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Disserta_ao - Denise

Jul 14, 2015

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Moisés Santos
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UNIVERSIDADE SO FRANCISCO PROGRAMA DE PS-GRADUO STRICTO SENSU EM EDUCAO

DENISE FILOMENA BAGNE MARQUESIN

Prticas compartilhadas e a produo de narrativas sobre aulas de Geometria: o processo de desenvolvimento profissional de professoras que ensinam Matemtica

ITATIBA 2007

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371.399.514 M321p

Marquesin, Denise Filomena Bagne. Prticas compartilhadas e a produo de narrativas sobre aulas de geometria: o processo de desenvolvimento profissional de professores que ensinam matemtica / Denise Filomena Bagne Marquesin. -- Itatiba, 2007. 242 p. Dissertao (mestrado) Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao da Universidade So Francisco. Orientao de: Adair Mendes Nacarato 1. Desenvolvimento profissional. 2. Trabalho compartilhado. 3. Saberes docentes. 4. Comunidade de aprendizagem. 5. Narrativas. 6. Geometria. I. Nacarato, Adair Mendes. II. Ttulo.

Ficha catalogrfica elaborada pelas Bibliotecrias do Setor de Processamento Tcnico da Universidade So Francisco.

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DENISE FILOMENA BAGNE MARQUESIN

Prticas compartilhadas e a produo de narrativas sobre aulas de Geometria: o processo de desenvolvimento profissional de professoras que ensinam Matemtica

Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao, da Universidade So Francisco, sob orientao da Profa. Dra. Adair Mendes Nacarato, como parte dos requisitos para obteno do grau de Mestre em Educao. Linha de pesquisa: Matemtica, cultura e prticas pedaggicas.

ITATIBA 2007

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UNIVERSIDADE SO FRANCISCO PROGRAMA DE PS-GRADUO STRICTO SENSU EM EDUCAO

DENISE FILOMENA BAGNE MARQUESIN

Prticas compartilhadas e a produo de narrativas sobre aulas de Geometria: o processo de desenvolvimento profissional de professoras que ensinam Matemtica

Dissertao de mestrado defendida e aprovada no Programa de PsGraduao Stricto Sensu em Educao, da Universidade So Francisco, sob orientao da Profa. Dra. Adair Mendes Nacarato, como parte dos requisitos para obteno do grau de Mestre em Educao. Linha de pesquisa: Matemtica, cultura e prticas pedaggicas. _____________________________________________________ Profa. Dra. Adair Mendes Nacarato USF Orientadora e Presidente _____________________________________________________ Profa. Dra Regina Clia Grando USF Examinadora ___________________________________________________ Profa Dra. Laurizete Ferragut Passos USP Examinadora

ITATIBA 2007

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Dedico este trabalho ao meu querido e grande incentivador esposo Cludio e aos meus eternos filhos, Jnior e Clauderson, que so a razo de meu viver.

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AGRADECIMENTOS todas as pessoas que, de alguma forma contriburam para a realizao deste trabalho, os meus sinceros agradecimentos e eterna gratido. Agradeo especialmente: Profa. Dra. Adair Mendes Nacarato que com, toda usa competncia profissional e paixo pela educao mostrou-me a importncia da mobilizao de saberes. Obrigada, por acreditar em mim desde o comeo deste trabalho, pelo trabalho de orientao e pela amizade, pacincia e apoio diante toda a pesquisa e escrita desta pesquisa; Profa. Dra. Regina Clia Grando pelo incentivo, pelas cuidadosas leituras, pela forma delicada ao apontar as falhas e os acertos, e por dispor-se a me auxiliar sempre que requisitada; Profa. Dra. Laurizete Ferragut Passos por sua presena nas bancas de qualificao e de defesa e pelas leituras e sugestes, pelo seu companheirismo e, tambm, pelas crticas sempre pertinentes; s professoras do Programa de Ps-graduao em Educao Stricto Sensu em Educao Universidade So Francisco Itatiba/ SP pessoas com as quais tive o prazer de conviver, no ano de 2005, e que contriburam de forma decisiva para minhas reflexes como pesquisadora e formadora; A Adriana e a Dbora e demais amigos que compartilharam momentos riqussimos de discusso durante o cumprimento dos crditos e as reflexes nos grupos de estudos; A Secretaria Municipal de Educao de Jundia que permitiu a realizao da pesquisa em uma das escolas do sistema educacional; s professoras Graa, Marisa, Liliane, Silviane e Simone, sem as quais este trabalho no teria acontecido, meu imenso agradecimento pelo desprendimento, respeito, colaborao e por me possibilitarem muitas aprendizagens e uma enorme transformao; diretora Rosana que gentilmente permitiu a realizao da pesquisa e abriu as portas da escola para inmeras reflexes, bem como participou de algumas delas. Obrigada por acreditar na pesquisa, pela solidariedade durante os conflitos e pelo apoio constante, principalmente durante a realizao das oficinas para compartilharmos as apropriaes obtidas; s inmeras pessoas e amigos que sempre estiveram torcendo por mim; Ao meu marido, Cludio, que soube tambm entender minha necessidade de compreender minha incompletude e respeitou meu eterno gosto de estudar e de

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aperfeioar-me profissionalmente. Obrigada pela cumplicidade e pelos imensos elogios sobre o meu potencial, incentivando-me a continuar nesta caminhada; E queles que so a razo do meu viver e que alimentam a minha motivao por lutar um mundo melhor: meus filhos; Clauderson e Jnior. Clauderson que constantemente confirmava seu amor e seu carinho compreendendo minha dedicao e afirmando que s eu tenho tanta vontade assim de estudar neste mundo; e o Jnior que, com certeza est muito feliz pela conquista de mais esta etapa na minha vida, j que mesmo esteve presente e est comigo todos os dias. DEUS, sem o qual nada possvel.

O desempenho profissional constitudo de aprendizagens. Entendemos por aprendizage"ns as relaes com o saber, as transformaes e as mudanas. Juntas vivenciamos experincias autnticas de aprendizagens e nos desenvolvemos profissionalmente. (Denise, Graa, Marisa, Liliane, Simone e Silviane- fev/2007)

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MARQUESIN, Denise F. B. Prticas compartilhadas e a produo de narrativas sobre aulas de Geometria: o processo de desenvolvimento profissional de professoras que ensinam Matemtica. (Dissertao de Mestrado). Programa de Ps Graduao Stricto Sensu em Educao. Itatiba-SP: Universidade So Francisco, 2007. 242p. RESUMO O presente trabalho refere-se a um estudo de caso que focaliza o processo de desenvolvimento profissional de professoras que ensinam matemtica nas sries iniciais do ensino fundamental quando passam a pertencer a um grupo com o propsito de aprender e de ensinar Geometria. O grupo foi constitudo por quatro professoras e uma coordenadora pedaggica que atuam na rede municipal de Jundia/SP, na zona rural. Neste estudo so contemplados trs elementos que se interelacionam: a escola como lcus privilegiado de formao, o grupo constitudo pelo trabalho compartilhado e o estudo de uma temtica especfica a Geometria. A pesquisa tem como questo central: Como a reflexo, a anlise e a sistematizao das prticas compartilhadas podem contribuir para a aprendizagem docente sobre geometria e para o desenvolvimento profissional de professores que atuam nas sries iniciais do Ensino Fundamental? e como objetivos: (1) analisar o movimento recproco entre o coletivo e o singular das professoras envolvidas numa prtica contnua de estudos, reflexo, novos estudos e (re)elaborao de atividades de geometria e anlise de suas aulas; (2) buscar indcios de aprendizagem e de desenvolvimento profissional das professoras envolvidas no processo de formao, tomando como ponto de partida a produo e anlise de narrativas; (3) analisar as transformaes ocorridas com os saberes docentes em geometria. A documentao utilizada para anlise constou de: (a) as transcries das gravaes dos encontros; (b) as transcries das entrevistas iniciais; (c) as narrativas produzidas pela pesquisadora/formadora e pelas professoras; (d) dirio de campo da pesquisadora; (e) transcries das gravaes da conversa reflexiva ao final do perodo de coleta de dados. A anlise, de forma interpretativa, ocorreu a partir da triangulao de instrumentos de coleta de dados e possibilitou a identificao das seguintes categorias: o grupo como potencializador da aprendizagem docente e do desenvolvimento profissional; a produo de narrativas como estratgia de formao; as transformaes ocorridas com os saberes docentes em Geometria; e os conflitos vivenciados no processo de formao. O grupo, quando constitudo na prpria escola em que os professores atuam e no qual a participao voluntria, pode se constituir numa verdadeira comunidade de aprendizagem. No entanto, o estudo revelou que a escola precisa ter caractersticas que contribuam para essa comunidade e o grupo necessita adotar estratgias de formao. Nesse sentido, este trabalho possibilitou compreender que a produo de narrativas sobre aulas de Geometria adotadas como estratgia de formao , quando mediadas por leituras tericas e pelo compartilhamento no grupo, gera reflexes, conflitos aprendizagens, mobilizao e (trans)formaes de saberes docentes e, portanto, altamente potencializadora do desenvolvimento profissional. Palavras-Chaves: Desenvolvimento Profissional. Trabalho Compartilhado. Saberes Docentes. Comunidade de Aprendizagem. Narrativas. Geometria

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MARQUESIN, Denise F. B. Shared practices and narrative production on Geometry classes: the professional development process of teachers who teach Mathematics. (Msters Dissertation). Post-Graduate Programe Stricto Sensu in Education.. ItatibaSP: Universidade So Francisco, 2007. 242p. ABSTRACT The present work mentions a case study that focuses the professional development process of teachers who teach mathematics in the initial series of basic education when they start to belong to a group with the intention to learn and to teach Geometry. The group was constituted by four teachers and a pedagogical coordinator who acts in the municipal educational system of Jundia/SP, in the rural zone. This study contemplates three elements which are interlinked: the school as privileged locus of formation, the group consisting of the shared work and the study of a specific theme Geometry. The research central question is: "How can the shared reflection, analysis and systematization of the shared practices contribute for the teachers learning on geometry and the professional development of teachers who act in the initial series of Basic Education; and its objectives are: (1) to analyze the reciprocal movement between the collective and the singular traits of the involved teachers in a continuum practice of studies, reflection, new studies and the (re)elaboration of Geometry activities and the analysis of their lessons; (2) to search for indications of learning and professional development of the involved teachers in the formation process, taking as a starting point the production and analysis of narratives; (3) to analyze the occurred changes with the teachers knowledge in geometry. The documentation used for analysis consisted of: (a) the transcriptions of the recorded meetings; (b) the transcriptions of the initial interviews; (c) the narratives produced by the researcher and the teachers; (d) the field journal of the researcher; (e) transcriptions of the talks recorded at the end of the data collection period. The analysis, in a interpretative way, occurred from the triangulation of data collection instruments and made possible the identification of the following categories: the group as the teachers learning and the professional development force; the production of narratives as strategy formation; the occurred transformations with the teachers knowledge in Geometry; and the conflicts deeply lived in the formation process. The group, when constituted in the same school where the teachers work and in which the participation is voluntary, can consist in a true community of learning. However, the study revealed that the school must have characteristics that contribute for this community and the group needs to adopt formation strategies. This way, this work made possible to understand that the production of narratives on Geometry classes - adopted as formation strategy -, when mediated by theoretical readings and the sharing in the group, generates reflections, learning conflicts , mobilization e (trans)formations in the teachers knowledge and, therefore, it is highly potential for the professional development. Key Words: Professional Development. Shared Work. Teachers knowledge. Learning Community. Narrative. Geometry.

