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Publicação do Curso de Comunicação Social da UNISC - Santa Cruz do Sul Ano 4 - número 4 Distribuição gratuita
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Exceção 04

Mar 22, 2016

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Acervo A4

Exceção n.04, junho de 2009
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Publicação do Curso de Comunicação Social da UNISC - Santa Cruz do SulAno 4 - número 4Distribuição gratuita

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dien

te

UNISC - Universidade de Santa Cruz do SulAv. Independência, 2293Bairro UniversitárioSanta Cruz do Sul - RSCEP: 96815-900

Curso de Comunicação SocialBloco 15 - Sala 1506Fone: 3717-7383Coordenadora do curso: Ângela Felippi

Publicidade: Agência A4Impressão: GraphosetTiragem: 500 exemplaresAno 4 - Junho de 2009

ATENÇÃO!Esta foto foi manipulada. Adivinhe em que ponto. (Resposta na penúltima página)

Foto Expediente: Cláudia Joana Dalberto

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20091- Demétrio de Azeredo

Soster (editor-chefe)

2 - Emanuelle Dal-Ri (sub-edição e reportagem)

3 - Patrícia Azevedo (reportagem)

4 - Marinês Klittel (reportagem)

5 - Ana Flávia Hantt (opinião e reportagem)6 - Letícia Schmidt

(reportagem)7 - Vanessa Kannenberg

(reportagem)8 - Ana Paula de Andrade

(diagramação e edição de imagens)9 - Fernanda Zieppe

(reportagem)10 - Thiago Stürmer

(sub-edição e reportagem)11 - Gabriela Brands

(opinião)12 - Larissa Griguc

(edição de imagens)13 - Rozana Ellwanger

(edição, opinião e reportagem)14 - Wesley Soares

(produção e reportagem)15 - Urgel Souza

(reportagem)16 - Pedro Garcia

(reportagem)17 - Aline Silva

(produção e reportagem)

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O jornalismo de revistahavia morrido?Alguns de nós, especialistas ou não, haveremos de nos perguntar, para além da surpresa que o novo sempre representa quando sabemos dele, por que, afinal, alunos de jornalismo ainda criam revistas em sala de aula. A indagação tem razão de ser: seria muito mais fácil, dinâmico e barato, por exemplo, simplesmente veicular matérias em sites cujo suporte é a internet, do que em papel, caro e invariavelmente preso a lógicas espaço-temporais lentas, sobretudo de difícil resolução. Neste sentido, criar revistas seria uma espécie de paradoxo evolutivo, com tudo o que isso possa significar; realizá-las, um desperdício.

Ocorre que estes mesmos olhares não consideram, ou sabem, que aquelas velhas e apressadas profecias que, não muito longe, preconizavam o final dos suportes e narrativas convencionais com o advento da web deram com os burros n'água, literalmente. Ou seja, erraram, e feio, ao sugerir que o jornalismo em forma de revista estava com seus dias contados em tempos de profunda imersão tecnológica. O “erraram, e feio” fica por conta de, paradoxalmente, a linguagem utilizada em revistas não apenas manter-se viva como influenciar o jornalismo feito em jornais impressos, rádios, televisões e, porque não dizer, na internet. Por linguagem entendemos não só as palavras escritas, mas também as fotos e a diagramação, para ficarmos em três.

Tomando a premissa como verdadeira, chegamos à conclusão que exercitar jornalismo de revista, para além do exercício de construção de textos elaborados e fotografias idem, desde o âmbito universitário é mais que uma obrigação: trata-se de uma necessidade vital aos jovens aprendizes. Em especial quando, e este é o caso da Exceção, a proposta recai sobre o que é diferente, novo, inusitado; não apenas em termos de conteúdo editorial, mas também gráfico-imagético. Toda a vez que isso ocorre, o jornalismo demonstra vitalidade desde o âmbito universitário, o que é bom para todos. É o que se espera desta primeira edição de sua revista Exceção neste 2009.

Uma boa leitura a todos.

SUMARIO

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O encantador de búfalos

Memórias do crack

Uma vida em sete dias

O pescador que não gosta de peixes

Separados até na morte

Loucos por bocha

Memórias de um vendedor de sonhos

Meu bicho de estimação não é um cachorro

A música que verte do chão

Quatrilho: a história de uma amor proibido

O homem dos relógios gigantes

Vida de chapa não é mole

Miséria não se esquece

Quando os ouvidos vêem

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Idealista talvez seja o melhor adjetivo para definir esta “nova safra” de jornalistas. Temos tanta fé em mudar o mundo que nos esquecemos de que a vida real não é tão simples assim. Ao ingressar no mercado de trabalho, percebemos que se conseguimos mudar a vida de pelo menos uma pessoa já é uma grande conquista. Afinal, não é nada fácil ser o super-homem que exige o Estatuto dos Jornalistas. Mudar o mundo é improvável, mas isso não nos impede de tentar.

Foi isso que fizeram nossos precursores, nos idos de 1970: tentaram mudar, senão o mundo, pelo menos o Brasil. De 1964 até 1985 o país viveu a sua mais feroz ditadura. A imprensa foi calada pela censura. A repressão fez vítimas fatais e deixou marcas eternas nas que sobreviveram. Acusados de “subversão” simplesmente “sumiam”, levados pelas mãos dos militares que comandavam a nação. E, entre as profissões consideradas pelos comandantes como mais perigosas para a segurança nacional, estava o jornalismo.

Nos 21 anos de regime militar centenas de pessoas desapareceram e outras tantas morreram, entre elas muitos jornalistas. O caso de Vladimir Herzog, jornalista “suicidado” nas câmaras de tortura do Exército em 1975, foi apenas um. Na época, quem tentasse mudar o Brasil corria sérios riscos. Criticar o governo, então, nem pensar. Quem o fizesse estava automaticamente na

Rozana Ellwanger

mira dos militares, que abusaram da censura para amordaçar a imprensa.

É neste cenário de medo, perseguições e mortes que surgiram aqueles que podem ser seguidos como modelos no exercício do jornalismo. Muitos jornalistas se calaram diante das pressões do governo, mas houve também uma parcela que rejeitou a idéia de viver em um país sem liberdade de expressão. Apesar de toda a violência e das perseguições, alguns ousaram lutar. Mas eles não empunharam armas; usaram do meio que dispunham para denunciar as arbitrariedades do regime: a palavra. Driblaram a censura, fundaram jornais de oposição e, principalmente, mostraram à população que algo estava errado.

Medo, não tenho dúvidas de que eles sentiam. Mas deixavam o sentimento de lado, abandonado como já haviam feito com os tipos móveis, em prol daquilo que todo o ser humano busca: liberdade. Estes sim foram idealistas. Jornalistas que não se curvaram diante do arbítrio e lutaram para mudar senão o mundo, pelo menos o seu país. E conseguiram. Fizeram o povo enxergar que a ditadura deveria acabar e enfim, depois de 21 anos, ela acabou. Estes jornalistas sim devem ser nossos exemplos. Afinal, se eles lutaram e viram o Brasil mudar, podemos mudar algo também. Mesmo que não consigamos mudar o mundo, se seguirmos sendo idealistas podemos mudar pelo menos a vida de alguém.

Idealismo... eu quero para viver!

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Pandorinha voltou a sorrirAna Flávia Hantt

De gotinha em gotinha, a querida Pandora foi se curando. Já era a serelepe de sempre. Logo vi, em certa manhã, quando a amada Pandora caiu doente. Não movia um músculo sequer. Não pulou em cima da cama assim que ouviu o meu despertador tocar. Não ganiu insistentemente com aquela cara redonda e os dentes a mostra para dizer que chegava de sono e era hora de brincar. Apenas o que mexia naquele corpo peludo eram as pálpebras, as únicas que ainda tinham força para esboçar um movimento.

Tem algo errado com essa cachorra, pensei. "Benzinho, amor, lindinha. Acorda." Olhar de canto para mim. Ela apenas fechou as pálpebras. Então eu comecei a me assustar. Quem conhece a Pandora, sabe do que eu estou falando. Ela é um doce de cachorra, uma rotweiller linda. Mas devido ao seu temperamento um tanto destrambelhado e hiperativo, ganhou alguns apelidos carinhosos. O mais doce deles a Pandorinha ganhou da minha dinda: demônio.

Pois bem. O que uma pessoa com instinto maternal por uma cachorra de três anos de idade faz nesse momento? Liga desesperada para o veterinário, claro. O Doutor Raposa veio, examinou a Pandorinha e disse que precisava leva-la para maiores exames.

A tardinha chegou e fui imediatamente visitar minha cachorra. Lá estava ela, deitada bem no fundo da sua jaulinha. Admirei-me quando o veterinário

disse que o problema de Pandora era depressão. Ele, no entanto, me explicou que ela devia ter ficado ressentida pelo fato de ter sido castrada.

Resumo da história: passei a frequentar terapias de grupo com a minha doce cachorrinha. Sim. Vocês também conseguem imaginar a cena? Euzinha, ao lado de uma rotweiller, sentada em roda junto a outras pessoas com seus cães. Conversávamos e fazíamos exercícios em dupla. Detalhe que o exercício em dupla aqui quer dizer, eu e Pandora, depois eu e Fred, eu e Bob, eu e Mel, eu e Pretinha... pelos nomes, nem preciso dizer em qual espécie se enquadravam os meus parceiros de trabalho, certo?

Aliado a isso, cinco vezes ao dia eu precisava pingar na língua da Pandora dez gotinhas de remédio homeopático. Aquilo lhe aliviaria as angústias, ensinou o Doutor Raposa.

Dois meses depois, cinco vidros de remédio, cerca de 16 encontros para terapias em grupo, e a Pandorinha voltou a sorrir!

Ok, ok... cães não sorriem, eu sei. Mas a minha pequena voltou a ser como sempre. Os carteiros e entregadores em geral voltaram a ter tiques nervosos, os gatos voltaram a não cruzar na minha rua, os pardais e bem-te-vis passaram a ficar apenas em cima das árvores... Em outras palavras, tudo voltou à calmaria de sempre. Tudo graças as terapias e as gotinhas homeopáticas.

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No interior do município de General

Câmara, depois de andar por estradinhas

de chão serpenteantes e um tanto quanto

esburacadas, chega-se a uma fazenda onde

se cria búfalos para reprodução, trabalho

no campo e corte. Nada anormal para

uma região que possui inclusive uma festa

para homenagear o animal. No entanto,

na morada de tijolos à vista do veterinário

Antonio Trierweiler, os búfalos se tornam

Antonio Trierweiler é veterinário

especializado em bubalinos. Mas

o que o torna diferente é o fato de

amansar e atrair os animais por

meio do som de música gospel

tocada no violino

muito mais do que simples animalões de

cerca de uma tonelada cada.

A música os transforma. Mas não é

qualquer melodia. Os bubalinos reagem a

uma música em especial: a música gospel

Amazing Grace. Quando tocada por

Trierweiler, os animais começam um trote

silencioso pelas pastagens. Os búfalos são

atraídos pelo som, mesmo estando a 200,

300 metros de distância.

Mais do que ter um gosto refinado

por música clássica, os búfalos do veterinário

se tornam carentes ao ouvi-la. Querem

carinho, atenção. Querem ser alisados e

mimados. Animais que possuem força

O ENCANTADOR DE BÚFALOS

Ana Flávia Hantt

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para serem comparados a tratores e uma

cara preta nem sempre amistosa tornam-se

dóceis animaizinhos de estimação. E tudo,

garante Trierweiler, devido à música.

Esta reação foi notada pelo vete-

rinário de 46 anos em 2003. Integrante das

orquestras de Lajeado e da Universidade de

Santa Cruz do Sul, ensaiava no alpendre

de sua casa, quando dois animais que

estavam sendo preparados para a Expointer

reagiram à melodia. “Toquei várias músicas

e nesse ínterim eles apenas olhavam na

minha direção e continuavam a pastar. Foi

então que comecei a tocar Amazing Grace

e para minha surpresa eles vieram ao meu

encontro.” Como profissional especializado

em bubalinos, resolveu fazer experiências:

tocou em épocas e horários diferentes. Os

animais? Sempre reagiam à canção.

ENCANTADOR DE BÚFALOS No mesmo ano, Antonio

Trierweiler ganhou a denominação de

encantador de búfalos na Expointer. Munido

com seu violino, saiu tocando a música pelo

parque de exposições na cidade de Esteio,

tendo em seu encalço os dois búfalos que

Os búfalos se aproximam e ouvem a

música de Antonio

participavam da competição. Assim, acabou

amansando os animais.

Trierweiler iniciou a criação de

búfalos em 1980, sendo que o gosto

pela espécie deve-se às suas qualidades

intrínsecas, como longevidade, rusticidade

e fertilidade. A docilidade é outro fator

que atraiu o veterinário. Atualmente, dos

77 animais que possui, alguns são tão

amorosos que passaram a praticamente

integrar a família do veterinário.

O búfalo Índio, um touro de 990

quilos e seis anos de idade, é, literalmente,

o cachorrinho da família. Animal de

estimação de Carlinhos, de cinco anos,

filho do veterinário, é tri-grande campeão

da sua raça e nunca foi vendido por ser

o preferido do menino. Desde um ano de

idade, Carlinhos monta em seu lombo e

passeia pelo quintal da casa.

Esse é também o caso de Marajó,

um macho de seis anos amansado para

montaria, tração e para o arado. No seu

rebanho de cria, uma fêmea conhecida

como 47, ao ver o criador se aproximar, fica

quieta, apenas esperando receber carinho.

“Quem conhece búfalos sabe que eles

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A canção tocada ao violino amança os animais, que permitem até serem montados

andam todo o tempo juntos. Ela chega a se

separar do resto para me esperar”, mostra,

ao mesmo tempo em que afaga o animal.

