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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 3 a 9 de março de 2011 Ano 9 • Número 418 Reprodução Lygia Prestes Leocadia, a mãe coragem Para o Dia Internacional da Mulher, trazemos o exemplo de Leocadia Prestes que, aos 60 anos de idade, aderiu, conscientemente, às ideias marxistas e deixou um legado de luta. Pág. 7 Miguel Urbano Rodrigues O que a mídia esconde Kadafi, ao contrário de Ben Ali e de Mubarak, assumiu uma posição anti- imperialista quando tomou o poder em 1969. Aboliu uma monarquia fantoche e praticou uma política de independência. Pág. 11 Leandro Konder Os ditadores Hegel previu que um contraste entre as duas Américas resultaria numa guerra entre ambas. Mesmo sem a guerra, os Estados Unidos assumiram agressões militares a seus vizinhos do sul. Pág. 3 Extra, Walmart e Carrefour Racismo nos supermercados Líbia Kadafi e suas contradições De liderança anti-imperialista à arquicorrupto e repressor Págs. 9, 10 e 11 Denúncias de racismo e tortura cometidos contra consumidores negros nas três maiores redes de supermercado do país, Extra, Walmart e Carrefour, expõem heranças das quais o Brasil ainda não se livrou: a escravidão e a ditadura civil-militar. Pág. 4 ISSN 1978-5134 Privatizadas, ferrovias patinam no Brasil Assassinos de índio são condenados parcialmente Privatizadas, ferrovias patinam no Brasil Pág. 6 Assassinos de índio são condenados parcialmente Pág. 5 Fotomontagem com desenho de Jean-Baptiste Debret
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Edição 418 - de 3 a 9 de março de 2011

Mar 10, 2016

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Brasil de Fato

Uma visão popular do Brasil e do mundo
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Page 1: Edição 418 - de 3 a 9 de março de 2011

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 3 a 9 de março de 2011Ano 9 • Número 418

Reprodução

Lygia Prestes

Leocadia, a mãe coragemPara o Dia Internacional da Mulher, trazemos o exemplo de Leocadia Prestes que, aos 60 anos de idade, aderiu, conscientemente, às ideias marxistas e deixou um legado de luta. Pág. 7

Miguel Urbano Rodrigues

O que a mídia escondeKadafi , ao contrário de Ben Ali e de Mubarak, assumiu uma posição anti-imperialista quando tomou o poder em 1969. Aboliu uma monarquia fantoche e praticou uma política de independência. Pág. 11

Leandro Konder

Os ditadoresHegel previu que um contraste entre as duas Américas resultaria numa guerra entre ambas. Mesmo sem a guerra, os Estados Unidos assumiram agressões militares a seus vizinhos do sul. Pág. 3

Extra, Walmart e Carrefour

Racismo nos supermercados

Líbia

Kadafi e suas contradiçõesDe liderança anti-imperialista à arquicorrupto e repressor Págs. 9, 10 e 11

Denúncias de racismo e tortura cometidos contra consumidores negros nas três maiores redes de supermercado do país, Extra, Walmart e Carrefour, expõem heranças das quais o Brasil ainda não se livrou: a escravidão e a ditadura civil-militar. Pág. 4

ISSN 1978-5134

Privatizadas, ferroviaspatinam no Brasil

Assassinos de índio são condenados parcialmente

Privatizadas, ferroviaspatinam no Brasil Pág. 6

Assassinos de índio são condenados parcialmente Pág. 5

Fotomontagem com desenho de Jean-Baptiste Debret

Page 2: Edição 418 - de 3 a 9 de março de 2011

Desembaraçar o novelo

O CONSUMO de energia está associa-do ao desenvolvimento das socieda-des. Energia resulta em industrializa-ção, transportes e bem estar, segundo os padrões hoje aceitos. O petróleo e o gás natural são responsáveis, atualmen-te, por 63% da energia que nosso mun-do consome, sendo que 60% do petró-leo e 40% do gás natural do mundo se concentram no subsolo do Oriente Mé-dio, onde se situa a maior parte dos paí-ses membros da Opep.

Os maiores produtores de petróleo no Oriente Médio dispõem, em geral, de uma empresa controlada pelo Estado, mas fazem concessões a empresas pri-vadas ocidentais de grande porte para a execução da exploração e produção dos hidrocarbonetos em seu subsolo.

Um dado que salta aos olhos mais atentos é a distância entre o custo de produção e o preço de mercado do pe-tróleo. Nos países do Oriente Médio, onde os custos de capital já foram intei-ramente amortizados, os campos pro-dutores são de grande porte e de baixa profundidade, estima-se que esse custo não ultrapasse seis dólares por barril.

É difícil para qualquer um de nós ad-mitir que uma mercadoria, cujo cus-to de produção seja de seis dólares, che-gue ao mercado por mais de 100 dólares (uma diferença de mais de 1.600%) co-mo atualmente ocorre. A menos que ha-ja má-fé e a formação de um cartel. Nes-se caso, há as duas coisas. A Opep é um cartel e a má-fé vem das empresas oci-dentais que atuam nos países-membros da organização e que se locupletam da situação para aumentar seus ganhos.

Qualquer pessoa informada destes números fi ca revoltada. Outro grande problema é que, na maioria dos países-membros da Opep, no Oriente Médio, prevalecem ditaduras cruéis ou monar-quias fechadas, ao estilo dos governos feudais que existiram na Europa até o século 17. Em sistemas desse formato, a população comum não tem vez, viven-do de migalhas que eventualmente são concedidas pela Casa Real ou pelo dita-dor. O grosso da riqueza obtida com o petróleo é canalizado para os reis ou di-tadores e suas famílias, que o transfere para paraísos fi scais. Também este con-traste social é fruto dos negócios feitos com o petróleo.

Outra questão-chave que não pode passar despercebida é que o preço do petróleo cotado em bolsas ocidentais é função da estabilidade política e social na região. A atual escalada de preços, fazendo-os subir, em menos de um mês, de 85 dólares por barril para quase 120 dólares por barril – ou mais de 40% – é consequência da insurgência dos po-vos da área contra governos totalitários, especialmente na Tunísia, Egito, Irã, Bahrein, Líbia e Arábia Saudita.

Embora haja, evidentemente, uma componente popular nas rebeliões, é

impossível negar que a alta dos preços por elas produzida seja vista com bons olhos pelas grandes corporações oci-dentais do petróleo, norte-americanas e europeias, que atuam na região.

Um pouco de história da região mos-tra que a agitação na área é benéfi ca pa-ra as corporações: até 1967, o preço de um barril de petróleo mal ultrapassa-va dois dólares. Após a Guerra dos Seis Dias, naquele ano, o preço do barril sal-tou para três dólares por barril, ou um aumento de 50%. Ao fi nal da Guerra do Yom Kippur, em 1973, o preço chegou a 12 dólares – uma elevação de 300%. Em 1979, com a paralisação da produ-ção de petróleo no Irã, por força da Re-volução Islâmica que provocou a queda do Xá, o preço do petróleo novamente mais que triplicou, alcançando a marca dos 40 dólares por barril.

Embora os efeitos dessa instabilida-de recaiam sobre a população, para as grandes empresas de petróleo, quan-to mais instabilidade na região melhor. Apesar de os aumentos no preço do pe-tróleo e nos de seus derivados reduzi-rem seu consumo em escala mundial, a instabilidade faz crescer a demanda por outro tipo de bens – os armamen-tos que vão equipar as forças de defesa dos países da região. A simples presen-ça de Israel e o alinhamento das gran-des potências ocidentais (EUA e Europa Ocidental) com ele já é motivo de gran-de tensão na área.

Desse modo, ganham dois setores do capitalismo: as grandes empresas de petróleo e as grandes empresas produ-toras de armamentos e outros instru-mentos de agressão e destruição. Como se pode ver, é um jogo muito sujo, mes-mo que não se mencione a sujeira gera-da pela queima dos derivados de petró-leo no nosso dia-a-dia.

A tensão crescente no Oriente Médio eleva o preço do petróleo, mas, em com-pensação, torna necessária a compra de aviões de caça, mísseis, blindados e outros armamentos por parte dos paí-

ses da região. Certamente, esse meca-nismo de mão-dupla torna equilibrada a balança de trocas entre os dois lados e conserva o nível de tensão na área, sen-do que uma realimenta a outra.

Finalmente, não se pode esquecer o papel dos bancos, hoje onipresentes em cada quadrante de nosso globo. Todos sabemos que bancos não produzem na-da, apenas mais riqueza para os que já são ricos. No caso do petróleo, os ban-cos entram no chamado mercado spot, que atende a demanda em períodos de alta dos preços ou de pequenos com-pradores. Através de seus hedge funds – fundos especulativos – os bancos fe-cham contratos de compra com empre-sas produtoras, das quais, em geral, são acionistas privilegiados e os revendem no mercado a termo (futuro) com uma boa parcela de ágio.

Entre a compra e a venda, os bancos fazem um leilão do volume ou de par-tes desse mesmo volume. Ainda antes da defi nição do vencedor do certame, um navio-petroleiro já zarpou para uma entrega ainda não efetivamente contra-tada. Se nesse período surgir quem pa-gue mais, o navio altera seu curso para atender a última posição. Essas mudan-ças ocorrem até que um preço satisfa-tório seja alcançado e remunere o ban-co segundo critérios altamente especu-lativos.

De tudo o que foi aqui exposto, per-cebe-se que o que menos interessa nes-ses negócios são as pessoas e seus direi-tos. Acima destes estão os ganhos das famílias reais, dos ditadores, das corpo-rações e até mesmo dos bancos. Os la-birintos dos negócios do petróleo são muito mais escuros, escusos e sujos que os de qualquer máfi a. Não há razão pa-ra esperar que esse quadro seja alterado antes do fi m do uso comercial do petró-leo e de seus derivados.

Argemiro Pertence é engenheiro e foi vice-presidente da Associação dos

Engenheiros da Petrobrás (Aepet).

opiniãoArgemiro Pertence

O petróleo e o Oriente Médio

crônica Elaine Tavares

QUANDO OLHAMOS em nossa vol-ta, nos deparamos com milhares de questões a serem resolvidas no cur-to ou até curtíssimo prazo. Elas pa-recem emergir dos poros das pare-des, do concreto, do asfalto e calça-das, do chão de terra batida, das pa-redes de adobe e do sapé, das na-ves que cruzam os ares – que muitas vezes não são aviões de carreira ou mansas e inócuas enteléquias pro-duzidas por alguns e adestradas por outros (em prejuízo do trabalho dos primeiros) nas academias.

E, de repente, os militantes esba-foridos correm para todos os lados, engajando-se num intenso ativismo, abraçando uma imensa quantidade de causas e tarefas, das quais, muitas vezes, saem de mãos vazias – poten-cializando apenas cansaço e algum desânimo. Apenas o “nível ideoló-gico” e/ou os “estímulos ideológicos” não são, nunca foram, e nunca serão sufi cientes para garantir indefi nida-mente o pique da militância.

É fundamental, além da identifi ca-ção do inimigo principal a ser com-batido (o que antecede tudo), a ca-pacidade de estabelecermos priori-dades, objetivos e metas claras. Ou seja, é necessária uma política cla-ra e que não emane apenas de prin-cípios gerais, ou de leis tendenciais,

nem sempre universalizáveis, entoa-das como palavras-de-ordem. Nesse quadro, também as denúncias pou-co ajudam – no máximo, produzem efeitos catárticos, o prazer de libera-ção de altas doses de adrenalina se-guido de prostração. Pranto. Riso. Orgasmo.

Para os movimentos populares reivindicatórios, essa dispersão pode parecer mais fácil de combater e ser contornada, pela reiteração do espe-cífi co. No entanto, isso também não é verdade. Ainda aí, as novas con-junturas exigem discussões de cami-nhos consonantes com cada nova re-alidade política, com cada novo ali-nhamento e correlação de forças que se inaugure, para a conquista de su-as reivindicações.

Conseguimos um razoável enten-dimento das diversas conjunturas e até temos sabido eleger priorida-des e nos movimentarmos com algu-ma desenvoltura ao longo dos anos, apesar da falta de uma análise de classes consistente da nossa socie-dade – carência que carregamos há mais de três décadas.

No entanto, hoje, falta-nos clareza até mesmo sobre a conjuntura (na-cional e internacional) em que es-tamos enfi ados até o pescoço: a dis-persão da militância é o retrato mais

fi el da nossa dispersão de ideias e propostas políticas, da nossa inca-pacidade de estabelecer prioridades, de apontar um Norte, sobretudo quando nos partidos políticos o es-pectro de esquerda mergulha a cada dia mais profunda e exclusivamente na disputa institucional.

Vivemos e agimos como se esti-véssemos frente a um grande nove-

lo de linha totalmente embaraçado, cuja ponta – que nos permitiria re-organizar a linha – houvesse desa-parecido sem que tivéssemos perce-bido e não nos incomodasse essa si-tuação, uma vez que nos ocupamos com trechos diversos do emaranha-do: Alca; democratização da comu-nicação; transposição do São Fran-cisco; anistia e punição dos respon-sáveis pelos crimes da ditadura; o agronegócio; a luta pelo passe livre; as agitações e mudanças no Norte da África e Oriente Médio; reforma agrária; Mercosul; a questão indí-gena; enchentes nas cidades; a pre-sença da presidenta Dilma no ani-versário de 90 anos da Folha de S. Paulo; o problema do solo urbano e da habitação; as estripulias e con-torcionismo político do prefeito Gil-berto Kassab; o imposto sindical; os desastres ambientais; as dispu-tas de aparelho em torno da minis-tra Ana de Hollanda, da Cultura; re-dução da jornada de trabalho; di-reitos humanos; etc. etc. etc., tudo ao mesmo tempo, tudo igualmen-te urgente e importante – e, onde e quando tudo é igualmente impor-tante, nada é importante.

Ou seja, estamos incapazes de de-fi nir coletivamente um eixo em tor-no do qual gravitem todas essas lu-

tas (e outras), onde elas ao mesmo tempo desaguem e se alimentem, emprestem e, sobretudo, ganhem um sentido maior, abandonando o caráter fragmentado que vêm assu-mindo e passem a constituir um só corpo, uma só força.

Caso não atentarmos para is-so, e se nenhum outro assunto mo-mentoso conseguir ser pautado pe-la grande mídia comercial, corre-mos o sério risco de passarmos um ano “morto” e, somente em 2012, desaguarmos todos, mergulharmos de cabeça e atrelarmos todo o nos-so fazer e toda a nossa discussão ao que vier ser pautado pelas eleições municipais. Aliás, esse não seria o problema, se tivéssemos essa clare-za e nos preparássemos desde ho-je com alternativas e projetos (com estratégias e táticas) nesse sentido. Do contrário, iremos a reboque do que nos oferecerem.

Outra importante pauta é a dis-cussão da reforma política – com a qual podemos ter muito a ganhar ou muito a perder, dependendo de ter-mos propostas e políticas capazes de garanti-las. É grave a pouca re-percussão que o assunto tem entre a militância. Depois, não dará pa-ra correr atrás dos prejuízos. Não se chora o leite derramado.

de 3 a 9 de março de 20112editorial

Gama

A vida, essa estranha!OUTRO DIA UM AMIGO me saiu com essa: “não há gen-te triste na internet”. E eu fi quei a pensar... Pois não é? As mensagens no twitter ou no facebook são sempre de alegria e dão sinais de que tudo está bem. A cerveja no fi m da tar-de, os amigos, o vinho, a pizza, os bichos, o sol, os sonhos, enfi m... Tudo remete a coisas boas e felicidades. Mas então por que na vida real as coisas e as pessoas parecem viver em escombros? Estarão estes seres querendo criar um es-pelho irreal para mudar o real? Ou estarão tentando enga-nar a si mesmos com uma felicidade de plástico? Não sei! ... Eu é que não consigo embarcar neste universo de alegrias. Vejo tudo tão sombrio!

Há pessoas que circulam em volta de mim que já não conseguem enxergar beleza na vida. “A impressão é de que quando a gente era jovem conseguia suportar melhor os golpes. Agora, parece não haver esperanças...” Outras ten-tam desesperadamente encontrar um porto seguro onde ancorar suas promessas de amor. Outras não conseguem viver dentro de um mundo que se faz vazio, outras se ema-ranham num tempo em que parece não haver devir. Olho para os lados e o que vejo são almas em ruínas, tentando al-cançar alguma margem, ainda que não saibam qual. O sóli-do se desmanchando no ar...

Seria o espírito do tempo? Estes tempos pós-tudo, sem sonhos ou utopias? Seria a certeza da mortalidade que se aproxima e se faz cada dia mais real, conforme vamos nos aproximando do crepúsculo? Será a perda efetiva da proba-bilidade de um mundo melhor? Ou a triste certeza de que o niilismo venceu e não há saídas para o último homem?