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SUMRIOAPRESENTAO.................................................................................................. 12 1.TRAJETRIA DE PROFESSORA E PESQUISADORA: uma 15 16 18 23 26 29

percepo possvel dessa constituio profissional A trajetria infantil e estudantil.................................................................... Docncia: a conscincia da incompletude.................................................... Reflexes sobre os momentos experienciados............................................. Atuao como formadora............................................................................. Um novo olhar para a formao docente e para as pesquisas: minhas primeiras leituras no mestrado.....................................................................

2. DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL 2.1 Desenvolvimento Profissional.................................................................

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2.1.1 Saberes Docentes..................................................................................... 2.1.2 A incorporao da Geometria nos saberes docentes............................... 2.2 A escola como lcus privilegiado de desenvolvimento

profissional.........................................................................................................

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2.2.1 O contexto escolar................................................................................... 55 2..2.2 O trabalho compartilhado..................................................................... 2.3 59

As narrativas como estratgias de formao ......................................... 66

3. O CONTEXTO DA PESQUISA: opes metodolgicas, a escola e as professoras protagonistas 3.1- Descrio dos caminhos da pesquisa.......................................................... 3.2- A escola onde a pesquisa se realizou ......................................................... 3.3- As protagonistas do estudo......................................................................... 76 78 87 89

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3.3.1 A Professora Liliane................................................................................. 3.3.2 A Professora Graa.................................................................................... 3.3.3 A Professora Simone................................................................................. 3.3.4 A Professora Silviane............................................................................ 3.3.5 A Professora Marisa.................................................................................. 3.3.6 Olhar da pesquisadora/formadora para as protagonistas........................... 3.4 A anlise do material documentado.............................................................

89 93 97 101 105 111 112

4. O GRUPO E A PRODUO DE NARRATIVAS: possibilitando a apropriao de novos saberes e a superao de conflitos 4.1- O grupo como potencializador da aprendizagem docente e do desenvolvimento profissional............................................................................. 4.2 A produo de narrativas como estratgia de formao ......................... 4.3 As transformaes ocorridas nos saberes docentes em geometria............. 4.3.1 O incio do trabalho inseguranas e incertezas...................................... 4.3.2 O saber em geometria em relao com o mundo, com o sujeito e consigo mesmo......................................................................................................... 4.3.3 Do saber para a prtica em geometria, para o saber da prtica................. 4.4 Os conflitos vivenciados no processo de formao................................. 4.4.1 Conflitos vivenciados pelas professoras.................................................. 4.4.2 Conflitos vivenciados pela professora/pesquisadora................................. 4.5 Compartilhamentos, apropriaes, saberes e conflitos.............................. 5. CERTEZAS, INCERTEZAS.....................a provisoriedade do saber REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 174 191 209 209 215 224 227 237 115 134 166 167 114

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SUMRIOEsquemas Quadros Mapas Conceituais

ESQUEMASEsquema 1 Movimento singular entre o eu e o outro...................... Esquema 2 Elementos potencializadores do desenvolvimento profissional Esquema 3 Saberes docentes................................................................. Esquema 4 Dimenses do desenvolvimento profissional ...................... Esquema 5 Compartilhamentos, apropriaes, saberes e conflitos 34 38 46 75 226

QUADROSQuadro 1 Siglas utilizadas na anlise ............................................... Quadro 2 Os encontros realizados com as professoras..................... Quadro 3 Narrativas: Benjamin (1985) e Prado e Soligo (2005)...... 83 83 148

MAPAS CONCEITUAISMC 1 Liliane Vencendo desafios e transformando-se .......................... MC 2 Silviane Crculo de aprendizagens vivenciadas ........................ MC 3 Simone O caminho percorrido .................................................... MC 4 Marisa Encontrando alternativas .............................................. MC 5 Graa A experincia e transformao ......................................... MC 6 Pesquisadora/formadora Transformaes: movimento singular entre o eu e o outro...................................................... 207 202 203 204 205 206

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APRESENTAOA presente pesquisa, de abordagem qualitativa, foi desenvolvida com um grupo de quatro professoras das sries iniciais do Ensino Fundamental e uma coordenadora pedaggica que atuam na rede municipal de Jundia/SP, na zona rural. Trata-se de um estudo de caso que focaliza o processo de desenvolvimento profissional de professoras que ensinam Matemtica nas sries iniciais, quando passam a pertencer a um grupo com o propsito de aprender a ensinar Geometria, tendo a escola como locus de formao. Nessa pesquisa aproximamo-nos da concepo de desenvolvimento profissional como um processo contnuo, no qual o sujeito se mobiliza para novas aprendizagens e para a constituio de um repertrio de saberes. Apoiando-nos em Rogoff (1998, p.136), consideramos que o desenvolvimento profissional um processo dinmico que se transforma por inteiro e no por acmulo de novos itens ou transformaes de itens existentes. Envolve os aspectos pessoais e profissionais e ocorre por meio de atribuies de novos significados e novas interpretaes aos saberes j produzidos e atravs da anlise e da reflexo sobre a prtica profissional. Dada a amplitude de perspectivas tericas para a anlise dos processos ocorridos em grupos de trabalho, optamos por considerar a narrativa como uma das estratgias de formao desencadeadora de desenvolvimento profissional. Assim, o processo de produo e de discusso de narrativas pelas professoras e pela pesquisadora-formadora tomado como objeto de anlise. Desenvolvemos a pesquisa em trs fases: inicialmente fizemos o exame da literatura pertinente e a reviso bibliogrfica relacionadas temtica e definio do objeto de estudos, bem como a escolha da escola e dos sujeitos; posteriormente, delimitamos o estudo e a coleta de dados em 28 encontros semanais de duas horas de durao, no perodo de agosto/2005 a junho/2006; e, finalmente, sistematizamos nossos registros, utilizando: (a) as transcries das gravaes dos encontros; (b) as transcries das entrevistas iniciais; (c) as narrativas produzidas pela pesquisadora-formadora e pelas professoras; (d) dirio de campo da pesquisadora. Finalizamos a documentao com a audiogravao de uma conversa reflexiva sobre o nosso percurso, em agosto/2006. A partir dessa sistematizao fizemos a anlise do material documentado por meio da triangulao dos instrumentos e definimos as categorias de anlise.

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A pesquisa centra-se na seguinte questo norteadora: Como a reflexo, a anlise e a sistematizao das prticas compartilhadas podem contribuir para a aprendizagem docente sobre Geometria e para o desenvolvimento profissional de professoras das sries iniciais de Ensino Fundamental?. Tem como objetivos: analisar o movimento recproco entre o coletivo e o singular das professoras envolvidas numa prtica contnua de estudos, reflexo, novos estudos e (re)elaborao de atividades de geometria e anlise de suas aulas; buscar indcios de aprendizagem e de desenvolvimento profissional das professoras envolvidas no processo de formao, tomando como ponto de partida a produo e anlise de narrativas; analisar as transformaes ocorridas com os saberes docentes em geometria. O presente texto est organizado em cinco captulos. O captulo 1 narra a trajetria da professora pesquisadora, visando analisar sua constituio profissional, uma vez que partimos do pressuposto de que o desenvolvimento profissional envolve os aspectos pessoais e profissionais. Assim, a compreenso da trajetria nos d indcios da relao que o profissional estabelece com o saber, com o outro e consigo mesmo em seu processo de constituio. Construir essa narrativa da trajetria da pesquisadora foi fundamental para a prpria definio do objeto de investigao. O captulo 2 traz reflexes tericas sobre elementos potencializadores do desenvolvimento profissional: a pertena a um grupo que se dispe voluntariamente a estudar, refletir e inserir um contedo escolar a Geometria ao currculo das sries iniciais do Ensino Fundamental; a produo de narrativas como estratgia de formao; e o estudo de um campo especfico da Matemtica escolar. O captulo 3 traz a contextualizao da pesquisa, com os recursos metodolgicos escolhidos, a caracterizao da escola locus da formao e a caracterizao das cinco professoras protagonistas deste estudo. O captulo 4 traz a anlise dos indcios de desenvolvimento profissional das professoras e da pesquisadora-formadora. As sucessivas leituras do material coletado e a triangulao dos instrumentos permitiram a identificao das seguintes categorias: o trabalho compartilhado promovendo aprendizagem docente; a produo de narrativas

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como estratgia de formao; as transformaes ocorridas nos saberes docentes em Geometria; e os conflitos vivenciados no processo de formao. O captulo 5 traz a sntese do trabalho com as consideraes finais sobre o mesmo, destacando seus aspectos relevantes e os questionamentos que a pesquisa possibilita.

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1. TRAJETRIA DE PROFESSORA E PESQUISADORA: UMA PERCEPO POSSVEL DESSA CONSTITUIO PROFISSIONALAprender inseparvel do como aprendemos. A prpria docncia a extenso do como somos. (ARROYO, 2000, p.115)

Esta pesquisa pretende analisar o desenvolvimento profissional de um grupo de professoras que se disps a trabalhar e estudar coletivamente para aprender a ensinar Geometria. Nesse grupo, no h como excluir a pesquisadora, que vem aprendendo e se constituindo com as experincias vivenciadas. Assim, a opo foi comear o texto desta pesquisa com uma breve narrativa de minha trajetria. Pautando-me na parfrase de Marx, citada por Vygotski (2000, p.2733): a natureza psicolgica da pessoa um conjunto das relaes sociais, transferidas para dentro e que se tornaram em funes de personalidade e formas da sua estrutura [...] pensa no o pensamento, pensa a pessoa, busquei resgatar alguns detalhes da minha trajetria estudantil e profissional com vistas compreenso da minha constituio profissional. Como afirma Charlot (2000, p. 53): Nascer penetrar na condio humana. Entrar numa histria, a histria singular de um sujeito inscrita na histria maior da espcie humana. Entrar em um conjunto de relaes e interaes com outros homens. Entrar em um mundo onde ocupa lugar (inclusive, social) e onde ser necessrio exercer uma atividade.

