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DADOS DE COPYRIGHTprofailson.com.br/wp-content/uploads/2019/05/Confissoes...CAPÍTULO I - O gosto do amor CAPÍTULO II - A paixão dos espetáculos CAPÍTULO III - O estudo da retórica

Oct 25, 2020

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutandopor dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."

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ÍndiceLIVRO PRIMEIRO

CAPÍTULO I - Louvor e InvocaçãoCAPÍTULO II - Deus está no homem, e este em DeusCAPÍTULO III - Onde está Deus?CAPÍTULO IV - As perfeições de DeusCAPÍTULO V - SúplicaCAPÍTULO VI - Os primeiros anosCAPÍTULO VII - Os pecados da primeira infânciaCAPÍTULO VIII - As primeiras palavrasCAPÍTULO IX - Estudos e jogosCAPÍTULO X - Amor ao jogoCAPÍTULO XI - O batismo diferidoCAPÍTULO XII - Ódio ao estudoCAPÍTULO XIII - Gosto pelo latimCAPÍTULO XIV - Aversão ao gregoCAPÍTULO XV - OraçãoCAPÍTULO XVI - O mal da mitologiaCAPÍTULO XVII - Êxitos escolaresCAPÍTULO XVIII - Leis gramaticais, lei de DeusCAPÍTULO XIX - Mau perdedorCAPÍTULO XX - Ação de graças

LIVRO SEGUNDOCAPÍTULO I - A adolescênciaCAPÍTULO II - As primeiras paixõesCAPÍTULO III - Cegueira do pai, cuidados da mãeCAPÍTULO IV - O furto das pêrasCAPÍTULO V - A causa do pecadoCAPÍTULO VI - O crime gratuitoCAPÍTULO VII - Ação de graçasCAPÍTULO VIII - O prazer da cumplicidadeCAPÍTULO IX - O prazer do pecadoCAPÍTULO X - Deus, o sumo bem

LIVRO TERCEIRO

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CAPÍTULO I - O gosto do amorCAPÍTULO II - A paixão dos espetáculosCAPÍTULO III - O estudo da retórica e os demolidoresCAPÍTULO IV - O Hortênsio de CíceroCAPÍTULO V - A desilusão das escriturasCAPÍTULO VI - A sedução do maniqueísmoCAPÍTULO VII - Alguns erros dos maniqueusCAPÍTULO VIII - Moral e costumeCAPÍTULO IX - Pecados e imperfeiçõesCAPÍTULO X - Ridicularias dos maniqueusCAPÍTULO XI - O sonho de MônicaCAPÍTULO XII - Uma profecia

LIVRO QUATROCAPÍTULO I - Dos dezenove aos vinte e oito anosCAPÍTULO II - Professor de retóricaCAPÍTULO III - A atração da astrologiaCAPÍTULO IV - A morte do amigoCAPÍTULO V - O conforto das lágrimasCAPÍTULO VI - InconsolávelCAPÍTULO VII - De Tagaste para CartagoCAPÍTULO VIII - O consolo do tempo e da amizadeCAPÍTULO IX - O amigo de DeusCAPÍTULO X - As mentiras da belezaCAPÍTULO XI - A verdade de DeusCAPÍTULO XII - O amor em DeusCAPÍTULO XIII - O problema do beloCAPÍTULO XIV - Razões de uma dedicatóriaCAPÍTULO XV - Os primeiros livrosCAPÍTULO XVI - As dez categorias de Aristóteles

LIVRO QUINTOCAPÍTULO I - OraçãoCAPÍTULO II - Os que fogem de DeusCAPÍTULO III - Fausto e o maniqueísmoCAPÍTULO IV - Ciência e ignorância

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CAPÍTULO V - Loucuras de ManésCAPÍTULO VI - A eloqüência de FaustoCAPÍTULO VII - DesilusãoCAPÍTULO VIII - Viagem a RomaCAPÍTULO IX - EnfermoCAPÍTULO X - Agostinho e os erros dos maniqueusCAPÍTULO XI - Desculpas dos maniqueusCAPÍTULO XII - Os estudantes de RomaCAPÍTULO XIII - Viagem a Milão, Santo AmbrósioCAPÍTULO XIV - Catecúmeno

LIVRO SEXTOCAPÍTULO I - EsperançasCAPÍTULO II - Obediência de MônicaCAPÍTULO III - Primeiras conquistasCAPÍTULO IV - O espírito da letraCAPÍTULO V - Os mistérios da BíbliaCAPÍTULO VI - Alegria de bêbadoCAPÍTULO VII - AlípioCAPÍTULO VIII - A atração do anfiteatroCAPÍTULO IX - Alípio, ladrão a contragostoCAPÍTULO X - Os três amigosCAPÍTULO XI - Entre Deus e o mundoCAPÍTULO XII - Casar ou não?CAPÍTULO XIII - O pedido de casamentoCAPÍTULO XIV - Um projeto desfeitoCAPÍTULO XV - A separação da amanteCAPÍTULO XVI - A aproximação de Deus

LIVRO SÉTIMOCAPÍTULO I - A idéia de DeusCAPÍTULO II - Objeção contra o maniqueísmoCAPÍTULO III - Deus e o malCAPÍTULO IV - A substância de DeusCAPÍTULO V - A origem do malCAPÍTULO VI - O absurdo dos horóscopos

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CAPÍTULO VII - Ainda a origem do malCAPÍTULO VIII - A piedade de DeusCAPÍTULO IX - Agostinho e o neoplatonismoCAPÍTULO X - A descoberta de DeusCAPÍTULO XI - Deus e as criaturasCAPÍTULO XII - O mal e o bem da criaçãoCAPÍTULO XIII - Os louvores da criaçãoCAPÍTULO XIV - RecapitulaçãoCAPÍTULO XV - Deus e a criaçãoCAPÍTULO XVI - Onde está o malCAPÍTULO XVII - Caminho para DeusCAPÍTULO XVIII - A senda da humildadeCAPÍTULO XIX - A doutrina do verboCAPÍTULO XX - Do platonismo às EscriturasCAPÍTULO XXI - A verdade das escrituras

LIVRO OITAVOCAPÍTULO I - HesitaçõesCAPÍTULO II - Visita a Simpliciano. Conversão de VitorinoCAPÍTULO III - A alegria das coisas perdidasCAPÍTULO IV - A conversão dos grandesCAPÍTULO V - As duas vontadesCAPÍTULO VI - A narração de PonticianoCAPÍTULO VII - A reação de AgostinhoCAPÍTULO VIII - Luta espiritualCAPÍTULO XI - A desobediência da vontadeCAPÍTULO X - Contra os maniqueusCAPÍTULO XI - Últimas resistênciasCAPÍTULO XII - A conversão

LIVRO NONOCAPÍTULO I - ColóquioCAPÍTULO II - Adeus ao magistérioCAPÍTULO III - Dois amigosCAPÍTULO IV - A doçura dos salmosCAPÍTULO V - O conselho de Ambrósio

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CAPÍTULO VI - Batismo de Agostinho. Seu filho AdeodatoCAPÍTULO VII - O canto dos fiéis - Os corpos de São Gervásio e de São ProtásioCAPÍTULO VIII - MônicaCAPÍTULO IX - Esposa e mãe exemplarCAPÍTULO X - O êxtase de ÓstiaCAPÍTULO XI - A morte de MônicaCAPÍTULO XII - As lágrimas negadasCAPÍTULO XIII - Preces pela mãe morta

LIVRO DÉCIMOCAPÍTULO I - Finalidade do livroCAPÍTULO II - O que é confessar a DeusCAPÍTULO III - Por que se confessar aos homens?CAPÍTULO IV - O fruto das confissõesCAPÍTULO V - A ignorância do homemCAPÍTULO VI - Quem é Deus?CAPÍTULO VII - Deus e os sentidosCAPÍTULO VIII - O milagre da memóriaCAPÍTULO IX - A memória intelectualCAPÍTULO X - Memória dos sentidosCAPÍTULO XI - Idéias inatasCAPÍTULO XII - A memória e as matemáticasCAPÍTULO XIII - A memória da memóriaCAPÍTULO XIV - A lembrança dos sentimentosCAPÍTULO XV - A memória das coisas ausentesCAPÍTULO XVI - A memória do esquecimentoCAPÍTULO XVII - Deus e a memóriaCAPÍTULO XVIII - A memória das coisas perdidasCAPÍTULO XIX - A memória das lembrançasCAPÍTULO XX - A memória da felicidadeCAPÍTULO XXI - A memória do que nunca tivemosCAPÍTULO XXII - A verdadeira felicidadeCAPÍTULO XXIII - Felicidade e verdadeCAPÍTULO XXIV - Deus e a memóriaCAPÍTULO XXV - Recapitulação

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CAPÍTULO XXVI - Onde encontrar Deus?CAPÍTULO XXVII - Solilóquio de amorCAPÍTULO XXVIII - A vida do homemCAPÍTULO XXIX - Esperança em DeusCAPÍTULO XXX - Sonho e voluptuosidadeCAPÍTULO XXXI - A intemperançaCAPÍTULO XXXII - Os prazeres do olfatoCAPÍTULO XXXIII - Os prazeres do ouvidoCAPÍTULO XXXIV - O prazer dos olhosCAPÍTULO XXXV - A curiosidadeCAPÍTULO XXXVI - O orgulhoCAPÍTULO XXXVII - A tentação do orgulhoCAPÍTULO XXXVIII - A vanglóriaCAPÍTULO XXXIX - O amor-próprioCAPÍTULO XL - À procura de DeusCAPÍTULO XLI - Deus e a mentiraCAPÍTULO XLII - Os neoplatônicos e o caminho para DeusCAPÍTULO XLIII - Cristo, o único mediador

LIVRO DÉCIMO- PRIMEIROCAPÍTULO I - Finalidade das confissõesCAPÍTULO II - A inteligência das EscriturasCAPÍTULO III - O que disse MoisésCAPÍTULO IV - O céu e a terraCAPÍTULO V - A palavra e a criaçãoCAPÍTULO VI - Como falou Deus?CAPÍTULO VII - A palavra coeternaCAPÍTULO VIII - A verdadeira luzCAPÍTULO IX - A voz do VerboCAPÍTULO X - Que fazia Deus antes da criaçãoCAPÍTULO XI - Tempo e eternidadeCAPÍTULO XII - Deus antes da criaçãoCAPÍTULO XIII - O tempo antes da criaçãoCAPÍTULO XIV - Que é o tempo?CAPÍTULO XV - Tempo longo, tempo breve

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CAPÍTULO XVI - A medida do presenteCAPÍTULO XVII - O passado e o presenteCAPÍTULO XVIII - As previsõesCAPÍTULO XIX - OraçãoCAPÍTULO XX - ConclusãoCAPÍTULO XXI - A medida do tempoCAPÍTULO XXII - O enigmaCAPÍTULO XXIII - O tempo e o movimentoCAPÍTULO XXIV - O tempo, medida do movimentoCAPÍTULO XXV - PreceCAPÍTULO XXVI - O tempo, distensão da almaCAPÍTULO XXVII - A medida do passadoCAPÍTULO XXVIII - A medida do futuroCAPÍTULO XXIX - A eternidade de DeusCAPÍTULO XXX - Deus e o tempoCAPÍTULO XXXI - Conclusão

LIVRO DÉCIMO-SEGUNDOCAPÍTULO I - PreceCAPÍTULO II - O céu do céuCAPÍTULO III - As trevas sobre o abismoCAPÍTULO IV - A matéria informeCAPÍTULO V - Sua naturezaCAPÍTULO VI - Em que consisteCAPÍTULO VII - A criação do nadaCAPÍTULO VIII - A terra invisívelCAPÍTULO IX - A criação do tempoCAPÍTULO X - Invocação à verdadeCAPÍTULO XI - As criaturas e o criadorCAPÍTULO XII - A criação e a eternidadeCAPÍTULO XIII - O céu e a terra em GênesisCAPÍTULO XIV - A profundidade das EscriturasCAPÍTULO XV - O que dizem seus inimigosCAPÍTULO XVI - Outros adversários das EscriturasCAPÍTULO XVII - Opiniões diversas sobre o céu e a terra

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CAPÍTULO XVIII - Outras interpretaçõesCAPÍTULO XIX - A verdadeCAPÍTULO XX - O princípio e suas interpretaçõesCAPÍTULO XXI - A terra invisívelCAPÍTULO XXII - ObjeçõesCAPÍTULO XXIII - A opinião de AgostinhoCAPÍTULO XXIV - Qual a verdade?CAPÍTULO XXV - Os diversos partidosCAPÍTULO XXVI - Agostinho no lugar de MoisésCAPÍTULO XXVII - Os diversos sentidos da EscrituraCAPÍTULO XXVIII - DivergênciasCAPÍTULO XXIX - DificuldadesCAPÍTULO XXX - Espírito de caridadeCAPÍTULO XXXI - O Gênesis e seu autorCAPÍTULO XXXII - Oração

LIVRO DÉCIMO-TERCEIROCAPÍTULO I - InvocaçãoCAPÍTULO II - A criação e a bondade de DeusCAPÍTULO III - A luzCAPÍTULO IV - A bondade criadoraCAPÍTULO V - A trindadeCAPÍTULO VI - O espírito sobre as águasCAPÍTULO VII - As águas sem substânciaCAPÍTULO VIII - À luz que ilumina as trevasCAPÍTULO IX - O amor de DeusCAPÍTULO X - Os dons de DeusCAPÍTULO XI - O homem e a trindadeCAPÍTULO XII - A criação e a IgrejaCAPÍTULO XIII - Nós e a luzCAPÍTULO XIV - EsperançaCAPÍTULO XV - SímbolosCAPÍTULO XVI - Deus, fonte de luzCAPÍTULO XVII - As águas amargasCAPÍTULO XVIII - Meditação

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CAPÍTULO XIX - Ainda a terra secaCAPÍTULO XX - Os répteis e as avesCAPÍTULO XXI - A alma vivaCAPÍTULO XXII - Sentido místico da criação do homemCAPÍTULO XXIII - O julgamento do homem espiritualCAPÍTULO XXIV - Crescei e multiplicai-vosCAPÍTULO XXV - Os frutos da terraCAPÍTULO XXVI - O dom e o frutoCAPÍTULO XXVII - Peixes e cetáceosCAPÍTULO XXVIII - A bondade da criaçãoCAPÍTULO XXIX - A palavra de Deus e o tempoCAPÍTULO XXX - Erro dos maniqueusCAPÍTULO XXXI - A luz do espírito divinoCAPÍTULO XXXII - A criaçãoCAPÍTULO XXXIII - A matéria e a formaCAPÍTULO XXXIV - Alegoria da criaçãoCAPÍTULO XXXV - PreceCAPÍTULO XXXVI - O repouso de DeusCAPÍTULO XXXVII - O repouso da almaCAPÍTULO XXXVIII - O descanso de Deus

DE MAGISTRO (DO MESTRE)CAPÍTULO I - FINALIDADE DA LINGUAGEMCAPÍTULO II - O HOMEM MOSTRA O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS SÓ PELASPALAVRASCAPÍTULO III - SE É POSSÍVEL MOSTRAR ALGUMA COISA SEM O EMPREGO DEUM SINALCAPÍTULO IV - SE OS SINAIS SE MOSTRAM COM SINAISCAPÍTULO V - SINAIS RECÍPROCOSCAPÍTULO VI - SINAIS QUE SIGNIFICAM A SI MESMOSCAPÍTULO VII - RESUMO DOS CAPÍTULOS ANTERIORESCAPÍTULO VIII - NÃO SE DISCUTEM INUTILMENTE ESTAS QUESTÕES. ASSIM,PARA RESPONDER ÀQUELE QUE INTERROGA, DEVEMOS DIRIGIR A MENTE,DEPOIS DE PERCEBER OS SINAIS, ÀS COISAS QUE ESTES SIGNIFICAMCAPÍTULO IX - SE DEVEMOS PREFERIR AS COISAS, OU O CONHECIMENTO

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DELAS, AOS SINAISCAPÍTULO X - SE É POSSÍVEL ENSINAR ALGO SEM SINAIS. AS COISAS NÃO SEAPRENDEM PELAS PALAVRASCAPÍTULO XI - NÃO APRENDEMOS PELAS PALAVRAS QUE REPERCUTEMEXTERIORMENTE, MAS PELA VERDADE QUE ENSINA INTERIORMENTECAPÍTULO XII - CRISTO É A VERDADE QUE ENSINA INTERIORMENTECAPÍTULO XIII - A FORÇA DAS PALAVRAS NÃO CONSEGUE MOSTRAR SEQUERO PENSAMENTO DE QUEM FALACAPÍTULO XIV - CRISTO ENSINA INTERIORMENTE, O HOMEM AVISAEXTERIORMENTE PELAS PALAVRAS

PERFIL BIOGRÁFICO - SANTO AGOSTINHO (354-430)A perdição da alma reside em algumas perasOnde está a felicidade?O mestre da eloqüência e um bêbado trilham caminhos iguaisUma canção de criança pode mudar uma vidaA meditação se inspira no murmúrio da águaO apelo da multidão: um pastor para enfrentar os leões vorazesÉ preciso paciência diante de olhos em chamasA espada dos bárbaros é a cólera dos antigos deusesEntre vários é preciso escolherUma árvore tem folhas verdes. Como serão os frutos?O lugar do pastor é à frente do rebanhoTodo conhecimento reside em Deus e na alma

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LIVROPRIMEIRO

CAPÍTULOI-LouvoreInvocação

És grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvado; grande é teu poder, eincomensurável tua sabedoria. E o homem, pequena parte de tua criação querlouvar-te, e precisamente o homem que, revestido de sua mortalidade, traz em sio testemunho do pecado e a prova de que resistes aos soberbos. Todavia, ohomem, partícula de tua criação, deseja louvar-te.

Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nossocoração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso.

Concede, Senhor, que eu bem saiba se é mais importante invocar-te e louvar-te,ou se devo antes conhecer-te, para depois te invocar. Mas alguém te invocaráantes de te conhecer?

Porque, te ignorando, facilmente estará em perigo de invocar outrem. Porque,porventura, deves antes ser invocado para depois ser conhecido? Mas comoinvocarão aquele em que não crêem?

Ou como haverão de crer que alguém lhos pregue?

Com certeza, louvarão ao Senhor os que o buscam, porque os que o buscam oencontram e os que o encontram hão de louvá-lo.

Que eu, Senhor, te procure invocando-te, e te invoque crendo em ti, pois mepregaram teu nome. Invoca-te, Senhor, a fé que tu me deste, a fé que meinspiraste pela humanidade de teu Filho e o ministério de teu pregador.

CAPÍTULOII-Deusestánohomem,eesteemDeus

E como invocarei meu Deus, meu Deus e meu Senhor, se ao invocá-lo o fariacertamente dentro de mim? E que lugar há em mim para receber o meu Deus, poronde Deus desça a mim, o Deus que fez o céu e a terra? Senhor, haverá em mimalgum espaço que te possa conter? Acaso te contêm o céu e a terra, que tucriaste, e dentro dos quais também criaste a mim? Será, talvez, pelo fato de nadado que existe sem Ti, que todas as coisas te contêm? E, assim, se existo, que

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motivo pode haver para Te pedir que venhas a mim, já que não existiria se emmim não habitásseis?

Ainda não estive no inferno, mas também ali estás presente, pois, se descer aoinferno, ali estarás.

Eu nada seria, meu Deus, nada seria em absoluto se não estivesses em mim; talvezseria melhor dizer que eu não existiria de modo algum se não estivesse em ti, dequem, por quem e em quem existem todas as coisas? Assim é, Senhor, assim é.Como, pois, posso chamar-te se já estou em ti, ou de onde hás de vir a mim, ou aque parte do céu ou da terra me hei de recolher, para que ali venha a mim o meuDeus, ele que disse: Eu encho o céu e a terra?

CAPÍTULOIII-OndeestáDeus?

Porventura o céu e a terra te contêm, porque os enches? Ou será melhor dizer queos enches, mas que ainda resta alguma parte de ti, já que eles não te podemconter? E onde estenderás isso que sobra de ti, depois de cheios o céu e a terra?Mas será necessário que sejas contido em algum lugar, tu que conténs todas ascoisas, visto que as que enches as ocupas contendo-as? Porque não são os vasoscheios de ti que te tornam estável, já que, quando se quebrarem, tu não tederramarás; e quando te derramas sobre nós, isso não o fazes porque cais, masporque nos levantas, nem porque te dispersas, mas porque nos recolhes.

No entanto, todas as coisas que enches, enche-as todas com todo o teu ser; outalvez, por não te poderem conter totalmente todas as coisas, contêm apenasparte de ti? E essa parte de ti as contêm todas ao mesmo tempo, ou cada uma asua, as maiores a maior parte, e as menores a menor parte? Mas haverá em tipartes maiores e partes menores? Acaso não estás todo em todas as partes, semque haja coisa alguma que te contenha totalmente?

CAPÍTULOIV-AsperfeiçõesdeDeus

Que és, portanto, ó meu Deus? Que és, repito, senão o Senhor Deus? Ó Deussumo, excelente, poderosíssimo, onipotentíssimo, misericordiosíssimo e justíssimo.

Tao oculto e tão presente, formosíssimo e fortíssimo, estável e incompreensível;imutável, mudando todas as coisas; nunca novo e nunca velho; renovador de todasas coisas, conduzindo à ruína os soberbos sem que eles o saibam; sempre agindo e

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sempre repouso; sempre sustentando, enchendo e protegendo; sempre criando,nutrindo e aperfeiçoando, sempre buscando, ainda que nada te falte.

Amas sem paixão; tens zelos, e estás tranqüilo; te arrependes, e não tens dor; teiras, e continuas calmo; mudas de obra, mas não de resolução; recebes o queencontras, e nunca perdeste nada; não és avaro, e exiges lucro. A ti oferecemostudo, para que sejas nosso devedor; porém, quem terá algo que não seja teu, pois,pagas dívidas que a ninguém deves, e perdoas dívidas sem que nada percas comisso?

E que é o que até aqui dissemos, meu Deus, minha vida, minha doçura santa, ouque poderá alguém dizer quando fala de ti? Mas ai dos que nada dizem de ti, pois,embora seu muito falar, não passam de mudos charlatães.

CAPÍTULOV-Súplica

Quem me dera descansar em ti! Quem me dera que viesses a meu coração e que oembriagasses, para que eu me esqueça de minhas maldades e me abrace contigo,meu único bem! Que és para mim? Tem piedade de mim, para que eu possa falar.E que sou eu para ti, para que me ordenes amar-te e, se não o fizer, irar-te contramim, ameaçando-me com terríveis castigos? Acaso é pequeno o castigo de não teamar? Ai de mim! Dize-me por tuas misericórdias, meu Senhor e meu Deus, que éspara mim? Dize a minha alma: Eu sou a tua salvação. Que eu ouça e siga essa voze te alcance. Não queiras esconder-me teu rosto. Morra eu para que possa vê-lopara não morrer eternamente.

Estreita é a casa de minha alma para que venhas até ela: que seja por ti dilatada.Está em ruínas; restaura-a. Há nela nódoas que ofendem o teu olhar: confesso-o,pois eu o sei; porém, quem haverá de purificá-la? A quem clamarei senão a ti?Livra-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoa a teu servo os alheios! Creio, epor isso falo. Tu o sabes, Senhor. Acaso não confessei diante de ti meus delitoscontra mim, ó meu Deus? E não me perdoaste a impiedade de meu coração? Nãoquero contender em juízos contigo, que és a verdade, e não quero enganar-me amim mesmo, para que não se engane a si mesma minha iniqüidade. Não querocontender em juízos contigo, porque, se dás atenção às iniqüidades, Senhor, quem,Senhor, subsistirá?

CAPÍTULOVI-Osprimeirosanos

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Permita, porém, que eu fale em presença de tua misericórdia, a mim, terra e cinza;deixa que eu fale, porque é à tua misericórdia que falo, e não ao homem, que demim escarnece. Talvez também tu te rias de mim, mas, voltado para mim, teráscompaixão.

E que pretendo dizer-te, Senhor, senão que ignoro de onde vim para aqui, paraesta não sei se posso chamar vida mortal ou morte vital? Não o sei. Masreceberam-me os consolos de tuas misericórdias, conforme o que ouvi de meus paiscarnais, de quem e em quem me formaste no tempo, pois eu de mim nada recordo.Receberam-me os consolos do leite humano, do qual nem minha mãe, nem minhasamas enchiam os seios; mas eras tu que, por meio delas, me davas aquelealimento da infância, de acordo com o seu desígnio, e segundo os tesourosdispostos por ti até no mais íntimo das coisas.

Também por tua causa é que eu não queria mais do que me davas; por tua causa éque minhas amas queriam dar-me o que tu lhes davas, pois elas, movidas de sadioafeto, queriam dar-me aquilo que abundavam graças a ti, já que era um bem paraelas ou delas receber aquele bem, embora realmente não fosse delas, merosinstrumentos, porque de ti procedem, com certeza, todos os bens, ó Deus, e de ti,Deus meu, depende toda minha salvação.

Tudo isto vim a saber mais tarde, quando me falaste por meio dos mesmos bensque me concedias interior e exteriormente. Porque então as únicas coisas que faziaera sugar o leite, aquietar-me com os afagos e chorar as dores de minha carne.

Depois também comecei a rir, primeiro dormindo, depois acordado. Isto disseramde mim, e o creio, porque o mesmo acontece com outros meninos, pois eu nãotenho a menor lembrança dessas coisas.

Pouco a pouco comecei a me dar conta de onde estava, e a querer dar a conhecermeus desejos a quem os podia satisfazer, embora realmente não o pudessem,porque meus desejos estavam dentro, e eles fora; e por nenhum sentido podiamentrar em minha alma. Assim, agitava os braços e dava gritos e sinaissemelhantes a meus desejos, os poucos que podia e como podia, embora nãofossem de fato sua expressão. Mas, se não era atendido, ou porque não meentendessem, ou porque o que desejava me fosse prejudicial, eu me indignava comos adultos, porque não me obedeciam, e sendo livres, por não quererem me servir;e deles me vingava chorando. Assim são as crianças que pude observar; e que eutambém fosse assim, mais me ensinaram elas, sem o saber, do que os que me

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criaram, sabendo-o.

Minha infância morreu há muito tempo, mas eu continuo vivo. Mas, dize-me,Senhor, tu que sempre vives, e em quem nada falece – porque existias antes docomeço dos séculos, e antes de tudo o que há de anterior, e és Deus e Senhor detodas as coisas; e esse encontram em ti as causas de tudo o que é instável, e em tipermanecem os princípios imutáveis de tudo o que se transforma, e vivem asrazões eternas de tudo o que é transitório – dize-me a mim, eu to suplico, ó meuDeus, diz-me, misericordioso, a mim que sou miserável, dize-me: porventura aminha infância sucedeu a outra idade minha, já morta? Será esta aquela que vivino ventre de minha mãe? Porque também desta me revelaram algumas coisas, eeu mesmo já vi mulheres grávidas.

E antes desse tempo, minha doçura e meu Deus, que era eu? Fui alguém, ou eraparte de alguma coisa? Dize-mo, porque não tenho quem me responda, nem meupai, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minha memória. Acaso teris de mim, porque desejo saber estas coisas, e me mandas que te louve e teconfesse pelo que conheci de ti?

Eu te confesso, Senhor dos céus e da terra, louvando-te por meus princípios e porminha infância, de que não tenho memória, mas que, por tua graça, o homem podeconjectura de si pelos outros, crendo em muitas coisas, ainda que confiado naautoridade de humildes mulheres.

Então eu já existia, já vivia de verdade; e, já no fim da infância procurava sinaiscom que pudesse exprimir aos outros as coisas que sentia. Com efeito, de ondepoderia vir semelhante criatura, senão de ti, Senhor? Acaso alguém pode serartífice de si mesmo? Porventura existirá algum outro manancial por onde corraaté nos o ser e a vida, diferente da que nos dais, Senhor, tu em quem ser e vidanão são coisas distintas, porque és o Sumo Ser e a Suprema Vida? Com efeito, éssumo, e não te mudas, nem caminha para ti o dia de hoje, apesar de caminhar porti, apesar de estarem em ti com certeza todas estas coisas, que não teriamcaminho por onde passar se não as contivesses. E porque teus anos não fenecem,teus anos são um perpétuo hoje. Oh! Quantos dias nossos e de nossos pais jápassaram por este teu hoje, e dele receberam sua duração, e de alguma maneiraexistiram, e quantos passarão ainda, e receberão seu modo, e seu ser? Mas tu éssempre o mesmo, e todas as coisas de amanhã e do futuro, e todas as coisas deontem e do passado, nesse hoje as fazes, nesse hoje as fizeste.

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Que importa que alguém não entenda essas coisas? Que este alguém se ria, ediga: que é isto? Que se ria assim, e que prefira encontrar-te sem indagação doque, indagando, não te encontrar.

CAPÍTULOVII-Ospecadosdaprimeirainfância

Escuta-me, ó meu Deus! Ai dos pecados dos homens! E quem isto te diz é umhomem, e tu te compadeces dele porque o criaste, e não foste autor do pecadoque nele existe.

Quem me poderá lembrar o pecado da infância, já que ninguém está diante de tilimpo de pecado, nem mesmo a criança cuja vida conta um só dia sobre a terra?Quem mo recordará?

Acaso alguma criança pequena de hoje, em quem vejo a imagem do que nãorecordo de mim? E em que eu poderia pecar nesse tempo? Acaso por desejar opeito da nutriz, chorando? Se agora eu suspirasse com a mesma avidez, não peloseio materno, mas pelo alimento próprio da minha idade, seria justamenteescarnecido e censurado. Logo, era então digno de repreensão o meu proceder;mas como não podia entender a censura, nem o costume nem a razão permitiamque eu fosse repreendido. Prova está que, ao crescermos, extirpamos e afastamosde nós essa sofreguidão; e jamais vi homem sensato que, para limpar uma coisaviciosa, prive-a do que tem de bom.

Acaso, mesmo para aquela idade, era bom pedir chorando o que não se me podiadar sem dano, indignar-me acremente com as pessoas livres que não sesubmetiam, assim como as pessoas respeitáveis, e até com meus próprios pais, ecom muitos outros que, mais sensatos, não davam atenção aos sinais de meuscaprichos, enquanto eu me esforçava por agredi-los com meus golpes, quantopodia, por não obedecerem às minhas ordens, que me teriam sido danosas?

Daqui se segue que o que é inocente nas crianças é a debilidade dos membrosinfantis, e não a alma.

Certa vez, vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava, e já olhava pálidoe com rosto amargurado para o irmãozinho colaço. Quem não terá testemunhadoisso? Dizem que as mães e as amas tentam esconjurar este defeito com não seique práticas. Mas se poderá considerar inocência o não suportar que se partilhe afonte do leite, que mana copiosa e abundante, com quem está tão necessitado do

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mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas com esse alimento? Mas costuma-setolerar indulgentemente essas faltas, não porque sejam insignificantes, masporque espera-se que desapareçam com os anos. Por isso, sendo tais coisasperdoáveis em um menino, quando se acham em um adulto, mal as podemossuportar.

Assim, pois, meu Senhor e meu Deus, tu que me deste a vida e corpo, o qualdotaste, como vemos, de sentidos e proviste de membros, adornando-o de belezae de instintos naturais, com os quais pudesse defender sua integridade econservação, tu me mandas que te louve por esses dons e te confesse e cante teunome altíssimo. Serias Deus onipotente e bom ainda que só tivesses criado apenasestas coisas, que nenhum outro pode fazer senão tu, ó Unidade, origem de todasas variedades, ó Beleza, que dás forma a todas as coisas, e com tua lei as ordenas!

Tenho vergonha, Senhor, de ter de somar à vida terrena que vivo aquela idadeque não recordo ter vivido, na qual acredito pelo testemunho de outros, por vê-loassim em outras crianças, embora essa conjectura mereça toda a fé. As trevas emque está envolto meu esquecimento a seu respeito assemelham-se à vida que vivino ventre de minha mãe.

Assim, se fui concebido em iniqüidade, e se em pecado me alimentou minha mãe,onde, suplico-te, meu Deus, onde, Senhor, eu, teu servo, onde e quando fuiinocente? Mas eis que silencio sobre esse tempo. Para que ocupar-se dele, se delejá não conservo nenhuma lembrança?

CAPÍTULOVIII-Asprimeiraspalavras

Acaso não foi caminhando da infância até aqui que cheguei à puerícia? Ou melhor,esta veio a mim e suplantou à infância sem que esta fosse embora, pois, para ondepoderia ir?

Contudo deixou de existir, porque eu já não era um bebezinho que não falava, masum menino que aprendia a falar. Disso me recordo; mas como aprendi a falar, sómais tarde é que vim a perceber. Não mo ensinaram os mais velhos apresentando-me as palavras com certa ordem e método, como logo depois fizeram com asletras; mas foi por mim mesmo, com o entendimento que me deste, meu Deus,quando queria manifestar meus sentimentos com gemidos, gritinhos, e váriosmovimentos do corpo, a fim de que atendessem meus desejos; e também ao verque não podia exteriorizar tudo o que queria, nem ser compreendido por todos

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aqueles a quem me dirigia.

Assim, pois, quando chamavam alguma coisa pelo nome, eu a retinha na memóriae, ao se pronunciar de novo a tal palavra, moviam o corpo na direção do objeto,eu entendia e notava que aquele objeto era o denominado com a palavra quepronunciavam, porque assim o chamavam quando o desejavam mostrar.

Que esta fosse sua intenção, era-me revelado pelos movimentos do corpo, que sãocomo uma linguagem universal, feita com a expressão rosto, a atitude dosmembros e o tom da voz, que indicam os afetos da alma para pedir, reter, rejeitarou evitar alguma coisa. Deste modo, das palavras usadas nas e colocadas emvárias frases e ouvidas repetidas vezes, ia eu aos poucos notando o significado e,domada a dificuldade de minha boca, comecei a dar a entender minhas vontadespor meio delas.

Foi assim que comecei a comunicar meus desejos às pessoas entre as quais vivia, eentrei a fazer parte do tempestuoso mundo da sociedade, dependendo daautoridade de meus pais e obedecendo às pessoas mais velhas.

CAPÍTULOIX-Estudosejogos

Ó meu Deus, meu Deus! Que de misérias e enganos não experimentei então,quando se me propunha, em criança, como norma de bem viver, obedecer osmestres que me instigavam a brilhar neste mundo, e me ilustrar nas artes dalíngua, fiel instrumento para obter honras humanas e satisfazer a cobiça!Mudaram-me à escola, para que aprendesse as letras, nas quais eu, miserável,desconhecia o que havia de útil. Contudo, se era preguiçoso para aprendê-las, erafustigado, num sistema louvado pelos mais velhos; muitos deles, que levavam essegênero de vida antes de nós, nos traçaram caminhos tão dolorosos pelos quaiséramos obrigados a caminhar, multiplicando assim o trabalho e a dor aos filhos deAdão.

Mas, por sorte, encontrei homens que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi ate sentir, quanto possível, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir emnosso auxílio, embora sem a percepção dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei ainvocar-te como refúgio e amparo e, para te invocar, desatei os nós de minhalíngua; e, embora pequeno, te rogava já com grande fervor para que não meaçoitassem na escola. E quando não me escutavas, o que servia para meu proveitoos mestres, assim como meus próprios pais, que certamente não desejavam o meu

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mal, riam-se daquele castigo, que então era para mim grave suplício.

Porventura, Senhor, haverá alguma alma tão grande, unida a ti com tão ardenteafeto, pois isto também pode ser produzido pela estultice – repito, uma alma quealcance tal grandeza de ânimo que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e osdemais instrumentos de martírio – para fugir dos quais se te dirigem súplicas detodas as partes do mundo? Haverá uma alma que assim os despreze – rindo-se dosque têm deles tanto horror – como se riam nossos pais dos tormentos que éramoscastigados por nossos mestres quando meninos? Porque, na verdade, não ostemíamos menos, nem te rogávamos com menor fervor para que nos livrassesdeles.

Contudo, pecávamos por negligencia escrevendo ou lendo, estudando menos doque nos era exigido; e não era por falta de memória ou de inteligência, que paraaquela idade, Senhor, me deste de modo suficiente, senão porque eu gostava debrincar, embora os que nos castigavam não fizessem outra coisa. Mas os jogos dosmais velhos chamavam-se negócios, enquanto que os dos meninos eram por elescastigados, sem que ninguém se compadecesse de uns e de outros, ou melhor, deambos. Um juiz sensato poderia aprovar os castigos que eu, menino, recebiaporque jogava bola, e porque com este jogo atrasava o aprendizado das letras,com as quais, adulto haveria de jogar menos inocentemente?

Acaso fazia outra coisa naquele que me castigava? Se nalguma questiúncula eravencido por algum colega seu, não era mais atormentado pela cólera e pela invejado que eu, quando uma partida de bola era vencido por meu companheiro?

CAPÍTULOX-Amoraojogo

Contudo, Senhor meu, ordenador e criador da natureza, mas do pecado somenteordenador, eu pecava; pecava desobedecendo as ordens de meus pais e mestres,uma vez que podia no futuro fazer bom uso das letras que desejavam me ensinar,qualquer que fosse sua intenção.

E não era desobediente para me ocupar de coisas melhores, mas por amor ao jogo;buscava nos combates orgulhosas vitórias; deleitava-me com histórias frívolas,com as quais incentivava sempre mais minha curiosidade. Igualmente curiosos,meus olhos se abriam sempre mais para os jogos e espetáculos dos adultos, jogosque dão tao grande dignidade a quem os oferece, que quase todos desejam asmesmas dignidades para seus filhos. Contudo, gostam de os castigar se com tais

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espetáculos fogem dos estudos, por meio dos quais desejam que eles venham umdia a oferecer espetáculos semelhantes. Senhor, olha misericordiosamente paraessas coisas, e livra-nos delas a nós que já te invocamos; mas livra também aosque ainda não te invocam, a fim de que te invoquem, e sejam igualmentelibertados.

CAPÍTULOXI-Obatismodiferido

Ainda menino, ouvi falar da vida eterna, que nos está prometida pela humildadede Jesus, nosso Senhor, que desceu até nossa soberba; e fui marcado com o sinalda cruz, sendo-me dado saborear de seu sal logo que saí do ventre de minha mãe,que sempre esperou muito em ti.

Tu viste, Senhor, que numa ocasião, ainda menino, atacou-me repentinamente umdor de estômago que me abrasava, e que me aproximou da morte. Tu vistetambém, meu Deus, pois já me tinhas sob tua guarda, com que fervor de espírito ecom que fé pedi à piedade de minha mãe, e da mãe de todos nós, tua Igreja, obatismo de teu Cristo, meu Deus e Senhor. Perturbou-se minha mãe carnal, poisque me criava com mais amor em seu casto coração em tua fé para a vida eternae, solícita, já havia cuidado de que me iniciasse e purificasse com os sacramentosda salvação, confessando-te, ó meu Senhor Jesus, em remissão de meus pecados,quando, de repente, comecei a melhorar. Em vista disso, diferiu-se minhapurificação, considerando que seria impossível, se eu vivesse, que não me tornassea manchar; pois a culpa dos pecados cometidos depois do batismo é muito maior emais perigosa.

Nesta época eu já tinha fé verdadeira, juntamente com minha mãe e com todos dacasa, à exceção de meu pai, que, porém, não pôde vencer em mim a ascendênciada piedade materna, para que deixasse de acreditar em Cristo, tal como ele nãoacreditava; minha mãe, solícita, cuidava de que tu, meu Deus, fosses mais pai paramim do que ele, e a ajudavas a triunfar do marido, a quem servia melhor, porquenele te servia a ti e a tuas ordens.

Mas, meu Deus, suplico-te que me mostres, se te apraz, por que motivo se diferiuentão meu batismo; se foi ou não para meu bem que me soltaram as rédeas dopecado. Por que razão ainda hoje se diz de uns e de outros, como ouvimos emmuitos lugares: “Deixe que faça o que quiser, porque ainda não está batizado” –embora não digamos da saúde do corpo: “Deixe que receba ainda mais feridas,porque ainda não está curado?”

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Quanto melhor teria sido para mim receber logo a saúde, e que meus cuidados eos dos meus fossem empregados em conservar intacta debaixo da tua proteção asaúde da minha alma, que me havias concedido! Melhor fora, certamente; porém,como minha mãe, sem dúvida, já previa quantas e quão grandes ondas detentações me ameaçariam depois da meninice, preferiu expor-me a elas comoterra grosseira que depois receberia forma, do que expor-me já como imagem tua.

CAPÍTULOXII-Ódioaoestudo

Nesta minha infância, na qual eu tinha menos que temer por mim do que emminha adolescência, eu não gostava dos estudos, e odiava que a eles meobrigassem. Contudo, era coagido, e me faziam grande bem. Quem não procediabem era eu, que não estudava a não ser constrangido, pois ninguém faz bem o quefaz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz.

Tampouco os que obrigavam a estudar agiam corretamente; antes, todo o bemque eu recebia vinha de ti, meu Deus, porque eles não tinham outro fim ao meobrigarem a estudar senão saciar o apetite de abundante miséria e de gloriaignominiosa. Mas tu, Senhor, que tens contados os cabelos de nossa cabeça,usavas do erro de todos os que me coagiam a estudar para minha utilidade; eusavas da minha falta de vontade de estudar para meu castigo, de quecertamente eu já era digno, sendo ainda tão pequeno, e tao grande pecador.

Assim, convertias em bem o mal que eles me faziam, e dos meus pecados, medavas justa retribuição, porque é teu desígnio, e assim acontece, que toda almadesordenada seja castigo de si mesma.

CAPÍTULOXIII-Gostopelolatim

Porque odiava eu as letras gregas, que me ensinavam quando eu era criança? Nãoo sei, e nem agora o posso explicar. Em compensação, as letras latinas meapaixonavam, não as ensinadas pelos professores primários, mas a que é explicadapelos chamados gramáticos, porque aquelas primeiras, com as quais se aprende aler, a escrever e a contar, não me foram menos pesadas e insuportáveis que asgregas. Mas donde podia proceder essa aversão, senão do pecado e da vaidade davida, porque eu era carne e vento que caminha e não volta?

Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo oque há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que

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aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Enéias,esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor,enquanto isso, eu, miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhosenxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida!

Na verdade, que pode haver de mais miserável do que um infeliz que não secompadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Enéias, nãochora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz de meu coração, pãointerior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava;prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito bem! Muito bem!” –porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam a alguémdizendo: “Muito bem! Muito bem!” – é para que este não se envergonhe de serassim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se suicidou coma espada”, eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, comoterra que eu era, atraída pela terra. Se então me proibissem a leitura de taiscoisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor.

Não obstante, semelhante loucura é considerada como coisa mais nobre eproveitosa que as letras pelas quais aprendemos a ler e a escrever.

Mas agora, meu Deus, grite em minha alma tua verdade, e diga: Não é assim, nãoé assim, antes, aquela primeira instrução é absolutamente superior; pois eupreferiria esquecer todas as aventuras de Enéias, e outras histórias semelhantes,do que o saber ler e escrever. Sei que nas escolas dos gramáticos pendem cortinasàs portas; porém, servem menos para velar o segredo que para encobrir o erro.

Não gritem contra mim aqueles mestres a quem já não temo, enquanto confesso ati os desejos de minha alma, e aborreço dos meus maus caminhos, a fim de amar osteus. Não gritem contra mim os comerciantes da gramática, pois, se eu osinterrogar sobre se é verdade que Enéias veio uma vez a Cartago, como afirma opoeta, os néscios responderão que não sabem, e os sábios negarão o fato. Porém,se lhes perguntar como se escreve o nome de Enéias, todos os que estudaram meresponderão a mesma coisa, de acordo com a convenção com que os homensfixaram o valor das letras do alfabeto.

Do mesmo modo, se lhes perguntar o que seria mais prejudicial para a vidahumana: esquecer o ler e o escrever, ou todas as ficções dos poetas, quem não vêo que logo responderia aquele que não estivesse de tudo esquecido de ti? Pequei,pois, em minha infância, ao preferir vãos aos proveitosos, ou para dizer melhor, ao

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amar àqueles e ao odiar a estes; era para mim uma cantiga odiosa aquele “um eum, dois; dois e dois, quatro; enquanto considerava espetáculo encantador ahistória do cavalo de madeira cheio de guerreiros e o incêndio de Tróia, “e até asombra de Creuza”.

CAPÍTULOXIV-Aversãoaogrego

Por que então aborrecia eu a literatura grega na qual se cantam tais coisas?Porque também Homero é mui habilidoso em tecer essas historietas, dulcíssimo nasua frivolidade, embora para mim, menino, fosse bem amargo. Creio que o mesmoocorra com Virgilio para os meninos gregos obrigados a estudá-lo, como a mimcom relação a Homero. Era a dificuldade de ter de aprender totalmente umalíngua estranha que, como fel, aspergia de amargura todas as doçuras das fábulasgregas.

Eu ainda não conhecia nenhuma palavra daquela língua, e já me obrigavam comveemência, com crueldades e terríveis castigos, a aprendê-la. Na verdade, eu,ainda criança, também não conhecia nenhuma palavra de latim; contudo, com umpouco de atenção, o aprendi entre o carinho das amas, os gracejos dos que se riame as alegrias dos que brincavam, sem medo algum nem tormento. Eu o aprendi,sem a pressão dos castigos, impelido unicamente por meu coração desejoso de darà luz seus sentimentos, e o único caminho para isso era aprender algumaspalavras, não dos que as ensinavam, mas do que falavam, em cujos ouvidos ia eudepositando quanto sentia.

Por aqui se evidencia claramente que, para instruir, tem mais eficácia ecuriosidade livre do que a necessidade inspirada pelo medo. Contudo, os excessosda curiosidade encontram nessa violência um freio segundo tuas leis, ó Deus; quedesde as palmatórias dos mestres até os tormentos dos mártires sabem dosar suassalutares amarguras, que nos reconduzem a ti do seio do pernicioso deleite que deti nos apartara.

CAPÍTULOXV-Oração

Ouvi, Senhor, minha oração, para que não desfaleça minha alma sob a tua lei, nemme canse em confessar tuas misericórdias, com as quais me arrancaste de meusperversos caminhos; que tua doçura sobrepuje todas as doçuras que segui, e assimte ame fortissimamente, e abrace tua mão com toda minha alma, e me livres detoda a tentação até o fim dos meus dias.

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Pois é, Senhor, meu rei e meu Deus, e a ti consagro quanto falo, escrevo, leio econto, pois quando aprendia aquelas futilidades, tu eras o que me davas averdadeira disciplina, e já me perdoaste os pecados de deleite cometidos naquelasvaidades. Muitas palavras úteis aprendi nelas, é verdade; porém, estas tambémse podem aprender em estudos sérios, e este é o caminho seguro pelo qualdeveriam encaminhar as crianças.

CAPÍTULOXVI-Omaldamitologia

Ai de ti, torrente dos hábitos humanos! Quem há que te resista? Quando tesecarás? Até quando irás arrastar os filhos de Eva a esse mar imenso e tenebroso,que apenas logram passar os que embarcam sobre o lenho da cruz? Acaso não foiem ti que li a fábula de Júpiter que troveja e adultera? É verdade que não podiafazer tais coisas ao mesmo tempo, mas assim se representou para autorizar aimitação de um verdadeiro adultério com o encantamento de um falso trovão.Contudo, qual é o professor de pênula capaz de ouvir com paciência a um homemnascido do mesmo pó que clama e diz: “Homero imaginava essas ficções e atribuíaaos deuses os vícios humanos; porém, eu preferiria que atribuísse a nós asqualidades divinas”. Com mais verdade se diria que Homero imaginou tudo isso,atribuindo qualidades divinas a homens corrompidos, para que os vícios nãofossem considerados como tais, e para que todo aquele que os cometesseparecesse que imitava a deuses celestes, e não a homens corrompidos.

E contudo, ó torrente infernal, em ti se precipitam os filhos dos homens, com odinheiro gasto para aprender tais coisas. E consideram acontecimento importanterepresentá-lo, publicamente no Foro, à vista das leis que concedem aos mestresum prêmio, além de seus salários particulares.

E ferindo os rochedos de tuas margens, gritas dizendo: “Aqui se aprendem aspalavras; aqui se adquire a eloqüência, tao necessária para persuadir e explicar ospensamentos; não poderíamos pois aprender as palavras: chuva de ouro, regaço,templo celeste, logro e outras mais, escritas em determinada passagem, seTerêncio não nos apresentasse um jovem perdido que se propõe a imitar a luxúriade Júpiter? Contemplava ele uma pintura mural “na qual se representava omesmo Júpiter no momento em que, segundo dizem, descia como chuva de ourosobre o regaço de Dânae, para lograr assim à pobre mulher”.

E vede como se excitava à luxúria a vista de tão celestial mestre:

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- Mas que deus fez isto? – diz.

- Nada menos que aquele que faz retumbar a abóbada do céu com enorme trovão!

- E eu, homenzinho, não haveria de fazer o mesmo?

- Fi-lo, sim, e com muito gosto.

De modo algum se aprendem com semelhante torpeza aquelas palavras; antes,essas palavras levam mais atrevidamente a cometer a mesma devassidão. Nãoincrimino as palavras, que são como vasos seletos e preciosos, mas condeno ovinho do erro que mestres ébrios nos davam a beber nelas e, se não obebêssemos, éramos açoitados, sem que pudéssemos apelar para juiz mais sóbrio.

E, não obstante, meu Deus, cuja presença me protege desta lembrança, confessoque aprendi estas coisas com gosto e que, miserável, nelas me comprazi, sendo porisso chamado menino de grandes esperanças.

CAPÍTULOXVII-Êxitosescolares

Permite-me, Senhor, que diga também algo de meu talento, dádiva tua, e dosdesatinos em que o empregava. Propunha-se-me como desafio – coisa muipreocupante para minha alma, tanto pelo louvor ou descrédito, como por medodos açoites – que repetisse as palavras de Juno, irada e ressentida por não podem“afastar da Itália ao rei dos troianos”, embora jamais tenha sabido que tivessemsido pronunciadas por Juno. Mas obrigavam-nos a errar seguindo os passos dasficções poéticas, e a repetir em prosa o que o poeta havia dito em verso. Era maiselogiado aquele que, conforme a dignidade da pessoa representada, soubessepintar com mais vivacidade e semelhança, e revestir com palavras maisapropriadas seus afetos de ira ou de dor.

Mas qual o proveito disso – ó vida verdadeira, meu Deus – de que me servia seraplaudido por minha declamação mais que todos os meus coetâneos econdiscípulos? Não era tudo aquilo fumo e vento? Acaso não havia outra coisa emque exercitar meu talento e minha língua? Teus louvores, Senhor, teus louvores,consignados nas Escrituras, poderiam soerguer a frágil planta de meu coração, eeu não teria sido arrebatado pela vaidade de vãs quimeras, presa imunda dasaves. Com efeito, há diversas maneiras de oferecer sacrifício aos anjos rebeldes.

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CAPÍTULOXVIII-Leisgramaticais,leideDeus

Mas, por que admirar-se que eu me deixasse arrastar pelas vaidades e me afastarde ti, meu Deus, se me propunham como exemplos para imitar a uns homens quese, ao contar alguma boa ação, deslizassem nalgum barbarismo ou solecismocobriam-me de críticas e, pelo contrário, que eram elogiados por narrar suastorpezas com palavras castiças e apropriadas, de modo eloqüente e elegante, eque os inchavam de vaidade?

Tu vês, Senhor, estas coisas, e te calas compassivo, paciente, cheio de misericórdiae verdade. Mas te calarás para sempre? Arranca, pois, agora deste espantosoabismo a alma que te busca sedenta de teus deleites, e que te diz de coração:Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor, buscarei ainda. Longe está de teurosto quem anda ocupado com afetos tenebrosos, porque não é com os pés carnais,nem cobrindo distâncias que nos aproximamos ou nos afastamos de ti. Porventuraaquele teu filho menor procurou cavalos, ou carros, ou naves, ou voou com asasinvisíveis, ou viajou a pé para alcançar aquela região longínqua onde dissipou oque lhes havia dado, ó Pai, meigo ao lhe entregar a substância, e mais carinhosoainda ao recebê-lo andrajoso? Assim, pois, viver nas paixões da luxúria, é o mesmoque viver em paixões tenebrosas, é viver longe de teu rosto.

Olha, meu Senhor e meu Deus, é vê paciente, como costumas ver, de que mododiligente os filhos dos homens observam as regras de ortografia recebidas dosprimeiros mestres, e desprezam as leis eternas de salvação perpétua recebidas deti; de tal modo que, se alguns dos que sabem ou ensinam as regras antigas dossons pronunciasse a palavra homo, sem aspirar a primeira letra, desagradariamais aos homens do que se, contra teus preceitos, odiasse a outro homem, sendoeste homem.

Como se o homem pudesse ter inimigo mais pernicioso que o ódio com que se irritacontra si mesmo, ou como se pudesse causar a outrem maior dano, perseguindo-o,do que causa a seu próprio coração odiando! Com certeza, não nos é mais íntima aciência das letras do que a consciência, que manda não fazer a outrem o que nãoqueremos que não nos façam.

Oh! Como és misericordioso, tu, que habitando silencioso nos céus, Deus grande eúnico, espalhas com lei infatigável cegueiras vingadoras sobre as paixões ilícitas!Quando o homem, aspirando à fama de eloqüente, ataca a seu inimigo com ódioferoz diante do juiz, rodeado de grande multidão de homens, toma todo o cuidado

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para que, por um lapsus linguae, não se lhe escape um inter ominibus, sem aspiraro h, sem cuidar que com o furor de seu ódio se tire um homem de entre os homens.

CAPÍTULOXIX-Mauperdedor

À beira de tal lodaçal jazia eu, pobre criança, sendo esta a arena em que meexercitava, temendo mais cometer um barbarismo de linguagem do que cuidandode não invejar, se o cometia, aqueles que o tinham evitado.

Digo e confesso diante de ti, meu Deus, essas misérias, que me angariavam olouvor daqueles cuja simpatia equivalia para mim a uma vida honesta, pois nãovia o abismo pois não via o abismo de torpeza em que tudo isso me lançara, longedos teus olhos. A teus olhos quem era mais repelente do que eu? E eu atédesagradava tais homens, enganando com infinidade de mentiras a meus criados,mestres e pais por amor dos jogos, por gosto de ver espetáculos frívolos e o desejoinquieto de os imitar.

Também cometia furtos na despensa e na mesa de meus pais, ora impelido pelagula, ora para ter de dar aos meninos para brincar com eles, folguedos que osdeleitavam tanto quanto a mim, e que eles me faziam pagar. No jogo,frequentemente, conseguia vitórias fraudulentas, vencido pelo desejo de mesobressair. Contudo, nada havia que eu quisesse mais evitar e que eurepreendesse mais atrozmente se o descobrisse em outros, que o mesmo eu faziaaos demais.

Se acaso eu era o prejudicado, e o acusado ficava furioso, eu não cedia. Será esta ainocência infantil? Não, Senhor, não o é, eu to confesso, meu Deus. Porque essasmesmas coisas que se fazem com os criados e mestres por causa de nozes, bolas epassarinhos, se avultam na maioridade com os magistrados e reis por causa dedinheiro, palácios e servos, do mesmo modo que à palmatória sucedem-se maiorescastigos.

Assim, quando tu, nosso rei, disseste: Delas é o reino do céus – quiseste semdúvida louvar na pequenez de sua estatura um símbolo de humildade.

CAPÍTULOXX-Açãodegraças

Contudo, Senhor, graças te sejam dadas, excelso e ótimo criador e ordenador douniverso, nosso Deus, mesmo que te limitasses a me fazer apenas menino. Porque

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então, eu já existia, vivia, sentia, cuidava da minha integridade, eco de tuaprofunda unidade, fonte de minha existência.

Guardava também, com o secreto instinto, a integridade dos meus outrossentidos, e deleitava-me com a verdade nos pequenos pensamentos que formavasobre coisas pequenas.

Não queria ser enganado, tinha boa memória, e me ia instruindo com aconversação. Alegrava-me com a amizade, fugia à dor, ao desprezo, à ignorância. Enão seria isto, em tal criatura, digno de admiração e de louvor? Pois todas essascoisas são dons do meu Deus, que eu não dei a mim mesmo. E todos são bons, etudo isso constitui o meu eu.

O que me criou, portanto, é bom, e ele próprio é o meu bem; a ele louvo por todosestes bens que integravam meu ser de criança. Eu pecava em buscar em mimpróprio e nas demais criaturas, e não nele, os deleites, grandezas e verdades; porisso caia logo em dores, confusões e erros.

Graças a ti, minha doçura, minha esperança e meu Deus, graças a ti por teus dons;que eles fiquem em ti conservados. Assim me guardarás também a mim, eaumentarão e aperfeiçoarão os dons que me deste, e eu estarei contigo, porquetambém me deste a existência.

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LIVROSEGUNDO

CAPÍTULOI-Aadolescência

Quero recordar minhas torpezas passadas e as degradações carnais de minhaalma, não porque as ame, mas por te amar, ó meu Deus. É por amor de teu amorque o faço, percorrendo com a memória amargurada, aqueles meus perversoscaminhos, para que tu me sejas doce, doçura sem engano, ditosa e eterna doçura.Resgata-me da dispersão em que me dissipei quando, afastando-me de tuaunidade, me desvaneci em muitas coisas.

Tempo houve de minha adolescência em que ardi em desejos de me fartar dosprazeres mais baixos, e ousei a bestialidade de vários e sombrios amores, e semurchou minha beleza, e me transformei em podridão diante de teus olhos, paraagradar a mim mesmo e desejar agradar aos olhos dos homens.

CAPÍTULOII-Asprimeiraspaixões

E que me deleitava, senão amar e ser amada? Mas eu não era moderado, indo dealma para alma de acordo com os sinais luminosos da amizade, pois, da lodosaconcupiscência de minha carne e do fervilhar da puberdade levantava-se como queuma névoa que obscurecia e ofuscava meu coração, a ponto de não discernir aserena amizade da tenebrosa libido. Uma e outra, confusamente, me abrasavam;arrastavam minha fraca idade pelo declive íngreme de meus apetites, afogando-me em um mar de torpezas. Tua ira se acumulava sobre mim, e eu não o sabia.Ensurdeci com o ruído da cadeia de minha mortalidade, e cada vez mais meafastava de ti, e tu o consentias; e me agitava, e me dissipava, e me derramava efervia em minha devassidão, e tu te calavas – ó alegria que tão tarde encontrei! –tu te calavas então, e eu ia cada vez mais para longe de ti, sempre atrás deestéreis sementes de dores, com vil soberba e inquieto cansaço.

Oh! Se alguém refreasse aquela minha miséria, para que fizesse bom uso da fugazbeleza das criaturas inferiores; limitasse suas delicias, a fim de que as vagasdaquela minha idade rompessem na praia do matrimonio, já que de outro modonão podia haver paz – contendo-se nos limites da geração, como prescreve tua lei,Senhor, tu que crias o gérmen transmissor de nossa vida mortal, e que com mãobondosa podes suavizar a agudeza dos espinhos, que mantiveste fora do paraíso!Porque tua onipotência está perto de nós, mesmo quando vagueamos longe de ti.

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Pelo menos eu deveria atender com mais diligencia à voz de tuas nuvens: Tambémeles sofrerão as tribulações da carne; mas eu quisera poupar-vos; e bom é aohomem não tocar em mulher; o que está sem mulher pensa nas coisas de Deus, decomo o há de agradar; mas o que está ligado pelo matrimonio pensa nas coisas domundo, e em como há de agradar à mulher.

Estas são as palavras que eu deveria ter ouvido mais atentamente; e, eunuco peloamor ao reino de Deus, teria suspirado mais feliz por teus abraços.

Mas eu, miserável, tornei-me em torrente, seguindo o ímpeto de minha paixão, teabandonei e transgredi a todos os teus preceitos, sem porém, escapar de teuscastigos. E quem o poderia dentre os mortais? Sempre estavas ao meu lado,irritando-se misericordiosamente comigo, e aspergindo com amaríssimos desgostostodos os meus gozos ilícitos, para que eu buscasse a alegria sem te ofender e,quando a achasse, de modo algum fosse fora de ti, Senhor.

Fora de ti, que impões a dor em mandamento, e feres para sarar, e nos tiras avida para que não morramos sem ti.

Mas onde estava eu? Oh! Quão longe, exilado das delicias de tua casa naquelesmeus dezesseis anos de idade carnal, quando esta empunhou seu cetro sobre mim,e eu me rendi totalmente a ela, à fúria da concupiscência que a degradaçãohumana legítima, porém, ilícita, de acordo com as tuas leis.

Nem mesmo os meus cogitaram em me sustentar na queda, pelo casamento, aover-me cair; cuidavam apenas que eu aprendesse a compor discursos magníficos ea persuadir com a palavra.

CAPÍTULOIII-Cegueiradopai,cuidadosdamãe

Nesse mesmo ano tive de interromper meus estudos, quando voltei de Madaura,cidade vizinha, onde fora estudar literatura e oratória, enquanto se faziam ospreparativos necessários para minha viagem mais longa a Cartago, levado maispela ambição de meu pai que pelos seus parcos bens, pois, era mui modestocidadão de Tagaste.

Mas, a quem conto eu estes fatos? Certamente, não a ti, meu Deus, mas em tuapresença conto estas coisas aos da minha estirpe, ao gênero humano, ainda queestas páginas chegassem às mãos de poucos. E para que então? Para que eu, e

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quem me ler, pensemos na profundeza do abismo de onde temos de clamar por ti?E que há de mais próximo a teus ouvidos que o coração contrito e a vida queprocede da fé?

Quem então não cumulava a meu pai de louvores, pois excedendo até seusdeveres familiares, gastava com o filho o necessário para tão longa viagem porcausa de seus estudos?

Porque muitos cidadãos, muito mais ricos do que ele, não mostravam para com osfilhos igual cuidado.

Contudo, este mesmo pai não se importava de saber se eu crescia para ti, ou quefosse casto, contanto que fosse deserto; mas antes eu era deserto, por carecer deteu cultivo, ó Deus, único, verdadeiro e bom senhor de teu campo, o meu coração.

Porém, no meu décimo-sexto ano foi necessária uma interrupção em meus estudospor falta de recursos familiares e, livre da escola, passei a viver com meus pais.Avassalaram então minha cabeça os espinhos de minhas paixões, sem quehouvesse mãos que os arrancassem.

Pelo contrário, meu pai, certo dia, percebendo ao banho sinais de minhapuberdade e vendo-me revestido de inquieta adolescência, como se já se alegrassepensando nos netos, foi contá-lo alegre à minha mãe. Alegria esta gerada pelaembriaguez com que este mundo esquece de ti, seu criador, e em teu lugar amatua criatura; embriaguez que nasce do vinho sutil de sua perversa e mal inclinadavontade para as coisas baixas.

Mas, nessa época, já tinhas começado a levantar, no coração de minha mãe, teutemplo e os alicerces de tua santa morada; meu pai não era mais que catecúmeno,recente ainda. Por isso minha mãe perturbou-se com santo temor. Embora euainda não fosse batizado, temia que eu seguisse as sendas tortuosas por ondeandam os que te voltam as costas, e não o rosto.

Ai de mim! Como me atrevo a dizer que te calavas quando me afastava de ti?Seria verdade que então te calavas comigo? E de quem eram, senão tuas, aquelaspalavras que pela boca de minha mãe, tua serva fiel, sussurraste em meusouvidos, embora nenhuma delas penetrasse no meu coração, para que acumprisse?

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Lembro bem que um dia me admoestou em segredo, com grande solicitude, queme abstivesse da luxúria e, sobretudo, que não cometesse adultério com a mulherde ninguém.

Porém, esses conselhos pareciam-me próprios de mulheres, e eu me envergonhariade segui-los.

Mas, na realidade, eram teus, embora eu não o soubesse, e por isso julgava que tecalavas, e que era ela quem me falava; e eu te desprezava em tua serva, eu, seufilho, filho de tua serva e servo teu, a ti que não cessavas de me falar pela suaboca.

