitavo mês do ano. Cada página do calendário nos dá a dimensão do que já fizemos e do que ainda podemos fazer com nossos dias, meses e anos. E isso, não depende apenas de fatores externos. Na verdade, a forma como decidimos viver os 365 dias do ano dependem de cada um de nós. Por isso, se agosto chegar e você ainda não tiver tirado da cabeça as explica-ções acima, considere que qualquer ano-malia, problema ou frustração se devem apenas à forma como você en-xerga os fatos. Afinal, todo dia é passível de dor e alegria, não importa de qual mês ele faça parte.

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Diário dos anônimosÀs vezes, falar de medos e angustias com estranhos pode ser mais fácil do que com amigos

Primeiro encontro

Eu já havia tentado participar de um gru-po de Neuróticos Anônimos, mas não fora aceito. Agora eu estava entre os Narcóticos Anônimos, o NA. Éramos

11, sentados em círculo. Os participantes fecha-ram os olhos e repetiram uma oração, finalizada com um grave “só por hoje”. É como dizem se guiar: vivendo um dia de cada vez.

Foi a primeira vez que estive com muitas da-quelas pessoas. Eu era convidado, um estranho, e, pelos olhares e roçares de cadeiras, conseguia sentir o desconforto da situação. Ser aceito pelo grupo, contudo, fora uma conquista.

A sessão deveria ser fechada naquela noite de segunda-feira. Sem estranhos. Com uma votação de nove a dois, a meu favor, optaram pela perma-nência do desconhecido visitante. Votação aber-

Fabrício Goulart

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ta, olho no olho, vale salientar.Os encontros do NA funcionam assim: nas se-

gundas-feiras, pontualmente às 20h, esse grupo de Santa Cruz do Sul se reúne sem a presença de não-participantes, de pessoas de fora. “É para que possam falar tranquilamente de seus proble-mas e dificuldades”, me explicou posteriormente um homem de meia-idade.

Nas quartas-feiras, o grupo se reúne novamen-te. E nas sextas, os encontros são abertos, de for-ma que qualquer um possa partilhar suas experi-ências. Não é comum que abram as sessões para pessoas de fora, sem os chamados “adictos”.

As reuniões são conduzidas pelos membros mais antigos e pelo conselheiro, eleito pelo gru-po em outro momento anterior. Existe também um mediador, escolhido a cada encontro, que é quem distribui as fichas de forma a organizar a ordem da troca de experiências.

Nesta noite de segunda-feira, quando o con-selheiro inquiriu o grupo, ninguém se prontifi-cara a ser mediador. Após alguns instantes ao se entreolharem, um jovem de pouco mais de 20 anos tomou a iniciativa e distribuiu as fichas ao grupo.

Um silêncio permaneceu na sala, quebrado apenas por duas jovens mulheres que chegaram atrasadas. Elas encontraram lugares na roda e o homem de meia-idade, que havia votado contra a minha permanência no grupo, decidiu ser o primeiro a falar. Devolveu a ficha ao mediador e se acomodou em sua cadeira.

Os Narcóticos Anônimos não estão vincula-dos a nenhuma crença religiosa ou filosófica, mas por utilizarem a sala de um pavilhão de igreja, existe uma imagem da Virgem Maria na parede. Ela fica bem acima da roda e parece estar sempre atenta ao que está acontecendo.

Talvez por ser um dos mais antigos do grupo, o homem de meia-idade decidiu iniciar a tarefa de expor a sua intimidade e também, de certa forma, a de todos os que estavam naquela ses-são. “Eu sou um adicto em recuperação”, disse. “Já usei muitas coisas e magoei muitas pessoas, mas só por hoje, estou limpo.”

Seguindo o seu relato, muitos outros decidi-

ram compartilhar suas histórias. 19, 27 ou 60 anos. As drogas não escolheram idade ou classe social. Todos haviam feito uso de algo: da maco-nha à cocaína ou ao crack.

Segundo encontro“Não votei contra você porque não

acho importante falar sobre o assunto. Votei porque sei que algumas pessoas precisam falar de suas angústias e tive receio que não con-seguissem”, me explicou o homem de meia-ida-de. Sua estatura é mediana e seus cabelos, grisa-lhos. Uma figura inusitada entre muitos rostos comuns.

Após a recuada inicial, ele me recebera bem no grupo e aos poucos mostrou-me o material que o NA utiliza para servir de apoio aos encontros. O homem participa das reuniões há mais ou menos dez anos, com esse e outros grupos.

“Estou há quase um ano sem fazer uso de nada”, me disse o conselheiro, outro participan-te, um jovem de cerca de 30 anos. “É o presente do meu filho. Ele já sabe e está esperando por isso”. Para ele, as sessões foram uma forma de resgatar a família.

Às 20h, pontualmente, a conversa corriqueira na porta de entrada da sala cessou, como de pra-xe. Suas feições ficaram mais sérias e o grupo se sentou em círculo, prontos para uma nova dis-cussão. O novo mediador distribuiu as fichas e um jovem quis iniciar a declaração.

“Quero falar sobre algo que me incomoda: no final de semana eu estava em casa e vi meu irmão com a namorada. Eu quero isso. Quero ter uma namorada e não magoar mais a minha mãe”, fa-lou. O grupo sorriu, como se compreendesse o desejo do rapaz.