Nesse sentido, procurei construir minhas memrias de infncia e escolarizao, destacando elementos que possam contribuir para a compreenso de meu processo de constituio. Constituio essa que se deu por um movimento pessoal e pelas relaes estabelecidas em diferentes contextos. Ao apresentar parte de minha histria, seja ela de infncia ideal, de escolarizao ou de sujeito inconcluso, explicitarei as concepes de homem e as influncias das prticas sociais e condies de existncia que estiveram presentes na

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minha constituio e na multiplicidade de significaes que foram e esto sendo desenhadas ao longo desta trajetria. 1.1. Trajetria infantil e estudantil Diferente da maioria dos seres humanos, mesmo antes de iniciar minha trajetria neste mundo, j compartilhei espaos: na concepo e na gestao vivi literalmente ao lado da minha irm gmea. Somos as filhas caulas de uma grande famlia para os dias de hoje. Somos gmeas bivitelinas, mas com sentimentos, emoes e desejos muito parecidos. Fomos criadas com muitos mimos. Nossos pais, j com idade de avs, nossos trs irmos bem mais velhos, quinze anos pelo menos, e nossos tios solteires nos bajulavam o tempo todo. Toda a famlia, seja do lado paterno, seja do lado materno, sentia a nossa presena. Usvamos os mesmos cortes de cabelo e roupas idnticas. A escolarizao inicial foi feita nos mesmos colgios. Fizemos o primrio1 e o ginsio em escola pblica, as melhores da poca na cidade de Jundia. Sempre fomos boas alunas e no fizemos cursinho para prestar o Exame de Admisso2. Fomos aprovadas ao prest-lo, quando conclumos o 4 ano. Crescemos sendo informadas de que estudo era tudo na vida dos adultos. A valorizao do ser humano dependia do estudo que ele tivesse nos prximos anos e, pautada nesse discurso, procurei ser sempre uma aluna comprometida com os estudos. Percebo que, mesmo sem ter conscincia, sempre busquei estar em relao com o saber. Como afirma Charlot, no h saber sem relao com o saber:Adquirir saber permite assegurar-se um certo domnio do mundo no qual se vive, comunicar-se com os outros seres e partilhar do mundo com eles, viver certas experincias e, assim, tornar-se maior, mais seguro de si, mais independente. (2000, p.60)

Eu, especificamente, tinha paixo por Matemtica. Adorava resolver expresses e no reclamava de fazer os exerccios de fixao propostos. A professora Maria Lcia, de Matemtica de 5 a 8 srie, foi a pessoa que me estimulou a ser professora.1

At a dcada de 1960 o atual Ensino Fundamental subdividia-se em Primrio de 1 ao 4 ano (atuais 1 a 4 sries) e Ginsio (atuais 5 a 8 sries). 2 Curso de Admisso - curso preparatrio, realizado durante o 4 ano ou aps o trmino do primrio, com objetivo de revisar os contedos do ensino primrio para o exame de ingresso no ensino ginasial. O exame que se fazia era chamado Exame de Admisso. O curso preparatrio no era obrigatrio, mas o exame, sim.

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Explicava os exerccios com muita didtica e sua lousa era bem subdividida com registro das palavras em letra de forma e com os clculos feitos com giz colorido e usando setas para que os alunos entendessem as explicaes. Ela convidou-me para ser monitora de rea e, no perodo contrrio ao das aulas, eu ajudava os alunos que tinham dvidas nas resolues dos exerccios de fixao. Eu corrigia os exerccios dos meus amigos, imitando at a letra e as marcas que ela usava. Conclui a 8 srie em 1973. Como o 2 grau era profissionalizante, eu prestei vestibulinho3 para entrar no Colgio Tcnico de Jundia e minha irm foi estudar em escola particular. Foi o incio da separao. Fiz o 1 ano de ensino comum e depois optei pelo curso: Tcnico em Edificaes. Quantas mudanas! Perodo integral. Almoo no colgio - sou pssima para me alimentar. Professores homens e muito autoritrios. Batalhes de exerccios para nota, os quais deveriam ser resolvidos caneta. Os estranhamentos se direcionavam tambm para a postura das outras pessoas, colegas de classe: no havia troca, era cada um por si. Somente agora, diante dos estudos da disciplina de Historiografia da Educao Brasileira, compreendi essas prticas. Os professores no podiam ser diferentes; eles eram engenheiros civis e tinham o prazer de anunciar que, se fossem bonzinhos conosco, ns no aprenderamos os clculos e nossos projetos seriam mal feitos e, quando as construes desabassem, no queriam ser cmplices. Todos os professores, sem exceo, pautavam-se nas tendncias formalista e tecnicista de ensino (FIORENTINI, 1995): concebiam que a aprendizagem ocorre partindo de modelos de exerccios dos modelos mais fceis para os mais difceis e apresentavam uma lista de exerccios de fixao para serem desenvolvidos. Apoiavam-se, dessa forma, na tcnica como o centro do ensino de Matemtica. No posso deixar de enfatizar que aqueles anos foram muito significativos para mim. Descobri um mundo duro e exigente, que me deu suporte para enfrentar a vida como ela e enxergar uma realidade que meus pais, por excesso de zelo e de amor, nos pouparam. Vivenciei momentos em que meu poder de deciso era fundamental para o meu percurso dentro da escola; meus colegas eram bem mais experientes que eu e minha ingenuidade diante das afirmaes deles era transparente; em alguns momentos, precisei aparentar saberes que no faziam parte do meu cotidiano. Por exemplo,3

Vestibulinho: exame seletivo para ingresso no curso tcnico.

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pesquisar em biblioteca, optar pelas aulas que pretendia cursar, freqentar ou no o laboratrio de engenharia juntamente com os formandos, bater o p da aula, boicotando a presena do professor em companhia da classe toda considerava isso tudo um desrespeito; at ento estava acostumada a seguir orientaes e a participar de todos os momentos da escola onde havia um professor para guiar minhas aes. Prestei vestibular em 1978 para Engenharia Civil na Universidade So Francisco- Itatiba-SP. Freqentei o 1 semestre nesse curso. Numa conversa com meu pai, tive a impresso de que ele no estava satisfeito com minha escolha profissional. Fiquei preocupada com ele e, mesmo sem ter certeza de que seria a melhor opo para minha vida, transferi meu curso para Licenciatura Curta de Cincias Fsicas e Biolgicas, na Faculdade Padre Anchieta, em Jundia. Era um curso vespertino e, aproveitando o horrio e por saber que seria professora, fiz as disciplinas de complementao do 2 grau para obter o diploma de Habilitao Especfica para o exerccio do Magistrio e Pr-escola e de 1 a 4 srie e conclu esses dois cursos em 1979. Em 1980 fiz Licenciatura Plena em Matemtica na Faculdade Nossa Senhora do Patrocnio em Itu. Nesse ano fui aluna de Paulo Freire, na disciplina de Instrumentao para o Ensino. Dessa forma, aps esse perodo, sa com uma formao que me possibilitava atuar como professora polivalente na Educao Infantil e nas sries iniciais ou como professora especialista em Matemtica e Cincias. 1.2. Docncia: a conscincia da incompletude Iniciei meu trabalho como professora substituta em 1978, ano em que ingressei na faculdade. Dava aula de todas as matrias. Procurava adequar minhas propostas ao modelo de professora que concebia como o de boa professora. Escrevia na lousa com letra de forma, olhava os cadernos, dava visto e menes; anotava os nomes dos alunos que no haviam terminado no tempo proposto. Para Rocha (2005), no percurso docente, na primeira etapa, ou seja, na iniciao docente, existe a fase do tateamento, que se d a partir no apenas da identificao dos acontecimentos pessoais e das experincias vivenciadas como aluno, mas tambm dos acontecimentos profissionais que acabam interferindo na entrada na carreira. A mesma autora, apoiando-se em Ponte et al. (2001), afirma:

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a insero na docncia um perodo de aprendizagem e de reelaborao das concepes sobre os alunos, a escola, o prprio trabalho e seu novo papel. Esses primeiros anos de carreira, segundo o pesquisador, caracterizam-se por um intenso desenvolvimento do conhecimento profissional (como preparar aulas, como se relacionar com os alunos, colegas e demais membros da escola) e de busca de equilbrio entre o lado pessoal e profissional. (ROCHA, 2005, p.47

Entendo que vivia, nesses primeiros anos, um aprendizado para ser professora, tendo como referncia modelos de professores que foram marcantes em minha trajetria estudantil. No entanto, no me acomodei. Em 1980, assumi uma classe de Ciclo Bsico Continuidade4, composta (formada) por alunos remanejados que precisavam de ateno quanto alfabetizao. Aprendi a ser professora aceitando esse desafio. A classe era bem heterognea e eu tinha que preparar inmeras atividades diversificadas para atender a individualidade de todos. Eu era uma jovem professora e, para conversar com os alunos, eu me sentava no cho, em roda. Tnhamos um excelente relacionamento. At hoje, quando me encontro com alguns deles, lembram-se das inovaes que fazamos. Em 1986, efetivei-me como professora estadual de 1 a 4 srie e continuei dando aulas de Matemtica de 5 a 8 srie e de 2 grau5, na poca. Recordo-me de que fiquei apreensiva quando assumi as aulas de Matemtica no 2 grau do perodo noturno, em que a maioria dos alunos era mais velha do que eu, alguns deles j tinham parado com os estudos h algum tempo e apresentavam dificuldades em contedos de Matemtica. No entanto, essa experincia me fez acreditar que, alm de possuir o conhecimento, era preciso ter talento, bom senso e intuio como afirma Rocha (2005, p.48). E a autora complementa: para os professores que fazem referncia a essa etapa como fcil, eles mantm boa relao com os alunos e possuem o domnio do ensino, permanecendo com o entusiasmo inicial, que foi o que aconteceu comigo. Na ocasio, inicialmente reproduzi o papel de professor que eu conhecia: explicava os exerccios dados, deixava que fizessem sozinhos, corrigia todos os exerccios e mostrava os possveis erros que poderiam cometer, caso no seguissem os passos indicados. Nem pensava em descoberta de regras, em respeitar estratgias prprias para resoluo.4

Ciclo Bsico Continuidade- classe formada por alunos que permaneciam no Ciclo Bsico por mais um ano, j que no conseguiam se alfabetizar nos dois primeiros anos de escolaridade do Ensino Fundamental. 5 O 2 grau na poca equivalia ao Ensino Mdio atual. Eu optei pelo curso tcnico em edificaes.