Mas eu não o sabia, e me precipitava com tanta cegueira, que me envergonhavaentre os companheiros de minha idade, de ser menos torpe do que eles. Os ouviajactar-se de suas maldades, e gloriar-se tanto mais quanto mais infames eram;assim eu gostava de fazer o mal, não só pelo prazer, mas ainda por vaidade. O quehá de mais digno de vitupério do que o vicio? E, contudo, para não serescarnecido, tornava-me mais viciado e, quando não houvesse cometido pecadoque me igualasse aos mais perdidos, fingia ter feito o que não cometera, para quenão parecesse mais abjeto quanto mais inocente, e tanto mais vil quanto maiscasto.

Eis com que companheiros andava eu pelas graças de Babilônia, revolvendo-me nalama, como em cinamomo e ungüentos preciosos. E, para que todo esse lodo mepegasse bem firme, subjugava-me o inimigo invisível, e me seduzia, por ser eupresa fácil da sedução.

Nem então minha mãe carnal, que já fugira do meio da Babilônia, mas que emoutras coisas caminhava mais devagar, cuidou – como fizera ao aconselhar-me acastidade – de conter com os laços do matrimonio aquilo de que seu marido lhefalara a meu respeito. Já percebera ela que me era pestilencial, e que maisadiante me seria perigoso – já que essa paixão não podia ser cortada pela raiz.Não pensou nisso, digo, por temer que o vínculo matrimonial frustrasse aesperança que sobre mim acalentava; não a esperança da vida futura, que ela játinha posto em ti, mas a esperança das letras que ambos, meu pai e minha mãe,desejavam ardentemente; meu pai, porque não pensava quase nada de ti, masapenas ambições vãs a meu respeito; minha mãe, porque considerava que taistradicionais estudos das letras não só não me seriam de estorvo, sendo de nãopouca ajuda para chegar a ti. Assim julgo eu, agora, enquanto me é possível pela

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lembrança, o caráter de meus pais.

Por isso, soltavam-me as rédeas para o jogo mais do que o permite uma moderadaseveridade, deixando-me cair na dissolução de várias paixões; e de todas surgiauma obscuridade que me toldava, ó meu Deus, a luz da tua verdade; e, por assimdizer, de meu corpo, brotava minha iniqüidade.

CAPÍTULOIV-Ofurtodaspêras

É certo, Senhor, que tua lei pune o furto, lei tão arraigada no coração dos homensque nem a própria iniqüidade pode apagar. Que ladrão há que suporte compaciência que o roubem? Nem o rico tolera isto a quem o faz forçado pelaindigência. Também eu quis roubar, e roubei não forçado pela necessidade, maspor penúria, fastio de justiça e abundância de maldade, pois roubei o que tinha emabundância, e muito melhor. Nem me atraía ao furto o gozo de seu resultado, masatraía-me o furto em si, o pecado.

Nas imediações de nossa vinha, havia uma pereira carregada de frutos, que nempelo aspecto, nem pelo sabor tinham algo de tentador. Alta noite – pois até entãoficaríamos jogando nas eiras, de acordo com nosso mau costume – dirigimo-nos aolocal, eu e alguns jovens malvados, com o fim de sacudi-la e colher-lhe os frutos. Elevamos grande quantidade deles, não para saboreá-los, mas para jogá-los aosporcos, embora comêssemos alguns; nosso deleite era fazer o que nos agradavajustamente pelo fato de ser coisa proibida.

Aí está meu coração, Senhor, meu coração que olhaste com misericórdia quando seencontrava na profundeza do abismo. Que este meu coração te diga agora que erao que ali buscava, para fazer o mal gratuitamente, não tendo minha maldadeoutra razão que a própria maldade. Era hedionda, e eu a amei; amei minha morte,amei meu pecado; não o objeto que me fazia cair, mas minha própria queda. Ótorpe minha alma, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na morte,não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia?

CAPÍTULOV-Acausadopecado

Todos os corpos formosos, o ouro, a prata, e todos os demais têm, com efeito, seuaspecto atraente. No contato carnal intervém grandemente a congruência daspartes, e cada um dos sentidos percebe nos corpos certa modalidade própria.Também a honra temporal e o poder de mandar e dominar têm seu atrativo, de

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onde nasce o desejo de vingança.

Todavia, para obtermos estas coisas, não é necessário abandonarmos a ti, nem nosdesviar de tua lei. Também a vida que aqui vivemos tem seus encantos, por certabeleza que lhe é própria, e pela harmonia que tem com as demais belezasterrenas. Cara é, finalmente, a amizade dos homens pela união que une muitasalmas com o doce laço do amor.

Por todos estes motivos, e outros semelhantes, pecamos quando, por propensãoimoderada para os bens ínfimos, são abandonados os melhores e mais altos, comotu, Senhor, nosso Deus, tua verdade e tua lei.

É verdade que também esses bens ínfimos têm seus deleites, porém, não como osde Deus, criador de todas as coisas, porque nele se deleita o justo, e nele achamsuas delicias os retos de coração.

Portanto, quando indagamos a causa de um crime, não descansamos até averiguarqual o apetite dos bens chamados ínfimos, ou que temor de perdê-los foi capaz deprovocá-lo. Sem dúvida são belos e atraentes, embora, comparados com os benssuperiores e beatíficos, sejam abjetos e desprezíveis. Alguém comete umhomicídio. Por que? Porque desejou a esposa do morto, ou suas terras, ou porquequis roubar alguma coisa, ou então, ferido, ardeu em desejos de vingança. Poracaso cometeria o crime sem motivo, apenas pelo gosto de matar? Quem podeacreditar em semelhante coisa?

Mesmo de Catilina, homem sem entranhas e muito cruel, de quem se disse que eramau e cruel sem razão, acrescenta o historiador um motivo: “Para que aociosidade não embotasse suas mãos e sentimento”.

Todavia, se indagares porque agia assim, dir-te-ei que mediante o exercício decrimes, depois de tomada a cidade, conseguisse honras, poderes e riquezas,libertando-se do medo das leis e das dificuldades da vida, causados pela pobrezade seu patrimônio e a consciência de seus crimes. Logo, nem o próprio Catilinaamava seus crimes, mas aquilo por cujo motivo os cometia.

CAPÍTULOVI-Ocrimegratuito

Que amei, então, em ti, ó meu furto, crime noturno dos meus dezesseis anos? Nãoeras belo, já que eras furto. Mas, por acaso és algo para que eu fale contigo? Belas

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eram as pêras que roubamos, por serem criaturas tuas, ó formosíssimo Criador detodas as coisas, bom Deus, Deus sumo, meu bem e meu verdadeiro bem; belaseram aquelas pêras! Porém, não eram elas que apeteciam minha alma depravada.Eu as tinha em abundância, e melhores. Colhi-as da árvore só para roubar; tantoque, tão logo colhidas, joguei-as fora, saboreando nelas apenas a iniqüidade, comque me regozijava. Se alguma delas entrou em minha boca, somente o crime é quelhe deu sabor.

E agora pergunto, meu Deus: que é que me deleitava no furto? Pois não encontronenhuma beleza nele. Já não falo da beleza que reside na justiça e na prudência,nem sequer da que resplandece na inteligência do homem, na memória, nossentidos ou na vida vegetativa; nem da que brilha nos magníficos astros em suasórbitas, ou na terra e no mar, cheios de criaturas, que nascem para sucederemumas às outras; nem sequer da defeituosa e sombria formosura dos víciosenganadores.

O orgulho imita a altura; mas só tu, Deus excelso, estás acima de todas as coisas. Ea ambição, que busca, senão honras e glorias, quanto tu és o único sobre todas ascoisas e ser honrado e glorificado eternamente? A crueldade dos tiranos quer sertemida; porém, quem há de ser temido senão Deus, a cujo poder ninguém, porém,quem há de ser temido senão Deus, a cujo poder ninguém, em tempo algum oulugar, nem por nenhum meio pode subtrair-se e fugir? As carícias da volúpiabuscam ser correspondidas; porém, não há nada mais carinhoso que tua caridade,nem que se ame de modo mais salutar que tua verdade, sobre todas as coisasformosa e resplandecente. A curiosidade sugere amor à ciência, enquanto só tuconheces plenamente todas as coisas. Até a própria ignorância e estultícia cobrem-se com o nome de simplicidade e inocência; das quais não acham nada mais simplesdo que tu. E que pode haver mais inocente do que tu, pois, até mesmo o castigodos maus lhes vem de seus pecados? A indolência gosta do descanso; porém, querepouso seguro pode haver fora do Senhor? O luxo gosta de ser chamado defartura; mas só tu és a plenitude e a abundância inesgotável de eterna suavidade.A prodigalidade veste-se com a capa da liberalidade; porém, só tu, és verdadeiro eliberalíssimo doador de todos os bens. A avareza quer possuir muitas coisas;porém, só tu as possui todas. A inveja litiga acerca de excelências; porém, que hámais excelente do que tu? A ira busca a vingança; e que vingança mais justa doque a tua? O temor aborrece as coisas repentinas e insólitas, contrárias ao que seama ou se deseja manter seguro; mas haverá para ti algo de novo e repentino?Quem poderá separar de ti o que amas? E onde, senão em ti, se encontrainabalável segurança? A tristeza definha com a perda das coisas com que a cobiçase deleita, e não quer que se lhe tire nada, como nada pode ser tirado de ti.

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Assim peca a alma, quando se aparta e busca fora de ti o que não pode achar puroe ilibado senão quando se volta novamente para ti. Perversamente te imitamtodos os que se afastam de ti e se levantam contra ti. Porém, mesmo imitando-te,mostram que és o criador de toda criatura e que, portanto, não existe lugar ondealguém se possa afastar de ti de modo absoluto.

Que amei, então, naquele furto, e no que imitei, viciosa e imperfeitamente, a meuSenhor?

Acaso foi o gosto de agir pela fraude contra a tua lei, já que não o podia fazer porforça, simulando, cativo, uma falsa liberdade ao fazer impunemente o que estavaproibido, imagem tenebrosa de tua onipotência?

Eis aqui o servo que, fugindo do seu senhor, seguiu uma sombra. Ó podridão! Ómonstro da vida e abismo da morte! Como pôde agradar-me o ilícito, e não poroutro motivo, senão porque era ilícito?

CAPÍTULOVII-Açãodegraças

Como agradecerei ao Senhor por poder recordar todas estas coisas sem que minhaalma sinta medo algum? Amar-te-ei, Senhor, e dar-te-ei graças, e confessarei teunome, pois me perdoaste tantas e tão nefandas ações. Devo à tua graça emisericórdia teres-me dissolvido os pecados como gelo, como também todo o malque não pratiquei. De fato, de que pecados não seria capaz, eu que ameigratuitamente o erro?

Confesso que todos já me foram perdoados; o mal cometido voluntariamente, e oque deixei de fazer pela tua graça. Quem dentre os homens, conhecendo tuafraqueza, poderá atribuir às próprias forças sua castidade e inocência para amar-temenos, como se tivesse menor necessidade de tua misericórdia, com a qualperdoas os pecados aos que se convertem a ti?

Aquele, pois, que, chamado por ti, seguiu tua voz e evitou todas estas coisas quelê de mim, e que eu recordo e confesso, não se ria de mim por haver sido curadopelo mesmo médico que o preservou de cair enfermo, ou melhor, de que adoecessetanto. Antes, esse deve amar-te tanto e ainda mais do que eu, porque o mesmoque me curou de tantas e tão graves enfermidades, esse mesmo o livrou de cair nopecado.

CAPÍTULOVIII-Oprazerdacumplicidade

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CAPÍTULOVIII-Oprazerdacumplicidade

E que fruto colhi eu, miserável, daquelas ações que agora recordo com rubor?Sobretudo daquele furto, em que amei o próprio furto, e nada mais? Nenhum, poiso furto, em si nada valia, ficando eu mais miserável com ele. Todavia, é certo queeu sozinho não o teria praticado – a julgar pela disposição de meu ânimo naocasião; - não, de modo algum; eu sozinho não o faria.

Portanto, apreciei também na ocasião a companhia daqueles com quem o cometi.Logo, também é certo que apreciei algo mais além do furto; embora não amassede fato nada mais, pois também essa cumplicidade era nada.

Mas, que é esta, na verdade? E quem mo poderá ensinar, senão o que iluminameu coração e rasga minhas sombras? De onde vem à minha alma a idéia destasindagações, desta discussão e considerações? Se eu então amasse as pêras queroubei, e quisesse apenas seu desfrute, podia tê-las roubado sozinho, se issobastasse. Poderia fazer a iniqüidade pela qual chegaria meu deleite semnecessidade de excitar o prurido da minha cobiça com a conivência de almascúmplices.

Porém, como não achava deleite algum nas pêras, colocava este no própriopecado, que consistia na companhia dos que pecavam comigo.

CAPÍTULOIX-Oprazerdopecado

E que sentimento era aquele de minha alma? certamente, assaz torpe e eu umdesgraçado por alimentá-lo. Mas, que era na realidade? E quem há que conheça ospecados? Era como um riso, como que a fazer-nos cócegas no coração, provocadopor ver que enganávamos aos que não suspeitavam de nós tais coisas, e porquesabíamos que haviam de detestá-las.

Porém, por que me deleitava o não perpetrar sozinho o roubo? Acaso alguém se rifacilmente quando está só? Ninguém o faz, é verdade; porém, também é verdadeque às vezes o riso tenta e vence aos que estão sós, sem que ninguém os veja,quando se oferece aos sentidos ou à alma algo extraordinariamente ridículo.Porque a verdade é que eu sozinho nunca teria feito aquilo; não, eu sozinho jamaisfaria aquilo. Tenho viva, diante de mim, meu Deus, a lembrança daquele estado dealma, e repito que eu sozinho não teria cometido aquele furto, do qual não medeleitava o objeto, mas a razão do roubo, o que, sozinho, não me teria agradado

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de modo algum, nem eu o teria feito.

Ó amizade inimiga! Sedução impenetrável da alma, vontade de fazer o mal porpassatempo e brinquedo, apetite do dano alheio sem proveito algum e sem desejode vingança!

Só porque sentimos vergonha de não ser sem-vergonha quando ouvimos; “Vamos!Façamos!”.

CAPÍTULOX-Deus,osumobem

Quem desatará este nó, tão enredado e emaranhado? Como é asqueroso! Nãoquero voltar para ele os olhos, não quero vê-lo. Só a ti quero, justiça e inocência,tão bela e graciosa aos olhos puros, e com insaciável saciedade. Só em ti se acha odescanso supremo e a vida imperturbável. Quem entra em ti, entra no gozo do seuSenhor, e não temerá, e estará perfeitamente bem no sumo bem. Eu me afastei deti e andei errante, meu Deus, mui longe de teu esteio em minha adolescência, echeguei a ser para mim mesmo uma região de esterilidade.

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LIVROTERCEIRO

CAPÍTULOI-Ogostodoamor

Cheguei a Cartago, e por toda parte fervilhava a sertã de amores impuros. Aindanão amava, mas já gostava de amar; secretamente sedento, aborrecia a mimpróprio por não me sentir mais indigente de amor. Gostando do amor buscava oque amar, e odiava a segurança e os meus caminhos sem perigos, porque tinhadentro de mim fonte de alimento interior, de ti mesmo, ó meu Deus. Eu não sentiaessa fonte como tal; antes, estava sem apetite algum dos manjares incorruptíveis,não porque estivesse saciado deles, mas porque, quanto mais vazio, tanto maisenfastiado me sentia.

E por isso minha alma não estava bem e, ferida, voltava-se para fora de si, ávidade se roçar miseravelmente às coisas sensíveis; se porém não tivessem alma, nãoseriam certamente amadas.

Amar e ser amado era para mim a coisa mais doce, sobretudo se podia gozar docorpo da criatura amada. Deste modo manchava com torpe concupiscência a fonteda amizade, e obscurecia seu candor com os vapores infernais da luxúria. E apesarde tão torpe e impuro, desejava com afã e cheio de vaidade, passar por afável ecortês.

Caí por fim no amor, em que desejava ser colhido. Porém, ó meu Deus,misericórdia minha, quanto fel não misturaste àquela suavidade, e quão bom fosteao fazê-lo! Fui amado, e cheguei secretamente aos laços do prazer, e me deixeialegremente enredar com trabalhosos laços, para ser logo açoitado com as varasde ferro ardente do ciúme, das suspeitas, dos temores, das iras e das contendas.

CAPÍTULOII-Apaixãodosespetáculos

Arrebatavam-me os espetáculos teatrais, cheios das imagens de minhas misérias ede alimento para o fogo de minha paixão. Mas, por que quer o homem condoer-seao contemplar coisas tristes e trágicas, que de modo algum gostaria de suportar?Contudo, o espectador deseja sofrer com elas, e até essa mesma dor é seu deleite.Que é isso, senão rematada loucura? De fato, tanto mais se comove alguém comelas quanto menos livre se está de tais afetos, embora chamemos de misérias ossofrimentos próprios, e de compaixão a comiseração do mal alheio.

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Porém, que compaixão pode haver em coisas fictícias e representadas? Nelas nãose incita o espectador a que socorra a alguém, senão que o mesmo é convidadoapenas à angústia, apreciando tanto mais o autor daquelas histórias quanto maioré o sentimento que elas nos inspiram. De onde resulta que, se tais desgraçashumanas – quer das histórias antigas, quer sejam inventadas – são representadasde forma a não se excitarem sofrimento ao expectador, este sai aborrecido emurmurando; se porém, pelo contrário, é levado à tristeza, fica atento e chorasatisfeito.

Quer isso dizer que amamos as lágrimas e a dor? Sem dúvida que todo homembusca o gozo; mas como não agrada a ninguém ser miserável, e sendo grato atodos ser misericordioso, e como a piedade é inseparável da dor, não seria esta acausa verdadeira para que apreciemos essas emoções dolorosas?

Também isso provém da amizade. Mas para onde se dirige? Para onde vai? Porque se atira à torrente da pez ardente, às vagas horrendas de negras leviandadesem que a amizade se transforma voluntariamente, afastada e privada de suacelestial serenidade que o homem repudia?

Deve-se, pois, repelir a compaixão? De modo algum. Convém, pois, que alguma vezse amem as dores. Mas evita nisso a impureza, ó minha alma, sob proteção deDeus, do Deus de nossos pais, louvado e exaltado por todos os séculos; cuidadocom a impureza. Porque nem agora me fecho a tal compaixão. Mas naquele tempocomprazia-me no teatro com os amantes, quando eles se gozavam em suastorpezas – embora estas não passassem de encenações. E quando um deles seperdia, eu quase piedosamente me contristava, e sentia prazer numa e noutracoisa.

Hoje, porém, tenho mais compaixão do homem que se alegra em seus vícios, quedo que sofre pela perda de um prazer funesto ou pela perda de uma míserafelicidade. Esta misericórdia é certamente mais verdadeira, mas nela a dor nãoencontra nenhum prazer. E embora seja certo que se aprove quem por caridade secompadece do miserável, contudo, quem é fraternalmente compassivo prefeririaque não houvesse razões para se compadecer. Porque assim como não é possívelque exista uma benevolência malévola, tampouco o é que haja miseráveis paradeles se compadecer.

Há, pois, dores que merecem compaixão, porém, nenhuma que mereça amor. Porisso tu, Deus, que amas as almas muito mais elevadamente que nós, te

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compadeces delas de modo muito mais puro, porque não sentes nenhuma dor. Masquem será capaz de chegar a isso?

Mas eu, desventurado, amava então a dor, e buscava motivos para senti-la.Naquelas desgraças alheias, falsas e mímicas, agradava-me tanto mais a ação doator, e me mantinha tanto mais atento quanto mais copiosas lágrimas me faziaderramar.

Mas, que admira que eu, infeliz ovelha transviada de teu rebanho, por não aceitartua proteção, estivesse atacado de ronha asquerosa? De aqui nasciam, semdúvida, os desejos daquelas emoções de dor que, todavia, não queria que fossemmuito profundas em mim, porque não desejava padecer coisas como as que viarepresentadas. Comprazia-me que aquelas coisas, ouvidas ou fingidas, metocassem só superficialmente. Mas, como acontece aos que coçam a ferida com asunhas, terminava por provocar em mim mesmo um tumor abrasador, podridão epus repelente.

Tal era minha vida. Mas, seria isto vida, meu Deus?

CAPÍTULOIII-Oestudodaretóricaeosdemolidores

Entretanto, tua misericórdia, fiel, de longe pairava sobre mim. Em quantasiniqüidades não me corrompi, meu Deus, levado por sacrílega curiosidade que,separando-me de ti, conduzia-me aos mais baixos, desleais e enganosos serviçosaos demônios, a quem sacrificava minhas más ações, sendo em todas flagelado comduro açoite por ti!

Também ousei apetecer ardentemente e procurar meios para conseguir os frutosda morte na celebração de teus mistérios, dentro dos muros de tua igreja. Por issome açoitaste com duras penas, que nada eram comparadas com minhas culpas, óDeus, misericórdia infinita, e meu refúgio contra os terríveis malfeitores, com osquais vaguei de cabeça erguida, afastando-me cada vez mais de ti, preferindomeus caminhos aos teus, amando a liberdade fugitiva!

Os estudos a que era entregue, que se denominavam honestos ou nobres, tinhampor objetivo as contendas do foro, nas quais deveria me distinguir com tantomaior louvor quanto mais hábeis fossem as mentiras. Tal é a cegueira dos homens,que até de sua própria cegueira se gloriam!

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Eu já conseguira, naquele tempo, ser o primeiro da escola de retórica, e por issome vangloriava soberbamente, e me inflava de orgulho. Contudo, tu sabes,Senhor, que eu era muito mais sossegado que os demais, e totalmente alheio àsturbulências dos eversores – ou demolidores – nome sinistro e diabólico que elesconsideravam distintivo de urbanidade, entre os quais vivia com imprudentepudor por não pertencer a seu grupo. É verdade que andava com eles, e que medeleitava, às vezes, com sua amizade, porém, sempre aborreci o que faziam, comoas troças e a insolência com que surpreendiam e ridicularizavam a timidez dosnovatos, sem outra finalidade senão rir de suas trapalhadas, fazendo dissoalimento para suas malévolas alegrias. Nada há mais parecido a estas ações queas dos demônios, pelo que nenhum nome lhes cai melhor que o de eversores oudemolidores, por serem eles transformados e pervertidos totalmente pelosespíritos malignos, que assim os burlam e enganam, sem que o saibam, justamenteno que eles gostam de ludibriar ou enganar os demais.

CAPÍTULOIV-OHortênsiodeCícero

Entre essa gente estudava eu, em tão tenra idade, os livros da eloqüência, na qualdesejava sobressair com o fim condenável e vão de satisfazer à vaidade humana.Mas, seguindo o programa usado no ensino desses estudos, cheguei a um livro deCícero, cuja linguagem, mais do que seu conteúdo, quase todos admiram. Esse livrocontém uma exortação à filosofia, e se chama Hortênsio. Esse livro mudou meussentimentos, e transferiu para ti, Senhor, minhas súplicas, e fez com quemudassem meus votos e desejos. Subitamente, tornou-se vil a meus olhos toda vãesperança, e com incrível ardor de meu coração suspirava pela sabedoria imortal,e comecei a me reerguer para voltar a ti. Não era para limar a linguagem –aperfeiçoamento que, parece, eu compraria com o dinheiro de minha mãe, naquelaidade de meus dezenove anos, fazendo dois que morrera meu pai – não era,repito, para limar o estilo que eu me dedicava à leitura daquele livro, nem era seuestilo o que a ela me incitava, mas o que ele dizia.

Como ardia, meu Deus, como ardia meus desejos de voar para ti das coisasterrenas, sem que eu soubesse o que obravas em mim! Porque em ti está asabedoria, pela qual aquelas páginas me apaixonavam. Não faltam os que nosiludam servindo-se da filosofia, colocando ou encobrindo seus erros com nome tãogrande, tão doce e honesto. Mas quase todos os que assim fizeram em seu tempoe em épocas anteriores, são apontados e refutados nesse livro. Também seencontra ali bem claro aquele salutar aviso de teu Espírito, dado por meio de teuservo bom e piedoso (Paulo): Vede que ninguém vos engane com vãs filosofias eargúcias sedutoras, de acordo com a tradição dos homens e os ensinamentos deste

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mundo, e não de acordo com Cristo, porque é nele que habita corporalmente todaa plenitude da divindade.

Mas então – tu bem o sabes, luz de meu coração – eu ainda não conhecia opensamento de teu Apóstolo. Só me deleitava naquelas palavras de exortação, ofato de me excitarem fortemente, inflamando-me a amar, a buscar, a conquistar, areter e a abraçar não a esta ou àquela seita, senão à própria Sabedoria, ondequer que estivesse. Só uma coisa me arrefecia tão grande ardor: não ver ali onome de Cristo. Porque este nome, Senhor, este nome de meu Salvador, teu filho,por tua misericórdia eu o bebera piedosamente com o leite materno, e oconservava, no mais profundo do meu coração, em alto apreço; e assim, tudoquanto fosse escrito sem este nome, por mais verídico, elegante e erudito quefosse, não me arrebatava totalmente.

CAPÍTULOV-Adesilusãodasescrituras

Em vista disso, decidi dedicar-me ao estudo da Sagrada Escritura, para a conhecer.Vi ali algo encoberto para os soberbos e obscuro para as crianças, mas humilde aprincípio e sublime à medida que se avança o velado de mistérios; e eu não estavadisposto a poder entrar nela, dobrando a cerviz à sua passagem. Contudo, ao fixarnela a atenção, não pensei o que agora estou dizendo, mas simplesmente mepareceu indigna de ser comparada com a majestade dos escritos de Cícero. Meuorgulho recusava sua simplicidade, e minha mente não lhe penetrava o íntimo.Contudo, a agudeza desta visão haveria de crescer com os pequenos; mas eu denenhum modo queria ser criança e, enfatuado de soberba, considerava-me grande.

CAPÍTULOVI-Aseduçãodomaniqueísmo

Deste modo vim cair com uns homens que deliravam orgulhosos, demasiadocarnais e loquazes; em sua boca havia laços diabólicos e engodo pegajoso feito comas silabas de teu nome, do nosso Senhor, Jesus Cristo, e do nosso Paráclito eConsolador, o Espírito Santo. Estes nomes nunca saíam de seus lábios, porém, sóno som e ruído da boca, pois de resto, seu coração estava vazio de toda verdade.

Diziam: “Verdade! Verdade!” – e, incessantemente, falavam-me da verdade, quenunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que ésverdade por excelência, mas também dos elementos deste mundo, criação tua.Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a verdade, tive de ultrapassá-los nosraciocínios por amor de ti, ó pai sumamente bom, beleza de todas as belezas!

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Ó verdade, verdade! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minhaalma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitosmodos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Esteseram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar osol e a lua, formosas obras de tuas mãos, porém, obras tuas, e não a ti, nemsequer das principais. De fato, tuas obras espirituais são superiores a estascorporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fomenão daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na qual não há mudançanem obscuridade momentânea!

E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quaisteria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugardaquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento.

Contudo, como as tomava por ti, alimentava-me delas, não certamente comavidez, porque não tinham o teu gosto – pois não eras aqueles vãos fantasmas –nem me nutria com elas, antes sentia-me cada vez mais debilitado. A comida quese toma em sonhos, não obstante ser muito semelhante à do estado de vigília, nãoalimenta aos que dormem, porque estão dormindo. Aquilo, porém, em nada erasemelhantes a ti, como agora me certificou a verdade, pois que eram fantasmascorpóreos ou falsos corpos; comparados com eles, são mais reais estes corpos –celestes ou terrestres – que vemos com os olhos da carne assim como os vêem osanimais e as aves.

Vemos estas coisas, e são mais reais do que as conjecturas sobre outros corposgrandiosos, que, por sua vez, que, por sua vez, quando as imaginamos, são maisreais do que quando por meio delas conjeturamos outras maiores e infinitas, quede modo algum existem. Com tais quimeras me alimentava eu, então, e por issonão me saciava.

Mas tu, meu amor, em quem desfaleço para me tornar forte, nem és estes corposque vemos, mesmo no céu; nem os outros que não vemos, porque és o Criador e osocultaste, e não os consideras como as obras primas de tua criação.

Oh! Quão longe estavas daquelas minhas quimeras, fantasmas de corpos quejamais existiram em comparação, são mais reais as imagens dos corpos existentes;e, mais reais ainda essas imagens, esses mesmos corpos, os quais, todavia, não sãotu! Mas também não és a alma que dá vida aos corpos – mas é a vida das almas, avida das vidas, que vives, imutável, por ti mesma; a vida de minha alma.

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Mas onde estavas então para mim? e quão longe peregrinava eu, longe de ti,privado até as bolotas com que eu alimentava os porcos! Quão melhores eram asfábulas dos gramáticos e poetas que todos aqueles enganos! Porque os versos, apoesia e a fábula de Medeia soando pelo ar são certamente mais úteis que oscinco elementos do mundo em seus mil disfarces, conforme os cinco antros detrevas, que não existem, mas que matam a quem nele acredita. Porém, versos epoesia eu os posso converter em iguaria para meu espírito e, quanto ao vôo deMedeia, se o recitava bem, não lhe afirmava veracidade e, se me agradava ouvi-lo, não lhe dava crédito. Mas – ai de mim! – eu acreditei naqueles erros dosmaniqueístas.

Ai de mim, por que degraus fui descendo até a profundidade do abismo, exaurido edevorado pela falta de verdade quando te buscava! E tudo isso, meu Deus – aquem me confesso porque te compadeceste de mim quando ainda não te conhecia– tudo por buscar-te, não com a inteligência – com a qual quiseste que eu fossesuperior aos animais – mas com os sentidos da carne. E tu estavas dentro de mim,mais profundo do que o que em mim existe de mais íntimo, e mais elevado do queo que em mim existe de mais alto.

Assim encontrei aquela mulher insolente e sem prudência – enigma de Salomão –que, sentada em uma cadeira à porta de sua casa, diz aos que passam: Comei àvontade dos pães escondidos, e bebei da doçura da água roubada, a qual meseduziu por andar eu vagando fora de mim, sob o império da vista carnal,ruminando em meu íntimo o que meus olhos haviam devorado.

CAPÍTULOVII-Algunserrosdosmaniqueus

Não conhecia eu outra realidade – a verdadeira – e me sentia como que movidopor um aguilhão a aceitar a opinião daqueles insensatos impostores quando meperguntavam de onde procedia o mal, se Deus estava limitado por formacorpórea, se tinha cabelos e unhas, e se deviam ser considerados justos os quetinham várias mulheres simultaneamente, e os que causavam a morte de outrosou sacrificavam animais.

Eu, ignorando essas coisas, perturbava-me com essas perguntas. Afastando-me daverdade, parecia-me encaminhar para ela, porque não sabia que o mal é apenasprivação do bem, até chegar ao seu limite, o próprio nada. E como poderia ter eutal conhecimento, se com os olhos não conseguia ver mais do que corpos, e com aalma não ia além de fantasmas?

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Tampouco sabia que Deus é espírito, que não tem membros dotados decomprimento ou largura, nem quantidade material alguma, porque a quantidadeou matéria é sempre menor na parte que no todo e, mesmo que fosse infinita,sempre seria menor em uma parte definida por um espaço determinado do que emsua infinitude, não podendo estar toda inteira em todas as partes, como o espírito,como Deus.

Ignorava totalmente o princípio de nossa existência, que há em nós, e pelo qual aEscritura nos chama de imagem e semelhança de Deus.

Não conhecia tampouco a verdadeira justiça interior, que não julga pelo costume,mas pela lei retíssima do Deus onipotente. Por ela se hão de formar os costumesdos países conforme os mesmos países e tempos, e sendo a mesma em todas aspartes e tempos, não varia de acordo com as latitudes e as épocas; lei essasegundo a qual foram justos Abraão, Isaac, Jacó e Davi, e todos os que sãolouvados pela boca de Deus. Os ignorantes, julgando as coisas de acordo com asabedoria humana, e medindo a conduta alheia pela própria, os julgam iníquos. Écomo se um ignorante em armaduras, não sabendo o que é próprio de cadamembro, quisesse cobrir a cabeça com a couraça e os pés com o elmo, e sequeixasse de que as peças não se lhe adaptem convenientemente. Ou como sealguém se queixasse de que, em determinado dia considerado feriado do meio-diaem diante, não lhe permitissem vender a mercadoria à tarde, como acontecerapela manhã; ou porque vê que na mesma casa permite-se a um escravo qualquertocar no que não é permitido ao copeiro; ou porque não se permite fazer diantedos comensais o que se faz atrás de uma estrebaria; ou, finalmente, se indignasseporque, sendo uma a casa e uma a família, não se atribuíssem a todos as mesmascoisas.

Tais são os que se indignam quando ouvem dizer que em outros tempos sepermitiam aos justos coisas que não se lhe permitem agora, e que Deus mandouàqueles uma coisa e a estes outra, conforme os tempos, servindo uns e outros àmesma norma de santidade. E, contudo, é bem visível que no mesmo homem, nomesmo dia e na mesma hora e na mesma casa, o que convém a um membro nãoconvém a outro; e aquilo que há pouco era licito, já não o é mais; e que o que seconcede em uma parte, é justamente proibido e castigado em outra.

Diremos, por isso, que a justiça é vária e inconstante? O que acontece é que ostempos a que ela preside não caminham no mesmo passo, porque são tempos. Masos homens, cuja vida terrestre é breve, por não saberem harmonizar as causas dostempos idos, e das gentes que não viram nem conheceram, com as que agora

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vêem e experimentam e, como também vêem facilmente o que no mesmo corpo,na mesma hora e lugar convém a cada membro, a cada tempo, a cada parte e acada pessoa, escandalizam-se com as coisas daqueles tempos, enquanto aceitam asde agora.

Ignorava eu então estas coisas e não as refletia e, embora de todos os lados meferissem os olhos, eu não as via. Quando declamava algum poema, não me eralícito por um pé em qualquer outra parte do verso, senão em uma espécie demetro uns e em outra outros, e em um mesmo verso não podia meter em todas aspartes o mesmo pé; e a própria arte da prosódia, apesar de mandar coisas tãodistintas, não era diversa em cada parte, senão uma só e coerente.

Contudo, não via como a justiça, à qual serviram aqueles varões bons e santos,pudesse conter simultaneamente, de modo mais belo e sublime, preceitos tãodiversos, sem variar em sua essência, apesar de não mandar ou distribuir aosdiferentes tempos todas as coisas simultaneamente, mas a cada um as que lhe sãopróprias. E, cego, censurava àqueles piedosos patriarcas, que não só usavam dopresente como Deus lhes mandava e inspirava, mas também prediziam o futuroconforme Deus lhes revelava.

CAPÍTULOVIII-Moralecostume

Acaso será em alguma parte e momento injusto amar a Deus de todo o coração,com toda a alma e com todo o entendimento, e amar ao próximo como a nósmesmos? Por isso, todos os pecados contra a natureza, como o foram os dosodomitas, hão de ser detestados e castigados sempre e em toda a parte, pois,mesmo que todos os cometessem, não seriam menos réus de crime diante da leidivina, que não fez os homens para usar tão torpemente de si; de fato viola-se aunião que deve existir com Deus quando a natureza, da qual ele é autor, semancha com a depravação das paixões.

Com relação aos pecados que são contra os costumes humanos, também hão de serevitados de acordo com a diversidade dos costumes, a fim de que o pacto mútuoentre os povos e nações, firmado pelo costume ou pela lei, não seja quebrado pornenhum capricho de cidadão ou forasteiro, porque é indecorosa a parte que não seacomoda ao todo.

Todavia, quando Deus ordena algo contra tais costumes ou pactos, sejam quaisforem, deve ser obedecido, embora o que mande nunca tenha sido feito; e se não

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foi cumprido, deve ser restaurado, e se não estava estabelecido, deve-seestabelecer. Se é lícito a um rei mandar na cidade que governa coisas queninguém antes dele e nem ele próprio havia mandado, e se não é contra o bem dasociedade obedecê-lo, antes o seria o não obedecê-lo – por ser pacto básico detoda sociedade humana obedecer a seus reis – quanto mais deveria ser Deusobedecido sem titubeios em tudo que mandar, como rei do universo? Porque,assim como entre os poderes humanos o maior poder se antepõe ao menor, paraque este lhe preste obediência, assim Deus antepõe-se a todos.

O mesmo se deve dizer dos crimes perpetrados com desejo de causar o mal, querpor agressão, quer por injúria; e ambas as coisas, ou por desejo de vingança, comoocorre entre inimigos, ou por alcançar algum bem sem trabalhar, como o ladrãoque rouba ao viajante; ou para evitar algum mal, como acontece com o que teme;ou por inveja, como quando um miserável quer mal ao que é mais feliz, ou ao queconseguiu riquezas, temendo ser igualado ou que já lhe sejam iguais; ouunicamente pelo prazer de ver o mal alheio, como acontece com o espectador doscombates dos gladiadores, ou com o que se ri e zomba dos outros.

Tais são os princípios ou fontes de iniqüidade, que nascem da paixão de mandar, dever ou de sentir, quer de uma só dessas paixões, ou de duas, ou de todas juntas.Razão por que se vive do mal, ó Deus altíssimo e dulcíssimo, contra o saltério dedez cordas, teu decálogo.

Mas, que pecado pode atingir a ti, que não és atingido pela corrupção? Ou quecrimes podem ser cometidos contra ti, a quem ninguém pode causar dano? O quevingas são os crimes que os homens cometem contra si, porque, mesmo quandopecam contra ti, agem impiamente contra suas próprias almas, e sua iniqüidadeengana-se a si própria, quer corrompendo e pervertendo sua natureza – feita eordenada por ti – quer usando imoderadamente das coisas permitidas, ou atédesejando imoderadamente as não permitidas, pelo uso daquilo que é contra anatureza.

Pecam também os que com o pensamento e a palavra se revoltam contra ti, dandocoices contra o aguilhão; ou quando, uma vez quebrados os limites da sociedadehumana, alegram-se audaciosamente com as facções ou desuniões, de acordo comas suas simpatias ou antipatias. E tudo isso o homem faz quando és abandonado,fonte da vida, único e verdadeiro criador e senhor do universo, e com orgulhoegoísta ama-se uma parte do todo como se fosse o todo.

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Essa a razão pela qual só se pode voltar para ti com piedade humilde, para assimnos purificares nossos maus costumes; pela piedade te mostras propício com ospecados dos que te confessam, e ouves os gemidos dos cativos, e nos livras dosgrilhões que nós mesmo forjamos, contanto que não ergamos contra ti os chifresde uma falsa liberdade, quer arrastados pela cobiça de mais haveres, quer pelotemos de perder tudo, preferindo nosso próprio egoísmo a ti, Bem de todos.

CAPÍTULOIX-Pecadoseimperfeições

Mas, entre tantas maldades, crimes e iniqüidades, estão os pecados dos queprogridem, pecados que os homens de bom juízo vituperam, segundo a regra daperfeição, e louvam pela esperança de frutos futuros, como o verde é promissordas colheitas.

Há outras ações semelhantes a ações maldosas ou a delitos, e que não sãopecados, porque nem te ofendem a ti, Senhor, nosso Deus, nem tampouco àsociedade humana; como por exemplo quando procuramos coisas convenientespara o uso da vida e às circunstâncias, sem que se saiba se essa busca é cobiça, ouquando castigamos a alguém como desejo de que se corrija, fazendo uso do poderordinário, e não se sabe se o fazemos por vontade de mortificar.

Por isso, muitas ações que parecem condenáveis aos homens, são aprovadas porteu testemunho; e muitas, louvadas pelos homens, são condenadas por teutestemunho, porque muitas vezes as aparências do ato diferem das intenções doseu autor, assim como circunstâncias ocultas do tempo.

Mas quando ordenas, algo insólito e imprevisto, mesmo que o tenhas proibidouma vez, mesmo que escondas por algum as razões do teu mandamento, mesmoque seja contra as convenções de alguns homens da sociedade, quem pode duvidarde que se há de obedecer, sendo que só é justa a sociedade humana que teobedece? Felizes dos que sabem o que tu ordenaste, porque os que te servemfazem tudo o que mandas, ou porque assim o exige o tempo presente, ou parapreparar o futuro.

CAPÍTULOX-Ridiculariasdosmaniqueus

Desconhecendo eu essas verdades, ria-me de teus santos e profetas. Mas, quefazia eu quando me ria deles, senão dar motivo para que te risses de mim? deixei-me cair insensivelmente, aos poucos, em tais extravagâncias, a ponto de acreditar

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que o figo, quando colhido, chora lágrimas de leite junto com a mãe figueira, e quese um “santo” da seita comesse o tal figo, colhido não por seu delito, mas deoutrem, misturando-o em suas entranhas, gemendo e arrotando enquanto rezava,exalaria anjos e até mesmo partículas de Deus, partículas essas do verdadeiroDeus que ficariam cativas para sempre naquele fruto se não fossem libertadaspelos dentes e pelo estômago do “santo eleito”!

Também acreditei, pobre de mim, que se devia ter mais misericórdia com os frutosda terra que com os homens para os quais foram criados. Pois, se algum faminto,que não fosse maniqueísta me pedisse de comer, parecia-me que atendê-lo eracomo merecer, por aquele bocado, a pena de morte.

CAPÍTULOXI-OsonhodeMônica

Mas estendeste tua mão do alto, e arrancaste minha alma deste abismo detrevas, enquanto minha mãe, tua fiel serva, chorava-me diante de ti muito maisdo que as outras mães costumam chorar sobre o cadáver dos filhos, pois via amorte de minha alma com a fé e o espírito que havia recebido de ti. E tu aescutaste, Senhor, tu a ouviste e não desprezaste suas lágrimas que, brotandocopiosas, regavam o solo debaixo de seus olhos por onde fazia sua oração; sim, tu aescutaste, Senhor. Com efeito, donde podia vir aquele sonho, com que aconsolaste, ao ponto de me admitir em sua companhia e mesa, fato que havia menegado porque aborrecia e detestava as blasfêmias do meu erro?

Nesse sonho viu-se de pé sobre uma régua de madeira; e um jovemresplandecente, alegre e risonho que vinha ao seu encontro, triste e amarga. Estelhe perguntou a causa de sua tristeza e lágrimas diárias, não por curiosidade,como sói acontecer, mas para instruí-la; e respondendo-lhe ela que chorava aminha perdição, mandou-lhe, para sua tranqüilidade, que prestasse atenção evisse por onde ela estava também estaria eu. Apenas olhou, viu-me junto de si, depé sobre a mesma régua.

De onde veio este sonho, senão dos ouvidos que tinhas atentos a seu coração, óDeus bom e onipotente, que cuidas de cada um de nós como se não tivesses outropara cuidar, zelando de todos como de cada um!

E como explicar o que se segue? Contou-me minha mãe esta visão, e querendo-aeu persuadir de que significava o contrário, e que não devia desesperar de seralgum dia o que eu era, isto é, maniqueísta, ela, sem nenhuma hesitação, me

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respondeu: “Não; não me foi dito: onde ele está ali estarás tu, mas onde tu estásali estará ele também”.

Confesso, Senhor, e muitas vezes disse que, pelo que me recordo, me abalou maisesta tua resposta pela solicitude de minha mãe, imperturbável diante deexplicação falsa e ardilosa, e por ter visto o que se devia ver – e que eucertamente não veria sem que ela o dissesse – que o mesmo sonho com o qualanunciaste a esta piedosa mulher com tanta antecedência, a fim de consolá-la emsua aflição presente, uma alegria que só havia de se realizar muito tempo depois.

Seguiram-se, efetivamente, quase nove anos, durante os quais continuei a merevolver naquele abismo de lodo e trevas de erro, afundando-me tanto maisquanto mais esforços fazia para me libertar. Entretanto, aquela piedosa viúva,casta e sóbria como as que tu amas, já um pouco mais alegre com a esperança,porém, não menos solícita em suas lágrimas e gemidos, não cessava de chorar pormim em tua presença em todas as horas de suas orações; e suas preces eramaceitas a teus olhos, mas deixava-me ainda revolver-me e envolver-me naquelaescuridão.

CAPÍTULOXII-Umaprofecia

Nessa mesma ocasião deste à minha mãe outra resposta, de que ainda me lembro– pois passo em silencio muitas circunstâncias, pela pressa que tenho de chegaràquelas que te devo confessar com mais urgência, ou porque não as recordo –deste-lhe outra resposta por meio de um teu bispo, educado em tua Igreja eexercitado em tuas Escrituras. Como ela pedisse que se dignasse falar comigo, pararefutar meus erros e desenganar-me de minhas más doutrinas e ensinar-me asboas – pois assim fazia com quantos julgava idôneos – ele negou-se com muitaprudência, como pude verificar depois; respondeu-lhe que eu estava incapacitadopara receber qualquer ensinamento, por estar enfatuado com a novidade daheresia maniqueísta, e por haver criado embaraço a muitos ignorantes comalgumas questões fáceis, como ela mesma lhe relatara.

“Deixe-o – disse – e unicamente ore por ele ao Senhor! Ele mesmo, lendo os livrosdos hereges, descobrirá o erro e reconhecerá sua grande impiedade”. – Ao mesmotempo contou-lhe que, quando criança, sua mãe, seduzida pelo erro, entregara-oaos maniqueus, chegando não só a ler, mas a copiar quase todas as suas obras; eque ele mesmo, sem necessidade de que ninguém o contestasse ou convencesse,chegara a perceber a falácia daquela doutrina, abandonando-a enfim.

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Depois de assim falar, minha mãe não se aquietava, instando com maiores rogos emais copiosas lágrimas a que me visitasse, para discutir comigo sobre o talassunto. O bispo, já com certo enfado de sua insistência, lhe disse: “Vai-te em paz,mulher, e continua a viver assim, que não é possível que pereça o filho de tantaslágrimas” – palavras que ela recebeu como vindas do céu, segundo me recordavamuitas vezes em seus colóquios comigo.

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LIVROQUATRO

CAPÍTULOI-Dosdezenoveaosvinteeoitoanos

Durante esse período de nove anos – dos dezenove até os vinte e oito anos – fuiseduzido e sedutor, enganado e enganador, conforme minhas muitas paixões;publicamente, com aquelas doutrinas que se chamam liberais; ocultamente, com ofalso nome de religião, mostrando-me aqui soberbo, ali supersticioso, e em todaparte vaidoso. Ora perseguindo a aura da gloria popular até os aplausos doteatro, os certames poéticos, os torneios de coroas de feno, as bagatelas deespetáculos e a intemperança da luxúria; ora, desejando muito purificar-me dessasimundícies, levando alimento aos chamados “eleitos” e “santos”, para que naoficina de seu estômago fabricasse anjos e deuses que me libertassem. Tais coisasseguia eu e praticava com meus amigos, iludidos comigo e por mim.

Riam-se de mim os arrogantes, e os que ainda não foram prostrados esalutarmente esmagados por ti, meu Deus; mas eu, pelo contrário, hei deconfessar diante de ti minhas torpezas para teu louvor. Permite-me, te suplico, econcede-me que me lembre fielmente dos desvios passados de meu erro, e que eute sacrifique uma vítima de louvor.

De fato, sem ti, que sou eu para mim mesmo senão um guia que conduz aoabismo? Ou que sou eu, quando tudo me corre bem, senão uma criança que suga oleite, e que se alimenta de ti, alimento incorruptível? E que é o homem, seja elequem for, se é homem?

Riam-se de nós os fortes e poderosos, que nós, débeis e pobres, confessaremos teusanto nome.

CAPÍTULOII-Professorderetórica

Naqueles anos eu ensinava retórica e, movido pela cobiça, vendia a arte de vencerpela loquacidade. Contudo, bem sabes, Senhor, que preferia ter bons discípulos,dos que se chamam

“bons”, aos quais ensinava sem rodeios a arte de enganar, não para que usassemdela contra a vida de um inocente, mas para algum dia defender algum culpado.Mas, ó Deus, tu me viste de longe vacilar sobre um caminho escorregadio, vistebrilhar, entre espesso fumo, os fulgores da boa fé que eu demonstrava ao ensinar

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àqueles amantes da vaidade, àqueles pesquisadores de mentiras, eu, seu irmão esemelhante.

Por essa mesma época tive em minha companhia uma mulher, não reconhecidapelo chamado matrimônio legítimo, mas procurada pelo inquieto ardor de minhapaixão imprudente; mas era só uma, e eu lhe era fiel. E assim experimenteipessoalmente a distância que há entre o amor conjugal contraído com o fim de terfilhos, e o amor lascivo, no qual a prole também nasce, mas contra o desejo dospais, embora, uma vez nascida, os obrigue a amá-la.

Lembro-me também de que, querendo participar de um certame de poesia, umarúspide mandou-me indagar que dádiva lhe daria para eu sair vencedor. Mas eu,que abominava aqueles nefandos sortilégios, respondi-lhe que não consentiria quese matasse uma mosca para obter a vitória, mesmo que o prêmio fosse uma coroade ouro incorruptível; sabia eu que ele teria de matar animais em seus sacrifícios,julgando com tais honras assegurar para mim os votos do demônio.

Mas, confesso, Deus de meu coração, que se repudiei tal crime, não o fiz por amorda tua pureza. Pois ainda não sabia te amar, eu, que sabia conceder apenasesplendores corpóreos.

Não é pois verdade que a alma que suspira por semelhantes fábulas não seaniquila longe de ti, e se apóia na falsidade, e se apascenta de vento? Mas eisque, não querendo que se oferecessem sacrifícios aos demônios, eu mesmo mesacrificava a eles com aquela superstição. Com efeito, que significa apascentarventos, senão apascentar os espíritos diabólicos, isto é, tornarmo-nos, por nossoserros, objeto de seu riso e escárnio?

CAPÍTULOIII-Aatraçãodaastrologia

Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já queestes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiampreces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido comrazão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, edizer-te: Tem misericórdia de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti, enão abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter semprepresente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te nãosuceda algo pior – Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos queremdestruir, dizendo: “O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte

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que fizeram isto” – e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberbapodridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e dasestrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, quedás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito ehumilhado?

Havia então um varão muito sábio, peritíssimo na arte médica, na qual eracelebre; sendo procônsul, pôs com suas próprias mãos sobre minha cabeça insana acoroa da vitória do concurso; foi como procônsul, e não como médico, porquedaquela minha enfermidade só tu me podias sarar, pois resistes aos soberbos e dástua graça aos humildes.

Contudo, deixaste acaso de cuidar de mim também por meio daquele ancião? Outalvez desistisse de curar minha alma? Tendo-me familiarizado muito com ele,passei a ser assistente assíduo e freqüente de suas conversas, que eramagradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade dassentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que eu me dedicava à leiturados livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que osdeixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados etrabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também elehavia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, comoprofissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia tambémentender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, porcausa da sua falsidade, não querendo, como homem sério, ganhar o pãoenganando os outros. “Mas tu, disse-me ele – que tens para manter entre oshomens tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, maspor mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, poiscuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício”.

Indaguei-lhe então por que muitas das coisas prognosticadas pela tal ciência serevelavam verdadeiras, respondeu-me, como pôde, que a força do acaso estáespalhada por toda a natureza. “Se alguém – dizia ele – consultando as vezes aspáginas de um poeta qualquer, encontra um verso que, apesar do poeta pensarem coisas muito diversas quando o compôs, adapta-se admiravelmente ao assuntoque o preocupa; assim pois nada tem de estranho que a alma humana, movida porinstinto superior, inconsciente do que se passa no seu íntimo, diga, não por arte,mas por sorte, algo que corresponda aos atos e gestos do consulente”.

E isto, Senhor, me ensinou ele, ou melhor, me ensinaste por teu intermédio, edelineaste em minha memória o que eu mesmo mais tarde devia procurar. Mas

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então, nem ele, nem meu caríssimo Nebrídio, jovem muito bom e casto, quezombava de toda aquela arte divinatória, puderam me convencer a abandoná-la,porque ainda impressionava-me mais a autoridade daqueles autores. Não tinha euencontrado ainda o argumento evidente que procurava, que me demonstrassesem ambigüidade que os presságios acertados dos astrólogos são obra da sorte oucasualidade, e não da arte de observar os astros.

CAPÍTULOIV-Amortedoamigo

Por aqueles anos, quando comecei a ensinar em minha cidade natal, conheci umamigo, a quem amei em demasia por ser meu companheiro de estudos, de minhaidade, e por estarmos ambos na flor da juventude. Juntos fomos criados quandocrianças, juntos íamos à escola, juntos havíamos brincado. Mas nessa época nãoera amigo tão íntimo como o foi depois, embora também não o fosse tanto quantoo exige a verdadeira amizade, uma vez que esta só existe entre os que unes pormeio da caridade, derramada em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foidado.

Contudo, aquela amizade, aquecida ao calor de estudos semelhantes era-mesumamente grata. Consegui até afastá-lo da verdadeira fé, pouco profunda earraigada em sua adolescência, arrastando-o para as fábulas supersticiosas eprejudiciais, razão das lágrimas de minha mãe.

Esse homem já errava em espírito comigo, e minha alma não podia viver sem ele.

Mas eis que, seguindo de perto no encalço de teus servos fugitivos, ó Deus dasvinganças, que és a um tempo fonte de misericórdia, e nos converte a ti porestranhos caminhos, eis que tu o arrebataste desta vida, quando eu apenas haviagozado um ano de sua amizade, mais doce para mim que todas as doçuras daminha vida.

Quem poderá enumerar teus louvores, mesmo limitando-se ao que experimentouem si mesmo? Que fizeste então, meu Deus! E quão impenetrável é o abismo deteus juízos! Lutando meu amigo contra a febre, ficou por muito tempo semsentidos, banhado no suor da morte; e, como temessem por sua vida, batizaram-nosem que ele o soubesse, com o que não me importei, convencido que estava deque seu espírito reteria melhor aquilo que eu lhe havia inculcado do que o sinalque recebera sobre o corpo inconsciente.

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A realidade, contudo, foi muito outra. Melhorando, e estando fora de perigo, logoque lhe pude falar – e o fiz logo que ele o pôde, e como dependíamos mutuamenteum do outro eu não me afastava do seu lado – tentei rir-me em sua presença dobatismo, julgando que também ele zombaria comigo de um batismo recebido semconhecimento nem sentidos, mas ele já sabia que o havia recebido. Olhando-meentão com horror, como a um inimigo, admoestou-me com admirável e repentinafranqueza, dizendo-me que se queria continuar a ser seu amigo deixasse de taispalavras. Admirado e perturbado, reprimi toda minha emoção, esperando queconvalescesse primeiro, para, recobradas as forças, estar disposto a discutircomigo o que quisesse. Mas tu, Senhor, livraste-o de minha louca amizade,guardando-o em ti para o meu consolo, pois, poucos dias depois, na minhaausência, voltaram-lhe as febres e morreu.

Que dor fez anoitecer o meu coração! Tudo o que via era morte para mim. Apátria me era um suplício, e a casa paterna tormento insuportável, e tudo o que olembrava transformava-se para mim em crudelíssimo martírio. Buscavam-no portoda parte meus olhos, e o mundo não mo devolvia. Cheguei a odiar todas ascoisas, porque nada o continha, e ninguém mais me podia dizer como antes,quando chegava depois de alguma ausência: “Ali vem ele”. Transformara-memesmo num grande problema. Perguntava à minha alma porque andava triste, ese perturbava tanto, e ela não sabia o que responder-me. E se eu lhe dizia:“Espera em Deus” – minha alma não me obedecia, e com razão, porque para mim,era mais real e melhor o amigo querido que perdera, que o fantasma em quemandava tivesse esperança. Só o pranto me era doce. Ocupava o lugar de meuamigo nas delicias de meu coração.

CAPÍTULOV-Oconfortodaslágrimas

E agora, Senhor, que essas coisas já passaram, agora que o tempo sarou minhaferida, poderei ouvir de ti, que és a própria verdade, aproximando o ouvido demeu coração de tua boca, o motivo por que o pranto é doce aos desgraçados?Acaso, mesmo presente em toda parte, repeliste para longe de ti nossa miséria,permanecendo imutável em ti, enquanto deixas que nos envolvamos em nossasprovações? E, contudo, se nossos lamentos não chegarem a teus ouvidos, nãohaverá para nós esperança alguma.

Mas, por que motivo dos gemidos, do choro, dos suspiros e das queixas colhe-secomo fruto doce do amargor da vida? Esperamos que nos ouça? Virá daí a doçura?Isso acontece na oração que leva em si o desejo de chegar a ti; porém, poder-se-ádizer o mesmo da dor da perda ou do pranto que então me avassalavam?

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Eu não esperava ressuscitar meu amigo com minhas lágrimas, mas limitava-me ame condoer e a chorar minha miséria, pois eu havia perdido minha alegria.

Ou será que o pranto, que é amargo em si mesmo, se torna um deleite quando,pelo fastio, aborrecemos os prazeres que antes nos eram gratos?

CAPÍTULOVI-Inconsolável

Mas para que falar dessas coisas, se agora não é tempo de investigar, mas de meconfessar a ti? Eu era miserável, como o é toda alma prisioneira do amor pelascoisas temporais; se sente despedaçar quando as perde, sentindo então suamiséria, que a torna miserável antes mesmo de as perder. Assim é como eu eraentão e, chorando muito amargamente, descansava na amargura. E como eramiserável! Contudo, mais que o amigo caríssimo, eu amava minha vida miserável,porque embora desejasse mudá-la, não queria perdê-la como ao amigo, não sei segostaria de perdê-la por ele, como se conta de Orestes e Pílades – se não é ficção –que queriam morrer um pelo outro, porque para eles viver separados era pior quea morte. Mas não sei que novo sentimento nascera em mim, muito contrário aeste: sentia pesado tédio de viver, e ao mesmo tempo tinha medo de morrer.Creio que quanto mais amava o amigo tanto mais odiava e temia a morte, comoinimigo feroz que mo havia arrebatado; pensava que ela acabaria de repente comtodos os homens, como o fizera com ele. Este era meu estado de espírito, pelo queme lembro.

Meu Deus, eis aqui meu coração, ei seu conteúdo! Olha para o meu passado,porque sei, esperança minha, que me purificas da impureza desses afetos, atraindopara ti meus olhos, e libertando meus pés dos laços que me aprisionavam.Maravilhava-me de que sobrevivessem os outros mortais a seus amados se nuncahouvessem de morrer; e mais me maravilhava ainda de que, morto ele, eucontinuasse a viver, porque eu era outro ele. Bem disse um poeta quando chamouao amigo “metade da sua alma”. E eu senti que minha alma e a sua não eram maisque uma em dois corpos, e por isso causava-me horror a vida, porque não queriaviver pela metade; e ao mesmo tempo tinha muito medo de morrer, para que nãomorresse de todo aquele a quem eu tanto amara.

CAPÍTULOVII-DeTagasteparaCartago

Ó loucura, que não sabe amar os homens humanamente! Ó homem insensato, quesofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era eu então, e assim agitava-

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me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho.Trazia a alma em farrapos e ensangüentada, indócil ao meu governo, e eu nãoencontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos ecantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos,nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versospodiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o quenão era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois,somente nisto achava algum repouso. E se minha alma deixava de chorar, logopesava sobre mim o grande fardo da desgraça.

A ti, Senhor, deveria ser elevada, para ter cura. Eu o sabia, mas não o queria nempodia.

Tanto mais que, ao pensar em ti, não tinha em mente algo sólido e firme, mas umfantasma, o meu erro. Se nele tentava descansar minha alma, logo deslizava comoquem pisa em falso, e caía de novo sobre mim. Eu era para mim mesmo uma infelizmorada, na qual era ruim e da qual não podia sair. E para onde iria meu coração,fugindo de si mesmo? Para onde fugir de mim mesmo?

Para onde não me seguiria?

Por isso fugi de minha pátria, porque meus olhos buscariam menos meu amigoonde não estavam acostumados a vê-lo. E assim me fui de Tagaste para Cartago.

CAPÍTULOVIII-Oconsolodotempoedaamizade

O tempo não corre debalde, nem passa inutilmente sobre nossos sentidos; antes,causa na alma efeitos maravilhosos. Assim vinha e passava, dias após dias, epassando deixava em mim novas esperanças e novas recordações; pouco a poucorestituía-me a meus prazeres de outrora, a que ia cedendo minha dor.Substituíam-na não novas dores, mas sementes de novas dores.

Mas, por que me penetrara aquela dor tão profundamente, até o mais íntimo demeu ser, senão porque derramei minha alma sobre a areia, amando a um mortalcomo se não o fora? O que mais me confortava e alegrava eram sobretudo asconsolações de outros amigos, com os quais partilhava o amor para o que amavatem teu lugar, isto é, uma fábula enorme, uma longa mentira, cujo contato impurocorrompia nossa mente, arrastada pelo prurido de ouvir aquilo que a agradava;fábula esta que não morria para mim, ainda que morresse algum de meus amigos.

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Outros prazeres havia neles que cativavam mais fortemente minha alma, comoconversar, rir, agradar-nos mutuamente com amabilidade, ler juntos livros bemescritos, gracejar uns com os outros e divertir-nos juntos; às vezes discutir, massem ódio, como quando discordamos de nós mesmos para, com tais discórdiasmuito raras, temperar as muitas conformidades; ensinar ou aprenderreciprocamente muitas coisas, suspirar impacientes pelos ausentes e receberalegres os recém-chegados. Estes sinais, e outros semelhantes, que procedem decorações que se amam, e que se manifestam no rosto, na fala, nos olhos, e em miloutros gestos graciosos, inflamavam nossas almas, como em uma centelha, fazendode muitas uma só.

CAPÍTULOIX-OamigodeDeus

É isto o que se ama nos amigos; e de tal modo se ama, que a consciência humanase julga culpada se não ama ao que a ama, ou se não retribui amor com amorprocurando na pessoa do amigo apenas o sinal exterior de sua benevolência. Daquio pranto do luto quando morre um amigo, as trevas de dores, e as lágrimas queinundam o coração quando a doçura se transforma em angústia, e a morte dos quemorrem na morte dos que vivem.

Bem-aventurado o que te ama, Senhor, e ama ao amigo em ti, e ao inimigo poramor a ti; só não perde o amigo quem tem a todos por amigos naquele que nuncase perde. E quem é este, senão nosso Deus, o Deus que fez o céu e a terra, e osenche, porque, enchendo-os, os criou?

Ninguém, Senhor, te perde senão o que te abandona. Mas, quem te deixa, paraonde vai, ou para onde foge, senão de ti benévolo para ti irado? Onde não acharátua lei para seu castigo? Porque tua lei é a verdade, e a verdade és tu mesmo.

CAPÍTULOX-Asmentirasdabeleza

Ó Deus das virtudes! Converte-nos e mostra-nos tua face, e seremos salvos!Porque, para onde quer que se volte a alma humana, onde quer que se estabeleçafora de ti, sempre encontrará dor, mesmo que sejam as belezas que estão fora deti e fora de si mesma; e todavia, estas nada seriam se não existissem em ti. Elasnascem e morrem; e, nascendo, começam a existir, e crescem para alcançar aperfeição e, uma vez perfeitas, começam a envelhecer e morrem. Embora nemtudo envelheça, tudo perece. Logo, quando os seres nascem e se esforçam paraexistir, quanto mais depressa crescem para existir, tanto mais se apressam para

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deixar de existir. Esta é a sua condição. Eis tudo o que lhes deste, porque sãopartes de coisas que não existem simultaneamente mas, morrendo e sucedendo-seumas às outras, formam o conjunto de que são partes.

Assim forma-se também nosso discurso, por meio dos sinais sonoros; este nunca serealizaria se uma palavra não se extinguisse, depois de pronunciadas suas sílabas,para dar lugar à seguinte.

Que minha alma te louve por tudo isto, ó Deus, criador de todas as coisas; mas nãose pegue a elas com o visco do amor dos sentidos, pois também elas caminhampara o não-ser, e dilaceram a alma com desejos pestilenciais, e ela quer existir egosta de descansar nas coisas que ama. Mas nelas não acha onde, porque as coisasnão são estáveis. Elas são fugazes, e quem poderá segui-las com os sentidos dacarne? Ou quem as pode alcançar, mesmo estando presentes? Lento é o sentido dacarne, por ser da carne, mas essa é a sua condição. É suficiente para o que foicriado, mas não o é para reter o curso das coisas, do princípio que lhes foi fixado,até o fim que lhes foi designado, porque em teu Verbo, que as criou, ouvem estaspalavras:

“Daqui até ali”.