A docilidade de alguns, inclusive,

os salvou do abate. O búfalo 16, que integra

o rebanho de engorda, não será vendido

para corte por já ter conquistado a afeição

de Antonio. Quando toca sua canção, o

animal se aproxima do músico e não se

afasta até ter satisfeito completamente a

sua necessidade de atenção.

O SEGREDO Apesar de ser técnico de registro

genealógico da Associação Brasileira de

Criadores de Búfalos e músico desde

criança, Antonio Trierweiler não sabe por

que a música Amazing Grace em particular

surte efeito nos bubalinos. O músico

suspeita que seja a vibração das notas,

que, de alguma maneira, soa familiar aos

animais. Com memória de fazer inveja

a qualquer humano, os búfalos, uma vez

amansados ou adestrados, não esquecem

o aprendizado, assim como também não

esquecem os maus tratos.

Da mesma forma, quem assiste

Antonio Trierweiler atraindo dezenas de

búfalos pelas pastagens de sua fazenda

apenas com o som do violino não esquece.

E mesmo não sabendo como isso acontece,

o veterinário sabe o suficiente para manter

uma relação de amizade com os seus

animais. “Não devemos ter raiva nem

medo, pois a adrenalina provocada por

estes sentimentos é percebida pelo faro,

provocando neles uma reação de hostilidade

por representarmos perigo a eles.” O

segredo, então, é entrar nas pastagens

com o coração aberto? “De coração aberto

e violino em punho.”

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Memórias do crackDo ponto de vista químico, o crack pode ser definido como uma mistura de cocaína

em pasta não refinada com bicarbonato de sódio, muito viciante. Já alucinação é

a percepção real de algo que não existe, além de uma das conseqüências do uso da

droga. Explicações à parte, a droga é tão poderosa que, durante a recuperação, é

comum dependentes químicos verem coisas que não existem. Ou melhor, que só exis-

tem para eles. As histórias relatadas nesta matéria ocorreram em uma clínica para

drogados localizado em uma igreja de Venâncio Aires.

Reunidos, junto com o coordenador do programa de recupe-

ração de viciados em crack, um grupo de adolescentes rezava

e cantava. Todos estavam bem e nenhum deles havia tido crise

de abstinência. Pelo menos não naquele dia. De repente, um

deles se levanta e olha tranqüilamente para a parede, sem ne-

nhum móvel no caminho. Para os outros era apenas uma pare-

de branca. Mas para ele, ali havia uma porta e a possibilidade

de sair daquele lugar. Ele então empreende uma corrida digna

de velocista em direção a ela e... paff! Todos ouvem uma batida

seca no cimento e vêem o garoto caindo de costas no chão.

PORTAS QUE APARECEM...

...E PRIVADAS QUE SOMEMA luta contra o vício às vezes também é uma luta contra o tem-

po. Um certa noite, um rapaz estava conversando normalmente

com os outros. Até que avistou a bateria da banda e caminhou

calmamente em direção ao instrumento. Chegando lá, abriu o

zíper da calça e se preparou para “dar uma aliviada”. Foi quando

o coordenador parou ao seu lado e perguntou:

- O que você tá fazendo!?

- Eu vou fazer xixi.

- Mas aqui?

- Não tem problema. Depois eu puxo a cordinha.

O garoto de 17 anos jamais vai esquecer o que houve na noite de

sexta-feira. Ele estava sentado com os outros jovens, conversando,

no dormitório quando, ficou tudo em silêncio e ele começou a

sentir um calor infernal. Olhou para si e viu fumaça saindo de sua

camiseta. Na mesma hora arrancou a blusa. Ele então a esticou em

sua frente e viu claramente que ela pegava fogo. Faíscas voavam

em sua direção. Na mesma hora ele jogou a camiseta para longe,

em cima da cama, e ela desintegrou-se em cinzas, deixando o col-

chão marcado pelo fogo. Tudo certo, ou melhor, tudo errado, não

fosse o fato de que ninguém, - nem mesmo o pastor -, acreditava

em sua história. O único que tinha certeza disso era ele mesmo,

apesar de suas roupas estarem intactas.

FOGO SEM RASTROS

Rozana Ellwanger

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UMA VIDA EM

SETE DIAS

os colegas, mas nada muito demorado. Após o almoço é hora de

um bate-papo com os colegas. 12h55min: volto para o escritório e

vou escovar os dentes. 13 horas: inicio as atividades normalmente.

14h15min dou um tempo para um café. 15h30min: dou uma saída

da empresa para ir buscar algumas notas fi scais. Chegando de

volta ao escritório, por volta das 16h45min, é hora de outro café, o

último do dia. 17h10min: começo a me organizar para ir embora.

17h40min: chego em casa e vou brincar um pouco com minha

fi lha, já que agora é sempre complicado nos vermos por causa do

horário, que é incerto. 18 horas: levo minha fi lha para casa da mãe

dela. Estes momentos em que entrego minha fi lha para a mãe dela

são muito complicados para mim, pois sou extremamente apegado

a ela. Em seguida vou jogar futebol com uns amigos. Por volta das

20 horas, quando chego em casa, vou tomar meu banho e saio

para o shopping jantar. Às 21 horas retorno para casa, assisto um

pouco de televisão e vou dormir.

SEGUNDA- FEIRA

Letícia Schmidt

6h20min soa o despertador.

Levanto e começo a me arrumar

para ir trabalhar. Mas antes

de ir para o serviço, vou até

a casa de minha ex-mulher

buscar minha fi lha Laura, de

cinco anos. Casei-me muito cedo, aos 18

anos de idade. Foram sete anos de casamento maravilhoso.

Mas, como nada é para a vida toda, minha ex-mulher e eu

resolvemos nos divorciar. Como estamos em processo de

separação, minha fi lha fi ca de um lado para o outro, sem

horário para nada. Após pegar minha fi lha, a levo para minha

casa, onde ela fi ca aos cuidados de minha mãe. Chegando à

empresa, por volta das 7h05min, vou direto tomar um café. Em

seguida, dirijo-me até minha sala e começo minhas atividades

no trabalho. Na metade da manhã surge uma reunião com

Pai de Laura, o divorciado Diego Paiva, 25 anos, vive com seus

pais. Sua vida se resume basicamente aos estudos, ao escritório

de contabilidade da empresa, aos amigos e à fi lha, de cinco anos.

Laura, a fi lha do jovem divorciado, é o xodó da família de Diego.

Paiva também é louco por café e futebol

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13TERÇA- FEIRA

QUARTA- FEIRA

Soa o despertador às 6h20min. Levanto e começo a me arrumar. Pego meu carro

e saio para o trabalho. 7h05min: chego na empresa e vou tomar café. Após isso,

dirijo-me até minha sala e começo minhas atividades no trabalho. 8h30min: dou

um tempo no trabalho e vou tomar um café na copa. 10h30min: dou mais

um tempo para outro café. 11 horas: vou ao setor da fábrica documentar

alguns equipamentos. 12h05min: saio para o almoço na empresa. 12h55min:

volto para o escritório e vou escovar os dentes. Em seguida inicio as atividades de trabalho

normalmente. 14h30min: dou um tempo para meu famoso café. 17 horas: tomo mais um café, o último do

dia. 17h18min, fi m do expediente. 19h10min assisto ao jogo do meu timão, Grêmio. 20h45min: minha mãe

serve a janta, mas como não perco por nada deste mundo o jogo do meu time, janto na sala mesmo. Com o

término do jogo, tomo meu banho e vou para meu quarto estudar, pois faço curso de inglês. Acabo dormindo

com os livros na mão.

6h20min: levanto para ir trabalhar. Chegando à empresa vou tomar

meu café. E ao entrar em minha sala de trabalho me deparo com

muitos de papéis na minha mesa: nossa! O dia vai ser longo pelo

visto!! E, para ajudar, uma reunião com duração de uma hora. Após

isto, pelas 8h30min, dou um tempo e vou tomar um café na copa.

10h30min: volto para a copa para mais um café, meu grande e único

vício. Com o término do expediente, vou direto jogar um futebol com os colegas da empresa. Em

seguida, vamos tomar uma cervejinha e aproveitamos para bater um papo-furado. Depois vou para

casa, janto com minha família e vou dormir.

6h20min: levanto para ir trabalhar. 7h10min: chego à empresa e vou tomar café. Ao

entrar em minha sala, percebo que não há serviço para mim. Resumindo: passo

o dia todo tomando café e conversando com os colegas para passar o tempo.

17h18min, fi m do expediente. Após o serviço, pego minha fi lha Laura na casa

da minha ex . Resolvo levar ela na pracinha do centro. A Laurinha volta com

os joelhos esfolados de tanto brincar e cair na areia. Em seguida vou para casa dos

meus tios, com minha mãe e meu pai, jantar. Após isso, vou à casa de um amigo meu para

conversar um pouquinho. Confesso que é muito estranho voltar para a casa dos pais após cinco anos

morando fora, pois é tudo diferente. Mas agradeço muito a eles, meus pais são muito bem centrados

e de corações enormes. O mais legal de tudo é que voltei a receber os mimos de minha mãe!!

QUINTA- FEIRA

o dia todo tomando café e conversando com os colegas para passar o tempo. o dia todo tomando café e conversando com os colegas para passar o tempo.

17h18min, fi m do expediente. Após o serviço, pego minha fi lha Laura na casa

dia. 17h18min, fi m do expediente. 19h10min assisto ao jogo do meu timão, Grêmio. 20h45min: minha mãe dia. 17h18min, fi m do expediente. 19h10min assisto ao jogo do meu timão, Grêmio. 20h45min: minha mãe

serve a janta, mas como não perco por nada deste mundo o jogo do meu time, janto na sala mesmo. Com o

término do jogo, tomo meu banho e vou para meu quarto estudar, pois faço curso de inglês. Acabo dormindo

com os livros na mão.

QUARTA- FEIRA

dia. 17h18min, fi m do expediente. 19h10min assisto ao jogo do meu timão, Grêmio. 20h45min: minha mãe

serve a janta, mas como não perco por nada deste mundo o jogo do meu time, janto na sala mesmo. Com o

término do jogo, tomo meu banho e vou para meu quarto estudar, pois faço curso de inglês. Acabo dormindo

com os livros na mão.

6h20min: levanto para ir trabalhar. Chegando à empresa vou tomar 6h20min: levanto para ir trabalhar. Chegando à empresa vou tomar

meu café. E ao entrar em minha sala de trabalho me deparo com

muitos de papéis na minha mesa: nossa! O dia vai ser longo pelo muitos de papéis na minha mesa: nossa! O dia vai ser longo pelo

visto!! E, para ajudar, uma reunião com duração de uma hora. Após visto!! E, para ajudar, uma reunião com duração de uma hora. Após

isto, pelas 8h30min, dou um tempo e vou tomar um café na copa. isto, pelas 8h30min, dou um tempo e vou tomar um café na copa.

10h30min: volto para a copa para mais um café, meu grande e único 10h30min: volto para a copa para mais um café, meu grande e único

vício. Com o término do expediente, vou direto jogar um futebol com os colegas da empresa. Em vício. Com o término do expediente, vou direto jogar um futebol com os colegas da empresa. Em

seguida, vamos tomar uma cervejinha e aproveitamos para bater um papo-furado. Depois vou para seguida, vamos tomar uma cervejinha e aproveitamos para bater um papo-furado. Depois vou para

casa, janto com minha família e vou dormir.

6h20min: levanto para ir trabalhar. 7h10min: chego à empresa e vou tomar café. Ao 6h20min: levanto para ir trabalhar. 7h10min: chego à empresa e vou tomar café. Ao

entrar em minha sala, percebo que não há serviço para mim. Resumindo: passo entrar em minha sala, percebo que não há serviço para mim. Resumindo: passo

o dia todo tomando café e conversando com os colegas para passar o tempo. o dia todo tomando café e conversando com os colegas para passar o tempo.

QUINTA- FEIRA

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SEXTA - FEIRA

SÁBADO

DOMINGO

LETÍ

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Quinta, véspera de feriado, volto da casa

de meu amigo às 4 horas da manhã.

Mas, mesmo assim, levanto cedo, pelas 7

horas para buscar minha filha. Mas quando

chego em casa com minha filhota não agüento

de sono e vou deitar mais um pouquinho. Porém, de nada adiantou. Logo

chegam em casa meus parentes e a folia começa. Mesmo assim, fico até

9h30min deitado na cama e, ao levantar, vou conversar com meus parentes.

À tardinha, infelizmente levo minha filha para a casa da minha ex. Em seguida

vou até o shopping jantar. Aproveito que estou pela rua e dou uma volta

de carro sozinho mesmo. Acabo encontrando meu primo pelo Posto do

Pflug, então aproveito e fico ali mesmo com ele e uns amigos conversando

e tomando uma cerveja. Minutos depois vamos para o apartamento do meu

primo jogar vídeo-game. Pela 00h30min volto para minha casa.

Acordo pelas 9 horas, tomo um café e vou para o posto lavar o carro. Logo após, levo

minha mãe para fazer umas comprinhas no Centro. Chegamos em casa e faço uma média

com meu pai: vou fazer um super churrasco. Na parte da tarde, fui buscar minha filha

Laura. A levo para comer um sorvete pertinho de casa. Nossa! Quanta alegria dessa

menina! Apesar de a Laura ter apenas cinco anos de idade, ela já consegue entender

perfeitamente que os pais dela não conseguem viver mais juntos. Mas me sinto extremamente

satisfeito com o crescimento dela: pois é saudável, alegre, muito inteligente e querida. Em seguida voltamos

para casa, conecto meu Messenger e combino com o pessoal que está on-line de sair à noite para uma

balada. Após isso, levo minha filha para a casa de minha ex-sogra e a deixo com ela. Mais tarde vou até a

casa de um amigo meu para pegá-lo, pois fomos vamos para a balada. Chegando lá, encontramos umas

colegas da empresa. Fizemos uma grande festa!