O relato seguiu com detalhes do que costu-mava fazer quando se sentia só. E o quanto isso o incomodava. Não é diferente com ninguém. Embora as situações variem, todos precisam preencher o tempo com outras coisas que não sejam as drogas. A vida muda e os amigos, mui-tas vezes, deixam de serem os antigos.

Um pouco à frente da porta de entrada, uma das meninas que se atrasara no primeiro encon-

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tro fumava um cigarro. Embora a maioria não saia da sala até o intervalo, que acontece por volta das 21 horas, é comum os participantes desapare-cerem e voltarem ao círculo no meio das sessões.

No final da reunião, o conselheiro recolhe sem-pre a ajuda financeira do grupo. É para quem quer fazer contribuição, que é usada para a aquisição de materiais. Ninguém é obrigado a contribuir e o NA não aceita dinheiro de não-adictos. A aju-da não tem valor, e cada um doa o que puder. E se puder.

Terceiro encontroO calor toma conta da sala, vestígio

ainda do verão, que não parece que-rer chegar ao final. Ao lado da porta da sala, à esquerda, há uma geladeira antiga onde a água costuma acudir o grupo nesse período.

Nos Narcóticos, as histórias não variam tanto quanto se supõe inicialmente. Festas, amigos, tempo perdido e a esperança de uma vida me-lhor. Quem permanece no grupo, se preocupa com a família e com o que foi feito aos outros. Os anônimos se compreendem e dividem os mesmos anseios.

“Vir aqui e ficar limpo é um presente que que-ro dar a minha mãe”, diz um dos integrantes, de cerca de 20 anos. “Gostaria que ela olhasse para mim e tivesse orgulho. E um dia terá, tenho cer-teza.”

Um dos participantes, aquele que procura di-zer ao filho que está há um ano limpo, se emo-cionou ao dizer que colocara muito dinheiro fora. “Eu não me preocupava com o meu me-nino, mas quero recuperar o tempo perdido e mostrar que posso mudar.”

Os anônimos também fazem festas. Sem bebi-das, sem drogas, mas com muita música e risa-das, me disse o homem de meia-idade. “Como são as festas?”, perguntei. “São normais. Nin-guém precisa disso para se divertir”, respondeu, surpreso, a ingênua pergunta.

A prioridade do grupo está nos novos inte-grantes, aqueles que estão há pouco tempo em fase de recuperação. Para eles, a dificuldade de se adaptar a uma nova vida é maior. É um mun-

do novo, uma perspectiva nova que começa a se revelar.

Quarto encontroFui apresentado a um homem que

é liberado de um presídio para parti-cipar dos encontros dos Narcóticos. Ele ficou desconfiado ao saber de uma matéria que seria elaborada a partir dos encontros. O conselheiro tentou acalmá-lo dizendo que o nome dele não seria publicado. Na dúvida, suponho, ele prefe-riu não falar da sua vida.

Durante as reuniões, embora muitas pesso-as tenham conseguido falar abertamente sobre seus problemas, algumas discorreram sobre coi-sas comuns e outras até deixaram a sala. O incô-modo inicial não era mais quase palpável. Toda-via, a exposição não pareceu ser algo fácil. Nada é simples no processo de recuperação.

Muitos adictos não voltam, caem novamen-te nas drogas e acabam retornando depois de muito tempo. Alguns vão porque não aguentam mais a vida que levavam e outros porque as fa-mílias não suportam a vida que levam. Existem os que não fazem uso há dez ou quinze anos. E também aqueles que pararam há um ou dois dias.

Todos, entretanto, dizem procurar viver um dia por vez. A base do programa dos Narcóticos Anônimos, e de outros grupos anônimos, é uma série de atividades pessoais conhecida como os Doze Passos, adaptados dos Alcoólicos Anôni-mos, o AA.

Converso com o homem de meia-idade e ele aponta a Virgem Maria, na parede, que observo. “Todos aqui são livres e têm suas crenças, mas como o espaço é da igreja, ela está aí, né?”. “Em que você acredita?”, pergunto. “Que a religião do usuário é a própria droga e ela não escolhe católico, espírita ou qualquer outro.”

“Vê esse chaveiro vermelho?”, me perguntou outro participante. “Significa uma conquista. Ele representa que estou limpo há noventa dias”. O próximo é o de cor azul, que ilustra os seis meses de não-uso. Algo que ele diz almejar sem esquecer, todavia, o lema inicial: “só por hoje.”