CAPÍTULOXI-AverdadedeDeus

Não seja vã, ó minha alma, nem ensurdeças o ouvido do coração com o tumulto detua vaidade. Ouve também : o próprio Verbo clama que voltes, porque só acharásrepouso imperturbável lá onde o amor não é abandonado, se ele não nosabandona antes. Eis que as coisas passam para ceder lugar as outras, e para queassim se forme este universo inferior, de todas as suas partes. “Mas, por acaso,afasto-me de um lugar para outro? – diz o Verbo de Deus

– Fixa nele tua morada, confia a ele tudo o que dele recebeste, alma minha, jácansada de tantos enganos. Confia à Verdade quanto da Verdade recebeste, enada perderás; antes, tua podridão reflorescerá e serão curadas todas as tuasfraquezas, e serão retomadas e renovadas, estreitamente unidas a ti, tuas partesinconscientes; e já não te arrastarão para a ladeira por onde descem, maspermanecerão contigo para sempre onde está Deus, eterno e imutável.

Por que, perversa, segues o apelo de tua carne? Seja esta, convertida a te seguir.Tudo o que por ela sentes é parte, mas ignoras o todo de que é parte, ainda que

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te dê prazer. Mas, se os sentidos de tua carne fossem idôneos para compreender otodo, e se, para teu castigo, não tivessem sido justamente limitados acompreender apenas partes do universo, certamente desejarias que passasse tudoo que presentemente existe, para melhor desfrutar do conjunto.

O que falamos também ouves com os ouvidos da carne, e com certeza não queresque as sílabas se detenham, mas que voem, para que outras lhes sucedam, e assimouvires o conjunto.

O mesmo acontece com todas as coisas que compõem um todo, quando essaspartes constituintes não existem simultaneamente; há mais encanto no todo doque nas partes percebidas separadamente. Mas melhor do que todas elas, é o queas fez, que é nosso Deus, que não passa, porque nada vem depois dele.

CAPÍTULOXII-OamoremDeus

Se te agradam os corpos, louva a Deus neles, e dirige teu amor para teu artífice,para não o desagradar nas mesmas coisas que te agradam.

Se te agradam as almas, ama-as em Deus, porque, embora mutáveis, se fixas nele,terão estabilidade; de outro modo, passariam e pereceriam. Ama-as, pois, nele, earrasta contigo até ele quantas almas puderes, dizendo-lhes: “Amemo-lo”. Porqueele criou estas coisas, e não está longe; ele não as fez para depois ir embora, masdele procedem e nele estão. E ele está onde aprecia a verdade: no mais íntimo docoração; mas o coração errante se afastou dele.

Voltai, pecadores, ao coração, e ligai-vos àquele que é vosso criador. Firmai-vosnele, e estareis firmes; descansai nele, e estareis descansados. Para onde ides poresses ásperos caminhos? Para onde ides? O bem que amais, dele procede, mas só ébom e suave quando se dirige a ele; porém, será justamente amargo se,abandonando a Deus, amardes injustamente o que dele procede. Por que continuaipor caminhos difíceis e trabalhosos? O descanso não está onde o buscais. Buscais avida feliz na região das trevas: não está lá. Como achar a vida bem-aventuradaonde nem sequer há vida?

Ele, nossa vida real veio até nós; sofreu nossa morte, e a suplantou com aabundância de sua vida; com voz de trovão clamou para que voltássemos a ele,para o lugar escondido de onde veio até nós, passando primeiro pelo seio de umavirgem, onde se desposou com ele a natureza humana, carne mortal, para não

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ficar sempre mortal.

Dali, como o esposo que sai do tálamo, deu saltos como um gigante, para correrseu caminho. E não se deteve; correu clamando com suas palavras, com suas obras,com sua própria morte, com sua vida, com sua descida aos ínferos e com suaascensão, clamando para que voltássemos a ele. Se ele se afastou de nossa vista,foi para que entremos em nosso coração, e ali o encontremos; se partiu, ainda estáconosco. Não quis ficar por muito tempo entre nós, mas não nos abandonou.Retirou-se de onde nunca se afastou, pois o mundo foi criado por ele, e no mundoestava, e ao mundo veio para salvar os pecadores. E a ele se confessa minha alma,a ele que a cura e contra quem pecou.

Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Será possível que, depoisde ter a vida descido até vós, não queirais subir e viver? Mas para onde subis,quando vos ergueis e abris vossa boca no céu? Descei para subir, para subir atéDeus, já que caístes levantando-vos contra Deus.

Dize-lhes isto, minha alma, para que chorem neste vale de lágrimas, e assim osarrebates contigo para Deus, pois, ao dizer estas palavras ardendo em chamas decaridade, é o espírito divino que te inspira.

CAPÍTULOXIII-Oproblemadobelo

Então eu ignorava tais coisas – e por isso amava belezas terrenas. Caminhavapara o abismo, dizendo a meus amigos: “Será que amamos algo que não é belo? Eque é o belo? E que é a beleza? Que é que nos atrai e apega às coisas queamamos? Pois, com certeza, se nelas não houvesse certa graça e formosura, nãonos atrairiam.

E eu observava e via que num mesmo corpo uma coisa era o todo, harmonioso ebelo, e outra o que lhe era conveniente, sal aptidão de se ajustar de maneiraperfeita a alguma coisa como, por exemplo, a parte do corpo em relação aoconjunto, o calçado em relação ao pé, e outras similares. Esta consideração brotouem minha alma do íntimo de meu coração, e escrevi alguns livros sobre o belo e oconveniente, creio que dois ou três – tu o sabes, Senhor – pois já me esqueci, enão os tenho mais porque se me extraviaram não sei como.

CAPÍTULOXIV-Razõesdeumadedicatória

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Mas, meu Senhor e meu Deus, qual o motivo de dedicar esses livros a Hiério,orador de Roma? Não o conhecia, apreciando-o apenas pela fama de sua doutrina,que era grande, e por alguns ditos seus, que ouvira, e que me agradaram. Masdele gostava principalmente porque ele agradava aos outros, que lhe tributavamgrandes elogios, admirados de que um sírio, educado na eloqüência grega,chegasse a orador admirável na latina, e grande conhecedor de todos os assuntos,ligados à filosofia. Assim, ouve-se louvar a um homem, e, embora ausente, começa-se a amá-lo. Entrará o amor no coração do que ouve pela boca do que louva? Écerto que não, mas o amor de um se inflama com amor do outro. Por isso se amaao que é louvado; mas só quando se está persuadido de que o louvor vem decoração sincero, ou quando o louvor é inspirado pelo amor.

Assim pois amava eu então aos homens, pelo juízo dos homens, e não pelo teu,meu Deus, em quem ninguém se engana. Contudo, por que não o louvava como selouva a uma auriga famoso ou a um caçador afamado pelas aclamações do povo,mas de modo mais distinto e mais ponderado, tal como eu gostaria de serlouvado?

Certamente, eu não gostaria de ser louvado e amado como os comediantes,embora eu também os ame e louve; antes, preferiria mil vezes, permanecerdesconhecido a ser louvado dessa maneira, e mesmo ser odiado a ser amadoassim. De que modo convivem em uma alma gostos tão vários e diversos? Como éque amo em outro o que rejeitaria e afastaria para longe de mim, sendo amboshomens? Aprecia-se um bom cavalo, sem que se queira ser um cavalo, se isso fossepossível. Mas de um histrião não se pode dizer o mesmo, pois tem a mesmanatureza que nós. Logo, amo em um homem o que teria horror de ser, emboratambém eu seja homem?

Grande abismo é o homem, cujos cabelos tu, Senhor, tens contados; e não se perdeum sem que tu o saibas; e, contudo, mais fáceis de contar são seus cabelos quesuas paixões e os movimentos de seu coração.

Mas aquele orador era do número dos que eu amava a ponto de desejar ser comoele; mas eu andava errante por meu orgulho e era arrastado por toda espécie devento, embora em segredo fosse governado por ti. E como sei, e como te confessocom tanta certeza que o amava mais por amor dos que o louvavam do que pelosméritos que lhe valiam esses louvores?

Se em vez de o louvarem aquelas mesmas pessoas o criticassem, e se me

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contassem dele as mesmas coisas, mas com censura e desprezo, certamente nãome entusiasmaria por ele; não obstante, os fatos não seriam diferentes e nem ohomem outro, mas unicamente os sentimentos dos narradores.

Eis onde jaz enferma a alma que ainda não se apoiou na firmeza da verdade. Élevada e trazida, atirada e rechaçada, segundo os sopros das línguas que ventamdos peitos dos que opinam! E de tal modo a luz lhe é toldada, que não distingue averdade, apesar de estar ela à nossa vista.

Para mim era importante que aquele homem conhecesse minhas palavras e meustrabalhos. Se ele os aprovasse, me entusiasmaria ainda mais por ele; mas se osreprovasse, meu coração fútil e vazio de tua firmeza, se lastimaria. Contudo, meuprazer era pensar e refletir no problema do belo e do conveniente, assunto dolivro que lhe dedicara, admirando-o na minha imaginação, mesmo que ninguémmais o louvasse.

CAPÍTULOXV-Osprimeiroslivros

Mas não atinava com a chave de tuas artes em tão grandes obras, ó Deusonipotente, único criador de maravilhas. Vagava minha alma pelas formascorpóreas, e definia o belo como o que agrada por si mesmo, e o conveniente comoo que agrada por sua acomodação a outra coisa, e apoiava essa distinção comexemplos tomados dos corpos.

Daqui passei à natureza da alma, mas o falso conceito que tinha das coisasespirituais não me permitia perceber a verdade. A própria força da verdadesaltava-me aos olhos, mas logo eu afastava da realidade incorpórea meu espíritoinquiridor, voltando-me para as figuras, as cores e as grandezas materiais. E comonão podia ver nada semelhantes na alma, julgava que tampouco seria possível verminha alma.

Mas, como eu amava a paz da virtude, e aborrecia a discórdia do vício, notavanaquela certa unidade e neste certa desunião; parecia-me que residisse nessaunidade a alma racional, a essência da verdade e do sumo bem. Na desunião, viaeu não sei que substância de vida irracional e a natureza do sumo mal, que nãoera apenas substância, mas também verdadeira vida. Todavia não procedia de ti,meu Deus, de quem procedem todas as coisas. E chamava àquela unidade mônada,como alma sem sexo, e a esta multiplicidade díada, como a ira nos crimes, aconcupiscência nas paixões, sem saber o que dizia. Ignorava então, ainda não havia

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aprendido que o mal não é substância alguma, nem que nosso espírito não é o bemsoberano e imutável.

Assim como se cometem crimes quando o movimento do espírito é vicioso e seatira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da alma, fontedos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam avida se a alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que eladeveria ser ilustrada por outra luz para participar da verdade, por não ser damesma essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu,meu Deus, iluminarás minhas trevas, e todos participamos de tua plenitude,porque és a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo, eporque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade.

Eu me esforçava para me aproximar de ti, mas tu me repelias para queexperimentasse a morte, pois resistes aos soberbos. E que maior soberba haveriaque afirmar, com inaudita loucura, que eu era da mesma natureza que tu? Porque,sendo eu mutável, e reconhecendo-me tal – pois, se queria ser sábio, era parafazer-me de menos para mais perfeito – preferia, contudo, julgar mutável a ti doque não ser o que tu és. Eis aqui por que era repelido, e por que resistias à minhasoberba cheia de vento.

Eu não imaginava mais que formas corpóreas; carne, acusava a carne; espíritoerrante, não conseguia voltar para ti, nem em mim, nem nos corpos; não eramsugeridas por tua verdade, mas imaginadas por minha vaidade, de acordo com oscorpos. E dizia aos pequeninos teus fiéis concidadãos, dos quais eu, ignaro, aindaexilado, dizia-lhes eu, tagarela inepto: “Por que a alma, criatura de Deus, seengana?” Mas não queria que dissessem: “E por que Deus se engana?” E defendiaantes que tua substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que aminha, mutável, se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada peloerro.

Teria eu vinte e seis ou vinte e sete anos quando escrevi essas coisas, revolvendodentro de mim apenas imagens corporais, cujo ruído aturdia os ouvidos do meucoração. Buscava eu aplicá-los – ó doce verdade – à tua melodia interior, quandomeditava sobre o belo e o conveniente. Meu desejo era estar diante de ti, e ouvirtua voz, e alegrar-me intensamente com a voz do esposo, mas não o podia, porqueo alarido do meu erro me arrebatava para fora e, sob o peso de minha soberba,caía no abismo. Pois ainda não davas gozo e alegria a meus ouvidos, nemexultavam meus ossos, porque ainda não haviam sido humilhados.

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CAPÍTULOXVI-AsdezcategoriasdeAristóteles

E que lucro me trazia, tendo eu vinte anos de idade, mais ou menos, e chegando-me às mãos a obra de Aristóteles, intitulada As Dez Categorias – que meu mestre,o retórico de Cartago, e outros, considerados doutos, citavam com grande ênfase eponderação, fazendo-me suspirar por ela como por algo grandioso e divino – deque me servia ler essa obra e compreendê-la sozinho? Falando com outros, queafirmavam ter conseguido entendê-la só por meio de mestres eruditíssimos, quelha haviam explicado não apenas com palavras, mas também com figuras pintadasna areia, nada me souberam dizer que eu já não tivesse entendido em minhaleitura particular.

Parecia-me que essa obra falava com muita clareza das substâncias, como ohomem, e das coisas que nelas se encerram, como a forma do homem; a estatura,quantos pés mede; o parentesco, de quem é irmão; onde se encontra, quandonasceu; se está de pé, sentado, calçado ou armado; se faz alguma coisa ou sepadece de alguma coisa, e, enfim, uma infinidade de relações que se contêm nestesnove gêneros, dos quais citei alguns exemplos, ou no próprio gênero da substância,que são também inumeráveis os que encerra.

De que me aproveitava tudo isso, se até me prejudicava? Julgando que naquelesdez predicamentos se achavam compreendidas, de modo absoluto, todas as coisas,esforçava-me por compreender também a ti, meu Deus, Ser maravilhosamentesimples e imutável, como se fosses subordinado à tua grandeza e formosura, comose estas estivessem em ti como em seu sujeito, como se fosses um corpo; tuagrandeza e beleza são porém uma mesma coisa contigo, ao contrário dos corpos,que não são grandes ou belos por serem corpos, pois, embora fosses menores emenos belos, nem por isso deixariam de ser corpos.

Era pois falso o que pensava de ti, e não verdade; ilusões de minha miséria, e nãorepresentação sólida de tua beleza. Havias ordenado, Senhor, e assim se cumpriaem mim tua vontade, que a terra me produzisse abrolhos e espinhos, e que eu sóconseguisse meu pão à custa de trabalho.

De que me aproveitava também ler e compreender por mim mesmo todos oslivros que pude ter nas mãos sobre as artes chamadas liberais, se eu era entãoescravo de minhas más inclinações? Comprazia-me em sua leitura, sem atinar deonde vinha quanto de verdadeiro e certo achava neles; eu estava de costas para aluz, e o rosto, para os objetos iluminados, e por isso meus olhos, que os viam

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iluminados, não recebiam luz.

Tu sabes, Senhor, meu Deus, como sem ajuda de mestre, aprendi tudo o que li,quanto às leis da retórica, da dialética, da geometria, da música e da matemática,porque também a vivacidade da inteligência e a agudeza da intuição são donsteus. Mas não te oferecia por eles sacrifício algum, e por isso causavam-me maisdano do que proveito. Insisti em me apoderar da melhor parte da minha herança,e não guardei em ti minha força, mas afastei-me de ti para uma região longínqua,a fim de dissipá-la entre as meretrizes de minhas paixões.

De que me serviam dons tão preciosos, se não usava bem deles? Só compreendique aquelas artes eram tão difíceis de entender, mesmo para os estudiosos esábios, quando me esforçava para expô-las: entre eles, o mais destacado era o queme compreendia menos vagarosamente.

Mas qual o fruto disso, se eu te concebia, Senhor meu Deus, ó Verdade, como umcorpo luminoso e infinito, e eu como uma parcela desse corpo? Que rematadaperversidade! Assim era eu; não me envergonho agora, meu Deus, de confessartuas misericórdias para comigo, e de te invocar, já que não me envergonhei entãode proferir ante os homens tais blasfêmias e de ladrar contra ti. De que meaproveitava, repito, a inteligência ágil para entender aquelas ciências, e paraexplicar com clareza tantos livros complicados, sem que ninguém mos houvesseexplicado, se errava monstruosamente na piedade com sacrílega torpeza? E queprejuízo sofriam teus pequeninos em serem de menor inteligência, se não seafastavam de ti, para que, seguros no ninho da tua Igreja, se cobrissem de penas,e lhes alimentassem as asas da caridade com o sadio alimento da fé?

Ó Deus e Senhor nosso! Esperemos, ao abrigo de tuas asas; protege-nos, leva-nos!Tu levarás os pequeninos, e até escarnecidos tu os levarás, nossa firmeza só éfirmeza quando está em ti; mas quando depende de nós, então é debilidade. Nossobem vive sempre em ti, e somos perversos porque nos afastamos de ti. Voltemosjá, Senhor, para não nos aniquilarmos, porque em ti vive nosso bem, semdeficiência alguma; sem medo de não o encontrar quando voltarmos para nossaorigem e, embora ausentes, nem por isso desaba nossa casa, tua eternidade.

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LIVROQUINTO

CAPÍTULOI-Oração

Recebe, Senhor, o sacrifício de minhas Confissões por meio da minha língua, que tuformaste e impeliste a confessar teu nome. Cura todos os meus ossos, e que elesproclamem: Senhor, quem haverá semelhante ai ti? Na verdade, quem se dirige ati, nada te informa do que ocorre em si, porque não há coração fechado que sepossa subtrair a teu olhar, nem dureza de homem que possa repelir tua mão. Aocontrário, a abrandas quando queres, ou para compadecer-te, ou para castigar;não há quem se esconda de teu calor. Mas, que minha alma te louve para que teame, a confesse tuas misericórdias para que te louve. Toda a criação não cala teuscontínuos louvores, nem os espíritos todos, com sua boca voltada para ti, nem osanimais e coisas corporais, pela boca dos que os contemplam. Assim, apoiando-seem tua criação, nossa alma se levanta de sua franqueza, e chega a ti, seuadmirável criador, onde encontrará rejuvenescimento e verdadeira fortaleza.

CAPÍTULOII-OsquefogemdeDeus

Afastem-se e fujam de ti os irrequietos e os pecadores. Tu os vês e distingues suassombras. E eis que, apesar deles, todas as continuam belas; somente eles são feios.E que damos te poderiam causar? Ou em que poderia desonrar teu império, justoe íntegro desde os céus até as coisas mais ínfimas? E para onde fugiram, ao fugirde tua presença? E em que lugar não os encontrarás? Fugiram, sim, para não ver-te a ti, que os estás vendo, mas deparam contigo, que não abandonas nada do quecriaste; tropeçaram contigo, injustos, e justamente são castigados; subtraindo-se átua brandura, ofenderam tua santidade, e caíram sob teus rigores.

Evidentemente eles ignoram que estás em toda parte, que nenhum lugar telimita, e que só tu estás presente mesmo nos que se afastam de ti.

Que se convertam, pois, e te busquem, porque não abandonas tua criatura, comoelas abandonaram a seu Criador. Que se convertam, e logo estarás em seuscorações, nos corações dos que te confessam, dos que se lançam em ti, dos quechoram em teu regaço depois de percorrerem penosos caminhos. E tu, bondoso,enxugarás suas lágrimas; e chorarão ainda mais, mas serão felizes por chorar,porque és tu, Senhor, e nenhum homem de carne e sangue, tu, Senhor, que oscriaste, que os consolas e robusteces.

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E onde estava eu quando te buscava? Certamente, estavas diante de mim, mas eume havia afastado de mim mesmo, e não me encontrava, e muito menos de ti!

CAPÍTULOIII-Faustoeomaniqueísmo

Falarei, na presença de meu deus, do ano vigésimo-nono de minha vida. Já haviachegado a Cartago um dos bispos maniqueus, chamado Fausto, grande laço dodemônio, no qual caíam muitos pelo encanto sedutor de sua eloqüência. Apesar deser exaltada por mim, eu a sabia contudo discernir das verdades que desejavaconhecer. Não era o prato do estilo que eu considerava, mas o alimento doutrinalque nele me era servido por aquele famoso Fausto, tao reputado entre os seus.

Antecedera-o a fama de homem erudito em toda espécie de ciência, eparticularmente instruído nas artes liberais. E como eu tinha lido muitas teoriasdos filosofo, e as guardava na memória, quis comparar algumas destas com asgrandes fábulas do maniqueísmo. Pareciam-me mais prováveis as doutrinasdaqueles que chegaram a conhecer a ordem do mundo, embora não tivessemencontrado a seu Criador. Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nascoisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão doscontritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosaperícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz demedir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros.

Com a inteligência e o engenho que lhes deste investigam os segredos do mundo,e descobriram muitos deles; predisseram com muitos anos de antecedência oseclipses do sol e da lua, no dia e hora em que hão de suceder, sem que nunca lhesfalhasse o cálculo, acontecendo sempre tal e como haviam anunciado. Deixaramainda por escrito as leis por eles descobertas, as quais ainda hoje se lêem, e deacordo com elas se prediz em que ano, e em que mês do ano, e em que dia do mês,e em que hora do dia, e em que parte de sua luz se hão de eclipsar o sol e a lua; etudo acontece como está predito.

Admiram-se disto os ignorantes, e pasmam. Os sábios gloriam-se disso, e sedesvanecem, e com ímpia soberba afastam-se e se eclipsam de tua luz. E, prevendocom exatidão o eclipse vindouro do sol, não vêem o seu, que já está presente. Nãoprocuram religiosamente saber de onde lhes vem o talento com que investigamessas coisas e, achando que tu as criaste, não se entregam a ti, para que conserveso que lhes deste, nem se te oferecem em sacrifício, como se tivessem feito a simesmos; nem dão morte às suas soberbas, que alçam vôo como aves do céu; nemàs suas insaciáveis curiosidades que, como peixes do mar, passeiam pelas secretas

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sendas do abismo; nem às suas luxúrias, que os igualam aos animais do campo, afim de que tu, ó Deus, fogo devorador, destruas estas suas preocupações de morte,e os torne a criar para uma vida imortal.

Mas não conheceram o caminho, o teu Verbo, por quem fizeste as coisas quenumeram, e a eles próprios que as numeram, e os sentidos com que percebem ascoisas que numeram, e a mente graças à qual as numeram. Tua sabedoria escapaaos números. Teu Filho Unigênito se fez para nós sabedoria, justiça e santificação,e foi contado entre nós, e pagou tributo a César. Não conheceram este caminho,por onde desceriam de seu orgulho até ele, e por ele subiriam até ele; nãoconheceram, digo, este caminho, e se julgaram mais elevados e resplandecentesque estrelas, e assim vieram a rolar por terra, e seu coração insensato seobscureceu.

Dizem muitas coisas verdadeiras acerca das criaturas; mas, como não procurampiedosamente a Verdade, isto é, o autor da Criação, não o encontram; e, se oencontram reconhecendo-o por Deus, não o honram como a Deus, nem lhe dãograças. Antes, se desvanecem em seus pensamentos, e se dizem sábios, atribuindoa si próprios o que é teu.

Atribuem a ti, com perversa cegueira, suas mentiras, a ti, que és a própriaVerdade; alteram a glória de um Deus incorruptível, concebendo-a à semelhança eimagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes, das serpentes. Econvertem tua verdade em mentira, e adoram e servem antes à criatura do queao Criador.

Eu porém guardava muitas de suas opiniões verdadeiras acerca das criaturas, cujaexplicação encontrava nos números, na ordem dos tempos e no testemunho visíveldos astros; comparava-as com os ensinamentos de Manés, que escreveu sobreessas matérias numerosas e delirantes loucuras, sem achar nenhuma explicaçãopara os solstícios e equinócios, os eclipses do sol e da lua, e para outras coisas,enfim, das quais tomara conhecimento pelos livros da sabedoria profana.

Contudo, exigia-me que acreditasse nessas doutrinas, embora não concordassemabsolutamente com meus cálculos e com o que meus olhos testemunhavam.

CAPÍTULOIV-Ciênciaeignorância

Senhor, Deus da verdade, acaso te agradará quem conhecer essas coisas? Infeliz

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do homem que, conhecendo-a todas, te ignora ti; mas feliz de quem te conhece,embora as ignore!

Quanto ao que conhece a ti e a elas, este não é mais bem-aventurado por causa deseu saber, mas só é feliz por ti, se, conhecendo-te, te glorifica como Deus, e te dágraças, e não se desvanece em seus pensamentos.

É melhor aquele que reconhece estar na posse de uma árvore e te dá graças porsua utilidade, embora ignore quantos côvados tem de altura e de largura, que oque a mede, e conta todos os seus ramos, mas não a possui, nem conhece, nemama a seu Criador. Assim o homem fiel, a quem pertencem todas as riquezas domundo, e que, nada possuindo, possui tudo, por estar unido a ti, a quem servemtodas as coisas – embora desconheça até o curso das estrelas da Ursa – e seriainsensatez duvidar – é certamente melhor do que o que mede os céus, conta asestrelas e pesa os elementos, mas despreza a ti, que dispuseste todas as coisas emnúmero, peso e medida.

CAPÍTULOV-LoucurasdeManés

Mas, quem pediu a esse Manés que escrevesse sobre coisas cujo conhecimento nãoé necessário à piedade? Tu disseste ao homem: Vê que a piedade é a sabedoria.Manés podia muito bem ignorar essa piedade ainda que fosse muito instruído nasciências profanas. Mas, como não as conhecia, e se atrevia desavergonhadamentea ensiná-las, de nenhum modo conhecia a piedade. Pois certamente é vaidadealardear conhecimentos humanos, mesmo verdadeiros, e é piedade confessar-te ati. Manés, afastando-se dessa regra, falou tanto sobre essas coisas que foiconvencido de sua ignorância pelos que as conhecem bem. Donde se viu-seclaramente o crédito que merecia em matérias mais obscuras. Ele não queria serpouco estimado; empenhou-se em convencer aos demais que tinha em si,pessoalmente, e na plenitude de seu poder, o Espírito Santo, que consola eenriquece teus fiéis. Surpreendido em erro ao falar do céu, das estrelas, e do cursodo sol e da lua, embora tais coisas não pertençam à religião, claramente deixouver ser sacrílego seu atrevimento ao ensinar coisas que ignorava e também falsas,e isso com tão insano orgulho a ponto de atribuí-las à pretensa divindade de suapessoa.

Quando pois ouço que este ou aquele irmão em Cristo ignora esses problemas, econfunde uma coisa com outra, suporto com paciência seu modo de opinar. Nadavejo que possa ser-lhe prejudicial enquanto não fizer idéia indigna de ti, Senhor,criador do universo, mesmo que ignore até o lugar e a natureza das coisas

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materiais. O mal seria acreditar que esses problemas pertencem à essência dapiedade, e tenazmente atrever-se a afirmar o que ignora. Mas ainda essa fraquezaé suportada nos primórdios da fé pela mãe caridade, até que o homem novo cresçae se transforme em varão perfeito, e não possa ser abalado por qualquer vento dedoutrina.

Quanto a Manés, que se atreveu a se fazer de doutor, de mestre, de guia e cabeçadaqueles a quem convertera, de tal forma que os que o seguiam acreditassemseguir não um homem qualquer, mas teu Espírito Santo, quem não julgaria quetão rematada loucura, uma vez demonstrada sua falácia, deveria ser detestada eafastada para bem longe?

Contudo, eu ainda não estava certo se o que havia lido em outros livros, sobre asmudanças dos dias e das noites, uns mais longos, outros mais curtos, e sobre osuceder-se dos dias e das noites, e dos eclipses do sol e da lua, e outros fenômenossemelhantes, poderiam ser explicados conforme sua doutrina. Caso isso fossepossível, eu ainda ficaria em dúvida quanto ao modo por que se realizariam essesfenômenos; eu anteporia a autoridade de Manés à minha fé, pois o tinha então emconta de santo.

CAPÍTULOVI-AeloqüênciadeFausto

Durante os quase nove anos em que meu espírito errante deu ouvidos aosmaniqueus, esperei ansiosamente a vinda de Fausto. Os demais adeptos, com osquais me encontrava casualmente, embaraçados com as objeções que eu lhes fazia,remetiam-me a ele que, à sua chegada, com uma simples entrevista resolveriafacilmente todas aquelas dificuldades, e ainda outras maiores que me ocorressem,de maneira claríssima.

Logo que chegou, pude notar que se tratava de um homem simpático, de falacativante, e que expunha os temas comuns dos maniqueus, mas com muito maisagrado que eles. Mas, que interessava à minha sede este elegante copeiro decopos preciosos? Eu já tinha os ouvidos fartos daquelas teorias, e nem mepareciam melhores por serem expostas em melhor estilo, nem mais verdadeiraspela elegância de suas formas; nem eu considerava Fausto mais sábio por ter orosto de mais graça e sua linguagem mais finura. Aqueles que mo haviamrecomendado não eram bons juizes: tinham Fausto como homem sábio e prudentesomente porque lhes agradava sua facúndia.

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Diferentes de outra espécie de homens que conheci, que tinham como suspeita averdade, e não se lhe renderiam se lhes fosse apresentada com linguagemelegante e verbosa.

Mas eu, meu Deus, nessa época já tinha aprendido de ti, por caminhos ocultos eadmiráveis – e creio que eras tu que me ensinavas, porque era verdade, eninguém pode ser mestre da verdade senão tu, seja qual for a instância e mododela brilhar – já havia aprendido de ti que não se deve ter por verdadeiro umpensamento porque expresso eloquentemente nem falso porque é dito comrudeza; e que, pelo contrário, um pensamento não é verdadeiro por ser enunciadocom simplicidade, nem falso porque sua expressão é elegante; a sabedoria e aignorância são como alimentos, proveitosos ou nocivos, e as palavras, elegantesou rudes, como pratos preciosos ou toscos, nos quais se podem servir a ambos.

A ânsia com a qual por tanto tempo esperara por Fausto, deleitava-se enfim com oardor e a vivacidade de suas disputas, com os termos apropriados e a facilidadecom que lhe vinham à boca para adornar seu pensamento. Deleitava-me,certamente, e eu o louvava e exaltava com os outros, e muito mais ainda do queeles.

Contudo, na reunião dos ouvintes, me aborrecia não poder apresentar-lhe minhasdúvidas, e dividir com ele os cuidados de meus problemas, conferindo com eleminhas dificuldades em forma de perguntas e respostas. Quando, enfim, o pudefazer, acompanhado de meus amigos, comecei a falar-lhe em ocasião e lugaroportunos para tais discussões, apresentando-lhe algumas objeções das que maisme preocupavam. Vi então que se tratava de homem completamente ignorantedas artes liberais, com exceção da gramática, que conhecia de modo superficial.

Contudo como havia lido alguns discursos de Cícero, e pouquíssimos livros deSêneca, alguns poemas e livros da seita, escritos em bom latim e com arte, e comose exercitava todos os dias em falar, adquirira grande facilidade de expressão, queele tornava mais agradável e sedutora com o bom emprego de seu talento e certagraça natural.

Não é assim como estou contando, meu Senhor e meu Deus, juiz de minhaconsciência?

Diante de ti estão meu coração e minha memória, e que já então guiavas nosegredo oculto de tua providência, pondo diante de meus olhos meu erros

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vergonhosos, para que os visse e odiasse.

CAPÍTULOVII-Desilusão

Por isso, logo que reconheci sua ignorância naquelas ciências em que o julgavagrande conhecedor, comecei a desesperar de que me pudesse esclarecer e resolveras dificuldades que me preocupavam. É bem verdade que ele podia ignorar taiscoisas e possuir a verdadeira piedade, contanto que não fosse maniqueísta. Seuslivros estão cheios de fábulas intermináveis acerca do céu e dos astros, do sol e dalua, que eu já não esperava, mas que pudesse explicar tão argutamente como eu odesejava, comparando-as com os cálculos matemáticos que eu lera em outraspartes, para ver se deveria preferir o que diziam os livros de Manés, ou se, pelomenos, estes apresentavam demonstrações de igual valor.

Mas, quando apresentei minhas dificuldades à sua consideração e crítica, comgrande modéstia, não se atreveu a tomar sobre si tal encargo, pois certamentesabia que ignorava o assunto e não se envergonhava de confessá-lo. Não pertenciaà classe de charlatães que me vi obrigado muitas vezes a suportar, quepretendiam ensinar-me tais coisas, mas não me diziam nada. Este, pelo menos,tinha coração, senão dirigido a ti, pelo menos não era incauto consigo mesmo. Nãoignorava totalmente sua ignorância, razão pela qual não quis meter-setemerariamente em questões de onde não pudesse sair, ou de mui difícil retirada.Por isso mesmo cresceu aos meus olhos, por ser a modéstia de uma alma que seconhece muito mais bela que o saber que eu desejava; e em todas as questõesmais difíceis e sutis o encontrei sempre com igual ânimo.

Esfriado pois meu entusiasmo pelos livros de Manés, e muito mais desconfiado dosoutros doutores maniqueus, depois que este, tão renomado, se me havia mostradotão ignorante em muitas das questões que me inquietavam, continuei a tratarcom ele, mas por causa de sua paixão pelas letras, que eu ensinava então aosjovens de Cartago. Lia com ele os livros que desejava conhecer por ter ouvido falardeles, ou os que eu considerava apropriados à sua inteligência.

Quanto ao mais, todo o empenho que eu havia posto em progredir na seitadesapareceu por completo tão logo conheci este homem, mas não a ponto de meseparar definitivamente dela.

De fato, não achando na ocasião caminho melhor que aquele por onde cegamenteme lançara, resolvi continuar provisoriamente na mesma, até que tivesse a

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fortuna de encontrar algo melhor e preferível. Foi assim que aquele Fausto, quehavia sido para muitos laço de morte, começava involuntária e inconscientementea desfazer o laço que me enredara. É que tuas mãos, meu Deus, no segredo de tuaprovidência, não abandonavam minha alma; e minha mãe, dia e noite, não deixavade te oferecer em sacrifício por mim o sangue de seu coração, na forma de suaslágrimas.

E tu, Senhor, agiste comigo de modo admirável, pois isso foi obra tua, meu Deus.Porque o Senhor é quem dirige os passos do homem e quem inspira seu caminho. Equem poderá dar-nos a salvação, senão tua mão, que restaura o que fez?

CAPÍTULOVIII-ViagemaRoma

Também foi obra tua o fato de me convencerem a ir a Roma, para ali lecionar oque ensinava em Cartago. Mas não deixarei de confessar-te o motivo que memoveu, porque também nisso tudo se reconhece a profundidade de teu desígnio, emerece ser meditada e exaltada tua misericórdia sempre presente. O motivo queme levou a Roma não foram maiores lucros e maior dignidade, como meprometiam os amigos que tal me aconselhavam – se bem que essas razões aindafossem importantes para mim nesse tempo – mas o principal e quase único motivode minha determinação era saber que os jovens de Roma eram mais sossegadosnas classes, em virtude da rigorosa disciplina a que estavam sujeitos. Não lhes eralícito entrar desordenada e impudentemente nas aulas dos professores dos quaisnão eram alunos, nem sequer eram admitidos sem licença; bem o contrário do queacontecia em Cartago, onde a liberdade dos estudantes é tão vergonhosa edestemperada que invadem cínica e furiosamente as aulas, perturbando a ordemestabelecida pelos mestres em seu próprio interesse. Além disso, com incrívelinsolência cometem uma quantidade de grosserias, que deveriam ser castigadaspelas leis, se a tradição não os protegesse. Tal costume aliás, apenas manifesta ainfelicidade no caso desses jovens, que já praticam como lícito o que jamais serápermitido por tua lei eterna. Julgam agir impunemente, quando a própriacegueira é seu maior castigo, padecendo eles males incomparavelmente maioresdo que os que causam aos outros.

Com isso vi-me obrigado, quando professor, a suportar nos outros costumes quenão quis adotar como meus quando estudante; e por isso desejava ir para umacidade na qual, segundo me asseguravam, não aconteciam tais coisas. E tu,Senhor, minha esperança e meu quinhão na terra dos vivos, a fim de que eumudasse de residência para a saúde de minha alma, me punhas espinhos emCartago, para arrancar-me dali, e deleites em Roma para atrair-me para lá.

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Atraías-me por meio de homens que amavam uma vida morta, dos quais unsagiam aqui como loucos, e outros me aliciavam alhures com bens ilusórios. E, paracorrigir meus passos, usavas ocultamente da sua e da minha perversidade. Porqueos que perturbavam minha paz estavam cegos por uma raiva vergonhosa, e os queme convidavam para mudar sabiam a terra; e eu, que detestava em Cartago umaverdadeira miséria, buscava em Roma uma falsa felicidade.

Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, osabias, sem manifestá-lo a mim nem à minha mãe, que chorou amargamenteminha partida, seguindo-me até o mar. Mas tive de enganá-la, porque meagarrava com força, instando-me a desistir de meu propósito ou a levá-la comigo.Fingi pois que tinha que me despedir de um amigo que eu não queria abandonar,até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim enganei a minha mãe, e auma tal mãe! Fugi, e tu também me perdoaste este pecado misericordiosamente,salvando-me a mim, cheio de execráveis imundícies, das águas do mar para quechegasse ás águas de tua graça. Purificado com elas, secariam os rios dos olhos deminha mãe, com que todos os dias regava a terra diante de ti, por minha causa.

Contudo, como se recusasse a voltar sem mim, apenas pude persuadi-la apermanecer aquela noite em uma capela próxima a nosso navio, consagrada àmemória de São Cipriano. Mas naquela mesma noite parti às escondidas,deixando-a orar e a chorar. E que te pedia ela, meu Deus, com tantas lágrimas,senão que me impedisses de navegar? Mas tu, de visão infinitamente mais ampla,entendendo o intuito de seu desejo, não atendeste ao que ela então te pedia,para fazer em mim aquilo que sempre te pedia.

Soprou o vento, enfunou nossas velas, e logo desvaneceu de nosso olhar a praia,onde de manhã cedo minha mãe, louca de dor, enchia de queixas e de prantos teusouvidos insensíveis.

Deixaste-me correr atrás de minhas paixões para dar fim ás minhasconcupiscências, castigando com o justo flagelo da dor a saudade demasiado carnalde minha mãe. Ela, como todas as mães, e ainda mais que a maioria delas,desejava manter-me junto de si, desconhecendo as grandes alegrias que lhepreparavas com minha ausência. Não o sabia, e por isso chorava e se lamentava,denunciando com esses lamentos a herança que recebera de Eva, buscando emlágrimas ao que com gemidos havia dado à luz.

Por fim, depois de ter-me chamado de mentiroso e de mau filho, pôs-se de novo a

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rezar por mim e voltou para sua vida habitual, enquanto eu me dirigia a Roma.

CAPÍTULOIX-Enfermo

Em Roma fui colhido pelo flagelo de uma doença corporal, que esteve a ponto deme mandar para a sepultura, carregado de todos os pecados cometidos contra ti,contra mim e contra o próximo; pecados numerosos e pecados, que se somavam àcadeia do pecado original, pelo qual todos morremos em Adão. Ainda não metinhas perdoado nenhum deles em Cristo, nem ele havia apagado com sua cruz asinimizades que contraíra contigo com meus pecados. E como poderia ele desfazê-los por uma cruz de onde eu não via pender mais que um fantasma? Porque tãofalsa me parecia a morte de sua carne como verdadeira a morte de minha alma, etão verdadeira a morte de sua carne como falsa a vida de minha alma, que distose não persuadia.

Entretanto, agravando-se as febres, eu estava a ponto de partir e de perecer.Para onde iria eu, se então tivesse que morrer, senão para o fogo e tormentosmerecidos por minhas ações, de acordo com a justa ordem por ti estabelecida?Minha mãe tudo ignorava, mas, ausente, orava por mim, e tu, presente em todasas partes onde ela estava, lhe dava ouvidos; exercias tua misericórdia para comigoonde eu estava, restituindo-me a saúde do corpo, ainda que meu coração sacrílegocontinuasse doente. Nem mesmo estando em tão grande perigo desejei teubatismo. Quando menino eu era melhor, porque então o solicitei à piedade deminha mãe, como já recordei e confessei. Mas, para minha vergonha, eu haviacrescido e, em minha loucura, zombava dos remédios de tua medicina, que não medeixou morrer duplamente em tal estado.

Se o coração de minha mãe fosse transpassado por essa ferida, nunca haveria desarar.

Minha eloqüência não é suficiente para descrever o grande amor que mededicava, e a que ponto seus cuidados para me gerar em espírito eram piores queos que suportava quando me concebeu pela carne.

Por isso, não vejo como poderia sarar se minha morte em tal estado tivesse feridoas entranhas de seu amor. E onde estariam tantas orações, continuamenterepetidas? Estariam em ti, somente em ti. Seria possível que tu, Deus demisericórdia, desprezasses o coração contrito e humilhado de uma viúva casta esóbria, que frequentemente dava esmolas e servia obsequiosa a teus santos? Que

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em nenhum dia deixava de levar sua oferenda a teu altar? Que ia duas vezes pordia – de manhã e à tarde – à tua igreja, sem faltar jamais, e não para entreter-seem vãs conversas e cochichos de velhas, mas para te ouvir as palavras e para quea ouvisses em suas orações? Poderias desprezar as lágrimas de uma mãe que nãote pedia nem ouro, nem prata, nem bem algum terreno e frágil, mas a salvação daalma de seu filho? Poderias, ó Deus, a quem ela devia tudo o que era, poderiasdesprezá-la e negar-lhe teu auxílio? De nenhum modo, Senhor; pelo contrário, tu aassistias, e a escutavas, mas pelo caminho determinado por tua providência.

Como poderias enganá-la naquelas visões e respostas, de algumas das quais jáfalamos, e de outras que passo em silêncio, que ela guardava em seu coração fiel,e que te apresentava em suas orações contínuas como compromissos assinados portua mão, e que irias cumprir.

Porque, por tua misericórdia infinita, gostas de te fazer devedor daqueles a quemperdoas todas as dívidas.

CAPÍTULOX-Agostinhoeoserrosdosmaniqueus

Restabeleceste-me, pois, daquela doença, e então salvaste o filho de tua servaquanto ao corpo a fim de poder, salvá-lo melhor e mais firmemente. Em Romajuntei-me ainda com os que se diziam “santos”, falsos e enganadores. E não sóconvivia com os ouvintes, entre os quais se contava o dono da casa em que euadoecera e convalescera – mas também com os que se chamam “eleitos”.

Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei queestranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em meter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado,quando agia mal, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes,gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava emmim, mas que não era eu. Na verdade, eu era tudo aquilo, embora minhaimpiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meupecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execráveliniqüidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, aque vencesses minha alma para minha salvação. Ainda não tinhas posto guardadiante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim deque meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpaspara seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual eu aindamantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado depoder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a

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segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade efrouxidão.

Nesse tempo, veio-me à mente a idéia de que os filósofos chamados acadêmicoshaviam sido mais prudentes que os outros, por sustentarem que se deve duvidarde tudo, e que nenhuma verdade pode ser compreendida pelo homem. Julgueientão que era esse o seu pensamento, como geralmente se crê, não tendo aindacompreendido suas verdadeiras intenções.

Quanto a meu hospede, não me furtei de admoestar sua excessiva credulidade comque aceitava as fábulas de que estavam cheios os livros dos maniqueus. Todavia,tinha mais amizade com tais homens do que com os estranhos à sua heresia. Éverdade que já não a defendia com a antiga animosidade; mas sua familiaridade –em Roma havia muitos deles ocultos – tornava-me bastante negligente paraprocurar outra coisa. Desesperava eu principalmente de poder achar a verdadeem tua Igreja, ó Senhor dos céus e da terra, Criador de todas as coisas visíveis einvisíveis, verdade da qual eles me afastavam. Parecia-me mui torpe acreditar quetinhas figura de carne humana, e que estavas limitado pelos contornos de umcorpo como o nosso. E quando queria pensar em meu Deus, não o sabia imaginarsenão com massa corpórea – pois não me parecia que pudesse existir algodiferente – esta era a causa principal e quase única de meu erro inevitável.

Daqui se gerou também minha crença de que o mal tivesse substância, tambémcorpórea, massa negra e disforme, ora espessa – a que chamavam terra – oratênue e sutil, como o ar, a qual julgava ser um espírito maligno que investia sobrea terra. E visto que minha piedade, por pouca que fosse me obrigava a pensar queum Deus bom não podia criar nenhuma natureza má, eu imaginava duassubstâncias antagônicas, ambas infinitas, a do mal um pouco menor, a do bem umpouco maior; e deste princípio pestilencial originavam-se as demais blasfêmias.Com efeito, quando meu espírito se esforçava por voltar à fé católica, erarechaçado porque minha idéia de fé católica não era correta. E me parecia sermais piedoso, ó Deus, a quem louvam em mim tuas misericórdias, julgar-te infinitopor todas as partes, com exceção de um aspecto, a substância do mal, onde eraforçoso reconhecer teus limites, do que julgar-te limitado por todas as partes pelasformas do corpo humano.

Também tinha como melhor admitir que não havias criado nenhum mal – o qualaparecia à minha ignorância não só como substância, mas como substânciacorpórea, por eu não poder conceber o espírito senão como corpo sutil difundidopelos espaços – do que crer que a natureza do mal, tal como a imaginava,

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procedesse de ti.

Também supunha que nosso Salvador, teu Filho Unigênito, houvesse surgido, paranos salvar, dessa substância luzidíssima de teu corpo. A seu respeito, nadaaceitava senão o que me sugeria minha louca imaginação. E por isso julgava quetal natureza não podia nascer da Virgem Maria sem se ajuntar com a carne, masnão via como poderia juntar-se à carne sem se corromper; por isso tinha medo deacreditar em sua encarnação, para não me ver obrigado a julgá-lo corrompido pelacarne.

Sem dúvida agora teus fiéis irão sorrir, branda e amorosamente, se lerem estasminhas confissões; mas eu, realmente, era assim.

CAPÍTULOXI-Desculpasdosmaniqueus

Além de tudo, eu já não estava convencido que se pudessem defender os pontosque os maniqueus criticavam em tuas Escrituras. Todavia, desejava por vezesdiscutir com sinceridade cada um desses pontos com algum varão, grandeconhecedor de seus livros, para lhe indagar a opinião. Quando ainda em Cartago,já me despertara o interesse o discurso de um tal Elpídio, que falava e discutiapublicamente contra os maniqueus, alegando citações da Sagrada Escritura quenão me era fácil refutar.

Por sua vez, as respostas dos maniqueus me pareciam fracas; e mesmo assim nãoas expunham em público, mas somente entre nós, e muito em segredo, alegandoque as Escrituras do Novo Testamento haviam sido falsificadas por não sei quem,com o intuito de mesclar a lei dos judeus com a fé cristã; por isso eles próprios nãopodiam mostrar nenhum exemplar sem ser apócrifo.

Mas o que principalmente me mantinha cativo, e como que sufocado, eram as tais

“substâncias”, que pareciam oprimir-me, e debaixo de cujo peso, arquejante, meera impossível respirar a atmosfera pura e simples de tua verdade.

CAPÍTULOXII-OsestudantesdeRoma

Com toda diligência comecei a pôr em prática a tarefa que me levara a Roma,ensinar a arte retórica, e comecei por reunir alguns estudantes em casa, para me

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tornar conhecido deles, e, por seu intermédio, dos demais.

Mas logo vim a saber, com surpresa, que os estudantes de Roma praticavamoutras artimanhas, que eu não havia experimentado na África. Se bem eraverdade, como me haviam assegurado, que em Roma não ocorriam as mesmasviolências dos jovens corrompidos de Cartago, também me afirmavam que aqui osestudantes, aos grupelhos, deixavam de repente de assistir às aulas, passandopara outro professor, com o fim de não pagar o devido salário, faltando assim aoscompromissos e desprezando a justiça por amor ao dinheiro.

Também a estes odiava meu coração, porém, não com rancor perfeito, porque narealidade, mas os aborrecia pelo prejuízo que me podiam causar do que pelasimples injustiça de seu comportamento. Sem dúvida são infames os que assimagem, e se maculam longe de ti, amando passatempos efêmero e a recompensa delodo, que imundece as mãos ao ser colhida, agarrando-se a um mundo fugaz, edesprezando a ti, que permaneces eternamente, a ti que chamas e perdoas à almahumana adúltera quando se volta para ti. Ainda agora aborrece-me gente tãodepravada e sem modos, embora agora deseje que se corrijam, para que prefiramao dinheiro a ciência que aprendem, e à essa ciência prefiram a ti, Deus, verdade eabundância de verdadeiro bem e paz castíssima. Mas naquele tempo – confesso –preferia que não fossem maus para meu interesse do que bons por teu amor.

CAPÍTULOXIII-ViagemaMilão,SantoAmbrósio

Por isso, quando da cidade de Milão escreveram ao prefeito de Roma pedindo paralá um professor de retórica, com viagem paga pelo Estado, eu mesmo solicitei esseemprego por intermédio dos mesmos amigos, ébrios com as vaidades dosmaniqueus, dos quais ia-me separar.

Tanto eles como eu, porém, o ignorávamos. Símaco, então prefeito da cidade,propôs-me o tema de um discurso, e sendo eu aprovado, mandou-me para Milão.

Chegado a Milão, visitei o bispo Ambrosio, famoso na terra por suas qualidades,piedoso servo teu, cuja eloqüência distribuía zelosamente entre teu povo a flor deteu trigo, a alegria do azeite e a sóbria embriaguez de teu vinho. A ele era euconduzido por ti sem o saber, a fim de que ele me conduzisse a ti conscientemente.

Esse homem de Deus recebeu-me paternalmente, e se interessou muito por minhaviagem, como bispo. Comecei a amá-lo; a princípio, não como mestre da verdade,

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que eu desesperava de achar em tua Igreja, mas pela sua amabilidade paracomigo. Ouvia-o atentamente quando pregava ao povo, não com espíritoadequado, mas como se quisesse sondar sua eloqüência, para ver se correspondiaà sua fama, ou se era maior ou menor que a que se dizia; ficava suspenso das suaspalavras, mas indiferente ao conteúdo, coisa que eu até desprezava. Deleitava-mecom a suavidade dos sermões, os quais, embora mais eruditos que os de Fausto,eram contudo, menos alegres e envolventes no estilo. Quanto à substância de taissermões não havia comparação, pois Fausto se perdia por entre as fábulas dosmaniqueus, e Ambrosio ensinava claramente a mais sã doutrina da salvação. Masa salvação anda longe dos pecadores, tal como eu era então. Todavia,insensivelmente e sem o saber, ia-me aproximando dela.

CAPÍTULOXIV-Catecúmeno

Não cuidava eu de aprender o que dizia, interessado apenas em como o dizia – eraeste gosto frívolo o único que ainda permanecia em mim, perdidas já asesperanças de que se abrisse para o homem o caminho para ti. Todavia,infiltravam-se em meu espírito, juntamente com as palavras que me agradavam,as coisas que desprezava. Já não me era possível discernir umas das outras, eassim, ao abrir meu coração à sua eloqüência, nele entrava ao mesmo tempo e aospoucos, a verdade.

Parece-me, de bom início, que seus ensinamentos podiam ser defendidos e que asafirmações de fé católica – que eu julgava impotente contra os ataques dosmaniqueus – não eram absolutamente temerárias, principalmente depois de meserem explicados uma, duas ou mais vezes, as passagens obscuras do VelhoTestamento que, interpretadas no sentido literal, me davam a morte. Assim,interpretados no sentido espiritual muitos dos textos daqueles livros, comecei arepreender aquele meu desespero, que me levava a crer na impossibilidade deresistir aos que aborreciam e zombavam da lei e dos profetas.

Contudo, não me julgava na obrigação de segui o caminho dos católicos, só porquetambém esta fé podia ter defensores doutos, capazes de refutar objeções comeloqüência e lógica. Nem por isso me parecia que devia condenar a fé que antesabraçara, pois as armas de defesa eram iguais. Assim, de um lado a fé católica nãome parecia vencida, contudo ainda não me parecia vencedora.

Apliquei então todas as forças de meu espírito para ver se podia de algum modo,com argumentos decisivos, convencer de falsidade os maniqueus. A verdade é quese eu então tivesse podido conceber uma substância espiritual, imediatamente

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todas as invenções daqueles se esvaeceriam e seriam arrancadas de minha alma.Mas não podia.

Contudo, refletindo e comparando sempre mais o que os filósofos haviam teorizadoacerca do mundo material e de toda a natureza sensível, cada vez mais mecapacitava de que eram muito mais prováveis as doutrinas destes que as dosmaniqueus. Por isso, duvidando de tudo e flutuando por entre as doutrinas, àmaneira dos acadêmicos, como os julga a opinião geral, resolvi abandonar osmaniqueus, julgando que enquanto tivesse em dúvida não devia permanecer emuma seita à qual eu já antepunha alguns filósofos. Recusava-me, contudo,terminantemente, a confiar-lhes a cura das enfermidades de minha alma, por ser-lhes desconhecido o nome salutar de Cristo.

Por isso tudo, resolvi tornar-me catecúmeno na Igreja Católica, que me havia sidorecomendada por meus pais, até que alguma claridade certa viesse dirigir meuspassos.

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LIVROSEXTO

CAPÍTULOI-Esperanças

Ó minha esperança desde a minha juventude! Onde estavas, ou a que lugar tehavias retirado? Acaso não foste tu quem me criou, diferenciando-me dos animais,fazendo-me mais sábio que as aves do céu? Mas eu caminhava por trevas eresvaladouros, e te buscava fora de mim, e não encontrava o Deus de meucoração; caí nas profundezas do mar. Eu perdera a confiança e desesperava deencontrar a verdade.

Minha mãe já viera a meu encontro, forte em sua piedade, seguindo-me por mar epor terra, confiando em ti em todos os perigos. Até na travessia do mar procelosoela encorajava os marinheiros – os que costumam animar os navegadoresinexperientes quando se perturbam – garantia-lhes que chegariam a salvo ao fimda viagem, porque assim lho tínheis prometido em visão.

Encontrou-me em grave perigo, já sem esperança de buscar a verdade. Contudo,quando lhe disse que já não era maniqueísta, sem ser ainda católico, não pulou dealegria, como quem ouve algo inesperado, pois já estava segura sobre aqueleponto de minha miséria, que a fazia chorar por mim como por um morto quehaveria de ressuscitar. Oferecia-me continuamente a ti em pensamento, comosobre um esquife, para que dissesses ao filho da viúva: Jovem, eu te digo: levanta-te, e seu filho revivesse, e voltasse a falar, e o entregasses à sua mãe.

Nem se abalou seu coração com alegria exagerada ao ouvir quanto já se haviacumprido daquilo que com tantas lágrimas te suplicava todos os dias. Viu-me,senão na posse da verdade, já afastado do erro. E como estava certa de que meconcederias o que faltava – pois lhe havias prometido a graça total – respondeu-me, com muita calma e com o coração cheio de confiança, que esperava em Cristoque, antes de sair desta vida, me havia de ver católico fiel.

Foi o que me disse. Mas diante de ti, ó fonte das misericórdias, redobrava assúplicas e lágrimas, para que apressasses teu auxílio e aclarasses minhas trevas. Iacom maior solicitude à igreja para ficar suspensa dos lábios de Ambrosio, como dafonte de água viva que jorra para a vida eterna. Minha mãe amava este varãocomo a um anjo de Deus, pois sabia que fora ele quem me fizera mergulharnaquela dúvida, pela qual antevia, segura, que eu haveria de passar daenfermidade pela saúde, depois de um perigo mais grave, que os médicos chamam

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de crítico.

CAPÍTULOII-ObediênciadeMônica

Assim, um dia, como costumava na África, levou papas, pão e vinho puro àsepultura dos mártires, mas o porteiro não quis permitir suas ofertas. Quandosoube que essa proibição vinha do bispo, resignou-se tão piedosamente eobedientemente, que eu mesmo me admirei de quão facilmente passasse acondenar o hábito, e não a criticar a proibição de Ambrósio.

É que seu espírito não era dominado pela embriaguez, nem o amor do vinho aincitava ao ódio da verdade, como acontece a muitos homens e mulheres, que aoouvir o cântico da sobriedade, sentem a mesma repulsa que os ébrios diante deum copo d’água. Mas ela, ao trazer as cestas com as oferendas usuais para seremprovadas e repartidas, não bebia mais que um pequeno copo de vinho, temperadosegundo seu paladar bastante sóbrio e condizente com sua dignidade. E se erammuitos os sepulcros que devia honrar desse modo, levava sempre o mesmo copo,usando-o para todos, de modo que o vinho não só estava muito aguado, mas atéquente.

Dividia-o em pequenos tragos com as pessoas presente, porque buscava a piedade,e não o prazer.

Tão logo porém soube que o ilustre pregador e mestre a verdade proibira talcostume – mesmo para os que o praticavam sobriamente, para não dar aos ébriosazo de se embriagarem, e porque essa espécie de parentales (festas pagãs que secelebravam de 13 a 21 de fevereiro consagradas especialmente aos deuses lares)era muito semelhante à superstição dos pagãos – ela se absteve de muito boavontade. No lugar da cesta cheia de frutos da terra, aprendeu a levar ao túmulodos mártires um coração cheio de puros desejos, dando o que podia aos pobres.

Celebrava assim a comunhão com o corpo do Senhor, cuja paixão serviu de modeloaos mártires em seu sacrifício e coroação.

Mas, parece-me, meu Senhor e meu Deus – e assim o crê meu coração em tuapresença – que minha mãe não teria abdicado tão facilmente desse costume – quetodavia era necessário cortar – se outro a quem não amasse tanto como aAmbrosio o tivesse proibido. De fato, ela o estimava muito por ter-me salvado, eele a tinha em grande estima pela religiosidade e solicitude com que freqüentava

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a igreja, na prática das boas obras. Por isso, muitas vezes quando me encontravacom ele, irrompia em louvores à minha mãe, e me felicitava por ser seu filho.Ignorava o filho que ela tinha em mim, filho que duvidava de tudo, e julgavaimpossível achar o caminho da vida.

CAPÍTULOIII-Primeirasconquistas

Na oração, eu ainda não implorava o teu socorro, mas meu espírito achava-seocupado em investigar e inquieto por discutir. Considerava ao próprio Ambrósiocomo homem feliz aos olhos do mundo, vendo-o tão honrado pelas mais altasautoridades. Somente seu celibato me parecia difícil. Mas eu não podia aquilatar,por nunca as ter experimentado, as esperanças que o animavam, nem a luta quetinha de travar contra as tentações de sua alta posição; nem conhecia os consolosna adversidade, nem os saborosos deleites do interior do seu coração quandoruminava teu alimento. Ele, por sua vez, desconhecia minha inquietação e oabismo em que estava para cair, porque não lhe podia perguntar, como desejava,o que queria. Uma multidão de homens de negócios, a quem ele acudia nasdificuldades, impediam-me de o ouvir ou de lhe falar.

No bem pouco tempo que lhe deixavam livre, dedicava-se a reparar as forças docorpo com o alimento necessário, ou as do espírito, com a leitura. Quando lia, seusolhos percorriam as páginas e seu espírito penetrava-lhes o sentido, mas sua voz esua língua repousavam.

Muitas vezes, estando eu presente – pois ninguém estava proibido de entrar, nemera costume anunciar quem se apresentava – vi-o ler em silêncio, e nunca de outramaneira. E ali ficava eu por muito tempo calado – pois, quem se atreveriamolestar um homem tão atento? – e por fim me afastava. Conjeturava eu que noscurtos momentos que encontrava para repousar o espírito, livre do tumulto dosnegócios alheios, não queria que o ocupassem com outra coisa. Lia em silêncio (eracomum naqueles tempos ler em voz alta, tanto pela dificuldade dos textos comopela escassez dos livros, muitas vezes lidos em comum), talvez para evitar quealgum ouvinte, suspenso e atento à leitura, encontrando alguma passagemobscura, pedisse explicações, ou o obrigasse a dissertar sobre questões difíceis.Gastaria o tempo em tais coisas, e impedido de ler todos os livros que desejava,embora fosse mais provável que lesse em silêncio para poupar a voz, quefacilmente lhe enrouquecia.

Em todo caso, qualquer que fosse sua intenção, só poderia ser boa em um homemcomo ele.

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O certo é que não se apresentava nenhum ensejo para interrogar a teu santo-oráculo que habitava em seu coração sobre o que desejava, exceto quando lheouvia uma breve resposta, e minhas inquietudes pediam muito tempo e vagarpara consultá-lo, o que nunca encontrava. Ouvia-o, é certo, explicar perfeitamenteao povo a palavra da verdade todos os domingos, persuadindo-me sempre mais deque podiam ser desatados todos os nós das calúnias sagazes que aqueles que meenganavam teciam contra os livros sagrados.

Logo verifiquei que vossos filhos espirituais, a quem regeneraste no sei da santomãe, a Igreja, não interpretavam aquelas palavras: “Fizeste o homem à suaimagem” – de modo a acreditar que estavas encerrado na forma do corpo humano.E embora eu então não soubesse, nem sequer suspeitasse de longe o que fossesubstância espiritual – alegrei-me com isso, envergonhando-me por ter ladradodurante tantos anos, não contra a fé católica, mas contra invenções de minhainteligência carnal. Tinha sido ímpio e temerário por criticar uma doutrina que eudeveria ter antes procurado conhecer. Mas tu – que estás ao mesmo tempo tãoalto e tão perto de nós, tão escondido e tão presente, tu que não tens membrosmaiores nem menores, que estás inteiro em toda parte sem estar todo emnenhum lugar, certamente não tens nossa forma corpórea. Contudo, fizeste ohomem à tua imagem, e eis que ele, da cabeça aos pés, é limitado pelo espaço.

CAPÍTULOIV-Oespíritodaletra

Não compreendendo como poderia se espelhar esta tua imagem ao homem, eudeveria bater à porta, perguntando-te de que modo deveria entender essa crença,em lugar de me opor insolentemente, como se ela fosse o que eu imaginava. Eassim, tanto mais fortemente me roia o coração o desejo de ter alguma certeza,quanto mais me envergonhava de ter sido o joguete dos que me haviamprometido a certeza, e por ter defendido com pueril empenho e animosidadetantas coisas duvidosas como sendo verdadeiras.

Depois vi a razão por que eram falsas. Mas já estava então certo de que elas eramduvidosas, embora as tivesse julgado irrefutáveis por algum tempo, quando, comminhas cegas discussões, combatia tua Igreja Católica. Embora então não areconhecesse como mestra da verdade, pelo menos sabia que não ensinava aquilode que eu a acusava.

Daí minha confusão, e a conversão que se operava em meu pensamento, ó meuDeus, vendo que tua Igreja única, corpo de teu Filho único, na qual, ainda meninome ensinaram o nome de Cisto, não gostava de bagatelas infantis. Regozijava-me

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que em sua doutrina sadia nada havia que te representasse, a ti, Criador de todasas coisas, circunscrito numa forma e num espaço que, embora amplo, seria contudolimitado.

Também me alegrava de que as Antigas Escrituras da lei e os profetas já não mefossem propostas na interpretação anterior, em que me pareciam absurdas,quando eu acusava teus santos de pensamentos que nunca haviam tido. Alegrava-me ouvir a Ambrósio dizer muitas vezes em seus sermões ao povo, recomendandocom muito zelo a verdade: a letra mata e o espírito vivifica. E, levantando o véumístico, revelava-me o significado espiritual de passagens que, segundo a letra,pareciam ensinar um erro. Nada dizia que me chocasse, embora eu ainda ignorassese ele dizia a verdade.