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Valorizava a metodologia e a memorizao da seqncia de aes. Um fator eu tinha ao meu favor: achava que sabia o contedo e tinha segurana sobre as etapas de execuo dos exerccios. Ou seja, tinha uma viso tecnicista de ensino. Bastava ensinar as regras que os alunos aprenderiam os contedos. Hoje, ao refletir sobre aqueles momentos, percebo que eu no aproveitava o que os meus alunos traziam da sua vida, porque no conseguia fazer relao entre os contedos discutidos no curso e os saberes que traziam. No entanto, valorizava o que sabiam sobre o contedo a ser ensinado e, por isso, preparava mais que uma atividade para classe; oferecia exerccios sobre o contedo apresentado para os que tinham condio de resolv-los e, para aqueles que apenas estavam em fase de compreenso, sugeria atividades diversificadas, preparadas para corresponder s suas possibilidades individuais. Acredito que, por trs das minhas aes, havia um conjunto de idias e concepes sobre como possibilitar que o aluno fosse protagonista de sua aprendizagem, mas eu no tinha conscincia delas, nem das teorias que as embasam. Eu acreditava que a aprendizagem era sustentada pela ao do aprendiz sobre a informao que estava sendo oferecida; j concebia que o aluno no aprende diante da passividade, mas ainda adotava a postura de propor que eles refizessem as atividades j discutidas. Hoje tenho clareza de que o aluno tem que transformar a informao em conhecimento prprio e que esta concepo de aprendizagem implica prticas pedaggicas diferenciadas. Como sempre me dediquei aos estudos, busquei incessantemente um aperfeioamento profissional durante toda minha trajetria. Para mim, tudo era novidade. Eu tinha sede de adequar as minhas aulas a outros instrumentos didticos que no fossem apenas os livros didticos, os quais considerava e considero importantes para o cotidiano dos alunos, mas no eram suficientes para o meu fazer em sala de aula. Fiz ento inmeros cursos e participei de todas as oportunidades de reciclagem, capacitao, atualizao e formao permanente6. Entre esses cursos, os mais significativos para o meu desenvolvimento profissional foram: Menino quem foi teu mestre, ministrado por Beatriz Cardoso, autora do livro Ler e escrever um grande prazer. Outra oportunidade significativa, no6

As definies destes termos: reciclagem, capacitao, atualizao e formao sero apresentadas mais adiante, no item 1.3.

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final da dcada de 1980, foi a participao no Projeto Ip: teleconferncias realizadas em escolas pblicas estaduais sobre as diferentes disciplinas, com depoimentos de professores sobre a teoria e a prtica que embasavam as atividades apresentadas, normalmente bem sucedidas. Participei, ainda, de inmeros cursos de reciclagem oferecidos pela 1 Delegacia de Ensino de Jundia e, por indicao, fui nomeada coordenadora pedaggica da escola. No satisfeita com minha atuao como professora nem como coordenadora, depois de quinze anos de carreira, pensando na aposentadoria e almejando cargos mais elevados, fiz em 1989 e 1990 o curso superior de Pedagogia, vislumbrando uma possibilidade de ser diretora. Rocha (2005, p. 48-49) justifica essa fase de desenvolvimento na carreira do magistrio, enfatizando que a diversificao ou experimentao ocorre entre o 7 e o 25 anos de atividade docente, j que nesse perodo: ocorre o investimento na carreira visando a ascenso profissional em cargos administrativos. Os desafios e a necessidade de assumir novas possibilidades esto relacionados ao medo da rotina e necessidade de manter o entusiasmo pela carreira docente. Dando continuidade, fiz dois cursos extracurriculares de Superviso Escolar e Orientao Educacional, em 1990, e ingressei nos cursos de ps-graduao lato sensu da Unio das Faculdades Claretianas, na cidade de Batatais-SP. Nesse programa, fiz vrios cursos de especializao: O processo ensino aprendizagem: uma fundamentao filosfico-antropolgica e tcnico-pedaggica, em 1993; Direito educacional no processo ensino-aprendizagem, em 1995; Metodologia do ensino de Matemtica, em 1998, Metodologia do ensino de Portugus, em 1999 e Metodologia do ensino de Cincias, em 2000. O curso de Metodologia do ensino de Matemtica, ministrado pelo professor Luiz Roberto Dante, tambm na mesma universidade, foi bem significativo, pois refletimos sobre a importncia do ensino de Matemtica voltado s necessidades cotidianas dos educando. Atualmente, aps as leituras e discusses realizadas no mestrado, conclu que meus estudos se deram pautados nos princpios da Educao

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Matemtica. Naquela poca descobri a importncia dos registros para (re)significar7 a prtica; inclusive tenho alguns deles at hoje. Nos anos de 2000 e 2001 participei dos cursos promovidos pelo MEC como PCN em Ao8 e PROFA9, os quais trouxeram informaes pontuais para meu percurso profissional, pois j atuava como formadora. Em 2002 e 2003 participei de um curso de especializao oferecido pela FLACSO Faculdade de Educao da Argentina e de Barcelona , ministrado por mestres e doutores desses dois pases, que foram contratados pela prefeitura de Jundia e promoveram debates e estudos sobre Construtivismo e Educao. Esse curso teve a carga horria de 800 horas e tinha como coordenador o Prof. Dr. Mrio Carreteiro. Nessa oportunidade aprofundei meus conhecimentos sobre a teoria de Piaget, entrei em contato com os pressupostos tericos de Bruner e de Vrgnaud, entre outros. Ressalto que insistia em freqentar os cursos e tudo que aprendia e estudava tentava transpor para minha prtica e partilhar com as pessoas com quem trabalhava. Agora entendo que esses cursos de formao, alm de centrados no que ensinar e no como ensinar, enfatizavam a necessidade de atendimento ao currculo formal. Os congressos e encontros tambm me deixavam em conflito com minha docncia e com o meu papel social. No entanto, ainda era perturbador aceitar que o ensino deveria centrar-se em contedos teis e em outros neutros, sempre de forma fragmentada. Os embates tericos e metodolgicos apresentados pelos professores e pesquisadores mostravam-me que era necessrio repensar sobre as minhas crenas relacionadas ao processo de ensino e de aprendizagem. Indicavam a pedagogia de projetos como alternativa, porm no cotidiano vamos as gavetas do conhecimento10 sendo abertas e fechadas a todo instante.

Adotarei, como Nacarato (2000, p.11), o termo (re)significar para indicar a produo de novos significados ou sentidos para um conceito j visto ou conhecido. Tambm pode significar um novo olhar, uma nova concepo. 8 PCN em Ao: Programa de Desenvolvimento Profissional Continuado com o propsito de apoiar e incentivar o desenvolvimento profissional de professores e especialistas em educao de forma articulada com a implementao dos Parmetros Curriculares Nacionais. 9 PROFA: Programa de Formao de Professores Alfabetizadores- curso de aprofundamento, destinado a professores e formadores, que se orienta pelo objetivo de desenvolver competncias necessrias a todo professor que ensina ler e escrever. ( 2001, p.5) 10 Gavetas do conhecimento esta expresso se refere s aulas dadas focando os contedos especficos da disciplina, sem preocupar-se com as relaes entre eles, ou seja, com a interdisciplinaridade. (WEIZ, 2000, p.42)

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Aps mais de vinte anos de atuao como professora e com experincia em coordenao e direo, mantive minha caminhada de busca de aperfeioamento profissional: candidatei-me a uma vaga no mestrado e iniciei o curso em 2005.

1.3. Reflexes sobre esses momentos experienciados Hoje interpreto que a minha inteno, ao participar de tantos cursos, era melhorar a prtica pedaggica, por acreditar que dessa forma promoveria transformaes no sistema escolar. Eu tinha a convico de que bastava oferecer ao docente novas teorias e metodologias que ele, ao enfrentar o cotidiano da sala de aula, as colocaria em prtica e o sucesso esperado seria alcanado. Nesse sentido, o professor seria o receptor e o aplicador de teoria pronta. No entanto, apoiando meus estudos em Nacarato (2000) para compreender o significado e a concepo dessas propostas de oferecimento de cursos aos professores (reciclagem, treinamento, capacitao), convenci-me de que cada termo utilizado para nome-los carregava um significado ideolgico. Os cursos de reciclagem apoiavam-se na inteno de modificar as prticas, simplesmente ignorando qualquer tipo de conhecimento que o docente possusse; tais conhecimentos no tinham valor. Os treinamentos nada mais eram que oportunidades de melhorar a prtica pelo treino de situaes para alcanar a perfeio. Trata-se de uma viso tecnicista, segundo a qual basta oferecer ao professor modelos de atividades e trein-los na sua realizao, que seriam capazes de reproduzi-los em suas prticas. Quanto capacitao, termo usado com muita freqncia, a autora, pautada em Marin (1995), afirma que pode ter duas significaes: tornar capaz, habilitar, por um lado, e, por outro lado, convencer, persuadir:O primeiro significado at aceitvel, pois nenhuma profisso pode ser exercida sem capacidade e habilidade para tal. No entanto, o segundo significado totalmente inaceitvel, pois a persuaso antagnica concepo atual do(a) professor(a) enquanto profissional reflexivo(a). (NACARATO, 2000, p. 16)

Aps as leituras, reflexes e discusses realizadas durante o mestrado e diante de uma anlise sobre as situaes de ensino que vivenciei na poca; sobre as condies de estudos; sobre a inteno de implementao das Propostas Curriculares do Estado de

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So Paulo11; e sobre o trabalho desenvolvido nas unidades, verifico que os avanos na atuao docente na sala de aula aconteceram de forma gradativa. No entanto, ressalto que os modelos de formao de professores a que assisti e que vivenciei durante esses anos foram norteados pelo modelo positivista e estavam pautados no paradigma da racionalidade tcnica12, ou seja, o professor participava (e participa) de cursos fora do seu ambiente de trabalho, recebe novas teorias e metodologias elaboradoras por especialistas e tenta aplic-las na sua sala de aula. Para Nacarato (2000), o paradigma da racionalidade tcnica se efetiva em cursos desse tipo e, quanto ao() professor(a), este tem um papel passivo diante das recomendaes dos tericos e investigadores sobre sua prtica. Este(a) professor(a) no considerado capaz de elaborar saberes profissionais e tomar decises sobre sua prtica. (NACARATO, 2000. p.19). Em relao ao investimento para garantir a aprendizagem dos contedos de Matemtica previstos pelas Propostas Curriculares de So Paulo, a CENP Coordenadoria de Estudos e Normas Pedaggicas da Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, no incio da dcada de 1980, publicou a coletnea Atividades Matemticas, conhecida pela sigla AMs. Penso tratar-se de material muito rico, ainda atual e por mim utilizado quando estava em sala de aula. Nos anos de 1993, 1994 e 1995, assumi, no perodo da manh e da noite, a direo da escola em que sou efetiva at hoje e, no perodo da tarde, trabalhava na Educao Infantil do Municpio. Mesmo como diretora, achava tempo para atuar na parte pedaggica. Foram anos de grandes experincias e de (re)significao de aes pedaggicas voltadas adequao de currculo e ao oferecimento de atividades desafiadoras para os alunos, com reflexo sobre como se d o processo de aprendizagem. Na direo, tomei conscincia da existncia das relaes de poder e compreendi como complicado interagir com a singularidade de cada um, com o respeito que cada

Propostas Curriculares de So Paulo: propostas que subsidiavam a ao docente, estabelecendo contedos mnimos a serem alcanados pelos alunos ao final de cada ano letivo e nvel de ensino. (CENP, 1992, p.3) 12 A expresso racionalidade tcnica foi amplamente discutida por Schn (apud NACARATO, 2000, p. 16). Segundo ele, a racionalidade tcnica uma epistemologia da prtica que se deriva da filosofia positivista e se constri sobre os prprios princpios da investigao universitria contempornea. Nessa concepo, o professor visto como um aplicador de teorias elaboradas pelos especialistas e a ele cabe apenas a tarefa de aplic-las.