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Poderia ser uma história de James Bond, não fosse a ausência de charme e riqueza. E o mais importante: Os Últimos Soldados da Guerra Fria – A História dos agentes secretos infiltra-dos por Cuba em organizações de extrema direita nos Estados Unidos – não é uma obra ficcional. Ao longo de quase 400 páginas, Fer-nando Morais trata da vida real. Com riqueza de detalhes, ele, que nasceu em Mariana, Mi-nas Gerais, em 1946, conta uma trama trans-bordante de eventos e, por vezes, aterradores detalhes jamais revelados pela imprensa. O jornalista e escritor especializou-se na arte de contar histórias escondidas na história real. E, como num romance de espionagem, traz à tona as aventuras mirabolantes, os casos amorosos de agentes secretos, os disfarces perfeitos, as intrigas, fidelidade e traição em uma obra narrada com objetividade. Fernando Morais abandonou a rotina das redações ainda na década de 70. De lá para cá, dedicou-se aos livros. Autor de Olga; Chatô – o rei do Brasil; Corações Sujos; A ilha e Cem Quilos de Ouro, todos publicados pela Com-panhia das Letras, entre outras publicações, o jornalista e escritor concebeu a ideia de contar a história dos agentes de inteligência cubanos infiltrados em organizações anti-castristas da Flórida em setembro de 1998, quando ouviu no rádio a notícia da prisão de 10 soldados pelo FBI. Por anos, tentou, em vão, romper a barreira do silêncio em torno da trama. O livro só deu os primeiros passos em fevereiro de 2005, quando viajou para Cuba para participar da Bienal do Livro de Havana. Na véspera da viagem de volta ao Brasil, rece-beu do presidente da Assembleia Nacional, Ricardo Alarcón, o comunicado de que lhe seriam liberados os documentos dos serviços de inteligência da Ilha sobre a rede que Cuba infiltrara no coração de organizações de extre-ma direita da Flórida.

Mas as pesquisas só começaram a andar mes-mo a partir de 2008. De lá até a publicação do livro, em 2011, foram cerca de 20 viagens a Havana, Miami e Nova York, para ouvir todos os lados da história. Entrevistou, inclusive, mercenários estrangeiros que haviam sido presos depois de colocar bombas em hotéis e restaurantes turísticos de Cuba e que tinham sido condenados à morte. Nos Estados Uni-dos foi mais difícil. Só conseguiu declarações em off porque os agentes do FBI são proibi-dos de dar declarações públicas. O tema era tratado como segredo de Estado.Talvez “Corações Sujos” seja a obra que mais se aproxima da temática explorada por Fer-nando Morais neste novo livro, justamente pela abordagem: no primeiro, uma máfia japonesa do interior paulista, e nesta recente obra, a máfia cubano-estadunidense e prin-cipalmente anti-castrista. Máfia. Espionagem. Guerra Fria... Juan Pablo Roque, 36 anos, Major das Forças Revolucionárias, abandona Cuba e chega aos Estados Unidos disfarça-do de desertor com o objetivo de se infiltrar em organizações anti-castristas na Flórida. A travessia dura horas pelo fundo do mar. É só quando enxerga a bandeira dos EUA, através do vidro embaçado do respirador, que se dá conta de que chegou. O trecho, que bem poderia ser trama de filme, é real e exempli-fica a história de cinco personagens centrais: agentes secretos cubanos que se infiltraram em organizações de extrema direita que estavam fazendo atentados em Cuba, colo-cando bombas em hotéis, restaurantes, aviões e áreas turísticas para minar o que estava salvando a Revolução Cubana depois do fim da União Soviética. Foi assim que no início da década de 1990, Cuba criou a Rede Vespa, um grupo de doze homens e duas mulheres que se infiltrou nos Estados Unidos.Espionando alguns dos 47 grupos anti-cas-

Fidelidade e traição na mesma face de uma história

Resenha

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Jaqueline Gomes 79

tristas sediados na Flórida, com o intuito de co-lher informações para evitar ataques terroristas ao território cubano, em oito anos de operações foram reunidas 50 mil folhas de informações secretas enviadas a Cuba por sistema de rá-dio. Algumas das organizações espionadas se dedicavam a jogar pragas nas lavouras cubanas, interferir nas transmissões da torre de controle do aeroporto de Havana e, quando Cuba se voltou para o turismo, depois do colapso da União Soviética, sequestrar aviões que transpor-tavam turistas, executar atentados a bomba em seus melhores hotéis e até disparar rajadas de metralhadoras contra navios de passageiros e contra turistas estrangeiros em suas praias era prática comum. Em cinco anos, foram 127 ata-ques terroristas. Várias vezes, Havana formalizou protestos contra Washington pela invasão de seu espaço aéreo por aviões vindos dos Estados Unidos, mas não obteve êxito. Fidel chega a enviar uma carta a Bill Clinton, então presidente, denunciando organizações de extrema direita que funcionavam em território americano, ten-do como pombo-correio ninguém menos que Gabriel Garcia Marques.Por um lado, Cuba é um regime ditatorial em que vigora a pena de morte. Por outro, em nome da derrubada do regime cubano na Ilha,