Não sei, mas tal como já apontou Nietzsche, creio que nos faz falta a meninice, essa coisa boa e tola de pular amarelinha, girar peão, jogar cinco marias, brincar de queimada e de escolher-fi ta, diabo-rengo, batatinha fri-ta, um, dois três. Creio que precisamos dar mais camba-lhotas, fazer castelos na areia, dar muita risada, pisar nas poças de água. Temos de reencontrar a alegria, a despeito de tudo. O riso servindo como um pirilimpimpim mágico, desfazendo as brumas.

Outro dia vi na televisão uma reportagem sobre uma pesquisa que se faz há 15 anos nos colégios públicos. Ela revela que as crianças estão mais gordas, mais tristes, com menos energia. E por quê? Porque não existem mais cam-pinhos onde jogar bola, porque não se brinca mais na rua, não se corre, não se gasta energia. As crianças vão para a escola de ônibus ou de carro, comem doritos, jogam ví-deo game e falam ao celular. Na hora do recreio, não pu-lam nem suam para não estragar o “modelito”. São peque-nos adultos sem vibração, prováveis almas em escombros logo ali adiante.

Eu, que chego aos 50, diante das ruínas, começo a perce-ber que é hora de voltar a brincar. Chegar à casa mais cedo, correr com o cachorro, fazer peraltices, suar em bicas, to-mar água pura. Meus cântaros se esgotam e eu preciso vi-ver o dia. Sim, há de lutar pela tarifa zero, pela educação, pela vida digna, pela universidade, pela paz no mundo. Mas também há de virar cambalhotas e gargalhar. Porque não quero, na noite da vida, observar a minha e outras tantas almas em escombros. Quero ser capaz do riso, e que ele seja uma lamparina, ainda que bruxuleante, a indicar que, mes-mo em meio às sombras, pode-se encontrar a beleza. Tal como ensinam os navajos, a beleza aí está, em cima, embai-xo, nos lados, em frente... Viver é caminhar na beleza. Mas a vida, essa estranha, insiste em nos desviar!

Elaine Tavares é jornalista.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos– CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci MariaFranzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

É fundamental, além da identifi cação do inimigo principal a ser combatido (o que antecede tudo), a capacidade de estabelecermos prioridades, objetivos e metas claras

Há pessoas que circulam em volta de mim que já não conseguem enxergar beleza na vida

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de 3 a 9 de março de 2011

e a dimensão humanitária, para empanturrar os espe-culadores. Porém para a saúde, educação e previdên-cia esse desmantelo é fatal.

Continuamos jogando dinheiro pelo ralo nos grandes investimentos mal concebidos ou abandonados, nos ju-ros da dívida pública, na corrupção sistêmica, mas não temos mesmo dinheiro para um mínimo decente.

Quanto ao governo, Guido Mantega, em recente en-trevista, acha normal que os juros subam, que expor-temos matérias primas, que as transnacionais enviem lucros astronômicos ao exterior, daí para frente.

Por isso, é mais que oportuna a retomada do Jubileu Sul do debate sobre a dívida pública brasileira. Vamos ver se temas como este ainda geram alguma união nas esquerdas, ou se mais uma vez vamos jogar o lixo pa-ra debaixo do tapete, somente para salvaguardar um bom relacionamento com o governo de plantão. Essa tem sido a prática dos últimos anos.

Quanto à política econômica em andamento, não há dúvida que a cobra trocou de casca, mas não per-deu o veneno.

A cobra trocou de cascaO RECEITUÁRIO FINANCEIRO do Brasil segue os pa-drões de sempre, isto é, empurrar o peso sobre as costas do povo e alimentar os especuladores.

A votação do salário mínimo, sob silêncio das pasto-rais sociais, movimentos sociais e ação tímida das cen-trais sindicais, mostra a que situação paradoxal chega-mos neste país, sobretudo na era Lula e, agora, no iní-cio da de Dilma.

O senador do DEM, Agripino Maia – em seu discur-so no Senado – parecia o Vicentinho de antigamente – disse que poupamos a merreca de 4 bilhões de reais no mínimo para pagar 190 bilhões de juros da dívida públi-ca. Joelmir Beting já disse que o custo é maior, de 240 bilhões. O Jubileu Sul afi rma que, entre juros e amor-tizações, o custo das dívidas supera 300 bilhões de re-ais por ano.

Claro que a economia brasileira pode bancar o cus-to astronômico da dívida pública, que saltou de cerca de 700 bilhões na era FHC para 1,7 trilhões na era Lu-la. O Brasil tem capacidade de pagamento, desde que sacrifi que setores essenciais, inclusive a justiça social

instantâneo

Roberto Malvezzi (Gogó)

da contra responder a uma entrevista à Globo ou ou-tro canal. O problema é que a ida ao templo dos ini-migos da Conferência Nacional de Comunicação de 2009 é jogar água no fogo aceso no coração de mi-lhares de ativistas e lutadores por uma comunicação a serviço do povo, a serviço dos trabalhadores e das classes populares.

No Brasil, há extrema necessidade de um novo marco regulatório nas comunicações. As chamadas concessões públicas de rádio e TV nada têm de pú-blico, são sesmarias doadas aos donatários da Globo, SBT, Record, Bandeirantes e por aí vai.

O Brasil precisa de controle público sobre estas cha-madas concessões. Precisa de canais de televisão pú-blicos, canais nas mãos dos trabalhadores, em cada es-tado. Mas, a tudo isso, a Globo da Braga responde di-zendo que isso é intervenção, censura, ditadura.

Dilma ir fazer omelete naquele programa é legiti-mar a fala da Globo. Daí o esquecimento de que os trabalhadores precisam ter suas TVs, suas rádios, e não só comunitárias, mas grandes rádios iguais às da Globo é um passo. Aos movimentos sociais cabe lem-brá-la disso nas praças e nas ruas.

Dilma na Globo e Rede TVNO MÊS DA MULHER, uma mulher presidenta do país, lutadora contra a ditadura, trabalhadora, digna, feminista em sua prática de vida, vai aparecer no ca-nal que nega toda sua vida. Dilma no programa Mais Você é um tapa na cara em relação à luta da mulher, à luta contra a ditadura e à Conferência de Comuni-cação que mobilizou milhares de comunicadores no ano passado.

O programa da Ana Maria Braga é a negação da li-bertação da mulher. A negação do 8 de Março. Re-afirma a cada segundo a ideia de que lugar de mu-lher é na cozinha, fazendo omeletes, aprendendo a preparar novos quitutes ou enfeitinhos da casa pa-ra o macho que está por aí se lixando pelas comidi-nhas e enfeitinhos caseiros das sagradas esposas. A aula de mulherzinha alienada, idiotizada que a Bra-ga dá a cada dia é de chorar. O mesmo pode-se di-zer da visão de mulher que é afirmada, reafirmada e confirmada em cada minuto dos divertidos progra-mas da Rede TV. Mas este é um assunto que demo-raria muito.

O mais político vai na cara de quem luta pela de-mocratização das comunicações em nosso país. Na-

Vito Giannotti

3

McDonald’s – 1Se há um orgulho que minha Pouso Ale-

gre (sul de MG) carrega diante do planeta é o de o McDonald’s não ter dado certo por aqui. Ficou um tempo e faliu na década passada. Ainda preferimos as nossas barraquinhas de pastel de farinha de milho e trailers de lan-ches da madrugada, tudo feito pelos próprios donos de seus microempreendimentos, sem exploração.

Claudinei Braz, por correio eletrônico

McDonald’s – 2Há muito tempo venho criticando a posi-

ção deste jornal, que cada dia mais se alinha ao governo. Todavia, hoje gostaria de saudar a matéria sobre o McDonald’s.

José Soares de Souza Neto, por correio eletrônico

McDonald’s – 3O McDonald’s é uma empresa criminosa.

O que paga aos seus funcionários é revoltan-te. Na maioria jovens, em primeiro empre-go, que não conhecem seus direitos. E ainda

escravizam os funcionários. Vale dizer que aquilo que vendem não é alimento para hu-manos. Produtos de qualidade duvidosa, de baixíssimos valores nutricionais, que acar-retam doenças cardiovasculares, obesidade e sabe-se lá o que mais, pois são produtos de origem transgênica. É bom lembrar que a ve-lha mídia, na TV, é aliada de primeira hora da lanchonete para Frankenstein. As novelas da Globo, principalmente a Malhação, para jovens, fazem merchandising de “alimen-tos” fast food ao melhor estilo McDonald’s. Crianças de classe média e alta, brancas, co-mendo a comida de Frankenstein é imagem comum nas novelinhas. Inclusive, muitos adolescentes na novela trabalham em lan-chonetes, ao melhor estilo da cultura ameri-cana em decadência.

Ricardo Oliveira, por correio eletrônico

McDonald’s – 4O McDonald’s não é a única empresa a co-

meter os delitos do trabalho. Outras corpora-ções fazem uso desenfreado de métodos para

aumentar os rendimentos e a taxa de mais-va-lia obtida nesta exploração. Não estranhe que sempre tem vagas para o Mac, pois é a forma que eles acharam para diminuir os salários ao nível do ridículo. Como o público alvo são os jovens que moram com seus pais, justifi cam-se os abusos.

Mateus Avila Isidoro, por correio eletrônico

McDonald’s – 5Sou estudante de nutrição da Unesp. Já ti-

nha inúmeros argumentos sobre a qualida-de nutricional dos produtos desta empresa, agora tenho argumentos políticos contra es-sa corporação.

Massa Simidu, por correio eletrônico

McDonald’s – 6Já estava na hora mesmo de alguém abrir os

olhos e denunciar esta exploração... parabéns!Evelise Toporoski, por correio eletrônico

Obama e o messianismo imperialistaParabéns Miguel Urbano! Análise contun-

dente do fundamentalismo que está des-

truindo inteiras nações sob a máscara dadefesa da democracia. Democracia? Paraquem? Continuamos à merce da febre inter-mitente do destino manifesto, com os aplau-sos da mídia hegemônica, até quando?

Mariza Bertoli, por correio eletrônico

Queda do impérioO que parecia impossível para alguns passa

a ser a cada dia parte da realidade. Enquantoa crise econômica se prolonga, os norte-ame-ricanos veem seu poder e infl uência esca-pando entre os dedos. Não à toa o presiden-te Obama vem visitar o Brasil, a fi m de trazerde volta o apoio brasileiro principalmente napauta econômica. O fi m do ciclo de domina-ção estado-unidense está chegando ao fi m, eo que virá a seguir?

Paulo Souza, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

É CONHECIDA A HISTÓRIA da chamada coloniza-ção. Nos Estados Unidos, ela foi feita por ingleses pro-testantes que planejavam enriquecer. Na América doSul, especialmente no Brasil, proliferaram aventurei-ros portugueses e espanhóis, em busca de ouro, com oobjetivo de enriquecer e retornar à Europa o mais rapi-damente possível.

O fi lósofo alemão Hegel previu que um contraste en-tre as duas Américas resultaria, inevitavelmente, numaguerra entre ambas. Mesmo sem a guerra (o fi lósofo seenganou), os Estados Unidos assumiram agressões mi-litares a seus vizinhos do sul. Ao longo de décadas e deséculos, os estado-unidenses impuseram seus critériosaos sul-americanos. E a imposição se deu por meio desetores das classes dominantes, que se reuniram orga-nizadamente para exercer o poder de cima para baixo:os ditadores “modernos”.

No mesmo período, Garcia Marques publicou o Ou-tono do patriarca; Augusto Roas Bastos publicou Eu,o supremo; e Alejo Carpentier publicou O recurso dométodo. Todos por volta de 1975. Esses ditadores cria-dos pelos três escritores nos ajudavam a compreenderporque os personagens dos romancistas eram tão abo-mináveis. E mentiam e matavam sem qualquer escrú-pulo. Mas não eram burros. Não lhes faltava cultura. Oleitor, ao lê-los, podia ter dúvida quanto à competênciadessa galeria dos ditadores.

O ditador paraguaio de Roas Bastos ameaçava punirseveramente seu chefe de polícia se não identifi casse eprendesse imediatamente quem, de madrugada, haviaafi xado, no portão da catedral, um manifesto contra ogoverno (isto é, ele mesmo).

O patriarca de Garcia Marques zela pelo cumprimentode suas ordens: para liquidar um bando de crianças que sabiam como o governo roubava na Loteria, mandou co-locá-las em um navio e fazê-lo explodir e afundar. O co-ronel incumbido de matar as crianças cumpre a ordemrecebida, mas também se mata, fazendo explodir uma banana de dinamite enfi ada em seu próprio corpo.

O ditador justifi cou o castigo dizendo: “Há ordensque não podem ser acatadas. No entanto, também nãopodem deixar de ser cumpridas”.

O ditador, que é o principal personagem de O recur-so do método, criado por Alejo Carpentier, lê muito. Não tem nenhuma vergonha de repetir ideias liberais e mes-mo pensamentos libertários. Confessa-se admirador deum dos seus assessores, que era considerado de “esquer-da”. Citava sempre Bakunin, Kropotkin e Proudhon.

Em seu cinismo drástico e em sua brutalidade assu-mida, os ditadores dos três escritores lembrados (háoutros) rivalizavam com o estilo doentio que os tira-nos mostravam no início do século 20 na vida real. Nasatuais condições, a classe dominante cobra de seus lí-deres políticos que eles sejam pragmáticos e não se ex-ponham, com demasiada facilidade, ao ódio popular ouao sarcasmo da classe média.

Mudou a situação histórico-política. Isso não signi-fi ca que as velhas formas de autoritarismo, prepotên-cia, crueldade e intimidação não existam mais. Ao con-trário, elas ainda são fortíssimas. Os hábitos que pau-tam a vida cultural, as fantasias e os critérios usuais daspessoas, os sentimentos formados diante da televisão,os compromissos com a preservação dos princípios de-mocráticos (mesmo quando são proclamados hipocri-tamente), tudo isso contribui para que a burguesia fa-le de valores a serem preservados e reivindique para elacerta respeitabilidade não merecida.

A fi cção não se limita a refl etir a realidade: ela a re-cria. Os ditadores na literatura chegam a ser tão mons-truosos como os da vida real. Um pouco da Colômbia,bem como um pouco de Cuba e do Paraguai, só passa-ram a existir depois que os escritores, sobre os quaisacabamos de falar, escreveram seus romances brilhan-tes e expuseram seus criminosos ditadores.

Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.

Leandro Konder

Os ditadores

Mesmo sem a guerra, os Estados Unidos assumiram agressões militares a seus vizinhos do sul

comentários do leitor

“Há ordens que não podem ser acatadas. No entanto, também não podem deixar de ser cumpridas”

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brasilde 3 a 9 de março de 20114

Jorge Américo eEduardo Sales de Lima

da Redação

“POR QUE O NEGRO, quando entra no mercado, passa a ser monitorado? Por que, inconscientemente até, o funcio-nário de segurança dessas lojas passa a ‘copiá-lo’? Porque, na cabeça dele, o ne-gro é o suspeito padrão”. É o que defen-de o advogado Dojival Vieira, em entre-vista à Radioagência NP. Ele acompa-nha três casos de pessoas que teriam so-frido tortura física e/ou psicológica em decorrência de racismo nas três maiores redes de supermercado do Brasil: Car-refour, Walmart e Extra (pertencente ao grupo Pão de Açúcar).

Dois destes casos aconteceram no iní-cio deste ano. Em Osasco (SP), no dia 16 de fevereiro, a dona de casa Clécia Ma-ria da Silva, de 56 anos, foi parar no hos-pital depois de ter sido acusada de fur-to por seguranças da rede Walmart. Um segurança revistou sua bolsa. A cliente portava o cupom fi scal que comprovava o pagamento das mercadorias que leva-va. Segundo a médica que atendeu a do-na de casa, ela teve uma crise de hiper-tensão e fi cou próxima de sofrer um aci-dente vascular cerebral (AVC). O segu-rança teria dito que “isso acontece mes-mo com os pretos”, segundo relato da cliente à Dojival, que acompanha o ca-so. A ocorrência foi registrada como ca-lúnia no 9º Distrito Policial de Osasco no dia 18 de fevereiro.

Outro caso, tão grave quanto. Um ga-roto de 11 anos relatou ter sido levado a uma “salinha” nos fundos do hipermer-cado Extra da Marginal do Tietê, na ci-dade de São Paulo, e confi rmou ter si-do agredido por seguranças no dia 10 de janeiro. O garoto teria sido aborda-do após passar no caixa com biscoitos, salgadinhos e refrigerantes e se encami-nhava para a saída da loja.

Estes dois casos não são inéditos. Em 2009, no estacionamento do Carrefour de Osasco, o vigilante Januário Alves de Santana foi apontado como suspeito de roubar seu próprio carro. Na sequên-cia, sofreu torturas por quase 30 minu-tos, com socos, pontapés e uma tentati-va de esganadura que lhe provocou fra-tura no maxilar, provocando a destrui-ção da sua prótese dentária.