Acordo às 10 horas da manhã para levar minha filha de volta para a casa da mãe.

Após isso, vou direto para meu irmão para almoçar. Mas logo após o almoço, volto

para casa para dormir, acordando somente às 16 horas. Ao levantar conecto meu

Messenger e ali fico durante duas horas conversando com o pessoal que está on-line. Lá

pelas 19 horas vou até o mercado fazer umas comprinhas para minha mãe. Aproveito e já

dou uma volta na Avenida Imigrantes para ver o movimento. Chegando em casa vou logo

para a residência do meu vizinho e amigo para olharmos o jogo do Inter, ou melhor, secar o Inter. Mas nada

adiantou, o massacre foi de 4 X 0 do Inter sobre o Canoas. Retorno para casa, janto e logo vou dormir.

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quando os ouvidos

VêEMA tecnologia evoluiu e se tornou uma aliada para que as

pessoas com deficiência visual possam se comunicar com mais

facilidade. Graças a ela surgiram as falas Sapi. Conheça agora

Fernanda, Gabriel, Raquel e Felipe

Aline Silva

As pessoas nascem com cinco sen-

tidos fundamentais. Tato, paladar, audição,

olfato e visão. Aqueles que já não contam

mais com os olhos para ver, fazem de seus

ouvidos e mãos exímios ajudantes para a

convivência diária, principalmente com a

tecnologia. Outros utilizam-se das máqui-

nas para expandir seus horizontes. Foi

assim que surgiu a Fernanda, o Gabriel, a

Raquel e o Felipe.

Apesar dos nomes próprios, não es-

tamos falando de pessoas. Muito menos

auxiliares que se sentarão próximos à tela

do computador. Eles na verdade existem

somente no mundo virtual: são todos vozes

sintetizadas, que facilitam a utilização do

computador por pessoas com deficiência.

Os nomes servem apenas para aproximar

ainda mais o homem e a máquina.

Os leitores de tela fazem a leitura

de tudo o que aparece no visor por meio

de sintetizadores de voz. Ao contrário do

que se possa imaginar, as vozes são huma-

nas. No entanto, são sintetizadas por pro-

gramas específicos, como o Soundfourge.

O leitor de tela faz a interpretação do que

está escrito e o sintetizador fala. A qualida-

de de um sintetizador de voz é determina-

da pela semelhança com a voz humana e

sua capacidade de compreensão.

Felipe Garcia é um jovem de 17

anos, deficiente visual desde o nascimento

e há pouco mais de um ano tem utilizado

os leitores de tela. Ensinado por um amigo,

hoje ele auxilia pessoas que queiram utili-

zar esses programas. Na internet, ele faz o

download das chamadas vozes e as forne-

ce a quem se interessar. “No grupo de pes-

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Cristian não se intimida com o avanço das tecnologias

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17falas sapi e dosvox

Sapi é uma sigla em inglês que quer dizer Speech Application Programming Interface. Trata-se de uma API (Application Programming Interface) desenvolvida pela Microsoft que permite a utilização do reconhecimento de voz. Ou seja, as vozes sintetizadas, projetadas para que os programas consigam comunicar de uma maneira fácil, acessível por meio de diversas linguagens de programação com o software que reconhece a voz ou que converte o texto para voz.

Já o Dosvox é um sistema para microcomputadores brasileiro, elaborado pelo Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Permite que pessoas cegas utilizem um microcomputador comum para desempenhar uma série de tarefas, adquirindo assim um nível alto de independência no estudo e no trabalho.

Quer saber mais? Acessehttp://arquivossonoros.blogspot.com/

e http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/

soas cegas que participo, sempre bus-co

trazer coisas novas e informações sobre as

falas Sapi (vozes sintetizadas)” (veja box).

Ele garante ser um deficiente visual ante-

nado, que gosta de divulgar e ajudar mais

pessoas a conhecerem esses programas.

Felipe acredita que sem os recursos atuais

seria tudo mais difícil. “Se não existisse o

computador com estes recursos auditivos

na vida do cego, seria tudo mais compli-

cado, como era no passado. Hoje, com a

internet e com os leitores mais avançados,

podemos acessar páginas e programas

mais facilmente”.

Cristian Evandro Sehnem é defi-

ciente visual e usuário de um desses pro-

gramas. Todos os dias recebe milhares de

e-mails, participa de grupos de discussões,

navega tranqüilamente pela internet sem

ter de pedir auxílio para ninguém. O único

inconveniente, garante, é se alguém utiliza

seu computador. "Aconteceu esses dias,

pensei que o micro tinha estragado, quan-

do na verdade tinham tirado o áudio. Isso

é sacanagem para quem se baseia na voz

para trabalhar". Cristian é um exemplo de

como a tecnologia pode ajudar na adapta-

ção para uma nova condição de vida. Mes-

mo tendo perdido a visão ele se adaptou e

hoje consegue realizar diversas atividades

que, sem as evoluções tecnológicas, seriam

praticamente impossíveis.

As vozes sintetizadas e os leitores

de tela cumprem hoje um papel de des-

taque no mundo virtual. O que os olhos

não vêem, os ouvidos compreendem com

a ajuda da máquina e seus usuários assim

são inseridos no mundo tecnológico.

ILuSTRAçãO: bRunO SEIdEL

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a possibilidade de seguirentender. Naquela época, para se ter uma idéia, o programa vinha em disquetes, dez no total, junto com um pequeno equipamento que era acoplado ao computador, que não vinha com multimídia. Mas um tempo depois, se não estou enganado no ano 2000, já trabalhando na Unisc, consegui comprar um computador, e então tudo mudou. É outra coisa ter um computador em casa. Instalei o Dosvox, mas também o Virtual Vision, software leitor de tela. O Virtual Vision possuía uma síntese de voz muito melhor, mais clara, compreensível, e permitia o uso do Windows, o que foi um avanço. Enquanto o Dosvox tinha toda uma estrutura própria, o Virtual Vision trabalhava com base no Windows. A partir de então o Braile passou a ser utilizado apenas para identificar objetos, documentos, pastas, CDs e assim por diante, porque nos estudos, trabalho e mesmo lazer o computador com leitor de tela tornou-se inquestionável. Hoje defendo o uso de computadores por pessoas com deficiência visual. Não consigo imaginar um estudante apenas com reglete e punção (instrumentos para a escrita Braile), por entender que no computador os recursos são maiores, mais rápidos e atuais. Enquanto um livro em Braile demora meses para ser publicado, uma informação no computador, ligado à internet, dá a notícia minutos após ter acontecido, mesmo que no outro lado do mundo. Também não se pode esquecer que esses softwares leitores de tela não são utilizáveis apenas no computador. Há uma série de equipamentos que também contam com esse formato de adaptação, como celulares, máquinas de lavar roupas, termômetros... enfim, através da audição a pessoa com deficiência visual tem novas possibilidades e pode usufruir de muitas vantagens. Por isso, hoje, não me imagino sem esses recursos. Se estudo e trabalho é porque tenho um importante e ágil instrumento para minhas atividades.”

“Perdi a visão aos 20 anos de idade, quando cursava o quinto semestre de Ciência da Computação na Unisc. Inicialmente busquei os conhecimentos da linguagem Braile, pois tinha a idéia de que pessoas com deficiência visual usavam apenas esse recurso. Mas não conseguia ler e escrever muito bem em Braile, pois tinha o sentido do tato já limitado pela idade adulta, e também a paciência para ficar catando letra por letra era pouca, já que tinha a experiência do ler com os olhos.

No ano seguinte, em 1997, fiz um curso de informática pelo Senai, com o Sistema Operacional Dosvox, criado pela UFRJ para pessoas com deficiência visual. Como eu já conhecia o computador, tive uma certa facilidade para reaprender a usá-lo, mesmo que a voz

fosse, naquela época, complicada.

Era uma voz chiada, muito mais

robotizada, mais quadrada

ainda que as que temos hoje . E ainda fazia a leitura

por sílabas, o que nem sempre

dava para

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O som do sino reverbera por vários

quarteirões, mas seu efeito é discreto entre

os moradores já acostumados. Dentro da

torre da igreja, porém, é quase impossível

fi car indiferente às badaladas. Ali, onde

a rusticidade das paredes de tijolo à vista

contrasta com a valorização da arquitetura

no lado de fora, o estrondo das toneladas

de bronze sendo zurzidas pelo martelo

continua soando na cabeça por alguns

segundos depois do silêncio dos sinos.

Quem vê de perto pela primeira

vez se assusta. Dauri Dilso Klein nem nota.

A torre da igreja é seu escritório de trabalho.

É ali que fi ca a máquina dos relógios,

onde Dauri reina entre engrenagens e

ferramentas. O técnico relojoeiro é uma

das únicas pessoas do Estado especializada

na manutenção de relógios públicos – ou a

única, como ele defende.

O início de Klein no ofício, claro,

foi com um relógio estragado. Em 1998

já faziam dez anos que os ponteiros do

templo da comunidade luterana de sua

cidade, Marques de Souza, no Vale de

Taquari, marcavam o mesmo horário. Klein,

proprietário da única relojoaria de Marques

de Souza, foi chamado para resolver o

problema. “Eu achava que não conseguiria

arrumar. Nunca havia visto um relógio com

peças tão grandes, não tinha nenhuma

noção. Sorte que eles insistiram”, conta

Klein, de 54 anos, com sua fala pausada e

correta de professor.

O relojoeiro foi daquelas crianças

mais interessadas em desmontar os

brinquedos e entender seu funcionamento

do que propriamente brincar. Nos fundos

de sua casa, instalou um ofi cina para

desenvolver sua imaginação. De lá saíram

Em meio a sinos, ponteiros e engrenagens gigantes, Dauri Klein

reina absoluto. Ele se dedica a uma profi ssão peculiar e cada

vez mais rara: mecânico de relógios públicos

O HOMEM dos RELÓGios GIGANTES

Thiago Stürmer

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desde as peças de relógio danificadas pelo

tempo até o sistema de som que ele tem

instalado na parede de seu banheiro. Técni-

co em eletrônica pelo Instituto Universal

Brasileiro, Klein desenvolveu também um

sistema que desliga as batidas do relógio

sem interferência no funcionamento dos

ponteiros. O mecanismo foi criado para

não perturbar os moradores do Centro de

Alegrete, onde fica a igreja Nossa Senho-

ra da Conceição Aparecida, local onde o

relógio estava há 35 anos parado antes de

ser consertado.

Mas Klein não é procurado apenas

por ser o único a se dedicar ao conserto

dos relógios. Mesmo que houvesse vários

profissionais, sua dedicação o destacaria. “A

cada seis meses, eu ligo para as comunida-

des para perguntar como está o relógio,

insisto para que façam a manutenção”,

diz. “Mesmo que o relógio foi construído

há cem anos, se bem cuidado, daqui a

mais cem ainda vai estar funcionando”.

O técnico também tem na memória nú-

meros e dados sobre a antiga fábrica de

relógios públicos Schwertner, única na

América Latina registrada para a função,

que funcionou até o fim dos anos 1990

em Estrela, também no Vale do Taquari.

A Schwertner produziu 14 diferentes mo-

delos de relógios. Conforme Klein, todo

equipamento instalado nas torres das igre-

jas do Estado é da marca, foi construído

artesanalmente ou trazido da Europa.

Por acaso, foi um dos filhos

do fundador da empresa o responsável

pela propagação do nome de Klein como

consertador de relógios públicos. Com

mais de 90 anos, Theobaldo Schwertner

ainda era procurado para arrumar os

equipamentos produzidos pelas empresa.

“Estou velho, não faço mais e não sei quem

o faça”, respondia, até um fim de semana

de 2003, quando foi a Marques de Souza

e viu o relógio construído por seu pai no

inicio do século funcionando novamente.

Daí em diante, seu discurso com os ex-

clientes mudou: “Estou velho, não faço

mais, mas sei quem pode fazer”.

Dílson Klein já fez voltarem a

funcionar mais de 50 relógios no Rio Grande

do Sul, no Paraná e em Santa Catarina.

Nos últimos meses sua reputação chegou

à região sudeste e ele freqüentemente

recebe ligações de lá. Nas primeiras vezes

que passou meses fora de casa para

consertar um relógio chegou a cogitar o

abandono do ofício. Agora, não consegue

mais recusar pedidos. “Me sinto como um

médico que pode salvar a vida de alguém e

não faz”, exagera.

Um dos maiores orgulhos de Klein

é a restauração do relógio de Vila Theresa,

em Bagé, na fronteira do Rio Grande do

Sul. O modelo importado da Alemanha em

1908 funcionava a corda e foi transformado

em automático, depois de 50 anos parado.

O trabalho durou três meses. Agora, o local

será transformado em centro turístico, com

recursos privados e através das leis Rouanet

e de Incentivo à Cultura. “Aquilo estava

abandonado, agora foi transformado em

um lugar lindo”, orgulha-se.

Klein sabe que, quanto mais

avança o tempo, mais importância ganham

os relógios públicos como relíquia histórica.

Ele está com 54 anos; logo pretende se

aposentar e não há ninguém para substituí-

lo. Seu sonho é poder fazer uma espécie

de escola profissionalizante onde possa

ensinar seu ofício a jovens. A função, ele

diz, é fácil: o aspirante precisa apenas ser

disciplinado e curioso - qualidades que

Dauri Dilso Klein tem de sobra.