várias organizações financiaram ao longo da década de 1990 atentados terroristas que visa-vam minar o país da então recente descoberta economia do turismo. Foi o que deu origem a uma complexa rede de espionagem que atuou por oito anos em Miami sob o comando de Havana. É assim que Os Últimos Soldados da Guerra Fria narra a aventura dos espiões cuba-nos – a rede Vespa - e revela uma rede terrorista com sede na Flórida e ramificações na América Central. Essa rede conta com o apoio nos Esta-dos Unidos de membros do Poder Legislativo e com a ajuda das vistas grossas do Executivo e do Judiciário. Fernando Morais escolheu começar a história com mistério e, apesar do claro partidarismo do autor, é impossível não se emocionar com a batalha secreta desses homens e mulheres. De tal forma, todo o livro gira em torno de três pilares centrais: O Governo Americano que tentava libertar Cuba do governo de Fidel por meio de ações diplomáticas; o Governo Cubano interessado em manter seu atual governo; e as organizações anti-castristas.A história – e a rede Vespa dos soldados envia-dos por Fidel Castro – só chega ao fim em 1998, com a prisão de 10 agentes secretos cubanos. Ardilosamente os EUA fez um acordo com cinco deles para conseguir informações até então desconhecidas, outros conseguiram fugir. Por isso, Fernando Morais foca a narrativa em cinco agentes secretos – um deles era mercenário. To-dos presos, julgados e condenados, em prisões diferentes. Estes se mantiveram fieis e conde-nados à prisão perpétua. Não bastasse, outra consequência da fidelidade, conta Morais, é que após presos, os EUA ainda fizeram de tudo para impedir que eles fossem visitados por seus familiares. Ao se concentrar em declarações em off e fontes históricas, Fernando Morais faz, sem dúvida, um excelente trabalho jornalístico e literário.

MORAIS, Fernando. Os Últimos Soldados da Guerra Fria. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

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Jardel Carpes 81

Mortal beleza

Quando o assunto é fotografia, o triste também pode ser belo

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Ensaio de capas

A fotografia é uma linguagem contundente, cada vez mais presente no cotidiano das pessoas, não só a partir do consumo, mas também da pro-dução. Por trás da mensagem visual há sempre um emaranhado de signos que dão pistas sobre a po-sição ideológica e social de quem registra as ima-gens. Esse emaranhado se torna palco de transfor-mações no co-enunciador de um discurso aberto às significações que se transmutam, reconfiguram e interagem com a memória, com o passado e o presente.

A disciplina de Fotojornalismo II do Curso Su-perior de Tecnologia em Fotografia, ministrada pelo prof. Ms. Rafael Hoff, provocou os alunos ao desafio de produzir capas para a revista Exceção – produto midiático do curso de Comunicação So-cial da Unisc – com um eixo temático: Memórias. Entre imagens mais ou menos óbvias, o exercício explora a percepção do leitor do periódico, das relações comunicativas por meio da imagem e da relação texto-fotografia no ambiente jornalístico. O resultado, você confere no ensaio a seguir...

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Créditos nas imagens 85

Emelline Klein Mealho

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Para uns, lixo.

Ele usa de reciclagem e cria instrumentos musicais. Faz do lixo, arte com as próprias mãos

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Cristiane Inocencio 89Eduardo Mesquita

Para outros, música

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Ele não se tornou apenas músico, mas os primeiro acordes ele conheceu logo na infância, aos 12 anos de idade ouvir o som apenas já não bastava, começou a

tocar também, foi vendo o tio sair para as festas, animadas por batidas fortes e ritmos dançantes que o gosto pela música se tornou mais presente. Aliás, foi das mãos do tio o primeiro instrumen-to que Diego conheceu. O violão. A vontade de ouvir o som produzido pela própria paixão pela música, fez da falta de oportunidades e verbas para a compra de instrumentos, a chance para o improviso entrar em cena. A família era de classe média e fora o tio cantor, os demais não aparen-tavam interesse pela área. Talvez, por isso o apoio não veio logo, o pedido de ajuda para financiar a compra de equipamentos também não. “Eu de-via ter uns 16 anos quando vi na escola um cartaz pequeno e discreto que chamava para o curso de equipamentos musicais com reciclagem” conta Diego Schmachtemberg. Que lembra que o pri-meiro instrumento fabricado foi um chocalho.

O papelão que antes ocupava o cesto de lixo, ou confortava o sono do mendigo, seria usado agora apara a propagação da cultura. As garrafas plásticas, a madeira velha, arames, fios e metais serviriam agora para a construção de instrumen-tos musicais. Depois de aprender a construir al-guns instrumentos com material reciclado, teve um período distante dessa arte e tentou outros rumos, ainda dentro da musica. Diego, de 22 anos a 7 trabalha profissionalmente como DJ e atualmente paralelo á isso, possui uma banda de sertanejo universitário. Dois anos como DJ e ainda sem conhecimento geral do público e com equipamentos de trabalho que também tinham algo de reciclagem, afinal não ganhava muito, Diego sentiu que o curso precisava de aprimo-ramentos, e voltou a praticar a arte de reutilizar sucatas e transformá-las em instrumentos para a música, e isso foi que o ajudou a se manter na

ativa. “Amigos começaram a pedir pra mim fazer pra eles também, até bateria, violão, pandeiro, guitarra, tambor, com um pouco de conhecimento técnico sobre afinação e a finalidade de cada instrumento, da pra se fa-

zer de tudo” diz Diego.Assim como uma música repleta de poesia

e ritmo, o lixo também foi trabalhado na me-lodia, assim como a organização das suas ta-refas, além de DJ durante as noites e finais de semana, e os trabalhos com a banda com ensaio aos sábados, Diego trabalha de designer durante a semana, e o tempo para a reciclagem teve que reduzir. “Eu não costumo contar sobre essa parte de que eu reciclo e crio instrumentos, quem sabe são os meus amigos, familiares, ou, aqueles que souberam por alguém. Não por nada, mas meu foco ainda é tocar, a verdade é que o trabalho de instrumentos musicais com reciclagem não é re-conhecido.” Declara sem saber dizer ao certo se irá seguir nessa arte. Admite que aprendeu mui-to com os cursos que fez, que o ouvido teve que ficar mais afinado diante dos tons “A coisa não é só fazer barulho” diz em meio a risadas.