A existência dessas “salinhas de tor-tura”, evidenciadas no caso do garo-to abordado no Extra e do vigia agredi-do no Carrefour, põe os supermercados em condição análoga às masmorras. Is-so de acordo com Hédio Silva Jr., ex-

secretário de Justiça do Estado de São Paulo.“São crimes hediondos. São sa-las de interrogatórios, espécies de mas-morras contemporâneas em que as pes-soas são isoladas do público e subme-tidas a toda sorte de constrangimento. Ao acentuar o papel da vigilância, com isso não estou diminuindo ou relativi-zando a responsabilidade que a empre-sa que contrata o serviço, que são os su-permercados, possui”, elucida.

Pelo menos no caso de 2009 ocorreu uma decisão inédita do Poder Público. No início de fevereiro, a polícia de São Paulo indiciou seis seguranças da rede de supermercados Carrefour pelo crime de tortura motivada por preconceito ra-cial. Mas há muito pela frente. A partir de agora, de acordo com Dojival Vieira, caberá ao MP oferecer a denúncia e à Justiça aceitá-la, instaurar o processo, passar os indiciados a réus e condená-los de acordo com a lei.

Segundo Douglas Belchior, integrante do conselho geral da Uneafro-Brasil, o ineditismo desse indiciamento por cri-me de tortura motivado por preconcei-to racial ainda expõe a vagarosidade no tratamento de crimes dessa lógica den-tro das instâncias de poder.

Punir e vigiarJuntas, essas três maiores redes vare-

jistas do país lucraram R$ 71,5 bilhões em 2009. Só o Walmart possui 400 lo-jas no Brasil. Em 2010, as unidades da empresa espalhadas pelo mundo fatura-ram quase 410 bilhões de dólares. Mes-mo com o lucro, parece não haver pre-ocupação em relação a investimentos na capacitação de seus seguranças. “As empresas de segurança transportaram, para as relações de consumo, práticas que não são próprias, não são compatí-veis com o Estado democrático de direi-to. E as empresas que as contratam – os supermercados e shoppings – não tive-ram até agora a preocupação de investir na capacitação e no treinamento desses funcionários”, pondera Dojival.

Segundo ele, essas empresas contra-tadas subverteram o princípio constitu-cional, base de qualquer Estado demo-crático de direito. “Qual é a lógica que essas empresas impuseram? Todos são culpados até que se prove a inocência”, explica.

Hélio Silva vai mais a fundo e enlaça a falta de treinamento desses profi ssio-nais de segurança que trabalham nessas redes de supermercado com a herança cultural brasileira. “Se eles não têm trei-namento, é mais ou menos óbvio que ele vai reproduzir no trabalho dele os con-ceitos que ele aprendeu socialmente. Por isso, além de educação escolar, co-mo um todo, a formação desses profi s-sionais tem que ter um conteúdo que o prepare para não reproduzir no seu tra-

balho os conceitos aprendidos social-mente”, defende. Segundo ele, o Brasil tem um certo atavismo cultural muito vinculado a esse tipo de prática cruel e que muitas instituições têm difi culdades para romper com essa mentalidade.

Como ressalta Dojival, esses prová-veis casos de racismo ilustram os efei-tos perversos de dois tipos de “herança” de quais o país ainda não se livrou: o es-cravismo e a cultura do “prende e arre-benta” do período ditatorial. “Todos sa-bemos que boa parte dessas empresas

da Redação

Um garoto negro de 11 anos, que mo-ra num Conjunto Habitacional na zo-na leste da cidade de São Paulo, pres-tou depoimento no dia 15, na 10ª DP da Penha, e confi rmou agressão e os maus tratos recebidos por parte de seguran-ças do hipermercado Extra da Margi-nal do Tietê.

O menino, de acordo com a Agência de Notícias Afropress, relatou que foi le-vado para um quartinho, obrigado a bai-xar a bermuda, levantar a blusa e ame-açado de levar chicotadas para provar que não estava furtando mercadorias, conforme comprovou com a apresenta-ção do cupom fi scal emitido pela opera-dora do caixa, conforme conta advogado Dojival Vieira que o acompanha.

O garoto reconheceu um dos seguran-ças do hipermercado: Marcos Hoshi-mizu Ojeda. Segundo o garoto, Marcos foi o primeiro a abordá-lo quando, de-pois de passar no caixa com as mercado-rias (biscoitos, salgadinhos e refrigeran-tes), se encaminhava para a saída da lo-ja. Porém, o menino teria afi rmado que não foi Marcos que o chamou de “negri-nho sujo”, “negrinho fedido”, e o amea-çou com três chicotadas, já no quartinho – para onde também foram levados dois outros meninos, ambos negros – de res-pectivamente 13 e 14 anos, acusados pe-los seguranças de furto de mercadorias.

Segundo o menino, as ameaças teriam partido de outros dois seguranças, em especial, de um terceiro, encarregados de fazer a revista. Após avisarem que não estavam brincando, teriam agredi-do com tapas nos genitais, dois tapas e um soco no peito dos adolescentes.

O segurança, que “batia ameaçadora-mente com um cano de papelão na me-sa”, segundo o garoto, também “amea-çou dar facadas na barriga, com uma fa-ca, cuja descrição disse ser de cabo azul como as de cozinha”. Os quatro seguran-ças que depuseram até aqui negam as agressões.

De acordo com Douglas Belchior, do conselho geral Uneafro-Brasil, o caso do garoto, se confi rmado, demonstra como os agentes de segurança privados se sen-tem legitimados pelo próprio Poder Pú-blico. “Se o próprio Estado, com sua po-lícia ofi cial, agride, desrespeita, espan-ca, tortura e assassina, por que as polí-cias particulares, como é o caso dos su-permercados, não vão fazer o mesmo? Quer dizer, vão fazer muito pior, porque eles estão endossados. Inclusive, gran-de parte desses profi ssionais que fazem esse trabalho são ofi ciais do Estado nos seus dias de folga”, denuncia.

OEAO caso chegou à Comissão de Direitos

Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), por iniciativa da Co-missão de Direitos Humanos da OAB de São Paulo. Foi aberta também uma Co-missão Processante pela Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, que, baseada na Lei Esta-dual 14.187, de 19 de julho de 2010, po-de punir com advertência, multa e até a cassação da licença de funcionamento do estabelecimento acusado de práticas racistas. (JA e ESL)

Pesadelo na “salinha”Garoto foi ameaçado de levar chicotadas no hipermercado Extra

PRECONCEITO Possíveis casos de racismo e tortura no Extra, Walmart e Carrefour expõem os resquícios do escravismo e da ditadura civil-militar no Brasil

são propriedade de militares que servi-ram na ditadura e importam para as re-lações de consumo as práticas desse pe-ríodo, que no caso dos negros, fi ca agra-vada pelo fato de ser o suspeito padrão, exatamente pela condição de sub-cida-dão que ele ocupa desde o período es-cravista”, salienta Dojival.

O Brasil de Fato entrou em contato com as assessorias de imprensa das trêsredes de supermercado, Extra, Walmarte Carrefour, mas não obteve nenhum ti-po de posicionamento relacionado aossupostos casos de racismo e tortura,tampouco acerca dos nomes das em-presas de segurança que prestam ser-viço nas lojas. O jornal também tentoucontato com Januário Alves de Santana, mas ele fi rmou um acordo extra-judicialno qual não pode expor qualquer tipo deinformação sobre o caso, com fi m de que o inquérito não seja prejudicado.

Supermercado ou pelourinho?

O garoto reconheceu um dos seguranças do hipermercado: Marcos Hoshimizu Ojeda

“Qual é a lógica que essas empresas impuseram? Todos são culpados até que se prove a inocência”

“Todos sabemos que boa parte dessas empresas são propriedade de militares que serviram na ditadura”

Fotomontagem com desenho de Jean-Baptiste Debret

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de 3 a 9 de março de 2011 5brasil

Cristiano Navarroda Reportagem

NÃO FOI DESTA vez que o Mato Groso do Sul, estado com maior índice de vio-lência contra povos indígenas, viu a con-denação de um “branco” por assassina-to de uma liderança. No dia 25, os jura-dos decidiram absolver Carlos Roberto dos Santos, acusado pelo homicídio du-plamente qualifi cado, por motivo torpe e meio cruel, do cacique guarani-kaiowá Marcos Verón de 73 anos.

Além de Santos, Estevão Romero e Jorge Cristaldo Insabralde eram réus no processo que apura os crimes contra as famílias que retomaram à terra indígena Takuara, que hoje é ocupada pela Fazen-da Brasília do Sul em Juti (MS). Ao todo, o Ministério Público Federal denunciou 28 pessoas por envolvimento no crime que ocorreu em janeiro de 2003.

Apesar de Santos ter sido absolvido da acusação de homicídio, os três fun-cionários da fazenda foram condena-dos a 12 anos e três meses de prisão por seis sequestros, tortura e formação de quadrilha armada. A pena foi determi-nada pela juíza da 1ª Vara Criminal Fe-deral de São Paulo, Paula Mantovani. Estevão Romero foi condenado tam-bém a mais seis meses em regime aber-to por fraude processual. Todos os réus já passaram quatro anos e oito meses

Condenados, mas não por homicídioJUSTIÇA Não foi desta vez que um “branco” foi condenado por matar um indígena; acusados pela morte do cacique Marcos Verón são punidos por tortura, sequestro e quadrilha

va que “a mensagem que fi ca é a de que a comunidade indígena tem direitos e que a violência é intolerável”.

Nos cinco dias de júri, uma comissão com 21 indígenas saiu de suas aldeias para acompanhar o julgamento. Ao fi -nal do júri, o professor Ládio Verón, fi -lho do cacique Verón e vítima da sessão de torturas feitas pelos condenados, re-sumiu o sentimento dos familiares. “A gente fi ca sem saber. Eles foram conde-nados, mas não vão fi car presos. Meu pai foi morto, e oito anos depois não tem um assassino e nem o mandante”.

A defesa dos acusados comemorou o resultado, já que a pena aplicada é ape-nas uma fração da penalidade que po-deria ser imputada.

Em nota, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão que apoia a luta guarani-kaiowá, manifestou in-dignação com o resultado. “A decisão que acolheu parcialmente as alegações do Ministério Público Federal, mas que não reconheceu a prática do crime de homicídio levado a cabo contra o caci-que e a tentativa de homicídio contra seus familiares, e o fato dos acusados poderem recorrer da sentença em li-berdade trazem relevante indignação e preocupação desta entidade pela impu-nidade do fato e as consequências des-se precedente”.

A transferênciaO processo ainda foi desmembrado em

outras duas partes, quando serão julga-dos o dono da fazenda, Jacinto Honó-rio da Silva Filho, como réu mandante do assassinato, e Nivaldo Alves Oliveira, réu foragido acusado de dar o golpe fi nal fa-tal em Verón.

O Tribunal de Júri foi transferido para São Paulo por decisão do Tribunal Re-gional Federal (TRF) da 3ª Região em 2009. A Justiça entendeu que, devido ao forte clima de racismo contra os gua-rani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, ha-veria suspeita de parcialidade dos jura-dos no caso.

Patrícia Benvenutida Reportagem

DESPEJOS, ASSISTÊNCIA precária do poder público e falta de informação so-bre o destino de comunidades inteiras. Em todo o país, crescem as reclama-ções sobre violações do direito à mora-dia alavancadas por megaprojetos com vistas à realização da Copa do Mundo, em 2014, e das Olimpíadas em 2016.

Em São Paulo (SP), que será uma das sedes da Copa, a situação não é dife-rente, e o crescente número de despe-jos aumenta a preocupação de morado-res e entidades. Para chamar a atenção sobre o assunto, movimentos sociais e organizações não governamentais pro-moveram, juntamente com a Defenso-ria Pública, a 3ª Jornada pela Moradia Digna. O evento ocorreu nos dias 26 e 27 de fevereiro, na Pontifícia Univer-sidade Católica (PUC) no Ipiranga, na capital paulista.

Com o tema Megaprojetos e as Viola-ções do Direito à Cidade, as atividades reuniram 1,5 mil pessoas para debater e construir alternativas às comunida-des que estão ameaçadas por interven-ções urbanísticas.

“O objetivo [da Jornada] é desvelar o que está por trás desses megaproje-tos e debater com a população, princi-palmente com aqueles que estão sendo atingidos”, afi rma o integrante do Cen-tro Gaspar Garcia de Direitos Huma-nos, Luiz Kohara.

Já o integrante da Central dos Movi-mentos Populares (CMP), Benedito Ro-berto Barbosa, explica que o tema foi es-colhido em função da quantidade de des-pejos que já estão acontecendo na cida-de, justamente em áreas onde estão pro-jetadas megaobras. “Nós estamos ven-do que esses projetos, na verdade, es-tão sendo feitos para expulsar os mora-

HABITAÇÃO

Comunidades se articulam contra despejos em São Paulo

dores pobres, higienizar mais a cidade e atrair o capital imobiliário para essas re-giões”, diz.

Entre as intervenções consideradas mais problemáticas estão o Parque das Várzeas do Tietê, conhecido como par-que linear, na zona leste da cidade; o projeto Nova Luz, no centro; as opera-ções urbanas Água Espraiada e Água Branca, na zona sul e zona oeste; e a construção do Rodoanel, que atinge, entre outros locais, o bairro de Brasi-lândia, na zona norte, e o município de Mauá, na região metropolitana.

A estimativa das organizações é de que entre 70 e 80 mil famílias sejam deslocadas em São Paulo em função de obras de urbanização. Só o parque line-ar e a Operação Urbana Águas Espraia-das devem acarretar, juntas, a expulsão de 25 mil famílias.

InsegurançaDurante a Jornada, foram recorren-

tes as reclamações a respeito da fal-ta de clareza sobre as obras. Um exem-plo é o Projeto Nova Luz, que propõe a “revitalização” do centro da cidade. A presidente da Associação de Morado-res e Amigos da Santa Ifi gênia e da Luz (Amoaluz), Paula Ribas, explica que os moradores estão preocupados porque o

projeto não dá garantias sobre a perma-nência das famílias na área.

“Só há pinceladas e comentários muito abstratos e gerais sobre quem continuará na região, mas não há garantia. Nós es-tamos pedindo um cadastramento desde o ano passado, em setembro, e até agora não tivemos nenhuma resposta”, conta.

Paula argumenta que os moradores são favoráveis às melhorias no centro, mas estão insatisfeitos com o atual pla-no apresentado pela prefeitura. O pro-jeto, segundo ela, baseado em experiên-cias europeias, não leva em conta a di-versidade do bairro e seus problemas es-pecífi cos, como o alto número de pesso-as em situação de rua e dependentes quí-

micos. O principal problema, aponta, é a ausência de diálogo para ouvir as suges-tões de quem vive ou trabalha na área.

“Sabe qual é o tempo de cada mora-dor para debater um projeto na audiên-cia pública? Três minutos de fala. Co-mo a gente vai ter um diálogo democráti-co, com participação, quando o morador tem três minutos para falar? Eles [prefei-tura] estão impondo uma qualidade de vida para nós, e a gente quer participar disso”, defende.

Problema mundialO andamento dos projetos de urbaniza-

ção para a Copa do Mundo também pre-ocupa a relatora especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Mo-radia Adequada, Raquel Rolnik. Segun-do ela, a relatoria tem recebido uma sé-rie de denúncias a respeito de despejos e outras violações do direito à moradia nas cidades. “Com as obras, nós estamos pro-duzindo mais sem-teto e mais gente sem casa do que se está conseguindo, a duras penas, construir como alternativa de mo-radia adequada para as pessoas”, afi rma.

Ela afi rma que o mesmo processo es-tá acontecendo em outras cidades-sede como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Fortaleza, mas ressalta que a situação não é exclusividade do Brasil, e sim de todos os locais do mundo que recebem eventos e atraem, assim, gran-de quantidade de capitais. “Não tem me-gaprojeto sem megaoperação de despejo. Isso está atingindo milhares de pessoas em todo o mundo”, destaca.

A relatora também se diz preocupada com a falta de assistência relatada pelas famílias, que em geral recebem apenas a oferta de bolsas-aluguéis e cheques-des-pejo, o que é insufi ciente para conseguir uma moradia em local adequado. “Ti-rar as pessoas de onde elas vivem e colo-cá-las a 50 quilômetros de distância, na não cidade, é alimentar a máquina de ex-clusão territorial e as ocupações em áre-as de risco, porque é isso que vai aconte-cer”, prevê.

Raquel prometeu ainda encaminhar as conclusões da Jornada para a ONU. No entanto, ela destaca que o mais impor-tante é a organização em todos os níveis. “Se em cada uma das cidades pudermos organizar comitês e fazer uma luta nacio-nal, nós poderemos infl uenciar nesses projetos”, pontua.

Terceira Jornada pela Moradia Digna alerta para a ameaça de megaprojetos, como a Copa do Mundo de 2014

Como manifestação dessa parcialida-de, o MPF citou as manifestações do juiz estadual contra os indígenas e contra o procurador da República do caso. As ma-nifestações ocorreram em 2009 na As-sembleia Legislativa sul-mato-grossen-se. No parlamento, o juiz condenou os acampamentos indígenas e relativizou a morte das lideranças.