Abstinha-se meu coração de aderir a qualquer doutrina, temendo cair em umprecipício; mas esta suspensão matava-me muito mais, porque queria estar tãocerto das coisas que não via como o estava de que sete e três são dez. Eu nãoestava tão louco para pensar que a inteligência alcançaria tal evidência. Mas,assim como entendia isso, queria entender igualmente as outras verdades, querfossem materiais, que não tinha presentes a meus sentidos, quer espirituais, nasquais não sabia pensar senão de modo material.

É verdade que poderia sarar pela crença, e assim, purificado pela fé o olhar demeu espírito, pudesse dirigir-se de algum modo à tua verdade, sempre imutável eindefectível. Mas, como sói acontecer a quem caiu nas mãos de um médico ruim, eque depois receia as mãos de um bom, assim me sucedia quanto à saúde de minhaalma que, não podendo sarar senão pela fé, recusava-se a sarar por temor de crer,novamente, em falsidades. Minha alma resistia às tuas mãos, ó meu Deus, quepreparaste o remédio da fé, e o derramaste sobre as enfermidades da terra,dando-lhe tanta autoridade e eficácia.

CAPÍTULOV-OsmistériosdaBíblia

Desde esse tempo, recaía minha preferência na doutrina católica, porque ajuizavaque nela houvesse mais modéstia, e não mentira, ao impor a crença no que nãoera demonstrado – quer porque, mesmo havendo provas, estas não fossemacessíveis a todos, quer porque não existissem. Diferente do que ocorria entre osmaniqueus, que desprezavam a fé, e prometiam, com temerária arrogância, aciência, para depois nos obrigarem a acreditar em uma infinidade de fábulascompletamente absurdas, impossíveis de demonstrar.

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Depois, com suavidade e misericórdia, começaste, Senhor, a cuidar e à prepararaos poucos o meu coração, e foi aceitando tudo o que eu acreditava sem o tervisto, e a cuja realização não presenciara. Tantos fatos da história dos povos,tantas notícias sobre lugares e cidades que não vira, tudo o que aceitavaacreditando em amigos, em médicos e em outras pessoas que, se não asacreditássemos, não poderíamos dar um passo na vida. E, sobretudo, que féinabalável eu tinha em ser filho de meus pais, coisa que não poderia saber semprestar fé no que ouvia. Então me convenceste de que os dignos de censura nãosão os que acreditam em teus livros, cuja autoridade estabeleceste entre quasetodos os povos, mas o que não crêem neles. E eu não devia dar ouvidos ao quetalvez me dissessem: “Como sabes que esses livros foram dados aos homens peloEspírito de Deus, único e verdadeiro?” Ora, era precisamente isto o que eu deviacrer, porque nenhuma objeção caluniosa ou agressiva, das que eu havia lido nosescritos contraditórios dos filósofos, nunca conseguiram arrancar-me a certeza detua existência, embora ignorasse o que eras, e a certeza de que o governo dascoisas humanas está em tuas mãos.

Eu acreditava nisso, ora mais fortemente, ora mais frouxamente; mas em tuaexistência e que cuidava do gênero humano, sempre acreditei, embora ignorasse anatureza, ou qual o caminho que nos conduz ou reconduz a ti. Por isso, persuadidode nossa impotência para achar a verdade só por meio da razão, e que para issonos é necessária a autoridade das Sagradas Escrituras, comecei a crer que nuncaterias conferido tão soberana autoridade a essas Escrituras em todo o mundo, senão quiséssemos que crêssemos e te buscássemos por elas.

Sobre os mistérios em que costumava tropeçar, e que ouvira explicar muitas vezesde modo aceitável, eu os atribuía à sua profundidade, parecendo-me a autoridadedas Escrituras tanto mais venerável e digna da fé sacrossanta, quando de leiturafácil para todos. E ela reserva porém, a uma percepção mais aguda a majestade deseu mistério. Pela clareza da linguagem e sua simplicidade do estilo, ela se abre atodos e, no entanto, estimula a reflexão dos que não são levianos de coração.Recebe a todos em seu vasto seio, mas não deixa ir a ti, por caminhos estreitos,senão um pequeno número; muito mais, porém, do que seriam se ela não tivesseessa elevada autoridade, e não atraísse as turbas do regaço de sua santahumildade.

Pensava eu nessas coisas, e me assistias; suspirava, e me ouvias, vacilava, e megovernavas; seguia pela via larga do mundo, e não me abandonavas.

CAPÍTULOVI-Alegriadebêbado

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Eu aspirava às honras, às riquezas e ao matrimonio, e tu te rias de mim. E nessesdesejos sofria grandes amarguras; e tu me eras tanto mais propício quanto menosconsentias que me fosse doçura o que não eras tu. Vê, Senhor, meu coração, tuque quiseste que recordasse estes fatos e os confessasse. Esta alma, a quemlivraste do visco tenaz da morte, une-se agora a ti.

Como era infeliz! E tu fustigavas o mais dolorido da ferida, para que deixasse tudo,e se convertesse a ti, que estás acima de tudo. Sem ti nada existiria. Ferias minhaalma para que voltasse para ti, e fosse curada.

Que miserável era eu então! E como agiste para que eu sentisse minha desgraça?Era o dia em que me preparava para declamar os louvores do imperador; neles iamentir muito e, mentindo granjearia a aprovação dos que sabiam das mentiras.Preocupado, meu coração se consumia com a febre de pensamentos impurosquando, ao passar por uma rua de Milão, vi um mendigo já bêbado, creio eu, masbem humorado e divertido. Suspirei então, e falei aos amigos que meacompanhavam sobre as muitas dores que nos provocavam nossas loucuras. Comtodos os esforços, quais eram os que então me afligiam, apenas arrastava a cargade minha infelicidade cada vez mais pesada, aguilhoado por meus apetites, paraconseguir somente uma alegria tranqüila, na qual já nos havia precedido aquelemendigo; alegria que nunca talvez alcançássemos. O que ele havia conseguido comumas poucas moedas de esmola, era exatamente o que eu aspirava com tãoárduos caminhos e rodeios: a alegria de uma felicidade temporal.

A alegria do mendigo não era certamente verdadeira, mas a que eu buscava comminhas ambições era ainda mais falsa. Ele, pelo menos, estava alegre, e eu,angustiado; ele seguro, e eu inquieto. Se alguém me perguntasse se preferia estaralegre ou triste eu responderia: alegre; mas se me perguntassem novamente sequeria ser como aquele mendigo ou ser como eu era, sem dúvida escolheria a mimmesmo, embora cheio de cuidados e de temores. Mas isto eu faria por maldade oucom razão? Eu não devia preferir-me ao mendigo por ser mais culto, pois a ciênciapara mim não era fonte de felicidade, mas apenas um meio de agradar aoshomens, e não instruí- los. Por isso, Senhor, quebravas meus ossos com a vara detua disciplina.

Longe de minha alma os que dizem: “Importa levar em conta a causa da alegria; omendigo se alegrava com a embriaguez, e tu com a glória”. Que glória, Senhor?Com a que não está em ti. Porque como aquela não era verdadeira alegria, assimaquela glória não era a verdadeira, antes perturbava mais ainda meu coração. Oébrio, naquela mesma noite, curaria sua embriaguez, enquanto eu já dormia com a

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minha, e me levantara com ela, e tornaria a dormir e a levantar com ela, e tusabes quantos dias!

Importa, é certo, conhecer os motivos da alegria de cada um, eu o sei, e a alegriada esperança fiel dista infinitamente daquela vaidade. Mas então, havia entre nósoutra diferença, pois certamente ele era o mais feliz, não só porque transbordavade alegria, enquanto eu me consumia de cuidados, mas também porque elecomprara o vinho desejando a felicidade dos benfeitores, enquanto eu procuravacom mentiras uma vã ostentação.

Muitas coisas disse então sobre isso a meus amigos, e muitas vezes eu costumavaexaminar minha vida, e achava-me infeliz. Isso me afligia e redobrava minha dor;se me sorria alguma ventura, não acudia para apanhá-la, porque escapava-me dasmãos antes mesmo que a pudesse alcançar.

CAPÍTULOVII-Alípio

Os que convivíamos em boa amizade lamentávamos estas coisas, mas de modoespecial e muito intimamente eu falava com Alípio e Nebrídio. Alípio, como eu, erado município de Tagaste, nascido de uma das melhores famílias da cidade. Era maisjovem do que eu, pois havia sido meu discípulo quando comecei a ensinar em nossacidade, de depois em Cartago. Ele me queria muito, por eu lhe parecer bom edouto, e eu o apreciava por sua grande inclinação à virtude, que já se manifestavaem tenra idade.

Contudo, o abismo dos costumes cartagineses, onde ferve o gosto dos espetáculosfrívolos, engolfara-o na loucura dos jogos circenses. Alípio revolvia-semiseravelmente nesse abismo na época em que eu ensinava retórica na escolapública, mas ele não me tinha como mestre por causa de uma desavença quesurgira entre mim e seu pai. Eu sabia que Alípio amava morbidamente o circo, eisso muito me angustiava, por me parecer que se iam se perder, se já nãoestivessem, magníficas esperanças. Mas não achava meios de alertá-lo erepreendê-lo, nem pela amizade, nem pelo magistério, pois julgava que tinhasobre mim a mesma opinião que seu pai. Mas não era assim. Pondo de parte avontade paterna sobre isso, começou a me cumprimentar, comparecia à minhaaula, ouvia-me um pouco, e logo se retirava.

Eu já me esquecera de alertá-lo para não desperdiçar seu talento tão precioso comaquele cego e apaixonado gosto por jogos fúteis. Mas tu, Senhor, que governas o

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que criaste, não te esqueceste de que Alípio deveria ser ministro de teussacramentos entre teus filhos; e para que fosse atribuída claramente a ti a suaemenda, a realizaste por meu intermédio, mas sem que eu o soubesse.

Um dia, estando sentado ao lugar de costume, diante de meus discípulos, veioAlípio, saudou-me, sentou-se, atento ao assunto de que eu tratava. Por acasotrazia eu nas mãos uma lição; para melhor expô-la, e tornar mais clara e agradávelsua explicação, pareceu-me oportuno fazer uma comparação com os jogoscircenses, com mordaz sarcasmo aos escravos dessa loucura. Mas tu sabes, Senhor,que então não pensei em curar Alípio dessa peste. Todavia tomou para si minhaspalavras, acreditando que eu só dissera por sua causa. Qualquer outro tomariaisso com desgosto; mas ele, jovem virtuoso, tomou-o como causa para censurar a sipróprio, e para me estimar ainda mais.

Já havias dito outrora, e escrito em teus livros: “Corrige o sábio, e ele te amará”.Eu não o repreenderia, mas tu, servindo-te de todos, quer eles o saibam ou quernão, de acordo com a justa ordem que conheces, fizeste de meu coração e deminha língua carvões abrasadores, para cauterizar e curar aquela alma tãopromissora, mas pervertida.

Senhor, cale teus louvores quem não percebe tuas misericórdias, que eu teconfesso do mais íntimo de meu ser. Depois de ouvidas minhas palavras, Alípiosaiu daquele fosso profundo, onde gostosamente se enterrara, cegando-se com otorpe prazer, e sacudiu sua alma com corajosa temperança, afastando de si todasas imundícies dos jogos circenses, para onde nunca mais voltou.

Depois venceu a resistência paterna para me escolher como mestre, e seu paicedeu e consentiu. Voltando a ser meu discípulo, foi envolvido comigo nasuperstição dos maniqueus, apreciando neles aquela ostentação de continência,que ele julgava legítima e sincera. Na verdade, porém, era um desvario sedutor,um laço onde caíam almas preciosas, ainda incapazes de avaliar a sublimidade davirtude e, por isso mesmo, vítimas fáceis da aparência que mascara uma virtudehipócrita e fingida.

CAPÍTULOVIII-Aatraçãodoanfiteatro

Não querendo por nada deixar a carreira mundana, tão decantada por seus pais,partira antes de mim para Roma, a fim de estudar Direito; lá se deixou arrebatarde modo incrível, e com incrível avidez, pelos espetáculos de gladiadores.

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A princípio, detestava e aborrecia espetáculos semelhantes. Certa vez,encontrando-se com alguns amigos e condiscípulos que voltavam de um jantar,apesar de resistir, foi arrastado por eles com amigável violência para o anfiteatro,onde naquele dia se celebravam jogos funestos e cruéis.

Dizia-lhes Alípio: “Mesmo que arrasteis para lá meu corpo, e o retenhais ali,podereis por acaso obrigar minha alma e meus olhos a contemplar taisespetáculos? Estarei ali como ausente, e assim triunfarei deles e de vós”. Maseles, não fazendo caso de tais palavras, levaram-no, talvez para verificar sepoderia ou não cumprir a palavra.

Quando chegaram, ocuparam os lugares que puderam, pois todo o anfiteatro jáfervia nas paixões mais selvagens. Alípio, fechando a porta dos olhos, proibiu quesua alma se envolvesse em tal crueldade. E oxalá também tivesse tapado osouvidos! Porque, em um lance da luta, foi tão grande o clamor da multidão que,vencido pela curiosidade, e julgando-se preparado para desprezar e vencer a cena,fosse o que fosse, abriu os olhos. Foi logo ferido na alma mais profundamente doque a ferida física do gladiador a quem desejou contemplar e caiu. Sua queda foimais miserável que a do gladiador, causa de tantos gritos. Estes, entrando-lhepelos ouvidos, abriram-lhe os olhos, para ferir e abater sua alma, mais temeráriado que forte, e tanto mais fraca por apoiar-se em si mesma, em lugar de se apoiarem ti. Logo que viu sangue, bebeu junto a crueldade, e não se afastou doespetáculo; pelo contrário, prestou mais atenção. Assim, sem o saber, absorvia ofuror popular e se deleitava naquela luta criminosa, inebriado de sangrentoprazer.

Já não era o mesmo que ali viera, era agora mais um da turba à qual se misturara,digno companheiro daqueles que para ali o arrastaram.

Que mais direi? Contemplou o espetáculo, gritou, apaixonou-se, e foi contaminadode louco ardor, que o estimulava a voltar, não só com os que o haviam levado,mas à sua frente, e arrastando a outros. Mas tu te dignaste, Senhor, livrá-lo desteestado com mão forte e misericordiosa, ensinando-o a não confiar em si, mas em ti,embora isto acontecesse muito tempo depois.

CAPÍTULOIX-Alípio,ladrãoacontragosto

Contudo, essa aventura gravara-se em sua memória como remédio para o futuro.O mesmo ocorreu com outro fato, quando ainda era estudante em Cartago, e

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seguia meus cursos.

Era meio-dia. Alípio estava repassando uma declamação, segundo o costume dosestudantes, quando foi preso como ladrão pelos guardas do foro. Sem dúvida opermitiste, meu Deus, apenas para que esse jovem, tão grande no futuro,começasse já a aprender que, ao julgar outrem, ninguém deve condenar ninguémlevianamente, e com temerária credulidade.

Alípio, pois, passeava diante do tribunal, sozinho, com as tábuas e o estilete,quando um jovem estudante, o verdadeiro ladrão, levando escondido ummachado, sem que Alípio o percebesse, entrou pelas grades que rodeiam a rua dosbanqueiros, e se pôs a cortar o seu chumbo.

Ao ruído dos golpes, os banqueiros que estavam embaixo alvoroçaram-se, echamaram gente para prender o ladrão, fosse quem fosse. Mas este, ouvindo ovozerio, fugiu depressa, abandonando o machado para não ser preso com ele. Ora,Alípio, que não o vira entrar, viu-o sair e fugir precipitadamente. Curioso, porém,para saber a causa, entrou no lugar. Encontrou o machado e se pôs, admirado, aexaminá-lo. Bem nessa hora chegaram os guardas dos banqueiros, e osurpreendem sozinho, empunhando o machado, a cujos golpes, alarmados, haviamacudido. Prendem-no, levam-no, e gloriam-se, diante dos inquilinos do foro por terapanhado o ladrão em flagrante, e já o iam entregar aos rigores da justiça.

Mas a lição devia ficar por aqui, Senhor, porque imediatamente saíste em socorrode sua inocência, da qual eras única testemunha. Quando o conduziam à prisão ouao suplício, veio-lhes ao encontro um arquiteto, encarregado superior da direçãodos edifícios públicos. Os guardas alegraram-se com esse encontro, pois sempreque faltava alguma coisa no foro o magistrado suspeitava deles. Agora ele saberiaquem era o verdadeiro ladrão. Mas este senhor tinha visto várias vezes Alípio nacasa de um senador, a quem visitava com freqüência. Reconheceu-o, tomou-o pelamão, separou-o da turba, e perguntou-lhe a causa de tamanha desgraça.

Informado do que se passara, o arquiteto mandou à turba alvoroçada e enfurecidacontra Alípio que o seguisse. Quando chegaram à casa do jovem autor do roubo,achava-se à porta um menino escravo, novo demais para recear comprometer seuamo, e que poderia revelar tudo, porque o seguira até o foro. Alípio, aoreconhecê-lo, apontou-o ao arquiteto; este, mostrando-lhe o machado, lhe disse:“Sabe de quem é este machado?” Ao que o menino respondeu sem demora:

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“Nosso”. Depois de interrogado, confessou o resto.

Deste modo, o processo foi transferido para aquela casa, para confusão da turba,que já imaginara tripudiar de Alípio. O futuro dispensador de tua palavra, e juiz detantas causas de tua Igreja, saiu dessa aventura com mais experiência e sabedoria.

CAPÍTULOX-Ostrêsamigos

Encontrei Alípio em Roma, onde se uniu a mim com vínculo de amizade tãoestreito, que foi comigo para Milão, tanto para evitar nosso afastamento comopara exercer o Direito, embora mais para agradar aos pais do que por vontadeprópria. Já por três vezes fora assessor, sempre com admirável lisura, e ficando elemais admirado ainda de que juizes preferissem o dinheiro à inocência.

Ficou provada a integridade do seu caráter, não só contra os atrativos da cobiça,mas também contra o aguilhão do medo. Em Roma, era assessor do tesoureiro dasfinanças da Itália.

Havia nesse tempo um senador poderosíssimo, a quem estavam sujeitos muitosclientes, uns por benefícios, outros por terror. Segundo o costume dos poderosos,este senador tentou fazer não sei que coisa era proibida pelas leis, e Alípio se lheopôs. À tentativa de corrompê-lo, Alípio reconheceu com o riso. Zombou dasameaças que aquele lhe dirigiu, causando admiração geral pela rara qualidade desua alma, que não desejava a amizade e nem temia a inimizade de homem tãopoderoso, conhecido por seus inúmeros meios de prestar favores ou de prejudicar.Até o próprio juiz, de que Alípio era assessor, embora se opusesse também, não ofazia abertamente, responsabilizando a Alípio que, dizia ele, não lhe permitia fazero que desejava, porque, se acedesse – e era verdade – demitir-se-iaimediatamente.

Alípio quase se deixara seduzir pelo amor às letras, mandando copiar códigossegundo a tarifa paga aos trabalhos para o Estado; porém, consultando a justiça,inclinou-se pelo melhor, preferindo a integridade, que lhe proibia esta ação, aopoder que lha permitia.

Isso é fato pequeno, mas o que é fiel no pouco também o é no muito, e de modonenhum podem ser vãs aquelas palavras saídas da boca de tua Verdade. Se nãofordes fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? E se nasalheias não fordes fiéis, quem vos dará o que é vosso?

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Assim era então este amigo, tão intimamente unido a mim, e que comigo buscavao tipo de vida que deveríamos seguir.

Também Nebrídio deixou sua pátria, vizinha de Cartago, e a própria Cartago, ondegozava de boa fama. Abandonou as magníficas propriedades do pai, a casa e até aprópria mãe, que não o quis seguir; veio para Milão apenas para viver comigo, nabusca apaixonada da verdade e da sabedoria.

Assim como eu, ele suspirava, partilhando minha perplexidade, mostrando-seinvestigador ardoroso da vida feliz e indagador acérrimo das questões maisdifíceis.

Eram três bocas famintas que comunicavam mutuamente a própria fome,esperando que lhes desses comida no tempo oportuno. Na amargura, que graças àtua misericórdia sempre seguia nossas ações mundanas, se desejávamos entendera causa dos sofrimentos, encontrávamos trevas. Afastávamos gemendo e dizendo:Até quando durará este sofrimento? E isto repetíamos com freqüência, mas nãoabandonávamos nosso modo de vida, porque não víamos nenhuma certeza a quenos pudéssemos abraçar, se o abandonássemos.

CAPÍTULOXI-EntreDeuseomundo

Era com admiração que me recordava diligentemente do longo tempo decorridodesde meus dezenove anos, quando comecei a arder no desejo da sabedoria,propondo-me, quando a achasse, abandonar todas as vãs esperanças e enganosasloucuras das paixões.

Chegado porém aos trinta anos, ainda continuava preso ao mesmo lodaçal, ávidode gozar dos bens presentes, que me fugiam e me dissipavam. Entretanto, dizia:“Amanhã hei de encontrá- la; a verdade aparecerá clara, e a abraçarei. Faustovirá, e dará todas as explicações. Ó grandes varões da Academia: é verdade quenão podemos compreender nenhuma coisa com certeza para a conduto de nossavida?

“Mas não! Procuremos com mais diligencia, sem desesperarmos. Já não meparecem absurdas nas Escrituras as coisas que antes me pareciam tais: possocompreendê-las de modo diferente, mais razoável. Fixarei, pois, os pés naqueledegrau em que me colocaram meus pais quando criança, até que encontres averdade em sua evidência.

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“Mas onde e quando buscá-la? Ambrósio não tem tempo livre para me ouvir, e amim falta tempo para ler. E além do mais, onde encontrar os livros? E onde ouquando poderei comprá-los?

A quem hei de pedi-los?

“Repartamos o tempo, reservemos algumas horas para a salvação da alma. Nasceuuma grande esperança: a fé católica não ensina o que eu pensava, e eu a criticavalevianamente. Seus doutores têm como crime limitar Deus à figura humana; e euainda hesito em bater para que nos sejam reveladas as outras verdades! As horasda manhã eu dedico aos alunos; mas que faço das outras? Por que não as consagroa essa busca?

“Mas quando então, visitar os amigos poderosos, de cujos favores necessito?Quando preparar as lições que os alunos me pagam? Quando reparar as forças doespírito, descansando em algo aprazível?

“Perca-se tudo! Deixemos essas coisas vãs e fúteis. Entreguemo-nos por completo àbusca da verdade. A vida é miserável, e a hora da morte, incerta. Se esta mesurpreender de repente, em que estado sairei do mundo? E onde aprenderei o quedeixei de aprender aqui? Não serei antes castigado por essa negligência? Mas, ese a própria morte cortar e for o fim a todo cuidado e sentimento? Também seriaconveniente investigar este ponto. Mas afastemos tais pensamentos! Não é poracaso nem é em vão que se difunde por todo o mundo a fé cristã, com grandeprestígio. Deus jamais teria criado tantas e tais coisas por nós, se com a morte docorpo terminasse também a vida da alma. Porque hesitar, pois, em abandonar asesperanças do mundo para me consagrar à busca de Deus e da bem aventurança?

Mas espere um pouco! Os bens mundanos também têm seus deleites, que não sãopequenos. Não devo deixá-los sem pensar; seria feio ter de voltar a eles. Eis-meprestes a conseguir um cargo de honra. Que mais posso desejar? Tenho umamultidão de amigos poderosos. Sem me apressar muito poderia obter, no mínimo,uma presidência. Poderia então casar-me com uma mulher de alguma fortuna,para que meus gastos não fossem muito pesados.

Aqui estariam os limites de meus desejos. Muitos homens grandes e dignos deimitação, apesar de casados, dedicaram-se ao estudo da sabedoria.

Enquanto assim pensava, e os ventos cambiantes impeliam meu coração de um

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lado para outro, o tempo passava, e eu retardava minha conversão ao Senhor.Adiava de dia para dia o viver em ti, morrendo todavia todos os dias em mimmesmo. Amando a vida feliz, temia busca-la em sua morada; procurava-a fugindodela! Pensava que seria mui desgraçado se me visse privado das carícias damulher. Não pensava ainda no remédio de tua misericórdia, que cura estaenfermidade, porque nunca o havia experimentado. Julgava que a continênciafosse obra de nossa própria força, que eu pensava não ter. Eu era bastante nésciopara ignorar que ninguém, como está escrito, é casto sem que tu lhes dê a força.Essa força certamente ma darias se eu ferisse teus ouvidos com os gemidos deminha alma, e com fé firme lançasse em ti meus cuidados.

CAPÍTULOXII-Casarounão?

Opunha-se Alípio a que me casasse, repetindo-me que, se o fizesse, nãopoderíamos dedicar-nos juntos, com segura tranqüilidade, ao amor da sabedoria,como há muito desejávamos.

Alípio, nessa matéria, era castíssimo de causar admiração, porque, ao entrar najuventude, experimentara o prazer carnal, mas não se prendera a ele. Antes,arrependeu-se muito, e o desprezou, vivendo depois em perfeita continência.

Eu argumentava com os exemplos dos que, embora casados, haviam-se dedicadoao estudo da sabedoria, servindo a Deus, e guardando fidelidade e amor aosamigos. Contudo, eu estava longe dessa grandeza de alma. Prisioneiro damorbidade da carne, arrastava com prazer mortal minha cadeia, temendo que elase rompesse e, rejeitando as palavras que bem me aconselhavam, como o feridorepele a mão que lhe desfaz as ataduras.

Além do mais, a serpente falava por minha boca a Alípio, e pela língua lhe teciadoces laços em seu caminho, para que seus pés honestos e livres se enredassem.

Ele admirava-se de que eu, a quem tanto estimava, estivesse tão preso ao viscodo prazer a ponto de afirmar, sempre que tratávamos desse assunto, que me eraimpossível levar vida casta. Para esgrimir contra sua admiração, dizia-lhe quehavia grande diferença entre sua rápida e furtiva experiência do prazer, de quemal se lembrava e que, por isso, podia desprezar facilmente, e as delícias de umaligação verdadeira, à qual, se juntasse o honesto nome de matrimonio, já nãocausaria admiração se eu não pudesse desprezar aquela vida. Com isso, Alípiotambém começou a desejar o matrimonio, não certamente vencido pelo apetite do

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prazer, mas pela curiosidade. Desejava saber, dizia ele, o que era aquele bem semo qual minha vida – que ele tanto apreciava – não me parecia vida, mas tormento.De fato, livre dessa prisão, sua alma pasmava de tal servidão, e do espantopassava ao desejo de experimentá-la. Depois talvez caísse naquela mesmaservidão que o espantava, pois queria fazer um pacto com a morte, e o que ama operigo, nele cairá.

Certamente que nem ele, nem eu tínhamos grande interesse no que há de bonitoe honesto no matrimonio, como a direção da família e a educação dos filhos. Mas oque me mantinha preso e com fortes tormentos era o hábito de saciar minhainsaciável concupiscência; e a ele, era a admiração que o arrastava para o mesmocativeiro. Assim éramos, Senhor, até que tu, ó Altíssimo, que não desamparasnosso lodo, compassivo, por caminhos maravilhosos e ocultos, viestes em socorrodestes infelizes.

CAPÍTULOXIII-Opedidodecasamento

Instavam solicitamente comigo para que me casasse. Já havia feito o pedido, jáhavia recebido uma promessa, ajudado sobretudo por minha mãe, que nutria aesperança que eu, uma vez casado, seria regenerado nas águas salutares dobatismo. Minha mãe alegrava-se por me ver cada dia mais apto para recebê-lo,vendo que na minha fé se realizavam seus votos e tuas promessas.

Contudo, nada revelaste à minha mãe que, a meu pedido e por seu desejo, tesuplicava com forte clamor de coração, todos os dias que lhe desse alguma visãosobre meu futuro matrimonio. Via, sim, algumas coisas vãs e fantásticas, que oespírito humano engendra quando preocupado. Ela me relatava, sem a confiançaque costumava dar às visões que lhe enviavas, mas com desprezo. Dizia quedistinguia, por um vago discernimento que não podia explicar com palavras, adiferença que havia entre tuas revelações e os sonhos de sua alma.

Contudo, insistia no matrimonio, e pediu-se a mão de uma jovem, à que aindafaltavam dois anos para ser núbil (em todo o Império Romano era a idade de 12anos), mas, como ela agradava, era preciso esperar.

CAPÍTULOXIV-Umprojetodesfeito

Éramos muitos os amigos, que aborrecíamos as mazelas da agitação da vidahumana. Em nossas conversas, havíamos debatido e quase resolvido nos retirar da

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multidão para viver sossegadamente. Nosso projeto organizava a vida de tal sorteque tudo o que tivéssemos seria comunitário, formando de todos os patrimôniosum patrimônio único. Graças à nossa amizade sincera não haveria mais a fortunadeste ou daquele, mas uma só fortuna comum.

Seriamos cerca de dez homens os que desejávamos formar essa sociedade. Algunsde nós, muito ricos, como Romaniano, meu conterrâneo, cujos sérios cuidados denegócios o tinham trazido à corte imperial. Era muito amigo meu desde menino, eum dos que mais instavam nesse projeto, tendo sua opinião um grande peso poissua riqueza era bem superior que a dos outros.

Fora combinado que todos os anos, dois de nós, como magistrados, administrariamtodo o necessário, ficando os outros em paz. Mas quando se começou a discutir seas mulheres consentiriam nesse acordo – alguns dentre nós eram casados, e outrospensavam em casar – todo o plano, tão bem construído, se desvaneceu entrenossas mãos, fez-se em pedaços e teve de ser abandonado.

Novamente aos suspiros e gemidos, voltamos a caminhar pelos largos e batidoscaminhos do século, porque em nosso coração havia mil pensamentos, mas teuconselho permanece eternamente. Na tua sabedoria te rias de nossos projetos, epreparavas o cumprimento dos teus, a fim de dar-nos alimento no tempooportuno, abrindo tuas mãos e enchendo-nos de bênçãos.

CAPÍTULOXV-Aseparaçãodaamante

Entretanto, multiplicavam-se meus pecados. Quando arrancaram do meu lado, porser impedimento ao meu matrimonio, aquela com quem partilhava o leito, meucoração, ao qual ela estava unida, ficou ferido e sangrando. Ela, por sua vez,voltando para a África, fez-te voto, Senhor, de jamais conhecer outro homem,deixando comigo o filho natural que dela tivera.

Mas eu, desgraçado, fui incapaz de imitar aquela mulher. Estava impaciente peloprazo de dois anos que deveria transcorrer até receber por esposa aquela quepedira em casamento – e porque eu não era amante do matrimonio, mas escravoda sensualidade – procurei pois outra mulher, não como esposa, mas paraalimentar e manter íntegra ou agravada a doença da minha alma, sob a tutela domeu hábito, até que contraísse matrimonio. Mas nem por isso sarava a chagacausada pela separação da primeira mulher; mas, depois de ardor e sofrimentoagudíssimos, começava a se corromper doendo tanto mais desesperadamente

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quanto mais fria se tornava.

CAPÍTULOXVI-AaproximaçãodeDeus

Louvor e glória a ti, ó fonte das misericórdias! Eu me tornava cada vez maismiserável, e tu te aproximavas cada vez mais de mim. Já estava junto de mim tuadestra, para me arrancar do lodo dos meus vícios, e em purificar, e eu não o sabia.Mas nada havia que me fizesse sair do profundo abismo dos prazeres carnais, anão ser o medo da morte e de teu juízo futuro, que jamais saiu do meu peito,através das várias doutrinas que segui.

Discutia com meus amigos Alípio e Nebrídio, sobre o bem e o mal finais; facilmentemeu juízo teria dado a palma a Epicuro, se eu não acreditasse na imortalidade daalma e do julgamento de nossos atos, coisas em que Epicuro nunca acreditou. E euperguntava: “Se fossemos imortais, e vivêssemos em perpétuo gozo sensorial, semtemor algum de perde-lo, não seriamos felizes? Que mais poderíamos desejar?”Ignorava eu que isto era fruto duma grande miséria. Não podia, tão imerso novício e cego como estava, imaginar a luz da virtude e uma beleza invisível aosolhos da carne, e somente visível das profundezas da alma. Na minha miséria, nãoindagava de que fonte provinha esse grande gosto em conversar com os amigos,por maior que fosse a abundância dos prazeres carnais, segundo a idéia que eutinha então? Eu amava a meus amigos desinteressadamente, e também sentiaque eles me amavam com o mesmo desinteresse.

Ó caminhos tortuosos! Ai da alma temerária que, afastando-se de ti, esperavaachar algo melhor! Dá voltas e mais voltas, para todos os lados, mas tudo lhe éduro, porque só tu és seu descanso. Mas eis que estás presente, e nos livras denossos miseráveis erros, e nos pões em teu caminho, e nos consolas dizendo:“Correi, que eu vos levarei e conduzirei ao termo, e aí serei vosso sustento!

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LIVROSÉTIMO

CAPÍTULOI-AidéiadeDeus

Já havia morrido minha adolescência má e nefanda; entrava na juventude, equanto mais crescia em idade, mais vergonhosa se tornava minha vaidade, aponto de não poder imaginar uma substância além da que se pode perceber comos olhos.

Desde que comecei receber as lições da sabedoria, não mais te imaginava, meuDeus, sob a forma de um corpo humano – sempre fugi dessa idéia, e me alegravaencontrar essa doutrina na fé de nossa mãe espiritual, a Igreja Católica; - mas nãome ocorria outro modo de te imaginar.

E sendo eu homem – e que homem – esforçava-me para imaginar a ti, o sumo, oúnico e verdadeiro Deus. Com toda minha alma eu te julgava incorruptível,inviolável e imutável. Mesmo não sabendo de onde nem como me vinha estacerteza, eu via com clareza e tinha como certo que o incorruptível é melhor do queo corruptível. Sem hesitar, colocava o que não pode ser vencido acima do que opode ser, e o que não sofre mudança parecia-me melhor do que é suscetível amudanças.

Meu coração clamava violentamente contra todos os meus fantasmas. Esforçava-me por afugentar, com um só golpe, o redemoinho de imagens imundas quevoluteavam ao meu redor.

Mas, apenas disperso, em um piscar de olhos, tornava a se formar os atropelossobre minha vista, obscurecendo-a. Apesar de não te atribuir uma figura humana,contudo, necessitava te conceber como algo corporal, situado no espaço, querimanente ao mundo, quer difundido por fora do mundo, através do infinito; tal erao ser incorruptível, inviolável e imutável que eu colocava acima do que écorruptível, sujeito à deterioração e ás mudanças. O que não ocupava espaço meparecia um nada absoluto, perfeito, e não um simples vazio, como quando se tiraum corpo de um lugar, permanecendo o lugar vazio de todo o corpo, terrestre,úmido, aéreo ou celeste, mas, enfim, um lugar vazio, como que um nada espaçoso.

Assim, pois, com o coração pesado, sem consciência clara de mim mesmo,considerava como um perfeito nada tudo o que não tivesse extensão pordeterminado espaço, ou não se difundisse ou pudesse assumir um desses estados.

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As formas percorridas por meus olhos eram os moldes das imagens pelas quaisandava meu espírito; não via que a mesma faculdade com que formava essasimagens não era da mesma natureza que elas, não obstante não pudesse formá-lasse ela não fosse por sua vez algo grande.

E também a ti, vida de minha vida, imaginava-te como um Ser imenso, penetrandopor todas as partes, através dos espaços infinitos, toda a massa do mundo,alastrando-se sem limites na imensidão, de sorte que a terra, o céu e todas ascoisas te continham, e tudo isso tinha em ti seu limite, sem que te limitasses emparte alguma. E assim como a massa do ar – deste ar que está sobre a terra – nãoimpede a passagem da luz do sol, não o impede de a atravessar, de a penetrarsem romper ou cortar, antes enchendo-a totalmente, assim eu pensava que nãosomente a substância do céu, do ar e do mar, mas também a da terra se deixavaatravessar e penetrar por ti em todas as suas partes, grandes e pequenas, quereceberiam tua presença, que, com secreta inspiração, governa interior eexteriormente tudo o que criaste.

Assim conjeturava eu, por não poder imaginar-te de outra forma; mas minhaconjectura era falsa. Porque, se assim fosse, uma porção maior da terra conteriaparte maior de ti; e uma porção menor da terra conteria parte menor. E de talmodo estariam as coisas impregnadas de ti, que o corpo de um elefante conteriatanto mais de teu ser que o corpo do passarinho, pois aquele é maior do que este,e ocupa mais espaço. Assim, fragmentado entre as partes do universo, estariaspresente nas grandes partes do universo por grandes partes de ti, e nas pequenaspor pequenas, o que não acontece. Mas ainda não tinhas iluminado minhas trevas.

CAPÍTULOII-Objeçãocontraomaniqueísmo

Bastava-me, Senhor, para calar aqueles enganados enganadores e muitoscharlatães – pois o que se ouvia de sua boca não era a tua palavra – bastava-me,certamente, o argumento que há muito tempo, estando ainda em Cartago,costumava propor-lhes Nebrídio, impressionando a todos os que então o ouvimos.

“Que poderia fazer contra ti – dizia aquela não sei que raça de trevas, que osmaniqueus costumam opor-te como massa hostil – se não quisesses lutar contraela?”

Se respondessem que te podia ser nociva em algo, então serias violável ecorruptível. Se dissessem que não te podia prejudicar nada, não haveria razão

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para luta. Luta essa em que uma parte de ti mesmo, um de teus membros, produtode tua própria substância, se misturava às forças adversas, a naturezas nãocriadas por ti. Assim se corromperia, degradando-se a ponto de mudar suafelicidade em miséria e de necessitar de auxílio para se libertar e purificar. E essaparte de ti seria a alma que teu Verbo devia salvar da escravidão, ele que é livrede impurezas, ele que é imaculado da corrupção, ele que é intacto sem sercorruptível, sendo feito de uma só e mesma substância.

E assim, se declaram incorruptível tudo o que és, isto é, a substância que te forma,todas essas proposições são erros execráveis; e se eles te consideram corruptível,essa mesma afirmação também é falsa, e abominável logo à primeira vista.

Bastava-me, pois, este argumento contra aqueles que eu queria expulsar de vez demeu peito angustiado. De fato, sentindo e dizendo tais coisas de ti, não tinhamoutra saída senão um horrível sacrilégio de coração e de língua.

CAPÍTULOIII-Deuseomal

Mas eu, mesmo quando afirmava e cria firmemente que és incorruptível,inalterável, absolutamente imutável, Senhor meu, Deus verdadeiro que não sócriaste nossas almas e nossos corpos, e não somente nossas almas e corpos, mastodas as criaturas e todas as coisas. Todavia, faltava-me ainda uma explicação, asolução do problema da causa do mal. Qualquer que ela fosse, estava certo de quedeveria buscá-la onde não me visse obrigado, por sua causa, a julgar mutável a umDeus imutável, porque isso seria transformar-me no mal que procurava.

Por isso, buscava-a com segurança, certo de que era falsidade o que diziam osmaniqueus; deles fugia com toda a alma, porque via suas indagações sobre aorigem do mal cheias de malícia, preferindo crer que tua substância era passívelde sofrer o mal do que a deles ser susceptível de o cometer.

Esforçava-me por compreender a tese que ouvira professar, de que o livre-arbítrioda vontade é a causa de praticarmos o mal, e de teu reto juízo é a causa do malque padecemos.

Mas era incapaz de entendê-lo com clareza. E esforçando-me por afastar desseabismo os olhos do meu espírito, nele me precipitava de novo, e tentandoreiteradamente fugir dele, sempre voltava a recair.

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O fato de eu ter a consciência de possuir uma vontade, como tinha consciência deminha vida, era o que me erguia para a tua luz. Assim, quando queria ou nãoqueria alguma coisa, estava certíssimo de que era eu, e não outro, o que queria ounão queria, e então me convencia de que ali estava a causa do meu pecado.Quanto ao que fazia contra a vontade, notava que isso mais era padecer do mal doque praticá-lo; julgava que isso não era culpa, mas castigo, que me instava aconfessar justamente ferido por ti, considerando tua justiça.

Mas de novo refletia: “Quem me criou? Não foi o bom Deus, que não só é bom,mas a própria bondade? De onde, então, me vem essa vontade de querer o mal ede não querer o bem?

Seria talvez para que eu sofra as penas merecidas? Quem depositou em mim, esemeou minha alma esta semente de amargura, sendo eu totalmente obra de meudulcíssimo Deus? Se foi o demônio que me criou, de onde procede ele? E se este,de anjo bom se fez demônio, por decisão de sua vontade perversa, de onde lheveio essa vontade má que o transformou em diabo, tendo ele sido criado anjo porum Criador boníssimo?”

Tais pensamentos de novo me deprimiam e sufocavam, mas não me arrastavamaté aquele abismo de erro, onde ninguém te confessa, e onde se antepõe a teseque tu és sujeito ao mal a considerar o homem capaz de o cometer.

CAPÍTULOIV-AsubstânciadeDeus

Empenhava-me então por descobrir as outras verdades, como havia descobertoque o incorruptível é melhor que o corruptível, e por isso confessava que tu,qualquer que fosse tua natureza, devias ser incorruptível. Porque ninguém pôdenem poderá jamais conceber algo melhor do que tu, que és o sumo bem porexcelência. Por isso, sendo certíssimo e inegável que o incorruptível é superior aocorruptível, o que eu já fazia, meu pensamento já poderia conceber algo melhor doque o meu Deus, se não fosses incorruptível.

Portanto, logo que vi que o incorruptível deve ser preferido ao corruptível,imediatamente deveria buscar-te no incorruptível, para depois indagar a causa domal, isto é, a origem da corrupção, que de nenhum modo pode afetar tuasubstância. É certo que, nem por vontade, nem por necessidade, nem por qualqueracontecimento imprevisto, pode a corrupção afetar nosso Deus, porque ele é Deus,e não pode querer senão o que é bom, e ele próprio é o sumo bem; e estar sujeito

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à corrupção não é nenhum bem.

Tampouco poder ser obrigado, contra a tua vontade, seja ao que for, porque tuavontade não é maior do que teu poder. Seria maior caso pudesses ser maior doque és, pois a vontade e o poder de Deus são o mesmo Deus. E que pode haver deimprevisto para ti, se conheces todas as coisas, e se todas elas existem porque asconheces?

Mas, por que tantas palavras para demonstrar que a substância de Deus não écorruptível, já que se o fosse não seria Deus?

CAPÍTULOV-Aorigemdomal

Eu buscava a origem do mal, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia emmeu modo de buscá-la. Desfilava diante dos olhos de minha alma toda a criação,tanto o que podemos ver – como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e osanimais – como o que não podemos ver – como o firmamento, e todos os anjos eseres espirituais. Estes, porém, como se também fossem corpóreos, colocados emminha imaginação em seus respectivos lugares. Fiz de tua criação uma espécie demassa imensa, diferenciada em diversos gêneros de corpos; uns, corposverdadeiros, e espíritos, que eu imaginava como corpos.

E eu a imaginava não tão imensa quanto ela era realmente – o que seriaimpossível – mas quanto me agradava, embora limitada por todos os lados. E a ti,Senhor, como a um ser que a rodeava e penetrava por todas as partes, infinito emtodas as direções, como se fosses um mar incomensurável, que tivesse dentro de siuma esponja tão grande quanto possível, limitada, e toda embebida, em todas assuas partes, desse imenso mar.

Assim é que eu concebia a tua criação finita, cheia de ti, infinito, e dizia: “Eis aquiDeus, e eis aqui as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente maisexcelente que suas criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede comoas abraça e penetra! Onde está pois o mal? De onde e por onde conseguiupenetrar no mundo? Qual é a sua raiz e sua semente?

E se tememos em vão, o próprio temor já é certamente um mal que atormenta eespicaça sem motivo nosso coração; e tanto mais grave quanto é certo que não hárazão para temer. Portanto, ou o mal que tememos existe, ou o próprio temor é omal. De onde, pois, procede o mal se Deus, que é bom, fez boas todas as coisas?

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Bem superior a todos os bens, o Bem supremo, criou sem dúvida bens menores doque ele. De onde pois vem o mal? Acaso a matéria de que se serviu para a criaçãoera corrompida e, ao dar-lhe forma e organização, deixou nela algo que nãoconverteu em bem?

E por que isto? Acaso, sendo onipotente, não podia mudá-la, transformá-la toda,para que não restasse nela semente do mal? Enfim, por que se utilizou dessamatéria para criar? Por que sua onipotência não a aniquilou totalmente? Poderiaela existir contra sua vontade? E, se é eterna, por que deixou-a existir por tantotempo no infinito do passado, resolvendo tão tarde servir-se dela para fazeralguma coisa? Ou, já que quis fazer de súbito alguma coisa, sendo onipotente, nãopoderia suprimir a matéria, ficando ele só, bem total verdadeiro, sumo e infinito?E, se não era conveniente que, sendo bom, não criasse nem produzisse bem algum,por que não destruiu e aniquilou essa matéria má, criando outra que fosse boa ecom a qual plasmar toda a criação?

Porque ele não seria onipotente se não pudesse criar algum bem sem a ajudadessa matéria que não havia criado.”

Tais eram os pensamentos de meu pobre coração, oprimido pelos pungentestemores da morte, e sem ter encontrado a verdade. Contudo, arraigava sempremais em meu coração a fé de teu Cristo, nosso Senhor e Salvador, professada pelaIgreja Católica; fé ainda incerta, certamente, em muitos pontos, e como queflutuando fora das normas da doutrina. Minha alma porém não a abandonava, ecada dia mais se abraçava a ela.

CAPÍTULOVI-Oabsurdodoshoróscopos

Também já havia rechaçado as enganosas predições e ímpios delírios dosastrólogos.

Ainda por isso, meu Deus, quero confessar-te tuas misericórdias desde o maisíntimo de minha alma! Foste tu, e só tu – pois, quem pode afastar-nos da morte doerro, senão a Vida que desconhece a morte, a Sabedoria que ilumina as pobresinteligências sem precisar de outra luz, e que governa o mundo até as folhas quetremulam nas árvores? Foste tu que medicaste a obstinação com que me opunhaao sábio velho Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que diziam – oprimeiro, com veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente– não existir a tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos

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homens muitas vezes têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavamem predizer algumas coisas, sem que os mesmos que as diziam o soubessem.

Foste tu que me fizeste encontrar um amigo mui afeiçoado a consultar osastrólogos, não entendido nessa ciência, mas que consultava por curiosidade.Conhecia ele uma história, que ouvira do pai, segundo dizia. Ignorava ele até queponto essa história era valiosa para destruir a autoridade daquela arte.

Esse homem, chamado Firmino, educado nas artes liberais e instruído naeloqüência, veio-me consultar, como amigo íntimo, sobre alguns assuntos nos quaisalimentava esperanças mundanas, para ver qual seria meu vaticínio conforme suasconstelações, como eles dizem. Eu, que já começara a me inclinar à opinião deNebrídio, embora não me negasse a fazer-lhe o horóscopo e expor-lhe as suasconclusões, acrescentei, contudo, que estava quase persuadido de que tudo aquiloera ridícula quimera.

Então, ele me contou que seu pai tinha grande interesse na leitura de tais livros, eque tivera um amigo igualmente apaixonado. Conversando sobre a matéria,empolgaram-se cada vez mais no estudo daquelas tolices, e chegaram ao ponto deobservar os momentos do nascimento até dos animais domésticos, notando aposição das estrelas a fim de coligir dados experimentais daquela pseudo-arte.

Firmino me relatava ter ouvido o pai contar que, estando sua mãe para o dar àluz, também estava grávida uma serva daquele amigo de seu pai, coisa que nãopoderia passar despercebida a seu senhor, que cuidava com extrema diligência eprecisão de conhecer até o parto das cadelas.

E sucedeu que, contando com o maior esmero os dias, horas e suas menoresparcelas, da esposa e da escrava, ambas as mulheres deram à luz no mesmomomento, o que os obrigou a fazer, até em seus menores detalhes os mesmoshoróscopos para os nascidos, um para o filho e outro para o pequeno servo.

Tendo começado o trabalho de parto, informaram um ao outro o que se passavaem suas casas, e enviaram mensageiros um ao outro, a fim de anunciar com igualrapidez o nascimento das crianças; e conseguiram-no fazer facilmente, como se ofato se passasse em suas próprias casas. E Firmino contava que os mensageirosque haviam sido enviados vieram a se encontrar à mesma distância de suasrespectivas casas, de modo que não se podia notar a menor diferença na posiçãodas estrelas, assim como nas demais frações de tempo. No entanto Firmino, como

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filho de grande família, corria pelos mais brilhantes caminhos do mundo, cresciaem riquezas e era coberto de honras, ao passo que o escravo, sujeito ainda ao jugoda escravidão, tinha que servir a seus senhores, segundo ele próprio contava, poiso conhecia.

Ouvindo essa história, na qual acreditei pelo crédito que merecia seu narrador –toda minha resistência se quebrou. Esforcei-me em seguida para afastar Firminodaquela vã curiosidade, dizendo-lhe que, pelo seu horóscopo e para serverdadeiro, deveria certamente considerar a seus pais como os primeiros entreseus concidadãos; o renome da sua família, a mais nobre da cidade; seu nascimentoilustre, sua educação esmerada e seus conhecimentos nas artes liberais. E, pelocontrário, se aquele servo me consultasse sobre o tal horóscopo – que era omesmo de Firmino – se também tivesse de lhe dizer a verdade – deveria ver nosmesmo signos sua família paupérrima, sua condição servil e tantas outras coisas,tão diferentes e opostas às primeiras.

Portanto, para dizer a verdade, vendo os mesmos sinais celestes deveria tirarconclusões divergentes, porque fazer prognósticos semelhantes seria mentir.

De onde concluí, com toda certeza, que as predições verdadeiras não podematribuir a uma arte, mas ao acaso, e que as falsas não se devem à ignorância dessaarte, mas à mentira do acaso.

Após esta abertura e nela baseado, ruminava dentro de mim tais coisas, para quenenhum daqueles loucos que buscam nisso o lucro, e a quem eu então desejavarefutar e ridicularizar, não me objetasse que Firmino ou o pai podia ter contadomentiras. Voltei pois minha atenção ao caso dos gêmeos, muitos dos quais saemdo seio materno com tão breve intervalo de tempo, que por mais que opretendam importante, não pode ser apreciado pela observação humana, nempode ser considerado nos signos que o astrólogo lançará mão para fazer umaprevisão certa. Mas os vaticínios não serão verdadeiros pois, vendo os mesmossignos, deveria predizer a mesma sorte para Esaú e Jacó, sendo que os sucessos davida de ambos foram muito diversos.

O astrólogo, portanto, deveria prognosticar coisas falsas, ou, no caso de falarcoisas verdadeiras, estas forçosamente deveriam ser diferentes, a despeito daidentidade das observações. Logo, se seus prognósticos fossem verdadeiros, não oseriam por efeito da arte, mas do acaso. Porque tu, Senhor, governador justíssimodo Universo, por inspiração secreta, desconhecida dos consulentes e astrólogos,

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fazes que cada um ouça a resposta que lhe convém, de acordo com os méritos dasalmas, do fundo do abismo de teu justo juízo. E que o homem não se atreva adizer: Que é isto? Por que isto? Não o diga, não o diga, porque é um simpleshomem.

CAPÍTULOVII-Aindaaorigemdomal

Deste modo, ó meu auxílio, já me havias libertado daqueles grilhões. Contudo eubuscava ainda a origem do mal, e não encontrava solução. Mas não permitias queas vagas de meu pensamento me apartassem da fé. Fé na tua existência, na tuasubstância imutável, na tua providência para os homens, e na tua justiça que osjulgará. Já acreditava que traçaste o caminho da salvação dos homens, rumo àvida que sobrevém depois da morte, em Cristo, teu Filho e Senhor nosso, e nasSagradas Escrituras, recomendadas pela autoridade de tua Igreja Católica.

Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em meu espírito, buscava euansiosamente a origem do mal. E que tormentos, como que de parto, eramaqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ouvidosatentos, e eu não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas,altos clamores se elevavam até tua misericórdia: eram as silenciosas angústias deminha alma.

Tu só sabes o que eu padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco erao que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava,porventura, a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavrasbastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que emmeu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus olhosnão estava contigo, porque ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela nãoocupava espaço algum, e eu só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achavanelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta,Aqui estou bem!” – Nem me permitiam que eu fosse para onde me sentissesatisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minhaverdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo o quecriaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minhasalvação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo.Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhorcoberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores sefizeram superiores a mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívioe de descanso.

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Quando as olhava, elas me vinham ao encontro atabalhoadamente de todos oslados; mas quando nelas me concentrava, tais imagens corporais me barravampara que me retirasse, como se me dissessem: “Para onde vais, indigno e impuro?”E estas recobravam forças com a minha chaga, porque humilhaste o soberbo comoa um homem ferido. Minha presunção me separava de ti, e meu rosto de tãoinchado, fechava meus olhos.

CAPÍTULOVIII-ApiedadedeDeus

Mas tu, Senhor, permaneces eternamente, e não te iras eternamente contra nós,porque te compadeceste da terra e do pó, e foi de teu agrado corrigir minhasdeformidades. Tu me aguilhoavas com estímulos interiores para que estivesseimpaciente, até que por uma visão interior, te tornasses para mim uma certeza. Oinchaço de meu orgulho baixava graças à mão secreta de tua medicina; a vista deminha alma, perturbada e obscurecida, ia sarando dia a dia graças ao colírio dasdores salutares.

CAPÍTULOIX-Agostinhoeoneoplatonismo

Primeiramente, querendo tu mostrar-me como resistes aos soberbos e dás tuagraça aos humildes, e com quanta misericórdia ensinaste aos homens o caminho dahumildade, por se ter feito carne teu Verbo, e ter habitado entre os homens, mefizeste chegar às mãos por meio de um homem inchado de monstruoso orgulho,alguns livros dos platônicos, traduzidos do grego para o latim.

Neles eu li – não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expressocom muitos e diversos argumentos – que “no princípio era o Verbo, e o Verboestava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus.Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O quefoi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, masas trevas não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, emboradê testemunho da luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, queilumina a todo homem que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que omundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu.

E que ele veio para sua morada, e que os seus não o receberam, e que a quantos oreceberam deu o poder de se fazerem filhos de Deus, desde que acreditem em seunome, isto não o li nesses livros.

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Também neles li que o Verbo, Deus, não nasceu da carne nem do sangue, nem davontade do varão, mas de Deus. Mas que o Verbo se fez carne, e habitou entrenós, isso não o li naqueles livros.

Igualmente achei nesses livros, dito de diversos e múltiplos modos, que o Filho,consubstancial ao Pai, não considerou usurpação ser igual a Deus, porque o é pornatureza. Não dizem porém que se aniquilou a si mesmo, tomando a forma deescravo, que se fez semelhante aos homens, sendo julgado homem por seuexterior; e que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz,pelo que Deus o ressuscitou entre os mortos, e lhe deu um nome acima de todonome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos os joelhos no céu, na terra e noinferno, e toda língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus Pai.

Neles se diz também que antes e sobre todos os tempos, teu Filho únicopermanece imutável, eterno consigo, e que de sua plenitude recebem as almaspara sua bem-aventurança e que, para serem sábias, são renovadas participandoda sabedoria que permanece em si mesma.

Mas não se encontra escrito ali que morreu, no tempo marcado, pelos ímpios, eque não perdoaste a teu Filho único, mas que o entregaste por todos nós. Porqueescondeste estas coisas aos sábios e as revelastes aos humildes, a fim de que osatribulados e sobrecarregados viessem a ele, para que os reconfortasse, porqueele é manso e humilde de coração. Dirige os pequenos na justiça e ensina aosmansos seu caminho, vendo nossa humildade e nosso trabalho, e perdoando todosos nossos pecados.

Mas aqueles que, erguendo-se sobre uma doutrina, digamos, mais sublime, nãoouvem ao que lhes diz: Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, eencontrareis descanso para vossas almas. E ainda que conheçam a Deus, não oglorificam como Deus, nem lhe dão graças, mas se desvanecem em seuspensamentos, e seu coração insensato se obscurece; e dizendo que são sábios, setornam estultos.

E por isso lia também nesses livros que a glória de tua natureza incorruptívelhavia sido transformada em ídolos e simulacros de todo tipo, à semelhança daimagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes e serpentes. Isto é,naquele alimento do Egito pelo qual Esaú perdeu sua primogenitura. Israel, teupovo primogênito, voltando o coração para o Egito, honrou em teu lugar a cabeçade um quadrúpede, curvando tua imagem, isto é, a própria alma, diante da

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imagem de um bezerro comendo feno.

É o que encontrei nesses livros, mas delas não me alimentei, porque agradou-te,Senhor, tirar de Jacó o opróbrio de sua inferioridade, para que o maior servisse aomenor, chamando os gentios para tua herança.

Também eu vinha dentre os gentios para ti, e interessei-me pelo ouro que, por tuavontade, teu povo trouxera do Egito, pois era teu onde quer que estivesse. Edisseste aos atenienses, por boca de teu Apóstolo, que em ti vivemos, nosmovemos e temos nosso ser, como alguns deles o disseram, e é deles que vinhamos livros que me ocupavam. Mas não me fixei nos ídolos dos egípcios, aos quaissacrificavam, com teu ouro, os que mudaram a verdade de Deus em mentira,adorando e servindo ante à criatura do que ao Criador.

CAPÍTULOX-AdescobertadeDeus

Estimulado por estas leituras a voltar a mim mesmo, entrei, guiado por ti, noprofundo de meu coração, e o pude fazer porque te fizeste minha ajuda. Entrei, evi com os olhos da alma, acima desses mesmos olhos, acima de minha inteligência,a luz imutável; não esta vulgar e visível a todos os olhos de carne, nem outra domesmo gênero, embora maior. Era muito mais clara e enchendo com sua forçatodo o espaço. Não, não era esta luz, mas uma luz diferente de todas estas.

Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o céu sobre aterra, mas estava acima de mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sidocriado por ela. Quem conhece a verdade conhece a luz, e quem a conhece, conhecea eternidade. O amor a conhece!

Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por tisuspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para mefazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu ainda era incapaz de ver. Edeslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e eu estremecide amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, comose ouvira tua voz do alto: “Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não metransformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serásmudado em mim”.

E conheci então que “castigaste o homem por causa de sua iniqüidade”, e “quesecaste minha alma como uma teia de aranha”, e eu disse: Porventura não existe a

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verdade, por não ser difusa pelos espaços finitos e infinitos? E tu me gritaste delonge: Na verdade, Eu sou o que sou.

E eu ouvi como se ouve no coração, sem deixar motivo para dúvidas; antes, maisfacilmente duvidaria de minha vida que da existência da verdade, que semanifesta à inteligência pelas coisas da criação.

CAPÍTULOXI-Deuseascriaturas

E contemplei as outras coisas que estão abaixo de ti, e vi que nem existemabsolutamente, e nem absolutamente deixam de existir. Certamente existem,porque procedem de ti; mas não existem, pois, não são o que tu és,, porque sóexiste verdadeiramente o que permanece imutável.

Com isso, para mim é bom apegar-me a Deus, porque, se não permanecer nele,tampouco poderei permanecer em mim. Ele, porém, permanecendo em si, renovatodas as coisas, e tu és o meu Senhor, porque não necessitas de meus bens.

CAPÍTULOXII-Omaleobemdacriação

Também pode entender que são boas as coisas que se corrompem. Se fossemsumamente boas, não poderiam se corromper, como tampouco o poderiam se nãofossem boas de algum modo. Com efeito, se fossem sumamente boas, seriamincorruptíveis; e se não tivessem nenhuma bondade, nada haveria nelas que sepudesse corromper. Porque a corrupção é um mal, e não poderia ser nociva se nãodiminuísse o bem real. Logo, ou a corrupção é inofensiva, o que é impossível, ou, oque é certo, tudo o que se corrompe é privado de algum bem. E assim, se algo forprivado de todo o bem, deixará totalmente de existir. E se algo subsistisse sem jápoder ser corrompido, seria ainda melhor, porque permaneceria incorruptível. Ehaverá maior absurdo do que afirmar que uma coisa se torna melhor pela perdade todo o bem? Logo, ser privado de todo o bem é o nada absoluto. De onde sesegue que, enquanto as coisas existem, elas são boas.

Portanto, tudo o que existe é bom; e o mal, cuja origem eu procurava, não é umasubstância, porque se o fosse seria um bem. De fato, ou ele seria substânciaincorruptível, e portanto um grande bem; ou seria uma substância corruptível, quese não se poderia corromper se não fosse boa.

Vi pois, e foi para mim evidente, que tu eras o autor de todos os bens, e que não

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há em absoluto substância alguma que não tenha sido criada por ti. E como não asfizeste todas iguais, toas as coisas existem, porque cada uma por si é boa, e todasjuntas muito boas, porque nosso Deus fez todas as coisas muito boas.

CAPÍTULOXIII-Oslouvoresdacriação

E para ti, Senhor, não existe absolutamente o mal; e nem para universalidade datua criação; porque nada existe fora dela, capaz de romper ou de corromper aordem que tu lhe impuseste. Todavia, em algumas de suas partes, determinadoselementos não se harmonizam com outros, e estes são considerados maus. Mas,como esses mesmos elementos combinam com outros, são da mesma forma bons, ebons em si mesmos. E mesmo esses elementos que não concordam entre si seharmonizam com a parte inferior das criaturas que chamamos terra, com seu céucheio de nuvens e de ventos, como lhe é conveniente.

Longe de mim dizer: Oxalá não existissem estas coisas! – Embora, considerando-asseparadamente, eu as desejasse melhores, somente o fato de existirem deveriabastar para eu te louvar porque o proclamam os dragões da terra e todos osabismos; o fogo, o granizo, a neve, o vento da tempestade, que executam tuasordens; os montes e todas as colinas; as árvores frutíferas e todos os cedros; asferas e todos os gados; os répteis e todas as aves; os reis da terra e todos ospovos; os príncipes e todos os juízes da terra, os jovens e as virgens, os anciões eas crianças; todos louvam teu nome.

Mas como também do alto dos céus é louvado, que seja louvado o nosso Deus, láno alto por todos os teus anjos, todas as potestades, o sol e a lua, todas asestrelas e a luz, os céus dos céus, e a águas que estão sobre os céus glorificam teunome, eu já não desejava nada melhor, porque, considerando o todo, os elementossuperiores me pareciam sem dúvida melhores que os inferiores; mas umjulgamento mais sadio me fazia considerar o todo melhor que os elementossuperiores tomados à parte.

CAPÍTULOXIV-Recapitulação

Não têm juízo sadio, nos que se desagradam com alguma parte de tua criação,como acontecia comigo, quando me desagradavam tantas de tuas obras. Mas,como minha alma não se atrevia a desgostar do meu Deus, não queria considerarcomo obra tua o que lhe desagradava.

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Por isso fora atrás da teoria das duas substâncias, na qual não achava descanso, erepetia coisas alheias. Desembaraçando-me desses erros, imaginara para si umDeus que se difundia pelos espaços infinitos e, julgando que eras tu, colocou-o emseu coração, e de novo se tornou o templo de seu ídolo, coisa abominável a teusolhos.

Mas, depois que afagaste minha cabeça, sem que eu o percebesse, e fechaste meusolhos para não vissem a vaidade, desprendi-me um pouco de mim mesmo, e minhaloucura adormeceu profundamente; quando despertei em teus braços, vi que erasinfinito não daquele modo, e esta visão não procedia da carne.

CAPÍTULOXV-Deuseacriação

Contemplei depois as outras coisas, e vi que deviam a ti sua existência, e quetodas estão contidas em ti, não como em um lugar material, mas de mododiferente: conservas todas elas em tua verdade, sustentadas na tua mão; todas ascoisas são verdadeiras enquanto existem, e só é falso o que julgamos existir, masnão existe.

Também vi que cada coisa adapta-se não só a seus lugares, mas também a seustempos, e que tu, que és o único eterno, não começaste a agir depois de infinitosespaços de tempos, porque todos os espaços de tempo – passados ou futuros – nãoteriam passado nem viriam se tu não agistes e não fosses permanente.