Como uma canção ainda em fase de desenvol-vimento, Diego diz ainda estar se “procurando” quando o assunto é música “ Tem coisas que não da pra explicar, eu poderia muito bem ta só na minha profissão de DJ e músico, mas por algum motivo que nem eu mesmo sei, faço alguns ins-trumentos, isso parece que da mais sentido a música, eu gosto disso, além da melodia, além da letra, do som, e a emoção que causa” resume Die-go ao falar desse trabalho. Em junho de 2011 fi-cou sabendo de um concurso para instrumentos musicais e reciclagem, porém perdeu os prazos, segundo ele devido a correria diária. “Agora mi-nha família apóia, antes eu era quase o ‘catador de lixo’ lá de casa, mas isso mudou de uns três anos pra cá” conta o jovem espontâneo e co-municativo nas palavras, mas tímido ao falar sobre o que ele não costuma divulgar.

No rádio do barzinho de esquina, Luan San-tana toca baixinho, no bar muitas mesas vazias, fora repórter e entrevistado, mais um casal sen-tado a distancia. Namoradas Diego teve algu-mas, segundo ele, a falta de tempo e os trabalhos aos finais de semana sempre foram um proble-ma, alas com nenhuma delas ele falava sobre seus instrumentos feitos de sucata. A entrevista não dura mais que uma hora. Sobre a mesa uma lati-

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nha de coca- cola, Diego observa e brinca com a lata “Eu costumo vir aqui pedir uma coca e levar latinha embora, sempre sai alguma coisa” declara ele, com um sorriso tímido. Por algum motivo, essa ele deixa sobre a mesa.

Mas a reciclagem não fica só na sua garagem lotada de papelão, arames e sucatas, clientela o guri que sonha em cursar Publicidade e Propa-ganda tem.Arlindo José Bohn queria um violão para a filha de três anos, vizinho de Diego a mais de sete, encomendou um instrumento de sua fa-bricação. “O trabalho dele é bom, o custo é ba-rato, mas o produto é bom, ele poderia divulgar mais”, conta Arlindo. Além de seu Bohn, a tia do jovem artesão, Ana Julia Drenner também apro-va o trabalho de Diego “As coisas foram ficando ainda mais bem feitinhas ao longo do tempo, eu tenho uns seis instrumentos que o Diego fez, uns logo qundo ele começou com isso, e outros depois que ele retomou” diz Ana, que foi a primeira a comprar os produtos reci-clados. “quando comecei a vender não sabia que preço botar, sabia o valor dos intrumentos con-vencionais e tudo, mas e os feito de reciclamen-to? Tinham que ser mais baratos? Mais caros por serem ecológicos? Alguém além da minha tia ia comprar?” conta Diego sobre suas dúvidas quanto às vendas de suas criações. O artista hoje diz ainda poder contar nos dedos os clientes pra quem vendeu suas obras, mas diz saber que al-guns compraram a pedido de outros, devido a aproximação em si, nesse sentido acredita que tem dado certo: “Tem uns que chegam ai, pedem tal coisa, pagam e dizem que é para uma amigo que pediu e tal, nem sei pra quem foi, mas se pe-dem é porque agradou alguém, e ai ta bom”.

A arteMas Diego é apenas um em meio a tantos. Ao

longo da história, a arte musical geralmente tem sido associada ao sentido da estética e a práticas que valorizam a individualidade. Nos últimos anos, organizações sociais, fundações, e grupos de educadores tentam ultrapassar essa barreira, indo além da chamada “a arte pela arte”, utilizan-do a sensibilidade e criatividade artísticas inclu-siva para a inserção social das pessoas. No último

dia 3 de maio foi lançado em Santa Cruz do Sul, durante o primeiro Seminário Regional AES Sul na Comunidade, o projeto “AES Sul na comunidade: Educar para Transfor-mar”, onde foram entregues 600 equipamentos musicais reciclados. Durante uma semana, latas, tampinhas, restos de madeira, tubos de cobre, arame, papel metálico de café, cones de papelão e plástico foram recolhidos e separados pelos recicladores do Galpão de Reciclagem, que se transformaram em instrumentos musicais pelas mãos do Artista Plástico e oficineiro da equipe social, Eduardo Nunes. Diferente de Diego que vive não só da construção desses instrumentos, para outros isso se torna a própria sobrevivência.

ConcorrênciaMuito se vê pelas ruas de nossas cidades pesso-

as que sobrevivem coletando sucatas pelas ma-nhãs ou finais de tarde, embora a realidade deles seja diferente da de Diego, algo eles possuem em comum. Utilizam do que vai para o lixo para rea-lizar seu trabalho. Apesar do concorrência Die-go diz não haver muitas disputas uma vez que cada um utiliza dos matérias que lhe são necessá-rios,para seus diferentes fins.