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um merece. Percebi que os professores precisavam ser reconhecidos financeiramente e notei que a maioria no se contentava com o que sabia, tinha sede de ampliar sua formao. No trabalho na Educao Infantil, a situao era oposta. Eu era professora contratada, deveria seguir um planejamento imposto e, mesmo que quisesse inovar, era barrada pelos horrios, pela fiscalizao das aes e pela montagem das pastas de atividades com exerccios mecnicos em preparao para a alfabetizao. A vigilncia na sala de aula era algo que me assustava. Foram trs anos muito tumultuados para mim, mesmo j tendo cursos de aprofundamento terico e prtico baseados na proposta construtivista13. Participei de vrios cursos de capacitao e fui sendo reconhecida pelo trabalho que desenvolvia, visto no me intimidar diante das gravaes das minhas aulas para posterior anlise e estudos pelos capacitadores. Em 1996 houve a municipalizao do Ensino Fundamental de 1 ao 4 ano14 em Jundia e todas as professoras efetivas do Estado foram assumidas pelo municpio de Jundia. Eu tive que deixar a direo e desistir do cargo de professora de Educao Infantil do Sistema Municipal de Ensino de Jundia, para assumir minha classe de 4 ano na escola em que sou efetiva at hoje. Em abril daquele mesmo ano, houve uma prova de seleo para coordenao pedaggica. A seleo consistia na entrega de projeto. O meu projeto foi selecionado e assumi a coordenao dessa mesma escola. Os anos de 1997 e 1998 foram considerados anos de difceis acomodaes para os professores da rede estadual. Muitas cobranas, muitas proibies e at mesmo retirada de materiais pedaggicos importantes da unidade, com a proibio de uso. Todo nosso discurso no convencia os superiores. Hoje, aps participar de diferentes discusses sobre o uso de materiais manipulveis, compreendi diante da leitura de alguns textos, que no o simples uso dos materiais que possibilitar a elaborao conceitual por parte do aluno, mas a forma como esses materiais so utilizados e osProposta Construtivista nesta proposta o conhecimento no concebido com uma cpia do real, incorporado diretamente pelo sujeito: pressupe uma atividade, por parte de quem aprende, que organiza e integra os novos conhecimentos j existentes. (Documento interno da SME com especificaes sobre a Proposta Pedaggica adota pelo sistema de ensino, 1999, p.10) 14 1 ao 4 ano- segundo o artigo 7 do Regimento Comum das Escolas Municipais de Educao Bsica de Jundia o Ensino Fundamental ser organizado em dois ciclos, com durao de 4 anos de efetivo trabalho escolar cada um , da seguinte forma: Ios quatro primeiros anos do Ensino Fundamental constituem o Ciclo I, com a denominao de 1, 2, 3 e 4 anos do Ciclo Um (C 1) IIos quatro ltimos anos do Ensino Fundamental constituem o Ciclo II, com a denominao de 1, 2, 3 e 4 anos do Ciclo Dois (C 2) (1998, p.30)13

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significados que podem ser negociados e construdos a partir deles, pois concordo que o uso inadequado ou pouco exploratrio de qualquer material manipulvel pouco ou nada contribuir para a aprendizagem matemtica. O problema no est na utilizao desses materiais, mas na maneira como utiliz-los. (NACARATO, 2004, p.4). Fiquei assustada com minha instabilidade profissional aps a municipalizao e, como estava instigada com a proposta salarial compensadora do municpio, prestei o primeiro concurso para efetivao de professores de 1 ao 4 ano do municpio de Jundia. Fui aprovada numa boa classificao, desisti da minha carreira no Estado e assumi uma classe na mesma escola, na minha escola. Trabalhei em sala de aula durante 60 dias e novamente fui escolhida para assumir o cargo de coordenadora pedaggica da mesma escola, como cargo de confiana da Secretaria Municipal de Educao, o que me possibilitou participar de vrios congressos e seminrios. 1.4. A atuao como formadora Meu percurso de formadora teve incio em 1988, quando fui convidada a ser coordenadora na escola estadual, onde sou efetiva atualmente. Confesso que, na poca, no tinha clareza do papel de formadora e minha atuao era impregnada de aes fechadas e instantneas, sem preocupao com a prtica reflexiva. Tentava de todas as formas auxiliar o professor a compensar suas deficincias; em alguns momentos at mesmo eu dava aula para ele assistir, pensando que a transposio desse modelo para a prtica do professor se desse num abrir e fechar dos olhos, ou, ainda, faa assim que d certo. Hoje concebo que se escondia, por trs desse fazer, o modelo repetitivo e da racionalidade tcnica. No entanto, era isso que eu sabia fazer. Quando assistia aos cursos e oficinas oferecidos pela Delegacia de Ensino, no via a hora de chegar na escola para passar tudo para as professoras. Muitas vezes at preparava a atividade e solicitava que as professoras aplicassem, pois tinha certeza de que traria alguma contribuio. Adotava o modelo aplique que d certo. Tenho arquivada a avaliao da professora Sandra, de novembro de 1989, na qual ela expe: ela boa coordenadora, participa dos cursos, traz orientaes, muitas vezes at aplica em sala de aula.

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Tinha a inteno de ser co-autora do trabalho que acontece em sala de aula, porm no era problematizadora do processo de formao do professor, pois no permitia que este reelaborasse as situaes propostas para a sua prtica. No tinha clareza sobre a incompletude da formao docente e do desenvolvimento profissional.O processo de formao do professorado implica a resoluo de problemas de rotina em vez de tarefas de compensao. Do meu ponto de vista, o desenvolvimento profissional do docente um processo educativo que implica o desenvolvimento da compreenso das situaes concretas que se produzem na classe em que trabalham. A aplicao de regras gerais evita de antemo essa compreenso. (ELLIOT apud NACARATO, 2000, p.22) No posso descartar

esse perodo inteiramente, pois foi nele que foram consolidadas amizades e construdas aprendizagens por tentativa e erro. Nosso grupo era formado por oito professoras efetivas do Estado e posso dizer que atuvamos juntas e nossa linguagem era comum. O respeito foi construdo entre pares, pois discutamos problemas e situaes de sala de aula como se fossem do grupo. Como sempre gostei de escrever, registrava os encontros, em forma de relatrio, enumerando concluses e os combinados; lamos esses registros, feitos com papel carbono, no incio dos estudos. Esse recurso possibilitou que montssemos duas pastas: uma para a escola, para consulta coletiva, e outra que ficava comigo. Vrios registros dessas reunies serviram de instrumento de anlise para as oficinas da Delegacia de Ensino. Quando visitava a sala de aula, tambm dava uma devolutiva por escrito, para cada professora, das observaes feitas. At hoje, algumas professoras, quando me encontram, comentam sobre os bilhetes que eu entregava para elas ao trmino das visitas. Os professores incorporaram esse procedimento e faziam o dirio no apenas com registros das falas dos alunos, dos momentos bem sucedidos e algumas vezes das angstias, mas tambm com reflexes sobre essas ocorrncias. . Ns lamos esses registros nos encontros mensais, que contemplavam momentos para sua leitura e discusso. No pensvamos na importncia dos registros, mas concebamos que se o aluno, ao escrever, pe em jogo o que sabe, ns tambm, ao registrarmos para o outro ler, estaramos pensando sobre a escrita; no havia a concepo da reflexo sobre a prtica, e sim sobre a ortografia, a coerncia e a coeso dos registros, pois com o aluno o propsito era formar bons escritores e leitores e conosco no poderia ser diferente. Discutamos que, se existia a necessidade de que o aluno escrevesse expondo suas idias, seria interessante que parssemos alguns minutos

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por dia para colocar nosso fazer no papel. No tnhamos a concepo defendida por Weisz (2000, p.129):O ato de refletir por escrito possibilita a criao de um espao para que a reflexo sobre a prtica ultrapasse a simples constatao. Escrever sobre alguma coisa faz com que se construa uma experincia de reflexo organizada, produzindo para ns mesmos, um conhecimento mais aprofundado sobre a prtica, sobre as nossas crenas, sobre o que sabemos e o que no sabemos. Ao escrever para comunicar uma reflexo sobre o que se fez na prtica profissional, somos obrigados a organizar idias, a buscar uma articulao entre elas e a avanar no conhecimento sobre o prprio trabalho.