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Morador do Vale do Taquari já consertou relógios nos três estados da região Sul

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Há 50 anos deslizando sobre o

rio Jacuí, seu Adão poderia ser apenas

mais um pescador capaz de apontar de

olhos fechados as diferenças entre traíras,

muçuns, carpas, piavas, jundiás, dourados

ou qualquer outra espécie de peixe dentre

os milhares, talvez até milhões, que já

pescou. Não que isso seja desprezível, muito

pelo contrário, é quase uma obrigação

perante tamanha experiência. E seu Adão

orgulha-se disso. Bate na mesa, seus olhos

brilham e saltam-lhe as veias do pescoço,

enquanto discursa: “Eu e meus irmãos

somos os únicos ‘pescadores de raiz’ que

ainda existem em Rio Pardo. Meu bisavô

era pescador. Bisavô, avô, pai, eu e agora

meus filhos”. Ressaltar que é, de fato e de

direito, um pescador, talvez lhe deixe mais

altivo do que, por exemplo, ter perdido as

contas de quantas pessoas já salvou nas

profundas águas do Jacuí.

Em sua vida, nada foi tão presente

quanto as solitárias noites frias em que

encarou um gélido rio atrás do sustento

de sua família. Seu Adão pescou, e pescou

muito. Ainda é do tempo em que se pegava

dourado de 15 quilos. Com seis anos já

desafiava os perigos do Jacuí acompanhando

seu velho pai em dura empreitada. Mas este

senhor de 55 anos e 20 netos, de aparência

O PESCADOR QUE NÃO

GOSTA DE

PEIXESBoas histórias todo pescador tem.

Mas a humildade representada por

um olhar tímido, capaz de ocultar

uma alma irrequieta, faz de seu Adão

mais que apenas um pescador: um

homem que faz do rio sua vida.

Wesley Soares

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cansada e sorriso acabrunhado, não é do

tipo que tem apenas bons e alegres causos

de pescador na ponta língua. Sua história

pode ser comparada, ironicamente, a dos

peixes: “Se me afastarem do rio, eu morro,

assim como esses bichinhos que eu pesco”.

Mas sua vida vai muito além de quilôme-

tros de redes armadas e recorridas quase

que diariamente.

Ainda que se destaque o fato de ter

tido 15 irmãos, ter se casado pela primeira

vez aos 18 anos, divorciado-se da segunda

mulher após 20 anos de casamento e ter

salvado mais de uma dezena de pessoas do

fundo do rio Jacuí, isso não é tudo do seu

Adão. Ele é um homem que, com a teimosia

dos velhos sábios que desconhecem seus

próprios limites, embrenha-se rio abaixo

com apenas 50% da visão para, durante

cinco dias, pescar novos sonhos, esquecer

dos problemas que ficam em terra firme

e, se tudo correr bem, voltar com algum

peixe que garanta mais algumas semanas

de tranqüilidade para sua família.

Mas então, o que falar de Adão

Antonio Moreira? Um revolucionário? Um

inovador? Não, nada disso. Apenas um

homem fora de seu tempo. Às vezes muito

atrás, quase um selvagem que consegue

viver uma vida inteira às margens do rio

Jacuí sem nenhum conforto e tirando seu

sustento apenas da pesca, assim como

fizeram os índios antes da colonização

portuguesa na terra brasilis. Outras vezes,

parece estar muito à frente de uma geração

nascida na metade do século passado.

Lembra um menino que se diverte ao

contar que a cada final de semana está

“casado” com uma mulher diferente. Já

esteve na grande metrópole São Paulo. Em

Santa Catarina, passou por Florianópolis e

Bombinhas. Do litoral gaúcho, é capaz de

citar, na ordem, todas as praias.

Mas a vida não é tão simples assim.

Por vezes sente-se fisgado e impotente, tal

qual os peixes quando se prendem à redes

ou anzóis. As marcas do tempo expostas

em um rosto que aparenta bem mais do

que os 55 anos que tem evidenciam as

dificuldades de uma trajetória cheia de

percalços. É isso que faz do seu Adão um

homem diferente. Um homem que intriga

pela frieza com que relata a morte de

sete irmãos: “Éramos em 16. Quase todos

foram pescadores, nos criamos nessa lida.

Hoje estamos em nove. Todos os outros

morreram”. Um homem que, como todo

bom filho da terra, nunca desistiu. Porém,

diferentemente de tantos outros, nunca se

valeu do tradicional “jeitinho brasileiro”

para conseguir as coisas.

Em seus olhos, há uma mescla de

malandragem e consternação, de ousadia e

aflição, de esperança e de angústia. Neste

coração duro, há uma vontade diferente

de viver. Se a médica receitar uma dieta

para controlar a diabete, não será seguida.

Se cortar a cerveja, perda de tempo. “A

cerveja está proibida. Mas não tem como,

cada vez que como carne, sou obrigado a

tomar uma cervejinha. E já que como muita

carne...”. O pescador Adão tem que comer

peixe, mas apesar de viver da pesca, só

come carne vermelha: “Não gosto de peixe.

Quando como é porque sou obrigado”.

Em um corpo caracterizado pelas

marcas do tempo, a expressão cansada

do rosto chama a atenção. Como ele

próprio diz, cada ruga tem um significado.

Uma é por conta da visão, que perde

gradativamente em função da diabetes.

Outras tantas devem ser postas na conta

dos filhos e netos. Outras, porque não, das

inúmeras mulheres que já teve depois do

segundo casamento. Todavia, a maior das

rugas de seu rosto, a única que é capaz

de fazer o coração sangrar até hoje, é a

provocada pela perda da primeira esposa,

após nove anos de casamento. Ela faleceu

precocemente aos 25 anos, com problemas

cardíacos. E quando se lembra dela, é um

dos raros momentos que se percebe em seu

Nada o deixa mais feliz que expôr seus "troféus" nas sossegadas margens do rio Jacuí

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rosto um amor inabalável pelo tempo, um

sentimento que perdurará pela eternidade.

A simplicidade é, sem dúvida, sua

principal virtude. Histórias inacreditáveis

com certeza povoam sua mente, como

todo bom pescador. Mas se lhe pedem

para contar um bom “causo” do Jacuí, ele

é enfático: “Não meu filho, aqui a gente

faz quase sempre a mesma coisa. É sempre

a mesma rotina”. Quando um cliente

próximo ouve a explicação do pescador

que não gosta de peixes, não se contém:

“E aquele cara que tu salvou aquela vez,

seu Adão?”. “Ah é... Mas isso acontece

seguido, não tem nem conta... Uma vez

um rapaz tentou atravessar o rio nadando

e se afogou. Ele era muito grande, gordo

mesmo. Eu vi e pensei: e agora, como eu

vou tirar esse desgraçado daí? Tinha um

caíque de timbaúva (espécie de madeira).

Peguei este caíque, levei até onde ele estava

e virei por baixo dele. Voltei à tona com o

infeliz dentro do caíque. Puxei o caíque

pra terra, ele já estava desacordado e com

a barriga enorme, cheia d’água. Salvei o

homem com um 'caicão'. Agora ele mora

em Tramandaí e até hoje me liga: ‘E seu

Adão, se não fosse tu eu não estava nem

no osso hoje!’”.

Mesmo com a fiscalização cada

vez mais intensa, com a visível queda nas

quantidades pescadas, com as rotineiras

enchentes que assolam os vizinhos do Jacuí

e com a concorrência desleal do trairão,

um peixe trazido ilegalmente do Uruguai,

que pesa mais que o dobro do encontrado

na região, seu Adão confessa, um pouco

a contragosto, com voz baixa para que

ninguém descubra, que ainda se pode viver

da pesca. Mantém uma renda em torno de

R$ 2 mil por mês, valor que dobra no mês

da Semana Santa. Mas quando o assunto

é dinheiro, ele logo desconversa: “Você vê,

tenho mais de uma dezena de netos que

vivem com este meu sustento. Hoje em dia

não se vive folgado mais”.

Evangélico convicto há 30 anos,

o pescador credita suas bênçãos todas a

Jesus. Mais um ato de humildade: excluir-

se dos seus próprios méritos durante a

trabalhosa vida. No entanto, toma muito

cuidado para não ofender nenhuma outra

religião. Seu Adão conta que há 30 anos era

católico, mas resolveu abandonar a religião.

Dono de uma fé única, interpreta a bíblia

sob o ponto de vista que lhe interessa. “A

Bíblia explica que os rios secarão e os peixes

morrerão. E isso tudo está acontecendo. O

católico pula essa parte. O católico conta só

a parte boa da bíblia”.

Cada peixe pescado representa o

Adão se tranforma quando sobe em seu barco: "aqui eu sou mestre"

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sorriso de um neto e, logo, a realização de seu

Adão. Ainda assim, há épocas em que o rio

e os peixes também precisam de descanso. E

nessas épocas, fora da temporada da pesca,

seu Adão normalmente gerencia uma rede

de sorvetes dentro e fora do Estado. E é

assim que Adão vai vivendo, conforme a

vida e a natureza lhe possibilitam. Quando

a enchente transborda e tapa sua casa-bar,

o que normalmente ocorre em maio, ele

pega sua “gente” e as poucas coisas que

têm, atira em cima de uma barca, e fica

flutuando sobre um rio que avança à beira

do asfalto. Seu bar fica todo debaixo da

água. E a barca é a sua casa durante meses.

Sua casa, seu bar, seu canto.

Da janela da cozinha improvisada,

em cima da barca, atira sua linha em um

Jacuí cinco metros acima do nível normal.

Chama os clientes e anuncia: “Vou pegar

um lambari fresquinho para vocês”. E

assim acontece. Puxa a linha com um

lambari direto do rio para a frigideira. E

isso faz sucesso. O bar lota e Adão Antonio

Moreira, um ilustre desconhecido que

ocupa não mais do que 200 m², dos mais de

800 quilômetros que possui o Jacuí, segue

escrevendo, com o romantismo de uma das

mais nobres profissões e a perspicácia de

quem precisa reinventá-la a cada dia, uma

história digna de um mestre, especialista

em vencer obstáculos.

A VIDA SOBRE O RIO

Além de todos os obstáculos

enfrentados pelos pescadores e donos de

bar que moram ou trabalham na Praia dos

Ingazeiros, em Rio Pardo, uma vez por ano

eles são obrigados a debandarem de suas

casas para barcas ou construções flutuantes,

tamanho é a altura que o rio Jacuí alcança

em épocas chuvosas. No último ano as

águas subiram em torno de oito metros na

localidade dos Ingazeiros.

Seu Adão tem como vizinho um dos

mais famosos restaurantes de Rio Pardo.

Um lugar para aproximadamente 150

pessoas, que foi projetado sobre tonéis,

o que faz com que toda sua estrutura

flutue nas épocas em que o Jacuí sobe.

Empreendimento de alto custo, é uma das

únicas construções à beira do Jacuí que

conta com este recurso. E este diferencial

exótico faz dele um atrativo a mais para

clientes que vêm de todos os lugares visitar

Rio Pardo. Tornou-se, além de restaurante,

ponto turístico.

No entanto, os demais vizinhos

do Jacuí, que não contam com toda essa

“mobilidade”, improvisam como podem.

Ao contrário do seu Adão, que se muda

para uma barca, a maioria dos ribeiri-

nhos de Rio Pardo, que possuem somente

estabelecimentos comerciais, apenas fe-

cham seus bares e esperam que a água

baixe para novamente limpar, pintar e voltar

a vender seu peixe.

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É manhã ensolarada de quinta-

feira e, se a sorte favorecer a todos, será

um dia inteiro descarregando e carregando

caminhões. A placa modesta mostra que

estão em atividade. Os olhos não desgrudam

do asfalto fervendo. Os dedos indicador

e médio, unidos, acenam para quem vai

no acento do caminhão. As carrocerias

passam cheias de ilusões perdidas. É mais

um caminhão que se manda estrada

abaixo. Essa é a vida de chapa, aqueles

trabalhadores que ficam à espera de

um caminhão para ganhar a vida como

ajudante, descarregando e carregando

cargas. Saem de casa cedo e o destino é

a esquina das ruas Tenente Coronel Brito

com a 28 de Setembro, em Santa Cruz

do Sul. Correm o risco de voltar de bolsos

vazios. Não é escolha. Encaram a profissão

porque precisam ganhar o pão de cada dia.

Esta é a historia de pessoas comuns como

VIDA de CHapa NÃo É MOLE

Vidor Alceu da Silva, de 50 anos, Paulo da

Silva de 46 anos, Paulo Rogério, 37 anos, e

Erivaldo Francisco, 45 anos.

Na luta pela sobrevivência, o chapa

oferece, na beira das estradas e avenidas,

os seus serviços aos motoristas que chegam

do interior ou de outros estados. É um bico

para aqueles que estão fora do mercado,

seja pela idade, por falta de qualificação

profissional ou por outros motivos. “Aqui já

foi bom. Havia época que a gente chegava

e tinha dois ou três caminhões esperando

a gente pra trabalhar. Hoje, se alguém me

oferecesse carteira assinada, eu sairia daqui

na hora”, comenta Alceu, mais conhecido

pelos colegas como Ceceu, o rei da turma.

Como toda profissão, a de cha-

pa também tem os seus macetes. Com

a concorrência aumentando a cada dia,

chegar cedo, logo de manhãzinha, é um

deles. E a confiança é o outro; o mais

importante, aliás. É com base na confian-

ça que o chapa pode até mesmo formar

uma clientela. “Se você não trabalhar

direito, o caminhoneiro não te pega mais”,

descreve Ceceu.

No meio da manhã, de repente

um caminhão pára. Dele, logo salta o

motorista para contratar os serviços de

chapa. O preço é acertado antes, com o

caminhoneiro, e varia de acordo com o

peso da carga. Após um rápido diálogo,

negociação de valores, Ceceu, um homem

determinado e com espírito de equipe,

conseguiu serviço para ele e o colega Paulo

Rogério, que seguiram para o caminhão,

onde iniciariam seus trabalhos naquela

manhã. "Você deu sorte!", diz Ceceu, ao

se despedir com um aperto de mão e um

sorriso. “Volte mais tarde ou amanhã."