Inúmeras opiniões desfavoráveis aos índios em diversos jornais do estado também foram juntadas ao processo, pa-ra mostrar que um júri federal realizado em qualquer subseção judiciária do esta-do teria viés contrário aos índios.

O TRF levou em conta também que ojulgamento poderia ser infl uenciado pe-lo poder econômico e social do proprie-tário da fazenda, Jacinto Honório daSilva Filho. O fazendeiro teria negocia-do com dois índios a mudança de seusdepoimentos, no dia seguinte ao assas-sinato, inocentando os seguranças res-ponsáveis pelo crime. Honório teria,ainda, tentado comprar o depoimentode um dos fi lhos do cacique assassina-do, oferecendo-lhe bens materiais emtroca da assinatura de um termo de de-poimento já redigido.

Este foi o terceiro caso de desafora-mento interestadual do Brasil. Os doisprimeiros ocorreram no julgamento doex-deputado federal Hildebrando Pas-coal. Dois de seus júris federais foramtransferidos de Rio Branco (AC) paraBrasília.

Todos os réus já passaram quatro anos e oito meses sob pena de prisão preventiva. Mas como ainda podem recorrer da sentença,

eles deixaram o tribunal em liberdade

sob pena de prisão preventiva. Mas co-mo ainda podem recorrer da sentença, eles deixaram o tribunal em liberdade.

O procurador do Ministério Público Federal, Luiz Carlos Gonçalves, que fez parte da acusação, considerou o resul-tado como uma vitória parcial. “A vi-tória completa seria a condenação dos réus também pelos homicídios e tenta-tivas de homicídios”. Considerando as outras sentenças, o procurador obser-

“A gente fi ca sem saber. Eles foram condenados, mas não vão fi car presos. Meu pai foi morto, e oito anos depois não tem um assassino e nem o mandante”

80mil famílias podem ser deslocadas em São Paulo em função de obras

de urbanização

“Sabe qual é o tempo de cada morador para debater um projeto na audiência pública? Três minutos”

Julgamento resultou em liberdade para os réus que estavam presos

Ocupação de moradores sem-teto ao lado da Estação da Luz, centro de São Paulo

Peter Mulligan/CC

Fernando Stankuns/CC

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brasilde 3 a 9 de março de 20116

Lucro fácilProdutora do antidepressivo Lexa-

pro, sucesso de vendas nos Estados Unidos, a empresa Forest Laborato-ries acaba de comprar o laboratório Clinical Data, que desenvolveu o anti-depressivo Viibryd, a ser lançado em breve no mercado. É que a patente do Lexapro será quebrada em 2012, e a Forest precisa urgentemente de outro medicamento para manter os altos lucros da empresa – enquanto a sociedade é entupida de antidepres-sivos.

Aviões russosA novela da compra de 36 aviões de

caça para a Força Aérea Brasileira, que está sendo protelada desde 2007, e que envolve a quantia de quatro bilhões de dólares, parece ter um in-grediente novo no enredo: além dos conhecidos concorrentes na licitação – Boeing, dos Estados Unidos; Das-sault, da França; e Saab, da Suécia –, entrou na parada a Sukhoi, da Rús-sia, que oferece transferir tecnologia de produção do caça Su-35 ao Brasil. Será mesmo?

Belo MonteO juiz Ronaldo Desterro, da 9ª Va-

ra Federal de Belém, no Pará, cassou, dia 25 de fevereiro, a licença de insta-lação parcial do canteiro de obras da usina hidrelétrica de Belo Monte. O juiz considerou que o próprio Ibama, que autorizou a licença, não cumpriu as pré-condições estabelecidas para a obra. É claro que a disputa judicial terá novos lances, mas não deixa de ser uma vitória dos povos do Xingu contra a obra faraônica.

Luta explosivaBrasileiros retirados de Benghazi,

na Líbia, onde estavam trabalhando especialmente para empreiteiras de obras, disseram que a população líbia mudou rapidamente de postura: saiu de uma situação de aparente apatia para uma explosão de luta feroz con-tra o governo de Muammar Gaddafi . Foi assim que enfrentaram soldados armados, tanques de guerra e toma-ram os quartéis. O espírito revolucio-nário voltou no século 21!

Ouro negroEconomistas de todas as tendências

chegaram a uma posição de consen-so: se as rebeliões populares nos paí-ses árabes continuarem interferindo nos preços internacionais do petró-leo, e o barril, que dia 28 de fevereiro estava em 112 dólares, subir para um patamar próximo dos 150 dólares, a crise econômica na Europa e nos Estados Unidos vai aumentar a estag-nação, causar recessão e mudar o pa-norama nos países em crescimento. O petróleo ainda é o rei das crises!

Desaparecidos Apesar da pressão da direita contra

a apuração da verdade dos crimes do Estado durante a ditadura militar (1964-1985), o Ministério Público Militar, do Rio de Janeiro, decidiu investigar os casos de aproximada-mente 40 desaparecidos, cujos cor-pos não foram localizados até hoje. O entendimento do ministério é que esses casos não estão abrangidos pela Lei da Anistia e nem estão prescritos. É preciso saber o que aconteceu com essas pessoas.

Salada culturalDe acordo com o cineasta Silvio

Tendler, diretor de Utopia e barbárie e de vários fi lmes documentários de sucesso, a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, está tendo difi culdade de se entender com o setor cultural porque grupos de ativistas, alijados na mudança do governo, estão jogan-do cascas de banana no seu caminho. Ou seja, o tiroteio no setor não passa de “fogo amigo” dos que querem mais “poder” no Minc.

Equívoco danosoPrivatizada no governo FHC, a anti-

ga Companhia Vale do Rio Doce, atu-almente denominada apenas de Vale, obteve, em 2010, um lucro líquido de R$ 30 bilhões, conforme balanço divulgado agora. Se ainda fosse uma empresa estatal, somente esse lucro cobriria a maior parte do corte orça-mentário que o governo Dilma Rous-seff pretende fazer este mês, que deve afetar a educação, a ciência e outras áreas sociais.

Crime bárbaro O promotor e defensor dos direitos

humanos Sebastião Bezerra Silva, residente em Paraíso, no Tocantins, foi torturado e barbaramente assas-sino no último fi m de semana de fe-vereiro. Seu corpo foi encontrado no domingo, dia 27, e levado para o IML de Gurupi. Ele atuou em vários casos de violação dos direitos humanos, inclusive praticados por policiais mi-litares. A coordenação da Comissão Justiça e Paz do Brasil manifestou indignação.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Pedro Carranode Curitiba (PR)

ACIDENTES DE TRENS de cargas, des-carrilamentos e até denúncias de traba-lho escravo viraram rotina na vida das concessionárias que se apropriaram dos ramais ferroviários brasileiros desde a década de 1990. Naquela época, sob ges-tão do BNDES, houve a quebra do mono-pólio público. Desde então, as promes-sas de ampliação e modernização da ma-lha ferroviária não se concretizaram. As principais empresas controladoras ho-je são a Vale e a América Latina Logísti-ca (ALL). Como demonstra o especialis-ta Paulo Sidnei Ferraz, a população é re-fém de um modelo de transportes depen-dente do modal rodoviário, que respon-de ao interesse econômico do frete ro-doviário e mantém a lucratividade nas mãos de dois grupos privados nas ferro-vias. Uma alteração desse quadro passa-ria pela retomada do monopólio público. Em entrevista ao Brasil de Fato, Fer-raz, diretor do Sindicato dos Engenhei-ros do Paraná (Senge-PR), analisa que a matriz de transporte ferroviário e a na-vegação de cabotagem, no lugar do ro-doviário, seriam saídas para o tema am-biental e para a diminuição da queima de combustível.

Brasil de Fato – Quais empresas detêm o monopólio das ferrovias no Brasil e que prejuízo causam para a população?Paulo Sidnei Ferraz – Transcorridos 14 anos da desestatização das ferrovias no Brasil, temos a desativação de vários ramais, ou seja, 40% da malha arrendada aos concessionários, que isolou tradicio-nais cooperativas assim como prejudi-cou médios e pequenos produtores. Ou-tro problema sério é a falta de moderni-zação e aumento real da frota de locomo-tivas, que impede a ampliação da ofer-ta de transporte ferroviário, sendo ape-nas atendidos os clientes de maiores vo-lumes. Então temos hoje um monopó-lio privado do transporte ferroviário no país, concentrado nas mãos da América Latina Logística (ALL) e da Vale, sendo parceiros de outros monopólios ou car-téis de controladores de grãos, minérios, cimento etc.

Isso está casado com a condição da economia brasileira, que tem como um dos eixos a exportação de commodities?

O Brasil continua a ser um exportador de matérias-primas, por isso os princi-pais corredores de transportes se desti-nam aos portos. Sem nenhum compro-misso com o desenvolvimento do nosso país, as concessionárias otimizaram as frotas de vagões e locomotivas, concen-trando-se nos maiores clientes. Com isso fecharam quase todas as estações, desa-tivaram extensos ramais e isolaram tra-dicionais clientes dependentes da ferro-

via, focando só no atendimento dos fl u-xos de maior margem de lucro. Sendo uma concessão pública, os governos não deveriam permitir essa seletividade para os maiores grupos, afi nal a ferrovia é in-dutora do desenvolvimento.

O que signifi cam os acidentes constantes e as denúncias sobre a ALL? É um sinal de decadência desse modelo privado?

A situação geral dos bens das ferrovias é a decadência do sistema, só a Agên-cia Nacional de Transportes Terrestres [ANTT] não quer ver. As ações, tanto do Ministério Público Federal como da Polí-cia Federal, têm comprovado que o mo-delo de privatização implementado pe-lo BNDES, em 1996, foi um verdadeiro fi asco. Segundo dados da Confederação Nacional dos Transportes [CNT], a par-ticipação do modal ferroviário na matriz de transporte do Brasil deu marcha ré. Os fretes não baixaram [de preço] como previam os promotores da desestatiza-ção. Não houve modernização dos equi-pamentos de tração, muito pelo contrá-rio, hoje a idade da frota é maior e o pa-trimônio está em ruínas.

Esse sucateamento foi patrocinado, na década de 1990, pelo BNDES. Quais foram os prejuízos que esse processo acarretou para a economia brasileira?

A premissa do BNDES dizia que não havia recursos públicos para alavancar o sistema ferroviário, com objetivo de mu-dar a matriz de transporte do país e ba-ratear o custo dos fretes. Garantia que o setor privado tinha dinheiro para in-jetar o salto da modernização e amplia-ção da capacidade do sistema. Como esta fonte não jorrou, o banco estatal teve que aportar recursos públicos para alimentar as concessionárias, injetando bilhões em operações de aquisição de material fer-roviário de resultados pífi os. Para impe-dir o fi asco total do processo de desesta-tização, o Bndespar (carteira do BNDES acionária de várias empresas) acabou vi-rando sócio da ALL e levou ainda os fun-dos de previdência de empresas públi-cas: Funcef, Prévi, Petros, Postalis, Sa-besprevi, Forluz etc.

O modelo de modais ferroviário é uma alternativa de baixo consumo de energia e preservação do meio-ambiente, se comparado ao modelo de rodovias?

O serviço de transportes no Brasil é o responsável pela queima maior de com-bustíveis, motivo pelo qual interfere di-retamente na busca de uma nova matriz energética para o país. E a nossa matriz de transporte concentra dois terços do volume total de cargas deslocadas por rodovias, que é o modal de maior im-pacto ambiental. Para transportar ca-da tonelada de carga por mil quilôme-tros, são consumidos, por hidrovia, cin-co litros de combustíveis; por ferrovia, são dez litros; e por rodovia, 96 litros, ou seja, quase nove vezes por caminhão se comparado aos trens. Chamamos a atenção também para os custos socio-ambientais de transportes (inclui aciden-tes, poluição atmosférica e sonora, con-sumo de espaço e água). Para o transpor-te de 100 toneladas/quilômetro, por hi-drovia, o custo é de 0,23 dólar; por ferro-

via, 0,74 dólar; e por rodovia, 3,20 dóla-res. Estes números mostram a opção er-rada ao se priorizar projetos rodoviários quando existem alternativas de soluções através de modais menos impactantes. Aqui no Paraná, enquanto devíamos es-tar construindo mil quilômetros de fer-rovias e outros tantos de hidrovia, assim como estimulando a cabotagem (navega-ção realizada entre portos interiores), fa-la-se em investir mais de R$ 1 bilhão nu-ma rodovia “Interportos”. Aliás, o título escolhido para a obra parece ter saído de algum gabinete parlamentar, pois é uma afronta à inteligência: a menor distância entre os portos é uma linha quase reta pelo mar e lá a aquavia já está pronta!

E qual o papel hoje das ferrovias dentro do atual sistema de transportes?

O Anuário Estatístico do Geipot [ór-gão extinto do Ministério dos Transpor-tes] apontava, em 1994, mais de 20% das cargas deslocando-se sobre os tri-lhos. Já o boletim estatístico da Con-federação Nacional dos Transportes, de 2009, mostra que o modal ferroviá-rio ainda está patinando na ordem dos 20%. Podemos concluir então que esta-mos estagnados depois da privatização, apesar da farta propaganda institucio-nal de avanços no segmento.

O modelo de rodovias, de acordo com a sua exposição, parece estar defasado, do ponto de vista da estrutura das pontes e dos veículos que rodam hoje em dia.

Apesar do clamor e dos alertas dos es-pecialistas em transportes, continuamos priorizando as rodovias, jogando sobre essas obras veículos cada vez maiores e mais pesados. Não se respeita as condi-ções originais para as quais essas estra-das foram projetadas, para veículos mais leves e curtos. Permitir tráfego de cami-nhões de até nove eixos, com 60 tonela-das de cargas, é um imenso risco de com-prometer pontes, viadutos e a pavimen-tação. Enfi m, estamos mal de ferrovias e sobrecarregando nossas rodovias, ar-riscando, assim, num período não mui-to longínquo, um colapso no sistema de escoamento da produção brasileira. Na prática, apesar de o BNDES já ter pre-senteado as concessionárias com bi-lhões de reais, o que se sente é que cami-nhamos para o fi m da linha. Na verdade, quem cresceu foi o porte dos caminhões que já chegaram a nove eixos para suprir a falta de trens. Mesmo assim faltam ca-minhões para suprir a falta de oferta de vagões. Com essa pressão, sobe o frete rodoviário e o frete ferroviário vem a re-boque. Aí as concessionárias dos serviços ferroviários garantem margens maiores sem precisar investir em novas frotas.

Ferrovias, um caminho abandonado

TRANSPORTES Setor, que seria alternativa à dependência das rodovias no Brasil, patina nas mãos de um monopólio

Quem é?Paulo Sidnei Ferraz é engenheiro civil, dire-tor do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge-PR), especialista em transportes e aposentado da Rede Ferroviária Federal S/A (RFSSA), onde atuou por 26 anos.

“Sendo uma concessão pública, os governos não deveriam permitir essa seletividade para os maiores grupos”

“Não houve modernização dos equipamentos de tração, muito pelo contrário, hoje a idade da frota é maior e o patrimônio está em ruínas”

“Nossa matriz de transporte concentra dois terços do volume total de cargas deslocadas por rodovias, que é o modal de maior impacto ambiental”

“Na prática, apesar de o BNDES já ter presenteado as concessionárias com bilhões de reais, o que se sente é que caminhamos para o fi m da linha”

Desestatização: idade da frota fi cou maior e patrimônio foi transformado em ruínas

Patrícia Oliveira/CC

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Lygia Prestes

LEOCADIA FELIZARDO Prestes nasceu no dia 11 de maio de 1874 em Porto Ale-gre (RS). Filha de família de posses, edu-cada segundo os moldes tradicionais da época, Leocadia falava vários idiomas, era pianista, estudou pintura, canto, de-clamação. No entanto, ela gostaria de ser útil à sociedade e, ainda adolescente, ma-nifestou o desejo de ser professora públi-ca, o que não pôde ser concretizado devi-do aos preconceitos da época. A política e os problemas sociais muito lhe interes-savam, sendo leitora apaixonada dos jor-nais da Corte, fato inusitado entre as jo-vens do seu tempo.

Em 1896, casou-se com o capitão An-tônio Pereira Prestes, engenheiro mili-tar, ex-aluno de Benjamim Constant na Escola Militar do Rio de Janeiro, que ha-via participado, ainda cadete, da procla-mação da República. Homem de vasta cultura, muito contribuiu para que Leo-cadia ampliasse seus conhecimentos, de-senvolvesse o interesse pela política e pe-las questões sociais.