CAPÍTULOXVI-Ondeestáomal

Entendi por experiência que não é de admirar que o pão seja enjoativo ao paladarenfermo, mesmo tão agradável para o paladar sadio, e que olhos enfermosconsiderem odiosa a luz, que para os límpidos é tão cara. Se tua justiça desagradaaos maus, muito mais desagradam a víbora e o caruncho, que criaste bons eadaptados à parte inferior da tua criação, com a qual também os maus seassemelham, tanto mais quanto mais diferem de ti, assim como os justos seassemelham às partes superiores do mundo na medida em que se assemelham a ti.

Indaguei o que era a iniqüidade, e não achei substância, mas a perversão de umavontade que se afasta da suprema substância, de ti, meu Deus – e se inclina paraas coisas baixas, e que derrama suas entranhas, e se intumesce exteriormente.

CAPÍTULOXVII-CaminhoparaDeus

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Admirava-me de já te amar, e não a um fantasma em teu lugar, mas não eraestável no gozo de meu Deus. Era arrebatado a ti por tua beleza, e logo afastadode ti pelo meu peso, que me precipitava sobre a terra a gemer. Meu peso eram oshábitos carnais. Mas tua lembrança me acompanhava. Nem absolutamenteduvidava da existência de um ser a quem eu devia me unir, embora não estivesseapto para esta união, porque o corpo, que se corrompe, sobrecarrega a alma, e amorada terrena oprime o espírito carregado de cuidados. Estava certíssimo de quetuas belezas invisíveis se descobrem à inteligência desde a criação do universo,por meio de tuas obras; bem como teu poder eterno e tua divindade.

Buscava saber de onde me vinha minha faculdade de apreciar a beleza dos corpos– quer celestes, quer terrenos – e o que me permitia julgar rápida e cabalmentedas coisas mutáveis quando dizia: “Isto deve ser assim, aquilo não deve ser assim”.Procurando a origem de minha faculdade de julgar quando assim julgava, achei aeternidade imutável e verdadeira, acima de meu espírito mutável.

E, gradualmente, fui subindo dos corpos para a alma, que sente por meio do corpo;e dela à sua força interior, à qual os sentidos comunicam as coisas exteriores, queé o limite alcançado pelos animais. Daqui passei para o poder do raciocínio, aoqual cabe julgar as percepções dos sentidos corporais; por sua vez, julgando-sesujeito a mudanças, levantou-se até a sua própria inteligência, e afastou opensamento de suas cogitações habituais. Livrou-se da multidão de fantasmascontraditórios, para descobrir que luz a inundava quando, sem nenhuma dúvida,afirmava que o imutável deve ser preferido ao mutável; e também de onde lhevinha o conhecimento do próprio imutável, porque, se não tivesse dele algumanoção, nunca o preferiria ao mutável com tanta certeza. E, finalmente, chegouàquele que é um único lampejo.

Foi então que tuas perfeições invisíveis se manifestaram à minha inteligência pormeio de tuas obras. Mas não pude fixar nelas meu olhar; minha fraqueza serecobrou, e voltei a meus hábitos, não levando comigo senão uma lembrançaamorosa e, por assim dizer, o desejo do perfume do alimento saboroso que euainda não podia comer.

CAPÍTULOXVIII-Asendadahumildade

Buscava um meio que me desse força necessária para gozar de ti, e não aencontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, ohomem Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos osséculos, que chama e diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ele une o alimento

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à carne (alimento que eu não tinha forças para tomar), porque o Verbo se fezcarne, para que tua Sabedoria, pela qual criaste todas as coisas, fosse o leite denossa infância.

Não tendo humildade, eu não possuía Jesus, o Deus da humildade, e não atinava oque nos poderia ensinar sua fraqueza. Porque teu Verbo, verdade eterna,dominando as criaturas mais sublimes da tua criação, levanta a si as que se lhesujeitam e, nas partes inferiores, construiu para si, com o nosso lodo, uma humildemorada. Assim faz para humilhar e arrancar de si mesmos aqueles que desejasujeitar e atrair, curando-lhes a soberba e alimentando-lhes o amor, para que,confiando em si, não se afastem para mais longe. Pelo contrário, que se humilhem,vendo a seus pés a humildade de um Deus que também se vestiu de nossa túnicade carne, e cansados, se prostrem diante dela para que, ao se levantar, os exalte.

CAPÍTULOXIX-Adoutrinadoverbo

Mas eu então julgava de outro modo. Considerava meu Senhor Jesus Cristoapenas um homem de extraordinária sabedoria, a quem ninguém poderia igualar.Sobretudo seu miraculoso nascimento de uma virgem, que nos ensina a desprezaros bens temporais para adquirir a imortalidade. Parecia-me ter merecido, pordecreto da Providência divina, uma soberana autoridade para ensinar os homens.

Mas nem suspeitava o mistério que se encerra nestas palavras: o Verbo se fezcarne.

Somente conhecia, pelas coisas que dele nos deixaram escritas, que comeu, bebeu,dormiu, passeou, que se alegrou, se entristeceu e pregou, e que essa carne não sejuntou a teu Verbo senão com alma e inteligência humanas. Tudo isso sabe quemconhece a imutabilidade de teu Verbo, que eu já conhecia quanto me era possível,sem que disso nada duvidasse. Com efeito, mover os membros do corpo à vontade,ou não movê-los, estar dominado por algum afeto ou não o estar, traduzir porpalavras sábios pensamentos e depois calar, são caracteres próprios damutabilidade da alma e da inteligência. Se esses testemunhos das Escriturasfossem falsos, tudo o mais correria o risco de ser mentira, e o gênero humano nãoteria mais nesses livros a fé, condição de salvação. Mas como são verdadeiras ascoisas nela escritas, eu reconhecia em Cristo um homem completo, não somente ocorpo de um homem, ou um corpo sem uma alma inteligente, mas um homem real,que eu julgava superior a todos os outros não por ser a personificação da verdade,mas em razão da singular excelência de sua natureza humana, e de uma maisperfeita participação na sabedoria.

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Alípio porém pensava que os católicos, crendo em um Deus revestido de carne,entendiam quem eu em Cristo, além de Deus e da carne, não havia alma humana;e não julgava que lhe atribuíssem inteligência humana. E como estava bempersuadido de que os atos atribuídos tradicionalmente a Cristo não podiam sersenão obras de um criatura cheia de vida e de inteligência, Alípio se aproximavacom certa relutância da fé cristã. Mas depois, ao saber que este erro era própriosdos hereges apolinaristas, aderiu alegremente à fé católica.

De minha parte, confesso que só aprendi mais tarde a diferença de interpretaçãodas palavras “o Verbo se fez carne”, entre a verdade católica e o erro do Fotino(bispo de Sírmio, afirmava que o Verbo não havia sido Filho de Deus até encarnar-se nas entranhas da Virgem Maria, negando toda união substancial entre anatureza humana e o Verbo divino). A reprovação dos hereges põe às claras opensamento da tua Igreja e o que esta considera como doutrina sã.

Convém pois que haja heresias, para que os fortes se distingam entre os fracos.

CAPÍTULOXX-DoplatonismoàsEscrituras

Depois de ter lido aqueles livros dos platônicos, induzido por eles a buscar averdade incorpórea, começaram a se tornarem patentes, por meio de tuas obras,tuas perfeições visíveis.

Repelido para longe de ti, compreendi em que consistia essa verdade, que astrevas de minha alma me impediam de contemplar. Estava certo de tua existênciae de que és infinito, sem contudo te estenderes por espaços finitos ou infinitos; ede que és verdadeiramente aquele que é sempre idêntico a si mesmo, sem temudares em outro, nem sofrer alteração alguma, quer parcialmente ou com algummovimento, quer de qualquer outro modo; e de que tudo o mais vem de ti, pelaúnica e irrefutável razão de que existe. Tinha certeza de todas estas verdades,mas me achava ainda demasiado fraco para gozar de ti. Tagarelava muito, comose fora competente nisso, mas se não procurasse o caminho da verdade em Cristo,nosso Salvador, não seria perito, mas perituro. Já começava a querer parecersábio, cheio de meu castigo, e não chorava, mas orgulhava-me com a ciência. Ondeestava aquela caridade erigida sobre o alicerce da humildade, que é Cristo Jesus?Ou talvez me a ensinariam aqueles livros? Creio que quiseste que com eles meencontrasse antes de meditar nas tuas Escrituras, para que fixassem em minhamemória os afetos que nela experimentei. Depois, quando encontrasse em teuslivros a paz do coração, sarada com tuas mãos as feridas de minha alma, pudessediscernir e perceber a diferença entre presunção e humildade, entre os que vêem

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para onde se deve ir, e não vêem por onde se vai, nem o caminho que conduz àpátria bem-aventurada, não só para contemplá-la, mas também para habitá-la.

Porém, se me tivesse instruído em tuas sagradas letras, e em sua intimidadetivesse experimentado na doçura, para depois conhecer os livros dos platônicos,talvez eles me arrancassem dos sólidos fundamentos da piedade; ou, se eu tivessepersistido nos sentimentos salutares nelas hauridos, talvez julgasse que só poresses livros se poderia chegar ao mesmo proveito espiritual.

CAPÍTULOXXI-Averdadedasescrituras

Por isso lancei-me avidamente sobre as veneráveis escrituras inspiradas por teuEspírito, sobretudo ao do apóstolo Paulo. E desnaveceram em mim aquelasdificuldades nas quais julguei descobrir contradições entre ele e seu texto, emdesacordo com os testemunhos da Lei e dos Profetas. Compreendi a unidadedaqueles castos escritos, e aprendi a me alegrar com tremor.

Comecei a lê-los e compreendi que tudo de verdadeiro que lera nos tratados dosneoplatônicos se encontrava ali, mas com o aval da tua graça, para que aqueleque vê não se glorie como se não houvesse recebido não só o que vê, mas tambéma faculdade de ver. Com efeito, que tem ele que não tenha recebido? E tu, que ésimutável, não só o alertas para que te veja, mas também para que seja curado,para te possuir. Aquele que está muito longe de te ver, tome, contudo, o caminhopara chegar a ti, para te ver e te possuir.

Porque, embora o homem se deleite com a lei de Deus, segundo o homem interior,que fará dessa outra lei que luta em seus membros contra a lei de seu espírito, eque o prende sob a lei do pecado, impressa em seus membros? Porque tu és justo,Senhor; nós, porém, pecamos, cometemos iniqüidades; procedemos como ímpios, etua mão se fez pesada sobre nós, e é com justiça que fomos entregues ao pecadorantigo, ao príncipe da morte, porque ele persuadiu nossa vontade a se conformarà sua, que não quis persistir com tua verdade.

Que fará esse homem infeliz? Quem o livrará deste corpo de morte, senão tuagraça, por Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem tu geraste co-eterno e criaste noprincípio de teus caminhos, ele, em quem o príncipe deste mundo não achou nadaque merecesse a morte, e a quem, contudo, matou? Com o que foi anulada asentença que havia contra nós?

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Nada disso dizem os livros platônicos. Nem têm naquelas páginas esse sentimentode piedade, as lágrimas da confissão, esse teu sacrifício, a alma abatida, essecoração contrito e humilhado, nem a salvação de teu povo, nem a cidadeprometida, nem o penhor do Espírito Santo, nem o cálice de nossa redenção.

Nos livros platônicos ninguém canta: “Minha alma não estará sujeita a Deus?Porque dele procede minha salvação, pois é meu Deus e meu amparo, do qual nãomais me apartarei.

Ninguém ali ouvi o convite: Vinde a mim os que sofreis. Desdenham teusensinamentos, porque és manso e humilde de coração. Porque escondeste estascoisas dos sábios e doutos, e as revelaste aos pequeninos.

Uma coisa é ver de um monte agreste a pátria da paz, e não encontrar o caminhoque conduz a ela, e fatigar-se debalde por lugares inacessíveis, entre ataques eemboscadas dos desertores fugitivos, com seu chefe, o leão e o dragão, e outracoisa é conhecer o caminho que conduz até lá, defendido pelos cuidados doimperador celeste, e onde não roubam os desertores da milícia do céu, pois eles oevitam como um suplício.

Esses pensamentos penetravam-me as entranhas de modo maravilhoso, quando eulia o menor de teus apóstolos. Considerava tuas obras e enchia-me de assombro.

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LIVROOITAVO

CAPÍTULOI-Hesitações

Faze, meu Deus, que eu recorde de ti em ação de graças, e proclame tuasmisericórdias para comigo. Que meus ossos se penetrem do teu amor, e digam:Senhor quem semelhante a ti?

Rompeste com grilhões, e te oferecerei um sacrifício de louvor. Contarei como osrompeste, e todos os que te adoram exclamarão quando me ouvirem: “Benditoseja o Senhor no céu e na terra! Grande e admirável é seu nome!

Tuas palavras, Senhor, tinham-me gravado profundamente em meu coração, e mevia cercado apenas por ti de todos os lados. Tinha certeza de tua vida eterna,embora apenas a visse em enigma e como em espelho. Já fora dissolvida todadúvida quanto à tua substância incorruptível, ao saber que toda substânciaprocedia dela. E o que desejava não era tanto estar mais certo de ti, mas maisfirme em ti.

Quanto à minha vida temporal, estava eu ainda vacilante, e era necessário quemeu coração se purificasse do velho fermento. O caminho certo, que é o próprioSalvador, me encantava, mas titubeava ainda em caminhar por seus estreitosdesfiladeiros.

Então me inspiraste a idéia – que me pareceu excelente – de me dirigir aSimpliciano, que eu tinha como um de teus bons servidores, em quem brilhava tuagraça. Sobre ele ouvira também que desde sua juventude te consagravadevotamente sua vida, e como já encanecia, achei que em tão longa vida,dedicada ao estudo de teus caminhos, teria acumulado grande experiência einstrução; e de fato assim era. Por isso queria confiar-lhe minhas inquietações,para que me apontasse o modo de vida mais idôneo de alguém, com minhasdisposições interiores, seguir teu caminho.

Vi tua Igreja cheia de fiéis que, por um caminho ou por outro, progrediam.

Quanto a mim, aborrecia-me a vida que levava no mundo, e era para mim fardopesadíssimo, agora que os apetites mundanos, como a esperança de honras eriquezas, já não me animavam para suportar tão pesada servidão. Essas paixõeshaviam perdido para mim o encanto, diante de tua doçura e da beleza de tua casa,

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que já amava. Mas sentia-me ainda fortemente amarrado à mulher. Sem dúvida oApóstolo não me proibia de casar, embora em seu ardente desejo de ver todos oshomens semelhantes a ele, exortasse a um estado mais elevado.

Mas eu, ainda muito fraco, escolhia a condição mais fácil; por isso, vivia hesitandoem tudo o mais, e me desgastava com preocupações enervantes, pois a vidaconjugal, a que me julgava destinado e obrigado, ter-me-ia obrigado a novasincumbências, que eu não queria suportar.

Ouvira da boca da própria Verdade que há eunucos que mutilavam a si própriospor amor ao reino dos céus, embora acrescentando que o compreenda quem opuder compreender. São vãos, por certo, todos os homens nos quais não reside aciência de Deus, e que nas coisas visíveis não puderam achar aquele que é. Mas eujá me livrara dessa vaidade, já a havia ultrapassado, e pelo testemunho de tuacriação, te encontrara a ti, nosso Criador, e a teu Verbo, Deus em ti, e contigo umsó Deus, por quem criaste todas as coisas.

Há ainda outra espécie de ímpios; os que, conhecendo a Deus, não o glorificamcomo Deus, nem lhe renderam graças. Eu também tinha caído nesse pecado; mastua destra me amparou e libertou, colocando-me em lugar onde me pudesse curar;e disseste ao homem: Eis que a piedade é a sabedoria. E ainda: Não queirasparecer sábio, porque os que se dizem sábios tornaram-se insensatos.

Já havia encontrado, finalmente, a pérola preciosa, que devia comprar vendendotudo o que possuía. Mas ainda hesitava.

CAPÍTULOII-VisitaaSimpliciano.ConversãodeVitorino

Fui ter pois com Simpliciano, pai espiritual do então bispo Ambrósio, que o amavaverdadeiramente como pai. Contei-lhe os labirintos do meu erro. E quando lhedisse que havia lido alguns livros dos platônicos, traduzidos para o latim porVitorino, outrora retórico em Roma – e do qual ouvira dizer que morrera cristão –ele me felicitou por não ter caído nas obras de outros filósofos, falazes eenganosas, segundo os elementos deste mundo, mas apenas estes, que insinuampor mil modos a Deus e a seu Verbo.

Depois, para me exortar à humildade de Cristo, escondida aos sábios e reveladaaos humildes, evocou a lembrança do próprio Vitorino, que conheceraintimamente, quando estava em Roma. Não guardarei silêncio sobre o que me

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contou dele, porque me dará azo de proclamar os grandes louvores de tua graça aseu respeito. Esse erudito ancião, profundo conhecedor de todas as ciênciasliberais, leitor e crítico de tantos livros de filosofia, fora mestres de muitos nobressenadores. O prestígio de seu magistério lhe valera uma estátua no foro romano,que ele aceitara (coisa que os cidadãos desse mundo têm em grande conta). Atéaquela idade avançada, havia adorado os ídolos, participando de cultos sacrílegos,de que participava quase toda a nobreza romana da época que inspirava ao povosua devoção por Osíris, por “toda sorte de monstros divinizados, pelo labradorAnúbis”, monstros que outrora “pegaram em armas contra Netuno, Vênus eMinerva”, e a quem, vencidos, a própria Roma dirigia súplicas, esse velho Vitorino,que durante tantos anos havia defendido esses deuses com sua terríveleloqüência, não se envergonhou de se tornar servo de teu Cristo e criança de tuaságuas, dobrando o pescoço ao jugo da humildade, e dobrando sua fronte ante oopróbrio da cruz.

Senhor, Senhor, que inclinaste os céus e o desceste, que tocaste os montes e estesfumegaram, de que modo te insinuaste naquele coração?

Segundo contou-me Simpliciano, Vitorino lia as Escrituras e investigava eesquadrinhava com grande curiosidade toda a literatura cristã, e confiava aSimpliciano, não em público, mas muito em segredo e familiarmente: “Sabes que jásou cristão?” Ao que respondia aquele: “Não hei de acreditar, nem te contareientre os cristãos enquanto não te vir na Igreja de Cristo”. Mas ele ria e dizia:“Serão pois as paredes que fazem os cristãos?” E isto, de que já era cristão, o diziamuitas vezes, contestando-lhe Simpliciano outras tantas vezes com a mesmaresposta, opondo-lhe sempre Vitorino o gracejo das paredes.

Vitorino receava desgostar a seus amigos, os soberbos adoradores dos demônios,julgando que estes, de alto de sua babilônica dignidade, como cedros do Líbano,ainda não abatidos pelo Senhor, fariam cair sobre ele suas pesadas inimizades.

Mas depois que hauriu forças nas leituras e orações, temeu ser renegado porCristo diante de seus anjos, se tivesse medo de o confessar diante dos homens.Sentiu-se réu de um grande crime por se envergonhar dos mistérios de humildadede teu Verbo, não se envergonhando do culto sacrílego de demônios soberbos, queele próprio aceitara como soberbo imitador; envergonhou-se da vaidade, eenrubesceu diante da verdade. De repente, disse a Simpliciano, segundo estemesmo contava: “Vamos à Igreja; quero me tornar cristão”. Simpliciano, nãocabendo em si de alegria, foi com ele. Recebidos os primeiros sacramentos dareligião, não muito depois, deu seu nome para receber o batismo que renegara,

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causando admiração em Roma e alegria na Igreja. Viram-no os soberbos, e seiraram; rangiam os dentes e se consumiam de raiva.

Mas teu servo havia posto no Senhor Deus sua esperança, e não tinha mais olhospara as vaidades e as enganosas loucuras.

Enfim, chegou a hora da profissão de fé. Em Roma, os que se preparam parareceber tua graça, pronunciam de um lugar elevado, diante dos fiei, formulasconsagradas aprendidas de cor.

Os presbíteros, dizia-me Simpliciano, propuseram a Vitorino que recitasse aprofissão de fé em segredo, como era costume fazer com os que poderiam seperturbar pela timidez. Mas ele preferiu confessar sua salvação na presença daplebe santa, uma vez que nenhuma salvação havia na retórica que ensinarapublicamente. Quanto menos, pois, devia temer diante de tua mansa greipronunciar tua palavra, ele que não havia temido as turbas insanas em seusdiscursos!

Assim, logo que subiu à tribuna para dar testemunho da sua fé, em uníssono,conforme o iam conhecendo, todos repetiram seu nome como num aplauso – equem ali não o conhecia? – e um grito reprimido, saiu da boca de todos os que sealegravam: “Vitorino! Vitorino!” Ao verem-no, se puseram a gritar de júbilo, maslogo emudeceram pelo desejo de ouvi-lo. Vitorino pronunciou sua profissão deverdadeira fé com grande firmeza, e todos queriam raptá-lo para dentro de seuscorações. E realmente o fizeram: seu amor e alegria eram as mãos que oarrebatavam.

CAPÍTULOIII-Aalegriadascoisasperdidas

Bom Deus, que se passa no homem para que se alegre mais com a salvação de umaalma desesperada, quando salva de grande perigo, do que se ela sempre tivessetido esperança, ou se o perigo tivesse sido menor? Também tu, Pai misericordioso,sentes mais alegria por um pecador arrependido do que por noventa e nove justosque não têm necessidade de penitência. Grande é o nosso prazer ao falar daalegria do pastor trazendo de volta sobre os ombros a ovelha desgarrada, e damulher que repõe em teus tesouros, para satisfação geral dos vizinhos, a dracmaperdida. E nos arranca lágrimas a alegria das festas de tua casa quando lemos queteu filho menor estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.

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Tu te alegras em nós e em teus anjos, santificados pelo santo amor; pois és sempreo mesmo, e conheces do mesmo modo e sempre as coisas que nem sempre existem,nem da mesma maneira.

Mas, que se passa na alma, para que se alegre mais com as coisas que estima,encontradas ou reavidas, do que se sempre as tivesse possuído? Na verdade, tudoo atesta, e há inúmeros testemunhos que afirmam: “É assim mesmo!”

O general celebra o triunfo da vitória, e não teria vencido sem combate; e quantomais foi árdua a batalha, tanto maior é o gozo no triunfo.

A tempestade cai sobre os navegantes com ameaça de naufrágio. Todosempalidecem diante da morte iminente. O céu e o mar se acalmam, é grande suaalegria, e nasce do muito que temeram.

Adoece uma pessoa amiga: seu pulso revela um desfecho fatal. Todos os quedesejam sua cura sofrem com ela, por simpatia. Havendo melhora, embora aindanão recuperado o vigor de outrora, já reina tal alegria como não existia antes,quando andava sadia e forte.

Até os prazeres da vida humana, não só compensam os homens de desgraçascasuais e involuntárias, mas também de moléstias premeditadas e desejadas. Nãohá prazer algum em beber ou comer sem que haja antes o estímulo da sede ou dafome. Os ébrios costumam comer antes alguma coisa salgada, que lhes cause sedeardente e que transformará em prazer quando acalmada com a bebida. O costumequer que as esposas não sejam entregues imediatamente aos maridos: o maridodesprezaria a noiva se não tivesse que esperar e suspirar por ela.

Assim ocorre tanto na alegria torpe e vil, como na alegria lícita e permitida, namais sincera e honesta amizade, como na aventura daquele que estava morto etornou a viver, que se havia perdido e foi encontrado; em todos os casos umaalegria maior é precedida de uma dor também maior.

Por que isto, Senhor, meu Deus, quando tu mesmo és tua própria alegria eterna, eas criaturas à tua volta em ti se alegram? Por que esta parte do universo sofre asalternâncias de progressos e quedas, de uniões e separações? Será este o modo deser que lhe concedeste quando, do mais alto dos céus até às profundezas da terra,desde o princípio dos tempos até o fim dos séculos, desde o anjo até o pequeninoverme, e desde o primeiro movimento até o último, dispuseste todos os gêneros

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de bens e todas as tuas obras justas, cada uma em seu lugar e tempo?

Ai de mim! Quão alto és nas alturas e quão profundo nos abismos! Jamais teafastas de nós e, contudo, quanta dificuldade para voltar a ti!

CAPÍTULOIV-Aconversãodosgrandes

Vamos pois, Senhor, mãos à obra! Desperta-nos, chama-nos, inflama-nos, arrebata-nos; derrama tuas doçuras, encanta-nos: amemos, corramos!

Não é verdade que muitos voltam a ti, saindo de um abismo de cegueira maisprofundo que o de Vitorino, e se aproximam de ti, e são iluminados pela tua luz,junto da qual recebem o poder de se fazerem teus filhos?

Mas se estes são menos conhecidos pelo mundo dos homens, mesmo os que osconhecem se alegram menos; mas quando a alegria é partilhada por muitos, aindaé maior em cada um, porque se aquece e inflama de uns para os outros.

Ademais, os que são conhecidos de muitos, arrastam à salvação muitos outros, ecaminham adiante seguidos dos que os imitam. Por isso, grande é a alegria dosque os precederam, por que não se regozijam só consigo.

Mas, longe de mim pensar que no teu tabernáculo são mais aceitos os ricos que ospobres, e os nobres mais do que os plebeus, porque escolheste os fracos segundo omundo para confundir os fortes; o que é vil e desprezível segundo o mundo, a quenão é nada, para aniquilar o que é.

Contudo, o menor de teus apóstolos, por cuja boca pronunciaste essas palavras,quando suas armas abateram o orgulhoso procônsul Paulo, sujeitando-o ao levejugo de teu Cristo e fizeram dele um súdito do grande Rei, quis, parar comemorartão grande triunfo, mudar seu nome de Saulo pelo de Paulo. De fato, o adversárioé mais completamente vencido naquilo em que tinha maior domínio e por meio doque retém maior número de sequazes. Ora, o inimigo domina com mais força ossoberbos pela nobreza de seu nome e, graças a estes, número maior pelo prestígiode sua autoridade.

Assim, na medida em que o coração de Vitorino era tido como fortalezainexpugnável antes ocupada pelo demônio, e sua língua como dardo poderoso e

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agudo, que tantas vezes havia dado a morte às almas, tanto mais copiosamentedeviam exultar teus filhos, ao verem que nosso Rei agrilhoara o forte, e que seusvasos roubados, eram agora purificados e destinados à tua honra, convertendo-seem instrumentos úteis ao Senhor para toda obra boa.

CAPÍTULOV-Asduasvontades

Mal teu servo Simpliciano me contou a conversão de Vitorino, ardi no desejo deimitá-lo; aliás, era esta a finalidade da narração de Simpliciano. Depoisacrescentou que nos tempos do imperador Juliano, uma lei proibia aos cristãosensinar literatura e oratória, e Vitorino, dócil à lei, preferiu abandonar a escola depalradores a abandonar teu Verbo, que torna eloqüentes as línguas dos meninos.Não só me pareceu corajoso como afortunado, por ter encontrado ocasião de seconsagrar por ti. Por isso eu suspirava, acorrentado não com os ferros de umavontade estranha, mas por minha férrea vontade.

O inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma corrente com a qual memantinha cativo. Da vontade perversa nasce a paixão, e desta satisfeita procede ohábito, e do hábito não contrariado provém a necessidade, e com estes anéisenlaçados entre si – por isso lhes chamei corrente – me mantinha preso em duraservidão. A nova vontade, que despontava em mim, de te servir sem interesse, deme alegrar em ti, ó meu Deus, única alegria verdadeira, ainda não era capaz devencer a vontade antiga e inveterada. Deste modo minhas duas vontades, a velhae a nova, a carnal e a espiritual, lutavam entre si e, nessa luta, dilaceravam-me aalma.

Entendi, por experiência própria, o que havia lido: a carne tem desejos contra oespírito, e o espírito contra a carne. Eu vivia ao mesmo tempo a ambos, emboramais o que aprovava em mim do que o que em mim desaprovava. Com efeito,nesta última parte de mim eu era passivo e constrangido, mais do que ativo elivre.

E,contudo, o hábito que se impunha contra mim vinha de mim mesmo, pois foravoluntariamente que eu chegara onde não queria. E quem poderia protestarlegitimamente, se um castigo justo segue o pecador?

Eu já não tinha aquela desculpa, com a qual persuadia-me de que, se ainda nãodesprezava o mundo para te servir, era porque não tinha visão clara da verdade,uma vez que agora já a conhecia de modo indiscutível. Mas, ainda apegado à

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terra, recusava-me a combater em tuas fileiras, e temia ver-me livre dos meuslaços, quando devia temer estar por eles atado.

Assim, sentia-me docemente oprimido pelo peso do mundo, como em um sonho, eos pensamentos com que meditava em ti eram semelhantes aos esforços dos quedesejam despertar, mas, vencidos pela sonolência, voltam dormir. Não há ninguémque queira dormir sempre, e segundo dita o bom senso, é melhor estar despertoque dormir. Contudo, às vezes retarda-se o despertar, quando o torpor torna osmembros pesados, e, mesmo a contragosto, continua-se a dormir mesmo depois dechegada a hora de despertar. Assim eu estava certo que era melhor entregar-mea teu amor que ceder à minha paixão. O primeiro me agradava, me dominava; osegundo me encantava, me prendia.

Já não tinha o que responder quando me dizias: “Desperta, ó tu que dormes,levanta-te de entre os mortos, e Cristo te há de iluminar”. E quando por todos osmeios me mostrava a verdade do que dizias, e de que eu estava convencido, nãotinha absolutamente nada para responder, senão umas palavras preguiçosas esonolentas: Um momento... Depois... Um pouquinho mais...

Mas este pouquinho não tinha fim, e este momento se ia prolongando.

Em vão me deleitava em tua lei, segundo o homem interior, porque em meusmembros outra lei combatia a lei de meu espírito, mantendo-me cativo sob a leido pecado que estavas em meus membros. Com efeito, a lei do pecado é aviolência do hábito, pelo qual a alma é arrastada e presa, mesmo contra suavontade, merecidamente porém, pois se deixa arrastar por vontade própria. Pobrede mim! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte senão tua graça, porCristo, nosso Senhor?

CAPÍTULOVI-AnarraçãodePonticiano

Agora contarei de que modo me arrancaste do vínculo do desejo carnal, que meprendia fortemente, e da servidão dos negócios do mundo, e confessarei teu nome,ó Senhor, meu auxílio e minha redenção. Levava minha vida habitual com angústiacrescente; todos os dias suspirava por ti, freqüentava tua igreja, quando medeixavam livre os negócios, cujo peso me fazia sofrer.

Comigo estava Alípio, desonerado do cargo de jurisconsulto, depois de ter sidoassessor pela terceira vez. Ele aguardava a quem vender de novo seus conselhos,

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como eu vendia arte da eloqüência, se é que pelo ensino a podemos transmitir.

Nebrídio, por sua vez, acendendo às nossas solicitações amigas, auxiliava na escolaa nossa amigo íntimo, Verecundo; este, gramático e cidadão milanês, desejavaenormemente, e nos instava em nome da amizade, que um de nós lhe prestasseuma fiel colaboração, pois dela muito necessitava.

Não foi, pois, o interesse que moveu a Nebrídio – que poderia auferir bem maisvantagens se ensinasse as letras – mas, como grande amigo que era, não quisrecusar nosso pedido em obsequio à amizade. Agia, porém, com muita prudência,evitando fazer-se conhecido dos poderosos deste mundo, para evitar asinquietações do espírito que ele queria manter o mais possível livre e desocupadopara investigar, ler ou ouvir algo sobre a sabedoria.

Certo dia em que Nebrídio estava ausente, não sei por que motivo, Alípio e eurecebemos a visita de um tal Ponticiano, nosso compatriota da África, que serviaem alto cargo do palácio.

Não sei mais o que queria de nós.

Sentamo-nos para conversar, e, por acaso, deu com os olhos em um livro queestava sobre a mesa de jogo, à nossa frente. Pegou-o, abriu-o, viu que eram asepístolas de Paulo e ficou surpreso, pois pensava que se tratasse de algum doslivros cujo estudo me preocupava.

Então sorriu para mim e, cumprimentando-me, manifestou-me sua admiração porter encontrado aquele livro, e só aquele, ao alcance dos meus olhos. Ponticianoera um cristão fiel, e muitas vezes prostrava-se diante de ti, nosso Deus, na igreja,em freqüentes e prolongadas orações.

E quando lhe declarei que aquele livro ocupava o melhor de minha atenção,tomando a palavra, começou a falar-nos de Antão, monge do Egito, cujo nome eracelebrado entre teus fiéis, mas que nós desconhecíamos até aquela hora.Informado disto, continuou a falar, revelando esse grande homem à nossaignorância, que ele muito admirou.

Ouvíamos, estupefatos, tuas autenticas maravilhas, realizadas na verdadeira fé,na Igreja Católica, tão recentes e quase contemporâneas. Todos nos admirávamos;

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nós, por serem coisas tão grandes; e ele, por ser-nos tão desconhecidas.

Depois, passou a falar das multidões que vivem em mosteiros, e de seus costumes,que trazem teu doce perfume, e da fecunda solidão do ermo, coisas todas quedesconhecíamos.

Até em Milão havia, fora dos muros, um mosteiro cheio de bons irmãos sob adireção de Ambrósio, que também desconhecíamos.

Ponticiano prosseguia, e falava sempre mais, e nós o ouvíamos atentos e calados.E assim veio a nos contar que um dia, não sei quando, estando em Tréveris, saiuem companhia de três companheiros, enquanto o imperador se concentrava nosjogos circenses da tarde, para dar um passeio pelos jardins que rodeavam osmuros da cidade. Distraidamente passeando dois a dois, um com Ponticiano, e osoutros dois juntos, separaram-se e tomaram caminhos diferentes.

Caminhando a esmo, estes últimos deram com uma cabana, habitada por algunsservos teus, pobres de espírito, a quem pertence o reino dos céus. Lá encontraramum exemplar manuscrito da Vida de Santo Antão. Um deles começou a lê-lo, e,admirado e arrebatado cogitou, enquanto lia, em abraçar aquele gênero de vida,abandonando o serviço do mundo, para servir unicamente a ti.

Estes dois eram os chamados agentes de negócios do imperador. De repente,tomado de amor santo e casto pudor, irado consigo mesmo, olha para ocompanheiro, e lhe diz: “Dize-me, te peço, onde pretendemos chegar com todosestes nossos trabalhos? Que buscamos? Qual a finalidade do nosso labor? Podemosaspirar mais no palácio do que ser amigos do imperador? E mesmo nisto, quantaincerteza, quantos perigos! E quantos perigos teremos de passar para chegar a umperigo ainda maior? E quando chegaremos a isso? Mas, se eu quiser ser amigo deDeus, posso sê-lo agora mesmo”. Disse essas palavras, e exaltado pela gestação danova vida voltou os olhos para o livro; ao ler, transformava-se interiormente, oque só tu sabias, e seu espírito se despia do mundo, como logo se evidenciou.

Enquanto lia, o coração se lhe tornou um mar tempestuoso, sentiu umestremecimento e, intuindo o melhor caminho a tomar, resolveu abraçá-lo,dizendo ao amigo:

“Já rompi com nossos sonhos: decidi dedicar-me ao serviço de Deus, e isso querocomeçar aqui e agora. Se não me queres imitar, ao menos não me contraries”.

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O amigo respondeu que desejava ficar com ele, e ser companheiro de tão nobremercê e de tão grande combate. Ambos já te pertenciam, e começavam aconstruir, com capital suficiente, uma torre de salvação, a tudo renunciando parate seguir.

Então Ponticiano e seu companheiro, que passeavam em outro local do jardim,procurando-os, deram também com a mesma cabana, e os avisaram para quevoltassem, pois já entardecia. Mas eles, relataram-lhes sua determinação epropósito, e o modo como nascera e se fixara neles tal desejo, pediram-lhes que, senão quisessem juntar-se a eles, que não os molestassem. Mas estes, sem seconverterem, lamentaram a si mesmos, no dizer de Ponticiano, e felicitando-ospiedosamente, recomendaram-se às suas orações; depois, arrastando o coraçãopela terra, voltaram ao palácio, enquanto que os convertidos, fixando seu coraçãono céu, ficaram na cabana.

Ambos eram noivos; mas, quando suas noivas ouviram o sucedido, também teconsagraram sua virgindade.

CAPÍTULOVII-AreaçãodeAgostinho

Eis o que Ponticiano nos relatou. E tu, Senhor, enquanto ele falava, me faziasrefletir, tirando-me da posição de costas, em que me colocara para não me ver amim mesmo. Tu me colocavas diante de meu próprio rosto para que visse comoestava indigno, disforme, sórdido, manchado e ulceroso.

Eu me via, e enchia-me de horror, mas não tinha para onde fugir de mim mesmo.Se tentava afastar o olhar de mim mesmo, Ponticiano prosseguia com a narração,e de novo me punhas diante de mim, e me empurravas diante de meus olhos, paraque eu descobrisse minha iniqüidade e a odiasse. Eu bem a conhecia, mas adissimulava, fingia não ver, esquecia.

E quanto mais ardentemente amava aqueles jovens, cuja salutar decisão ouviarelatar, por se terem entregue completamente a ti para que os curasses, tantomais acerbamente me odiava ao me comparar com eles. Com efeito, já tinhamdecorrido muitos anos – talvez uns doze – desde que, ao dezenove anos, lendo oHortênsio de Cícero, sentira-me atraído para o estudo da sabedoria. Ia adiando ahora de abandonar a felicidade meramente terrena, quando não somente a suadescoberta, mas a sua própria busca, deveria ser preferida aos maiores tesourosdo mundo e aos maiores prazeres corporais, que a um aceno, afluíam a meu redor.

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Mas eu, jovem miserável, sim, miserável desde o despertar da juventude, já tehavia pedido a castidade, dizendo: “Dá-me castidade e continência, mas nãoagora” – pois temia que me atendesse muito depressa, e que me curasses logo dadoença de minha concupiscência, que eu mais queria saciar do que extinguir. Ecaminhei pelas sendas ruins de uma superstição sacrílega, não porque estivessecerto dela, mas porque a preferia às demais doutrinas, que eu não estudavapiedosamente, mas que hostilmente combatia.

Acreditava que o motivo por que adiava dia a dia o desprezo das promessasseculares, para seguir apenas a ti, era o não ter descoberto uma claridade capazde dirigir meus passos.

Veio, então, o dia em que me vi nu, a ouvir as repreensões de minha consciência:“Onde está a tua palavra? Não dizias que tua indecisão para lançar longe o fardode tua vaidade se devia à incerteza? Agora tens a certeza, e não obstante, aindate oprime esse fardo; outros, no entanto, que não se consumiram tanto emprocurá-la, nem meditaram dez anos ou mais sobre tais problemas, vêem nascerasas em seus ombros mais livres”.

Assim me roia interiormente, devorado por enorme e terrível vergonha, enquantoPonticiano contava aquilo tudo. Finda a conversa, e resolvida a questão a queviera, Ponticiano voltou para sua casa, e eu para dentro de mim. Que coisas nãodisse contra mim? Com que açoite de palavras não flagelei minha alma, paraobrigá-la a me seguir em meus esforços para te alcançar! Ela resistia, recusava-se,sem se desculpar. Todos os argumentos já estavam esgotados e refutados. Nadalhe restava, senão uma angústia muda: tinha medo, como da morte, de ser tolhidaà corrente do vício, onde se corrompia mortalmente.

CAPÍTULOVIII-Lutaespiritual

Então, em meio àquela luta interior que eu travava violentamente contra mimmesmo no recesso do meu coração, perturbado no rosto e no espírito, volto-mepara Alípio exclamando:

“Que tanto nos aflige? O que significa isto que ouviste? Levantam-se os ignorantese arrebatam o céu, e nós, com todo nosso saber insensato, nos revolvemos nacarne e no sangue! Acaso temos vergonha de segui-los porque se nos adiantaram,e não temos vergonha de não os seguir?”

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Foi mais ou menos o que eu lhe disse, e dele me afastei sob forte emoção. Alípiome olhava atônito em silêncio. Eu não falava como de costume, e muito mais queas palavras, minha fronte, minhas fazes, meus olhos, minha cor e o tom de minhavoz denunciavam meu estado de espírito.

Nossa casa tinha um pequeno jardim, que usávamos, assim como o restante dacasa, que nosso hóspede não habitava. Para ali me levara a tormenta de meucoração, onde ninguém pudesse interferir no ardente combate que eu travavacomigo mesmo, até que se resolvesse o assunto conforme tu sabias e eu ignorava.Mas eu delirava para reencontrar a razão, e morria para reviver; conhecia meumal, mas desconhecia o bem que depois haveria de sobrevir.

Retirei-me, pois, para o jardim, e Alípio seguiu-me passo a passo; mas, apesar desua presença, eu não estava menos só. E como haveria ele de me deixar naqueleestado? Sentamo-nos o mais longe possível da casa. Eu tremia pela violentaindignação, me enraivecia por não poder seguir teu agrado e aliança, ó meu Deus,aliança pela qual clamavam todos os meus ossos, que te elevavam louvores até océu. E para ir a ti não há necessidade de navios nem de carros, nem mesmo de daraqueles poucos passos que separavam a casa do jardim onde estávamos.

Não somente ir, mas chegar junto de ti, nada mais é do que querer ir, mas comquerer enérgico e pleno, e não com vontade tíbia, que se dispersa em todos ossentidos, e se agita incerta, dividida, ora levantando-se, ora voltando a cair.

Enfim, naquela angustiante hesitação, fazia mil gestos, como soem fazer os homensque querem e não podem, ou porque não têm membros, ou porque os têm atadosem cadeias, debilitados pela fraqueza ou paralisados de qualquer outro modo. Sepuxei os cabelos, se feri a fronte, se apertei os joelhos entre os dedosentrelaçados, eu o fiz porque quis. Poderia porém querer fazê-lo e não o fazer, se aflexibilidade de meus membros não me obedecesse. Portanto, fiz muitas coisas, nasquais o querer não era o mesmo que o poder.

Contudo, eu não fazia aquilo que desejava acima de tudo o mais, e que eu poderiafazer desde que o quisesse, porque se o tivesse efetivamente querido, bastava queo quisesse sinceramente; nisto o poder é o mesmo que o querer, e querer já seriaagir.

Contudo não o fazia, e meu corpo obedecia mais facilmente ao mais leve comandode minha alma, movendo os membros segundo sua vontade, do que a própria alma

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obedecer a si mesma para realizar seu grande desejo com a vontade.

CAPÍTULOXI-Adesobediênciadavontade

Mas, de onde vinha este prodígio? Qual sua causa? Brilhe a tua misericórdia, eperguntarei – se é que me podem responder – aos sombrios castigos infligidos aoshomens, e às tenebrosas misérias dos filhos de Adão. De onde vem este prodígio?E qual sua causa?

A alma dá ordens ao corpo, e este obedece imediatamente; a alma dá ordens a simesma, e resiste. Ordena a alma à mão que se mova, e é tal sua presteza, que malse pode distinguir a ordem da execução; não obstante, a alma é espírito e a mão écorpo. A alma dá a si mesma a ordem de querer, uma não se distingue da outra, econtudo, ela não obedece. De onde este prodígio? E qual sua causa?

Manda a alma que queira – e não mandaria se não quisesse – e, não obstante, nãofaz o que manda. Logo, não quer totalmente, e por isso não manda de modo total.A alma manda na proporção do querer, e enquanto não quiser, suas ordens nãosão executadas, porque é a vontade que dá a ordem de ser a uma vontade quenada mais é que ela própria. Logo, não manda plenamente, e esta é a razão porque não faz o que manda. Porque, se estivesse em sua plenitude, não mandariaque fosse, porque já seria.

Não há, portanto, prodígio algum em querer em parte e em parte não querer; éuma enfermidade da alma. Esta, sustentada pela verdade, não se ergue de todo,pois está oprimida pelo peso do hábito. Há, portanto, duas vontades, ambasincompletas, e o que uma possui falta à outra.

CAPÍTULOX-Contraosmaniqueus

Desapareçam de tua presença, ó meu Deus, como os vãos faladores e sedutores doespírito, aqueles que, ao observarem a dupla deliberação da vontade, concluemque temos duas almas de naturezas opostas, uma boa, outra má.

Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bonsquando aceitarem a verdade, concordando com os que a possuem. E assim oApóstolo poderá dizer deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor.Mas esses, querendo ser luz não no Senhor, mas em si mesmos, julgam que anatureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se tornando trevas ainda mais

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densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti, luzverdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. Atentai para o quedizeis, e enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossosrostos não serão cobertos de confusão.

Quando eu deliberava dedicar-me ao serviço do Senhor meu Deus, como de hámuito me tinha proposto, eu era o que eu queria, e lera o que eu não queria. Mas,nem queria plenamente, nem deixar de querer por completo. Por isso lutavacomigo mesmo, e me dilacerava a mim mesmo. Essa destruição, emborainvoluntária, não mostrava, contudo, a presença em mim de uma alma estranha,mas apenas o castigo de minha alma. E por isso já não era eu quem mo infligia,mas o pecado que habitava em mim, como castigo de pecado cometido livremente,por ser eu filho de Adão.

Com efeito, se fossem tantas as naturezas contrárias quantas são as vontades queem nós se contradizem, não deveríamos admitir apenas duas naturezas, masmuitas. Se alguém, com efeito, hesita entre uma reunião dos maniqueístas ou aoteatro, logo eles exclamam: “Eis aí as duas naturezas, uma boa, que o atrai paracá, e outra má, que o arrasta pra lá. E de onde mais viria essa hesitação devontades opostas?”

De minha parte eu digo que ambas são más, tanto a que leva a eles como a quearrasta ao teatro; mas eles só julgam boa a que leva até eles.

Mas, suponhamos que um dos nossos queira decidir, e conflitando as duasvontades, titubeie entre ir ao teatro ou à nossa igreja; não ficarão indecisos osmaniqueístas na resposta que hão de dar? Porque, ou hão de confessar o que nãoquerem, que é boa a vontade que o leva à nossa igreja, como vão a ela os queforam iniciados em seus mistérios e lhe permanecem fiéis, ou terão de reconhecerque num mesmo homem lutam duas naturezas más e duas almas más. E entãoterão de contradizer o que afirmam, que uma natureza é boa e outra má. Ouentão terão de aceitar a verdade e, neste caso, não negarão que, quando alguémescolhe, é uma mesma alma a que hesita entre duas vontades opostas.

Portanto, quando virem duas vontades que se contrapõem ao mesmo homem, nãofalem mais de luta entre duas almas contrárias, uma boa e outra má, originadasem duas substâncias antagônicas. Porque tu, ó Deus verdadeiro, os confundes,como no caso em que ambas as vontades são más; por exemplo, quando alguémhesita, entre matar a outrem com um punhal ou veneno; entre assaltar esta ou

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aquela propriedade alheia, quando não pode assaltar a ambas; entre esbanjar nacompra do prazer da luxúria, ou guardar dinheiro por avareza; entre ir ao circo ouao teatro, quando ambos sejam concomitantes; e ainda acrescento uma terceiraincerteza: entre roubar ou não a casa do próximo, em havendo a oportunidade, ouainda, acrescento uma quarta hipótese: entre cometer ou não adultério, se tempossibilidade para isso. Suponhamos que todas essas circunstâncias ocorramsimultaneamente; como todas são igualmente desejadas, e irrealizáveis ao mesmotempo, a alma será dilacerada por um conflito entre quatro vontades, ou maisainda, tão numerosos são os objetos de desejo! Contudo, os maniqueus nãoafirmam que existe tão grande número de substâncias diferentes.

O mesmo acontece com as vontades boas. Se eu lhes pergunto se é bom deleitar-se com a leitura do Apóstolo, com a leitura de algum salmo espiritual, ou com ocomentar do Evangelho, eles responderão a cada questão: “É bom” – Ora, se astrês atividades têm a mesma atração simultaneamente, não teríamos vontadesopostas a dividir o coração do homem, enquanto escolhe qual delas abraçar depreferência?

Todas essas vontades são boas, e lutam entre si, até que se tome uma decisão,que unifique a vontade, antes dividida. Assim também, quando a eternidadeagrada à nossa parte superior e o bem temporal nos prende fortemente cáembaixo: é a mesma alma que, sem uma vontade plena, quer um e outro dessesbens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a verdade nos faz preferir a eternidade,mas o hábito não quer abandonar os bens temporais.

CAPÍTULOXI-Últimasresistências

Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume,rolando-me e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se as quebrava porcompleto. Elas mal me prendiam,mas ainda me prendiam. E tu, Senhor, meespicaçavas no fundo de minha alma, e com severa misericórdia redobravas osaçoites do temor e da vergonha, para que eu não afrouxasse de novo, e para quequebrasse minha tênue e leve cadeia, antes que ela se revigorasse para meprender mais firmemente.

E dizia comigo mesmo: “Vamos! Mãos à obra, sem demoras!” E quase passava dapalavra à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. Eu já não recaía nas antigaspaixões, mas delas estava bem próximo, e tomava ainda alento de seu ar. Quase aalcançava, faltava pouco, cada vez menos, e já quase chegava ao termo e asegurava; mas não a alcançava, nem a tocava; hesitava entre morrer para a

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morte e viver para a vida. O mal arraigado dominava-me mais do que o bem, cujohábito eu não possuía; na medida que ia se aproximando o momento em que metransformaria em outro homem, maior era o horror que me incutia, sem contudome fazer voltar para trás ou mudar de caminho. Simplesmente mantinha-meindeciso.

Mantinham-me preso umas tantas bagatelas, umas vaidades de vaidades, antigasamigas minhas, que me puxavam por minhas vestes carnais, murmurando: “Então,nos abandonas? De agora em diante nunca mais estaremos contigo? Desde estemomento nunca mais te será lícito isto ou aquilo?”

E que coisas, meu Deus, que torpezas me sugeriam com o que chamei de isto ouaquilo!

Por tua misericórdia, afasta-as da alma de teu servo! Oh! Que imundícies mesugeriam, que indecências! Já se reduzira a menos da metade o número de vezesque eu lhes dava ouvidos; não era mais um assalto aberto, frontal, mas segredadopor cima dos ombros, e como que puxando-me furtivamente, se me afastava, paraque me voltasse para trás.

Contudo, faziam com que eu, vacilante, tardasse em me separar delas para correrpara onde me chamavam, enquanto o hábito violento me dizia: “Julgas quepoderás viver sem elas?”

Mas isto já dizia com voz muito débil. Para onde voltava o rosto, e por onde temiapassar, mostrava-se para mim a casta dignidade da continência, serena e alegre,sem desordens, acariciando-me honestamente para que me aproximasse semmedo. Estendia para mim, para me acolher e abraçar, suas mãos piedosas, cheiasde uma multidão de bons exemplos.

Junto dela, uma turba de meninos e meninas, uma juventude numerosa, e homensde toda idade, viúvas veneráveis e virgens idosas. Em todas essas almas, não eraestéril, mas fecunda a mãe de filhos nascidos nas alegrias do esposo, que eras tu,Senhor!

E a continência zombava de mim com ironia animadora, como se dissesse: “Então,não serás capaz de fazer o mesmo que eles? Ou será que estes e estasencontraram forças em si mesmos, e não no Senhor, seu Deus? Foi o Senhor Deus,quem me entregou a eles. Por que te apóias em ti, se és vacilante? Lança-te nele,

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não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não cairás. Lança-te com confiança,que ele te receberá e te curará.”

E enchia-me de vergonha por ainda ouvir o murmúrio daquelas bagatelas e,vacilante, continuava indeciso.

Mas de novo a voz da castidade parecia me dizer: Não dês ouvidos às tentaçõesimundas da tua carne impura que te prende à terra, a fim de que seja mortificada.Ela te fala de deleites, contrários porém, à lei do Senhor teu Deus.

Essa luta se desenrolava no fundo do meu espírito, de mim contra mim mesmo.Alípio, sem sair de perto de mim, aguardava em silêncio o desfecho de minhainsólita agitação.

CAPÍTULOXII-Aconversão

Mas logo que esta profunda reflexão tirou da profundeza de minha alma, e expôstoda minha miséria à vista de meu coração, caiu sobre mim enorme tormenta,trazendo copiosa torrente de lágrimas. E para dar-lhe toda vazão com seusgemidos, afastei-me de Alípio; a solidão parecia-me mais adequada e me afastei omais longe possível, para que sua presença não me fosse embaraçosa. Tal era oestado em que encontrava, e Alípio percebeu-o, pois lhe disse alguma coisa comum timbre de voz embargado de lágrimas que me denunciou.

Alípio, atônito, continuou no lugar em que estávamos sentados; mas eu, não seicomo, me retirei para a sombra de uma figueira, e dei vazão às lágrimas; e doisrios brotaram de meus olhos, sacrifício agradável a teu coração. E embora não comestes termos, mas com o mesmo sentido, muitas coisas te disse como esta: E tu,Senhor, até quando? Até quando, Senhor, hás de estar irritado! Esquece-te deminhas iniqüidades passadas! Sentia-me ainda preso a elas, e gemia, e lamentava:“Até quando? Até quando direi amanhã, amanhã? Por que não agora? Por quenão pôr fim agora às minhas torpezas?”

Assim falava, e chorava oprimido pela mais amarga dor do meu coração. Mas eisque, de repente, ouço da casa vizinha uma voz, de menino ou menina, não sei, quecantava e repetia muitas vezes: “Toma e lê, toma e lê”.

E logo, mudando de semblante, comecei a buscar, com toda a atenção em minhaslembranças se porventura esta cantiga fazia parte de um jogo que as crianças

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costumassem cantarolar; mas não me lembrava de tê-la ouvido antes. Reprimindoo ímpeto das lágrimas, levantei-me. Uma só interpretação me ocorreu: a vontadedivina mandava-me abrir o livro e ler o primeiro capitulo que encontrasse.

Tinha ouvido dizer que Antão, assistindo por acaso a uma leitura do Evangelho,tomara para si esta advertência: “Vai, vende tudo o que tens, dá-lo aos pobres, eterás um tesouro no céu; depois vem e segue-me” – e que esse oráculo decidiraimediatamente sua conversão.

Depressa voltei para o lugar onde Alípio estava sentado, e onde eu deixara o livrodo Apóstolo ao me levantar. Peguei-o, abri-o, e li em silêncio o primeiro capítuloque me caiu sob os olhos: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nosprazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e rixas; masrevesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis de satisfazer os desejos dacarne”.

Não quis ler mais, nem era necessário. Quando cheguei ao fim da frase, umaespécie de luz de certeza se insinuou em meu coração, dissipando todas as trevasde dúvida.

Então, marcando com o dedo, ou não sei com que, fechei o livro, e com o rosto játranqüilo, revelei a Alípio o que se passara. Ele, por sua vez, me revelou o queacontecera com ele, e que eu ignorava. Pediu para ver o que eu tinha lido;mostrei-lhe, ele prosseguiu a leitura. Eu ignorava o texto seguinte, que era este:Recebei ao fraco na fé, palavras que aplicou a si mesmo, e mo revelou. Fortificadopor essa advertência, firmou-se nessa resolução e santo propósito, bem de acordocom seus costumes, nos quais já há muito tempo tomara grande vantagem sobremim.

Fomos depois à procura de minha mãe, que ao saber do sucedido, ficou radiante.

Contamo-lhe como o caso se passara; ela exultou, triunfante e bendizendo a ti, queés poderoso para dar-nos mais do que pedimos ou entendemos, porque via que lhehavias concedido, a meu respeito, muito mais do que constantemente te pediacom tristes gemidos e lágrimas.

De tal forma me converteste a ti, que já não procurava esposa, nem abrigavaesperança alguma deste mundo, mas estava já naquela “regra de fé” em que hátantos anos me havias mostrado à minha mãe. E assim converteste seu pranto em

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alegria, muito mais fecunda do que havia desejado, e muito mais preciosa e purado que a que podia esperar dos netos nascidos de minha carne.

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LIVRONONO

CAPÍTULOI-Colóquio

Ó Senhor, sou teu servo e filho de tua serva. Rompeste minhas cadeias: eu tesacrificarei uma vítima de louvor. Louvem-te meu coração e minha língua, e quetodos os meus ossos te digam: Senhor, quem semelhante a ti? Que eles te digamessas palavras e que me respondas e digas à minha alma: Eu sou tua salvação.

Quem sou eu, e como era? Que males não tive em minhas obras, ou, se não emminhas obras, em minhas palavras, ou, se não em minhas palavras, em minhavontade! Mas tu, Senhor, bom e misericordioso, puseste os olhos na profundeza deminha morte, e purificaste com tua destra o abismo de corrupção de minha alma.Tratava-se agora apenas de não querer o que eu queria, e de querer o que tuquerias.

Mas, onde esteve meu livre arbítrio durante tantos anos? De que profundo emisterioso abismo foi ele chamado num instante, para que eu inclinasse a cerviz ateu jugo suave e o ombro a teu leve fardo, ó Cristo Jesus, meu auxílio e redenção?

Quão suave foi para mim a privação de doçuras fúteis! Temia então perdê-las,como agora sentia prazer em deixa-las! Porque tu se afastavas de mim, e entravasem seu lugar, mais doce que qualquer prazer, mas não para a carne e o sangue;mais claro que toda luz, mais oculto que qualquer segredo; mais sublime que todasas honras, mas não para os que exaltam a si mesmos.

Minha alma já estava livre dos devoradores cuidados da ambição, do ganho, e doprurido dos apetites carnais; e falava muito comigo, ó Deus e Senhor meu, minhaluz, minha riqueza, minha salvação!

CAPÍTULOII-Adeusaomagistério

Pareceu-me de bom alvitre, em tua presença, não abandonar de modo ostensivo oministério da minha língua, mas retirá-lo suavemente do mercado da loquacidade,para que dali por diante os jovens, que não se preocupam com tua lei ou paz, mascom as enganosas loucuras e contendas forenses, não comprassem de minha bocaarmas para seu furor. Felizmente faltavam pouquíssimos dias para as férias dasvindimas (é provável que as férias de outono dos estudantes coincidissem com asférias dos tribunais, que se iniciavam em 22 de agosto, e terminavam em 15 de

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outubro). Decidi suportá-los até lá. Então me retiraria como de costume, e,resgatado por ti, não tornaria mais a vender meu ofícios.

Esta minha determinação, te era conhecida; dos homens, só a conheciam os deminha intimidade. E, mesmo assim, tínhamos combinado de nada deixar transpirar.Contudo, quando subíamos do vale de lágrimas, cantando o cântico gradual (sériede salmos cantados pelos peregrinos que sobem os degraus do templo deJerusalém) nos tinhas dado setas agudas e carvões destruidores contra a línguapérfida que contradiz, sob o pretexto de aconselhar e, como quem se alimenta,consome o que ama.

Tinhas alvejado nosso coração com as setas do teu amor, e levávamos tuaspalavras cravadas em nossas entranhas; os exemplos de teus servos, que dastrevas trouxeram para a luz, e da morte para a vida, ardiam no fundo de nossoespírito em uma espécie de fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, paraque não mais nos inclinássemos para as baixezas.

Estávamos inflamados de tal ardor, que o vento da contradição das línguas dolosasnão nos apagaria, antes fazia-nos arder mais e mais.

Contudo, por causa de teu nome, que santificaste em toda terra, nossa decisão epropósito teriam também quem os louvasse. Pareceria de certo modo jactâncianão aguardar as férias tão próximas; abandonar antes dessa data uma profissãopública, e exposta a todos, seria atrair sobre minha conduta todas as atenções,provocando comentários. Diriam que eu me adiantara às férias iminentes porquerer parecer grande personagem. E de que me valeria que pensassem oudiscutissem sobre minhas intenções, blasfemando sobre o meu bem?

Além disso, nesse mesmo verão, devido ao excessivo trabalho didático, meuspulmões começaram a se ressentir; respirava com dificuldade, e as dores no peitoe minha voz, que não saía clara ou prolongada, revelavam uma lesão. A princípiome senti angustiado, vendo-me quase obrigado a abandonar o fardo do magistérioou, para me curar e convalescer, teria certamente de o interromper. Mas, quandonasceu em mim e se firmou a vontade plena de repousar e de ver que és o Senhor,então, tu o sabes meu Deus, que cheguei a me alegrar de encontrar esta desculpaverdadeira para moderar o sentimento das famílias, que por causa de seus filhosnunca me permitiram ser livre.

Cheio dessa consolação, esperava que escoasse aquele tempo – talvez uns vinte

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dias.

Mas minguara minha coragem, porque já me abandonara a cobiça de ganho, queme ajudava a carregar este pesado encargo; e teria sucumbido se a paciência nãotomasse o lugar da ambição.

Talvez alguns de teus servos, meus irmãos, dirá que pequei nisso porque, estandocom o coração já cheio de desejos de te servir, consenti ficar mais uma horasentado na cátedra da mentira. Não discutirei. Mas tu, Senhormisericordiosíssimo, acaso não me perdoaste e resgataste também este pecado,junto com todos os demais horrendos e mortais na água santa do batismo?

CAPÍTULOIII-Doisamigos

Angustiava-se Verecundo por este nosso bem, porque se via afastado de nossacompanhia pelos vínculos matrimoniais que o aprisionavam fortemente. Não eraainda cristão, como sua mulher, mas justamente nela encontrava o maiorobstáculo que o impedia de entrar pelo caminho que havíamos começado a trilhar;não queria ser cristão, dizia ele, senão do modo que justamente lhe era proibido.

Contudo, com sua grande bondade, pôs à nossa disposição sua propriedade nocampo pelo tempo que nos aprouvesse. Tu, Senhor, haverás de recompensá-lo nodia da retribuição dos justos, pois já concedeste a graça. Porque, estando nósausentes e já em Roma, atacado de uma enfermidade corporal, Verecundo saiudesta vida depois de se fazer cristão e crente. Assim te compadeceste não apenasdele, mas também de nós, para que quando pensássemos na grande generosidadeque teve conosco este amigo, não nos afligíssemos de dor intolerável por nãopoder contá-lo entre os de tua grei.

Graças te sejam dadas, ó Deus nosso! Somos teus: tuas exortações e consolos oindicam.

Fiel cumpridor de tuas promessas, concedes a Verecundo a amenidade de teuparaíso sempre florido, por nos ter oferecido sua propriedade de Cassicíaco, naqual descansamos em ti das angústias do século; lhe perdoaste os pecados sobre aterra, na tua montanha, a montanha da abundância.

Verecundo, como disse, angustiava-se, mas Nebrídio partilhava a nossa alegria,porque, embora não sendo ainda cristão e houvesse caído no erro tão pernicioso

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de julgar que a carne verdadeira do teu Filho fosse mera aparência, já começava ase desvencilhar e, sem ter ainda recebido os sacramentos da tua Igreja, buscavaardentemente a verdade.

Não muito depois de nossa conversão e regeneração por teu batismo, fez-se porfim católico fiel. Servia-te na África junto aos seus, em castidade e continênciaperfeitas; toda sua família, sob sua influência, se fizera cristã. Libertaste-o entãodos laços da carne, vivendo agora no seio de Abraão, seja qual for o significadodessa expressão. Ali vive meu Nebrídio, meu doce amigo que, de liberto, se tornouteu filho adotivo. Ali vive – pois, que outro lugar conviria a uma alma assim? Alivive, nesse lugar sobre o qual indagava muitas coisas a mim, pobre homemignorante. Já não aproxima seu ouvido da boca, mas aproxima sua boca espiritualde tua fonte, e bebe avidamente de tua sabedoria, numa felicidade sem fim. Masnão creio que se embriague a ponto de esquecer de mim, enquanto tu, Senhor,que és sua bebida, te lembras de nós.

Essa era a nossa situação. Consolávamos o Verecundo que, sem que a amizadefenecesse, andava desgostoso com nossa conversão; nós o exortávamos a semanter fiel à sua condição conjugal. Quanto a Nebrídio, esperávamos que nosseguisse, pois, facilmente poderia fazê-lo, e já estava a ponto de se decidir. Enfim,aqueles dias passaram, e me pareceram tantos e tão longos, tal era meu desejo deliberdade e descanso, para cantar do fundo do meu ser: A ti meu coração: Procureiteu rosto; teu rosto, Senhor, hei de buscar.