No dia seguinte, estavam satis-

feitos, pois o dia anterior foi de serviço.

Mesmo com dinheiro no bolso, eles acham

que o trabalho não vale a pena. "Se eu

gosto de ser chapa, moça? Tenho de gostar,

não tenho outra coisa para fazer.” O

movimento é fraco e o tédio toma conta em

muitos dias. As condições de trabalho são

completamente precárias: sem teto, sem

banco, sem banheiro. Reclamam da falta

de incentivo da Prefeitura. “Os candidatos

nos procuram em tempo de eleição e

prometem pelo menos construir uma aba,

igual a uma parada de ônibus, mas passa a

eleição e nada muda”, lamentam Ceceu e

Paulo da Silva.

Chapa também sofre preconceito.

São confundidos com maconheiros,

bandidos, viciados ou ladrões. Pessoas os

procuram para saber onde tem droga para

vender. Outras querem contratá-los para

trabalhos “de bandidagem”. Ceceu conta

que, certa vez, foram procurados para

matar uma pessoa, em um caso de traição

entre um casal. Num tom de espanto,

Eles estão lá. Quase ninguém os vê, mas estão. São os chapas,

que vivem de ajudar os outros. Pessoas que trabalham e prezam

pelo respeito, sempre na esperança de uma vida melhor.

Marinês Klittel

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perguntaram ao contratante: “Tu sabe o

que nós fizemos aqui? Nós trabalhamos e

não matamos”.

As coisas não são fáceis no dia-

a-dia destas pessoas. “Motoristas param e

pensam que somos fornecedores de droga

e que temos um ponto de prostituição.

Querem saber onde tem droga para vender

e outros nos convidam para sair, fazer

programa”, descrevem, indignados. Além

de serem confundidos com ladrões. A polícia

revista e pede para os acompanharem

até a delegacia "para depois dizer que se

confundiram e nos acharam parecidos com

quem eles estão procurando", reclama

Paulo. Atitudes como estas os deixam

desprotegidos, inseguros e insatisfeitos

com a sociedade.

Porém, engana-se quem pensa

que eles só têm histórias tristes para contar.

Quando Ceceu fala da dona Ione, por

exemplo, o sorriso cativante de Paulo vai

contagiando a todos. Uma ex-diretora de

escola, a quem se referem com carinho e

admiração. “É ela que gela a água para

beber nos dias quentes”, diz Ceceu.

A valorização e a confiança que

dona Ione demonstra aos chapas quan-

do avisa que vai sair de casa e pede que

cuidem do seu lar é o que eles queriam

que a sociedade tivesse por eles. “São

25 anos que ela olha por mim”, diz Ce-

ceu, apontando o dedo para a casa de

dona Ione.

Moradores da periferia de Santa

Cruz do Sul, Ceceu, Paulo, Paulo Rogério

e Erivaldo são alguns dos chapas desse

Brasil a fora, que querem apenas serem

reconhecidos pelo que fazem. Pessoas

que mostram superação diariamente, que

levam uma vida sofrida, trabalho incerto e

total falta de rotina. São pessoas comuns

que querem ser vistas como gente. Gente

que possui família e necessita comer, ves-

tir e morar. Assim é o dia-a-dia de chapa,

que costuma chegar em casa por volta

das 17 horas, depois de um longo dia de

trabalho. Na mochila carregam apetrechos

e o sonho de um dia trabalhar com carteira

assinada e salário fixo.

por Que No CeNTroEm geral, os chapas oferecem seus serviços na entrada das cidades. Isso porque os motoristas, além da mão-de-obra, muitas vezes estão atrás de um guia, que os leve direto para o seu destino, sem arriscar passar com os enormes caminhões por ruas estreitas ou com limite de peso. O ponto onde trabalham Ceceu, Paulo da Silva, Paulo Rogério e Erivaldo, no entanto, fica em uma área movimentada no Centro da cidade. A localização tem a ver com a época em que Santa Cruz era menor e tinha grandes empresas em sua periferia.

Paulo Rogério, Ceceu e Erivaldo exercem diariamente a paciência e a calma na profissão

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TEL

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“Ali é a ala dos negros”, diz uma

das moradoras mais antigas da localidade

de Gramado, no interior de Não-Me-Toque,

apontando para um espaço separado dentro

do pequeno e bem cuidado cemitério. A

explicação demonstra que não era apenas

em vida que negros e brancos tinham seus

espaços bem defi nidos em um passado

recente no vilarejo de pouco mais de 150

habitantes. Depois de mortos todos os

moradores iam para o único cemitério do

lugar, pertencente à comunidade católica.

Mas ao passar pelo portão, cortejo de negro

seguia para um lado e de branco para outro.

Isso há pouco mais de meio século.

A aposentada Maria*, 90 anos,

todos vividos no vilarejo, considera normal

a separação racial até na hora da morte.

Mais antiga moradora de Gramado, ela

conta que a separação começou há décadas

e envolve um caso de suicídio. “Uma guria

fi cou grávida e o rapaz não quis casar. Ela se

matou e o padre proibiu que fosse enterrada

junto com os brancos”, explica. ”Naquela

época os negros já viviam no canto deles,

não gostavam de se misturar”.

Equivale dizer que a pequena

localidade de Gramado era dividida por

uma linha imaginária, separando casas

de brancos e de negros. A mesma linha

que talvez tenha sido a responsável

pelo fato de todos os descendentes de

escravos terem abandonado o vilarejo e

rumado para a cidade, em busca de uma

vida melhor. Foram atrás de emprego, a

maioria deixando para trás seus mortos

SEPARADOS ATÉ NA MORTE

Um cemitério localizado no interior de Não-Me-Toque

lembra de um tempo em que brancos e negros eram

sepultados em lugares diferentes. Lá, a cor da pele

defi nia o lugar em que a pessoa seria enterradaFernanda Zieppe

FOTO: FERnAndA ZIEppE

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Para a socióloga Rosângela Wer-

lang, a separação dos brancos e dos negros

acontece pelo mesmo motivo pelo qual a

sociedade, de maneira geral, divide-se em

classes sociais. Em função da questão racial,

do preconceito, há a separação, que nada

mais é do que a expressão de uma socieda-

de dividida, preconceituosa e erguida em

cima de alguns pilares que nos ditam o

ideal humano como branco, masculino e

europeu. "Os negros não tinham direitos

adquiridos e, por isso, fi cavam separados:

eram escravos, pertenciam a outra raça".

Rosângela ressalta ainda que antigamente a

sociedade acreditava que o comportamento

dos suicidas não era adequado aos olhos

de Deus. Para os cristãos tirar a vida é

um privilégio divino e não humano, por

isso a distinção. "O suicídio sempre foi

considerado crime e os suicidas eram

então criminosos e deveriam fi car ao lado

dos ladrões, assassinos, etc, que eram

enterrados fora dos cemitérios".

A questão dos negros, para a

socióloga, é uma discussão central na an-

tropologia e que envolve a diferença. "Isso

foi feito também com os índios: foram

acusados de não ter alma, inteligência,

não ter nada que lhes conferisse o esta-

tuto de humanos”, diz. Por causa dessa

crença, foram explorados e escravizados,

assim como os negros. “Se não pertencem

ao reino humano posso fazer o que quiser

com eles. Este pensamento dominou

todo o período das descobertas imperiais,

legitimando um processo que foi, sem

dúvida, perverso".

*Os nomes são fi ctícios para

preservar a identidade das fontes.

QuesTÃo eCoNÔmiCaO professor de História da Universidade de Santa Cruz do Sul, Olgário Vogt, explica que não conhece nenhum caso de segregação por grupo étnico na região. Porém, a cerca de dez quilômetros de Venâncio Aires, em Linha Centro Brasil, existe um cemitério pertencente à comunidade católica e ao lado há um espaço chamado “cemitério dos negros”. A comunidade alega que a separação não é um fato de discriminação racial. Para enterrar seus mortos, os membros da comunidade precisavam ser associados à comunidade e pagar uma taxa anual. A população mais pobre acabava sendo enterrada ao lado.

e o preconceito que os cercava. Para os

moradores que fi caram, eram os próprios

negros que se excluíam, evitando participar

de encontros e festividades da comunidade

religiosa daquela época.

Maria* e a vizinha Sônia*, também

moradora do local desde pequena, explicam

que o conselho da comunidade, formado

apenas por brancos, não deixava negros de

fora das atividades. “Eu sempre ia visitá-los

em suas casas. Mas os negros nunca faziam

o mesmo. Não faziam questão”, conta

Maria, com seu forte sotaque alemão.

Márcia*, uma outra senhora da

comunidade, até hoje se diz intrigada com

a separação de raças, que segundo ela não

ocorreu de forma intencional. “Os negros

se sentiam excluídos, mas lembro que

sempre se reuniam entre eles", comenta.

Mesmo assim, ela avalia que a divisão de

negros e brancos no cemitério nunca terá

fi m. “Essa tradição vai continuar. Quem

escolheu isso não fomos nós, então não

podemos mudar”, sentenciou.

Dentro do cemitério as vizinhas Maria

e Sônia mostram o túmulo de negra Inácia

de Quadros, última pessoa a ser enterrada

naquele lado. Ela morreu de infarto, no ano

de 2003. Embora o cemitério seja dividido,

ambos os lados eram bem cuidados.

Iguais,mas nem tanto

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LOUCOS POR BOCHA

Em Arroio do Meio não é o futebol que atrai multidões. Lá,

o esporte disputado com pelotas de resina representa mais

do que um simples jogo e movimenta centenas de pessoas

A sede esportiva da sociedade

Guarani de Arroio Grande fica a cerca

de 10 quilômetros do Centro de Arroio

do Meio, no Vale do Taquari. Em uma

tarde quen-te de abril, o time de futebol

do Guarani disputava lá um dos jogos da

primeira fase do campeonato municipal

amador. E, apesar do brio característico

dos jogadores do interior e da aparente

superioridade do time da casa, não mais

do que 20 pessoas se interessavam pela

partida. Já no galpão de madeira que fica

ao lado do gramado, espaço muito menor

do que as bordas do campo, próximo ao

bar da sociedade, um grupo pelo menos

duas vezes maior se reunia. É lá que ficam

as canchas de bocha do Guarani.

Se a paixão nacional é o futebol,

a bocha é, indiscutivelmente, o esporte

predileto dos arroio-meienses. A cidade

de 18 mil habitantes tem pelo menos

50 quadras onde se pratica o esporte.

Só a principal categoria do campeonato

municipal envolve 26 clubes e quase 400

atletas de 12 a 86 anos. A função se inicia

na quarta-feira, quando a maioria das

equipes tira a noite para treinar (leia-se jogar

bocha, beber cerveja e comer churrasco).

Na sexta, transcorre o campeonato noturno

entre bares. No sábado, é comum ver

homens postados nas esquinas do Centro

aguardando a carona para um dos clubes

do interior. E pode ser qualquer deles,

porque todos têm canchas e participam do

circuito da bocha. Domingo é dia de lazer:

joga-se mais bocha.

A maioria dos atletas é amadora,

mas há os que ganham milhares de reais

para participar de um campeonato. Os

bochófilos que se destacam são divididos

em três categorias – ouro, prata e bronze.

E nenhuma equipe pode usar mais do que

um atleta áureo, a fim de que nenhum

grupo se sobressaia demais tecnicamente.

Além dos certames masculinos, jogam

times femininos, formados por casais,

Thiago Stürmer

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por jovens (politicamente correta, com

a cerveja substituída por refrigerante) e

idosos (no verão, porque no frio atletas

dessa categoria preferem fi car em casa).

Jorge e Dolores Rohr, ambos com

44 anos, são daqueles que não negam o

gosto dos arroio-meienses pela bocha.

No ano passado, eles saíram invictos do

campeonato municipal para casais, e

Dolores foi escolhida a melhor atleta do

torneio. “Desde pequena jogava bocha no

potreiro, com qualquer pedra arredondada

que encontrava”, diz ela, empolgada. “Na

sexta-feira chego a fi car com dor de barriga

de tanta expectativa para o jogo, e para ver

os amigos da bocha.”

O atual presidente da Liga Arroio-

meiense de Bocha (Labo) é o funcionário

público Sérgio Cardoso. Na sede da liga, num

daqueles pesados gaveteiros de repartição

pública, ele guarda as fi chas de todos os

jogadores do município “Esse ano a gente

quer fazer carteirinha de identifi cação, com

foto e tudo.” Cardoso assumiu no lugar de

Sidnei Eckert, que deixou a presidência da

Labo após sete anos consecutivos. Largou

o cargo porque não conseguiria conciliar

os compromissos da Labo com sua outra

atividade: ele foi eleito prefeito de Arroio

do Meio no ano passado.

Além do vínculo com a política,

a bocha tem importância econômica em

Arroio do Meio. Entre os donos de bares,

é consenso: quem não tiver uma cancha de

bocha não ganha dinheiro. “Se não fosse a

bocha, nenhuma sociedade sobreviveria”,

diz a presidente do clube Forquetense – e,

é claro, jogadora de bocha – Angela Kolzer.

A julgar pelos números, Angela tem razão.

Na fi nal do campeonato noturno do ano

passado, foram consumidas mais de cem

caixas de cerveja. Fora os pastéis de carne,

petisco ofi cial do esporte, vendidos às

centenas pelos clubes nos fi ns de semana.