A morte prematura do marido deixou-a em situação muito precária. Na época, a pensão de viúva de capitão do Exérci-to não era sufi ciente para o sustento dos fi lhos. Deu aulas de idiomas e de músi-ca, trabalhou de modista, foi balconista e costurou para o Arsenal de Marinha. Fi-nalmente, em 1915, conseguiu ser nome-ada professora da Escola Pública, cargo que exerceu até 1930. Trabalhava à noi-te, nos cursos destinados a comerciárias, operárias e domésticas. Pela primeira vez em sua vida, Leocadia pôde ter contato com as camadas mais pobres da socieda-de e isso aguçou sua revolta contra as in-justiças sociais.

Na educação dos fi lhos, sua grande preocupação foi sempre a de incutir-lhes o amor ao trabalho e o sentimento do de-ver cívico. Procurou mostrar-lhes os as-pectos negativos da vida, ensinando-os a enfrentar com altivez a violência e as ar-bitrariedades dos poderosos e a jamais se curvar ante as injustiças.

A árdua luta pela sobrevivência não fez diminuir seu interesse pelo que ocorria

Em 1931, Luiz Carlos Prestes é convi-dado pelo governo soviético para traba-lhar como engenheiro na URSS. Sua fa-mília não vacilaria em acompanhá-lo. Às pessoas que se surpreendiam com tal decisão, Leocadia dizia: “se meu fi lho seguiu este caminho, este é o caminho certo”. Contudo, seu primeiro contato com a sociedade socialista não seria fá-cil. Arrasada por duas guerras, a União Soviética atravessava enormes difi cul-dades. Faltava tudo. Para uma senhora de origem burguesa, a realidade sovié-tica suscitava muitas dúvidas. Seu espí-rito de justiça ajudou-a, porém, a supe-rar as incompreensões iniciais. Pouco a pouco, o entusiasmo do povo soviético a contagiaria. Aos 60 anos de idade, Leo-cadia aderia, conscientemente, às ideias marxistas.

Em 1934, Luiz Carlos Prestes era aceito no Partido Comunista. No fi nal do ano, ele partiria para o Brasil, para a luta clan-destina contra a ameaça fascista. Inicia-va-se, então, para Leocadia, um período de grandes provações. Se, por um lado, ela apoiava integralmente o caminho se-guido pelo fi lho, por outro, só a ideia de perdê-lo a fazia sofrer intensamente. Le-ocadia sabia que se o fi lho fosse preso, provavelmente seria morto.

Defesa dos presos políticosEm 5 de março de 1936, Luiz Carlos

Prestes era preso no Rio de Janeiro, junto com sua companheira Olga Be-nário. Graças à coragem de Olga, que o protegeu com seu corpo, não conse-guiram matá-lo no ato da prisão. Mas sua vida corria perigo iminente. Leoca-dia aceita encabeçar campanha inter-nacional em defesa da vida de Prestes e de todos os presos políticos no Brasil. Era sua primeira missão política. Ta-refa difícil para uma senhora que ha-via sido, até então, apenas mãe de fa-

Em 1930, os “tenentes”, antigos com-panheiros de Prestes, em sua grandemaioria, aderiram ao movimento arma-do que conduziu Getúlio Vargas ao po-der. O Cavaleiro da Esperança, convida-do, recusou-se a participar, consideran-do que se tratava de uma luta entre gru-pos oligárquicos, que não traria soluçãopara os graves problemas do país. LuizCarlos Prestes, em maio daquele ano,lançava manifesto pregando uma revolu-ção popular, agrária e anti-imperialista,conforme a orientação do Partido Comu-nista. A repercussão desse documento naimprensa brasileira e junto à opinião pú-blica seria de total repúdio às suas ideias“subversivas”.

A grande maioria dos admiradores do Cavaleiro da Esperança abandonaria a ca-sa de Leocadia Prestes. Em público, vira-vam-lhe as costas. Ela reagia com altivez, reiterando a sua solidariedade ao fi lho. Meses mais tarde, convencida de que ele não poderia retornar ao Brasil tão cedo, licenciou-se do emprego, liquidou a casa e, acompanhada das quatro fi lhas, partiu para a Argentina, para fi car ao lado do fi -lho. Iniciava-se, então, um longo exílio do qual Leocadia jamais retornaria.

Em Buenos Aires, onde a família se es-tabeleceu, a vida seria extremamente di-fícil. Com a crise dos anos de 1930, tor-nara-se impossível conseguir trabalho.Poucos dias após a chegada da família, Prestes foi preso e obrigado a asilar-seem Montevidéu. Com isso, perdeu o em-prego. Leocadia permaneceu em BuenosAires, com as fi lhas, lutando para sobre-viverem. Nesse período, ela e as fi lhas se aproximam das ideias socialistas. (LP)

mília e professora de subúrbio. Acom-panhada da fi lha Lygia, ainda em mar-ço de 1936, partiria de Moscou, dando início à campanha.

Eram comícios, conferências de im-prensa, visitas a jornais e sindicatos, a partidos políticos, parlamentos ou a chefes de governos. Viagens frequentes e demoradas. Um trabalho extenuante para uma pessoa de sua idade. Com a fi lha, Leocadia percorreu os principais países europeus, denunciando o ter-ror desencadeado no Brasil, o perigo de morte para os presos políticos, pedindo solidariedade e apoio para sua luta. Em pouco tempo, a campanha se estendeu a outros continentes. Comitês de defe-

Leocadia Prestes, a mãe coragemHOMENAGEM Para o Dia Internacional da Mulher, trazemos o exemplo desta mulher que, aos 60 anos de idade, aderiu, conscientemente, às ideias marxistas

Solidariedade incondicional ao fi lhoA grande maioria dos admiradores do Cavaleiro da Esperança abandonaria a casa de Leocadia Prestes

Ante a iminência da guerra, Leocadiavê-se forçada a deixar a Europa. Com a fi lha e a neta, parte para o México, cujo presidente concedera-lhes asilo. No Mé-xico, a campanha prosseguiria, já então limitada às Américas, pois o resto do mundo estava confl agrado pela guerra, situação que levaria Leocadia a perder ocontato com Olga e com as outras fi lhas que haviam fi cado em Moscou. Além da sorte do fi lho, na prisão, a preocupava a situação dos seus outros entes que-ridos, ameaçados pelas bombas nazis-tas. Mas a coragem e a fé na vitória fi -nal não a abandonariam jamais. Quan-do as hordas nazistas avançavam pe-la União Soviética, ela costumava dizer aos amigos: “Vocês não conhecem aque-le povo! Quem passou tantas privações e sofrimentos para construir o socialis-mo em seu país não vai fraquejar agora.Eles são invencíveis!”

Leocadia Prestes não teve a alegria de assistir à vitória fi nal dos povos sobre o nazismo nem à libertação dos presos políticos, no Brasil, em 1945. Após lon-ga enfermidade, veio a falecer no Méxi-co, no dia 14 de junho de 1943. Sua mor-te comoveu o povo mexicano, que a ad-mirava muito. Ao velório e ao enterro compareceram milhares de pessoas, in-clusive numerosos estrangeiros, fugidosdo nazismo e também asilados no Méxi-co. À beira do seu túmulo, Pablo Neru-da leu o poema “Dura elegia”, escrito es-pecialmente para aquele momento, noqual ele defi niria a importância da vi-da de Leocadia Prestes com as palavras:“Señora, hiciste grande, más grande, a nuestra América.” (Resumo deste texto: Anita Leocadia Prestes) (LP)

Adesão consciente às ideias marxistasIniciava-se, então, para Leocadia, um período de grandes provações

Enfermidade e morte no MéxicoLeocadia Prestes não teve a alegria de assistir à vitória fi nal dos povos sobre o nazismo

na sociedade e no mundo. Mesmo nos momentos mais difíceis, em sua casa po-dia faltar pão, mas nunca faltou pelo me-nos um jornal diário, para acompanhar os acontecimentos políticos, que discutia e comentava com os fi lhos.

Incentivo à lutaEm 1922, quando seu fi lho Luiz Car-

los Prestes, já ofi cial do Exército, come-ça a participar da preparação do primei-ro levante tenentista, ela lhe daria todo o apoio, incentivando-o a continuar a luta após a derrota do movimento.

Em outubro de 1924, com o levante de Santo Ângelo (RS), liderado por Luiz Carlos Prestes, tinha início a grande mar-

cha através do Brasil que duraria até fe-vereiro de 1927. Foram anos muito duros para as famílias dos participantes da Co-luna Prestes. As únicas notícias que re-cebiam eram as fornecidas pelo gover-no, sempre as piores possíveis: a Colu-na teria sido dizimada, seus chefes exter-minados. Mais de uma vez os jornais do Rio abriram manchetes sensacionalistas anunciando a morte de Prestes e de seus companheiros. Leocadia, mesmo saben-do que a vida de Prestes corria perigo, nunca perdeu a coragem e a confi ança no fi lho. Jamais alguém a viu chorar. Sua fi rmeza impressionava a todos que a co-nheciam. Em pouco tempo, sua casa tor-nou-se a Meca das famílias dos demais revolucionários, que a procuravam em busca de alento e consolo.

No início de 1927, com a suspensão da censura à imprensa, os feitos heroicos da Coluna tornaram-se conhecidos da opi-nião pública, comovendo o país. Luiz Carlos Prestes passou a ser considerado herói nacional – o Cavaleiro da Esperan-ça – e Leocadia Prestes a Mãe de todos os brasileiros. Sua modesta casa de subúr-bio fervilhava de amigos, admiradores e políticos de todos os matizes.

sa de Prestes foram criados nos Estados Unidos, na América Latina, na Austrá-lia e na Nova Zelândia. Do mundo intei-ro, o governo brasileiro era bombardea-do com milhares de cartas, telegramas de protesto, manifestos de toda a sor-te, exigindo a libertação de Prestes e de seus companheiros ou, ao menos, o res-peito às suas vidas.

Em fi ns de 1936, com a extradição de Olga Benário para a Alemanha nazista, a campanha se duplica. Surge um movi-mento paralelo, destinado a salvar a vida de Olga e do bebê que estava para nascer. Leocadia e sua fi lha vão a Genebra pe-dir a ajuda da Sociedade das Nações e da Cruz Vermelha Internacional. Graças às gestões, foi possível receber, já em 1937, algumas notícias de Olga e de Anita Leo-cadia, nascida na prisão em Berlim. Três vezes Leocadia Prestes foi com sua fi lha à Alemanha, enfrentar a Gestapo e exi-gir a libertação de Olga e da criança. De-legações de vários países também foram a Berlim com o mesmo objetivo. Malgra-do todos os esforços, não foi possível sal-var Olga. Apenas a libertação da pequena Anita Leocadia. Olga seria enviada a um campo de concentração e assassinada em abril de 1942. (LP)

Leocadia aceita encabeçar campanha internacional em defesa da vida de Prestes e de todos os presos políticos no Brasil

Sua casa tornou-se a Meca das famílias dos demais revolucionários, que a procuravam em busca de alento e consolo

A grande maioria dos admiradores do Cavaleiro da Esperança abandonaria a

casa de Leocadia Prestes

Leocadia Felizardo Prestes: coragem e confi ança

Família sempre acompanhou Prestes

Reprodução

Reprodução

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culturade 3 a 9 de março de 20118

Michelle Amaralda Redação

PEDRO LOBO nasceu em Natividade da Serra, interior de São Paulo, em 1931. Quando tinha 18 anos, decidiu tentar chegar ao Mato Grosso, mas acabou se instalando na capital paulista, onde tra-balhou como servente de pedreiro e tor-neiro mecânico até 1955, ano em que in-gressou na Polícia Militar. Dentro do quartel, o ex-pedreiro aproximou-se das ideias marxistas e fi liou-se ao Partido Co-munista Brasileiro e, em 1964, foi expul-so da corporação por meio do Ato Insti-tucional I.

Na década de 1960, Lobo participou de expropriações a bancos, ações políti-cas na capital paulista que visavam de-sestabilizar o governo civil-militar e foi um dos fundadores da Vanguarda Popu-lar Revolucionária (VPR).

Em 1970, Lobo, ao lado de outros com-panheiros, foi banido do país. O mili-tante passou pela Argélia, Cuba, Chi-le e Argentina até se instalar na Alema-nha Oriental. Em 1980, benefi ciado pela Anistia, ele retornou ao Brasil. E, no dia seguinte à sua chegada ao país, decidiu se apresentar ao Departamento Pessoal da Força Pública e, para sua surpresa, foi reintegrado, 16 anos após ter sido expul-so da corporação.

Narrando as aventuras e desventuras de um militar que se torna guerrilheiro e, depois da ditadura civil-militar, volta a ser militar, o jornalista João Roberto La-que retrata em Pedro e os lobos os anos de chumbo da história brasileira.

O livro, lançado pela editora Ava Edi-torial, é resultado de sete anos de traba-lho. Entre depoimentos e pesquisas no Arquivo Público do Estado de São Pau-lo, onde existem documentos do De-partamento de Ordem e Política Social (Dops), e no Arquivo Edgard Leuenroth, em Campinas, onde está o arquivo do Su-premo Tribunal Militar, o autor constrói de forma detalhada o período.

Em entrevista ao Brasil de Fato, La-que fala sobre o livro, a personagem e seu envolvimento com ambos.

Brasil de Fato – Como surgiu a ideia de contar a história da ditadura através da vida de Pedro Lobo? Como foi a escolha da personagem?João Roberto Laque – Eu fui criado durante a ditadura, tenho 52 anos. Era muito novo e, por causa da ditadura, a gente não sabia nada do período. Quan-do entrei na universidade, me politizei. Em 1982, muito por acaso, encontrei o Pedro Lobo no escritório do [advogado] Eduardo Greenghalgh e do Hélio Flávio, no antigo prédio em que o PT foi funda-do. Ele me contou em meia hora sua his-tória da vida e eu achei fantástica. Fa-lei: “Nossa! A história desse cara dá um livro”. Um cara que é sargento da For-ça Pública, vai para a guerrilha, é bani-do do Brasil e depois volta reintegrado à Força Pública de novo, como se nada ti-vesse acontecido. Ele está vivo, tem 80 anos hoje. A história dele me fascinou. Eu já era fascinado pela luta armada e encontrei o Pedro, que é um persona-gem único na história. Propus a ele o li-vro e ele não topou. Ele falou: “Não, ou-tros companheiros já escreveram, deixa para lá”. Só 12 anos depois fui reencon-trá-lo, ainda com a história quente na cabeça, e ele topou contar sua vida para eu escrever o livro.

O Pedro Lobo optou pela resistência à ditadura, pela luta armada. O que você acredita que o motivou a seguir por esse caminho?

O Pedro, você vê no começo do li-vro, passa por uma série de situações: vem de uma família paupérrima. Aos 18 anos, quase vira escravo em uma planta-ção de banana e vem para São Paulo tra-balhar de servente de pedreiro. No de-correr da vida, vai vendo todas as con-tradições existentes entre quem tem o dinheiro e quem precisa viver da misé-ria dos salários da época. E é o contexto da guerra fria repercutindo aqui no Bra-

sil. Então, logo o Pedro se torna um co-munista. Ele vai sendo politizado den-tro do quartel. O Partido Comunista ti-nha um trabalho muito forte de politiza-ção dentro dos quartéis. Então, o Pedro acaba sendo convertido ao comunismo dentro do quartel da Força Pública. E aí ele vai trabalhar com o Prestes e se tor-na um comunista de carteirinha. Só por volta de 1964 é que ele é expulso da polí-cia, exonerado sem direito nenhum pelo AI 1, e não vê outra saída. A saída é ir pa-ra o pau mesmo. Não tinham outras sa-ídas, os amigos dele sendo presos e tor-turados, estavam morrendo. Ir para a luta armada era o norte que ele tinha.

Quanto tempo durou o trabalho de produção do livro?

O livro começou como uma biogra-fi a, mas hoje não é mais. Hoje é um livro histórico que conta o período, a partir da ótica da guerrilha. Por cerca de três anos entrevistei o Pedro, fi z quinze en-trevistas com ele, que mora em São Jo-sé. Quando fechei o texto todo, vi que se-ria só mais uma biografi a do Pedro Lo-bo. E, como tinha dado aula e os alunos de segundo grau tinham muita carência de informação sobre o período, resolvi usar a biografi a que tinha como um fi o condutor para contar a história, que ain-da está sendo escrita e é uma coisa que ainda está quente, está fervilhando nas mãos de quem trabalha com ela. Nos dias atuais, temos ex-guerrilheiros apa-recendo, ex-guerrilheira na presidência, tem ex-guerrilheiro contando agora a sua história, os cadáveres não foram en-contrados ainda. Então, é uma história que ferve. Você vai escrevendo e, na me-dida em que escreve, tem que ir reescre-vendo, porque vão surgindo novidades, vão surgindo revelações novas.

Como foi o trabalho de reunião dos dados para compor o livro?