CAPÍTULOIV-Adoçuradossalmos

Por fim, chegou o dia da libertação da profissão de retórico, da qual já melibertara em pensamento. Assim aconteceu. Livraste minha língua da tarefa deque há havias livrado meu coração. Eu te bendizia contente, e parti com todos osmeus, para a quinta de Verecundo. O que lá realizei nas letras, já a teu serviço,mas ainda com a respiração ofegante, como durante uma pausa da luta, e aindarespirando da soberba da erudição, é atestado pelos livros nos quais anotavameus debates com meus amigos ou comigo mesmo em tua presença (refere-se aosseguintes livros: Contra Acadêmicos, De beata vita, De ordine e dos Solilóquios).Do que tratei com Nebrídio, então ausente, claramente o indicam minhas cartas.

Mas quando encontrei tempo suficiente para dar testemunho de todos os grandesbenefícios que me concedeste nessa época da vida, uma vez que tenho pressa dechegar a outros assuntos mais importantes? Volta-me – e me é doce confessá-lo,Senhor – a lembrança dos estímulos internos com que me domaste; o modo como

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me aplanaste a alma derrubando as colinas e montanhas de meus pensamentos;como endireitaste meus caminhos tortuosos e suavizasse minhas asperezas; comotambém submeteste Alípio – o irmão de meu coração – ao nome de teu Filhoúnico, Jesus Cristo, Senhor e Salvador nosso, nome que ele mal suportava emminhas obras, porque preferia o cheiro dos soberbos cedros das escolas, jáabatidos pelo Senhor, ao odor das salutares ervas de tua Igreja, antídoto contra oveneno das serpentes.

Que invocações elevei a ti, meu Deus, lendo os Salmos de Davi, cânticos de fé,hinos de piedade, que expulsavam de mim todo sentimento de orgulho? Eu eraainda inexperiente de teu verdadeiro amor, e dividia minhas horas de lazer comAlípio, catecúmeno como eu. Minha mãe estava conosco. Ao aspecto da mulher elaaliava fé varonil, a calma da velhice, a ternura de mãe e a piedade de cristã. Queexclamações elevei a ti naqueles salmos, e como me inflamava com eles em teuamor! Incendiava-me em desejos de recitá-los, se fosse possível, ao mundo inteiro,para rebater a soberba do gênero humano! Com efeito, em todo o mundo secantam. Não há ninguém que se subtraia a teu calor.

Com que veemente e dolorosa indagação me levantava contra os maniqueístas! Ede novo me compadecia deles por ignorarem esses sacramentos, esses remédios,investindo loucamente contra o antídoto que poderia curá-los! Gostaria queestivessem perto de mim, sem que eu o soubesse, e que vissem meu rosto eouvissem minhas exclamações quando lia o Salmo 4 naquelas minhas férias, epercebessem os efeitos salutares que me produzia este salmo: Quando te invoquei,tu me escutaste, ó Deus de minha justiça! Dilataste minha alma na tribulação.

Compadece-te, Senhor, de mim, e ouve minha prece. Se me ouvissem – sem eu osaber, para que não pensassem que eram por causa deles as palavras que euentremeava às do salmo, porque realmente nem eu diria tais coisas, nem as diriadaquele modo, se soubesse da sua presença; e, mesmo que as palavras fossem asmesmas, ele não as entenderiam como eu as dizia a mim mesmo, diante de ti, naíntima efusão dos afetos de minha alma.

Estremeci de medo, ao mesmo tempo me abrasei de alegre esperança em tuamisericórdia, ó Pai! E todos estes sentimentos saíam pelos meus olhos e pela vozquando, dirigindo-se para nós, teu Espírito de bondade nos dizia: Filhos doshomens, até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais amentira?

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Também eu tinha amado a vaidade e buscado a mentira. Mas tu, Senhor, já haviasglorificado teu eleito, ressuscitando-o de entre os mortos e colocando-o à tuadireita, de onde haveria de nos enviar, segundo a promessa, o Paráclito, o Espíritoda Verdade. O Senhor estava glorificado, ressuscitando de entre os mortos, esubindo aos céus. Antes o Espírito ainda não tinha sido dado, porque Jesus aindanão tinha sido glorificado.

Clama o profeta: Até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade ebuscais a mentira? Sabeis que o Senhor já glorificou a seu santo. Clama: Atéquando? Clama: Sabei! – E eu sem o saber durante tanto tempo, amando avaidade e buscando a mentira!

Por isso tremi quando o ouvi, porque me lembrei de ter sido igual àqueles a quemtais palavras eram dirigidas. Os fantasmas que eu havia tomado pela verdadenada mais eram do que vaidade e mentira.

Ah! As queixas fortes e profundas que me inspiravam a dor da recordação! Oxaláas tivessem ouvido os que ainda amam a vaidade e buscam a mentira! Talveztambém se perturbassem e vomitassem seu erro. E tu os terias ouvidos quandoclamassem por ti, porque morreu por nós de verdadeira morte corporal aqueleque intercede por nós diante de ti.

Eu lia: Irai-vos, e não queirais pecar. Como me perturbavam tais palavras, meuDeus! Já havia aprendido a me irar contra mim mesmo pelos meus crimespassados, para não pecar mais; e de uma cólera justa, porque não era umanatureza estranha, da raça das trevas, a que em mim pecava, como dizem os quenão se indignam contra si, e acumulam contra si a ira para o dia da ira e darevelação de teu justo juízo?

Meus bens já não eram exteriores, e eu já não os buscava à luz deste sol, comolhos carnais. Os que querem gozar externamente, facilmente se dissipam ederramam pelas coisas visíveis e temporais, lambendo com pensamento famintoapenas as aparências. Oh! Se eles se esgotassem com a privação, e perguntassem:Quem nos mostrará o bem? E que ouvissem nossa resposta: Está gravada dentrode nós a luz de teu rosto, Senhor! – Porque não somos nós a luz que ilumina a todohomem, mas somos iluminados por ti, para que sejamos luz em ti, nós que outrorafomos trevas.

Oh! Se eles vissem essa luz interior e eterna que eu havia visto! E como a havia

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saboreado, irritava-me por não poder mostrá-la. Se, pelo seus olhares dirigidospara fora, visse seu coração afastado de ti, me dissessem: “Quem nos mostrará obem? Pois ali, onde me irritara contra mim mesmo, ali, no recôndito de meucoração onde, arrependido, eu havia sacrificado e imolado em mim o velhohomem; onde, pondo em ti minha esperança, começara a meditar a renovação demim mesmo, ali fizeste com que eu sentisse tua doçura, dando alegria a meucoração. E exclamava ao ler, fora de mim, essas palavras cuja verdade ecoava emmim; e não queria desdobrar-me pelos bens terrenos, devorando o tempo e sendopor ele devorado, porque possuía na eterna simplicidade outro trigo, outro vinhoe outro azeite.

E subia, no versículo seguinte, um profundo clamor de meu coração: Oh! Em paz!Oh! Em seu próprio Ser! Mas, que disse? Dormirei e descansarei! Com efeito,quem nos há de resistir quando se cumprir a palavra que está escrita: A morte foidevorada pela vitória?

Tu és esse mesmo Ser, e não mudas, e em ti está o repouso que faz esquecer todosos sofrimentos. Porque ninguém pode ser comparado a ti e nem vale pensar emadquirir outras coisas que não sejam o que tu és; mas tu, Senhor, singularmenteme firmaste na esperança.

Eu lia isto, e me inflamava. Não sabia que fazer com aqueles surdos, de quem eufora a peste, um cão raivoso e cego que ladrava contra a Bíblia, dulcificada por seumel celestial e iluminada por tua luz. E me consumia de dor por causa dos inimigosde tuas Escrituras.

Quando poderei recordar tudo o que aconteceu naqueles dias de descanso? Masnão esqueci, nem quero silenciar, a aspereza de um açoite que usaste em mim, e aadmirável presteza de tua misericórdia.

Atormentavas-me então com uma dor de dentes, que se agravara a tal ponto deme impedir até de falar. Ocorreu-me ao pensamento pedir a todos os amigos, querogassem por mim, ó Deus da salvação! Escrevi meu pedido numa tabuletaencerada, e lha dei para que o lessem.

Apenas dobramos os joelhos com suplicante afeto, logo a dor desapareceu. E quedor! E como desapareceu! Enchi-me de espanto, eu o confesso, meu Deus e Senhor.Nunca, desde minha infância, havia experimentado coisa semelhante.

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No fundo de meu coração penetrou o sinal da tua vontade e, alegre na fé, louveiteu nome. contudo, esta fé não me deixava viver tranqüilo quanto a meus pecadospassados, que ainda não me haviam sido perdoados por teu batismo.

CAPÍTULOV-OconselhodeAmbrósio

Terminadas as férias, informei aos milaneses que providenciassem para seusestudantes outro vendedor de palavras, visto que determinara consagrar-me ateu serviço; e mesmo porque não podia mais exercer aquela profissão peladificuldade de respirar e pelas dores que sentia no peito.

Também comuniquei por escrito a teu bispo e santo bispo Ambrosio, os meusantigos erros, minha intenção atual, para que me indicasse o que deveria ler depreferência em tuas Escrituras, a fim de me preparar e dispor melhor para recebertão grande graça.

Ele me indicou o profeta Isaías, creio que porque anuncia mais claramente que osdemais o Evangelho e vocação dos gentios. Contudo, nada tendo compreendido naprimeira leitura, e julgando que toda a obra era assim, decidi voltar a ela quandoestivesse mais familiarizado com a palavra do Senhor.

CAPÍTULOVI-BatismodeAgostinho.SeufilhoAdeodato

Chegado o tempo em que convinha nos inscrever para receber o batismo,deixamos o campo, e voltamos para Milão.

Alípio também quis renascer em ti comigo, já revestido de humildade tãoconforme a teus sacramentos. Era tão enérgico domador do seu corpo, quecaminhava com os pés descalços, com insólita coragem, sobre o chão gelado daItália.

Juntamos também a nós o jovem Adeodato, filho carnal de meu pecado; a quemdotaste de grandes qualidades. Tinha cerca de quinze anos, mas por seu talentoultrapassava já muitos homens maduros e doutos. Confesso-te que eram dons teus,meu Senhor e meu Deus, criador de todas as coisas, tão poderoso para corrigirnossas deformidades, pois este menino nada havia de meu, senão meu pecado. Seo criei em tua disciplina, foste tu, e mais ninguém, quem no-lo inspirou. Sim,confesso que eram dons teus.

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Há um livro meu que se intitula O Mestre, no qual Adeodato dialoga comigo. Tusabes que todos os pensamentos ali manifestados são dele quando tinha dezesseisanos. Muitas outras qualidades maravilhosas notei ainda nele, admirado por suainteligência. Mas quem, além de ti, poderia ser o autor dessas maravilhas? Cedo oarrebataste desta terra; e a lembrança dele se torna mais tranqüila, nada maistendo a temer por sua infância, por sua adolescência ou por toda sua vida adulta.Associamo-lo a nós como irmão na graça, para educá-lo em tua lei. Fomosbatizados, e os remorsos de nossa vida passada se afastaram de nós.

Naqueles dias eu não me fartava de considerar a grandeza de teus desígnios paraa salvação do gênero humano, pela inefável doçura que sentia. Quanto chorei aoouvir, profundamente comovido, teus hinos e cânticos que ressoavam suavementeem tua Igreja!

Penetravam aquelas vozes em meus ouvidos, e destilavam a verdade em meucoração. Acendia-se em mim um afeto piedoso, corriam-me lágrimas dos olhos, e opranto me consolava.

CAPÍTULOVII-Ocantodosfiéis-Os corposde SãoGervásio ede SãoProtásio

Não havia muito tempo que a igreja de Milão começara a adotar essa práticaconsoladora e edificante do canto, com grande regozijo dos fiéis, que uniam em umsó coro as vozes e o coração. Havia um ano, ou pouco mais, que Justina, mãe doimperador Valentiniano, ainda menor, seduzida pelos arianos, perseguia, porcausa de sua heresia, teu servo Ambrósio. O povo fiel passava as noites na igreja,disposto a morrer com seu bispo.

Nesse meio estava minha mãe, tua serva, uma das primeiras no zelo dessasinquietações e vigílias, não vivendo senão de orações. Nós, apensar de ainda frios,sem o calor de teu Espírito, nos sentíamos comovidos pela perturbação econsternação da cidade.

Foi então que se fixou o costume de cantar hinos e salmos, como se faz no Oriente,para que os fiéis não se consumissem no tédio e na tristeza. Desde esse dia essecostume manteve-se, e no resto do mundo, quase todas as tuas comunidades defiéis passaram a adotá-lo.

Foi também nessa época que revelaste em sonho ao bispo Ambrósio o lugar em

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que jaziam ocultos os corpos dos mártires Gervásio e Protásio, que durante muitotempo, conservastes intactos no tesouro de teus segredos, a fim de revelá-los nomomento oportuno para refrear o furor de uma mulher, embora imperatriz.

Com efeito, depois de descobertos e desenterrados, ao serem transladados com ashonras convenientes para a basílica ambrosiana, alguns possessos, atormentadospelos espíritos imundos, foram curados, conforme confissão dos próprios demônios.Também um cidadão, cego havia muitos anos, e muito conhecido na cidade,perguntou a razão daquele alvoroço e alegria populares; informado, pediu a seuguia que o levasse até ás relíquias. Lá chegando, obteve permissão para tocar comum lenço o ataúde de teus santos, cuja morte havia sido preciosa a teus olhos.Feito isto, aplicou o lenço aos olhos, que imediatamente se abriram.

A noticia do milagre logo se propagou, e imediatamente se ouviram teus louvorescom fervor, e o coração de tua inimiga, sem se converter à tua fé, reprimiucontudo o furor da perseguição.

Graças te dou, meu Deus! De onde e para onde guiaste minha memória, para quetambém te confessasse estes acontecimentos que, embora grandes, eu já haviaesquecido e omitido?

Todavia, quando assim exalava o odor de teus perfumes, eu ainda não corria atrásde ti.

Eis que redobrava minhas lágrimas ao ouvir teus cânticos. Outrora eu suspiravapor ti, e enfim respirava o pouco ar de uma choça de feno (alusão ao profetaIsaias,40,6)

CAPÍTULOVIII-Mônica

Tu, que fazes morar na mesma casa os que têm coração unânime, trouxeste prajunto de nós Evódio, jovem de nosso município que, militando como agente denegócios do imperador, se convertera e recebera o batismo antes de nós,abandonara a milícia do século, alistando-se na tua.

Estávamos juntos, e juntos pensávamos viver nosso santo propósito. Buscávamosum lugar onde nos pudéssemos instalar mais comodamente para te servir e juntosrumávamos para a África quando, chegando a Óstia, na foz do Tibre, faleceu minhamãe.

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Muitas coisas passo em silêncio, porque tenho pressa. Recebe minhas confissões eações de graças, meu Deus, pelas inúmeras bondades que não menciono aqui. Masnão quero calar o que brota de minha alma a respeito desta tua serva, que megerou na carne para a luz temporal, e no coração para a luz eterna. Não referireisuas qualidades, nem a si mesma se havia educado.

Foste tu quem a educaste, nem seu pai, nem sua mãe sabiam o que viriam a seraquela a quem geraram. A disciplina de teu Cristo, a doutrina de teu Filho únicoeducaram-na em teu temor em uma família fiel, digno membro de tua Igreja.

Nem ela mesma enaltecia o zelo da mãe em educá-la, quanto o de uma velhaserva, que carregara seu pai quando menino, como hoje as meninas maiorescostumam carregar as crianças, às costas.

Estas recordações, sua idade avançada e hábitos exemplares lhe asseguravamnaquela casa cristã o respeito de seus amos. Ela própria cuidava solicitamente dasmeninas que lhe haviam sido confiadas, ora repreendendo-as quando fosse o caso,com santa e enérgica severidade, ora instruindo-as com discreta prudência. Aforado horário em que tomavam uma sóbria refeição à mesa de seus pais, ainda quetivessem muita sede, nem água permitia que elas bebessem, precavendo com issoum mau costume. E acrescentava este sábio aviso: “Agora bebeis água, porquenão tendes como beber vinho; mas quando estiverdes casadas, donas da despensae da adega, deixareis a água, mas continuará o hábito de beber”.

E unindo assim o conselho à autoridade, refreava os apetites daquela tenra idade,e acostumava aquelas jovens à temperança, para que não tivesse desejo do quenão lhes convinha.

No entanto – como tua serva me contou a mim, seu filho – insinuou-se nela certogosto pelo vinho. Julgando-a menina sóbria, seus pais a escolheram, como eracostume, para tirar o vinho do tonel. Mergulhava a caneca pela parte superior dorecipiente e, antes de passar o vinho para a garrafa, sorvia com a ponta dos lábiosum pouquinho; era-lhe impossível beber mais, porque o vinho lhe repugnava. Nãofazia isto movida pela inclinação à embriaguez, mas pela exuberância juvenil, quese manifestava em movimentos, em brincadeiras, e que na meninice costumam serreprimidos pela autoridade severa dos mais velhos. Mas, acrescentando todos osdias uns goles àqueles goles – pois quem descuida das coisas pequenas pouco apouco cai nas maiores – acostumou-se a esvaziar avidamente copos quase cheiosde vinho puro.

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Onde estava então a prudente anciã, e sua severa proibição? Mas que remédiocuraria um mal oculto se tua medicina, Senhor, não velasse sobre nós? Naausência do pai, da mãe e das amas, estavas lá tu que nos criaste, que nos chamas,e que por meio dos que nos educam fazes o bem para a salvação das almas. Quefizeste então, meu Deus? Como a socorreste? Como a curaste? Fizeste sair deoutra pessoa, segundo tuas secretas providências, um sarcasmo duro e pungentecomo ferro medicinal, para curar de um só golpe aquela gangrena.

A criada que costumava acompanhá-la à adega, discutindo com sua jovem senhora,como às vezes acontece, estando as duas a sós, lançou-lhe em rosto suaintemperança, chamando-a insultuosamente de bêbada. Ferida por esse sarcasmo,a jovem reconheceu a fealdade daquele hábito, reprovou-o, e no mesmo instante oabandonou.

Assim como muitas vezes as lisonjas dos amigos nos pervertem, assim os insultosdos inimigos nos corrigem. Mas não é o bem que nos fazem por seu intermédio queretribuis, mas a intenção com que o fazem. Aquela criada zangada pretendiaofender sua jovem senhora, e não corrigi-la; e se o fez às escondidas foi só porforça da circunstância do lugar e tempo, ou para que não viesse a sofrer pordenunciar tão tarde o costume de sua senhora.

Mas, tu, Senhor, governador do céu e da terra, que desvias para teus desígnios aságuas da torrente e regulas o curso turbulento dos séculos, curaste a loucura deuma alma com a insânia de outra. Por isso ninguém, ao considerar o caso, atribuaa seu poder pessoal o mérito de ter corrigido com suas palavras a alguém cujaemenda deseja conseguir.

CAPÍTULOIX-Esposaemãeexemplar

Educada assim na modéstia e na temperança, mais sujeita a seus pais pela tuamão que por seus pais a ti, logo que chegou à idade núbil, foi dada em matrimônioa um homem, a quem serviu como a senhor. Procurou conquistá-lo para ti,falando0lhe de ti com suas virtudes, com as quais tu a tornavas bela ereverentemente amável e admirável ante seus olhos. Suportou suas infidelidadesconjugais com tanta paciência, que jamais teve com ele a menor briga por isso,pois esperava que tua misericórdia viria sobre ele, e que lhe trouxesse, com a fé, acastidade.

Seu marido, se de um lado era sumamente afetuoso, por outro era extremamente

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colérico, mas ela tinha o cuidado de não contrariá-lo nem com ações, nem compalavras, se o visse irado.

Logo que o via calmo e sossegado, oportunamente, mostrava-lhe o que havia feito,se por acaso se tivesse irritado desmedidamente.

Muitas senhoras, embora tendo maridos mais calmos, traziam no rosto as marcasdas pancadas que as desfiguravam. Conversando entre amigas, lamentavam aconduta dos maridos.

Minha mãe reprovava-lhes a língua e, como por gracejo, lembrava-lhes que, desdea leitura do contrato matrimonial, deviam considerá-lo como documento que astornava servas, e portanto proibia-lhes de serem altivas com seus senhores. Essassenhoras, que conheciam o mau gênio de seu marido, admiravam-se de que jamaisninguém tivesse ouvido ou percebido qualquer indício que Patrício maltratasse amulher, nem sequer que algum dia tivessem brigado por questões domésticas. Ecomo lhe pedissem confidencialmente a razão disso, minha mãe expunha-lhes seuagir habitual, como acima mencionei. Algumas, após experimentar, punham-no emprática e davam-lhe graças; as que não a imitavam continuavam a sofrerhumilhações e violências.

Sua sogra, a princípio irritara-se contra ela por causa dos mexericos de criadasmalévolas.

Mas conseguiu conquistá-la com respeito, contínua tolerância e mansidão, que elamesma, espontaneamente, denunciou ao filho as línguas intrigantes das criadas,que perturbavam a paz doméstica entre ela e a nora, e pediu que as castigasse.Ele, em obediência à mãe, para manter a disciplina familiar e a harmonia entre osseus, mandou açoitar as acusadas, segundo a vontade da acusante; e estaprometeu-lhes ainda que esse era o prêmio que devia esperar quem, querendoagradá-la, lhe dissesse mal da nora. E ninguém mais se atreveu a fazê-lo, eviveram as duas em doce e memorável harmonia.

A esta tua boa serva, em cujo seio me criaste, ó meu deus, minha misericórdia,dotaste de outra grande virtude: a de intervir como pacificadora, sempre quepodia, nas discórdias e querelas. Daquilo que ouvia de queixas amargas, vomitadascom animosidade ressentida, quando na presença de uma amiga os ódios maldigeridos se desafogam em amargas confidencias a respeito de uma amigaausente, ela nada referia uma à outra, senão o que poderia servir para a

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reconciliação.

Este dom me pareceria de pouca monta se uma triste experiência não mehouvesse mostrado grande número de pessoas – por não sei que horrível contagiode pecados, espalhados por toda parte – que não só revelam as palavras pesadasde inimigos irados, mas que ainda acrescentam coisas que não foram ditas. Quemfosse realmente humano, deveria ter em pouca conta ou não excitar nem fomentaras inimizades dos homens, e melhor ainda procurar extingui-las com boas palavras.

Assim era minha mãe, ensinada por ti, mestre interior, na escola de seu coração.

Por fim, conquistou para ti o seu marido, já no fim da vida, não tendo quelamentar no cristão o que havia tolerado no infiel.

Ela era verdadeiramente a serva de teus servos, e todos os que a conheciam telouvavam, honravam, te amavam em sua pessoa, porque percebiam tua presençaem seu coração, confirmada pelos frutos de uma vida santa.

Havia sido mulher de um só homem, cumprira sua dívida de gratidão com os pais,governara sua casa piedosamente e dava testemunho com suas boas obras.Educara os filhos, dando-os à luz tantas vezes quantas os via apartarem-se de ti.

E de nós, que nos chamamos teus servos por liberalidade tua, nós que vivemos emcomum na graça de teu batismo, antes de adormecer em tua paz, ela cuidou denós como se todos fôssemos seus filhos, e de tal modo nos serviu como se fossefilha de cada um de nós.

CAPÍTULOX-OêxtasedeÓstia

Estando já próximo o dia em que teria de partir desta vida – que tu, Senhor,conhecias, e nós ignorávamos – sucedeu, creio, por disposição de teus ocultosdesígnios – que nos encontrássemos sós, eu e ela, apoiados em uma janela quedava para o jardim interior da casa em que morávamos. Era em Óstia, sobre a fozdo Tibre, onde, longe da multidão, depois do cansaço de uma longa viagem,recobrávamos forças para a travessia do mar.

Ali, sozinhos, conversávamos com grande doçura, esquecendo o passado, ocupadosapenas no futuro, indagávamos juntos, na presença da Verdade, que és tu, qual

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seria a vida eterna dos santos, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram,nem o coração do homem pode conceber. Abríamos ansiosos os lábios de nossocoração ao jorro celeste de tua fonte – da fonte da vida que está em ti – para que,banhados por ela, pudéssemos de algum modo meditar sobre coisa tãotranscendente.

Nossa conversa chegou à conclusão que nenhum prazer dos sentidos carnais, pormaior que seja, e por mais brilhante e maior que seja a luz material que o cerca,não parece digno de ser comparado à felicidade daquela vida em ti. Elevandonosso sentimento para mais alto, mais ardentemente em direção ao próprio Ser,percorremos uma a uma todas as coisas corporais, até o próprio céu, de onde o sol,a luz e as estrelas iluminam a terra.

E subimos ainda mais em espírito, meditando, celebrando e admirando tuas obras,e chegamos até o íntimo de nossas almas. E fomos além delas, para alcançar aregião da abundância inesgotável, onde apascentas eternamente a Israel com oalimento da verdade, lá onde a vida é a própria Sabedoria, por quem foramcriadas todas as coisas, as que já existem e as vindouras, sem que ela própria secrie a si mesma, pois existe agora como antes existiu e como sempre existirá.Antes, nela não há nem passado, nem futuro: ela apenas é, porque é eterna; master sido ou haver de ser não é próprio do ser eterno.

E enquanto assim falávamos dessa Sabedoria e por ela suspirávamos, chegamos atocá-la momentaneamente com supremo ímpeto de nosso coração; e, suspirando,deixando ali atadas as primícias de nosso espírito, e voltamos ao ruído vazio denossos lábios, onde nasce e morre a palavra humana, em nada semelhante a teuVerbo, Senhor nosso, que subsiste em si sem envelhecer, renovando todas ascoisas!

E dizíamos: Suponhamos que se calasse o tumulto da carne, as imagens da terra,da água, do ar e até dos céus; e que a própria alma se calasse, e se elevasse sobresi mesma não pensando mais em si; se calassem os sonhos e revelaçõesimaginarias e, por fim, se calasse por completo toda língua, todo sinal, e tudo oque é fugaz – uma vez que todas as coisas dizem a quem sabe ouvi-las: Não fizemosa nós mesmas; fez-nos o que permanece eternamente – se, dito isto, todas secalassem, atentas a seu Criador; e se só ele falasse, não por suas obras, mas por simesmo, de modo que ouvíssemos sua palavra, não por uma língua material, nempela voz de um anjo, nem pelo ruído do trovão, nem por parábolas enigmáticas,mas o ouvíssemos a ele mesmo, a quem amamos nas suas criaturas, mas sem ointermédio delas, como agora acabamos de experimentar, atingindo em um

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relance a eterna Sabedoria, que permanece imutável sobre toda realidade, esupondo que essa visão se prolongasse, que todas as outras visões cessassem, eunicamente esta arrebatasse a alma de seu contemplador, e a absorvesse eabismasse em íntimas delícias, de modo que a vida eterna seja semelhante a estemomento de intuição que nos fez suspirar, não seria isto a realização do entrar emgozo de teu Senhor? Mas quando se dará isto? Por acaso quando todosressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados?

Tais coisas dizíamos, embora não deste modo, nem com estas palavras. Mas tusabes, Senhor, que naquele dia, à medida que falávamos dessas coisas, quanto nosparecia vil este mundo, com todos os seus deleites – disse-me minha mãe: “Filho,quanto a mim, já nada me atrai nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem porque ainda estou aqui, se já se desvaneceram pra mim todas as esperanças domundo. Uma só coisa me fazia desejar viver um pouco mais, e era ver-te católicoantes de morrer. Deus me concedeu esta graça superabundantemente, pois tevejo desprezar a felicidade terrena para servi-lo. Que faço, pois, aqui?”

CAPÍTULOXI-AmortedeMônica

Não me lembro bem o que respondi a tais palavras. Mas cerca de cinco dias maistarde, ou pouco mais, caiu de cama, com febre. Durante a doença, teve um dia umdesmaio, ficando por pouco tempo sem sentidos e sem reconhecer os presentes.Acudimos de imediato, e logo voltou a si. Vendo-nos a seu lado, a mim e a meuirmão (chamava-se Navígio, e era o mais velho dos irmãos), perguntou-nos, comoquem procura algo: “Onde estava eu?” – Depois, vendo-nos atônitos de tristeza,nos disse: “Sepultareis aqui a vossa mãe” – Eu me calava, retendo as lágrimas,mas meu irmão disse umas palavras em que desejava vê-la morrer na pátria e nãoem terras distantes. Ao ouvi-lo, minha mãe repreendeu-o com o olhar, e aflita porter pensado em tais coisas; depois, olhando para mim, disse: “Vê o que ele diz” – Edepois para ambos: “Sepultem este corpo em qualquer lugar, e não se preocupemmais com ele. Peço apenas que se lembrem de mim diante do altar do Senhor,onde quer que estejam”. E tendo-nos exposto seu pensamento com as palavras quepôde, calou-se; sua moléstia agravou-se e suas dores aumentaram.

Mas eu, ó Deus invisível, meditando nos dons que infundes no coração de teusfiéis, e nas admiráveis colheitas que deles brotam, alegrava-me e te dava graças.Lembrava-me do grande cuidado que sempre demonstrara acerca de suasepultura, adquirida e preparada junto ao corpo do marido. Tendo vivido com elena maior concórdia, assim também queria – visão própria da alma humana incapazdas coisas divinas – ter a felicidade de que os homens recordassem que, depois de

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sua viagem para além-mar, lhe fora concedida a graça de a mesma terra cobrir opó de ambos os cônjuges.

Quando esta vaidade havia deixado de existir em seu coração, pela plenitude detua bondade, eu não o sabia, mas alegrava-me com admiração ao ouvi-la falarassim. No entanto, naquela conversa à janela quando me disse: “Que faço euaqui?” – já estava patente que não mais desejava morrer na pátria.

Soube também depois que em Óstia, estando eu ausente, falou certo dia comalguns amigos meus, com maternal confiança, sobre o desprezo desta vida e obenefício da morte. Eles, maravilhados da coragem dessa mulher – dádiva tua –perguntaram-lhe se não temia deixar o corpo tão longe da pátria. “Nada estálonge para Deus – disse ela – nem preciso temer que ele ignore, no fim dostempos, o lugar onde me ressuscitará”.

Por fim, nove dias após cair enferma, aos cinqüenta e seis anos de idade e aostrinta e três da minha, aquela alma santa e piedosa libertou-se do corpo.

CAPÍTULOXII-Aslágrimasnegadas

Fechei-lhe os olhos, e uma tristeza imensa invadiu-me o coração, e já me iadesfazer em lágrimas; ao mesmo tempo, meus olhos, obedecendo ao enérgicopoder de minha vontade, fechavam sua fonte até secá-la. Como foi angustiosa essaluta! E foi quando ela deu o último suspiro, que o meu filho Adeodato rebentou emsoluços; mas, instado por todos nós, se calou.

Deste modo sua voz juvenil, voz do coração, calou em mim essa espécie de emoçãopueril que me provocava o pranto. De fato, não julgávamos correto celebraraquele funeral com lágrimas e choro, pois tais demonstrações deploramgeralmente o triste destino dos que morrem, ou sua total extinção. A morte deminha mãe não era uma desgraça, e ela não morria para sempre, e distoestávamos certos pelo testemunho de seus costumes, por sua fé sincera e outrasrazões inequívocas.

Que era então o que tanto me pungia, senão a ferida recente causada pelorompimento repentino de nosso dulcíssimo e querido convívio?

Era para mim grande consolação o testemunho que dera de mim, quando nestaúltima enfermidade, respondendo com ternura às minhas atenções, chamava-me

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de bom filho, e recordava com grande afeto o nunca ter ouvido de minha boca umasó palavra dura ou injuriosa contra ela. Entretanto, o que era, meu Deus e meuCriador, a solicitude que eu lhe tributava, em comparação com o devotamentoservil que por mim suportava? Por me ver privado de tão grande consolo, sentia aalma ferida e minha vida, que era uma só com sua, estava despedaçada.

Reprimido o pranto do Adeodato, Evódio tomou o saltério e começou a cantar umsalmo, ao que todos respondíamos “Misericórdia e justiça te cantarei Senhor”.Conhecia a notícia de sua morte, acorreram muitos irmãos e mulheres piedosas e,enquanto os encarregados dos funerais faziam seu ofício conforme o hábito, retirei-me para um lugar conveniente, junto com os amigos que julgavam oportuno nãome deixar só. Falava sobre assuntos próprios das circunstâncias, e com o lenitivoda verdade mitigava meu sofrimento, só conhecido por ti. Eles o ignoravam e meouviam atentamente, julgando que não sofria nenhuma dor.

Mas eu, pertinho de teus ouvidos, onde ninguém me podia escutar, censurava aminha sensibilidade e fraqueza e reprimia a onda de tristeza que me invadia; estacedia por uns instantes, e novamente me arrastava com seu ímpeto, embora nãochegasse a derramar lágrimas ou alterar a face. Somente eu sabia quão oprimidoestava meu coração! E como me desgostava profundamente que as vicissitudeshumanas tivessem tanto poder sobre mim, que são inelutáveis pela ordem naturale a sorte de nossa condição; minha própria dor causava-me outra dor, e me afligiacom dupla tristeza.

Quando o corpo foi levado à sepultura, fui e voltei sem derramar uma lagrima.Nem mesmo nas orações que te fizemos, quando oferecemos o sacrifício de nossaredenção por intenção da morta, cujo cadáver jazia junto ao sepulcro antes de serinumado, como ali é costume, nem mesmo nessas orações, chorei. Mas durantetodo o dia andei oprimido por grande tristeza interior; pedia-te como podia, com amente perturbada, que aliviasses minha dor. Mas não me atendias, sem dúvidapara que fixasse, bem na memória, ao menos por esta única experiência, como sãopoderosos os laços do costume, mesmo em uma alma que já não se alimentava depalavras enganadoras.

Lembrei então a ir aos banhos, por ter ouvido dizer que a palavra banho ( bálneo,em latim) vinha dos gregos, que o chamaram balanéion (tirar fora a ania), porqueo banho aliviava as tristezas da alma. Mas eu o confesso à tua misericórdia – ó Paidos órfãos: depois do banho fiquei como estava antes, porque meu coração nãoexpulsou o amargor de sua tristeza.

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Depois adormeci. Ao despertar, minha dor estava mitigada; só, em meu leito,lembrei-me dos versos cheios de verdade de teu Ambrósio. Porque, na verdade

Tu és Deus, criador de quanto existe,

De todo o mundo supremo governante,

Que o dia vestes com tua luz brilhante,

E de sonhos gratos a noite triste

A fim de que os membros cansados

O descanso ao trabalho prepare

E as mentes cansadas, repare

E os peitos de pena oprimidos

Depois, pouco a pouco voltava aos sentimentos de antes sobre tua serva.Recordava de sua piedade para contigo, de sua solicitude e paciência comigo, daqual subitamente me via privado. E senti consolação em chorar diante de ti, porcausa dela e por ela, e por minha causa e por mim. E deixei que as lágrimasreprimidas corressem à vontade, estendendo-as como um leito reparador sob meucoração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum homem,que pudesse interpretar com soberba meu pranto.

E agora, Senhor, to confesso nestas linhas: leia-o quem quiser, interprete-o comoquiser. E se alguém julgar que pequei nessas lágrimas, que derramei sobre minhamãe por alguns instantes, por minha mãe então morta a meus olhos, ela que mehavia chorado tantos anos para que eu vivesse aos teus olhos, não se ria. Antes, égrande sua caridade, chore por meus pecados diante de ti, Pai de todos os irmãosde teu Cristo!

CAPÍTULOXIII-Precespelamãemorta

Agora, com a ferida do meu coração já sanada, na qual se podia censurar um afeto

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muito carnal, derramo diante de ti, meu Deus, por tua serva, outra espécie delágrimas, bem diferentes, aquelas que brotam do espírito comovido à vista dosperigos que corre toda alma que morre em Adão. É verdade que minha mãe,vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de talmodo, que teu nome era louvado em sua fé e em seus costumes. Contudo, não meatrevo a dizer que desde que a regeneraste no batismo não saiu de sua bocanenhuma palavra contrária à tua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse:“Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena”. Ai da vida doshomens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia! Masporque não examinas nossos pecados com rigor, confiadamente esperamos tomarlugar a teu lado. Quem enumera diante de ti seus próprios méritos, que maisexpõe senão teus dons? Oh! Se os homens se reconhecessem como homens!

Se quem se glorifica se glorificasse no Senhor!

Por isso, Deus de meu coração, minha vida e minha gloria, esquecendo por ummomento as boas ações de minha mãe, pelas quais te dou graças com alegria,peço-te agora perdão por seus pecados. Ouve-me pelos méritos daquele que é omédico de nossas feridas, que foi suspenso do madeiro da cruz e que, sentadoagora à tua direita, intercede por nós junto a ti. Eu sei que ela sempre agiu commisericórdia, e que perdoou de coração todas as faltas contra ela cometidas;perdoa-lhe também suas dívidas, se algumas contraiu em tantos anos que seseguiram ao batismo. Perdoa-lhe, Senhor, perdoa-lhe, te suplico, e não entres emjuízo com ela.

Triunfe a misericórdia sobre a justiça pois as tuas são palavras de verdade, eprometeste misericórdia aos misericordiosos. Se alguém o foi, deve-o à tua graça,tu que tens compaixão de quem te apraz, e usas de misericórdia com quem queresser misericordioso.

Creio que já fizeste o que te suplico, mas desejo, Senhor, que acolhas os desejos deminha boca. Estando iminente o dia de sua morte, ela não desejou sepultar ocorpo com grande pompa, ou que fosse embalsamado com preciosos aromas, nemdesejou um rico monumento, nem se preocupou em tê-lo na pátria. Nada disto nospediu, mas desejou apenas que nos lembrássemos dela ante do teu altar, ondeservira todos os dias de sua vida, sabendo que nele se oferece a vítima santa, comcujo sangue se destrói o libelo de nossa condenação, e pelo qual vencemos oinimigo que conta nossas faltas e procura com que nos acusar, nada achandonaquele que é nossa vitória.

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Quem poderá devolver-lhe seu sangue inocente? Quem poderá restituir-lhe opreço pago por nosso resgate, para nos arrancar ao inimigo? A este mistério denossa redenção ligou tua serva sua alma com o vínculo da fé. Que ninguém aafaste de tua proteção. Que entre ela e ti não se interponha, nem pela força, nempelo engano, o leão ou o dragão. Ela não responderá que nada deve, para não serconvencida e arrebatada pelo astuto acusador, responderá que suas dívidas lheforam perdoadas por aquele a quem ninguém pode restituir o que por nós pagousem nada dever.

Que ela repouse em paz com seu marido, antes e depois do qual não teve outro; aquem serviu, com uma paciência cujo fruto te oferecia, para o ganhar tambémpara ti. Mas inspira, meu Senhor e meu Deus, inspira a teus servos, meus irmãos,a teus filhos, meus senhores, a quem sirvo de coração, com a palavra e com apena, para que, ao lerem estas páginas, diante do teu altar lembrem de Mônica,tua serva, e de Patrício, outrora seu esposo, pelos quais me introduzistemisteriosamente nesta vida. Que lembrem com piedoso afeto daqueles que forammeus pais nesta vida transitória, e meus irmãos em ti, ó Pai, na Igreja Católica,nossa mãe, e meus concidadãos na eterna Jerusalém, pela qual suspira teu povoem sua peregrinação desde a saída até o regresso. Assim, graças às minhasconfissões, o último desejo de Mônica será mais amplamente satisfeito com muitasorações do que só pelas minhas.

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LIVRODÉCIMO

CAPÍTULOI-Finalidadedolivro

Ó Deus, faz que eu te conheça, meu conhecedor, que eu te conheça como de ti souconhecido. Virtude de minha alma, penetra-a, assemelha-a a ti, para que a tenhase possuas sem mancha nem ruga.

Esta é a esperança com que falo, e nesta esperança me alegro, quando gozo de sãalegria. Tudo o mais desta vida, tanto menos se há de chorar quanto mais ochoramos, e tanto mais teríamos que chorar quanto menos o choramos.

Mas tu amaste a verdade, porque quem a pratica alcança a luz. Eu desejo praticá-la em meu coração, diante de ti, por esta minha confissão, e diante de muitastestemunhas por meus escritos.

CAPÍTULOII-OqueéconfessaraDeus

E, para ti, Senhor, que conheces o abismo da consciência humana, que poderiahaver de oculto em mim, ainda que não to quisesse confessar?

Poderia apenas esconder-te de mim, e nunca me esconder de ti. Agora que meusgemidos dão testemunho do desagrado que sinto por mim, tu me iluminas e meagradas, e és amado e desejado a ponto de eu me envergonhar de mim. Renuncioa mim para te escolher, e não quero agradar a ti ou a mim senão por teu amor.

Portanto, assim como sou, Senhor, tu me conheces. Já te disse com que escopo mevou confessando a ti. Faço esta confissão não com palavras e vozes do corpo, mascom as palavras da alma e o brado da inteligência, que teus ouvidos conhecem.Quando sou mau, confessar-me ai é o mesmo que desprezar a mim próprio; quandosou bom, é apenas nada atribuir a mim mesmo.

Porque tu, Senhor, abençoas o justo, mas antes tornas justo ao pecador.

Assim, meu Deus, a confissão que faço em tua presença, é e não é silenciosa; aboca se cala, mas meu coração clama. Tudo o que digo aos homens de verdadeirojá tinhas ouvido de mim, e nem ouves nada de mim que antes não me tivessesdito.

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CAPÍTULOIII-Porqueseconfessaraoshomens?

Que tenho eu que ver com os homens, para que me ouçam as confissões, como seeles pudessem curar as minhas enfermidades? São curiosos para conhecer a vidaalheia, mas indolentes para corrigir a própria! Por que desejam ouvir de mimquem sou, quando não se importam em saber de ti o que são? E como podemsaber, ao me ouvirem falar de mim mesmo, se lhes digo a verdade, uma vez quehomem algum sabe o que se passa no outro, senão o espírito do homem, que nele,habita? Mas, se ouvissem a ti falar deles, não poderiam dizer: “O

Senhor mente”. E o que é ouvir-te falar de si, senão conhecerem-se a si mesmos? Equem, conhecendo a si mesmo, pode dizer “é falso”, sem mentir?

A caridade crê em tudo – pelo menos entre corações que ela unifica em si por seuslaços – por isso também eu, Senhor, me confesso a ti para que me ouçam oshomens. A eles não posso provar que falo a verdade; mas crêem-me aqueles cujosouvidos a caridade abre para mim.

Mas tu, Médico da minha alma, faze-me ver claramente a utilidade de meupropósito. As confissões de meus pecados passados – que já perdoaste eesqueceste, para me fazer feliz em ti, transformando minha alma com tua fé e teusacramento – levam o coração dos que as lêem e ouvem a não dormir nodesespero dizendo: “Não posso”. Mas despertem para o amor pela tuamisericórdia e para a doçura de tua graça, que fortalece o fraco e este se dá contade sua debilidade.

Os bons, por sua vez, se agradam em ouvir os pecados passados daqueles que jánão sofrem. Agrada-lhes, não por serem pecados, mas porque o foram, e agora jánão o são.

Mas, Senhor meu – a quem todos os dias se confessa minha consciência, agoramais confiante com a esperança na tua misericórdia que na sua inocência – queproveito haverá em confessar aos homens, na tua presença, neste livro, não o quefui, mas o que sou agora? Sobre a confissão do passado, e dos seus eventuaisproveitos, já falei acima.

Há muitos porém, quer me conheçam, quer não, que desejam saber quem souagora, neste momento em que escrevo as Confissões. Já ouviram de mim ou deoutros alguma coisa a meu respeito, mas seu ouvido não ouve meu coração, onde

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eu sou o que sou. Querem, certamente, saber por confissão minha o que sou noíntimo, lá onde não podem penetrar com a vista, com o ouvido, ou com a mente.Estão dispostos a acreditar em mim. Mas poderão igualmente estar certos de meconhecer? A caridade, que os torna bons, lhes diz que eu não minto quandoconfesso tais coisas de mim. É ela que os faz acreditarem em mim.

CAPÍTULOIV-Ofrutodasconfissões

Mas, com que propósito desejam ouvir-me? Desejarão talvez congratular-mecomigo, ouvindo quanto me aproximei de ti por tua graça, e orar por mim, aoouvir quanto me retardou o peso de minhas culpas? A estes mostrarei quem sou;já não é pequeno fruto, Senhor meu Deus, que muitos te dêem graças por mim, eque muitos te roguem por mim. Possa o coração de meus irmãos amar em mim oque ensinas a amar, e, deplorar em mim o que ensinas a aborrecer! Mas quebrotem tais sentimentos em uma alma irmã, e não em almas estranhas, ou nessesfilhos espúrios, cuja boca fala vaidade, e cuja direita é a direita da iniqüidade, queo faça uma alma fraterna que se alegra por mim quando me aprova, e quando mereprova se aflige por mim, porque quer me aprove, quer não, me ama.

É a esses que me revelarei. Que eles respirem diante de minhas boas ações, esuspirem à vista de meus pecados. As obras boas são tuas obras e teus dons; asmás são meus pecados. As obras boas são tuas obras e teus dons; as más são meuspecados, objeto de teus juízos.

Respirem pelo bem e suspirem pelo mal, e que subam à tua presença hinos elágrimas desses corações fraternos, que são os teus turíbulos.

E tu, Senhor, que te alegras com a fragrância de teu santo templo, tem piedade demim, segundo tua grande misericórdia por causa de teu nome, e tu, que jamaisabandonas uma obra começada, aperfeiçoa em mim o que há de incompleto.

Este poderá ser fruto de minhas confissões, não do que fui, mas do que sou. Fareiminha confissão não apenas a ti, com íntima alegria mesclada de temor, e comsecreta tristeza mesclada de esperança, mas também para os homens, quecompartilham minha alegria e de minha mortalidade, meus concidadãos eperegrinos como eu, quer os que me precederam, como os que me seguem ou meacompanham no caminho da vida. Estes são teus servos, meus irmãos, que tuquiseste fossem filhos teus e meus senhores, e a quem me mandaste servir sequisesse viver contigo e de ti.

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Mas este preceito teria sido de pouco valor para mim, se teu Verbo o tivesseproferido apenas com palavras, e não tivesse mostrado o caminho com a obra. Eisque eu o imito pela ação e pela palavras, e o faço à sombra de tuas asas, o perigoseria grande demais, se minha alma aí não se abrigasse, e se minha fraqueza nãote fosse conhecida.

Sou como uma criança, mas meu Pai vive sempre, e é meu tutor idôneo; ele é a umtempo o que me gerou e o que me protege. Tu és todo o meu bem, tu, onipotente,que estás comigo mesmo antes de eu estar contigo.

Revelarei pois, a estes, a quem me mandas servir, não como fui, mas como já souagora, e como ainda não sou. Mas não quero julgar-me a mim mesmo. Assim é quepeço para ser ouvido.

CAPÍTULOV-Aignorânciadohomem

És tu, Senhor, quem me julga, porque ninguém conhece o que se passa no homem,a não ser o seu espírito que nele está, todavia há no homem coisas que até oespírito que nele habita ignora. Mas tu, Senhor, que o criaste, conheces todas ascoisas. E eu, embora diante de ti me despreze e me considere como terra e cinza,sei algo de ti que ignoro de mim mesmo. É certo que agora vemos por espelho, emenigmas, e não face a face. Por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou maispresente a mim do que a ti. Sei que em nada podes ser prejudicado, mas ignoro aque tentações posso resistir e a quais não posso. Todavia há esperança, pois ésfiel, e não permites que sejamos tentados além de nossas forças; com a tentação,dás também meios para suportar, para que possamos resistir.

Confessarei, portanto, o que sei de mim, e também o que de mim ignoro, porque oque sei de mim só o sei porque me iluminas, e o que de mim ignoro continuareiignorando até que minhas trevas se transformem em meio-dia, em tua presença.

CAPÍTULOVI-QueméDeus?

O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste meu coração comtua palavra, e te amei. O céu, a terra e tudo quanto neles existe, de todas aspartes me dizem que te ame; nem cessam de repeti-lo a todos os homens, paraque não tenham desculpas. Terás compaixão mais profunda de quem já tecompadeceste; e usarás de misericórdia com quem já foste misericordioso. Deoutro modo, o céu e a terra cantariam teus louvores a surdos.

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Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendorfugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodiasdas mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de ungüentos e de aromas,nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nadadisto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, umperfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minhaalma uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, ondeexalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetitenão diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amoquando amo o meu Deus!

Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: “Eu não sou Deus”. E tudoo que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aosrépteis viventes, e eles me responderam: “Não somos teu Deus; busca-o acima denós”. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, medisse: “Anaxímenes está enganado eu não sou Deus”. Perguntei ao céu, ao sol, àluz e às estrelas. “Tampouco somos o Deus a quem procuras” – me responderam.

Disse então à todas as coisas que meu corpo percebe: “Dizei-me algo de meu Deus,já que não sois Deus; dizei-me alguma coisa dele” – e todas exclamaram em coro:“Ele nos criou” – Minha pergunta era meu olhar, e sua resposta a sua beleza.

Dirigi-me, então, a mim mesmo, e perguntei: “E tu, quem és?” – e respondi: “Umhomem”.

Para me servirem, tenho um corpo e uma alma: aquele exterior, esta interior. Porqual deles deverei perguntar pelo meu Deus, a quem já havia procurado com ocorpo desde a terra até o céu, até onde pude enviar os raios de meu olhar comomensageiros? Melhor, sem dúvida, é a parte interior de mim mesmo. É a ela quedirigem suas respostas todos os mensageiros de meu corpo, como a um presidenteou juiz, respostas do céu, da terra, e de tudo o que existe, e que proclamam: “Nãosomos Deus” – e ainda – “Ele nos criou”. O homem interior conhece essas coisaspor meio do homem exterior; mas o homem interior, que é a alma, tambémconhece essas coisas por meio dos sentidos do corpo.

Interroguei a imensidão do universo acerca de meu Deus, e ele me respondeu:“Não sou eu, mas foi ele quem me criou”.

Mas essa beleza não se manifesta a quantos têm sentidos perfeitos? E por que não

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fala a todos a mesma linguagem?

Os animais, pequenos ou grandes, a vêem; mas não podem interrogá-la, porquenão receberam a razão que, como juiz, interprete as mensagens dos sentidos. Oshomens, porém, podem interrogá-la, para que as perfeições invisíveis de Deus semanifestem pelas suas obras.

Mas o amor às coisas criadas os escraviza, e assim os torna incapazes de julga-las.Ora, elas só respondem aos que podem julgar-lhes as respostas. Elas não mudamsua linguagem, isto é, sua beleza, quando um só as vê, e outro as interroga; elasnão lhes aparecem diferentes mas, para uns ficam mudas, enquanto falam aoutros. Ou melhor: eles falam a todos, mas apenas se entendem os que comparamsua expressão exterior com a verdade interior. De fato a verdade me diz: “TeuDeus não é nem o céu, nem a terra, nem corpo algum. A natureza das coisas o dizpara quem sabe ver; a matéria é menor em seus elementos que em seu todo. Porisso, minha alma, digo-te que és superior ao corpo, pois vivificas sua matéria,dando-lhe vida, como nenhum corpo pode dar a outro corpo. Mas teu Deus étambém para ti a vida de tua vida.

CAPÍTULOVII-Deuseossentidos

Que amo, então, quando amo a meu Deus? Quem é aquele que está acima daminha alma? É por minha alma; portanto, que subirei até ele. Hei de sobrepujar aforça que me ata ao corpo, e que enche meu organismo de vida, pois não encontronela o meu Deus. Se assim fosse, o cavalo e a mula, que não têm inteligência,também o encontrariam, porque essa mesma força vivifica seus corpos.

E existe outra força, que não só vivifica, mas que também torna sensível minhacarne que o Senhor me deu, ordenando ao olho que não ouça, e ao ouvido que nãoveja, mas àquele que sirva para ver, e a este para ouvir; e que determinou a cadaum dos outros sentidos o respectivo lugar e ofício. É deles que se serve minhaalma para exercer suas diversas funções, permanecendo, contudo, uma só.

Vencerei também essa força, que também a possuem o cavalo e a mula, poistambém eles sentem por meio do corpo.

CAPÍTULOVIII-Omilagredamemória

Vencerei então esta força de minha natureza, subindo por degraus até meu

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Criador.

Chegarei assim diante dos campos, dos vastos palácios da memória, onde estão ostesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda espécie. Látambém estão armazenados todos os nossos pensamentos, quer aumentando, querdiminuindo, ou até alterando de algum modo o que nossos sentidos apanharam, etudo o que aí depositamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido noesquecimento.

Quando ali penetro, convoco todas as lembranças que quero. Algumas seapresentam de imediato, outras só após uma busca mais demorada, como sedevessem ser extraídas de receptáculos mais recônditos. Outras irrompem emturbilhão e, quando se procura outra coisa, se interpõem como a dizer: “Nãoseremos nós que procuras?” Eu as afasto com a mão do espírito da frente damemória, até que se esclareça o que quero, surgindo do esconderijo para a vista.

Há imagens que acodem à mente facilmente e em seqüência ordenada à medidaque são chamadas, as primeiras cedendo lugar às seguintes, e desaparecem, parase apresentarem novamente quando eu o quiser. É o que sucede quando contoalguma coisa de memória.

Ali se conservam também, distintas em espécies, as sensações que aí penetraramcada qual por sua porta: a luz, as cores, as formas dos corpos, pelos olhos; todaespécie de sons, pelos ouvidos; todos os odores, pelas narinas; todos os sabores,pela boca; enfim, pelo tato de todo o corpo, o duro e o brando, o quente e o frio, osuave e o áspero, o pesado e o leve, quer extrínseco, como intrínseco ao corpo. Amemória armazena tudo isso em seus vastos recessos, em suas secretas e inefáveissinuosidades, para lembra-lo e trazê-lo à luz conforme a necessidade. Todas essasimagens entram na memória por suas respectivas portas, sendo ali armazenadas.

Todavia, não são as coisas em si que entram na memória, mas as imagens dascoisas sensíveis, que ali ficam à disposição do pensamento que as evoca. Mas quempoderá explicar como se formaram tais imagens, apesar de se conhecer o sentidopelo qual foram captadas e escondidas em seu íntimo? Pois, mesmo quando estouem silêncio e no escuro, imagino, se quiser, as cores, e sei distinguir o branco dopreto, e todas as outras entre si; e isto sem que os sons, mesmo os lembrados,perturbem minhas imagens visuais, e permanecem como que a parte.

Se decido chama-los, eles se apresentam imediatamente. Mesmo quando minha

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língua descansa e minha garganta se cala, canto quanto quero, sem que asimagens das cores, também presentes, se interponham ou perturbem enquantome sirvo do tesouro que me entrou pelos ouvidos.

Do mesmo modo as demais impressões, introduzidas e armazenadas em mim pormeio dos outros sentidos, posso recordar a meu talante; distingo o aroma doslírios do das violetas, sem cheirar nenhuma flor; e sem provar nem tocar em nada,mas apenas com a lembrança, posso preferir o mel ao arrobe e o macio ao áspero.

Tudo isto realizo interiormente, no imenso palácio da memória. Ali eu tenho àsminhas ordens o céu, a terra, o mar, com tudo o que neles pude perceber, comexceção do que já me esqueci. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e deminhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam aopraticá-las. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seutempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali estãotodas as lembranças do que aprendi, quer pelo testemunho alheio, quer pelaexperiência.

Deste mesmo manancial provém as analogias entre fatos de minhas experiênciaspessoais, ou em que acreditei baseado nas experiências previas; ligo umas e outrasao passado, e medito no futuro, nas ações, nos acontecimentos, nas esperanças, etudo como se estivesse presente.

“Farei isto ou aquilo” – digo para mim, nesse vasto universo de minha alma,repleto de imagens de tantas e tão grandes coisas. E disso tiro esta ou aquelaconclusão. “Oh! Se acontecesse isto ou aquilo!” “Queira Deus não aconteça isto ouaquilo!” isto digo em meu íntimo, e nisso visualizando as imagens das realidadesque exprimo, saídas do mesmo tesouro da memória; sem elas, nada poderia dizer.

Grande é realmente o poder da memória, prodigiosamente grande, meu Deus! Éum santuário amplo e infinito. Quem o pôde sondar até suas profundezas? É umpoder próprio de meu espírito, que pertence à minha natureza; mas eu não soucapaz de compreender inteiramente o que sou. Será o espírito demasiado estreitopara se conter a si mesmo? Onde, então, está o que ele não pode conter de si?Estaria fora dele, e não nele? Como então não o contém?

Esta idéia me provoca grande admiração, e me enche de espanto. Viajam oshomens para admirar as alturas dos montes, as grandes ondas do mar, as largascorrentes dos rios, a imensidão do oceano, a órbita dos astros, e se esquecem de si

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mesmos! Nem se admiram que eu fale dessas coisas sem vê-las com os olhos;contudo, eu não as poderia mencionar se esses montes, se essas ondas, esses rios,esses astros, que eu vi, se esse oceano, no qual acredito pelo testemunho alheio,eu não os visse na memória em toda sua dimensão, como se estivessem diante demim. Mas quando eu os vi com meus olhos, eu não os absorvi; não são as coisasque se encontram dentro de mim, mas apenas suas imagens. E sei por qual sentidodo corpo recebi a impressão de cada uma delas.

CAPÍTULOIX-Amemóriaintelectual

E não se limita a isto a imensa capacidade de minha memória. Ali estão, como emum lugar recôndito, que alias, não é um lugar, todas as noções aprendidas dasartes liberais, pelo menos as que ainda não esqueci. Mas, neste caso, não são asimagens delas que trago em mim, mas as próprias realidades em si. As noções deliteratura, a dialética, as diferentes espécies de questões, tudo o que sei arespeito desses problemas estão em minha memória, mas não estão ali como aimagem solta de uma coisa, cuja realidade se deixou fora. Nesse caso seria comoum som que se ouve e passa, como a voz que deixa no ouvido um rastro, quepermite que a lembremos, como se ainda soasse embora já não soe; ou como operfume que, ao passar e desvanecer-se no ar, atinge o olfato e grava sua imagemna memória, imagem que a lembrança reproduz; ou como o alimento, que perde osabor no estômago, mas o conserva na memória; ou como um corpo que se sentepelo tato e que, ausente, é imaginado pela memória. Todas essas realidades nãonos penetram a memória, mas tão somente são captadas as suas imagens commaravilhosa rapidez, e dispostas, digamos, em compartimentos admiráveis, deonde são extraídas pelo milagre da lembrança.

CAPÍTULOX-Memóriadossentidos

Ouço dizer que há três gêneros de questões a saber: se uma coisa existe, qual asua natureza e qual sua qualidade – retenho a imagem dos sons de que secompõem estas palavras, e sei que estes atravessaram o ar como ruído, e já nãoexistem. Mas as realidades significadas por tais palavras, eu jamais atingi comnenhum sentido do corpo, nem as vi em nenhuma parte fora de meu espírito; oque gravei na minha memória não são suas imagens, mas as próprias realidades.Que me digam, se o puderem, por onde entraram em mim! percorro em vão todasas portas do meu corpo, e não descubro por onde poderiam ter entrado. Comefeito: os olhos dizem:

“Se são coloridas, fomos nós que as transmitimos.” – Os ouvidos dizem: “Se eram

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sonoras, foram por nós comunicadas”. – As narinas dizem: “Se tinham cheiro,passaram por aqui”. – E o gosto diz: “Se não têm sabor, nada me perguntem”. – Otato declara: “Se não são corpóreas, eu não as toquei, e portanto não poderiarevelá-las”

De onde, então, e por onde entraram em minha memória? Ignoro-o. Aprendi-asnão dando crédito ao testemunho alheio, mas as reconheci em mim e aprovei-ascomo verdadeiras; confiei-as a meu espírito como em depósito, de onde podereitirá-las quando quiser. Estavam pois ali, antes mesmo que eu as aprendesse, masnão na memória. E onde estavam então? E porque, ao serem mencionadas, eu asreconheci e disse: “É assim mesmo, é verdade” – senão porque já estavam emminha memória? Mas tão escondidas e sepultadas em tão secretos recessos, quese alguém não as arrancasse dali com suas perguntas, talvez eu nem pudesseconcebê-las.

CAPÍTULOXI-Idéiasinatas

Por isso descobrimos que adquirir tais noções – cujas imagens não atingimos pormeio dos sentidos mas que percebemos em nós, sem o auxílio de imagens, taiscomo são em si mesmas, nada mais é do que coligir com o pensamento oselementos esparsos na memória e, pela reflexão, obrigá-los a estarem sempredisponíveis à memória, onde antes se ocultavam em desordem e abandono, demodo que se apresentem sem dificuldade ao chamado do nosso espírito. E quantasnoções deste tipo não encerra minha memória, já descobertas e, como disse,postas como que à mão; eis o que chamamos de “aprender” e “saber”. Se porémdeixo de as recordar por uns tempos, de tal modo submergem e se dispersam emseus profundos esconderijos, que é preciso reuni-las uma segunda vez, como sefossem novas ( cogente) – pois não têm outra habitação – e juntá-las de novo paraque possam ser objeto do saber; isto é: preciso tirá-las de sua condição dedispersão e juntá-las novamente. Daí a palavra cogitare, porque cogo e cogito sãocomo ago e agito, e facio, facito. Contudo, a inteligência reivindicou essa palavra (cogito) para si, de modo que essa operação de coligir, de reunir no espírito, e nãoem outra parte, é propriamente o que se chama pensar ( cogitare).

CAPÍTULOXII-Amemóriaeasmatemáticas

A memória guarda também as relações e inumeráveis leis dos números edimensões, sendo que nenhuma dessas idéias foi impressa em nós pelos sentidosdo corpo, porque não têm cor, nem som, nem têm cheiro, nem gosto, nem sãotangíveis. Ouço, quando elas se fala, os sons das palavras que as exprimem; mas

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uma coisa são os sons, e outra bem diferente são as idéias que elas significam. Aspalavras soam de modo diferente em grego e em latim; mas as idéias nem sãogregas, nem latinas, nem de nenhuma outra língua.

Vi linhas traçadas por artistas, finas como um fio de aranha. Mas as linhasmateriais não são a imagem das que vi com meus olhos carnais. Para reconhecê-lasnão há necessidade alguma de se pensar em um corpo qualquer, pois, é no espíritoque as reconhecemos.

Também conheci os números mediante os sentidos do corpo: mas a idéia denúmero é bem diferente: não são imagens dos primeiros, possuindo por issomesmo um ser muito mais real.

Ria-se de mim quem não compreender o que disse; eu terei compaixão de seu riso.

CAPÍTULOXIII-Amemóriadamemória

Tudo isso eu guardo em minha memória, assim como o modo pelo qual o aprendi.

Também guardo na memória as muitas argumentações infundadas que ouvi contraessas verdades. Essas objeções sem dúvida são falsas, mas não é falso recordá-las.E lembro de ter sabido distinguir entre essas verdades e os erros que se lheopunham. Vejo agora que uma coisa é essa distinção, que faço hoje, e outra orecordar ter feito muitas vezes tal distinção, ao considerá-las. Lembro-me,portanto, de ter muitas vezes compreendido isso, e confio à memória o ato atualde distingui-las e compreendê-las, para me lembrar, mais tarde, de que hoje ascompreendi. Lembro-me então de que me lembrei; e se mais tarde lembrar de queagora pude recordar essas coisas, será ainda por força da memória.

CAPÍTULOXIV-Alembrançadossentimentos

Essa mesma memória conserva também os afetos da alma, não do modo como ossente a alma quando da vivencia, mas de modo muito diverso, segundo o exige aforça da memória.

Lembro-me de ter estado alegre, ainda que não o esteja agora; recordo minhatristeza passada, sem estar triste; lembro-me de ter sentido medo, sem senti-lo denovo; lembro-me de antigo desejo, sem que o mesmo sinta agora. Outras vezes,

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pelo contrário, lembro-me com alegria a tristeza passada, e com tristeza umaalegria passada. Isto nada tem para admirar quando se trata de emoçõescorporais, porque uma coisa é a alma e outra o corpo; e assim não é maravilha queme lembre com alegria de um sofrimento físico já passado.