UM ESPORTE SÓCIO - POLÍTICO - ECONÔMICO

A partida de bocha é disputada sempre entre duas pessoas ou duas equipes. Consiste no

lançamento das bolas de resina sintética (as bochas que dão nome ao esporte) a fi m de situá-

las o mais perto possível da bola pequena que serve de alvo, o bolim, ou remover as bolas dos

adversários. O esporte surgiu na Espanha, onde camponeses jogavam com bochas de pedra-sabão.

ENTENDA O ESPORTE

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André Backes está parado, sozinho,

num canto da quadra. Abaixa-se, junta a

bola de pedra e chacoalha as mãos, como

se estivesse tirando a má energia do corpo.

Concentrado, estica o braço à altura do

nariz, dá quatro passos para frente e

arremessa. A bola nem pica. Acerta em

cheio o alvo: a esfera do adversário que

estava próxima do balim e ameaçava os

pontos de sua equipe.

A cena, sucedida de gritos

e abraços, é o último movimento do

campeonato mundial de bocha de 2007.

No YouTube, onde pode ser assistida, há

o seguinte comentário de um internauta

sobre o vídeo: “Falar do André Backes é ser

redundante em elogios. Ele é simplesmen-

te o melhor”. Em fóruns e em comunida-

des sobre bocha no Orkut, o nome André

Backes é sempre o mais citado quando se

discute qual o melhor bochista do mundo

na atualidade.

Campeão e vice-campeão mun-

dial, campeão pan-americano, campeão

sul-americano e várias vezes campeão

nacional, aos 34 anos, André Backes é

um dos poucos profissionais do esporte

em atuação no Brasil. Entre campeonatos

e prêmios de reconhecimento por sua

ajuda no desenvolvimento do esporte, seu

currículo tem mais de duas páginas. André

vive em São Paulo, onde treina no clube

Pinheiros, mas a cidade onde nasceu e

onde ainda vive sua família não poderia ser

outra: Arroio do Meio.

“A bocha já foi estigmatizada

como atividade de bêbado, de velho, mas

agora não é mais assim. Quem analisar

os melhores times vai ver que não tem

nenhum jogador com mais de 40 anos”,

diz André. “Aqui em São Paulo se eu digo

que sou jogador de bocha as pessoas me

olham de maneira estranha, desconhecem.

Mas se o esporte tivesse mais divulgação

tenho certeza que poderia ser popular.

Tanto quanto outras modalidades, que

estão sempre na mídia.” Com certeza, a

queixa de André não existiria se ele ainda

morasse em Arroio do Meio.

O PELÉ DO BALIM

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Foi o sonho de levar uma vida

melhor que o tirou do campo e o trouxe

para a cidade. No fi m da década de 1930,

abandonou os serviços rurais e veio para

a cidade, adotado por Malvina Silveira

dos Passos. Joaquim Rodrigues da Silveira

nasceu em 1923, na localidade da Ser-

rinha do Pinheiro, a 40 km do centro de

Encruzilhada do Sul. O apelido veio de um

tio, que fazia menção a Nabubodonosor II,

o Rei da Babilônia de 604 AC a 562 AC. O

carisma sempre foi sua melhor ferramenta.

Ainda menino, vendia doces e pastéis pa-ra

a mãe adotiva. Mais tarde, passou a “propa-

gandista” dos fi lmes do cinema. Vendeu

deliciosos sonhos recheados. Também

prestou serviço de abastecimento de caixas

d'água e entregou convites para enterro.

Assim, se tornou conhecido

A palavra sonho tem outro signifi cado para seu Nabuco. O

sonho sempre esteve presente na vida dele: seja o de doce

de goiabada, o utópico das telas do cinema, utopias ou

quimeras impostas pela vida

MEMÓRIAS DE UM VENDEDOR

DE SONHOS

Urgel Souza

uRGE

L SOu

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Nabuco relembra os bons tempos em que vendia sonhos de goiabada

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na cidade. Talvez os mais novos não o

conheçam. Mas os encruzilhadenses com

mais de 20 anos ainda lembram do vendedor

de sonhos, dizendo “olha sonho, olha

sonho gostoso!”. O quitute era produzido

por Alzira Riegel Müller, sua irmã adotiva,

mas todos conheciam mesmo era como o

“sonho do seu Nabuco”. A massa macia; o

recheio com goiabada cremosa escorrendo

pelas bordas; o açúcar polvilhado. A

qualidade do produto era apenas um dos

fatores que fazia com que Nabuco voltasse

pra casa com a cesta vazia. Outro fator

decisivo nas vendas era a empatia junto

aos clientes. A alegria era a mesma, fosse

o sonho vendido ou diante de um “Não,

muito obrigado!”. Seu Nabuco lembra que

vendia doces na festa do Centenário da

cidade, em 1949. “O seu Carlos Alberto

Riegel (marido de Dona Malvina) me deu

um terno branco e eu fui pra praça vender

doces. Lá, estava o governador (da época),

seu Valter Jobim”, relembra.

No início da década de 1960, era

o auge do cinema encruzilhadense. Seu

Nabuco era o encarregado da divulga-

ção dos filmes através de um megafone.

Dirigia-se às esquinas mais movimenta-

das, empunhava seu aparelho e disparava:

“Aqui quem vos fala é o serviço de

propaganda. Hoje na tela Cine Teatro

Vitória, mais um filme do Mazzaropi. Não

percam. Grande espetáculo na tela Cine

Teatro Vitória! Grandioso filme. A partir

das 18h.”. Eram raras as vezes em que o

sonho podia ser realizado diante da tela

grande. Mesmo sem ser alfabetizado

ele anunciava filmes em português e

em outras línguas. Além do anúncio dos

filmes, também aproveitava para dar avisos

de utilidade pública. Na década de 1970,

o Cine Teatro Vitória foi perdendo força,

se extinguiu e, junto com ele, o sonho dos

filmes que Nabuco tanto gostava.

Certo dia, seu Nabuco conheceu

Teresinha Gonçalves, a “moça que tinha

o samba no corpo”. Ela era do Circo Sul-

Americano, que visitava a cidade. Foi mais

uma paixão não correspondida, mas seu

Nabuco bem que tentou! Quando o circo

teve de deixar a cidade, ele não perdeu a

esperança de ficar com a moça do samba.

Deu asas a mais um sonho e resolveu ir até

Venâncio Aires junto com o circo. Por lá, ele

ajudou a carregar e remontar a estrutura do

espetáculo. Mas a moça do samba... Bom,

daquela moça ficou só o samba:

Na década de 80, seu Nabuco

entregava convites para enterro. Uma folha

de papel em preto e branco, de 20 cm x

15 cm, ilustrada na parte superior com uma

cruz e uma pena. Logo abaixo, o nome do

falecido e o convite propriamente dito.

Para alguns, Nabuco era relacionado com a

morte. Cada vez que se aproximava, trazia

um anúncio do fim da vida e podia estar

em pesadelos infantis. Mas o semblante

calmo e sereno provava que aquilo não

passava de um convite para enterro. Cada

folha era entregue pessoalmente ou nos

domicílios. “Ele não deixava nenhum

nas ruas. Às vezes, a pessoa já havia sido

enterrada e o Nabuco continuava en-

tregando os convites”, diz Gladis Riegel

Silveira, comadre e irmã adotiva. O avanço

tecnológico fez com que seu Nabuco

também se reciclasse. “É! Depois veio a

rádio e o serviço foi terminando, né”.

Joaquim “Nabuco” Silveira vive

na mesma casa da juventude, localizada

na esquina da rua Ramiro Barcelos com a

Conde de Porto Alegre. Foi lá onde forjou

a maioria dos sonhos. Um imóvel com mais

de 110 anos. A maioria dos móveis, piso e

aberturas ainda são originais. Assim como

ele, que mantém a simpatia do guri que

veio da Serrinha do Pinheiro. Aposentado,

não teve filhos - uma caxumba recolhida

interrompeu seu sonho de ser pai.

Questionado sobre sua popularidade,

ele foi categórico: “Eu não sei ler nem

escrever, mas tenho educação de berço.

Só isso”. Seu Nabuco não só vendeu

doces, mas adoçou a vida dos moradores

e trabalhadores do centro da cidade com

lições de humildade; não somente encheu

caixas d’água, mas também abasteceu as

casas de alegria e simpatia; não apenas

vendeu sonhos, mas distribuiu um pouco

da sua sina de sonhador. Aos 85 anos e

com a lucidez intacta, continua mostrando

que a morte pode ser apenas um convite e

provou que o filme que melhor anunciou

foi o da sua própria vida.

“Eu, entrando nesse samba,

vou fazer muito reboliço

O meu corpo tem talher,

os meus olhos tem feitiço

Não faz mal que tu apanhe,

para não fazer mais isso

Toma o amor dos outros

e te desculpa com feitiço”

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Ela gosta de colo, é dócil e está sempre no

meio dos seus donos. Meg é assim.

A preferida dos Breunig.

Vanessa Kannenberg

Meg está sentada no tapete que

recepciona quem chega à casa de Ingo

Breunig. Estranhando o barulho do carro

que ela nunca viu e a pessoa desconhecida

que sai dele, Meg parece ficar incomodada.

Levanta-se. Vai até o dono e fica à espreita,

espremendo alguns ruídos de desagrado

com a visita. Essa cena não teria nada de

estranho se Meg fosse um cachorro. Mas

ela não é. Meg é um cabrito.

Em meados de fevereiro deste ano

uma das cabras da raça Boer da fazenda

dos Breunig, que fica em Boa Vista, distrito

de Santa Cruz do Sul, deu à luz trigêmeos.

Entre os recém-nascidos, dois cabritos

machos e manchados de preto, e uma

fêmea, a única com manchas marrons. A

menor de todos. Foi pelo seu tamanho e

pela aparente fragilidade que ela ganhou

um mimo especial desde o minuto que veio

ao mundo. Mas ao contrário do tamanho,

a goela da cabrita não era pequena. Berrar

era com ela mesma. Seu nome veio em

virtude disso. Mééég, sugerindo a sua

especialidade: o bééé.

Com o passar dos dias a necessidade

de cuidados especiais foi se extinguindo.

Mesmo assim, a cabrita continuou

recebendo um carinho diferenciado. Mamar

na mamadeira, dormir no sofá da casa, ser

pega no colo, acariciada, amassada e até

esgoelada, eram verbos feitos somente

com a Meg. Mesmo que esgoelar, no seu

sentido denotativo, não parece um verbo

carinhoso, para Milena ele é.

A neta do seu Ingo, com seus três

anos de idade, vai visitá-lo todos os finais

de semana. Na propriedade do avô sua

brincadeira preferida é em meio aos cabritos.

E em especial com a Meg. O carinho entre

as duas é mútuo. Basta Milena chamar pelo

seu nome que a cabrita vem saltitante ao

encontro da menina. É por isso que Meg

deixa ser esgoelada, amassada, puxada

pelo rabo, e ainda berra estarrecida.

MEu BICHO dE EsTiMaÇÃo nÃo É uM CACHORRO

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Page 37: Exceção 04

No auge dos seus dois meses, Meg

é o animal de estimação preferido de toda a

família Breunig. E olha que não é fácil atingir

tal colocação, a concorrência é grande. Na

fazenda de Meg moram mais outros 80

cabritos, 30 galinhas, 4 marrecos, 5 galinhas

d’angola, 6 patos, 10 garnizés, 3 ovelhas, 7

gansos, 10 vacas e bois, 2 gatos, 3 cachorros

e 4 perus. Mas o “xodó” da casa é a cabrita

branca e marrom.

O gosto inusitado por cabrito como

bicho de estimação não é recente para os

Breunig. Desde a década de 80, quando

os fi lhos Claudete e Cleusa eram

pequenos, os pais Ingo e Amália já

criavam caprinos. Na época, Tedy

e Tody foram os preferidos e

recebiam a atenção que hoje

a Meg recebe. Claudete

lembra com carinho daquela

época. “Eles eram o máximo.

Companheiros para todas as horas. Muitas

das lembranças da minha infância estão ligadas

ao Tedy e ao Tody”.

a preferidaNo auge dos seus dois meses, Meg

é o animal de estimação preferido de toda a

família Breunig. E olha que não é fácil atingir

tal colocação, a concorrência é grande. Na

fazenda de Meg moram mais outros 80

cabritos, 30 galinhas, 4 marrecos, 5 galinhas

d’angola, 6 patos, 10 garnizés, 3 ovelhas, 7

gansos, 10 vacas e bois, 2 gatos, 3 cachorros

e 4 perus. Mas o “xodó” da casa é a cabrita

branca e marrom.

O gosto inusitado por cabrito como

bicho de estimação não é recente para os

Breunig. Desde a década de 80, quando

os fi lhos Claudete e Cleusa eram

pequenos, os pais Ingo e Amália já

criavam caprinos. Na época, Tedy

e Tody foram os preferidos e

recebiam a atenção que hoje

época. “Eles eram o máximo.

Companheiros para todas as horas. Muitas

das lembranças da minha infância estão ligadas

ao Tedy e ao Tody”.

a preferida

Se desde a infância dos fi lhos Ingo pegou alguns caprinos

para tê-los apenas como animais de estimação, há cerca de

um ano ele decidiu tirar lucro da criação. O primeiro motivo da

mudança foi o problema de saúde enfrentado pelo fazendeiro

que o forçou a desistir do cultivo de fumo. Assim, ele foi atrás

de uma alternativa de trabalho menos desgastante e viu nos

cabritos um bom negócio.

A partir disso Ingo passou a criar cabritos exclusivamente

para abate e venda. E jura “de pés juntos” que não abre exceção.

Mas ele abre sim. Meg nasceu quando sua espécie já era destinada

ao comércio, mas teve seu destino desviado. Até porque Milena

jamais perdoaria o avô se a Meg virasse churrasco de domingo.