Pois é, complicado. Na primeira fase, quando o livro seria só a biografi a do Pe-dro, foi de entrevistas só com ele. Depois, seguidas entrevistas com companheiros dele. Alguns não falam, tive a maior di-fi culdade, viajei para o Rio Grande do

Sul para entrevistar um ex-companhei-ro que não falou. Um deles, que mora em Curitiba, mudou de telefone para não fa-lar comigo. Tem um outro grande com-panheiro do Pedro, aqui em São Pau-lo, que não quis falar. São pessoas que trazem uma grande mágoa, uma mar-ca muito profunda da tortura e do perío-do, e não falam. Mas encontrei os que fa-lavam, aí fui levantando histórias orais, que não haviam [sido registradas], por-que o livro traz histórias de operações fracassadas que a historiografi a ofi cial não aborda. Então, esse molho [de infor-mações] tive que arrancar das pessoas que se dispuseram a falar. Contei com a muita boa vontade do ex-sargento Darci Rodrigues, companheiro do [Carlos] La-marca, do José Nóbrega e de outros, co-mo a Dulce Maia e outros companheiros do Pedro. Fiz pesquisa no arquivo do Es-tado, que tem muita coisa no arquivo do Dops, o inquérito do Pedro e tudo. E de-pois fi z mais pesquisa em Campinas, no [Centro de Pesquisa] Edgard Leuenroth, no arquivo do Supremo Tribunal Militar. E fui para o Rio [de Janeiro], para Be-lo Horizonte e Brasília. Foi um trabalho que durou sete anos no total.

O livro traz uma riqueza de detalhes das ações, isso foi obtido através dos depoimentos?

Não. Uma parte apurei nos jornais do Arquivo do Estado. Lá eles digitalizaram o [jornal] Última Hora do Rio de Janei-ro, tem todo o acervo. Passei meses re-virando os jornais da hemeroteca do Ar-quivo do Estado para pegar os detalhes das ações e lendo os inquéritos. Li mui-tos inquéritos, alguns de cinco mil, três mil páginas. E biografi as, também li mais de 60 livros.

No que diz respeito à revelação dos crimes do Estado que aconteceram na ditadura, como você acha que o livro pode contribuir com a memória desse período?

O livro é escrito em uma linguagem jornalística e meio estudantil. O público-alvo é uma molecada na faixa dos 30, es-se pessoal que não viveu esse período ou que, como eu, fi cou nas trevas do perío-do, sob a censura que eu cresci, não po-dendo falar. Acho que essa moçada tem muita carência. Tanto que agora na cam-panha da Dilma aconteceu uma coisa in-teressante. Na posse, ela convidou ex-companheiros de cadeia e vi vários co-mentários de jovens dizendo que “se os caras foram presos é porque têm culpa”. Ou “por que ela está convidando ex-pre-sidiários para participar da posse?”. “Se os caras foram presos é porque fi zeram alguma coisa”. Aí você vê o grau de infor-mação da juventude brasileira sobre es-se período. E fi zeram uma campanha in-cendiosa contra a Dilma, vinculando-a à guerrilha como se ela fosse assassina. Di-vulgaram na internet denúncias de que ela tinha assaltado bancos e participado de ações que ela não participou, que na verdade foi o Pedro e os companheiros dele que fi zeram. Então, acho que o livro vem para ajudar a esclarecer essa falta de memória mesmo. Acho que faltava um li-vro com linguagem acessível para tratar desse assunto.

Em países da América Latina, como Argentina e Chile, os torturadores têm sido levados ao banco dos réus e condenados. Nesse cenário, como você avalia a conduta do Brasil em relação a seus torturadores?

É péssima, porque o Estado não pode anistiar a si mesmo. Quer dizer, os mili-tares não podiam se autoanistiar. Anis-tia pressupõe perdão, você só pode per-doar um outro, não se autoperdoar. E co-mo o Pedro mesmo diz, eles [os militan-tes] não torturaram ninguém, tudo que fi zeram foi assumido depois, ou na tor-tura ou de outra forma. E a cara deles es-tá aí, dizem quem são, e foram anistia-dos. Agora, os torturadores não mostra-ram a cara, a gente não sabe quem fo-ram. A tortura é um crime de lesa-huma-nidade, é um crime de guerra cruel. Vo-cê não pode, com a desculpa de que vo-cê precisa passar um pano na história, deixar de condenar pessoas que come-teram crimes universais, crimes atrozes. E o Estado não tem o direito de ele mes-mo se anistiar, isso é uma questão jurídi-ca complicada.

Recentemente o Brasil foi condenado na Corte da OEA pelo desaparecimento de guerrilheiros do Araguaia. No entanto, o ministro Nelson Jobim disse que a decisão não afeta o Brasil. Tal postura representa um atraso do Brasil na busca pela justiça e memória?

Claro. Eu acho que isso é ser conivente com crime de lesa-humanidade. O Bra-sil está sendo conivente com uma “meiadúzia”, uma minoria, que barbarizou,que torturou em nome da lei, em nomedo Estado, em nome da ordem, mas aserviço de uma ditadura. Torturou, bar-barizou quem estava contra a ditadura, os inimigos não eram os guerrilheiros. Oinimigo era o Estado militar que tomou o poder, derrubou um presidente legiti-mamente eleito e não elegeu outro. Che-gou ao poder e fi cou no poder. Esse era o inimigo da pátria. E esse inimigo dapátria se autoanistiou, quer dizer, esseé um negócio que, para mim, não tem amenor lógica.

Pedro e os lobos: militar, guerrilheiro, militarENTREVISTA Livro conta a trajetória de um guerrilheiro urbano contra o regime militar

<QUEM É>João Roberto Laque é jornalista e historiador. Formou-se pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).

“Então, logo o Pedro se torna um comunista. Ele vai sendo politizado dentro do quartel”

“Nos dias atuais, temos ex-guerrilheiros aparecendo, ex-guerrilheira na presidência, tem ex-guerrilheiro contando agora a sua história”

“São pessoas que trazem uma grande mágoa, uma marca muito profunda da tortura e do período, e não falam”

“‘Se os caras foram presos é porque fi zeram alguma coisa’. Aí você vê o

grau de informação da juventude brasileira sobre esse período”

O militar que, por um ideal, transformou-se em guerrilheiro

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Renato Godoy de Toledoda Redação

O PRESIDENTE da Líbia, Muamar Ka-dafi , vive seus dias de Muhammed Al- Sahaf, ex-ministro da Informação do re-gime de Saddam Hussein no Iraque. En-quanto as tropas dos EUA invadiam o país e esmagavam as forças pró-Hus-sein em 2003, Sahat convocava diaria-mente a imprensa para informá-la acer-ca da iminente vitória militar do exérci-to iraquiano.

Kadafi parece querer repetir o fi m tra-gicômico de Sahat – que depois tornou-se um informante dos EUA. No poder desde 1969, o clã dos Kadafi parece ser o único reduto líbio a acreditar na con-tinuidade do governo. Até o fechamen-to desta edição, o presidente permane-cia em seu posto, mas com todo o país controlado pelas forças de oposição, tendo apenas a capital Trípoli sob seu comando.

Ao contrário do que ocorreu nos recen-tes levantes egípcios e tunisianos, o go-verno dos EUA prontamente demons-trou sua solidariedade à oposição líbia. Isso porque Kadafi , apesar de seu regime violento e corrupto, tem posições histori-camente ligadas ao anti-imperialismo e à causa palestina na região.

Oriundo de uma tribo de beduínos nô-mades, o atual presidente teve sua lide-rança forjada na luta contra o rei Idris, que impunha um regime monárquico ba-seado na miséria da população e na re-pressão aos movimentos sociais.

Com a chegada de Kadafi ao poder, a Líbia nacionalizou o petróleo, empre-sas estrangeiras e setores estratégicos da produção. As medidas passaram surtir efeito, melhorando o nível de vida da po-pulação líbia, que passou a apoiar massi-vamente o novo governante.

No plano internacional, a Líbia inte-grou-se ao grupo dos países não alinha-dos. Kadafi passou a centralizar o poder em sua fi gura e criou um modelo de so-cialismo baseado em suas teorias elenca-das no Livro verde, cor que tomou toda a bandeira do país após a revolução.

O professor de geopolítica da Funda-ção Santo André, Marcelo Buzetto, ana-lisa o modelo político defendido por Ka-

O controverso Muamar Kadafi LÍBIA Com posições anti-imperialistas importantes no século 20, presidente tem fi m de carreira marcado por corrupção e personalismo

dafi no contexto do “nasserismo”, ideá-rio inspirado na atuação do líder egípcio Gamal Abdel Nasser fundador de uma doutrina nacionalista árabe chamada de pan-arabismo.

“A Líbia fez um verdadeiro esforço pa-ra construir um modelo próprio de socia-lismo africano, combinando algumas ini-ciativas com conteúdo e caráter demo-crático, popular e anti-imperialista, com ideias e princípios do nacionalismo árabe laico, principalmente do chamado ‘nas-serismo’. Houve um esforço em construir uma estrutura de poder popular, através da participação ativa e organizada das massas nos comitês revolucionários e em vários outros organismos de poder nas-cidos de uma tentativa de auto-organiza-ção do povo”, analisa Buzetto.

No entanto, o analista afi rma que o processo não está mais em curso. “Creio que hoje temos a demonstração de que tal processo que despertou curiosidade e interesse pelas potencialidades e no-vidades que apresentava não está mais em desenvolvimento na Líbia”. Buzet-to comenta que o conceito de jamahi-

riya (“Estado das massas”), criado por Kadafi , hoje é mais “um instrumento de propaganda e agitação do que uma rea-lidade concreta”.

Enfrentamento aos EUA Ao engrossar o grupo dos países não

alinhados, Kadafi tornou-se um expoen-te antiEUA no mundo. O auge desse en-frentamento deu-se nos anos 1980. Em 1986, os EUA realizaram um ataque aé-reo a Trípoli e Benghazi, deixando 41 mortos, entre os quais uma fi lha adotiva de Kadafi . Dois anos depois, em 1988, o governo líbio participou de um atentado contra um avião da companhia estado-unidense Pan Am, na Escócia, vitiman-do 270 pessoas.

Começaram as sanções internacionais ao país africano, que passou a fi car mais isolado e apresentar recuos na política externa anti-imperialista.

“Inicialmente, Kadafi proclamava-se solidário à causa palestina, depois des-te atentado, começou a normalizar as re-lações com o ocidente. Foi um processo parecido com o do Egito, mas lá houve troca de dirigentes, enquanto na Líbia, manteve-se o mesmo. Houve uma aber-tura econômica e política que culminou no reconhecimento do Estado de Isra-el. O governo foi tornando-se uma espé-cie de ditadura familiar com um grau ele-vado de corrupção e apropriação privada da renda nacional. Assim, deu-se início a uma redistribuição regressiva da ren-

listas e de libertação nacional em to-do o mundo. Novas contradições de-senvolvem-se, e muitos partidos e go-vernos que, na África, sempre se iden-tifi caram com o socialismo, ou ini-ciam ou intensifi cam um processo de decadência, degeneração, cooptação e abandono/distanciamento de seus princípios originários, tornando-se ca-da vez mais pragmáticos, fazendo enor-mes concessões do ponto de vista teóri-co, político e estratégico. Essa nova si-tuação internacional afeta diretamente o continente africano, espaço privile-giado de atuação de Kadafi ”, aponta.

O presidente líbio protagonizou di-

versos momentos de divergência com a política adotada por Yasser Arafat, che-gando até a romper com a Autoridade Nacional Palestina em 1994, em fun-ção das discordâncias relacionadas aos acordos com Israel. A Líbia suspende a permissão de trabalho de vários pales-tinos em seu território. “A derrota do povo palestino nas negociações gerou mais divisão no interior da resistência palestina e do próprio mundo árabe, com governos que se declaravam con-tra Israel fi rmando acordos com este país, seguindo o caminho da direção da OLP, controlada majoritariamente pela Fatah [partido de Arafat]”, diz.

Loucura?A imprensa internacional tem quali-

fi cado Kadafi como um líder decaden-te com mania de grandeza e hábitos ex-cêntricos. Algumas de suas atitudes, co-mo andar cercado de seguranças femi-ninas e de enfermeiras ucranianas, são apontadas como evidência de uma men-te insana.

De acordo com Marcelo Buzetto, es-se tipo de análise recorrente serve ape-nas para rebaixar o debate sobre o quede fato vem ocorrendo na Líbia e nospaíses árabes em efervescência. “Kada-fi vem cometendo inúmeros erros e in-justiças, mas isso não se deve à loucura.Essa tentativa de desqualifi car os adver-sários e inimigos é comum entre a gran-de mídia pró-imperialista e pró-sionis-ta. A questão é política. Os psicólogos epsiquiatras podem até fazer a análise deseu comportamento, pois ele não é tãocomum e previsível como muitos líde-res de países ocidentais, mas o que fazme parece que é fruto de uma refl exãopolítica, de princípios e ideias muitobem elaboradas, que o mantiveram nogoverno e controlando parte signifi ca-tiva do poder na Líbia por 41 anos. Po-demos concordar ou não com ele, masqualifi cá-lo como louco é rebaixar o ní-vel do debate, desqualifi car o debate eafastar a possibilidade de uma análisecrítica do processo e do próprio Kada-fi ”, avalia. (RGT)

País exerceu papel de dirigente do mundo árabeKadafi protagonizou momentos de discordância com Arafat

da, com uma pequena camada dirigen-te sendo benefi ciada. Com o impacto da crise mundial, agora, o desmprego atin-giu a 30% no país”, aponta o historiador da USP, Oswaldo Coggiola.

Mesmo no setor mais rentável da Lí-bia, o petrolífero, foram feitas conces-sões a transnacionais no último perío-do. A gigante British Petroleum opera no país e tem boas relações com o gover-no Kadafi .

O governo líbio diminui o tom das suas críticas ao ocidente e, na ONU, assumiu a culpa pelo atentado contra o avião da Pan Am, pedindo desculpas. Em 2009, em um ato simbólico, Kadafi cumpri-mentou o presidente dos EUA Barack Obama na sede da ONU. Mesmo assim, a ONU afi rma que pretende julgar Kada-fi no Tribunal Penal Internacional após o desfecho ainda incerto dos acontecimen-tos na Líbia.

Vitória imperialistaPara o historiador Oswaldo Coggiola, o

desfecho para o levante líbio ainda é ne-buloso. Porém fi ca claro que o imperia-lismo e os EUA tendem a lucrar com a situação no país. “Dizer que a derruba-da de Kadafi vai benefi ciar os EUA na re-gião não signifi ca defender o regime do ditador. Infelizmente, setores da esquer-da mundial e brasileira têm defendido Kadafi . Defender alguém que usa armas de guerra contra sua própria população é um crime”, afi rma.

“Podemos concordar ou não com ele, mas qualifi cá-lo como louco é rebaixar o nível do debate”

Com a chegada de Kadafi ao poder, a Líbia nacionalizou o petróleo, empresas estrangeiras e setores estratégicos da produção

“Dizer que a derrubada de Kadafi vai benefi ciar os EUA na região não signifi ca

defender o regime do ditador”

da Redação

Desde que tomou o poder em 1969, o presidente líbio Muamar Kadafi teve um papel preponderante na organiza-ção dos países não alinhados, da Áfri-ca e do chamado Terceiro Mundo. Até meados dos anos 1980, a Líbia fi nan-ciava e apoiava logisticamente movi-mentos de libertação nacional em paí-ses dominados por ditaduras ou pelo imperialismo.

Kadafi desenvolveu uma relação es-treita com o bloco socialista. A ruína deste, aliás, fez com que o dirigente lí-bio passasse a buscar um reposiciona-mento na geopolítica internacional, se-gundo a análise do professor de geopo-

lítica da Fundação Santo André, Mar-celo Buzetto. “A impressão que temos é que desde os anos 1990 o governo lí-bio vem procurando se adaptar à nova situação geopolítica internacional, pois o fi m da URSS e do Bloco Socialista en-fraquece os movimentos anti-imperia-

A imprensa internacional tem qualifi cado Kadafi como um líder decadente com mania de grandeza e hábitos excêntricos

O presidente líbio Muamar Kadafi

O líder palestino Yasser Arafat, morto em 2004

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áfricade 3 a 9 de março de 201110

Achille Lollo

PARA TORNAR mais verdadeiros os com-bates na capital da Líbia, Trípoli, e mais sanguinária a repressão dos soldados fi eis a Kadafi , no dia 20 de fevereiro, as tele-visões árabes Al Arabiya e Al Jazeera vei-cularam ao mundo inteiro duas informa-ções: as valas comuns na praia de Trípoli e os bombardeios aéreos sobre as casas do bairro de Falashoun. Desta forma, no dia 23, todos os governos ocidentais conde-naram o regime do presidente Kadafi , exi-gindo o fi m dos combates e a entrega dos poderes aos comitês de insurretos de Ben-ghazi e Trípoli.

No dia 25, os teóricos dos “falcões do Pentágono”, Robert Kagan e, sobretudo, Paul Wolfowitz, sugeriram ao presidente Barack Obama que os EUA deviam apro-veitar este clima de insegurança para promover com a Otan uma intervenção militar na Líbia, para impor uma zona de exclusão aérea (no-fl y zone) no país, co-mo aconteceu no norte e no sul do Ira-que, para evitar que a aviação de Kadafi atacasse os insurgentes, inclusive com as armas químicas.