Sabe-se que o Brasil tem sofrido grande cresci-mento da população, esse crescimento

populacional na última metade deste século, aliado ao rápido avanço dos processos de in-dustrialização, urbanização, crescimento demo-gráfico e tecnológico, produziu intenso consu-mo de várias fontes da natureza. Por sua vez, o crescimento urbano acelerado, junto com o de-senvolvimento atual de consumo e a cultura do desperdício, gera grande quantidade de lixo, se tornando um problema ambiental. De acordo com pesquisadores a estimativa do número de catadores de materiais recicláveis no Brasil será de aproximadamente quinhentos mil, estando 2/3 deles no estado de São Paulo.

“Eu lido com o que muitas vezes vai pro lixo, e isso confunde muita gente, eu não sou catador nem sucateiro, eu só utilizo o que não querem mais usar, ou acham que não serva mais. Se pra mim serve, beleza” declara Diego ao lon-go de seus 22 anos recém completos.

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Carolina Lopes/Viviane Moura 93Carolina Lopes/Viviane Moura

Infiltradas

As aventuras de duas estudantes de jornalismo no Exército

Eduardo Mesquita

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A curiosidade era grande. O anseio maior ainda. O que acontece por detrás daqueles muros, dos rostos pintados, da perfeita sincronia entre

um passo e outro. O pouco que sabíamos vinha das histórias contadas, do depoimento de paren-tes e de uma visão de disciplina e rigidez. A ideia foi lançada, o desafio era acompanhar tudo de perto.

Medo não é a palavra certa. Receio talvez. Como duas meninas de 21 anos sedentas por boas histórias seriam recebidas em uma institui-ção tão citada, mas pouco conhecida pela socie-dade: o Exército Brasileiro. Havia a expectativa de uma resposta negativa antes mesmo do pri-meiro contato. Para espanto (e euforia) a propos-ta foi aceita e a partir daquele momento as portas estariam abertas. O campo11 de abril de 2012. A previsão do tempo in-

dicava chuva. Na mochila, roupas para o frio e para o calor (mais parecia que seria uma sema-

na, e não um dia). Duas capas de chuva. Casaco reserva. Barra de cereal, chocolate e lanches prá-ticos no caso da comida ser tão ruim quanto co-mentavam. Havia chegado o tão aguardado dia do campo de instrução.

Ainda no táxi, a angústia por ter esquecido o protetor solar e o repelente de insetos. Até uma breve discussão sobre o tamanho da necessidade daqueles elementos. Importantes ou não, não es-tavam na mochila. Na mente uma dose de adre-nalina extra, como se o rumo fosse um campo de batalha, desconhecido, em que a luta, não se sabe, seria fácil ou difícil, interessante ou tediosa.

Teríamos farda? Faríamos as atividades? Qual seria o foco? Como seria dormir no meio da mata (seria na mata?). Como seria a aceitação de tantos homens em receber duas meninas um tanto quanto metidas em suas atividades? Quem nos acompanharia nas atividades? Como chega-ríamos ao campo? Uma centena de perguntas e uma única certeza: seria uma experiência ines-quecível.

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Os rostos não negavam o contentamento ao chegar no 7º Batalhão de Infantaria Blindado, em Santa Cruz do Sul, e ver que quem nos acom-panharia ao campo de instrução seria o senhor (que não vai gostar de saber que o chamamos de senhor) simpático e atencioso que nos atendia durante as visitas de contato. Na época, o então subtenente Guenter.

Pouco mais de 19 horas e já estávamos no cam-po. O sol já havia se posto e, no seu lugar, a lua cheia iluminava o alojamento. Campo, mata e pouco mais de três centenas de soldados. Não acreditávamos que aquilo, de fato, fosse real. A primeira instrução a ser vista seria “acuidade vi-sual e auditiva noturna”. Só o fato de andar até lá sem uso de lanterna e com o desconhecimento do terreno já levantava suspeitas “Será que tem cobras por aqui?”.

E lá estávamos nós. Imaginem a cena de dois pequenos projetos de jornalista entre todos aqueles homens! Carolina, com seu um metro e 57 centímetros de altura e 44 quilos. Vivi, pesan-

do 54 quilos e medindo 1,64. Sem enxergar mais que dois metros à frente, sabíamos que, a poucos passos dali havia vários soldados, dispostos em fi-leiras, aguardando a instrução. A falta de luz era proposital para a execução da atividade. Espanto foi o número de pessoas ali colocadas, quando as poucas luzes locais foram acesas.

Hora de ir para outra instrução. No percurso, elevações no terreno, barro e a única luz próxi-ma vinha da lanterna nas mãos do Major Castro. Carolina fazia questão de se manter próxima dele para tentar enxergar o máximo possível, enquan-to eu vinha logo atrás, achando graça da situação. Na primeira descida com lama, leve escorregões e gritos baixinhos do medo de cair com o equi-pamento em mãos. “Tiro de ação reflexa” e a pri-meira surpresa: eles não atiravam de verdade. Ali-ás, haviam tido pouquíssimas instruções em que o tiro era disparado, de fato. Espanto também de alguns recrutas recém-ingressos, que esperavam que o Exército fosse como nos filmes de ação e jogos de videogame.