Afi nal, quem ela iria esgoelar?

o ComÉrCio

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Para Milena e sua cabrita Meg, esgoelar também é uma demonstração de carinho

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1. A idéia de ter um cabrito como animal de estimação pode não

ter passado na sua cabeça até hoje. Mas há uma série de razões para

você ter um como companheiro. Por exemplo, ele é um bicho super

fofo e querido.

2. Como um cachorro, o cabrito responde aos chamados do

dono. Comparado a uma tartaruga ou a uma iguana, isso é uma

vantagem e tanto.

3. O cabrito é um animal extremamente dócil,

não morde, não é agressivo. E interage com

adultos e crianças.

4. Cabritos comem

alimentos disponíveis na

natureza e ração. Se você

conhece o mito de que caprinos

comem tudo que vêem pela

frente, isso pode ser facilmente

revertido. Basta dar a eles um sal

mineral específico.

5. Cabritos não necessitam

de muito espaço. O lugar que

ele ocupa em relação ao de uma

vaca, por exemplo, é extremamente

menor. Onde cabe uma vaca, cabem

cerca de dez cabritos.

6. Se você tem um poodle sabe

o imenso trabalho que é podá-lo e dar

banho nele. Com um cabrito não há

essa preocupação.

BODE: é o pai do cabrito. Ou seja, é o macho

adulto dos caprinos. Ele já possui barbicha e chifres.

CABRA: é a mãe do cabrito, a fêmea do

bode.

CABRITO: é o filho do bode e da cabra. Ele

vai desenvolvendo com o tempo a barbicha e os

chifres.

A FaMÍLia DO

CABRITO

POR QUE TER UM CABRITO DE

ESTIMAÇÃO

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VERTE DO CHÃOA MÚSICA QUE

Quem disse que é preciso ouvir notas musicais para se poder dançar

não conhece Kaká, uma menina que aprendeu a curtir a vibração

do som mesmo sendo deficiente auditiva

FERn

AndA

ZIEp

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Imagine-se vivendo em um silêncio

quase absoluto, onde apenas um “tum”

entra no seu ouvido e nada mais. Difícil

imaginar a vida sem trilha sonora? Isso

porque você foi contemplado com a

audição, que lhe permitiu conhecer os

sons, a voz das pessoas e as músicas que

estão por toda parte.

Há 26 anos, Karoline Kist, ou

Kaka, como é conhecida pelos amigos, não

ouve vozes, músicas, nem sons. Nasceu

com algo entre 5% e 15% de audição,

o que lhe permite apenas sentir o “tum”

nos seus ouvidos. O “tum”, na verdade,

é a vibração causada no tímpano pelo

movimento das ondas sonoras. Mas isso

não é obstáculo para ela, principalmente

quando o assunto é balada.

Dia 1º de abril, quarta-feira,

00h30min. Karoline Kist ingressa para uma

festa em Santa Cruz. A Quartaneja atrai

diferentes públicos pela variedade musical,

do eletrônico ao sertanejo. Diferentemente

das demais pessoas, Karoline vai para a festa

não para ouvir a música, e sim para passar

momentos com seus amigos, conhecer

gente nova e tomar alguma bebidinha.

Na verdade, ela não ouve a

música, mas sente a vibração da casa. Seus

pés sentem o tremor do chão e suas mãos as

das paredes quando tocadas. Ela descreve

a vibração como se fosse um coração

batendo. “Sinto como se tivesse um motor

dentro do meu corpo”, compara.

A noite de Kaká se inicia com um

pedido à bartender: uma lata de cerveja. A

moça do outro lado do balcão compreende

de primeira o pedido. “Muitas vezes,

uma pessoa que não me conhece não

consegue me entender, mas depois que

estiver mantendo contato, aí se acostuma

mesmo. Muitas vezes eu preciso de alguém

interpretando”, afirma ela.

Depois de matar a sede, chegou a

hora de dançar. Camarote cheio e Karoline

atenta aos movimentos alheios. Mas como

ela dança se não ouve a música? “Eu

observo as pessoas. Vejo a pessoa dançando

e começo a dançar sem precisar ver depois,

porque eu já sabia o ritmo”.

Káka conhece os tipos musicais

pela forma como as pessoas dançam, mas

não as distingue pela vibração. Ela sabe que

a música representa muito para as pessoas

porque conhece as letras e sabe que falam

de felicidade, tristeza, amor, violência.

Em certo momento da festa, o

ritmo sertanejo começa a tocar. Casais

começam a dançar colados e Karoline

observa com atenção. Depois, pergunta

se estava tocando sertanejo. “Eu queria

dançar com uma pessoa, mas não tem

ninguém, então danço sozinha”, afirma

ela. Para uma festa ser boa, ela não precisa

de música, só quer dançar, ter a presença

dos amigos, um pouco de bebida e muitas

risadas. “É o que vale!”.

Quando questionada sobre a

aproximação dos homens, ela mesma já

avisa que não escuta. “Quando um cara

‘chega’ em mim, eu alerto, e no começo

ele parece que não entende, porque ele

acha que eu não sou surda”. Káka, assim

como a maioria dos deficientes auditivos,

desenvolveu a habilidade de leitura labial.

Ela compreende tudo desde que seja falado

mais devagar e olhando para ela. “Teve um

cara que ‘chegou’ em mim, sussurrando no

meu ouvido e eu avisei que era surda. Ele

ficou apavorado e foi embora”. O fato de

não ouvir não a intimida. Ela se sente feliz

mesmo que, por pouquíssimas vezes, tenha

sofrido certo preconceito.

Entre uma conversa e outra,

encontra amigos e dança. Às 2h30min da

madrugada, a festa dela chega ao fim.

Quem não conhece, não imagina que ela

dançou a noite toda ao som do “tum”.

Patrícia Azevedo

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Malaquitas são pedras de coloração

verde-negra compostas por carbonato de

cobre. Para os curandeiros de muitas tri-

bos africanas, servem como instrumentos

de cura de doenças. Já para o belga Marcel

Arthur Demeulemeester, que expõe uma

coleção delas na estante da sala de jantar,

são objetos de recordação de um dos

períodos mais marcantes de sua vida.

Com 83 anos, aposentado e

instalado confortavelmente em um ponto

distante do Centro de Santa Cruz do Sul,

Marcel goza de tranqüilidade. A rotina que

assiste de longe na cidade é muito diferente

da que conheceu há mais de quatro

décadas, quando viveu e trabalhou cercado

por miséria e violentas disputas tribais.

Aos 27 anos, deixou a Bélgica e

aterrissou em Elizabethville. Com carreira

consolidada no ramo de fumageiras em

Antuérpia, sua missão era dirigir uma

fi lial na capital do Katanga, província no

sul do Congo. Colônia da Bélgica desde

o começo do século, o país que recebeu

Marcel e a esposa Rita em 1953, do qual

testemunhariam a conturbada história

nas décadas seguintes, encontrava-se em

pleno desenvolvimento.

Os estrangeiros viveriam ali

uma rotina de trabalho intenso, mas

também de muito conforto e regalias.

Ainda nos anos 50, nasceram os fi lhos

Martine e Franz, pequenos congoleses-

belgas incapazes pela idade de entender

a razão pela qual em 1959 o pai os levou

de carro até Salisbury, capital da Rodésia

MISÉRIA nÃo sE

EsquECEMarcel Demeulemeester, um aposentado belga residente

em Santa Cruz do Sul, vê parte da história da sua vida se

cruzar com as conturbações políticas do Congo

42MISÉRIAnÃo sE

EsquECEMarcel Demeulemeester, um aposentado belga residente

em Santa Cruz do Sul, vê parte da história da sua vida se

cruzar com as conturbações políticas do Congo

Pedro Garcia

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43(hoje Zimbábue) e retornou para o Congo

deixando-os apenas com a mãe.

A decisão de afastar a família não

foi mais do que uma medida de proteção.

Meses antes, uma revolta na capital

Kinshasa deu início às discussões sobre a

possibilidade de conceder a independência

ao país e também a um período de tensão

que se estenderia por muito tempo. Sob

pressão dos Estados Unidos e do povo

congolês, a independência foi conquistada

em junho do ano seguinte por meio de um

acordo fi rmado em Bruxelas. O que é um

orgulho estampado na linha do tempo de

qualquer nação foi para o Congo o começo

de uma série de derrotas.

Passado menos de um mês, o

Katanga também proclamou indepen-

dência. A instabilidade que tomou conta

de todo o território fez com que grande

parte dos europeus voltasse para casa.

Entre os que permaneceram estava Marcel,

fi el ao seu compromisso com a fumageira.

A esposa e os fi lhos continuavam a mil

quilômetros de distância. Ele só os encon-

trava quando as coisas se acalmavam

e então podia trazê-los de volta. Mas

nunca por muito tempo. “Era assim:

quando estava calmo, voltavam. Quando

recomeçava a bagunça, iam embora.”

Mesmo sem se envolver dire-

tamente nos confl itos, Marcel viu o ner-

vosismo invadir o seu dia-a-dia. Assim como

assistiu às tropas da ONU invadirem sua casa

em certa ocasião e balearem um carro onde

estava em outra. As Nações Unidas foram

ao país para tentar acalmar a situação e

pressionar o Katanga a se reintegrar, in-

tenções que geraram momentos nem

sempre pacífi cos. O Katanga voltou a ser

província do Congo em 1963. Nesse mesmo

ano, Marcel deixou o país.

Ele e Rita aterrissaram no país

novamente em 1976, mas o Congo que

encontraram não parecia o mesmo. No

país que já havia provado o seu poten-

cial de crescimento e inspirava esperan-

ças de um futuro promissor, o que viam

ao retornar eram apenas sinais de uma

triste decadência.

Durante os 13 anos em que esteve

longe, o casal passou pelo Rio de Janeiro

e depois voltou à Antuérpia. Enquanto

isso, o Congo assistiu ao assassinato de

seu primeiro-ministro e à ascensão de

um ditador que logo se tornaria um dos

mais famosos do planeta: Mobutu Sese

Seko Koko Ngbendu wa za Banga. As

conseqüências de sua política chocaram os

estrangeiros que regressavam. As estradas

do país estavam destruídas e a população,

miserável. “Na época da colônia, se

podia viajar por todo o país sem nenhum

problema. Quando voltamos, não dava

mais”, conta Marcel.

Ele havia sido chamado para

tentar recuperar a ordem da fumageira,

vitimada pela política ditatorial instalada

no país. Mobutu havia criado uma nova

moeda, que se desvalorizava com a

infl ação galopante. Devido às condições

das estradas, os produtos passaram

a ser transportados de avião, o que

O REGRESSO A UM NOVO LUGAR

encareceu todo o processo. Mas o maior

obstáculo enfrentado pela empresa era o

cumprimento de um decreto que forçou a

entrega da direção a um nativo.

Embora o despreparo incomodas-

se, o principal problema estava em seu

sangue tribal, que corre nas veias dos

africanos com a mesma intensidade que

assola suas terras. O diretor congolês não

apenas contratou dezenas de funcionários

incapacitados que pertenciam à sua

tribo como chegou a desviar produtos

da empresa para ela. O efeito do projeto

de africanização fora tão devastador que

Mobutu voltou atrás em sua decisão e

Marcel pôde retornar ao comando.

Era o início de mais uma década

de vida no Congo, período permanente

em sua memória pelo desconforto de estar

em meio a um povo afogado na miséria.

É verdade que as condições do casal

continuavam agradáveis. Dispunham de

guardas, cozinheiros e motoristas em uma

casa grande, mas que não os isolava da

realidade congolesa.

A falta de instrução e as

difi culdades fi nanceiras eram percebidas em

situações corriqueiras – pessoas obrigadas

a comprar cigarros por unidade e não em

maços - ou em episódios dos quais Marcel

não esquece. Entre esses, a ocasião em que

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o avião de uma linha aérea local pousou em

Kinshasa e um problema técnico o impedia

de retornar ao Katanga. Os dias passavam

e a empresa aérea seguia sem condições de

corrigir a falha. O avião só pôde decolar após

um técnico da fumageira ser chamado.

O retrato do país era dramático

mas nem tão difícil de se explicar. Agravado

pela corrupção, o grande problema sempre

esteve na ausência de investimento em

necessidades básicas como educação e

saúde. Se a primeira não afetou Marcel

diretamente, a segunda deixou marcas

que carrega até hoje em seu braço direito.

Em 82, teve gangrena, provavelmente em

função de larvas deixadas por um inseto na

manga de sua camisa.

Marcel só deixou definitivamente

o Congo em 1986, quando voltou para

a Antuérpia. Ainda regressaria algumas

vezes a trabalho até 1990, ano em que

lá esteve pela última vez. Não chegou a

ver a deposição do ditador, a ascensão

e queda de outro, nem as tentativas

de redemocratização com as eleições de

2006 – as primeiras em 40 anos. Mas as

duas décadas ainda tão acessíveis em sua

memória, assim como as marcas no braço e

as malaquitas na estante, lhe dão a certeza

de que viu o bastante.

A exemplo do pai, Franz, o filho mais novo, seguiu carreira

no setor de fumo. Não se recorda do Congo colonial em que

nasceu, apenas do país miserável para onde ia nas férias da

faculdade. Guarda na lembrança o choque de encontrar um

povo em decadência. Ainda sente pena dos guardas que

jogavam damas com tampinhas de garrafa, do cozinheiro que

perdeu um pedaço da orelha em uma briga por cabeças de

camarão e do faxineiro que roubava as lâmpadas da casa para

vender no mercado negro.