Assim, enquanto a Força Aérea dos EUA garante o no-fl y zone, as tropas da Otan deveriam realizar uma missão de ajuda humanitária em Benghazi e nos “territórios libertados”. Isso tudo, segun-do Wolfowitz, vai permitir aos EUA rede-fi nir a geopolítica na região do Magreb e, consequentemente, recolocar o Mar Me-diterrâneo no epicentro de sua geoestra-tégia, que, depois da queda de Mubarak, no Egito, e de Ben Ali, na Tunísia, preci-sa, urgentemente, ser reformulada. O úni-co problema para Obama, salienta Wolfo-witz, é obter o voto de confi ança para a in-tervenção por parte da maioria dos parla-mentares do Partido Democrata.

Por isso, no dia 26, Barack Obama op-tou por uma solução política, assinando, primeiro, o decreto com sanções unilate-rais contra a Líbia e, depois, na presença dos aliados da Otan, declarou que “Kada-fi deve ir embora, agora sua legitimidade está a zero”.

Neste clima, a agencia estadunidense AP e a britânica BBC – sem citar as fontes – continuam enviando ao ar notícias que falam de inúmeros combates com os in-surgentes que estariam derrotando as tro-pas fi éis ao presidente Kadafi , em Misura-ta e em Zawiyah, que está a apenas 50 qui-lômetros da capital.

Negociação com o novo governoprovisório ou guerra civil na Líbia?ANÁLISE Oposição tenta garantir comando do país, enquanto receitas de petróleo e gás alimentam movimentos separatistas

A diferença entre Tunísia e Egito, onde a revolta partiu dos operários e dos jovens desempregados que reivindicavam pão e trabalho, e a Líbia são as tribos que se su-blevaram para exigir uma divisão dos po-deres mais equitativa, do momento que, nestes 42 anos, Kadafi havia desenhado a estrutura piramidal dos poderes do Esta-do segundo a importância e o grau de fi -delidade dos 100 grupos tribais, que re-cebiam benefícios ou punições. Foi assim que o projeto político de Kadafi , depois do resfriamento da lógica revolucionaria da Grande Jamahiriya Árabe e Socialista e a gradual inserção no mundo globalizado, fi cou, na prática, centralizado nas mãos dos seus familiares e das famílias dos 26 “líderes” políticos, militares e tribais que passaram a controlar o Estado com a cria-ção de uma verdadeira “burguesia con-servadora”. Uma burguesia formada com base nas divisões tribais, cuja atuação na sociedade Líbia se tornou cada vez mais contestada ao ponto de reduzir os princí-pios da democracia direta da Jamahiriya, enunciada no Livro verde de Kadafi , uma mera retórica.

Portanto quando, em janeiro, explodem as revoltas nos outros países do Magreb, na Líbia houve apenas pequenas manifes-

Luta pelo podertações em Trípoli, promovidas pelos blo-gueiros ligados aos grupos radicais islâ-micos e a Frente de Salvação Patriótica da Líbia, uma organização de resistência no exílio, com sede em Roma e represen-tações em quase todas as capitais euro-peias, graças ao fi nanciamento oculto da CIA, através da Freedom House.

A falta de diálogo e a imposição da li-nha dura por parte de Kadafi fi zeram com que os chefes de mais de cinquen-ta tribos da Cirenaica proclamassem um dia de protesto em Benghazi e Tobruk contra o centralismo e a corrupção. Ma-nifestações que se transformaram em au-têntica sublevação insurrecional quando policiais e unidades do exército começa-ram a atirar contra os manifestantes pa-ra impedir o saque dos palácios do gover-no e da administração pública. O indis-criminado número de mortos e feridos legitimou a revolta que se generalizou em todo o território da Cirenaica e em al-gumas cidades da Tripolitania, onde, se-gundo ONGs, muitos trabalhadores imi-grados negros, originários do Tchad e do Niger, foram executados por serem con-siderados, erroneamente, “milicianos” das unidades especiais da guarda presi-dencial. (AL)

O grande problema para Barack Oba-ma e seus aliados da Otan é saber quem o Ocidente deve apoiar para evitar a frag-mentação territorial da Líbia, que é um grande exportador petrolífero mundial, com uma receita de 24 bilhões de dó-lares. De fato, os EUA não podem con-tar com os generais do exército que – di-ferentemente do que aconteceu no Egi-to e na Tunísia – estão praticamente di-vididos e isso inviabiliza a implementa-ção de uma transição pacífi ca a partir de um golpe de Estado, tal como foi no Egi-to. Além disso, o exército ainda é coorde-nado por um fi lho de Kadafi , Moutassim, que é chefe do Conselho Nacional para a Segurança, enquanto outro fi lho, Kha-mis, é o comandante da principal bri-gada motorizada formada por soldados profi ssionais.

De fato, os 150 mil homens do exérci-to líbio foram divididos em unidades com militares profi ssionais e outras com sol-dados. Além disso, existe outra divisão com unidades formadas por militares ori-ginários das tribos confl ituosas com Ka-dafi e outras com militares cujas tribos são aliadas de Kadafi . Por exemplo, na Forca Aérea, há somente militares profi s-sionais originários das tribos que apoiam Kadafi . Por isso, quando as tribos da Cire-naica se rebelaram, as unidades do exérci-to com militares originários daquelas tri-bos logo se juntaram aos insurretos, sem porém provocar a queda da máquina mi-litar de Kadafi no momento que as princi-pais unidades estão centralizadas na Tri-politania e com militares tribalmente liga-dos ao regime.

Em segundo lugar, os Comitês Revolu-cionários, fi éis a Kadafi , não se dissolve-ram e permanecem mobilizados, sobre-tudo na Tripolitania e no Fezzan, pron-tos a “defender Kadafi dos diabos barbu-

Os grupos de poderdos”, isto é os integralistas e seus aliados das tribos da Cirenaica. Segundo a TV Al Jazeera, na Líbia ocidental os comitês dis-põem de uma “milícia” formada com mais de dez mil homens perfeitamente arma-dos. Liderados por Baghdadi Ali al Mah-moudi, primeiro-ministro desde 2006, representam o grupo político conserva-dor, fi el a Kadafi , ao Livro verde e são ini-migos declarados dos integralistas e de tudo que se relaciona aos EUA e Israel.

O segundo grupo político – que pode jogar um importante papel de negocia-ção com o Ocidente e tentar uma ponte com o Conselho Nacional Líbio para evi-tar a separação do país – é representado pelo grupo dos “tecnocratas” liderado por Sukri Ghanem que, até 2006, foi primei-ro-ministro para, depois, passar a dirigir a poderosa estatal petrolífera NOC Lybia (National Oil Company of Libya).

O grupo dos tecnocratas é fi sicamente minoritário. Porém, em nível político, émuito forte porque é uma elite que reú-ne todos os quadros dirigentes do setorindustrial-energético e fi nanceiro da Lí-bia e das fi liais das transnacionais, com as quais mantém uma excelente relação.Alias, foi esse grupo que obrigou Kadafi a abandonar as posições radicais para re-negociar com os países ocidentais a voltada Líbia ao mercado e o fi m das sanções econômicas.

O terceiro grupo é liderado por Seif al Islam, de 38 anos, fi lho “reformista” de Kadafi que, nos últimos seis anos, come-çou a construir uma oposição interna e a provocar mudanças no regime no que diz respeito aos direitos humanos e à infor-mação. De fato, foram os jornais de Seif, o Oea e o Qurina, que iniciaram uma cam-panha contra a corrupção, recebendo o apoio de alguns membros do antigo Con-selho da Revolução e de muitos Comitês Revolucionários. Não é causal que hoje Seif al Islam seja o único líder a falar de negociações para evitar a guerra civil, que pode explodir já nos próximos dias se os líderes do Conselho Nacional Líbio deci-direm atacar Trípoli ou se os fi lhos de Ka-dafi , Mpuntassim e Khamis, optarem por generalizar a repressão para tentar recon-quistar os territórios perdidos. (AL)

No dia 27, operadores de TVs líbias eturcas, fotógrafos da Reuters e oito jor-nalistas italianos que haviam chega-do há dois dias, foram a Zawiyah e nãoencontraram nenhum sinal de bombar-deios ou tiroteios. Os mesmos relata-ram, da capital Trípoli, onde, dias 26 e27, não houve combate, a não ser algunstiroteios noturnos.

É claro que a calma aparente de sábado e domingo demonstra que, nos próximos dias, certamente algo vai acontecer. In-clusive porque, desde a segunda-feira, dia 28, existem dois governos na Líbia: o de Kadafi , sediado em Trípoli e que admite controlar somente as regiões da parte oci-dental (Tripolitania e Fezzan), e o gover-no provisório de Mustafá Mohamed Abud Ajleil, que confi rmou manter o controle sobre a parte oriental da Líbia, em gran-de parte representada pela Cirenaica até a fronteira com o Egito.Na madrugada do dia 28, a TV Al Arabiya informou que, pa-ra dar mais representatividade política ao governo e, sobretudo, recompor a unida-de das tribos que se rebelaram contra Ka-dafi , foi convidado ao governo provisório Abeb Al Fatah Yunis, que havia devolvido o cargo de ministro do interior e abando-nado Kadafi .

A presença do ex-ministro Yunis émuito importante porque, além de tentarsistematizar a organização do novo go-verno, pondo a funcionar os serviços pú-blicos, ele vai tentar controlar os bandosarmados dos diferentes comitês que sur-giram em Benghazi e, principalmente,procurar fazer esquecer os projetos se-paratistas liderados pelos componentestribais que pretendem criar uma “Repú-blica da Cirenaica”, enquanto os integra-listas (Mártires do Islã e Grupo IslâmicoMilitante) sonham com a criação na Ci-renaica de dois emirados, o de Al Baida eo de Derna. Um separatismo tribal que –sustentado, também, por alguns gruposislâmicos radicais – está em crescimen-to por alimentar nas pessoas o sonho decontrolar as receitas do petróleo e do gás. Se esse processo separatista não for cor-rigido pelo novo governo provisório, naCirenaica podem surgir dois ou três no-vos Estados tribais que mantém estrei-tas relações com os grupos fundamenta-listas, tal como aconteceu no Afeganistãoe na Somália.

Achille Lollo, jornalista italiano e editor do programa de TV Quadrante Informativo,

escreve de Roma (Itália).

Os Comitês Revolucionários, fi éis a Kadafi , não se dissolveram e

permanecem mobilizados

Centenas de refugiados egípcios deixam a Líbia

Pessoas acompanham funeral de homem morto durante protestos na Líbia

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internacional de 3 a 9 de março de 2011 11

TRANSCORRIDAS DUAS sema-nas das primeiras manifestações em Benghazi e Tripoli, a campanha de desinformação sobre a Líbia semeia a confusão no mundo.

Antes de mais uma certeza: as analogias com os acontecimen-tos da Tunísia e do Egito são des-cabidas. Estas rebeliões contribuí-ram, obviamente, para desencade-ar os protestos nas ruas do país vizi-nho de ambos, mas o processo líbio apresenta características peculia-res, inseparáveis da estratégia cons-pirativa do imperialismo e daquilo que se pode defi nir como a meta-morfose do líder.

Muamar Kadafi , ao contrário de Ben Ali e de Hosni Mubarak, assu-miu uma posição anti-imperialis-ta quando tomou o poder em 1969. Aboliu uma monarquia fantoche e praticou durante décadas uma polí-tica de independência iniciada com a nacionalização do petróleo. As su-as excentricidades e o fanatismo re-ligioso não impediram uma estra-tégia que promoveu o desenvolvi-mento econômico e reduziu desi-gualdades sociais chocantes. A Lí-bia aliou-se a países e movimentos que combatiam o imperialismo e o sionismo. Kadafi fundou universi-dades e indústrias, uma agricultura fl orescente surgiu das areias do de-serto, centenas de milhares de cida-

dãos tiveram pela primeira vez di-reito a alojamentos dignos.

O bombardeamento de Tripoli e Benghazi, em 1986, pela USAF de-monstrou que Regan, na Casa Bran-ca, identifi cava no líder líbio um ini-migo a abater. Ao país foram aplica-das sanções pesadas.

A partir da II Guerra do Golfo, Kadafi deu uma guinada de 180 graus. Submeteu-se a exigências do FMI, privatizou dezenas de em-presas e abriu o país às grandes pe-trolíferas internacionais. A corrup-ção e o nepotismo criaram raízes na Líbia.

Washington passou a ver em Ka-dafi um dirigente dialogante. Foi re-cebido na Europa com honras espe-ciais; assinou contratos fabulosos com os governos de Sarkozy, Ber-lusconi e Brown. Mas quando o au-mento de preços nas grandes cida-des líbias provocou uma onda de descontentamento, o imperialismo aproveitou a oportunidade. Con-cluiu que chegara o momento de se livrar de Kadafi , um líder sempre incômodo.

As rebeliões da Tunísia e do Egi-to, os protestos no Bahrein e no Ié-men, criaram condições muito fa-voráveis às primeiras manifesta-ções na Líbia.

Não foi por acaso que Benghasi surgiu como o polo da rebelião. É

na Cirenaica que operam as princi-pais transnacionais petrolíferas; ali se localizam os terminais dos oleo-dutos e dos gasodutos.

A brutal repressão desencadeada por Kadafi , após os primeiros pro-testos populares, contribuiu para que estes se ampliassem, sobretudo em Benghazi. Sabe-se hoje que nes-sas manifestações desempenhou um papel importante a chamada Frente Nacional para a Salvação da Líbia, organização fi nanciada pela CIA. É esclarecedor que naquela cidade te-nham surgido rapidamente nas ru-as a antiga bandeira da monarquia e retratos do falecido rei Idris, o che-fe tribal Senussi coroado pela Ingla-terra após a expulsão dos italianos. Apareceu até um “príncipe” Senussi a dar entrevistas.

A solidariedade dos grandes meios de comunicação dos EUA e da União Europeia com a rebelião do povo da Líbia é, porém, obviamente hipócri-ta. O Wall Street Journal, porta-voz da grande fi nança mundial, não he-sitou em sugerir em editorial (23 de Fevereiro) que os EUA e a Europa deveriam ajudar os líbios a derrubar o regime de Kadafi .

Obama, na expectativa, manteve silêncio sobre a Líbia durante seis dias; no sétimo, condenou a violên-cia, pediu sanções. Seguiu-se a reu-nião de emergência do Conselho de

Segurança da ONU e o esperado pa-cote de sanções.

Alguns dirigentes progressistas latino americanos admitiram como iminente uma intervenção militar da OTAN. Uma hipótese imprová-vel, porque tal iniciativa –perigosa e estúpida – produziria efeito nega-tivo no mundo árabe, reforçando o sentimento anti-imperialista laten-te nas massas. E seria militarmente desnecessária, porque o regime líbio aparentemente agoniza.

Kadafi , ao promover uma repres-são violenta, recorrendo inclusive a mercenários tchadianos (estrangei-ros que nem sequer falam árabe), contribuiu para ampliar a campanha dos grandes meios de comunicação internacionais que projeta como he-róis os organizadores da rebelião en-quanto ele é apresentado como um assassino e um paranoico.

Os últimos discursos do líder lí-bio, irresponsáveis e agressivos, fo-ram aliás habilmente utilizados pela mídia para o desacreditar e estimu-lar a renúncia de ministros e diplo-matas, distanciando Kadafi cada vez mais do povo que durante décadas o respeitou e admirou.

Nestes dias, é imprevisível o ama-nhã da Líbia, o terceiro produtor de petróleo da África, um país cujas ri-quezas são já amplamente controla-das pelo imperialismo.

Líbia, o que a mídia esconde Miguel Urbano Rodrigues

A solidariedade dos grandes meios de comunicação dos EUA e da União Europeia com a rebelião do povo da Líbia é, porém, obviamente hipócrita

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

O LEVANTE DOS POVOS árabes nas ruas contra seus governos já seria histó-rico simplesmente por forçar seus paí-ses a um rearranjo político sem pre-cedentes em tempos recentes. Já seria marcante se somente derrubasse dita-duras ou se apenas comprovasse o equí-voco da política externa ocidental para a região. O que se tem visto, no entanto, é que as consequências vão para muito além disso. No campo econômico, tal-vez as mudanças futuras possam causar mais impacto à ordem mundial do que no político.

Parte deste ímpeto já se pode sen-tir nas mudanças que a eventual escas-sez de petróleo árabe já provoca. A Lí-bia, por exemplo, integra a Organiza-ção dos Países Exportadores de Petró-leo (Opep), tem a oitava maior reser-va do mundo e é o país onde os confl i-tos têm se demonstrado mais violentos. Mesmo no Iraque – invadido pelas for-ças estado-unidenses, em 2003, com o suposto objetivo de “implantar a demo-cracia” – os intensos protestos já amea-çam a produção. Também há manifes-tações ocorrendo no Irã, segundo maior produtor da região. Se a crise chegar à Arábia Saudita, o maior exportador do planeta, o quadro econômico ganha um patamar de gravidade ímpar.