No considerava tambm que escrever fazer histria (PRADO e SOLIGO, 2005); muitos daqueles registros possibilitaram a escrita desta narrativa. De 1988 a 1999 atuei como coordenadora pedaggica exceto os 60 dias para ingresso no sistema municipal de ensino e, em 1999, fui convidada para assumir um cargo de confiana do secretrio da educao, como assessora pedaggica15. Entrei em conflito, mas, assumi esta oportunidade mpar como a maioria das pessoas que almejam tal cargo denomina , pois, pela prpria natureza do trabalho, estaria aprendendo muito e seria uma oportunidade de ampliar ou de consolidar as minhas concepes sobre educao e formao docente. Iniciei meu trabalho como assessora pedaggica, em julho de 1999, em catorze escolas integradas16 da zona rural do municpio e nove entidades17 de atendimento a crianas com necessidades especiais. Foi um trabalho desafiador. A realidade das escolas, dos alunos e dos professores era bem diferente: suas vivncias, seus conhecimentos e sua dedicao. Nossas horas de estudo18 aconteciam numa escola-sede,15

a maior delas, com trs salas; como todo o grupo sempre

Assessora Pedaggica: profissional que precisa desenvolver a capacidade de intervir em diversas situaes complexas com objetividade e coerncia e para isso preciso que tenha competncias bsicas imprescindveis. Competncias essas que so construdas processualmente, em movimentos singulares, com prticas de ao/reflexo/ao numa dinmica dialtica e contnua, que transforma prtica e conhecimento, ou seja, as diferenas de percurso devem ser consideradas e respeitadas. (Documento interno da SME com especificaes sobre a funo do assessor 1999- p. 3) Se este texto for uma citao, convm usar aspas. 16 Escolas Integradas so escolas de zona rural com classes multisseriadas e um diretor que assume mais que trs escolas, pois o nmero de classes de cada escola reduzido. 17 Entidades sedes de atendimento a criana com necessidades especiais que recebem alunos do municpio no perodo contrrio ao que freqentam a escola regular para realizao dos atendimentos com especialistas. 18 Horas de Estudos so trs horas de trabalho extra-classe, cumpridas na unidade escolar em horrio diverso daquele trabalhado em salas de aula destinadas capacitao continuada e preparao das atividades docentes. (artigo 21 - do Estatuto do Magistrio e Plano de Carreira do Sistema Municipal de Jundia- 1998, p. 12)

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freqentava o mesmo local, conseguimos estreitar nossos laos, construir um espao solidrio de discusso e, mesmo que eu no tivesse tido oportunidade de estar na escola ou na entidade e perceber suas demandas mais urgentes, ns conversvamos sobre elas. Aprendi muito nos dois anos em que fiquei com esse grupo. Senti com os professores suas dificuldades de trabalho: todas essas escolas recebem professores substitutos que assumem e tm como recurso apenas giz e lousa; a escola no tinha acervo didtico; no tinha equipamento eletrnico; a merenda muitas vezes era servida pela professora. Em 2002, assumi19 o grupo de escolas em que atuo at hoje. So onze escolas e duas entidades. Trs escolas de Ensino Fundamental de 1 ao 4 ano, com mais de 500 alunos; trs escolas que atendem alunos de Educao Infantil e Ensino Fundamental Ciclo 1 - 1 ao 4 ano, com 300 alunos, em mdia; quatro escolas que atendem alunos de Educao Infantil; uma escola que oferece Educao Infantil e Ensino Fundamental C 1 e C 2; uma entidade de atendimento s crianas portadoras de Sndrome de Down; e uma entidade que atende alunos com deficincia auditiva. Diante de tanta diversidade no meu trabalho e da procura incessante e consciente de alternativas para acalmar minhas inquietaes sobre as especificidades das situaes que vivencio, como formadora, reconheci desse processo educativo. 1.5. Um novo olhar para a formao docente e para a pesquisa: minhas primeiras leituras no mestrado O sonho de cursar o mestrado concretizou-se em 2005 e, mais uma vez, minha experincia construda historicamente nas interaes me permitiu um novo olhar. Olhar de concretude, de (re)elaborao e de compreenso sobre a incompletude do ser humano. A insegurana diante do novo aconteceu: novos espaos de discusso, novas abordagens e novos saberes. A concepo sobre a Educao Matemtica me fascinou. A Historiografia era uma abrangncia da histria de que nunca havia ouvido falar. Quanto Psicologia e Sociologia, eu navegava em algo bem diferente do que era por mim19

a necessidade de buscar meu

aperfeioamento profissional, a fim de investigar e melhor entender a complexidade

No ano de 2002, o secretrio de educao alterou o setor de trabalho de algumas assessoras e fui trabalhar com um grupo de escolas da zona rural e da zona urbana do Municpio de Jundia.

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conhecido. Os conflitos cognitivos me instigavam pela continuidade. Quanta alegria e quanto prazer em participar daquelas discusses fervorosas! Confesso que, apesar de no cotidiano no estar contente com a postura do professor transmissor de conhecimento, sentia a sua falta nos primeiros encontros com os docentes do Programa de Ps-Graduao. Precisei me recompor por diversas vezes para enfrentar o novo. Nas aulas, travvamos discusses e refletamos sobre os conceitos e concepes de grandes educadores e (re)significvamos nossos saberes. A abertura para a exposio de nossas idias e concepes era algo que no fazia parte do meu cotidiano; eu no estava acostumada; por isso, o meu estranhamento e a minha vontade de ter o professor dador de aula. Foi um percurso bem interessante na minha formao e em meu desenvolvimento profissional. A dinmica da universidade, os encontros semanais com estudantes de diferentes locais e com diferentes especializaes, associados ao acolhimento pelos professores e s aulas com propostas de leitura para posterior debate foram determinantes para minha compreenso sobre a educao continuada20, sobre a necessidade do meu aperfeioamento profissional e sobre o novo aprendizado de ser pesquisadora. Os trabalhos escritos, associados ao convvio entre os pares seja ele pelo contato semanal ou pelo contato via Internet foram determinantes para que me sentisse mestranda em processo de pesquisadora. Quantas novidades! Pude ler, inicialmente, duas teses de doutorado21 que tematizavam a formao de professores e dois trabalhos de iniciao cientfica dos alunos da universidade. Gosto muito de ler e as leituras foram muito prazerosas, pois na sua maioria traziam significado para minhas intenes de pesquisadora e ampliavam meus horizontes sobre as temticas j pesquisadas.

20 Educaco continuada adotarei este conceito, pois concordo com Nacarato (2000,p.18): englobaria tudo aquilo que contribui para o desenvolvimento docente, enquanto profissional. 21 NACARATO (2000): Educao Continuada sob a perspectiva da pesquisa-ao: currculo em ao de um grupo de professoras ao aprender ensinado Geometria. Com essa leitura aproximei-me dos termos acadmicos e pude apropriar-me de contedos defendidos que serviram de embasamento para minha compreenso sobre educao continuada que englobaria tudo aquilo que contribui para o desenvolvimento docente, enquanto profissional (p.18). COSTA (2004): Formao de Professores para o ensino de Matemtica com informtica integrada prtica pedaggica: Explorao e anlise de dados em bancos computacionais. Essa tese teve um significado especial para mim, pois, alm de servir de bibliografia para meu projeto, possibilitou-me o levantamento de conjecturas sobre a formao de professores num grupo colaborativo.

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Participei do GRUPEPRASE22. Fizemos estudos sobre a importncia do clculo mental na escola e fora dela. Realizamos pesquisas sobre esse tema e montamos uma oficina, destinada a professores e a futuros professores da educao bsica, que propunha o desenvolvimento de atividades com jogos e resoluo de problemas, envolvendo estratgias e habilidades de clculo mental. Minha participao na elaborao e na realizao da oficina foi determinante para que entendesse como se d um trabalho colaborativo, o qual fez parte da metodologia dos meus encontros com as professoras participantes da minha pesquisa. Participei tambm, no ano de 2005, do Grupo de Geometria constitudo por alunos das professoras Adair Mendes Nacarato e Regina Clia Grando, dos cursos de graduao e ps-graduao da USF, o qual se rene semanalmente para refletir sobre estratgias investigativas com contedos de Geometria na sala de aula de Ensino Fundamental. Essa oportunidade proporcionou-me a aproximao de uma modalidade de trabalho que envolvia contedos matemticos que nunca havia vivenciado e com os quais nunca havia tido contato. Para decidir sobre os recursos metodolgicos da pesquisa em educao e sobre o tipo de abordagem, coleta e anlise de dados, fiz a leitura de livros que traziam esses embasamentos para meu percurso de pesquisadora. Aproximei-me de concepes de Bogdan e Biklen (1994), Menga e Andr (1996) e Goldenberg (1997). Percebi o quanto importante para o pesquisador ter olhar cientfico e criativo para o desenvolvimento de um trabalho criterioso baseado no confronto permanente entre o que deseja investigar e a realidade propriamente dita. Ficou evidente, ainda, que os dados no se revelam gratuita e diretamente aos olhos do pesquisador: o papel do pesquisador justamente o de servir como veculo inteligente e ativo entre o conhecimento acumulado na rea e as novas evidncias que sero estabelecidas a partir da pesquisa. (MENGA; ANDR, 1996, p.5). Essas leituras foram decisivas tambm para meu entendimento sobre a relao implcita entre a escolha do objeto de estudo da pesquisa e os meus propsitos, aspectos que estarei trazendo no captulo da metodologia.

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GRUPEPRASE: Grupo de estudos e Pesquisas em Prticas Sociais Escolarizadas, constitudo de alunos da ps-graduao e docentes do Programa de Ps-graduao Stricto Sensu em Educao, na linha de Matemtica, Cultura e Prticas Pedaggicas. Trata-se de um grupo cadastrado na Plataforma Lattes/CNPq e coordenado pelas docentes Regina Clia Grando e Adair Mendes Nacarato.

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A definio da metodologia, do objeto e das fontes e documentos de pesquisa e a constituio da pesquisadora como a pessoa que lana mo de todos os recursos disponveis para auxiliar a compreenso do problema estudado, foram aprendizados que se deram pelo contato direto com o GRUPEPASE - Grupo de Estudos e Pesquisas em Prticas Sociais Escolarizadas. A releitura das teses de Nacarato (2000) e Costa (2004), aps o cumprimento dos crditos, foi algo que me agradou muito, pois eu estava me transformando durante o mestrado e meu olhar estava direcionado a outros aspectos que nem havia cogitado na primeira vez que tive contato com os textos. Os conhecimentos eram outros e a intencionalidade no momento de ler voltava-se aos enfoques da produo da pesquisa e das teorias que trariam contribuies para interpretar os dados que estava registrando no grupo com as professoras. Fizeram parte das minhas leituras sobre formao de professores os textos e artigos de Shulman (1986), Fiorentini ( 2002) e Mizukami (2004). Foram seis disciplinas cursadas e, em cada uma delas, novos conhecimentos, novos olhares para a prtica educativa e/ou a formao docente. Paralelamente aos crditos, dei incio pesquisa de campo descrita em captulo posterior.O cumprimento dos crditos, associado aos estudos e ao incio do meu percurso de pesquisadora, foi decisivo para que eu entendesse que somos sujeitos da nossa formao e que a transformao acontece na medida em que, ao longo do percurso, conseguimos produzir sentidos para as nossas experincias e, conseqentemente, damos sentido aos nossos saberes; logo, somos sujeito[s] da experincia. Esse movimento terico transformou-me, modificou-me pela anlise, favoreceu uma nova relao com os meus saberes e pde ser confirmado pelas idias subjacentes ao conceito da experincia anunciado por Larrosa (2004): experincia aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nos acontece e, ao passar-nos, nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experincia est, portanto, aberto a sua prpria transformao. (p.126).

A minha prpria vida transformou-se, pois, alm de compreender que a prtica pedaggica no reside na aplicao pura de uma nova tcnica de ensino, mas sim na postura diferenciada que o professor e os alunos apresentam em relao ao conhecimento, compreendi tambm que a experincia no o caminho at um objetivo previsto, at uma meta que se conhece de antemo, mas uma abertura para o desconhecido, para o que no se pode antecipar nem pr-ver nem pr-dizer. (LARROSA, 2004, p.132).