Porém, aqui o espírito é a própria memória. Quando confiamos uma tarefa aalguém, dizemos: “Não o guardei no espírito”, “fugiu-me do espírito”. É, portanto,a memória que chamamos de espírito. Sendo assim, por que ao evocar com alegriauma tristeza passada, meu espírito sente alegria e minha memória, tristeza? Semeu espírito se alegra com a alegria que tem em si, por que a memória não seentristece com a tristeza, que também tem em si? Seria a memória estranha aoespírito? Quem ousará afirmá-lo? Sem dúvida a memória é como o estômago daalma, e a alegria e a tristeza são como alimentos, doce ou amargo; quando taisemoções são confiadas à memória, depois de passarem, digamos, por esseestômago, podem ali serem guardadas, mas já perderam o sabor. Seria ridículocomparar emoções e alimento como semelhantes. Contudo, elas não sãototalmente diferentes.

É ainda da memória que tiro a distinção entre as quatro emoções da alma: odesejo, a alegria, o medo e a tristeza. Assim, todo raciocínio que eu teça, dividindocada uma delas nas espécies de seus gêneros, definindo-as, é na memória queencontro o que tenho a dizer, e de lá tiro tudo o que digo. Contudo, ao recordaressas emoções, não me perturbo com nenhuma delas.

E antes mesmo que eu as recordasse para discuti-las, elas ali estavam, e por issopuderam ser tiradas da memória mediante a lembrança. Talvez a lembrança tireda memória essas emoções como o ato de ruminar tira do estômago os alimentos.Mas então, por que aquele que rumina sobre tais paixões não sente na boca dopensamento a doçura da alegria ou a amargura da tristeza? Estará justamentenisto a diferença entre tais fatos? De fato, quem gostaria de falar dessas emoçõesse, todas as vezes que falássemos do medo ou da tristeza, nos víssemos tristes outemerosos?

Contudo, certamente não poderíamos falar deles se não encontrássemos namemória não só os sons dessas palavras, segundo a imagem gravada em nós pelossentidos, mas ainda as noções que elas exprimem. Essas noções, nós não arecebemos por nenhuma porta da carne, mas a própria alma, sentindo-as pelaexperiência das próprias emoções, confiou-as à memória; ou então a própriamemória as reteve, sem que ninguém lhas confiasse.

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CAPÍTULOXV-Amemóriadascoisasausentes

Mas quem poderá explicar se a recordação se faz por meio de imagens ou não?

Por exemplo: se digo pedra, ou digo sol, sem que tais objetos estejam presentes ameus sentidos, certamente tenho suas imagens na memória, à minha disposição.

Evoco uma dor do corpo, que está ausente de mim, já que nada me dói. Contudo,se a imagem da dor não estivesse em minha memória, não saberia o que dizia, eao raciocinar não a distinguiria do prazer.

Falo de saúde do corpo, estando são; neste caso, está em mim o próprio objeto. Noentanto, se sua imagem não estivesse em minha memória, de modo algumlembraria o significado dessa palavra. Os doentes, ouvindo falar de saúde, nãosaberiam do que se trata, não fosse o poder da memória a conservar a imagem daausência da realidade.

Falo dos números com que calculamos, e eles se apresentam na memória, não suasimagens, mas os próprios números.

Evoco a imagem do sol, e esta se apresenta à minha memória; e não evoco aimagem de uma imagem, mas a própria imagem, disponível à recordação.

Falo em memória, e reconheço o que falo, mas de onde o sei, senão da própriamemória?

Estará ela presente a si própria por sua imagem, e não por si mesma?

CAPÍTULOXVI-Amemóriadoesquecimento

E quando falo do esquecimento, e reconheço de que falo, como poderia eureconhecê-lo se dele não lembrasse? Não falo do som da palavra, mas da realidadeque ela exprime. Se eu a tivesse esquecido, não seria capaz de reconhecer osignificado de tal som. Por isso, quando me lembro da memória é por ela mesmoque se apresenta a mim; mas quando me lembro do esquecimento, este e amemória estão presentes simultaneamente: a memória, com que me recordo, e oesquecimento, de que me recordo.

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Mas, que é o esquecimento, senão falta de memória? E como pode ele estarpresente na minha lembrança. Se sua lembrança significa não lembrar? Mas se noslembramos, o guardamos na memória, e se nos é impossível reconhecer o quesignifica a palavra esquecimento, quando a ouvimos, a não ser que dele noslembremos, logo a memória é a que retém o esquecimento. Ele está na memória,pois do contrário, nós o esqueceríamos; mas, ele presente, nós nos esquecemos.Segue-se que ele não está presente à memória por si mesmo, quando noslembramos dele, mas por sua imagem. Do contrário, o esquecimento não faria comque nos lembrássemos, mas com que nos esquecêssemos. Mas, enfim, quem poderádescobrir, quem poderá compreender o modo como isto se realiza?

Mas, Senhor, esgota-me esta busca e é, portanto, sobre mim mesmo que mecanso; tornei-me para mim mesmo uma terra de dificuldades e árduos labores. Porque não exploro agora as regiões do firmamento, nem meço as distâncias dosastros, nem busco as leis do equilíbrio da terra. Sou eu que me lembro, eu, o meuespírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu.Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo? No entanto, é-meimpossível compreender a natureza de minha memória, sem a qual eu nempoderia pronunciar meu próprio nome.

Que direi então, desde que tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diriatalvez que não está em minha memória o que recordo? Ou talvez direi que oesquecimento está em minha memória, para que não o esqueça? Ambas hipótesessão grandes absurdos. Vejamos uma terceira hipótese: poderei eu afirmar queminha memória retém a imagem do esquecimento, e não o esquecimento em si,quando dele me lembro? Com que fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para quese grave na memória a imagem de um objeto, é necessário que este estejapresente antes, de onde emana a imagem a ser gravada? É assim que lembro deCartago, e assim de todos os outros lugares por que passei; assim me lembro dorosto dos homens que vi e das coisas que meus sentidos me deram a conhecer;assim me lembro ainda da dor física, coisas cujas imagens a memória fixou quandoestavam presentes, para que eu as pudesse contemplar e repassar em espírito,quando eu as evocasse na sua ausência.

Se, pois, é a imagem do esquecimento que está na memória, e não ele mesmo, éevidente que nalgum momento esteve presente para que sua imagem fosse fixada.Mas, se estava presente, como podia gravar na memória sua imagem, se oesquecimento apaga com sua presença tudo o que lá está impresso? Contudo, sejaqual for o mecanismo desse fenômeno, e por mais incompreensível e inexplicávelque seja, estou certo de que me lembro do esquecimento, que apaga da memória,

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todas as nossas lembranças.

CAPÍTULOXVII-Deuseamemória

Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em suacomplexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou,pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidãoimensa. Eis-me em minha memória, em seus campos, antros, inumeráveiscavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, tambéminumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob aforma de não sei que noções e sinais, como os afetos da alma, que a memóriaconserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na memóriaesteja também no espírito. Percorro em todas as direções este mundo interior,vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal!

Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei tambémesta faculdade que se chama memória? Ultrapassá-la-ei para chegar a ti, doce luz?Que dizes?

Subindo em espírito a ti, que estás acima de mim, ultrapassarei também estaminha força, que se chama memória, pois quero atingir-te onde és acessível, eunir-me a ti por onde possa fazê-lo.

Também os animais e as aves têm memória, porque de outro modo não voltariama seus ninhos e tocas, nem fariam outras coisas habituais, e nem mesmo poderiamadquiri hábitos sem a memória. Passarei, pois, além da memória para chegaràquele que me separou dos animais e me fez mais sábio que as aves do céu.Passarei além da memória, mas onde te hei de achar, ó Deus verdadeiramentebom, suavidade segura? Onde te hei de encontrar? Se te encontro sem minhamemória, estou esquecido de ti, e se não me lembro de ti, como te podereiencontrar?

CAPÍTULOXVIII-Amemóriadascoisasperdidas

Uma mulher perdeu uma dracma, e a procurou com sua lanterna. Mas se não selembrasse dela, não a haveria de encontrar; de fato, se dela não lembrasse, comopoderia saber, ao acha-la, que era aquela?

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Lembro-me de ter procurado e achado muitas coisas perdidas, sei disso porque,estando eu à procura, me diziam: “Por acaso é esta?” “Por acaso é aquela?” – e eusempre respondia que não, até encontrar o que procurava. Se não tivesse fixado alembrança do objeto, fosse o que fosse, ainda que me fosse mostrado, não oencontraria, pois não o poderia reconhecer. E sempre que perdemos e achamosalguma coisa acontece o mesmo.

Se alguma coisa desaparece de nossa vista, e não da memória – como sucede comum corpo visível – conservamos interiormente sua imagem e o procuramos atéque apareça a nossos olhos. Quando for encontrado, será reconhecido de acordocom essa imagem interior. Não podemos dizer que encontramos um objeto perdidose não o reconhecemos; nem o podemos reconhecer se dele não lembramos. Tinhapois desaparecido da nossa vista, mas era conservado pela memória.

CAPÍTULOXIX-Amemóriadaslembranças

E quando a própria memória perde uma lembrança, como acontece quando nosesquecemos de algo e procuramos recordá-la, o que se passa? Onde, afinal, aprocuramos senão na própria memória? E se esta, por acaso, nos oferece umacoisa por outra, a repelimos até que apareça o que buscamos. E assim que aparecedizemos: “É isto”. E assim não diríamos se não a reconhecêssemos, e não areconheceríamos se dela não houvesse registro. É certo, portanto, que já ahavíamos esquecido. Ou será que ela não se apagara totalmente de nossamemória, por meio da parte que nos ficou impressa procuramos a outra? Amemória, nesse caso, teria ciência de não poder, como de ordinário, fornecer alembrança em seu conjunto e, mutilada, reclamaria e parte faltante. É o quesucede quando vemos uma pessoa conhecida, ou nela pensamos sem poderrecordar seu nome. Se outro nome nos apresenta ao espírito, não o associamos àtal pessoa; por isso o afastamos, até que se apresenta um que concorde com nossarepresentação habitual da pessoa.

Mas donde nos vem este nome, senão da memória? Mesmo quando nos é sugeridopor outrem, é pela memória que reconhecemos; não o aceitamos como umconhecimento novo, mas recordando-o, confirmamos ser esse o nome que nosdisseram. Se fosse totalmente apagado da alma, nem mesmo avisados oreconheceríamos.

Não podemos pois, afirmar que nos esquecemos completamente daquilo de quenos lembramos ter esquecido. De nenhum modo poderíamos resgatar umalembrança perdida se seu esquecimento fosse total.

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CAPÍTULOXX-Amemóriadafelicidade

E como hei de te buscar, Senhor? Quando te procuro, meu Deus, estou à procurada felicidade. Procurar-te-ei para que minha alma viva, porque meu corpo vive deminha alma, e minha alma vive de ti. Como então devo buscar a felicidade?Porque não a possuirei até que possa dizer “basta”. Como, pois, procurá-la? Talvezpela lembrança, como se a tivesse esquecido, guardando contudo a lembrança doesquecimento? Ou pelo desejo de conhecer algo desconhecido ou por nunca tê-lovivido, ou por tê-lo esquecido a ponto de nem ter consciência do seuesquecimento?

Mas não será justamente a felicidade que todos querem, sem exceção? E onde aconheceram para a desejarem tanto? Onde a viram para assim a amarem? O queé certo é que está em nós a sua imagem. Mas não sei como isto se dá. E hádiversos modos de ser feliz: quer possuindo realmente a felicidade, quer possuindoapenas sua esperança. Este último modo é inferior ao dos que são realmentefelizes, embora estejam melhor que os não felizes nem na realidade, nem naesperança. Mesmo estes, todavia, não desejariam tanto a felicidade se esta lhesfosse completamente estranha, e é certo que a desejam. Não sei como aconheceram, e portanto ignoro a noção que dela têm. O que me preocupa é saberse essa noção reside na memória, pois, se é lá que reside, é sinal de já fomosfelizes alguma vez. Por ora não busco saber se todos fomos felizes individualmente,ou se o fomos naquele que pecou primeiro, e no qual todos morremos, e de quemnascemos na infelicidade. O que procuro saber é se a felicidade reside na memória,porque certamente não a amaríamos se não a conhecêssemos. Mal ouvimos estapalavra, e todos confessamos que desejamos a mesma coisa; e não é o som dapalavra que nos deleita. Quando um grego a ouve pronunciar em latim, não sealegra, porque ignora seu sentido. Mas nós nos alegramos ao ouvi-la, como ele sea ouvisse em sua língua. A felicidade, com efeito, não é grega nem latina; masgregos e latinos, assim como todos que falam outras línguas, desejam alcançá-la.

Logo, a felicidade é conhecida de todos; e se fosse possível perguntar-lhes a umavoz:”

Quereis ser felizes?” – todos, sem hesitar, responderiam que sim. E isso nãoaconteceria se a memória não tivesse em si a realidade, expressa por essapalavra.

CAPÍTULOXXI-Amemóriadoquenuncativemos

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Podemos comparar essa lembrança à que conserva de Cartago, quem a viu? Não, afelicidade não se vê com os olhos, pois não é corporal. Seria pois comparável àlembrança dos números? Também não, pois quem conhece os números não desejaadquiri-los. Pelo contrário, a idéia da felicidade nos inclina a amá-la e a quererpossuí-la, para sermos felizes.

Lembramos dela, talvez, como lembramos da eloqüência? Também não, embora aoouvir essa palavra, muitos que não são eloqüentes a associam à realidade que elaexprime, e desejariam obtê-la, o que indica que já têm idéia de eloqüência. Foiporém pelos sentidos do corpo que ouviram a eloqüência alheia, deleitando-se comela, e desejando também ser eloqüentes. E certamente não lhes daria prazer se jánão tivessem uma idéia da eloqüência, e nem a desejariam se esta não os tivessedeleitado. Mas a felicidade não a percebemos nos outros por nenhum sentidocorporal.

Essa lembrança, será porventura comparável à da alegria? Talvez, pois quandoestou triste me lembro da alegria passada, e quando infeliz, lembro-me dafelicidade. Ora, esta alegria, eu jamais a vi, ou ouvi, ou senti, ou saboreei, outoquei; apenas a experimentei em minha alma quando me alegrei. E esta idéia sefixou em minha memória para que eu pudesse recordá-la, às vezes com desgosto,outras com saudades, conforme as circunstâncias que a geraram.

De fato me senti invadido de alegria causada por ações torpes, cuja lembrançaagora aborreço e abomino; outras vezes alegrei-me por ações boas e honestas, dasquais me lembro com saudade; mas já pertencem ao passado, e evoco com tristezaminha antiga alegria.

Mas onde e quando, então, experimentei a felicidade para lembrar-me dela, paraamá-la e deseja-la? Não sou eu apenas, ou alguns que a desejam; mas todos, semexceção queremos ser felizes. Sem uma noção precisa da felicidade, nossa vontadenão teria essa firmeza.

Que significa isto? Se perguntarmos a dois homens se querem alistar-se noexército, talvez um responda que sim o outro que não. Mas, perguntemos sedesejam ser felizes, e ambos responderão que sim, sem nenhuma hesitação. Edesejando um engajar-se, e o outro não, têm ambos a mesma finalidade: serfelizes. Um gosta disto, outro daquilo, mas ambos concordam em ser felizes, comoseria unânime a resposta afirmativa a quem lhes perguntasse se querem estaralegres. Essa alegria é o que eles chamam de felicidade. E ainda que um siga por

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um caminho e outro por outro, a finalidade de todos é um só: a alegria. Como aalegria é um sentimento do qual todos temos experiência, a encontramos emnossa memória, e a reconhecemos ao ouvir pronunciar a palavra felicidade.

CAPÍTULOXXII-Averdadeirafelicidade

Longe de mim, longe do coração de teu servo, Senhor, que a ti se confessa, a idéiade encontrar a felicidade não importa em que alegria! A felicidade é uma alegriaque não é concedida aos ímpios, mas àqueles que te servem por puro amor: tu ésessa alegria! Alegrar-se de ti, em ti e por ti: isso é felicidade. E não há outra. Osque imaginam outra felicidade, apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira.Contudo, sempre há uma imagem da alegria da qual sua vontade não se afasta.

CAPÍTULOXXIII-Felicidadeeverdade

Poderemos então concluir que nem todos desejam ser felizes, pois há aqueles quenão querem buscar em ti sua alegria, tu que és a única felicidade? Ou talvez todosa queiram, mas, como a carne combate contra o espírito, e o espírito contra acarne, e com isso se contentam.

Porque não querem com força bastante aquilo que não podem, para obtê-lo.

Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdade ou no erro; ninguémhesita em declarar que preferem a verdade, como em dizer que querem ser felizes.É que a felicidade é a alegria que provém da verdade. E essa alegria é a que nascede ti, que és a própria Verdade, ó meu Deus, minha luz, saúde de meu rosto!Todos querem essa vida, a única feliz, essa alegria que se origina na verdade.

Encontrei muitos que gostam de enganar, mas ninguém que quisesse serenganado.

Onde, então, conheceram a felicidade, senão onde conheceram a verdade? Vistoque não querem ser enganados, também amam a verdade, e desde que amam afelicidade, que nada mais é que a alegria proveniente da verdade, certamentetambém amam a verdade; e não a amariam se não retivessem dela, na suamemória, alguma noção. Por que, então, não se alegram com ela? Por que não sãofelizes? Porque se empolgam demais com outras coisas, que os tornam maisinfelizes do que a verdade, de que se recordam fracamente, e que os faria felizes.

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Há ainda um pouco de luz entre os homens: caminhem, caminhem, para que astrevas não os surpreendam.

Mas por que a verdade gera o ódio? Por que os homens olham como inimigoaquele que a prega em teu nome, uma vez que amam a felicidade, que mais não éque a alegria nascida da verdade? Talvez por amarem a verdade de tal modo quetudo de diferente que amam, querem que seja verdade; e, não admitindo serenganados, também não querem ser convencidos de seu erro. Desse modo,detestam a verdade por amarem aquilo que tomam pela verdade. Amam-naquando ela brilha, mas odeiam-na quando os repreende; e, como não querem serenganados, mas enganar, eles a amam quando ela se manifesta, mas a odeiamquando ela os denuncia.

Porém ela os castiga; não querem ser descobertos pela verdade, mas esta osdenuncia, sem que por isso se manifeste a eles.

É assim o coração do homem! Cego e lerdo, torpe e indecente: quer permaneceroculto, mas não quer que nada lhe seja ocultado. Em castigo, sucede-lhe ocontrário: não consegue esconder-se da verdade, enquanto esta lhe continuaoculta. Contudo, apesar de tão infeliz, prefere encontrar alegrias na verdade queno erro. Será, portanto, feliz quando, livre de perturbações, se alegrar somente naVerdade, origem de tudo o que é verdadeiro.

CAPÍTULOXXIV-Deuseamemória

Eis como esquadrinhei minha memória em tua procura, Senhor: não me foi possívelencontrar-te fora dela. Nada encontrei de ti que não fosse lembrança, e nunca meesqueci de ti desde que te conheci. Onde encontrei a verdade, aí encontrei a meuDeus, que é a própria verdade; e desde que aprendi a conhecer a verdade, nuncamais a esqueci. Por isso, desde que te conheço, permaneces em minha memória. Élá que te encontro quando me lembro de ti e quando sou feliz em ti. Estas são assantas delicias que me deste em tua misericórdia, olhando para minha pobreza.

CAPÍTULOXXV-Recapitulação

Onde habitas em minha memória, Senhor, em que lugar dela estás? Queesconderijo construíste aí? Que santuário aí edificaste para ti? Deste-me a honrade morar em minha memória; mas em que parte dela resides? É o que queroagora descobrir.

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Quando me recordei de ti, ultrapassei aquela região da memória que também osanimais possuem, pois não te encontrei entre as imagens dos objetos corpóreos. Echeguei àquela parte onde depositei os afetos de minha alma, mas também aí nãote encontrei. Cheguei à morada que meu próprio espírito possui na memória –porque também o espírito lembra de si mesmo – mas nem ali estavas. Isso porquenão és imagem corpórea, nem afeto de ser vivo, como a alegria, a tristeza, odesejo, o temor, a lembrança, o esquecimento e outros semelhantes, e nem ésmeu próprio espírito, porque és o Senhor e Deus do espírito, e tudo isso émutável, enquanto permaneces imutável e subsistes acima de todas as coisas, e tedignaste habitar em minha memória desde que te conheço.

Mas, por que perguntar em que lugar da memória habitas, como se a memóriativesse compartimentos? Certo é que habitas nela desde que te conheço, e é nelaque te encontro, quando penso em ti.

CAPÍTULOXXVI-OndeencontrarDeus?

Onde, então, te encontrei, para te conhecer? Não estavas ainda em minhamemória antes de eu te conhecer. Onde, então, te encontrei, para te conhecer,senão em ti mesmo, acima de mim? No entanto, aí não existe espaço. Quer nosafastemos de ti, quer nos aproximemos, aí não existe espaço algum. Ó Verdade,por toda parte assistes aos que te consultam, e respondes ao mesmo tempo atodas essas diversas consultas. Tuas respostas são claras, mas nem para todos.

Os homens te consultam sobre o que querem, mas nem sempre ouvem asrespostas que querem.

Teu servo fiel é o que não pensa em ouvir de ti a resposta que quer, mas emquerer a resposta que lhe dás.

CAPÍTULOXXVII-Solilóquiodeamor

Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavasdentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza dasformas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em ti. Retinham-me longe deti aquilo que nem existiria se não existisse em ti. Tu me chamaste, gritaste pormim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor afugentou minhacegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e suspiro por ti. Eu te saboreei, e agoratenho fome e sede de ti. Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama.

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CAPÍTULOXXVIII-Avidadohomem

Quando me unir a ti com todo meu ser, não sentirei mais dor ou fadiga; minhavida, cheia de ti, será então a verdadeira vida. Alivias aqueles que enches de ti;mas, como ainda não estou cheio de ti, sou um peso para mim mesmo. Minhasalegrias, que deveriam ser choradas, lutam com minhas tristezas que deveriamalegrar-me, e ignoro de que lado está a vitória.

Ai de mim, Senhor, tem piedade de mim! As tristezas do meu mal lutam comminhas santas alegrias, e eu não sei de que lado está a vitória. Ai de mim! Senhor,tem piedade de mim!

Eis minhas feridas: eu não as escondo. Tu és o médico, eu o enfermo; ésmisericordioso, e eu, miserável. Não é contínua tentação a vida do homem sobre aterra? Quem quer aborrecimentos e dificuldades? Mandas que os suportemos, enão que os amemos. Ninguém ama o que tolera, ainda que goste de o tolerar; emesmo que alguém se alegre em tolerar, preferiria nada ter que suportar. Naadversidade, desejo a prosperidade, e na prosperidade temo a adversidade. Entreestes dois extremos, qual será o termo médio onde a vida humana não sejatentação?

Ai das prosperidades do século, onde se receia a adversidade e a alegria écorrompida! Ai das adversidades do século, uma, duas, três vezes ai! Pelo desejoda prosperidade, por ser dura a adversidade, e pelo temor que vença a nossapaciência! A vida do homem sobre a terra não é pois uma contínua tentação?

CAPÍTULOXXIX-EsperançaemDeus

Só na grandeza da Tua misericórdia coloco toda minha esperança. Dai-me o queme ordenas e ordena-me o que quiserdes. Mandas que sejamos castos. “Sabendo,diz um sábio, que ninguém pode ser casto se Deus não lhe der este dom, já ésabedoria saber de quem procede este dom”. A continência reúne os elementos denossa pessoa, reconduz-nos à unidade que perdemos dispersando-nos por tantascriaturas. Pouco te ama quem te ama juntamente com alguma criatura, e não aama por tua causa.

Ó amor, que sempre ardes e jamais te extingues! Ó caridade, meu Deus, inflama-me!

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Ordena-me a continência? Dá-me o que mandas, e ordena o que quiseres!

CAPÍTULOXXX-Sonhoevoluptuosidade

Ordenas que me abstenha da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhose da ambição do século. Proibiste as uniões luxuriosas, e embora tenhas permitidoo casamento, ensinaste que há um estado bem melhor. E, pela tua graça, optei poresse estado, antes mesmo de me tornar dispensador de teu sacramento.

Mas em minha memória, de que falei longamente, vivem ainda as imagens dessasvoluptuosidades que meus costumes de outrora ali gravaram. Sem forças diantede mim quando estou acordado, durante o sono, elas não somente suscitam emmim o prazer, mas o consentimento do prazer e a ilusão da ação. Tais ilusões têmtal poder sobre minha alma e sobre meu corpo, apesar de tão falsas, que seusfantasmas impelem a meu sono o que a realidade não me pode induzir quando emvigília. Acaso então, Senhor meu Deus, será que eu não sou eu nessas horas? Ecomo vai tão grande diferença dentro de mim mesmo, do momento em que passoda vigília para o sono e vice versa! Onde pois está a razão, que durante a vigíliaresiste a tais sugestões, e que não se abala mesmo diante da realidade? Acaso sefecha juntamente com os olhos? Ou adormece com os sentidos do corpo?

E por que, muitas vezes, mesmo no sono, resistimos, lembrados de nossopropósito, e nele permanecemos castos, negando o consentimento a taisseduções? Todavia, a diferença é tanta que, no caso de não resistir durante osono, ao acordar voltamos a encontrar a paz de consciência; e a própria diferençaentre os dois estados indica que não fomos nós que fizemos aquilo, e lamentamos oque se fez em nós.

Senhor onipotente, não poderia tua mão curar todas as enfermidades de minhaalma, abolindo também, com maior abundância de graça, os movimentos lascivosde meu sono? cada vez mais multiplica, Senhor, o número de tuas bondades paracomigo, para que minha alma, livre do visco da concupiscência, siga até chegar ati. Para que não seja rebelde, nem mesmo durante o sono; para que, pelo estímulode imagens bestiais, não só não cometa essas torpezas degradantes até a lascíviacarnal, mas que nem mesmo consinta nisso.

Não é muito para ti, ó Todo-Poderoso, que podes fazer mais do que pedimos ecompreendemos, fazer com que, quer minha idade presente, quer na minha vidafutura, eu me deleite nessas tentações – mesmo que sejam tão pequenas, que o

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primeiro esforço as venceria, quando adormeço com pensamentos castos.

Agora digo exultando ao meu Senhor em que estado me encontro neste gênero depecado, com tremor pelos dons que já me concedeste, e gemendo pelas minhasimperfeições.

Espero que aperfeiçoes em mim tuas misericórdias, até que atinja a plenitude dapaz de que gozarão em ti meu espírito e meu corpo, quando a morte for absorvidapela vitória.

CAPÍTULOXXXI-Aintemperança

O dia me traz novo pecado, e oxalá fosse o único! Comendo e bebendo,restauramos as diuturnas perdas de nosso corpo, até o dia em que destruirás oalimento e o estômago, matando minha necessidade com uma maravilhosasaciedade, e revestindo este corpo corruptível de eterna incorruptibilidade.

Mas por ora esta necessidade me é grata, e luto contra essa delícia, para que nãome domine; é uma guerra cotidiana que sustento com jejum, reduzindo meu corpoà escravidão. Mas minhas dores são eliminadas pelo prazer, porque a fome e asede são sofrimentos: queimam e matam como a febre se os alimentos não lhepõem remédio. Mas como esse remédio está sempre à nossa disposição, graças àliberdade de teus dons que põe à disposição de nossa fraqueza a terra, a água e océu, nossas misérias recebem por nós o nome de delícias.

Tu me ensinaste a considerar os alimentos como remédios. Mas quando passodessa penosa necessidade à paz da saciedade, nessa passagem a concupiscênciaarma para mim sua cilada. Esta passagem é prazerosa, e não há outra para sechegar onde a necessidade nos obriga. A razão do beber e do comer é aconservação da saúde; mas um prazer insidioso acompanha como lacaio essasfunções, e sempre tenta tomar a dianteira, de modo que faço pelo prazer o quedigo fazer por minha saúde.

Ora, a medida do prazer não é a mesma da saúde; o que é bastante para a saúdenão o é para o prazer, e muitas vezes é difícil discernir se é o cuidado com o corpoque pede reforço de alimento, ou se é a gula que nos engana e quer ser servida.Essa incerteza alegra nossa pobre alma, feliz por ter encontrado um álibi e umadesculpa na impossibilidade de determinar o que basta para o cuidado com asaúde, e sob o pretexto da sua conservação esconde a busca do prazer. Esforço-me

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para resistir a essas tentações diárias, e invoco tua mão para me socorrer. A ticonfesso minha incerteza, porque sobre este ponto meu juízo ainda não é firme.

Ouço a voz de meu Deus que ordena: “Não se façam pesados vossos corações com aintemperança e embriaguez”. A embriaguez está longe de mim; que tuamisericórdia não a deixe se aproximar. Mas a intemperança, ao contrário, chega àsvezes a arrastar teu servo. Tua misericórdia há de afastá-la de mim, porqueninguém pode ser temperante senão por tua graça.

Muitas coisas nos concedes quando te invocamos, e todo o bem que recebemos,mesmo antes de o pedir, é a ti que sempre o devemos. E o ato mesmo dereconhecermos que esses dons são teus, é ainda graça tua. Nunca estiveembriagado, mas conheci muitos, dados a esse vicio, que se tornaram sóbrios portua graça. Assim, é graças a ti que alguns não são o que nunca foram; e também égraças a ti que outros não são mais o que foram; e é graças a ti, enfim, que estes eaqueles sabem a quem devem essa graça.

Ouvi ainda de ti outra palavra: “Não corras atrás de tuas concupiscências, ereprime teus apetites” – Tua graça ainda me fez ouvir outra palavra, de que tantogostei: “Se comemos, não teremos abundância; e se não comemos, não sofreremosprivação”. – Ou seja: nem isto me fará rico, nem aquilo pobre. – E ouvi ainda estaoutra: “Aprendi a me contentar com o que tenho: sei viver na abundância esuportar a penúria. Tudo posso naquele que me fortalece”. – Eis como fala o bomsoldado da milícia celeste: nada parecido ao pó que somos. Mas, Senhor, lembra-seque somos pó, e que de pó fizeste o homem; que este havia se perdido, e que foireencontrado.

Por si mesmo, formado do mesmo pó que nós, nada podia aquele cujas palavrasinspiradas tanto amei: “Tudo posso naquele que me fortalece” – Concede-meforças, para que eu possa. Dá-me o que mandas, e manda o que quiseres. Pauloconfessa que tudo recebeu de ti, e, quando se gloria, é no Senhor que ele se gloria.

Ouvi também outro que te pedia esta graça: “Afasta de mim a intemperança”. –De onde se conclui claramente, ó Deus santo, que dás a força de cumprir o quemandas.

“Tu me ensinaste, Pai bondoso, que tudo é puro para os puros, mas que é maupara o homem comer com escândalo, que tudo o que fizeste é bom, e que nadadeve ser rejeitado do que se recebe com ação de graças; que os alimentos não nos

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recomendam a Deus, que ninguém nos deve julgar pela comida ou pela bebida;que o que come não deve julgar o que não come”. – Por essas lições, graças elouvores te dou, meu Deus, meu Mestre, que bateste à porta de meus ouvidos eiluminaste meu coração. Livra-me de toda tentação. Não receio a impureza dosalimentos, mas a impureza do prazer.

Sei que Noé teve permissão de comer toda espécie de carne que pudesse servir dealimento, e que Elias comeu carne para reparar as forças; sei que João Batista,asceta admirável, não se manchou com os animais – os gafanhotos – de que sealimentava. Todavia eu sei que Esaú deixou-se enganar pelo desejo de um pratode lentilhas; que Davi se repreendeu a si mesmo por ter desejado água; que nossoRei foi submetido à tentação, não de carne, mas de pão. Por isso o povo foijustamente repreendido no deserto, não por ter desejado comer carne, masporque o desejo o fez murmurar contra o Senhor.

Exposto a estas limitações, luto diuturnamente contra a concupiscência do comer edo beber, pois não é coisa que possa cortar de uma vez por todas, apenas com opropósito de nunca mais recair, como fiz com a luxúria. É uma rédea imposta a meupaladar, ora para afrouxá-la, ora para retesá-la. E quem é, Senhor, que não sedeixa arrastar às vezes além dos limites do necessário? Se existe alguém assim, éde fato grande, e deve engrandecer teu nome. Eu porém não sou desse número,porque sou pecador. Contudo, também, eu engrandeço teu nome, e Aquele quevenceu o mundo intercede junto a ti por meus pecados. Conta-me entre osmembros enfermos de seu corpo, porque teus olhos viram minhas imperfeições eporque todos serão inscritos em teu livro.

CAPÍTULOXXXII-Osprazeresdoolfato

Quanto à sedução dos perfumes, não me preocupo demais. Quando ausentes, nãoos procuro; quando presentes, não os recuso, mas estou sempre disposto a delesme abster. Pelo menos assim me parece, embora talvez me engane. Trevasdeploráveis me envolvem, que me escondem minhas faculdades reais; por isso,quando meu espírito indaga à respeito de suas forças, bem sabe que não podeconfiar em si mesmo, por seu íntimo permanecer muitas vezes insondável, até quea experiência lho manifeste. Ninguém pois se deve ter seguro nesta vida, que étentação perpétua. Pois. Como podemos nos tornar melhores, não aconteça de nostornar piores. Nossa única esperança, nossa única confiança, nossa firme promessaé tua misericórdia.

CAPÍTULOXXXIII-Osprazeresdoouvido

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Os prazeres do ouvido me prendem e me subjugam com mais força, mas tu medesligaste, me libertaste.

Agradam-me ainda, eu o confesso, os cânticos que tuas palavras vivificam, quandoexecutados por voz suave e artística; todavia eles não me prendem, e dele possome desvencilhar quando quero. Para assentarem no meu íntimo, em companhiacom os pensamentos que lhe dão vida, buscam em meu coração um lugar dedignidade, mas eu me esforço ou me ofereço para ceder-lhes só o lugarconveniente.

Às vezes parece-me tributar-lhe mais atenção do que devia: sinto que tuaspalavras santas, acompanhadas do canto, me inflamam de piedade mais devota emais ardente do que se fossem cantadas de outro modo. Sinto que as emoções daalma encontram na voz e no canto, conforme suas peculiaridades, seu modo deexpressão próprio, um misterioso estímulo de afinidade.

Mas o prazer dos sentidos, que não deveria seduzir o espírito, muitas vezes meengana.

Os sentidos não se limitam a seguir, humildemente, a razão; o mesmo tendo sidoadmitidos graças à ela, buscam precedê-la e conduzi-la. É nisso que peco sem osentir, embora depois o perceba.

Outras vezes, porém, querendo exageradamente evitar este engano, peco porexcessiva severidade; chego ao ponto de querer afastar de meus ouvidos, e daprópria Igreja, a melodia dos suaves cânticos que habitualmente acompanham ossalmos de Davi. Nessas ocasiões parece-me que o mais seguro seria adotar ocostume de Atanásio, bispo de Alexandria. Segundo me relataram, ele os mandavarecitar com tão fraca inflexão de voz, que era mais uma declamação do que umcanto.

Contudo, quando lembro das lágrimas que derramei ao ouvir os cantos de tuaIgreja, nos primórdios de minha conversão, e que ainda agora me comovem, nãotanto com o canto, mas com as letras cantadas, voz clara e modulaçõesapropriadas, reconheço novamente a grande utilidade desse costume.

Assim, oscilo entre o perigo do prazer e a constatação dos efeitos salutares docanto. Por isso, sem emitir juízo definitivo, inclino-me a aprovar o costume decantar na igreja, para que, pelo prazer do ouvido, a alma ainda muito fraca, se

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eleve aos sentimentos de piedade. E quando me comovem mais os cantos do queas palavras cantadas, confesso meu pecado e mereço penitencia, e então preferirianão ouvir cantar.

Eis em que estado me encontro! Chorai comigo, e chorai por mim, vós quealimentais no coração a virtude, fonte de boas obras. Porque vós, a quem isso nãoafeta, sois insensíveis a tudo isso. E tu, Senhor meu Deus, escuta, olha e vê; tempiedade de mim, cura-me. Eis que me tornei um problema para mim mesmo, sobteu olhar, e aí está precisamente meu mal.

CAPÍTULOXXXIV-Oprazerdosolhos

Resta ainda falar do prazer destes olhos carnais. Oxalá que os ouvidos fraternos epiedosos de teu templo ouvissem a minha confissão! Encerrando assim astentações da concupiscência que ainda me perseguem, apesar de meus gemidos edos desejos de ser revestido de meu tabernáculo, que é o céu.

Meus olhos apreciam as formas belas e variadas, as cores brilhantes e amenas.Oxalá elas não me acorrentassem a alma! Oxalá ela só fosse presa pelo Deus quecriou coisas tão boas: ele é meu bem, e não elas. Todos os dias, estando acordado,elas me importunam sem o descanso das vozes que se calam, e às vezes de tudo oque existe, quando silencia. A própria rainha das cores, a luz que inunda tudo oque vemos, e onde quer que eu esteja durante o dia, acaricia-me de mil modos,mesmo quando estou ocupado em outra coisa e não lhe dou atenção.

E ela se insinua tão fortemente que, se de repente me for tirada, a desejo, aprocuro e, se sua ausência se prolonga, a alma se entristece.

Ó luz que Tobias contemplava quando, cego, mostrava ao filho o caminho da vida,caminhando à sua frente com os passos da caridade, sem jamais se perder! Luz quevia Isaac, quando seus olhos carnais, oprimidos e velados pela velhice, mereceramnão abençoar os filhos reconhecendo-os, mas reconhecê-los ao abençoá-los! Luz quevia Jacó, também cego pela idade provecta, irradiou os fulgores de seu coraçãoiluminado sobre as gerações do povo futuro, representadas em seus filhos! E aseus netos, os filhos de José, impôs as mãos misticamente cruzadas, não na ordemem que queria dispô-los o pai, que via com os olhos corporais, mas de acordo comseu próprio discernimento interior! Eis a verdadeira luz; ela é uma, e todos os quea vêem e amam formam um único ser.

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Quanto à luz corporal, de que falava, com sua doçura sedutora e perigosa, é umdos prazeres da vida para os cegos amantes do mundo. Mas os que nela sabemencontrar motivos para te louvar, Deus, criador de todas as coisas, convertem-naem hino em teu louvor, sem se deixarem dominar por ela no sono. É assim quedesejo ser. Resisto às seduções dos olhos, para que meus pés, que começam atrilhar teus caminhos, não fiquem enredados. Elevo a ti olhos invisíveis, para quelibertes meus pés de seus laços. Tu não cessa de livrá-los, porque sempre estão ase prender. Tu não cessas de me livrar, e eu me deixo cair a cada passo nas insídiasespalhadas por toda parte, porque não dormirás, nem cochilarás, tu que guardas aIsrael.

Quantos encantos os homens acrescentaram às seduções dos olhos, com avariedade de suas artes, com sua indústria de vestidos, de calçados, de vasos, deobjetos de toda espécie, com pinturas e esculturas diversas que de longeultrapassam os limites do necessário e moderado e da expressão piedosa.Exteriormente perseguem as produções de suas artes, e em seu interiorabandonam Àquele que os criou, deturpando em si o que ele fez.

Quanto a mim, meu Deus e minha glória, encontro nisto razão para cantar-te umhino, e oferecer um sacrifício de louvor àquele que sacrificou por mim. As belezasque da alma do artista passam para suas mãos, provêm desta beleza, que ésuperior às nossas almas e pela qual minha alma suspira dia e noite.

Entretanto, os que geram e os amantes das belezas exteriores, tiram da belezasoberana apenas o critério para julgá-las, mas não uma regra para usá-las bem.Contudo, a norma ali está, mas eles não a vêem. Se a vissem, não se afastariam , eguardariam sua força para ti, e não a dissipariam em fatigantes delícias.

Mesmo eu, que exponho e compreendo essas verdades, deixo-me enredar nessasbelezas; mas tu me livras de seu laço, tu me libertas, porque tua misericórdia estádiante de meus olhos. Miseravelmente eu caio, e tu me levantasmisericordiosamente, às vezes sem que eu o perceba, quando minha queda foisuave, e outras infligindo-me uma pena, por ter ficado preso ao chão.

CAPÍTULOXXXV-Acuriosidade

Às anteriores acrescente-se outra tentação, que oferece maiores perigos. Além daconcupiscência da carne, que consiste no deleite voluptuoso de todos os sentidos, ecuja servidão dana os que ela afasta de ti, insinua-se na alma um outro desejo, que

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se exerce pelos mesmos sentidos corporais, mas tende menos a uma satisfaçãocarnal do que a tudo conhecer por meio da carne.

É a vã curiosidade, que se disfarça sob o nome de conhecimento e de ciência. Comonasce do apetite de tudo conhecer, e como entre os sentidos os olhos são os maisaptos para o conhecimento, a Sagrada Escritura chamou-a de concupiscência dosolhos.

De fato, ver é função própria dos olhos; mas muitas vezes nós usamos essaexpressão mesmo quando se trata de outros sentidos, aplicados ao conhecimento.Nós não dizemos: “Ouve como isto brilha” – nem: “Sente como isso resplandece” –nem: “Apalpa como isto cintila”. – Para exprimir tudo isso dizemos “ver ou olhar”.E até não nos limitamos a dizer: “Olha que luz!”, pois apenas os olhos nos podemdar esta sensação – mas, dizemos ainda: “Olha que som! Olha que cheiro! Olha quegosto! Olha como é duro!” Por isso toda experiência que é obra dos sentidos échamada, como disse, concupiscência dos olhos. Essa função da visão, que pertenceaos olhos, é usurpada metaforicamente pelos outros sentidos, quando buscamconhecer alguma coisa.

Daqui podemos distinguir claramente o papel da volúpia e o da curiosidade naação dos sentidos. O prazer procura o que é belo, melodioso, suave, saboroso,agradável ao todo; a curiosidade por sua vez deseja o contrário, não para se exporao sofrimento, mas pela paixão de conhecer por meio da experiência. Que prazerpode ter na visão de um cadáver dilacerado, que causa horror? E todavia onde háum cadáver, para lá corre toda a gente para se entristecer e empalidecer. Etemem depois revê-lo em sonhos, como se alguém os tivesse obrigado acontemplá-lo, ou como se a fama de alguma beleza os tivesse atraído. O mesmoacontece com os outros sentidos, o que seria enfadonho enumerar.

É esse quê de mórbido de curiosidade que faz com que se exibam monstruosidadesnos espetáculos. É ela que nos induz a perscrutar os segredos da natureza exterior,cujo conhecimento de nada serve, mas que os homens buscam conhecer apenaspelo prazer de conhecer. É ela também que inspira o homem a pesquisar, com fimsemelhante, a ciência perversa, que é a arte da magia.

E é ela, enfim, que, até na religião, nos induz a tentar a Deus, pedindo-lhe sinais eprodígios, não para a salvação da alma, mas apenas pela ânsia de vê-los.

Nessa imensa floresta, cheia de insídias e perigos, cortei e lancei para fora de meu

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coração muitos males, graças à força que me concedeste para tanto, Deus deminha salvação.

Contudo, no turbilhão diário de tantas e tão variadas tentações que atormentamminha vida, quando ousarei dizer que nenhuma delas atrai mais minha atenção enão cativa minha vã curiosidade? Certamente que o teatro já não me atrai, nemme importo mais em conhecer o curso dos astros; jamais, para obter uma resposta,consultei as sombras, pois detesto todos os ritos sacrílegos.

Mas quantos artifícios inventa o inimigo para me tentar a que te peça algummilagre, a ti, Senhor, meu Deus, a quem devo servir humilde e simplesmente! Eute suplico, por nosso Rei, por nossa pátria, a pura e casta Jerusalém, que o perigode consentir nessas coisas, que até agora esteve longe de mim, se afaste cada vezmais! Mas quando te peço a salvação de uma alma, a finalidade de meu intento ébem diferente: ouve-me pois, e concede-me a graça de seguir de bom grado tuavontade.

Mas incontáveis são as pequenas e desprezíveis bagatelas que tentam cada dianossa curiosidade! E quem poderá contar nossas quedas? Quantas vezes ouvimoscontar banalidades!

Toleramo-las, de início, para não magoar os fracos, e depois, aos poucos, ouvimo-las com atenção sempre crescente!

Não vou mais ao circo, para ver um cão correr atrás de uma lebre; mas, passandocasualmente pelo campo e vendo algo assim, eis-me interessado pela caçada,talvez até distraindo-me de algum pensamento profundo. E, se não chega a mefazer mudar o caminho do meu cavalo, desvio o curso do meu coração. Se após taldemonstração de minha fraqueza tu não me alertares para que abandone esseespetáculo, elevando-me a ti por meio de alguma reflexão, ou desprezando tudo epassando adiante, ficaria ali, absorvido como um bobo.

E que dizer quando, sentado em minha casa, observando uma lagartixa à caça demoscas, ou uma aranha que as enreda em sua teia? Acaso, por serem animaispequenos, a curiosidade que despertam em mim não é a mesma? É verdade quedepois passo a te louvar; Criador admirável, ordenador do universo, mas não foiesse o pensamento que primeiro me moveu. Uma coisa é levantar-se depressa, eoutra é não cair.

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Dessas quedas está repleta minha vida, e minha única esperança está em tuainfinita misericórdia. Nosso coração é o receptáculo de tais misérias, e traz em sigrande quantidade de vaidades, que muitas vezes até interrompem e perturbamnossas orações; e enquanto em tua presença levantamos a voz de nossa alma atéteus ouvidos, tais pensamentos fúteis, vindos não sei de onde, vêm perturbar umato tão importante.

CAPÍTULOXXXVI-Oorgulho

Terei também essa miséria como desprezível? Haverá algo que possa restituir-mea esperança, a não ser tua conhecida misericórdia, que começou a metransformar? Sabes o quanto já me transformaste; curaste-me primeiro da paixãoda vingança, para perdoar-me também todos meus pecados, curar minhasfraquezas, resgatar minha vida da corrupção, conservar-me na piedade emisericórdia, e saciar dos teus bens meu desejo. Derrubaste meu orgulho pelotemor, dobrando minha cerviz a teu jugo. Agora eu trago o teu jugo, e o sintosuave, como prometeste e cumpriste. Na verdade, teu jugo já era suave, mas eunão o sabia quando receava tomá-lo sobre mim.

Mas, Senhor, tu és o único que sabe mandar sem orgulho, porque és o únicoSenhor verdadeiro, que não tem senhor! Diga-me, terá cessado em mim, se issopode acontecer nesta vida, esta terceira espécie de tentação, que consiste emquerer ser temido e amado pelos homens, com o único fim de obter uma alegriaque não é alegria? Que vida miserável, que arrogância indigna! Aí está o principalmotivo porque não te amamos e tememos piamente. Por isso resistes aossoberbos, enquanto dás tua graça aos humildes. Trovejas contra as ambições domundo, e faz abalar as montanhas até suas raízes.

Ora, como é necessário, para se adequar à sociedade, fazer-se amar e temer peloshomens, o inimigo de nossa verdadeira felicidade nos alicia, e por toda partesemeia seus laços gritando: “Bravo! Muito bem!” – para que, ávidos, recolhamosas lisonjas e nos deixemos incautamente enredar. Seu intento é que deixemos deencontrar nossa alegria na verdade, para buscá-la na mentira dos homens;estimula em nós o prazer em nos fazer temer e amar, não pelo teu amor, mas emteu lugar. Com isso nos tornamos semelhantes a ele, não unidos na caridade, maspartilhando de suas penas. Ele quis fixar sua morada no aquilão (vento gelado donorte), para que nós, nas trevas e no frio, servíssemos o perverso e sinuosoimitador de teu poder.

Nós, Senhor, somos teu pequeno rebanho: sê nosso dono. Estende tuas asas, para

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nosso refúgio. Sê nossa glória; que nos amem por tua causa, e que tua palavra sejaobservada por nós.

Quem busca o louvor dos homens, quando tu o reprovas, não será por estesdefendido quando o julgares, nem poderá subtrair á tua condenação. Mas quandonão se louva um pecados pelos desejos de sua alma, nem se abençoa quem praticainiqüidades, mas te louva um homem pelos dons que lhe concedeste, se ele secompraz mais no louvor do que no dom que lhe atrai os louvores, tu o reprovas, adespeito dos louvores que recebe dos homens. E quem o louva é melhor do que élouvado, porque um se agradou com o dom de Deus, e o outro alegrou-se com odom do homem.

CAPÍTULOXXXVII-Atentaçãodoorgulho

Todos os dias somos acometidos por estas tentações, Senhor, somos tentados semtrégua. Os louvores dos homens são a fornalha onde todos os dias somos postos àprova.

Também nisso mandas que sejamos continentes. Concede-nos o que mandas, emanda o que quiseres.

A esse respeito, conheces os lamentos que meu coração te dirige, e os rios delágrimas que brotam de meus olhos. É-me difícil distinguir o quanto estoupurificado dessa peste; tenho muito medo de minhas faltas ocultas, que teus olhosconhecem, e os meus ignoram. Nos outros gêneros de tentação, tenho recursospara me examinar, mas quanto a este, quase nenhum.

Posso avaliar o quanto dominei a minha alma a respeito dos prazeres da carne edas vãs curiosidades, quando me vejo privado de tais coisas por minha vontade oupor necessidade.

Então me indago se é pena maior ou menor o ver-me privado desses dons.

Quanto à riqueza, ambicionada apenas para satisfazer a uma, duas ou todas astrês paixões, no caso em que a alma não perceba se as despreza quando as possui,depende só dela renunciar a elas para provar seu desapego. Todavia, para nosprivar dos louvores e provar nosso poder sobre eles, será talvez necessário levaruma vida má, infame, horrível, a ponto de ninguém nos conhecer sem nosdetestar? Pode-se dizer ou conceber maior insanidade?

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Se o louvor deve habitualmente acompanhar uma vida boa e de boas obras, nãoserá por isso que deveremos abandonar a vida exemplar. Contudo, para distinguirse a privação de um bem me é indiferente ou penosa, é preciso que me prive dessebem.

Então, Senhor, que devo confessar-te quanto a tais tentações? Que tenho emgrande apreço o louvor? Mas agrada-me mais a verdade. Pois, se tivesse queescolher entre duas situações: ser louvado pela minha loucura ou por meus errosou ser escarnecido por todos pela minha firme certeza da verdade, bem sei o queescolheria. Contudo, não gostaria que a aprovação alheia aumentasse para mim aalegria que sinto pelo pouco bem que faço. Mas tenho de te confessar que não só olouvor a aumenta, mas também que o vitupério a diminui.

Quando me sinto perturbado por essa miséria, uma desculpa surge em mim. Só tusabes, Senhor, se ela é válida, porque a mim me deixa perplexo. De fato, não nosordenaste apenas a continência, que nos ensina a afastar certas coisas de nós, mastambém a justiça, que direciona nosso amor. Não quiseste que amássemossomente a ti, mas também o nosso próximo. Ora, às vezes me parece que é oaproveitamento e as esperanças de que o próximo dá mostra que me encantam,quando me regozijo com um elogio inteligente; e que, pelo contrário, é suamaldade que me entristece quando o ouço censurar o que ignora ou o que é bom.

Às vezes também me entristeço com os elogios que me fazem, quando louvam emmim qualidades que me desagradam, ou quando dão muita importância aqualidade medíocres e secundárias.

Mas, repito-o, como saber se o desagrado não provém de minha repugnância pelolouvor que destoa do meu juízo a respeito de mim mesmo – não que seu interesseme preocupe – mas pelo maior agrado que sinto quando o bem que amo em mim éamado pelos outros? De algum modo, não me considero louvado quando o elogiocontradiz a opinião que tenho de mim mesmo, quer o encômio seja para o que medesagrada, quer exagerando o valor do que pouco me agrada.

Serei, pois, sobre isso tudo um enigma para mim mesmo?

Mas é em ti, ó Verdade, que percebo que devo me alegrar com os louvores queme dirigem, não em meu interesse, mas no interesse do próximo. Não sei se é esteo meu caso, pois neste assunto me conheces melhor do que eu mesmo. Suplico-te,meu Deus, que me dês a conhecer a mim mesmo, para que eu possa confessar a

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meus irmãos, dispostos a orar por mim, as chagas que achar em mim. Faze que meexamine com mais diligencia. Se for de fato o bem do próximo que me alegraquando me louvam, porque sou menos sensível ao vitupério injustamente feito aoutro, do que se fosse a mim? Porque o aguilhão da injúria me faz sofrer mais doque injúria igualmente injusta feita a uma outra pessoa diante de mim? Acasotambém ignoro isto?

Deveria então concluir que me iludo, e que meu coração e minha língua burlamdiante de ti a verdade?

Afasta de mim, Senhor, esta loucura, para que minhas palavras não sejam paramim óleo de pecador para ungir minha cabeça.

CAPÍTULOXXXVIII-Avanglória

Sou pobre e necessitado, e só melhoro quando, com gemidos íntimos e comdesagrado de mim mesmo, busco tua misericórdia, até que minha indigência sejareparada e sanada com a paz que o olho soberbo ignora! Todavia, as palavras denossa boca, ou nossos atos conhecidos dos homens, encerram uma tentação muitoperigosa, filha do amor dos louvores que, para nos iludir com certa excelência,recolhe e mendiga os aplausos alheios. A vanglória me tenta até quando a criticoem mim, e é por isso mesmo que eu a desaprovo. Muitas vezes, por excesso devaidade, há quem se glorie até mesmo do desprezo da vanglória; mas de fato nãoé mais do desprezo da vanglória que se orgulha, porque ninguém a desprezaquando se gloria de a desprezar.

CAPÍTULOXXXIX-Oamor-próprio

Há ainda entre nós, profundamente assentada, outra tentação do mesmo gênero,que torna vãos aqueles que se comprazem de si mesmos, ainda que não agrademaos outros, ou até lhes desagradem, ou sequer procuram lhes agradar. E quantomais enfatuados estejam consigo mesmos, mais desagradam a ti, não só ao segloriarem dos males como se fossem bens, mas sobretudo quando se gloriam deteus bens como se fossem deles; ou quando, reconhecendo-os em si, eles osatribuem a seus merecimentos; ou ainda quando, atribuindo-os à tua graça, elesnão os gozam amigavelmente com os demais, gestando ciúmes e inveja.

Em todos estes perigos e provas, tu vês o temor de meu coração, e sinto que sãomas as feridas que curas em mim do que as que inflijo a mim mesmo.

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CAPÍTULOXL-ÀprocuradeDeus

Quando deixaste de me acompanhar, ó Verdade, para me ensinar o que eu deviaevitar ou procurar, sempre te consultei, a ti submetendo, dentro da minhalimitação, meus medíocres pontos de vista? Percorri com os sentidos, como pude, omundo exterior. Observei a vida de meu corpo e os meus próprios sentidos. Depoisadentrei nas profundezas da memória em seus múltiplos domínios, tãomaravilhosamente repletos de inúmeras riquezas; observei tudo isso, estupefato.Sem teu auxílio nada poderia distinguir, mas reconheci que nada disto eras tu.Nem era eu o descobridor de todas essas coisas; me esforcei para distingui-las eavaliá-las em seu devido valor, recebendo-a através dos sentidos e interrogando-as. Senti outras coisas unidas a mim, e as examinei, assim como aos sentidos quemas traziam; revolvi as vastas reservas da memória, analisando certaslembranças, guardando umas e trazendo outras à luz. Porque tu és a luzpermanente que eu consultava sobre a existência, o valor e a qualidade de todasas coisas, e eu ouvia teus ensinamentos e tuas ordens. Costumo fazê-lo muitasvezes, pois essa é a minha alegria, e sempre que meus trabalhos me permitemalgum descanso, refugio-me nesse prazer.

Em nenhuma dessas coisas que percorro consultando-te, não encontro lugar seguropara minha alma senão em ti; só em ti se reúnem meus pensamentos esparsos,sem que nada meu se aparte de ti. Às vezes, me fazes conhecer umaextraordinária plenitude de vida interior, de inefável doçura que, se chegasse àcontemplação, não seria certamente compatível com esta vida. Mas torno a cairnesta baixeza, cujo peso me acabrunha; volto a ser dominado pelos meus hábitos,que me tem cativo e, apesar de minhas lágrimas, não me libertam. Tão pesado é ofardo do hábito! Não quero estar onde posso e não posso estar onde quero:miséria em ambos os casos!

CAPÍTULOXLI-Deuseamentira

Examinei minhas fraquezas de pecador nas três formas de concupiscência, einvoquei tua destra para me salvar. Apesar de ter coração ferido, vi teuesplendor, e forçado a recuar, disse:

“Quem pode chegar lá? Fui lançado para longe de teus olhos”. – Tu és a verdadeque preside a todas as coisas. E eu, minha avareza, não queria perder-te, masqueria possuir ao mesmo tempo a ti e à mentira, como os que não querem mentira ponto de perderem a noção de verdade. Assim te perdi, porque não admites,nem nenhum coração, conviver com a mentira.

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CAPÍTULOXLII-OsneoplatônicoseocaminhoparaDeus

Poderia eu encontrar alguém que me reconciliasse contigo? Deveria eu recorreraos anjos? E com que orações, com que ritos? Ouvi dizer que muitos dos que seesforçam para voltar a ti, e que não conseguiam por si mesmos, tentaram estecaminho e caíram na curiosidade de visões estranhas, recebendo por isso o justocastigo das ilusões.

Soberbos, procuravam-te com o coração inchado de sua ciência arrogante, e semhumildade. E atraíram para si, pela semelhança de sentimentos, os demônios doar, que se fizeram cúmplices e aliados de sua soberba, e se tornaram iludidos deseus poderes mágicos.

Procuravam um mediador para purifica-los, mas não o encontraram, senão aodemônio transfigurado em anjo de luz, que justamente por não possuir corpo decarne, seduziu-lhes fortemente a carne orgulhosa. Eram eles mortais e pecadores,e tu, Senhor, com quem eles procuravam com soberba reconciliar-se, és imortal esem pecado.

Era necessário que o mediador entre Deus e o homem tivesse alguma semelhançatanto com Deus como com os homens; pois se assemelhasse apenas aos homens,estaria muito longe de Deus; e se assemelhando só a Deus, estaria muito longedos homens; em ambos os casos não poderia ser mediador.

E aquele falso mediador que é o demônio, a quem teus ocultos juízos permitemque iluda a soberba, tem de comum com os homens apenas uma coisa, isto é, opecado. Finge contudo, ter algum traço em comum com Deus, e como não estárevestido de carne mortal, pretende ser imortal. Mas, como a morte é o salário dopecado, ele tem isso em comum com os homens: como eles, ele é condenado àmorte.

CAPÍTULOXLIII-Cristo,oúnicomediador

O verdadeiro mediador que tua insondável misericórdia enviou e revelou aoshomens, para que aprendessem a humildade pelo seu exemplo, é esse mediadorentre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo. Apareceu como intermediárioentre os pecadores mortais e o Justo imortal, mortal como os homens e justo comoDeus. E, como a vida e a paz são a recompensa da justiça, pela justiça que o une aDeus ele suprimiu a morte entre os ímpios justificados, e quis compartilhá-la com

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eles. Foi revelado aos santos dos antigos tempos, para que eles se salvassem pelafé em sua paixão futura, como nós nos salvamos pela fé em sua paixão passada. Defato, só é mediador enquanto homem; enquanto Verbo não é intermediário, porser igual a Deus: Deus em Deus e, ao mesmo tempo, Deus único.

Como nos amaste, Pai bondoso! Não poupando teu Filho único, o entregaste pornós pecadores! Oh! Como nos amaste! Foi por amor a nós que teu Filho, que nãoconsiderava rapina o ser igual a ti, submeteu-se até a morte de cruz. Ele era oúnico livre entre os mortos, tendo o poder de dar sua vida e de novamenteretomá-la. Por nós se fez diante de ti vencedor e vítima; por nós, diante de ti, sefez sacerdote e sacrifício, e sacerdote porque ele era o sacrifício; de escravos, fezde nós teus filhos; nascidos de ti, se fez nosso escravo. Com razão ponho nele afirme esperança que curarás todas as minhas enfermidades por intermédio dele,que está sentado à tua direita e intercede por nós junto de ti. De outro mododesesperaria, pois são muitos e grandes meus males; porém mais poderoso é opoder do teu remédio. Poderíamos pensar que teu Verbo estava muito longe parase unir ao homem, e desesperar de nós, se ele não se tivesse feito carne,habitando entre nós.

Atemorizado por meus pecados e pelo peso de minhas misérias, meditei o projetode fugir para o ermo; mas tu te opuseste e me fortaleceste dizendo: Cristo morreupor todos, para que os viventes já não vivam para si, mas por aquele que morreupor eles.

Eis, Senhor, que lanço em ti os cuidados da minha vida, e contemplarei asmaravilhas da tua lei. Conheces minha ignorância e minha fraqueza: ensina-me,cura-me. Teu Filho único, em que estão escondidos todos os tesouros da sabedoriae da ciência, me remiu com sangue. Não me caluniem os soberbos, porque euconheço bem o preço de minha redenção. Como o corpo e bebo o sangue da vítimaredentora, distribuo-a aos outros; pobre, desejo saciar-me dela em companhiadaqueles que a comem e são saciados. E louvarão ao Senhor os que o buscam!

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LIVRODÉCIMO-PRIMEIRO

CAPÍTULOI-Finalidadedasconfissões

Porventura, Senhor, tu que és eterno, ignoras o que te digo, ou não vês no tempoo que se passa no tempo? Por que motivo, então, narrar-te essas coisas todas?Certamente não é para que as conheças; é para despertar em mim e nos que melêem nosso amor por ti; para que todos exclamemos: Grande é o Senhor, einfinitamente digno de louvores! Já disse e torno a dizer: É pelo desejo de teuamor que narro isso.

Também nós oramos e, não obstante, a Verdade nos diz: O Pai sabe do que haveismister, antes mesmo de lho pedires. – Por isso manifestamos nosso amor por ti,confessando-te nossas misérias e tuas misericórdias para conosco, para quetermines a nossa libertação que começaste, e para que deixemos de ser infelizesem nós para sermos felizes em ti. Pois nos chamaste para que fôssemos pobres deespírito, mansos, penitentes, famintos e sedentos de justiça, misericordiosos, purosde coração e pacíficos.

Muitas coisas te narrei, conforme o pude e conforme o desejo de minha alma,porque o exigiste primeiro, para que te confessasse, Senhor, meu Deus, porque ésbom, e porque tua misericórdia é eterna.

CAPÍTULOII-AinteligênciadasEscrituras

Quando poderei eu descrever, com o poder de minha pena, todas as exortações,todos os terrores, as consolações, as inspirações de que lançaste mão para melevar a pregar tua palavra e dispensar ao povo teu sacramento?

Mesmo que eu fosse capaz de enumerar na ordem tais coisas, as gotas de meutempo me são preciosas. De há muito que anseio ardentemente meditar sobre tualei, e te confessar nela minha ciência e minha ignorância, os albores de tuas luzesna minha alma e o que ainda resta em mim de trevas, até que minha fraqueza sejaabsorvida por tua força. Não quero gastar em outros cuidados as horas deliberdade que me restam além dos cuidados indispensáveis do corpo, do trabalhointelectual, dos serviços que devemos aos homens, e dos que prestamos sem lhedever.

Senhor meu Deus, ouve minha prece; que tua misericórdia atenda ao meu desejo,

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pois não arde só por mim, mas também para servir ao amor fraternal, e bem vêsem meu coração que é assim.

Permitas que te sacrifique meu pensamento e minha língua, mas concede-me o quete devo oferecer, porque sou pobre e indigente, enquanto és rico para todos osque te invocam e, sem cuidados contigo, cuidas de nossa existência. Livra-me,Senhor, de toda temeridade e de toda mentira que meus lábios e meu coraçãopossam proferir. Que tuas Escrituras sejam minhas castas delicias, que não meengane nelas, nem com elas engane a ninguém. Senhor, ouve-me, e temcompaixão, Senhor meu Deus, luz dos cegos e vigor dos fracos, mas também luz dosque vêem e força dos fortes; presta atenção à minha alma e ouve-a clamar dofundo do abismo. E se teus ouvidos estão ausentes do abismo, para onde iremos,por quem clamaremos?