ISSO É ÁFRICA

Marcel viu tropas invadirem sua casa e acompanhou as mudanças ocorridas no Congo ao longo das décadas

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QUATRILHOA história de um amor proibido

X

Traição e sofrimento movem esse romance que

se transformou no segundo filme brasileiro

indicado ao Oscar, em 1995

Se na atualidade a traição pode ser considerada um tempero

amargo em relações amorosas, no passado ela era motivo suficiente

para condenar alguém à morte social. Fugir, como foi o caso de

Giuseppe Dal Ri e Carolina Tessaro, era a única maneira de se viver

um amor proibido pelos tabus morais vigentes à época. Afinal,

quem foi esse casal que enfrentou as críticas e abandonou uma vida

já forjada para se entregar a uma paixão na virada do século?

Emanuelle Dal Ri

Carolina e Dal Ri após a fuga

Maria e Trentin, os que ficaramFO

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O

47A história é longa. Começou

quando Nicodemo Domenico Trentin

chegou ao país com sua mãe viúva e os

irmãos, procedentes de Torrebelvicino,

Vicenza, Itália. Trouxe no corpo a marca de

“squiotti” (tecelão), que esteve presente

em toda a sua vida no apelido que recebeu:

Mênego Storto. Se estabeleceram no lote 15

do Travessão Cristal, localidade da terceira

légua da colônia Caxias. Ali conheceu

Carolina Tessaro, também italiana, de Valli

dei Signori, Vicenza. Em 23 de dezembro

de 1894 os dois se casaram. Ele com 24

anos e ela com 19 anos. Tempos depois,

Nicodemo adquiriu terras na Tapera, hoje

colônia no lado leste de Gramado, em

sociedade com Antônio Tozzatto.

A localidade foi desbravada com

muita dificuldade, pois era de difícil acesso.

Ele era um homem acostumado com o

trabalho árduo, mas Carolina não tinha a

mesma determinação que o isolamento

exigia. Já no início da vida do casal, este

era um grande problema a ser resolvido.

Nicodemo confiava que o tempo faria

a parte dele e que tudo daria certo. E

a prosperidade passou a chegar muito

rapidamente. Afinal, por aquela estrada

passavam mascates, tropeiros e viajantes.

Todos os dias era possível observar as

tropas de muares com grande número de

produtos na descida da Serra. Os artigos

eram vendidos no litoral e nas cidades mais

baixas. Nicodemo ficou conhecido e muito

bem quisto por todos. Sua casa comercial

era parada obrigatória.

Giuseppe Dal Ri, apelidado de

Beppe Crecini, viera de Tirol, Áustria. Era

morador do lote 14 da primeira légua da

colônia de Caxias. Chegou ao Brasil em

6 de outubro de 1877. Os pais de Maria

Baretta, Francisco Baretta e Emília Radaelli,

chegaram ao Brasil em 30 de setembro de

1875 e se estabeleceram no lote 54 da

primeira légua do mesmo local.

Em algum momento indeterminado,

Nicodemo e Giuseppe se conheceram. Em

seguida, estavam associados nos negócios.

O primeiro já era comerciante, mas queria

diversificar e produzir sua própria farinha.

Giuseppe entendia de moinhos, pois era

especialista em moagem. Além de sócios,

ficaram amigos. Como o tempo, Giuseppe

e Maria também foram morar na Tapera.

Passaram a ocupar a mesma casa de

Nicodemo e Carolina, onde dividiam os

mesmos problemas e sonhos. A convivência

era relativamente normal: os homens

tinham a lida do moinho, do armazém e da

lavoura. As mulheres cuidavam da casa, dos

filhos e auxiliavam no trabalho da roça.

Entre 1901 e 1906, Giuseppe

e Carolina se envolveram em um rela-

cionamento proibido. Viveram anos de

traição e de mentiras. A pressão era forte

e então abandonaram tudo. Buscaram um

novo caminho, bem longe da convivência

ao lado dos companheiros traídos. Com-

partilharam juntos a dura decisão que

tomaram. Fugiram em 27 de abril de 1907.

Deixaram os filhos, a casa, os cônjuges e

passaram a ser alvo da sociedade, que não

perdoava a traição.

Seis meses após o sumiço de

Giuseppe e Carolina, Nicodemo e Maria,

o casal abandonado, resolveram assumir

uma relação conjugal. É claro que eles

também passaram a enfrentar muitas

adversidades, pois os princípios morais na

época eram muito rigorosos neste sentido.

Eles não poderiam se unir legalmente e

uma cerimônia sem a bênção de Deus (e

do padre) era sacrilégio. Mas eles foram

fortes e enfrentaram as adversidades,

especialmente porque os filhos precisavam

de uma família organizada.

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A história ficou esquecida por

um grande período. Veio à tona somente

quando uma pesquisadora da cidade de

Gramado, a historiadora Marília Daros,

traçou uma linha genealógica que chegou

até o químico industrial Mário Augusto

Lazzari, cuja avó tinha o sobrenome de

Giuseppe Dal Ri. A pesquisadora estava

se aprofundando no assunto tratado em

um filme que estava para ser lançado, em

1995: “O Quatrilho”, baseado no romance

do escritor José Clemente Pozzenato.

A historiadora e o químico, juntos,

começaram uma investigação exaustiva.

Ela com a parte que a coube, em Gramado,

junto aos Trentins (de Nicodemo Trentin

e Maria Baretta, o casal traído), e ele no

Centro-Serra, com a busca de Giuseppe Dal

Ri e Carolina Tessaro.

Entre os anos de 1995 e 1997,

Marília pesquisou mais de 50 pessoas

da família, leu muitos livros e consultou

diversas instituições, tais como cúrias,

cartórios, prefeituras e cemitérios. “Usei

muitos veículos de informação, mas não

tive todo o aporte necessário. Foi como

uma febre, pois as gravações do filme já

estavam ocorrendo no Estado”, disse.

“Giuseppe fugiu, também, em virtude de

sua posição política, bastante perseguida

no período”, complementou.

Mário buscou amigos e familiares,

conseguiu encontrar a certidão de óbito

de José Dal Ri (Giuseppe Dal Ri) na cidade

de Pinhal Grande. No documento consta

que ele morreu no 2º Distrito de Jacuí, em

Ibarama. Era casado com Maria Baretta e

deixou dois filhos. “Naquela época eles

ocultavam até mesmo o próprio nome”,

revelou Lazzari. O italiano estava com 56

anos quando morreu.

Após muito tempo de pesquisa,

finalmente chegaram ao elo que liga

Sobradinho à história do livro e filme “O

Quatrilho”. Mário Augusto encontrou, em

Linha Brasileira, interior do município, uma

sobrinha de Maria Baretta, personagem

que no filme se chama Pierina e é vivida

por Glória Pires. Rosa Baretta Cembrani,

já falecida, contou brevemente alguns

detalhes sobre a vida de Giuseppe Dal Ri,

na película chamado de Mássimo e vivido

pelo ator Bruno Campos.

Ignorados pela família, sobretudo

pelo fato de ela ser considerada uma

“putana” (esposa infiel) e também por ser

negligente com os trabalhos domésticos,

a pesQuisa

Capela da Linha Tapera em terras

de Nicodemo

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eles viveram isolados de tudo e de todos.

Cansada e arrependida pela fuga, Carolina

abadonou Giuseppe, um homem que se

considerava moralista ao extremo. “Tanto

que chegou a ferir gravemente um peão

que ousou se meter com uma mulher. Ele

amarrou o agricultor ao cavalo e saiu com

ele pelas ruas. É como pregar moral de

cuecas”, relatou Mário.

Mesmo com várias fontes e vasto

material para estudo, o químico admite

que há diversos pontos de interrogação

nessa história, como o paradeiro de

Carolina Tessaro e se Guiseppe e ela ti-

veram filhos. “Sempre vivemos um tabu

na família. Esse assunto era e é muito

evitado. Poucos falam sobre os fugitivos.

Parece que querem esquecer esse fato

como se ele não tivesse ocorrido.”

Ambientado da região da Serra Gaúcha, o livro “O Quatrilho” é uma história sobre

a troca de casais que se desenvolveu entre 1910 e 1930. O escritor José Clemente

Pozzenato romanceou a história, atribuindo-lhe características típicas da literatura

sul-riograndense, como o próprio vocabulário. O livro conta a saga de dois casais de

imigrantes: Teresa e Ângelo, Pierina e Mássimo. Na luta pela sobrevivência, surge o que

ninguém esperava: o amor entre Mássimo (casado com Teresa) e Pierina (casada com

Ângelo). Apaixonados os dois fogem e partem para um novo destino. Pozzenato teve

como informante, para a confecção da obra, o neto de Nicodemo, Ari Trentin.

O livro foi tão bem aceito que foi para o cinema. “O Quatrilho” foi o segundo longa-

metragem indicado ao Oscar como Melhor Filme Estrangeiro, em 1995. Com direção de

Fábio Barreto, as gravações foram feitas em diversas cidades do estado. Conhecido em

todo o Brasil, “O Quatrilho” é considerado um marco no cinema nacional. Ele ganhou,

inclusive, vários prêmios internacionais.

Como curiosidade, Quatrilho é o nome de um jogo de cartas em que os participantes

precisam trair seus parceiros para serem vencedores.

A família progredindo na Tapera perto do moinho

TroCa virou livro e filme

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Meu jeito único de aprender a andar

de bicicleta

Às vezes eu tenho insônia. E como todas as pessoas que sofrem desse mal, sempre tento arrumar um jeito de chamar o sono. Em uma dessas noi-tes em que meus olhos teimavam em permanecer abertos, lembrei de um momento mágico da minha infância: a maneira como aprendi a andar de bicicleta. Não funcionou como sonífe-ro, mas consegui me divertir sozinha na calada da noite. É incrível como, com o passar dos anos, a gente esquece das coisas. Eu já não me lembrava mais do perrengue que eu passei até conseguir dar as primei-ras pedaladas. E é essa historia que eu vou contar aqui.

Eu ganhei minha primeira bicicleta quando completei seis anos de idade. Uma Ceci rosa, daquelas de tamanho mediano e com cestinha. As fotos que registraram o momento mostram o quanto fiquei maravilhada com o novo brinquedo. Sem me dar conta de que logo ele me faria sofrer. Tá, sofrimento talvez seja um exagero, mas passei por inúmeras dificuldades.

Para início de conversa, eu não alcan-çava o banco da bicicleta. A quele mode-lo era muito grande para uma criança do tamanho que eu tinha na época. Quem sabe, quando eu completasse sete anos as coisas não se tornariam mais fáceis?! Sim, se tornariam. Mas eu não esperaria tanto tempo. Resolvi tentar. E foram dias tentando, até achar o jeito certo.

A primeira dificuldade foi vencida. Depois de conseguir subir na bicicleta era só sair andando... Não, não era. Eu não sabia andar na minha Ceci. Mas um dia eu iria conseguir. E aí é que está a exceção do meu jeito de aprender a andar de bicicleta. Eu não queria cair, a bicicleta era grande, então, o tombo também seria. Eu admito, tinha medo.

Para aprender a pedalar, eu usei de um método talvez nunca visto antes. Encostava minha Ceci em uma parede ou muro e pedalava para trás. Por quan-to tempo eu fiz isso, não recordo. Mas um dia eu me senti segura o suficiente para subir na bicicleta sem o apoio do muro e andar para frente. Não cai e nunca mais esqueci como se faz.

Gabriela Brands

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Mais que um homem, um lord

A barba branca mal aparada - quiçá nunca aparada - denuncia a idade avançada. O cabelo supõe-se que tenha a mesma cor, mas é impossível saber, pois o boné enterrado até o meio da testa não permite ver sequer se ainda restam fios no topo de sua cabeça. O olhar, ao contrário de muitos homens da sua idade, não é cansado. Pelo contrário, carrega ainda o brilho da juventude, de alguém que ainda procura algo. Um sonho adiado, talvez. Ou simplesmente a próxima refeição.

Todos os dias ele caminha, a passos lentos e mancos, os vários quilômetros que o separam do Centro de Venâncio Aires. A distância ao certo é difícil dizer. Quatro, talvez cinco quilômetros. Também é improvável descobrir onde ele mora, se em um barraco, com paredes de compensado, ou em uma casa bonita, com jardim florido. Mas venha de onde vier, vem sempre com seu amigo malhado ao lado.

O cão poderia facilmente vencer os quilômetros até o Centro muito mais rápido, mas ele calmamente acompanha o dono, parando de tem-pos em tempos para bisbilhotar uma lixeira. Dá pra jurar que às vezes, de tão afeiçoados, o cão manca como o dono. Ele nem se preocupa em olhar para baixo para ver se o amigo continua ali.

Sabe que o animal não o abandonaria. Seu olhar, ao invés de mirar o chão, fita o horizonte. Sempre.

Com a botina gasta de tanto uso, amarrada por cadarços desiguais já rasgados, o senhor mantém a face erguida. Seja carregando o que catou nas lixeiras ou a comida recebida na lancheria, ele não deixa de olhar para a frente. Com este rosto erguido e a espinha ereta, quase todos os dias ele se senta na escada em frente ao prédio. No inverno, o casaco de lã gasto contrasta com a calça marrom que teima em acabar antes da canela.

A cena pouco mudou ao longo dos meses: depois de longos minutos de espera, sentado em postura invejável, com as pernas cruzadas e uma altivez de lord, a garçonete trazia uma sacola com um gordo sanduíche. “O Tio Ênio mandou pro senhor. Bom apetite!”, dizia sempre com um sorriso no rosto. O homem agradecia com um meio sorriso, enrolava cuidadosamente o pacote e saía, na velocidade que suas pernas mancas permitiam. O que acontecia depois, não se sabe. Certo é que cada vez que falava do homem que ia todo dia buscar seu lanche, a garçonete engolia o choro, que quase transbordava pelos olhos. E depois agradecia por tudo o que tinha.

Rozana Ellwanger opin

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