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Os dilogos com diferentes interlocutores, ora na retomada do meu percurso docente, ora atravs de textos ou ainda por meio de discusses de estudos em desenvolvimento realizados na minha atuao como formadora evidenciaram os saberes docentes como um fenmeno complexo e instigante. Associado a este aspecto, a busca constante de alcanar melhorias nas prticas educativas levou-me a investigar os processos de formao dos profissionais que atuam diretamente na sala de aula, tomando a reflexo sobre a prtica e o processo de aprendizagem docente e de desenvolvimento profissional como objeto de estudo. Um olhar mais prximo da minha trajetria foi determinante para que eu estivesse inserida no contexto da pesquisa como sujeito em busca do desenvolvimento profissional. Dessa forma, investiguei e refleti sobre o processo de aprendizagem docente e o desenvolvimento profissional, estabelecendo dilogo entre as minhas aes, as aes do coordenador pedaggico e as propostas feitas pelas professoras aos alunos. Aps a reviso bibliogrfica e a interlocuo com minha orientadora, revisei o meu projeto inicial e defini como foco da investigao a formao e o desenvolvimento profissional das docentes que atuam nas sries iniciais do Ensino Fundamental. O Esquema 1 a seguir uma representao, sob minha interpretao, da constituio do sujeito, num movimento recproco entre o eu (singular) e o outro, ambos assumindo constantemente diferentes papis e buscando a apropriao de saberes. Esquema 1: Movimento Singular entre o eu e o outro.

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Assim, no prximo captulo trago as reflexes tericas, fruto de minha reviso bibliogrfica, com vistas a compreender o objeto desta pesquisa.

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2. DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL: ELEMENTOS POTENCIALIZADORESTodo saber implica um processo de aprendizagem e de formao; e quanto mais desenvolvido, formalizado e sistematizado um saber, mais longo e complexo se torna o processo de aprendizagem, o qual, por sua vez , exige formalizao e uma sistematizao adequada. (TARDIF, 2002, p.35)23

A busca constante de melhorias nas prticas educativas levou-nos a investigar

os processos de formao dos profissionais que atuam diretamente na sala de aula, tomando a reflexo sobre a prtica e os processos de aprendizagem docente e de desenvolvimento profissional como objetos de estudo. Para justificar a necessidade da realizao da pesquisa, pautamonos em estudos que apontam a carncia de pesquisas com professores que ensinam Matemtica, desenvolvidos por Fiorentini et al. (2002). Os autores apresentam dados do balano de 25 anos (at 2002) das pesquisas sobre professores. Num conjunto de 112 estudos, destacam: dentre as 24 pesquisas relacionadas no subfoco - estudos de programas e curso - apenas 4 investigaram a formao de professores das sries iniciais do Ensino Fundamental, sendo todas relativas ao antigo curso do Magistrio de 2 grau. (FIORENTINI et al. 2002, p.143). No mbito da formao continuada, dada a amplitude de focos que podem ser explorados, um recorte se fez necessrio. Pesquisas como as de Nacarato (2000), Lopes (2002) e Costa (2004) apontam que o trabalho de investigao com professores que ensinam Matemtica parece ser mais significativo quando h uma temtica especfica. Nesse sentido, a opo foi pelo campo da Geometria, por constatar que este, apesar de tantas pesquisas acadmicas nos ltimos anos, continua bastante distante desse ciclo de escolarizao (NACARATO; PASSOS, 2003). Dessa forma, a pesquisa centra-se em trs elementos que se inter-relacionam: a escola como locus privilegiado de formao, o grupo possibilitando o trabalho compartilhado e o estudo de uma temtica especfica. Assim, o foco da pesquisa a prtica pedaggica de Geometria, centrada na ao do professor polivalente das sries iniciais e na utilizao de narrativas como estratgia de formao possibilitadora de desenvolvimento profissional.

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A partir deste captulo haver a retomada do foco narrativo na primeira pessoa do plural.

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Os estudos foram pautados nos seguintes eixos: desenvolvimento e aprendizagem profissional, saberes docentes, saberes em Geometria, estratgias de formao e trabalho compartilhado objetos de discusso deste captulo. 2.1. O desenvolvimento profissional O desenvolvimento profissional um construto que vem ganhando espao nas pesquisas sobre formao docente. H, para ele, uma amplitude de significados. (PONTE, 1998; FERREIRA, 2003; GUIMARES, 2004, dentre outros). Diante dessa amplitude, trazemos algumas reflexes tericas; Ferreira (2003), por exemplo, afirma que desenvolver-se profissionalmente :[...] aprender e caminhar para a mudana, ou seja, ampliar, aprofundar e/ou reconstruir os prprios saberes e prtica e desenvolver formas de pensar e agir coerentes, Dessa forma, os conceitos de aprendizagem, mudana e desenvolvimento profissional se encontram entrelaados. (p. 36)

Tal posio complementada por Lopes (2003) que, com base em Ponte (1998), conceitua desenvolvimento profissional como um processo que acontece em um contnuo movimento de dentro para fora e tende a considerar a teoria e a prtica de forma interligada, no privilegiando uma em detrimento da outra. (p.31) Nessa perspectiva, entende-se o desenvolvimento profissional como um processo que acontece ao longo da experincia pessoal e profissional do professor. Pode-se dizer que um processo mais amplo que a formao e envolve aspectos pessoais e profissionais; parte sempre do sujeito que busca sua prpria aprendizagem. Envolve, pois, os processos de mudana e de aprendizagem que acontecem normalmente com o enfrentamento das relaes estabelecidas entre os saberes docentes, as situaes prticas e os valores considerados educativos. Em contrapartida, preocupamo-nos com as propostas de formao generalistas e as experincias, atualmente utilizadas por muitos segmentos educacionais e muitas vezes denominadas renovadas, mas sempre de fora para dentro, que no sensibilizam os professores sobre a necessidade de mudana. Segundo Libneo (2004), essas propostas no se interrogam a respeito das mltiplas redes presentes na formao dos sujeitos e de como estas interagem continuamente, constituindo aquilo que somos e o que fazemos:Acredito que no possvel mudar sem a participao dos sujeitos professores e alunos que fazem a educao acontecer, sem nos interrogarmos profundamente sobre as formas pelas quais aprendemos

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e sem novas ressignificaes de cada sujeito a partir do que vivido e elaborado coletivamente. (LIBNEO, 2004, p.27)

Coerentemente com essa perspectiva, Cifali (2001) apresenta como premissa para uma formao contnua articulada prtica aquela formao que se inscreve no processo profissional do professor. Acreditamos que esse percurso profissional marcado pela mobilizao de um repertrio de saberes e pela produo de novos saberes, com vistas a solucionar os problemas postos pela atividade docente percurso esse mobilizador do desenvolvimento profissional. Gurios (2005, p.130), apoiando-se no paradigma da complexidade, leva-nos a refletir sobre um possvel modo de conceber o desenvolvimento profissional:Princpios do paradigma da complexidade permitiram observar que a ao e a reflexo ocorrem como processos simultneos e contnuos. Embora contnuos, no ocorrem como uma relao direta, imediata e linear de causa e efeito, em que uma determina a outra. Ao contrrio, dependendo de como se vivencia o percurso profissional, idias vo se transformando ao longo do tempo e se constituindo em fundamento terico para a prtica que, simultaneamente, oferece subsdios para a configurao de novas idias que vo sendo desenvolvidas pelos professores, idias estas que so amparadas por conhecimentos pedaggicos e especficos de cada rea do conhecimento.

Mas quais elementos contribuem para o desenvolvimento profissional do professor? Partiremos do pressuposto de que a pertena a um grupo, a utilizao de estratgias formativas e tendo como o objeto de estudo um contedo escolar no caso a Geometria so elementos potencializadores do desenvolvimento profissional (DP), conforme ilustrado no Esquema 2, a seguir: Esquema 2: Elementos potencializadores do desenvolvimento profissional

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DP

P

Traremos algumas reflexes tericas sobre os elementos deste esquema. 2.1.1.Saberes docentes O conceito de saberes docentes polissmico e a tipologia de saberes bastante diversificada. Traremos, ento, algumas concepes relativas aos conceitos de saberes, com a inteno no somente de facilitar a compreenso sobre o processo de ensino e de aprendizagem, como tambm de produzir sentido e significados para as formas de estudos, a elaborao, os novos estudos e a (re)elaborao de atividades que visam fortalecer a prtica pedaggica de experincias discutidas coletivamente. Um rpido movimento histrico se faz necessrio e, entre os autores que tm influenciado as pesquisas brasileiras, apoiaremos nossas reflexes em duas vertentes. Na primeira apresentaremos autores como: Shulman (1986), Tardif, Lessard & Lahahye (1991), Barth (1993), Tardif (2002), Charlie (2001) e Fiorentini, Nacarato e Pinto (1999), que investigaram e investigam a constituio dos saberes, pautando-se na ao pedaggica, na prtica docente e no processo de ensino e de aprendizagem. Como a ao docente est tambm associada, inerentemente, a um valor intrnseco que a formao humana, teceremos nossa abordagem, pautando-nos tambm em aportes tericos de outros autores como: Freire (1996), Charlot (2000, 2005) e Larrosa (2004), os quais investigam a constituio dos sujeitos docentes que se interrogam e interagem

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entre si por meio das experincias e da participao ativa na vida social, cultural e educacional. Dentre os estudos das ltimas dcadas, Shulman (1986) talvez tenha sido o primeiro pesquisador a pensar sobre os saberes e a criar uma tipologia para eles. Evidentemente, sua abordagem foi bastante significativa para a poca e tem sido referncia at os dias de hoje. Chamou-nos a ateno para o fato de que o professor tem no somente o conhecimento da matria que ensina, mas tambm o conhecimento pedaggico do contedo e o conhecimento curricular. Shulman defende que existem campos epistemolgicos e didticos diferentes que no esto atrelados matria propriamente dita e enfatiza que o professor tem autonomia intelectual para produzir seu prprio currculo, a partir dos diferentes modos de organizar conceitos bsicos das disciplinas e das crenas e concepes que o legitimam. As contribuies desse autor referem-se compreenso dos processos de aprendizagem profissional docente a partir do pensamento e do conhecimento do professor, sendo tais conhecimentos aprendidos ao longo de processos formativos e do exerccio do aprendizado profissional; dessa forma, o professor define seus conhecimentos nas interaes com a prtica. O texto de Tardif, Lessard e Lahyae, de 1991, foi bastante utilizado nas pesquisas brasileiras. Esses autores ampliam as concepes tericas anunciadas por Shulman, trazendo para a reflexo o saber da experincia. Para eles, o saber docente oriundo da formao profissional. So os saberes da disciplina, associados aos saberes dos currculos, que mostram a capacidade de o professor produzir, na reflexo sobre a prtica, uma ao diferente proveniente dos saberes da experincia. Barth (1993) tambm ampliou o conceito de saber docente, incorporando a perspectiva de sua evoluo histrica. Considerou que os saberes so, ao mesmo tempo: estruturados, evolutivos, culturais, contextualizados e afetivos. Segundo ela, o saber estruturado, pois organiza os conceitos atravs de uma rede de conexes: cada pessoa cria sua prpria rede, associando tudo o que sabe ou sente em relao a uma idia; o saber evolutivo, pois sempre provisrio, segundo uma ordem pessoal e a experincia de cada um; o saber cultural, pois se constitui pela interao entre os membros da mesma cultura e a partir da troca de experincias; o saber contextualizado, porque no contexto que se compreende o significado do que foi