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Mais alguns metros à frente e quase tropeço em um soldado, mesmo com algumas luzes no trecho. Alguém duvida que a camuflagem esti-vesse bem feita? Na sequência, a frase que não precisava ser dita: “Até vacas por aqui”. Eram soldados a uma certa distância executando as instruções de orientação noturna com utiliza-ção de bússola. Um ataque de riso (disfarçado) e constrangimento coram a face da repórter (sor-te que com a escuridão isso era imperceptível).

Muita lama e, logo mais à frente, a instrução chamada “progressão noturna e silenciamento de sentinela”. Para nossas fotos dois recrutas que já haviam executado o exercício o fizeram novamente, e ao perceber o claro sentimento de que foi por “nossa culpa”, Carolina ganhou o apelido de “manteiga derretida” de Guenter, que passou a repetir em todas as demais visitas.

Seria a última instrução que acompanharía-mos naquela noite . Retornamos ao alojamento onde iríamos dormir, no mesmo lugar em que a enfermaria estava instalada, único local que havia uma mulher. Nossas barracas já estavam devidamente montadas, mesmo tendo demons-trado nossa vontade de montá-las. Estávamos famintas e percorrer toda aquela estrutura havia

nos deixado levemente cansadas (imaginem en-tão os soldados?)

Apenas por volta da uma hora da manhã os soldados voltaram e tinham por obrigação a limpeza de seu fuzil depois de comer e poder ir dormir. Nosso lanche foi igual ao deles, café (sem açúcar), pão e banana e só pudemos nos servir quando eles chegaram.

Alguns deles dormiriam em duplas, com ape-nas três “panos”: um que serviria como cober-tura amarrado em árvores, um no chão e outro que serviria como cobertor. Fomos conhecer o local, e ao ouvir que um recruta tinha perdido seu “canga” questionamos qual seria o signifi-cado disso. Canga é a expressão utilizada para definir o companheiro. O Exército trabalha com duplas e um guerreiro nunca deve deixar seu canga para trás. Éramos canga uma da outra. E na única visita que chegamos separadamente fomos questionadas, “Cadê a canga?”

Hora de dormir. No dia seguinte (o mesmo dia no fim das contas) teríamos que acordar com a alvorada 5 horas da manhã. Carolina dormiu em torno de três horas. Não consegui me con-centrar com aquele barulho de armamento e pessoas conversando ao redor. Seríamos acor-

AlistamentoO cidadão brasileiro ao completar 18 anos, deve comparecer à Junta do Serviço Militar da cidadeonde reside, a fim de efetuar seu alistamen-to militar.Na 1ª fase da seleção, os alistados serão sub-metidos aos seguintes testes e avaliações: Posto Inspeção de Saúde - aptidão física (exame médico) Posto de Aplicação de Testes (PAT) - avaliação do tipo físico, acuidade visual e acuida de auditiva - avaliação psicológica e

nível de inteligência – TSI (Teste de Seleção Inicial)Aplicação do Inventário de Atividades Prefe-renciais (IAP)- apura área de interesse, onde estão enqua-drados os cargos militaresEntrevistas- avaliar o aspecto moral- avaliar a expressão oral- avaliar o problema socialAplicação da Bateria de Classificação de Cons-critos (BCC)- aplicados naqueles com escolaridade igual ou superior a 7ª Série do Ensino Fundamental.De acordo com o resultado obtido no TSI, IAP, entrevista e BCC, o Sistema de Seleção para Serviço Militar atribui um padrão funcional

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dadas pelo despertador. Porém, antes mesmo disso, nos deparamos com o toque de alvorada e aqueles gritos de “Vamos levantar!” “ Rápido soldado” “De pé, de pé”. Mal parecia que a noite havia passado e, o pior: havíamos perdido o pri-meiro movimento do dia.

O café da manhã foi o mesmo da noite ante-rior, porém com açúcar no café (bem melhor, convenhamos). Bandeira hasteada, formação em seus postos e mais um dia de atividades se iniciava no campo de instrução.

A primeira instrução que acompanhamos no dia foi a “transposição de curso d’água”. Em nossas mentes haveria vários homens de farda e com todo o equipamento (pesado) aprenden-do técnicas para travessia aquática. Para nosso espanto e até mesmo, certo constrangimento, estavam todos apenas de bermudas. Por alguns segundos nos sentimos estranhas diante daque-la situação, mas tentamos nos aproximar do grupo naturalmente.

Enquanto eram ensinadas aos recrutas dife-rentes formas de fazer travessia através da água, uma delas em particular chamou nossa aten-ção: a que utilizava corda. Acreditando que era muito fácil. Queríamos muito executá-la,

e o desafio dos aspirantes nos motivava ainda mais. “Não vão ter coragem” um deles comen-tou. Prontamente a resposta: “Nos tragam as bermudas. Quer apostar?” A ousadia daquelas duas pequenas “infantes” surpreendeu os ofi-ciais, principalmente depois de saber que ambas não sabiam nadar. O “não” para aquela ativida-de vindo dos superiores deixou a vontade no ar. Enquanto um menino teve crise nervosa e ou-tros tantos nem queriam executar as atividades, aquelas duas pequenas serelepes não puderam ousar a travessia sobre corda de um açude com mais do dobro da altura da mais alta de nós.