Da Líbia, notícias desanimadoras têm sido divulgadas. Metade da produ-ção do país, de 1,6 milhão de barris diá-rios, já estaria paralisada. Por conta dis-so, o preço do petróleo tem aumentado, levando a eventuais elevações nas taxas de juros e possível queda no ritmo de crescimento dos países. As estatísticas comprovam que sempre que houve, na história, uma elevação abrupta do pre-ço do produto, há, em seguida, forte re-tração do PIB global. O barril de petró-leo já atingiu os patamares mais altos desde o anúncio da crise socioeconômi-ca mundial, iniciada em 2008. O recor-

de daquele momento, de 148 dólares o barril, pode ser batido em breve. Há es-timativas de que o preço possa chegar até a 220 dólares. Nove petrolíferas já suspenderam quase todas as suas ope-rações na Líbia – BP, Repsol, Eni, Total, Statoil, Wintershall, RWE, OMV e Royal Dutch Shell. A Eni, italiana, fechou o ga-soduto que abastecia seu país. A Europa é a região mais afetada pela escassez de petróleo líbio.

As chamas das ruas nos combustíveisPETRÓLEO Para o restante do mundo, o legado triste do levante árabe pode ser o agravamento da crise econômica

9petrolíferas já suspenderam

quase todas as suas operações na Líbia: BP, Repsol, Eni, Total,

Statoil, Wintershall, RWE, OMV e Royal Dutch Shell

Faz parte da estratégia de enfrenta-mento dos rebeldes da Líbia lidar com o principal item da economia do país, o petróleo. Muitos já assumiram o coman-do de regiões produtoras. Entretanto, até o momento, não dão declarações de que pretendem interferir na produção. Eles já estariam no comando de petrolíferas do leste do país, como Arabian Gulf Oil Company e Marsa Al Brega Refi nery. Lí-deres tribais prometeram não depredar as instalações das empresas. Afi rmam ter consciência de que o petróleo permane-ceria sendo sua principal fonte de recei-ta. Se o Egito era importante em termos logísticos, por causa do Canal de Suez, a Líbia é importante como produtora. É o terceiro país que mais produz na África,

com a maior reserva do continente. Isso acontece em um momento em que a al-ta de preços dos alimentos já pressiona a infl ação no mundo todo.

O fator mais grave, em momentos co-mo este, é a atuação dos especuladores, que se aproveitam de instantes de incer-teza para obter lucro. A Europa compra 79% do petróleo líbio. O país tem inves-timentos importantes na Itália. Parte da automobilística Fiat, por exemplo, per-tence aos libaneses. No Iraque, a maior refi naria de petróleo teve que suspen-der suas operações após um ataque de insurgentes no dia 26 de fevereiro. Na ocasião, bombas foram detonadas e ins-talações foram incendiadas. Quatro pes-soas morreram. Da produção da refi na-ria – 11 milhões de litros de gasolina e sete milhões de litros de benzeno por dia – depende o sustento de boa parte do país. Outra refi naria também foi fe-chada em Samara. Na Arábia Saudita, maior exportador mundial de petróleo, o rei Abdullah tem concedido uma série de benefícios sociais, num total de 36 bi-lhões de dólares, para impedir refl exos do levante. Uma eventual crise no país seria trágica para o fornecimento de pe-tróleo. Desde o início do levante, o pre-ço do barril já subiu 13%.

Nesse cenário, em curto prazo, a bra-sileira Petrobras sai benefi ciada, uma

vez que as ações da empresa valorizamuma enormidade quando os preços depetróleo aumentam no resto do mun-do. Para a petrolífera, quanto mais al-to for o preço do petróleo, maior visi-bilidade tem o Pré-sal. A empresa temrecebido críticas, entretanto, na mídia

comercial, por não aumentar o pre-ço da gasolina no Brasil – o que, se-gundo eles, teria levado a empresa a“deixar de lucrar” R$ 125 milhões. Em2010, o lucro da Petrobras foi o maiorjá registrado por uma empresa brasilei-ra na história – R$ 35 bilhões, 17% amais do que em 2009. Já empresas co-mo Gol e Tam perdem em cenários co-mo este. Por serem muito dependen-tes do querosene para aeronaves, suasações caem.

Se a crise chegar à Arábia Saudita, o maior exportador do planeta, o quadro econômico ganha um patamar de gravidade ímpar

O fator mais grave, em momentos como este, é a atuação dos especuladores, que se aproveitam de instantes de incerteza para obter lucro

Nasser Nouri

Levante no mundo árabe mexe com os preços de combustíveis

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internacionalde 3 a 9 de março de 201112

Yuri Martins Fontes

EM TEMPOS de desespero, que pre-nunciam o aprofundamento da crise capitalista iniciada em 2008, o Prêmio Nobel de 2010 foi a grande cartada ide-ológica em defesa do abatido neolibe-ralismo. A jogada da Academia Sueca veio dessa vez pelos seus dois principais fl ancos: o prêmio “da Paz” e o “da Li-teratura”. O primeiro foi para o chinês dissidente Liu Xiaobo – ex-professor da Universidade de Columbia (Nova York) e defensor da implantação do capitalis-mo na China, segundo moldes estado-unidenses. Nada mais pertinente, visto a pressão das potências ocidentais pa-ra que a China arque com parte do pre-juízo da crise, encarecendo seu yuan – no que vem sendo chamado de Guerra Cambial. Contudo, neste ano, os ideólo-gos do pensamento único surpreende-ram a opinião pública com seu prêmio literário, concedido ao escritor e polí-tico fundamentalista neoliberal, Ma-rio Vargas Llosa, peruano naturalizado espanhol, que vive em Nova York, onde leciona na Universidade de Princeton.

Como é sabido, tradicionalmente o “Nobel da Paz” tem seu cunho ideoló-gico bastante explícito – agraciando em geral líderes e ativistas ligados aos inte-resses das grandes potências. Diversas vezes, os premiados têm bastante san-gue no currículo, como é o caso de The-odore Roosevelt (vencedor em 1906), para quem “o bom índio é aquele mor-to”; e do sionista Shimon Peres (1994), articulador do projeto de militarização de Israel.

Já o histórico do Nobel de Literatu-ra, desde os fi ns da Guerra Fria, não era tão abertamente direitista – quando em 1987, foi premiado o desconhecido dis-sidente soviético, exilado nos EUA, Jo-seph Brodski. De todo modo, a alter-nância entre escritores, ora conserva-dores, ora progressistas, sempre fun-cionou como adorno de “imparcialida-de” para a Academia Sueca.

Guerra comercial contra a ChinaO caso chinês foi o que mais deu a fa-

lar. Ou melhor, a “calar”. Apesar da Chi-na não promover guerras e não ter ba-ses militares no estrangeiro, o país ja-mais recebeu um Nobel que agraciasse sua prática pacífi ca e cultura milenar. Em 1989, o prêmio “da Paz” foi dado ao Dalai Lama, líder espiritual e ex-ditador da aristocracia que então vigorava no Tibete, hoje exilado na Índia. Em 2000, foi a vez do escritor neoliberal dissiden-te Gao Xingjian, exilado na França, re-ceber o de literatura. Agora, dada a ne-cessidade de acirramento da guerra co-mercial-cambial liderada pelos EUA, a Academia se lembra novamente dos orientais. Excetuando-se os grandes inimigos chineses, Japão e EUA (e al-guns de seus aliados), a maior parte do mundo preferiu não se pronunciar. Foi o caso do presidente francês, Nico-las Sarkozy, que, em outubro, pouco an-tes da reunião do G-20, recebeu seu co-lega chinês Hu Jintao para discutir ne-gócios bilaterais, e não tocou no assun-to do prêmio da Paz.

Diante da má repercussão da premia-ção na China, Sarkozy, ao menos dessa vez, parece ter feito a escolha correta. “Xiaobo foi considerado culpado de um crime – conceder-lhe o Nobel equivale a promover o crime”, afi rmou o porta-voz chinês Ma Zhaoxo. “O Prêmio de-veria ser concedido àqueles que traba-lham para promover a harmonia étnica, a amizade internacional – eram os de-sejos de Alfred Nobel”, acrescentou na época o ministério chinês do Exterior.

Já o governo do Paquistão – impor-tante aliado ocidental na região – foi mais longe que o francês, manifestan-do seu “espanto” com a concessão que, segundo seu comunicado, “não condiz com o prestígio do prêmio”, ressaltando a sua “politização” com o “intuito de in-terferir em assuntos domésticos dos Es-tados”. A declaração diz ainda que Xia-obo “foi sentenciado pelo judiciário e não fez nada que o pudesse qualifi car para o Nobel”, o que agrava a tensão, especialmente num momento em que a China “dá passos em direção ao respei-to dos princípios internacionais, no âm-bito legal e humanitário”.

Xiaobo, agora aclamado como de-fensor dos direitos humanos, foi con-denado em 2009 a 11 anos de cadeia por “tentativas de subversão do Esta-do”. A condenação foi divulgada pe-la mídia ocidental como um gesto in-justo e intolerante, “hostil aos valo-res universais”. Contudo, segundo ar-tigo da Global Research – agência de informação de Quebec (Canadá) –, o que os meios ocidentais “não mencio-nam” é que o que causou sua prisão foi a assinatura da Carta 08 (manifesto em ocasião do 60º aniversário da Declara-ção Universal dos Direitos do Homem e das Liberdades). Tal documento tra-ta-se “não apenas de uma demanda por liberdades políticas e civis, mas, antes, de um projeto para tornar a China uma réplica da sociedade dos EUA, e elimi-nar assim os últimos resquícios de so-cialismo no país”. Xiaobo defende que seu país deve se tornar um mercado li-vre sem nenhuma regulamentação do Estado – em tempos que mesmo o Es-tado norte-americano intervem, e mui-to, em sua própria economia.

O relatório da Global Research reme-mora ainda o fato de Xiaobo ter se apro-ximado da CIA nos anos de 1990 ao de-fender o Dalai Lama – o que, conforme a agência, foi contraditório a qualquer noção de direito humano, pois Lama era “o líder de uma aristocracia feudal que possuía escravos e vivia suntuosa-mente nas costas de servos tibetanos, antes de o Exército Popular pôr fi m ao seu governo opressivo”. Importante ressaltar que não se defende aqui o do-mínio chinês sobre o Tibete, assim co-mo não se defende o império dos EUA sobre Porto Rico.

Diante de tal impertinência, o prêmio “da Paz” foi criticado mesmo pelos co-legas de Xiaobo, que lutam contra o re-gime. Na opinião do líder opositor Wei Jingsheng – sete vezes candidato ao Nobel –, haveria diversos outros mi-litantes mais engajados que deveriam receber o prêmio antes dele. Há mui-tos anos, Xiaobo já demonstra publi-camente sua “ocidentalização”, chegan-do a afi rmar que: “Nós chineses somos um povo bruto”. Xiaobo, de 54 anos, até 1989 vivia bem nos EUA.

Foi apenas durante os últimos dias das manifestações da Praça da Paz Ce-lestial que ele regressou à China, reco-locando-se como intelectual em evidên-cia. E frisemos também que, embora o Nobel tenha por lema premiar “mani-festações pacífi cas”, certamente o episó-dio da Praça da Paz não se pretendia pa-cífi co – o que fi ca evidente quando, após a instituição do estado de sítio, os líde-res do protesto montam barricadas e enfrentam ativamente o exército, o que culminaria em várias mortes, inclusive de militares. Tampouco Xiaobo pode ser encaixado no quesito de “promover a fraternidade entre as nações” – argu-mento que foi o primeiro a ser usado pe-lo governo chinês contra a premiação.

Assim, o professor chinês veio a cum-prir o estratégico papel de apoio ao go-verno de Obama, diante da pressão dos conservadores republicanos e da guerra cambial que quer fazer com que a Chi-na arque com uma parte maior dos pre-juízos da crise advinda da libertinagem fi nanceira. E veio num momento estra-tégico, pouco antes da plenária do XVII Comitê Central do Partido Comunista, em que se começou a discutir a suces-são de Hu Jintao, a ocorrer em 2012.

O anticoletivista anti-indígenaJá no caso do prêmio de Llosa, aos 74

anos, a surpresa foi ampla, da direita à esquerda – a ponto de ele próprio rea-

gir com ironia, o que acabou por exporcerta desconfi ança que era generaliza-da: “Tinha certeza de que não receberiao prêmio – espero que tenha sido pe-la minha obra literária e não pelas mi-nhas opiniões políticas”. Isto porque oautor é hoje declaradamente um defen-sor do liberalismo – o que vem a ser-vir como um garoto-propaganda “nati-vo”. Sua premiação – voz neoliberal elatino-americana – vem a calhar coma busca dos EUA pela retomada de suahegemonia perdida dos anos de 1990.

É evidente que hoje, em vista dasfrustradas tentativas de golpe de Es-tado na última década (Venezuela em2002, Bolívia em 2008 e Equador em2010) – apesar do bem-sucedido gol-pe de Estado em Honduras –, os EUAnão têm mais o mesmo poder de in-tervenção em seu antigo “quintal”, oque se deve em parte às graves limita-ções econômicas conjunturais, agrava-das pelas duas caras guerras que Oba-ma herdou na Ásia. Assim, Llosa, comsuas posições extremistas contra qual-quer país periférico que se pretenda au-tônomo, serve aos interesses neocolo-niais como um autofalante fomentadorde uma tão apática reação “latina”. Emseus frequentes discursos, ainda defen-de as privatizações por parte de empre-sas estrangeiras, inclusive a das reser-vas naturais estratégicas de seu país– sendo ferrenho crítico dos governosprogressistas que vêm ocupando espa-ços na América Latina e elevando suaautoestima na última década.

De fato, após o declínio da Alca, em2004, os EUA tentaram “impor” tra-tados bilaterais, o que só foi aceito portrês países – Peru, Chile e Colômbia. Éo que nos lembra o pesquisador PauloNogueira Batista Jr., representante noFMI de um grupo de nove países ame-ricanos (inclusive o Brasil), em estudopublicado na Revista de Economia Po-lítica: “Nesta época, quase todos os paí-ses da América eram governados porpolíticos alinhados aos EUA em maiorou menor grau, como Menem, FHC,Fujimori e outros, que serviam de ins-trumentos de seu poder”. Para ele, “oquadro atual é muito diferente”, pois osresultados “não foram positivos, o quejá se poderia prever” – pois “governadode fora para dentro, nenhum país podeser bem-sucedido. Daí a importânciade se investir na popularidade de Llo-sa – para quem os anos de 1990 forammesmo o “fi m da história”.

Para que se tenha uma ideia de suasposições, ele defende, para as eleiçõespresidenciais do Peru (2011), que um“cenário positivo” seria a vitória de umcandidato do que chama de “centro” – ecita os nomes dos candidatos de plata-forma mais submissa, Luis Castañeda eLourdes Flores. Já a respeito do candi-dato mais nacionalista, Ollanta Huma-la, de centro-esquerda, dispara: “É umgrande perigo apoiado por Chávez, oque é incompatível com a democracia”.Quanto a ele mesmo, afi rma não quererser “político profi ssional”, mas diz quecontinuará atuando por “certas cau-sas”. Em 1990, quando os marxistas doSendero Luminoso ainda disputavamo poder, Llosa concorreu à presidên-cia do país – segundo a Reuters, comoum “candidato reformista de centro-di-reita”. Em sua plataforma privatizante– segundo ele inspirada em MargarethThatcher, “mulher que mudou o rumoda história” –, propõe o corte orçamen-tário e a defesa do mercado livre, o que“alarmou os pobres e trouxe apoio dosconservadores ricos”. Perdeu a eleiçãopara Fujimori e abandonou o país paraviver na Espanha.

Yuri Martins Fontes é jornalista e fi lósofo.

O Nobel e a ideologia dominanteANÁLISE Prêmios de literatura e da paz deste último ano são usados para fortalecer agenda estado-unidense na Ásia e na América Latina

Apesar da China não

promover guerras e

não ter bases militares

no estrangeiro, o país

jamais recebeu um

Nobel que agraciasse

sua prática pacífi ca e

cultura milenar

A declaração (do

governo paquistanês)

diz ainda que Xiaobo

“foi sentenciado pelo

judiciário e não fez nada

que o pudesse qualifi car

para o Nobel”

Diante de tal impertinência, o prêmio “da Paz” foi criticado mesmo pelos colegas de Xiaobo, que lutam contra o regime

“Tinha certeza de que não receberia o prêmio – espero que tenha sido pela minha obra literária e não pelas minhas opiniões políticas”

Em 1990, quando os marxistas do Sendero Luminoso ainda disputavam o poder, Llosa concorreu à presidência do país

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