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produzido em determinado momento da prtica pedaggica; e, finalmente, o saber afetivo, pois atravessado pela emoo. No mbito da relao do saber e de sua constituio, Barth atribui importncia tanto teoria quanto prtica e destaca a importncia da reflexo do professor sobre o contedo de ensino. Introduz, assim, caractersticas pessoais, contextuais e culturais (FIORENTINI, SOUZA e MELLO, 1998). Tardif (2002) tambm incorporou a dimenso histrica do saber, em trabalho posterior, ao enfatizar que o saber o resultado de uma atividade intelectual; no h separao entre o profissional, seus saberes e sua prtica: o novo surge e pode surgir porque o antigo reatualizado constantemente por processos de aprendizagem (p.35). Para tanto, o saber exige uma formalizao e uma sistematizao adequada. Nessa perspectiva, concordamos com a oposio do autor em relao viso fabril dos saberes, que d nfase somente dimenso da produo:para evidenciar a posio estratgica do saber docente em meio aos saberes sociais necessrio dizer, mesmo o novo se insere numa durao temporal que remete histria de sua formao e de sua aquisio. Todo saber implica um processo de aprendizagem e de formao; e, quanto mais desenvolvido, formalizado e sistematizado um saber, como acontece com as cincias e os saberes contemporneos, mais longo e complexo se torna o processo de aprendizagem, o qual, por sua vez, exige uma formalizao e uma sistematizao adequada. (TARDIF, 2002, p.35)

A prtica docente uma atividade que mobiliza diversos saberes definidos pela relao dos docentes com eles. Tardif (2002) defende tambm que os saberes docentes so: temporais, plurais e heterogneos. O saber plural, pois, segundo o autor, formado pelo amlgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formao profissional e dos saberes disciplinares, curriculares e experienciais (p.36); temporal, por ser adquirido atravs da experincia pessoal e renovado pelo acesso sistemtico e contnuo dos saberes sociais disponveis; e heterogneo, por se compor de vrios saberes, provenientes de diferentes fontes. O mesmo autor considera que o valor social, cultural e epistemolgico dos saberes reside em sua capacidade de renovao constante: os processos de aquisio e aprendizagem dos saberes ficam, assim, subordinados material e ideologicamente s atividades de produo de novos conhecimentos (TARDIF, 2002, p.34)

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Tais posies nos remetem a Freire (1996), quanto historicidade do sujeito e necessidade de busca constante pelo aprendizado, ou seja, pelo fato de a educao exigir um constante aprimoramento, preciso busc-la por meio da indagao, do dilogo e da pesquisa:no h ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar o que ainda no conheo e comunicar ou anunciar a novidade. (FREIRE, 1996, p. 29)

Sendo assim, o professor est em constante processo de problematizao e modificao de sua prtica, assumindo uma postura crtica sobre o saber fundante de uma prtica educativa inconclusa. Ao pensar sobre a inconcluso do ser que se sabe inconcluso, Freire enfatiza:A conscincia do mundo e a conscincia de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconcluso num permanente movimento de busca. Na verdade, seria uma contradio se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano no se inserisse em tal movimento. (FREIRE, 1996, p.57)

Pautadas nessa concepo da busca incessante e concebendo que o desenvolvimento profissional, alm de considerar o percurso pessoal, necessita de investimento na mudana, j que aprendizagem se relaciona mudana, concordamos com Rocha:na medida que aprende acontece a significao e a resignificao dos saberes. Depende do desenvolvimento pessoal/crenas e valores e intencionalidade, por isso, no ocorre por acaso; resultado de um processo contnuo de busca de trocas de experincias e de elaborao de problemas, de aplicao, reaplicao, anlise e de novos resultados e reflexo da prtica. (2005, p.37)

Para tanto, preciso que a reflexo faa e tenha sentido, crie espaos para que a apropriao24 gere o desejo de conhecer, de saber mais:Os processos de formao esto relacionados ao que saber, por que saber e aos modos de saber na relao entre as pessoas. Se entendermos a relao com os saberes constituda tambm de afeto, solidariedade, curiosidade, insatisfao, provisoriedade portanto, mais prxima da vida em seu movimento ininterrupto e dinmico , esse entendimento traz no seu interior incertezas, inseguranas e24

Neste trabalho o termo apropriao est sendo utilizado com a concepo de Rogoff (1998, p.134): a apropriao ocorre no processo de participao a medida que o indivduo se modifica atravs do envolvimento na situao em questo, e essa participao contribui para a direo em outros acontecimentos similares.

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necessidade de mudanas, e com elas perdem-se algumas certezas, descobrem-se outras, sobre as quais tambm no temos garantias. (LIBNEO, 2004, p.28)

Sem dvida, as questes sobre a inconcluso do ser humano so complexas e nos constitumos de certezas provisrias; o que sabemos de uma hiptese ou de uma descoberta jamais uma aquisio total do saber, mas sempre um fragmento deste, que impe uma reorganizao do saber anterior. Da a sua provisoriedade. no campo do desejo humano que o uso da informao a que temos acesso ganha significado. frente ao novo e na relao que se estabelece que podemos desenvolver condies de aprendizagens possibilitadoras do processo de desenvolvimento. Julgamos, ainda, necessrio provocar um deslocamento de olhar para o saber da experincia, apresentado por Larrosa (2004) como aquele que se d na relao entre o conhecimento e a vida humana (p.128). A experincia e o saber que dela deriva so o que nos permitem apropriar-nos de nossa prpria vida. Entendemos, assim, que no qualquer experincia que constitui o professor, mas aquela que toca, que transforma. Percebemos, nesse movimento, que constantemente estamos diante da nossa inconcluso e que o desafio est em cada um realizar a produo de seus saberes de forma consciente, j que o saber da experincia um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. (LARROSA, 2004, p.130); precisamos, assim, tornarmo-nos sujeito da experincia: o sujeito da experincia tem algo desse ser fascinante que se expe atravessando um espao indeterminado e perigoso, pondo-se nele prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasio. Pautados no mesmo autor, outro aspecto a considerar que se a experincia no o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, no fazem a mesma experincia (2004, p. 130), ou seja, ningum pode aprender com o outro, a menos que essa experincia seja de algum modo revivida e tornada prpria (2004, p. 130). Sendo assim, o percurso profissional marcado pela mobilizao de um repertrio de saberes e pela produo de novos saberes, com vistas a solucionar os problemas postos pela atividade docente. Fiorentini, Nacarato e Pinto (1999, p. 55) sintetizaram algumas dessas idias, ao afirmarem que:

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o saber docente reflexivo, plural e complexo porque histrico, provisrio, contextual, afetivo, cultural, formando uma teia, mais ou menos coerente e imbricada, de saberes cientficos oriundos das cincias da educao, dos saberes das disciplinas, dos currculos e de saberes da experincia e da tradio pedaggica.

Tais perspectivas trazem explcita a concepo dos professores como produtores de saberes especficos ao seu trabalho e que os integra nas atividades vinculadas s prticas da prpria funo:os professores, em suas atividades profissionais se apiam em diversas formas de saberes: o saber curricular, proveniente dos programas e dos manuais escolares; o saber disciplinar, que constitui o contedo das matrias ensinadas na escola; o saber da formao profissional, adquirido por ocasio da formao inicial ou contnua; o saber experiencial, oriundo da prtica da profisso, e, enfim o saber cultural herdado de sua trajetria de vida e de sua pertena a uma cultura particular, que eles partilham em maior e ou menor grau com os alunos. (TARDIF, 2002, p.297)

Muitas pesquisas vm sendo produzidas tomando os saberes docentes como foco. Logo, h uma literatura que vem sendo ampliada com significativa relevncia acerca dos saberes docentes e do desenvolvimento profissional. Conseqentemente, outros elementos vm sendo incorporados ao conceito e/ou (re)significados. Charlot (2005), por exemplo, traz uma perspectiva dialtica bastante interessante para discutir os saberes na prtica profissional. Segundo ele, a anlise deve pautar-se em duas lgicas heterogneas, que no podem ser integradas em um nico modelo: a lgica das prticas e a lgica do discurso constitudo. No entanto, pode-se pensar na mediao entre tais lgicas. Para isso, prope como referncia: a prtica do saber e o saber da prtica (p.93). O saber-discurso foi constitudo a partir de prticas de saber: prtica cientfica, prtica pedaggica, dentre outras. Mas trata -se de prticas cuja finalidade ltima construir um mundo coerente de saberes (Ibidem). Assim, o autor entende que a prtica do saber uma prtica especfica, a prtica do saber uma forma de mediao entre a lgica das prticas e aquela dos discursos eruditos [...] A prtica do saber uma prtica, e no um saber (p.94) De forma anloga,o saber da prtica um saber, e no uma prtica. Ele pode dotar o profissional de uma competncia suplementar para atingir seus fins, mas ele no poderia em nenhum caso ser considerado como uma teoria fundamental que o profissional s teria de aplicar. (CHARLOT, 2005, p. 94)

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Dessa forma, o autor considera imprescindvel que, ao refletir sobre a formao docente, leve-se em considerao os quatro nveis de anlise:o saber como discurso constitudo em sua coerncia interna, a prtica como atividade direcionada e contextualizada, a prtica do saber e o saber da prtica. Formar professores trabalhar os saberes e as prticas nesses diversos nveis e situar, a partir dos saberes e das prticas, os pontos que podem articular lgicas que so e permanecero heterogneas. ( CHARLOT, 2005, p. 94)

Assim, a prtica mobiliza os saberes, isto , coloca-os em processos de movimento em relao a si mesmos e aos outros que dela participam. A formao, segundo ele, no simples aprendizagem de prticas, ela tambm acesso a uma cultura especfica (Ibidem, p.95). Nesse caso, a cultura da escola e a cultura profissional contribuem para a constituio da identidade do professor, j que cada escola nica e a interao nos espaos pode facilitar o processo de crescimento pessoal e profissional, pois a relao com o saber envolve relaes com os outros elementos presentes na ao educativa. Pautando-nos em Charlot (2000), entendemos que a relao com o saber envolve relae