Mais algumas atividades à frente, inclusive uma em que participo (foto na página anterior) um número imenso de informações e valores fortes passados de instrução a instrução. Nunca deixar o canga para trás, mesmo que ferido. E no caso de pensar em desistir pelo esgotamento físico, a lição, “o do lado está pior”.

Hora do almoço. Cardápio farto e suculen-to, desmentindo assim o mito que a comida do Exército teria sabor desagradável. Apesar da fal-ta de prática com a marmita e do desajeito de Carolina com as formigas que rondavam o local de almoço (almoçamos sobre a grama).

ao conscrito. Nessa fase são dispensados apenas os alistados com problemas de saúde e os que comprovarem situação de sustento familiar e problema social.Na 2ª fase da seleção o conscrito comparece-rá à Junta do serviço Militar ou Organização Militar para tomar conhecimento da sua distribuição para uma Unidade do exército, para prestação do serviço militar ou cons-tar no excesso de contingente (baseado na necessidade de preenchimento das vagas existentes).A 3ª fase compreende a Seleção Comple-mentar, onde os distribuídos serão designa-dos para as Subunidades de acordo com as necessidades de preenchimento das vagas existentes, com um aumento de aproxima-

damente 70%. Passarão novamente por uma Inspeção de Saúde e entrevistas para selecio-nar o contingente a ser incorporado.FormaçãoAo entrar no serviço militar obrigatório o re-cruta irá passar por 3 fases na sua formação:Período básico (no fim desta etapa, que é comum a todos, é feita a entrega da boina)Qualificação ( o soldado se especializa em alguma função)Adestramento (prática do aprendizado na qualificação integrando seu pelotão....)Após o fim do período do serviço obrigató-rio, o soldado poderá dar baixa ou engajar. O engajamento é mediante existência de vaga, requerimento e preenchimento de requisitos que o tornam apto para executar a função.

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Dois seres estranhosPassado o campo fomos várias vezes até o 7º BIB

em datas comemorativas que nem sabíamos que existiam. Aliás, até então formatura era assunto de conclusão de curso. Formaturas, solenida-des, discursos. Se no começo gerávamos olhares curiosos, no decorrer do semestre éramos chama-das pelos apelidos (e mais os apelidos dados lá).

A reportagem começou a invadir nossas roti-nas normais quando andávamos na rua, em fes-tas e outras atividades corriqueiras e “Oi, tudo bem?” nos surpreendia, ou os cochichos “é a fotografa que estava no quartel”. Mais de 800 homens que nos reconhecem e pouco mais de 20 que identificamos facilmente. Queríamos um personagem diferente. Tornamo-nos o per-sonagem dessa história.

Pista de obstáculosTempo esgotado, conhecimento que não caberia

nessa revista inteira e o vazio de não ter executado nenhum atividade prática. Faltava algo. A euforia ao receber a confirmação que, enfim, poderia ser realizada atividade, devidamente fardadas, gerou ainda mais espanto que a aceitação do trabalho.

Em uma sexta-feira chuvosa lá fomos nós de far-da e tudo percorrer o caminho da pista de obstá-culos Sargento Gelson. Naturalmente, os obstá-culos não foram projetados para pessoas de nosso tamanho, por isso a todo momento precisáva-mos de uma ajudinha. O coturno 38 (4 números maior que o pé de Carolina) e as peças gigantescas nem atrapalharam.

Quando a atividade envolvia altura, eu entrava em pânico absoluto e Carol gostava daquilo, e in-

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clusive surpreendeu os outros (e a si mesma) com seu desempenho, “uma guerreira”, dizia Guenter. Mas quando o assunto era rastejar no barro, Ca-rolina “pipocava” e fazia de tudo pra evitar a lama – como se fosse possível – e Viviane ia sem receio algum.

Satisfeitas e até um pouco saudosas que a aven-tura tinha chegado ao fim, nos despedimos do, agora tenente, Guenter. Joelhos roxos, amigos novos, braços doloridos e um mundo totalmente novo se mostrava. Outro olhar sobre cada ativi-dade desenvolvida pelo Exército. Da tradicional “dê um doce para Carolina” a “essa câmera pode provocar mais facilmente uma guerra”, o riso fá-cil tido em todo o processo ficou nas marcas. Nos depoimentos. Na amiga que virou canga. Na meia que era branca.

O que o exército fazAo contrário do que muitos pensam, o Exército Brasileiro possui muitas outras fun-ções além da formação de reservistas. Aqui estão algumas delas:

Auxílio em situações de calamidade públi-ca (enchentes, secas...)Campanhas sociais (Campanha do Agasa-lho, Trânsito é vida, Arrecadação de alimen-tos.)Missões de Manutenção da PazTrabalham em conjunto com as forças poli-ciais no combate à ilícitos transfronteiriços Auxiliam na construção de estradas, rodo-vias, pontes, aeroportos.

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