Teu é o dia e tua é a noite; a um aceno do teu querer, os minutos voam. Concede-me o tempo para meditar nos mistérios de tua lei, e não a feche para os que lhebatem à porta; não foi em vão que quiseste fossem escritas tantas páginas deobscuros segredos. Porventura, estes bosques não terão seus cervos, que ali seabrigam, se alimentam, que aí passeiam, descansam e ruminam? Ó Senhor,aperfeiçoa-me e revela-me o sentido desses mistérios. Tua palavra é minhaalegria, tua voz está acima de todos os prazeres. Concede-me o que amo, porqueando enamorado, e amar é um dom que me concedeste. Não abandone teus dons,nem deixe de regar tua erva sedenta. Te exaltarei por tudo o que descobrir emteus livros; que eu ouça a voz de teus louvores. Faz que eu me inebrie de ti, e queeu contemple as maravilhas de tua lei, desde o começo dos tempos, quando fizesteo céu, a terra, até que partilharemos do reino do perpétuo de tua cidade santa.

Senhor, tem piedade de mim, ouve meu desejo. Julgo que não desejo nada daterra, nem ouro, nem prata, nem pedras preciosas, nem belas roupas. Nemhonrarias, nem prazeres carnais, nem de coisas necessárias ao corpo de nossaperegrinação desta vida. Tudo, alias, nos é dado por acréscimo quando procuramosteu reino e tua justiça.

Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias,mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspirameu desejo. Olha, ó Pai, olha, e vê, e aprova. Queira tua misericórdia que euencontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram ameu espírito que bate às suas portas!

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Isso eu te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentadoà tua direita, o Filho do homem, a quem estabeleceste como mediador entre nós eti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para quete buscássemos! Em nome de teu Verbo, por quem criaste todas as coisas, e a mimentre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo doscrentes, no qual também estou.

Eu te conjuro por aquele que está sentado à tua direita, e que intercede por nós,no qual estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento queprocuro em teus livros.

Moisés escreveu a respeito: “Isto diz ele, isto diz a Verdade”.

CAPÍTULOIII-OquedisseMoisés

Concede-me, Senhor, que eu ouça e compreenda como no princípio criaste o céu ea terra. Moisés assim o escreveu. Escreveu e partiu deste mundo, para onde lhefalaste, para junto de ti, e já não está presente para nós. Se estivesse aqui, detê-lo-ia, e dele indagaria, em teu nome, o sentido de tais palavras, e absorveria comatenção as palavras que brotassem de sua boca. Se me falasse em hebraico, emvão sua voz bateria em meus ouvidos, e nenhuma idéia chegaria à minha mente;mas se me falasse em latim, eu compreenderia suas palavras.

Mas, como saberia eu se ele dizia a verdade? E, posto que o soubesse, sabê-lo-iapor seu intermédio? Não, mas seria dentro de mim, no íntimo recesso dopensamento que a Verdade, que nem é hebraica, nem grega, nem latina, nembárbara, sem auxílio de lábios ou de língua, sem ruído de sílabas, me diria: “Elefala a verdade”. – e eu, imediatamente, com a certeza da fé, diria àquele teuservo: “Tu dizes a verdade!”.

Mas, como não posso consultar a Moisés, é a ti, ó Verdade, cuja plenitude elepossuía quando enunciou tais palavras, é a ti, meu Deus, que dirijo minha súplica,perdoa meus pecados.

Concedeste que um tem servo dissesse essas coisas: faze agora com que eu ascompreenda.

CAPÍTULOIV-Océueaterra

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Existem pois o céu e a terra, e clamam que foram criados, mediante de suastransformações e mudanças. Mas o que não foi criado em sua forma definitiva, etodavia existe, nada pode conter que antes já não existisse em sua formapotencial, e nisso consiste a mudança e a variação. Proclamam também, os seres,que não foram criados por si mesmos: “Existimos porque fomos criados. Nãoexistíamos antes, de modo que pudéssemos criar a nós mesmos.” – E essa voz é avoz da própria evidência. És tu, Senhor, quem os criaste. E porque és belo, eles sãobelos; porque és bom, eles são bons; porque existes, eles existem. Mas tuas obrasnão são belas, não são boas, não existem de modo perfeito como tu, seu Criador.Comparados contigo, os seres nem são bons, nem belos, nem existem. Issosabemos, e por isso te rendemos graças; mas nosso saber, comparado com tuaciência, é ignorância.

CAPÍTULOV-Apalavraeacriação

De que modo criaste o céu e a terra, e de que instrumento te serviste para levar acabo tão grandiosa obra? Pois não procedeste como artesão, que forma um corpode outro, conforme a concepção de seu espírito, que tem o poder de exteriorizar aforma que vê em si mesmo com o olhar do espírito. De onde lhe vem esse poder doespírito, senão de ti, que o criaste? E essa forma, ele a impõe a uma matéria quepreexistia, apta para ser transformada, como a terra, a pedra, a madeira, o outroe tantas outras substâncias.

Mas de onde proviriam essas coisas se não as tivesse criado? Criaste o corpo doartista, a alma que governa seus membros, a matéria que ele plasma, a inspiraçãoque concebe e vê interiormente o que executará exteriormente. Deste-lhe osórgãos dos sentidos, intérpretes pelos quais materializa as intenções de sua alma;informam o espírito do que fizeram, para que este consulte a verdade, o juizinterior, para saber se a obra é boa. Tudo isso te louva como criador de todas ascoisas.

Mas como os fizeste? Como criaste, meu Deus, o céu e a terra? Por certo nãocriaste o céu e a terra no céu e na terra. Nem tampouco os criaste no ar, nem sobas águas que pertencem ao céu e à terra. Não criaste o universo no universo,porque não havia espaço onde pudesse existir. Não tinhas à mão a matéria comque modelar o céu e a terra. E de onde viria essa matéria que não tinhas aindafeito para dela fazer alguma coisa? Que criatura pode existir que não exija tuaexistência? Contudo, falaste e o mundo foi feito. Tua palavra o criou.

CAPÍTULOVI-ComofalouDeus?

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Mas, como falaste? Porventura do mesmo modo como aquela voz que, saindo danuvem, disse: Este é meu Filho bem-amado? – Essa voz fez-se ouvir, e passou; tevecomeço e fim; suas sílabas ressoaram, depois passaram, em sucessão ordenada atéa última, que vem depois de todas as outras – e depois foi o silêncio. Por onde sevê claramente que essa voz foi gerada por órgão temporal de uma criatura aserviço de tua vontade eterna. E essas palavras, pronunciadas no tempo, foramcomunicadas pelo ouvido material à inteligência, cujo ouvido interior está atentoà tua palavra eterna. E a razão comparou essas palavras, proferidas no tempo,com o silêncio de teu Verbo eterno, e disse: “È diferente, muito diferente. Taispalavras estão bem abaixo de mim, nem sequer existem, pois fogem e passam; maso Verbo de Deus permanece sobre mim eternamente”.

Se foi portanto com estas palavras sonoras e passageiras que ordenaste: Que sefaçam o céu e a terra! – se foi assim que os criaste, conclui-se que já havia, antesdo céu e da terra, uma criatura temporal, cujos movimentos puderam fazer vibraressa voz no tempo. Ora, não havia corpo algum antes do céu e da terra; ou sealgum existia, tu certamente já o tinhas criado não por meio de uma vozpassageira, justamente para que pudesse soar essa voz passageira para dizer:

“Façam-se o céu e a terra!” E fosse o que fosse o ser de onde saísse tal voz, nãoteria existido se não o tivesses criado. Mas para criar esse corpo, necessário àemissão destas palavras, de que palavra e serviste?

CAPÍTULOVII-Apalavracoeterna

É assim que nos convidas a compreender o Verbo, que é Deus junto de ti, quetambém és Deus, Verbo pronunciado eternamente e pelo qual tudo é pronunciadoeternamente. O que é dito, não é uma seqüência de palavras, ou uma palavra queé seguida por outra, como que a concluir uma frase; mas tudo é dito simultânea eeternamente. Do contrário, já haveria tempo e mudança, e não a verdadeiraeternidade nem a verdadeira imortalidade.

Isto eu o sei, meu Deus, e por isso te dou graças. Eu o sei, e eu to confesso, Senhor;e também o sabe todo aquele que não é ingrato à infalível verdade. Sabemos,Senhor, sabemos que não ser mais depois de ter existido, ou passar a ser quandoainda não se existia é o morrer e o nascer. Mas em teu Verbo, por serverdadeiramente imortal e eterno, nada desaparece nem tem sucessão. Com o teuVerbo que é coeterno, enuncias eternamente e a um só tempo tudo o que dizes. Eo que se realiza é o que dizes que se faça. Não é de outro modo, senão pelo Verbo,que crias. Todavia os seres criados por tua palavra não chegam à existência

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simultaneamente, desde toda a eternidade.

CAPÍTULOVIII-Averdadeiraluz

Imploro-te, Senhor meu Deus, qual o porquê disso tudo? De certo modo eu ocompreendo, mas não sei como exprimi-lo. Poderei dizer que tudo o que temcomeço e fim, começa e acaba quando a razão eterna, que não tem começo nemfim, sabe que deve começar ou acabar? Essa inteligência é teu Verbo, que é oprincípio, porque também nos fala. Assim falou-nos no Evangelho com voz humana,e a palavra ecoou exteriormente nos ouvidos dos homens, para que cressem nele,e o buscassem em seu íntimo, e o encontrassem na eterna Verdade, onde um bome único mestre instrui todos os seus discípulos.

Aí, Senhor, ouço tua voz a me dizer que só nos fala verdadeiramente quem nosensina, e quem não nos instrui, mesmo que fale, não nos diz nada. Mas quem nosensina, senão a Verdade imutável? As lições da criatura mutável têm o únicovalor de nos conduzir à Verdade, que é imutável. Nela verdadeiramenteaprendemos quando, de pé, a ouvimos, alegrando-nos por cauda da voz do Esposo,que nos reconduz àquele de quem viemos. Por isso, ele é o princípio, pois se elenão permanecesse, não teríamos para onde voltar de nossos erros. Quandovoltamos de um erro, temos plena consciência dessa volta; e é para que tomemosconsciência de nossos erros que ele nos instrui, porque ele é o princípio, e suapalavra é para nós.

CAPÍTULOIX-AvozdoVerbo

É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a terra; em teu Verbo, em teu Filho,em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modoadmirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezesme ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me:tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porquetambém sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha emmim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamenteme encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhasmemórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso maissuportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todasminhas iniqüidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minhavida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás comteus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia.

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Pela esperança formos salvos, e aguardamos com paciência o cumprimento de tuaspromessas.

Ouça, pois, Tua voz em seu interior, quem puder, e eu quero clamar, cheio de féem teu oráculo: “Como são magníficas as tuas obras, Senhor, que tudo criaste emtua Sabedoria! Ela é o princípio e nesse princípio criaste o céu e a terra”.

CAPÍTULOX-QuefaziaDeusantesdacriação

Com certeza ainda estão cheios do erro do velho homem os que nos dizem: “Quefazia Deus antes de criar o céu e a terra?” – Se estava ocioso, se nada fazia,porque não continuou a se abster sempre de qualquer ação? Se em Deus apareceuum movimento novo, uma vontade nova de dar o ser ao que ainda não tinhacriado, como falar de uma verdadeira eternidade se nela nasce uma vontade quenão existia antes? Mas a vontade de Deus não é uma criatura, ela é anterior atoda criatura; nenhuma criação seria possível se a vontade do Criador não aprecedesse. A vontade, portanto, pertence à própria substância de Deus. Logo, sena substância de Deus nasce algo que antes não existia, não se pode mais comverdade chamá-la eterna. E se, desde toda eternidade, Deus quis a existência dacriatura, por que a criatura também não é eterna?

CAPÍTULOXI-Tempoeeternidade

Os que assim falam não te compreendem ainda, ó Sabedoria de Deus, luz dasinteligências; não compreendem ainda como é criado o que é criado por ti e em ti.Esforçam-se por saborear as coisas eternas, mas seu espírito voa ainda sobre asrealidades passadas e futuras. Quem poderá deter esse pensamento, quem o fixarápor um momento, para que tenha um rápido vislumbre do esplendor daeternidade imutável, e a compare com os tempos impermanentes, para perceberque qualquer comparação é impossível? Então veria que a sucessão dos temposnão é feita senão de uma seqüência infindável de instantes, que não podem sersimultâneos; que, pelo contrário, na eternidade, nada é sucessivo, tudo épresente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente. Veria que todo opassado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto opassado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente.Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como aeternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e opassado? Acaso poderá realizar isso minha mão? Ou esta minha língua, com apalavra, poderia realizar tal obra?

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CAPÍTULOXII-Deusantesdacriação

Eis minha resposta à questão: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” –não responderei jocosamente como alguém para contornar a dificuldade doproblema: “Preparava o inferno para os que perscrutam esses mistériosprofundos”. – Uma coisa é compreender e outra é brincar. Não, essa não seráminha resposta. Prefiro dizer: “Não sei” – pois de fato não sei, que ridicularizarquem faz pergunta tão profunda, ou louvar quem responde com sofismas.

Mas eu digo que tu, meu Deus, és o Criador de toda criatura; e, se por céu e terrase entende toda criatura, não temo afirmar: “Antes que Deus criasse o céu e aterra, nada fazia. De fato, se tivesse feito alguma coisa, o que poderia ser senãouma criatura? Oxalá eu soubesse tudo o que desejo saber, como sei que nenhumacriatura foi criada antes da criação.

CAPÍTULOXIII-Otempoantesdacriação

Se algum espírito leviano, vagando por tempos imaginários anteriores à criação,se admirar que o Deus Todo-Poderoso, tu, que criaste e conservas todas as coisas,ó autor do céu e da terra, tenha-te mantido inativo até o dia da criação, porséculos sem conta, que esse desperte e tome consciência do erra que gera suaadmiração. Como, pois, poderiam transcorrer os séculos se tu, criador, ainda nãoos tinha criado? E poderia o tempo fluir se não existisse? E como poderiam osséculos passar, se jamais houvessem existido? Portanto, como és o criador detodos os tempos – se é que houve algum tempo antes da criação do céu e da terra– como se pode afirmar que ficaste ocioso? Pois também criaste esse mesmotempo, e este não poderia passar antes que o criasses.

Se porém, antes do céu e da terra não havia tempo algum, porque perguntam oque fazias então? Não poderia haver então se não existia o tempo.

Não é no tempo que és anterior ao tempo: de outro modo não precederias a todosos tempos. Precedes porém a todo o passado na altura de tua eternidade semprepresente; dominas todo o futuro porque está por vir e que, quando chegar, já serápassado. Contudo, tu és sempre o mesmo, e teus anos não passam jamais. Teusanos não vão nem vêm; mas os nossos vão e vêm, para que todos possam existir.Teus anos existem simultaneamente, pois não fluem; não passam, não são expulsospelos que vêm, porque não passam. Os nossos, ao contrário, só existirão todosquando não mais existirem. Teus anos são como um só dia, e teu dia não é uma

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repetição cotidiana, é um perpétuo hoje, porque teu hoje não cede o lugar aoamanhã e nem sucede ao ontem. Teu hoje é a eternidade. Por isso geraste umfilho coeterno, a quem disseste: “Hoje te gerei” – Todos os tempos são obra tua, etu existes antes de todos os tempos; é pois inconcebível que tenha existido tempoquando o tempo ainda não existia.

CAPÍTULOXIV-Queéotempo?

Não houve, pois, tempo algum em que nada fizesses, pois fizeste o próprio tempo.E nenhum tempo pode ser coeterno contigo, pois és imutável; se, o tempo tambémo fosse, não seria tempo. Que é pois o tempo? Quem poderia explicá-lo de maneirabreve e fácil? Quem pode concebê-lo, mesmo no pensamento, com bastanteclareza para exprimir a idéia com palavras? E no entanto, haverá noção maisfamiliar e mais conhecida usada em nossas conversações?

Quando falamos dele, certamente compreendemos o que dizemos; o mesmoacontece quando ouvimos alguém falar do tempo. Que é, pois, o tempo? Seninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei.Contudo, afirmo com certeza e sei que, se nada passasse, não haveria tempopassado; que se não houvesse os acontecimentos, não haveria tempo futuro; e quese nada existisse agora, não haveria tempo presente. Como então podem existiresses dois tempos, o passado e o futuro, se o passado já não existe e se o futuroainda não chegou? Quanto ao presente, se continuasse sempre presente e nãopassasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto, se o presente,para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se suarazão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permiteafirmar que o tempo existe é a sua tendência para não existir.

CAPÍTULOXV-Tempolongo,tempobreve

No entanto, dizemos que o tempo é longo ou breve, o que só podemos dizer dopassado e do futuro. Chamamos longo, digamos, os cem anos passados, e longotambém os cem anos posteriores ao presente; um passado curto para nós, seriamos dez dias anteriores a hoje, e breve futuro, os dez dias seguintes. Mas comopode ser longo ou curto o que não existe? O passado não existe mais e o futuronão existe ainda. Por isso não deveríamos dizer “o passado é longo” – mas opassado “foi longo” – e o futuro “será longo”.

Senhor, que és a minha luz, tua verdade não escarnecerá também nisso o homem?

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Esse tempo passado, foi longo quando já havia passado ou quando ainda estavapresente? Porque ele só podia ser longo enquanto existia alguma coisa quepudesse ser longa. Mas uma vez passado, não existia mais: donde se conclui quenão podia ser longo, porque já deixara de existir. Não digamos, portanto: “Otempo passado foi longo” – pois não encontraremos nada que pudesse ter sidolongo; uma vez passado não existe mais. Mas digamos: “O tempo presente foilongo” – porque só era longo enquanto presente. Ainda não havia passado, aindanão havia deixado de existir, e por isso era susceptível de ser longo. Mas logo quepassou, deixou de ser longo, porque cessou de existir.

Mas vejamos, ó alma humana, se o tempo presente pode ser longo, porque foi-tedada a prerrogativa de perceber e medir os momentos. Que me respondes? Poracaso cem anos presentes são um tempo longo? Consideremos antes se cem anospodem ser presentes. Se for o primeiro ano que corre, está presente; mas osoutros noventa e nove ainda são futuros, e portanto ainda não existem. Seestamos no segundo ano, já temos um ano passado, o segundo presente e todos osoutros no futuro. Desse período de cem anos, seja qual for o ano que supomospresente, todos os que o precederam serão passados, e todos os que estão por vir,futuros. Portanto, os cem anos não podem estar simultaneamente presentes.

Vejamos agora se, pelo menos, o ano em curso é presente. Se estamos no primeiromês, os outros são futuros. Como acima, se estamos no segundo, o primeiro serápassado, e os demais, futuros. Assim o ano que corre não está todo presente; ecomo não está todo presente, não é portanto verdade dizer-se que o ano estejapresente. Um ano compõe-se de doze meses, e seja qual for o mês considerado,será o único em curso. Mas o mês em curso não é presente, mas somente o dia.Vale o que dissemos antes: se estamos no primeiro dia, todos os outros sãofuturos; se estamos no último, todos os outros são passados; se estamos entre umdesses dois dias, esse dia está entre os dias passados e os futuros.

Eis, portanto, esse tempo presente, o único que julgávamos poder chamar delongo, reduzido ao espaço de um só dia. Mas, examinemos esse único dia, porquenem mesmo ele é todo presente. Compõe-se de dia e noite, num total de vinte equatro horas; relativamente à primeira hora, todas as outras são futuras; emrelação à última hora, todas as outras são passadas; cada hora intermediaria tematrás de si horas passadas e diante de si horas futuras.

Mas também essa única hora é composta de fugitivos instantes; tudo o que delacorreu é passado, e tudo o que ainda lhe resta é futuro.

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Se pudermos conceber um lapso de tempo que não possa ser subdividido emfrações, por menores que sejam, só essa fração poderá ser chamada de presente,mas sua passagem do futuro para o passado seria tão rápida, que não terianenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro, mas o presentenão em duração alguma.

Qual seria pois, o tempo que podemos chamar de longo? Seria acaso o futuro? masnós não dizemos que o futuro é longo, porque ainda não existe, e por isso não podeser longo.

Dizemos: “Será longo”. E quando se dará? Se atualmente ele ainda está no porvir,não pode ser longo: não existindo ainda, não pode ser longo. Mas somente poderáser longo na hora em que emergir do futuro, que ainda não existe, em quecomeçar a ser e a se tornar presente, de modo que possa ser longo. Nesse caso opresente nos clama, pelo que acima dissemos, que ele não pode ser longo.

CAPÍTULOXVI-Amedidadopresente

E, contudo, Senhor, percebemos os intervalos de tempos, os comparamos entre si,e dizemos que uns são mais longos e outros mais breves. Medimos também oquanto uma duração é maior ou menor que outra, e respondemos que esta é odobro ou o triplo de outra; que aquela é simples, ou que ambas são iguais. Mas é otempo que passa que medimos quando o percebemos passar. Quanto ao passado,que não existe mais, e o futuro que não existe ainda, quem poderá medi-los, amenos que ouse afirmar que o nada pode ser medido? Assim, quando o tempopassa, pode ser percebido e medido. Porém quando já decorreu, ninguém o podementir ou sentir, porque já não existe.

CAPÍTULOXVII-Opassadoeopresente

Pai, apenas pergunto, não estou afirmando; meu Deus, ajuda-me, dirige-me. Quemousaria afirmar que não existe três tempos, como aprendemos na infância e comoensinamos às crianças, o passado, o presente e o futuro? será que só o presenteexiste, porque os demais, o passado e o futuro, não existem? Ou será que elestambém existem, e então o presente provém de algum lugar oculto, quando defuturo se torna presente, e também se retira para outro esconderijo, quando depresente se torna passado? E os que predisseram o futuro, onde o viram, se eleainda não existe? É impossível ver-se o que não existe. E os que narram o passadodiriam mentiras se não vissem os acontecimentos com o espírito. Ora, se esse

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passado não tivesse existência alguma, seria absolutamente impossível vê-lo. Porconseguinte, o futuro e o passado também existem.

CAPÍTULOXVIII-Asprevisões

Permite-me, Senhor, que eu leve adiante minhas investigações, tu que és minhaesperança; faze que minha tentativa não seja perturbada. Se o futuro e o passadoexistem, quero saber onde estão. Se ainda não posso compreender, sei todaviaque, onde quer que estejam, não existem nem como futuro, nem como passado,mas apenas como presente. Se também ali estiver enquanto futuro, então aindanão existirá; se o passado aí estiver como passado, já não estará lá.

Portanto, no lugar e no modo que estiverem, só podem existir como presentes.Quando relatamos acontecimentos verídicos do passado, o que vêm à nossamemória não são os fatos em si, que já deixaram de existir, mas as palavras queexprimem as imagens dos fatos, que, através de nossos sentidos, gravaram emnosso espírito suas pegadas. Minha infância, por exemplo, que não existe mais,pertence a um passado que também desapareceu; mas quando eu a evoco e passoa relatá-la, vejo suas imagens no presente, imagens que ainda estão na minhamemória. E a predição do futuro, meu Deus, seguiria um processo análogo? Osfatos que ainda não existem, serão representados antecipadamente em nossoespírito como imagens já existentes? Eu o ignoro. O que sei é que habitualmentepremeditamos nossas ações futuras, e que essa premeditação pertence aopresente, enquanto esta começará a existir, pois então não será mais futura, maspresente.

Seja qual for a natureza desse misterioso pressentimento do futuro, o certo é queapenas se pode ver aquilo que existe. Ora, o que já existe não é futuro, maspresente. Quando se diz que se vê o futuro, o que se vê não são os fatos futurosem si, que ainda não existem porque são futuros, mas suas causas ou talvez sinaisprognósticos, causas e sinais que já existem. Estes não são pois futuros, maspresentes para os que as vêem, e é graças aos vaticínios que o futuro é concebidopelo espírito e profetizado. Esses conceitos já existem, e os que predizem o futurovêem-nos presentes em si mesmos.

Gostaria de apelar para um exemplo tomado entre os muitos possíveis. Vejo aaurora, e prognostico o nascimento do sol. O que vejo é presente, o que anuncio éfuturo. Não o sol, que já existe, mas seu surgimento, que ainda não ocorreu.Contudo, se eu não tivesse uma imagem mental desse surgimento, como agoraquando falo dele, ser-me-ia impossível a previsão. Mas essa aurora que vejo não é

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o nascimento do sol, embora o preceda; nem o é tampouco a imagem que tragoem meu espírito. As duas coisas estão presentes, eu as vejo, e assim possopredizer o que vai acontecer. O futuro, portanto, ainda não existe; se ainda nãoexiste, não existe no agora; e se não existe não pode ser visto de modo algum, maspode ser prognosticado pelos sinais presentes, que já existem e podem ser vistos.

CAPÍTULOXIX-Oração

Mas tu, que és soberano sobre tuas criaturas, de que modo ensinas às almas osfator porvir, como revelas aos teus profetas? De que modo ensinas o futuro, tu,para quem o futuro não existe? Ou antes, como ensinas os sinais presentes dosfatos futuros? Pois, o que ainda não existe não pode ser ensinado. O teu modomisterioso de agir está muito acima de minha inteligência, sobrepuja minhasforças. Por mim mesmo eu não o poderia alcançar, mas podê-lo-ei por ti, quandome concederes, ó doce Luz dos olhos de minha alma!

CAPÍTULOXX-Conclusão

O que agora parece claro e evidente para mim é que nem o futuro, nem o passadoexistem, e é impróprio dizer que há três tempos: passado, presente e futuro.Talvez fosse mais correto dizer: há três tempos: o presente do passado, o presentedo presente e o presente do futuro. E essas três espécies de tempos existem emnossa mente, e não as vejo em outra parte. O presente do passado é a memória; opresente do presente é a percepção direta; o presente do futuro é a esperança.

Se me é lícito falar assim, vejo e confesso que há três tempos. Diga-se também quesão três os tempos: presente, passado e futuro, como abusivamente afirma ocostume. Não me importo, nem me oponho, nem critico o modo de falar, desde quefique bem entendido o que se diz, e que não se acredite que o futuro já existe eque o passado ainda existe. Uma linguagem que expresse com termos exatos éincomum: com muita freqüência falamos com impropriedade, mas entende-se o quequeremos dizer.

CAPÍTULOXXI-Amedidadotempo

Disse há pouco que medimos o tempo que passa; de modo que podemos afirmarque um lapso de tempo é o dobro de outro, ou igual, e apontar entre os intervalosde tempo outras relações, mediante esse processo comparativo. Portanto, comoeu dizia, medimos o tempo no momento em que passa. E se me perguntarem:

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Como o sabes? – eu responderia: Sei porque o medimos, e porque é impossívelmedir o que não existe; ora, o passado e o futuro não existem.

Quanto ao presente, como podemos medi-lo, se não tem duração? Portanto, sópodemos medi-lo enquanto passa; e quando passou, não o medimos mais, porquenão há mais nada a mentir.

Mas de onde se origina, por onde passa, para onde vai o tempo quando omedimos? De onde vem senão do futuro? Por onde passa, senão pelo presente?Para onde vai senão para o passado? Nasce pois do que ainda não existe,atravessa o que não tem duração, e corre para o que não existe mais. No entanto,o que é que medimos, senão o tempo relacionado ao espaço?

Quando dizemos de um tempo que é simples, duplo, ou triplo, ou igual, ou quandoformulamos qualquer outra relação dessa espécie, nada mais fazemos do quemedir espaços de tempo. Em que espaço medimos então o tempo no momento emque passa? No futuro, talvez, donde procede? Mas o que ainda não existe nãopode ser medido. Será no presente, por onde ele passa? Mas, como medir o quenão tem extensão? Será no passado, para onde caminha? Mas o que não existemais escapa à qualquer medida.

CAPÍTULOXXII-Oenigma

Minha alma se inflama no desejo de deslindar este enigma tão complicado!Senhor, meu Deus, meu bom Pai, eu to suplico por Cristo; não queiras tolher a meudesejo a solução de tais problemas, tão familiares mas tão obscuros; permite queeu os penetre, e faze com que a luz de tua misericórdia os ilumine, Senhor! Aquem poderia eu consultar sobre isso? A quem confessaria minha ignorância commais proveito do que a ti, que não se despraz com o forte zelo que me inflama portuas Escrituras? Concede-me o que amo, pois este amor é um dom teu. Dá-me, óPai, esta graça, tu que sabes presentear com boas dádivas a teus filhos. Concede-me essa luz, porque determinei conhecê-las, e meu esforço será rude até que mereveles esses mistérios. Eu to suplico, por Cristo, em nome do Santo dos Santos,que ninguém perturbe minha investigação.

Acreditei, e por isso falo. Minha esperança, a esperança pela qual vivo, écontemplar as delícias do Senhor. Eis que tornaste velhos os meus dias, e elespassam, não sei como.

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Nós só falamos de tempo, e de tempo, e de tempos e de tempos. Quanto tempoesse homem falou? Quanto tempo demorou para fazê-lo? Há quanto tempo nãovejo isto! A duração desta sílaba é o dobro daquela, que é breve. Assim nosexpressamos e assim ouvimos, e todos nos compreendem, e nós compreendemos.São palavras claras e de uso corrente, mas encerram mistérios, e compreendê-lasrequer melhor análise.

CAPÍTULOXXIII-Otempoeomovimento

Ouvi um homem instruído dizer que o tempo é nada mais do que o movimento dosol, da lua e dos astros. Não concordo. Por que não seria então o tempo omovimento de todos os corpos? Se os astros passassem, e a roda de um oleirocontinuasse a rodar, deixaria acaso de existir tempo para medir suas voltas? Comopoderíamos dizer que elas se davam a intervalos iguais, ou ora mais rápida, oramais lentamente, e que umas demoravam mais e outras menos? E, dizendo isto,não estaríamos falando do tempo? Não haveria mais em nossas palavras sílabaslongas e breves, porque umas ressoam por mais tempo e outras por menostempo?

E tu, Deus, concede aos homens que percebam, que reconheçam neste modestoexemplo, o que as coisas grandes e pequenas têm em comum. Há astros eluminares celestes que nos servem de sinais e marcam as estações, os dias e osanos. Isso é verdade; todavia, como eu jamais diria que a volta realizada poraquela roda de madeira representa o dia, nem o sábio cuja opinião transcrevopoderia afirmar que a volta da roda não representa o tempo.

O meu desejo é conhecer a natureza e a essência do tempo, com que medimos osmovimentos dos corpos, e nos autoriza a dizer, por exemplo, que um movimentodura duas vezes mais que outro. O que chamamos de dia não é apenas o tempotodo o percurso de oriente a oriente, e que nos faz dizer: “Passaram-se tantosdias” – entendendo por isso também as noites, que não são enumeradasseparadamente. Portanto, já que o dia se completa pelo movimento do sol e ocírculo que ele cumpre a partir do oriente, pergunto eu se o dia é o própriomovimento ou se é o tempo que dura esses movimentos, ou ambas as coisas.

Na primeira hipótese, teríamos um dia mesmo se o sol fizesse seu percurso nointervalo de uma hora. Na hipótese da duração, não haveria dia se o sol fizesseseu percurso no breve espaço de uma hora; e o sol deveria cumprir vinte e quatrovezes seu percurso para formar um dia.

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Diremos então que o movimento do sol, e a duração desse movimento, é quefazem o dia? Mas então não se poderia chamar de dia se o sol efetuasse seupercurso no lapso de uma hora, mais do que se, parando o sol seu percurso,passasse o mesmo tempo que é necessário habitualmente ao sol para completarsua revolução de uma manhã a outra.

Portanto, não mais buscarei conhecer em que consiste o dia, mas em que consisteo tempo, que usamos para medir o percurso do sol. Usando tal medida, diríamosque o sol gastara em seu giro a metade do tempo habitual , se o tivessecompletado em um lapso de doze horas. E, comparando essas duas durações,diríamos que uma é o dobro da outra, mesmo que o sol demorasse umas vezes otempo simples, outras o tempo duplo para ir de oriente para oriente.

Ninguém, portanto, me diga que o tempo é o movimento dos corpos celestes.Quando a oração de um homem fez parar o sol para concluir vitoriosamente abatalha, o sol estava imóvel, mas o tempo caminhava; e a batalha terminou noespaço de tempo que lhe era necessário.

Veja, pois, que o tempo é uma espécie de extensão. Mas eu o vejo, ou apenastenho a impressão de vê-lo? Só tu mo demonstrarás, ó Luz, ó Verdade!

CAPÍTULOXXIV-Otempo,medidadomovimento

Queres que eu aprove a quem diz que o tempo é o movimento de um corpo? Não,não aprovo. Sei que não há corpo que não se mova no tempo: tu mesmo o afirmas.Mas não acredito que o movimento de um corpo seja o tempo; isso nunca ouvi, enem tu o dizes. Quando um corpo se move, sirvo-me do tempo para medir aduração de seu movimento do começo ao fim. Se não vejo o começo, e percebo seumovimento sem ver seu fim, só posso medi-lo do momento em que observo o corpomover-se até o momento em que já não o vejo. Se o vejo por muito tempo, apenasposso afirmar que a duração de seu movimento é longa, mas não posso dizerquanto é longa, porque só determinamos o valor de uma duração comparando-a.Dizemos, por exemplo:

“isso durou tanto quanto aquilo, ou essa duração é o dobro daquela”, semelhantes.Se podemos notar o ponto do espaço onde se inicia um movimento, e o ponto dechegada, ou suas partes, se ele se movesse em círculo, poderíamos dizer quantotempo levou para ir de um ponto a outro o movimento do corpo ou dessas partes.

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Assim, o movimento de um corpo é diferente da medida de sua duração; que nãovê, pois, a qual dessas coisas se deve chamar de tempo? Se um corpo se move deforma irregular, e outras vezes se detém, ora, é o tempo que nos permite medir,não apenas seu movimento, mas também seu repouso, e afirmar: “Ficou emrepouso por tanto tempo quanto em movimento – ou qualquer outro intervaloque tenhamos calculado ou estimado aproximadamente”. O tempo não é pois amesma coisa que o movimento.

CAPÍTULOXXV-Prece

Confesso-te, Senhor, que ainda não sei o que é tempo. E torno a confessar, Senhor,eu o sei, que digo estas coisas no tempo, e que de há muito estou falando dotempo, e que esse muito também não seria o que é senão pela duração do tempo.Mas como posso saber isto, se desconheço o que é o tempo? Talvez eu ignore aarte de exprimir o que sei. Ai de mim, que não sei nem mesmo o que ignoro! Eis-me diante de ti, meu Deus, tu vês que não minto e que falo de coração. Acenderásminha candeia, Senhor meu Deus, e iluminarás minhas trevas.

CAPÍTULOXXVI-Otempo,distensãodaalma

Acaso minha alma não foi sincera confessando-te que posso medir o tempo? Defato, meu Deus, eu o meço, e não sei o que meço. Meço o movimento dos corposcom o auxílio do tempo, e não poderei medir o tempo do mesmo modo? E poderiaeu medir o movimento de um corpo, sua duração, o tempo que gasta para ir de umlugar a outro, sem medir o tempo em que se move?

Mas o tempo em si, com que o poderei medir? É com um tempo mais curto quemedimos um mais longo, como medimos uma viga com o côvado? Do mesmo modomedimos a duração de uma sílaba longa com a duração de uma sílaba breve,dizendo que uma é o dobro da outra. Do mesmo modo medimos a extensão de umpoema pelo número de versos, a extensão dos versos pelo número de pés, aextensão dos pés pelo número de sílabas, a duração das sílabas longas peladuração das breves. Não é pelas páginas dos livros que fazemos esse cálculo, o queseria medir o espaço e não o tempo. Conforme as palavras passam e aspronunciamos, dizemos: “Eis um poema longo, porque se compõe de tantos versos;esses versos são longos, porque são formados de tantos pés; esses pés são longos,porque se estendem por tantas sílabas; esta sílaba é longa, porque é o dobro deuma breve”.

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Todavia, não conseguimos uma medida exata do tempo; pode acontecer que umverso mais curto, se pronunciado mais lentamente, se estenda por mais tempo queum verso mais longo, recitado depressa. O mesmo acontece com um poema, umpé, uma sílaba.

Por esse motivo é que o tempo me pareceu não ser nada mais que uma extensão.Mas extensão de que? Não saberia dize-lo ao certo; seria de admirar que não fosseextensão da própria alma. Portanto, dize-me , meu Deus, que é o que meço quandodigo um tanto vagamente:

“Este tempo é mais longo do que aquele” – ou mais exatamente: “Este tempo é odobro daquele?

– Meço o tempo, eu o sei; mas não o futuro, que ainda não existe, nem o presente,porque não tem duração, nem o passado, porque não existe mais. Que meço euentão? Acaso o tempo que passa, e não o tempo passado, como disse acima?

CAPÍTULOXXVII-Amedidadopassado

Insiste, ó minha alma, e presta grande atenção: Deus é nosso apoio. Ele é que noscriou, e não nós. Olha para lá, par o lado onde desponta a aurora da verdade.

Eis, por exemplo, que uma voz corpórea começa a ressoar, e soa, e continuavibrando e deixar de soar; faz-se silencio, a voz calou-se, passou e deixa de existir.Antes de soar, era futura, e não podia ser medida, pois ainda não existia; e agoratambém não o pode, porque já não existe mais. Só poderíamos medi-la quandoressoava, porque então havia o que medir. Mas mesmo então não era estável,porque vinha e passava. E não seria isso que a tornava mensurável?

Porque enquanto passava, estendia-se por um espaço de tempo que a tornavacapaz de ser medida, porque o presente não tem duração alguma.

Admitamos que foi possível medi-la; eis, suponhamos agora, uma outra voz quecomeça a se fazer ouvir; ela vibra de modo contínuo, sem nenhuma interrupção.Meçamo-la enquanto vibra, porque no momento em que deixar de vibrar serápassada, e já não poderá ser medida. Meçamo-la, então, e avaliemos sua duração.Mas ela vibra ainda, e só pode ser medida depois do início do fenômeno, quandocomeça a vibrar, até seu fim, quando deixa de vibrar. Porque é precisamente ointervalo que separa um começo de um fim que nós medimos. Por isso, uma voz,

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que ainda não terminou de ressoar, escapa à medida: é impossível dizer se elaserá longa ou breve, se é igual a outra, simples ou dupla, ou qual a relação quetem com essa outra. Mas quando terminar de soar, deixará de existir. Como,então, poderemos medi-la?

De fato, medimos o tempo; mas não o tempo que ainda não existe, nem o que jánão existe, nem o que não tem duração alguma, nem o que está passando. Não é,portanto, nem o futuro, nem o passado, nem o presente, nem o que não temlimites que medimos: e, contudo, medimos o tempo.

Deus creator omnium (Deus, criador de tudo quanto existe): este verso é formadode oito sílabas, alternativamente breves e longas. As quatro breves, a primeira, aterceira, a quinta e a sétima – são simples em relação às quatro longas: asegunda, a quarta, a sexta e a oitava. Cada sílaba longa tem uma duração duasvezes maior que a breve. Eu pronuncio e percebo que é assim pelo testemunhoclaro de meus sentidos. E por esta testemunho que é fidedigno, meço uma longapor uma breve, e noto que ela a contém duas vezes.

Mas como uma sílaba só se faz ouvir depois da outra, se a breve vem primeiro, e alonga a seguir, como poderei reter a breve, como aplicá-la à longa, para compará-las e ver que esta contém aquela duas vezes, uma vez que a longa só começa asoar quando a breve deixou de se ouvir? E a própria sílaba longa, não me épossível medi-la enquanto está soando, porque eu só poderia medi-la quando secalasse. Mas ela, ao terminar, passou. Que é pois que eu meço? Onde está abreve, que seria minha medida? Onde está a longa, que meço? Apenas vibraram,foram-se, passaram, e não existem mais. Não obstante, eu as meço e respondo coma segurança que me pode dar um sentido bem educado, que evidentemente uma éde duração simples e a outra dupla. Mas só poderei fazê-lo depois que ambaspassaram e terminaram.

Logo, eu não meço as sílabas, que não existem mais, mas algo que permanecegravado em minha memória.

É em ti, meu espírito, que meço o tempo. Não me objetes nada, pois é assim. Nãote perturbes com as ondas desordenadas de tuas emoções. É em ti, digo, que meçoo tempo. A impressão que em ti gravam as coisas em sua passagem, perduramainda depois que os fatos passam. O que eu meço é esta impressão presente, e nãoas vibrações que a produziram e se foram. É ela que meço quando meço o tempo.Portanto, ou essa impressão é o tempo, ou eu não meço o tempo.

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Mas quando medimos silêncios, e dizemos que o silêncio teve a mesma duraçãoque certa palavra, não estamos dirigindo nossa atenção para a medida dessapalavra, como se ainda pudéssemos ouvi-la, para podermos avaliar no espaço detempo, o intervalo do silêncio? Com efeito, por vezes, sem abrir a boca ou dizerpalavra, fazemos mentalmente poemas, versos, discursos; avaliamos a extensão doseu movimento, sua duração, uns em relação aos outros, exatamente como seusássemos a voz.

Se alguém quisesse pronunciar um som prolongado, e regular antecipadamente,em pensamento, sua duração, estima em silêncio a medida dessa duração e,confiando à memória, começa a emitir o som, que vibra até atingir o limite fixado.Ou melhor: esse som vibrou e vibrará, porque a parte que passou soou; a queainda resta, soará e chegará a seu fim. A atenção presente vai lançando o futuropara o passado, e o passado cresce com a diminuição do futuro, até que, esgotadoo futuro, não haja mais que passado.

CAPÍTULOXXVIII-Amedidadofuturo

Mas o futuro, que ainda não existe, como pode diminuir ou consumir-se? E opassado, que já não existe, como pode aumentar, a não se por existirem noespírito, autor dessas três transformações: a espera, a atenção e a lembrança? Oobjeto de sua espera passa pela atenção e se transforma em lembrança.

De fato, quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Todavia, a espera dofuturo já está no espírito. E quem poderá negar que o passado não mais existe?Contudo, a lembrança do passado ainda está no espírito. Enfim, haverá alguémque negue que o presente carece de duração, porque é um instante que passa? Noentanto, perdura a atenção, diante da qual o seu objeto presente continuamentese retira. O futuro, portanto, não é longo, porque não existe. Um futuro longoseria apenas uma longa espera do futuro. Nem pode ser longo o passado, quetambém não existe. Um passado longo é uma longa lembrança do passado.

Digamos que eu queira cantar uma canção que conheço: antes de iniciar, minhaexpectativa se estende pela melodia como um todo. Quando começo, tudo o quevira passado é armazenada na memória. A atividade de meu espírito se divide emmemória, onde guardo o que já disse, e em expectativa em relação ao que voudizer. Contudo, a atenção está presente, e por seu intermédio o futuro se tornapassado. Quanto mais se aproxima o fim da canção, tanto menos se torna aexpectativa e tanto maior a memória, até que aquela se esgota e a ação cumpridapassa inteiramente para a memória.

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E o que acontece com a canção tomada em seu conjunto, também ocorre com cadauma de suas partes, com cada sílaba; e também acontece com uma ação maislonga, da qual essa melodia talvez faça parte. O mesmo acontece com toda a vidado homem, da qual seus atos são partes. Sucede, enfim, com toda a história dosfilhos do homem, da qual cada existência é apenas uma parte.

CAPÍTULOXXIX-AeternidadedeDeus

Mas porque tua misericórdia é superior a todas as vidas, e eis que minha vida nãoé mais que distensão, e tua destra me acolheu em meu Senhor, o Filho do homem,mediador entre ti, que és uno, e nós, que somos muitos e vivemos divididos pordiversas paixões. Assim. Por ele me unirei àquele, que por ele se uniu a nós, eliberto dos antigos dias, recolherei meu ser seguindo tua Unidade. Esquecido dopassado, sem me preocupar com as coisas futuras e transitórias, atento apenasàquilo que é eterno, não com dispersão mas com todas as minhas forças buscarei apalma da vocação celeste, onde ouvirei a voz de teu louvor, e onde contemplareitua alegria, que não conhece futuro nem passado.

Agora, porém, meus anos transcorrem em lamentos, e tu, meu consolo, ó Senhor,meu Pai, tu és eterno. Mas eu me dispersei no tempo, cuja ordem ignoro;tumultuosas vicissitudes despedaçam meus pensamentos, entranhas de minhaalma, até o dia em que, purificado pelo fogo de teu amor, me una a ti.

CAPÍTULOXXX-Deuseotempo

E repousarei imutável em ti, em tua verdade, na minha forma. Não mais tolerareias perguntas das pessoas que, pela enfermidade que é a pena de seu pecado, temmais sede de saber do que lhes permite sua capacidade, que dizem: “Que faziaDeus antes de criar o céu e a terra?” – ou ainda: “Como lhe veio a idéia de criaralgo, se antes nunca fizera nada” – Concede-lhes, Senhor, que reflitam no quedizem, que compreendam que não se pode falar nunca onde não há tempo. Quandose diz que alguém nunca fez nada, que se quer dizer senão que esse tal nada fezem tempo algum? Que eles compreendam que não pode existir tempo na ausênciada criação, e deixem de semelhantes falácias.

Que também atentem para o que têm diante de si, para compreender que tu,antes de todos os tempos, és o Criador eterno de todos os tempos, e que nenhumtempo te é coeterno, nem criatura alguma, embora algumas estejam acima dostempos (Agostinho se refere aqui, aos anjos e demônios).

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CAPÍTULOXXXI-Conclusão

Senhor, meu Deus, que abismos profundos os de teus segredos, e quão longe delesme levaram as conseqüências de meus pecados! Cura meus olhos, para que eu mealegre com tua luz!

Se houvesse de fato um espírito de ciência e de presciência tão grandes paraconhecer o passado e o futuro, como conheço qualquer canto popular, esse espíritonos encheria de extraordinária admiração e espanto. Nada, com efeito, lhe seriaoculto no passado e nos séculos vindouros, exatamente como, ao entoar essamelodia, sei tudo o que cantei desde o começo, e tudo o que falta cantar até o fim.Mas longe de mim a idéia de identificar um tal conhecimento àquele que tens detodas as coisas futuras e passadas, ó Criador do Universo, Criador dos espíritos edos corpos. Tua ciência é incomparavelmente mais admirável e mais misteriosa.

Porque aquele que canta ou escuta uma melodia conhecida, dividido entre aexpectativa das notas por vir e a lembrança das notas passadas, passa porimpressões diferentes. Mas contigo não se dá nada semelhante, tu que ésimutável e eterno, Criador verdadeiramente eterno dos espíritos. Como noprincípio, conheceste o céu e a terra, sem que teu espírito mudasse seu saber,assim criaste o céu e a terra, sem que tua ação passasse por etapas distintas. Queaquele que compreende isto te louve, assim como o que não compreende. Oh!Como és sublime! E os de coração humildes são tua morada! Levantas os quecaíram, e os que graças a ti continuam eretos, não caem nunca.

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LIVRODÉCIMO-SEGUNDO

CAPÍTULOI-Prece

Inquieto está meu coração, Senhor, quando, na miséria de minha vida é atingidopelas palavras de tua Escritura Sagrada. Por isso, geralmente, a abundância depalavras é testemunho da pobreza da inteligência humana. A busca usa maispalavras que a descoberta; é maior o pedir que o obter; a mão que bate cansa-semais do que a mão que recebe. Mas nós temos tua promessa: quem a destruirá?Se Deus está conosco, quem será contra nós? Pedi, e recebereis; procurai eencontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. Porque todo o que pede recebe, todo o queprocura encontra, e a todo o que bate se lhe abrirá.

São promessas tuas. E quem temerá ser enganado, quando a promessa vem daVerdade?

CAPÍTULOII-Océudocéu

Que a humildade de minha língua confesse à tua grandeza que criaste o céu e aterra; este céu que vejo, esta terra que piso, e de onde tiraste a terra que tragoem mim. Sim, criaste tudo isto.

Mas, Senhor, onde está o céu de que nos falou a voz do salmista: “O céu do céupertence ao Senhor, mas ele deu a terra aos filhos dos homens?” – Onde está essecéu que não vemos, e diante do qual tudo o que vemos é apenas terra?

De fato, todo este mundo material, cuja base é a terra, embora não sejainteiramente belo em toda parte, recebeu até em seus últimos elementos, umaaparência atraente. Mas, comparado com esse céu do céu, o céu de nossa terratambém não passa de terra. Por isso, não é absurdo chamar de terra esses doisgrandes corpos visíveis, se os compararmos a esse céu misterioso que pertence aoSenhor, e não aos filhos dos homens.

CAPÍTULOIII-Astrevassobreoabismo

Mas esta terra era invisível e informe, era um profundo abismo acima do qual nãopairava nenhuma luz, pois não tinha nenhuma forma. Por isso inspiraste estaspalavras: “As trevas cobriam o abismo”. – Mas que são trevas, senão ausência daluz? De fato, se então existisse, onde estaria a luz senão sobre a terra, para

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iluminá-la? Mas como a luz ainda não existia, o que era a presença das trevas,senão a ausência da luz? As trevas reinavam sobre o abismo porque a luz nãoexistia, do mesmo modo que onde não há ruído reina o silêncio. E que significareinar o silêncio, senão falta de som?

Não ensinaste, Senhor, à alma que a ti se confessa? Não me ensinaste, Senhor,que antes de receber de ti forma e figura esta matéria informe, não existia nada,nem cor, nem figura, nem corpo, nem espírito? Não era um nada absoluto, masmassa informe, sem figura alguma.

CAPÍTULOIV-Amatériainforme

Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua idéia às inteligências maiscurtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar nomundo que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a terra e oabismo? Colocados no mais baixo grau da criação, eles não têm a beleza dos corposque no alto brilham de luz fulgurante.

Por que, então, não aceitar que essa matéria informe, que criaste sem beleza paracom ela moldar um mundo cheio de beleza, fosse comodamente designada aoshomens pelos termos de terra invisível e informe?

CAPÍTULOV-Suanatureza

Assim, quando o pensamento indaga o que nossos sentidos podem colher arespeito dessa matéria, responde a si mesmo: “Não é nem forma inteligível, comoa vida, como a justiça, porque é a matéria corpórea, nem uma forma sensível,porque nada há que se possa ver ou perceber no que é invisível e sem forma”. –Quando o pensamento humano fala desse modo, procura conhecê-la ignorando-a,ou ignorá-la conhecendo-a?

CAPÍTULOVI-Emqueconsiste

Senhor, se pela boca e pela pena devo confessar-te o que me ensinaste sobre essamatéria, eu direi que outrora ouvi falar, sem nada compreender, a respeito dessenome por pessoas que também não entendiam. Tentei imaginá-la sob as formasmais diversas, e não o consegui. Meu espírito revolvia confusamente formas feiase horríveis, mas enfim sempre formas.

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Chamava de informe essa matéria, não porque a imaginasse sem forma, mas portê-las tão estranhas e bizarras que, se a visse, afastaria meus sentidos econfundiria minha fraqueza de homem.

Por isso, o que eu concebia era informe, não por ausência de qualquer forma, maspor comparação com formas mais belas. A reta razão me persuadia; se eu quisesseconceber algo absolutamente informe, a suprimir nele todo resquício de forma,mas eu não conseguia; parecia-me bem mais fácil negar a existência do que estavaprivado de toda forma, do que conceber um ser a meio termo entre a forma e onada, e que não fosse nem forma, nem nada, um ser informe, um quase nada.

Então, minha inteligência deixou de inquirir minha imaginação, cheia de imagensde formas corpóreas, que ela variava e mudada a seu talante. Fixei a atenção nospróprios corpos, analisei mais profundamente essa mutabilidade pela qual elescessam de ser o que eram e começam a ser o que não eram. Suspeitei que essatransição de uma forma para outra se fazia por meio de algo informe, e não donada absoluto.

Mas meu interesse era saber, e não apenas supor; e se minha voz e minha pena teconfessassem em detalhes as soluções deste problema que me inspiraste, qual demeus leitores teria paciência para me entender? Contudo, meu coração nãodeixará de te honrar com cânticos de louvor por essas inspirações, por aquilo quenão têm palavras capazes de exprimir.

É a própria mutabilidade das coisas que é susceptível de assumir todas as formasem que se transfiguram as coisas mutáveis. E o que é essa mutabilidade? Éespírito? Será talvez corpo?

Seria uma espécie de espírito ou de corpo? Se pudéssemos dizer: um nada que éalgo, ou o que é e não é, eu a chamaria assim. No entanto, era necessário que elaexistisse de alguma maneira, para tomar essas formas visíveis e complexas.

CAPÍTULOVII-Acriaçãodonada

Mas de onde essa matéria tirava seu ser, senão de ti, por quem existe toda equalquer coisa? Quanto mais difere de ti uma coisa, mais longe de ti está – e nãose trata de distância espacial.

Portanto, és tu, Senhor que não mudas ao sabor das circunstâncias, mas que és

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sempre o mesmo, o mesmo e o mesmo, santo e santo e santo, Senhor, Deus Todo-Poderoso, és tu, Senhor, que no princípio, que vem de ti, em tua Sabedoria,nascida de tua substância, fizeste algo do nada. Criaste o céu e a terra, e isso nãocom tua substância, pois nesse caso, tua criação seria igual a teu Filho unigênito e,por isso, iguais a ti mesmo. E não seria justo que o que não é da tua substância,fosse igual a ti.

Mas fora de ti nada existia com que pudesses fazer o céu e a terra, ó Trindade una,Unidade trina. Por isso criaste do nada o céu e a terra; duas realidades, umaimensa e outra pequena. Porque és Todo-Poderoso e bom, e só podes criar coisasboas: o grande céu e a pequena terra.

Fora de ti nada havia, e desse nada fizeste o céu e a terra, tuas duas obras: umapróxima de ti, a outra próxima do nada. Uma que tem acima de si apenas a timesmo, e outra que nada tem inferior a ela.

CAPÍTULOVIII-Aterrainvisível

Mas o céu do céu pertence a ti, Senhor; a terra, que deste aos filhos dos homenspara que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Erainvisível e informe: um abismo sobre o qual não havia luz. As trevas se estendiamsobre o abismo – isto é: mais profundas que o abismo. Esse abismo das águas,agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aospeixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada,sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber umaforma.

Senhor, criaste o mundo de uma matéria sem forma; do nada fizeste este quasenada de onde tiraste as grandes coisas que admiramos, nós, os filhos dos homens.Porque este céu corpóreo é de fato admirável, este firmamento que separa umaágua de outra, que criaste no segundo dia, depois da luz, dizendo: “Faça-se – eassim se fez”. Chamaste a este firmamento de céu: o céu desta terra e deste marque criaste no terceiro dia, dando forma visível à matéria informe, criado por tiantes de todos os dias.

Já havias criado outro céu antes de haver dia; mas era o céu do céu, porque noprincípio criaste o céu e a terra. Quanto a esta mesma terra, nada mais era quematéria informe, sendo invisível, caótica e as trevas reinando sobre o abismo. Édesta terra invisível, caótica, desta massa informe, deste quase nada, que

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formaste todas as coisas de que é formado e não formado este mundo mutável,domínio da transformação, que torna possíveis a percepção e a medida do tempo.Porque o tempo é feito da mudança das coisas, de variações e transformações dasformas, cuja matéria é esta terra invisível, de que falei acima.

CAPÍTULOIX-Acriaçãodotempo

Por isso, o Espírito que instruiu teu servo, quando relata que no princípio criaste océu e a terra, cala-se sobre o tempo, guarda silêncio sobre os dias. De fato, o céudo céu, que fizeste no começo, é de alguma maneira uma criatura racional que,mesmo sem ser coeterna contigo, ó Trindade, participava todavia de tuaeternidade. A doçura de te contemplar beatamente a mantém imóvel e unida a tisem movimento, e desde sua criação escapa às vicissitudes fugazes do tempo.

Porém, esta massa informe, esta terra invisível, este caos, tu não o enumerasteentre os dias; de fato, onde não há forma nem ordem, nada vem, nada passa e,portanto não pode haver nem dias, nem sucessão de espaços temporais.

CAPÍTULOX-Invocaçãoàverdade

Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-mecair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te ameiardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, queme exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa dotumulto de minha alma. E agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte.Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja euminha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em tieu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerramprofundos mistérios.

CAPÍTULOXI-Ascriaturaseocriador

Já me disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que és eterno, eque só tu possuis a imortalidade, porque não mudas nem de forma, nem demovimento; tua vontade não varia conforme o tempo, pois a vontade mutável nãoé imortal. Esta verdade me é clara em tua presença. Peço-te que ela se torne paramim cada vez mais clara, e sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que todas as

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naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu ascriaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma vontadeque se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum pecado te causa dano, nemperturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa verdade é clara paramim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e quesob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que essacriatura, que tem em ti seu único deleite, não te é coeterna; que goza de ti emunião casta e duradoura, sem nunca trair em parte alguma sua natureza mutável;que, se conserva sempre em tua presença e unida a ti com todo seu amor, não temde esperar futuro, nem que recordar passado, imutável pois com o tempo e o vir aser. Feliz criatura, se existe, por participar de tua felicidade, feliz de serperenemente habitada e iluminada por ti! Nada encontro que melhor se possachamar de céu de céu que pertence ao Senhor, que a esta habitação de tuadivindade, que contempla tuas delícias sem que nada a afaste para outras partes.Puro espírito, intimamente ligado por um elo de paz com esses santos, espíritos,cidadãos de tua cidade, situada no céu e acima do nosso céu.

Diante disso, possa a alma, cuja peregrinação afastou de ti, compreender se já temsede de ti, se seu pranto se tornou seu pão, quando todos os dias lhe dizem: Ondeestá teu Deus? – se ela deseja apenas habitar em tua morada todos os dias de suavida. E que é sua vida, senão tu?

Que são teus dias, senão tua eternidade, como teus anos que não passam, porqueés sempre o mesmo? Por isso, digo, faça compreender à alma, se possível, comotua eternidade transcende todos os temos. Tua morada, que nunca se afastou deti, embora não te tendo coeterna, graças à sua incessante e ininterrupta uniãocontigo, não padece de vicissitudes do tempo. Essa verdade é clara para mim emtua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuasasas eu me mantenha atento a esta evidência.

Vejo, de fato, não sei que matéria informe nas transformações das coisas últimas eínfimas. Mas quem dirá, a não ser o insensato, cujo espírito vagueia entrequimeras, à mercê de seus fantasmas, quem, salvo este, ousaria afirmar que, setoda forma fosse destruída, abolida, restando apenas a matéria informe, graças àqual as coisas se transformam e passam de uma forma para outra, ela poderiaproduzir as vicissitudes do tempo? Não, tal hipótese é absolutamente impossível,pois sem variedade de movimentos não há tempo; e não há variedade onde nãohá forma.

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CAPÍTULOXII-Acriaçãoeaeternidade

Bem consideradas estas coisas, por graça tua, meu Deus, e como me incitasse abater, e como me abres quando bato, encontro duas criações tuas não afetadaspelo tempo, embora nenhuma delas te seja coeterna. Uma, que criaste tãoperfeita que jamais deixa de te contemplar, que não sofre nenhuma mudança,embora de natureza mutável, e goza de tua eternidade e de tua imutabilidade.Outra, informe, a ponto de lhe ser impossível passar de uma forma para outra,quer no movimento, quer no repouso, e, portanto, incapaz de estar sujeito aotempo. Mas tu não a deixaste informe pois, antes de qualquer dia, fizeste noprincipio o céu e a terra, as duas obras de que falava.

Mas a terra era invisível e informe, e as trevas reinavam sobre o abismo. Poressas palavras, a Escritura sugere a idéia de algo informe, para ensinar aos poucosaos espíritos que não podem conceber que a falta absoluta de forma não seconfunde com o nada. É dessa massa informe que deveria ser criado um segundocéu, uma terra visível, ordenada, a água cristalina, e enfim tudo o que foi feito nacriação, de acordo com a tradição das Escrituras, em dias sucessivos.

E essa obra é tal que, devido à mudanças regulares de seus movimentos e formas,está sujeita às vicissitudes do tempo.

CAPÍTULOXIII-OcéueaterraemGênesis

“No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra era invisível e informe, e astrevas se estendiam sobre o abismo.” Ouço estas palavras, meu Deus, e nãoencontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão quese trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhecesimultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas porinteiro, em plena luz, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, comodisse, simultaneamente, sem a seqüência temporal. Concluo também que se tratada terra invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto,ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo.

Dessas realidades, uma de forma acabada desde o início, a outra absolutamenteinforme, o céu, isto é: o céu do céu, e a terra, isto é: terra invisível e informe, ébem a propósito delas que tua Escritura diz, sem mencionar o dia: “No princípiocriou Deus o céu e a terra”. E acrescenta imediatamente de que terra se trata. E,indicando que no segundo dia foi criado o firmamento, que foi chamado de céu, dá

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a entender também de que céu falara antes, sem precisar o dia.

CAPÍTULOXIV-AprofundidadedasEscrituras

Admirável profundidade das tuas palavras! Sua aparência nos acaricia, como seacariciam as crianças! Sim, admirável profundidade, meu Deus, admirávelprofundidade! O meditá-las causa um arrepio sagrado, tremor de respeito,estremecimento de amor. Odeio com veemência seus inimigos. Oh! Se pudessesfazê-los morrer sob teu gládio de dois gumes, para que não tivessem maisinimigos! Desejaria que eles morressem para si mesmos, e que vivessem só parati.

Mas há outros que não censuram mas, pelo contrário, exaltam o livro de Gênesis,e que dizem: “Não é isto que quis dizer por essas palavras o Espírito de Deus, queas inspirou a teu servo Moisés. Não, o que ele quis dizer não é o que dizes, mas oque nós dizemos” – Eis, ó Deus de todos nós, o que eu lhes respondo: sê nossoárbitro.

CAPÍTULOXV-Oquedizemseusinimigos

Ousareis apontar como falso o que, com voz clara, a Verdade disse ao ouvido deminha alma sobre a verdadeira eternidade do Criador: ou seja, que sua substâncianão varia no tempo, e que sua vontade se confunde com sua substância? E que porisso ele não quer ora isto, ora aquilo, mas quer o que sempre quis,simultaneamente e para sempre. Sua vontade não se exerce repetidas vezes, nãose propõe ora esta, ora aquela finalidade, não quer o que antes não queria, nemdeixa de querer o que antes queria, uma vez que tal vontade seria mutável, e oque é mutável não é eterno; ora, nosso Deus é eterno.

Tereis por falazes as palavras da Verdade faladas ao ouvido de minha alma: que aespera das coisas futuras se torna contemplação, quando presentes, e que depoisse transforma em memória, quando passadas? Que todo pensamento que variaassim é mutável, e que nada do que é mutável é eterno? Ora, nosso Deus éeterno. E, reunindo e condensando estas verdades, deduzo que meu Deus, o Deuseterno, não criou o mundo por um novo ato de volição, e que sua ciência nãoadmite nada que seja transitório.

Que respondeis, então, meus contraditores? Será isso falso? – Não, dizem eles. –Mas então? Será que erro afirmar que toda criatura que tem forma, que toda

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matéria susceptível de tê- la recebe seu ser somente daquele que é Bondadesoberana, porque ele é Ente supremo? – Também não o negamos. – Então, quenegais? Negais talvez que haja uma criatura sublime, unida por um casto amor aoDeus verdadeiro e eterno, sem lhe ser coeterna, que dele não se separa nem sedesvia para as várias vicissitudes do tempo, mas, pelo contrário, repousa apenasem sua contemplação? Com efeito, te ama tanto quanto pedes, ó Deus, e mostrasa ela tua face e a sacias, e ela jamais se afasta de ti, nem rumo a sim mesma. Ela éa morada de Deus, não terrena, e nem formada de substância do céu material,habitáculo espiritual que participa de tua eternidade, imaculada por toda aeternidade. Tu a fundaste pelos séculos dos séculos; estabeleceste uma ordem, quenão passará jamais. Contudo, essa lei não é coeterna, porque teve princípio, foicriada.

Não encontramos o tempo antes dessa criação, porque a sabedoria foi a primeirade todas as tuas criações. E é claro que não me refiro à Sabedoria da qual és Pai, ónosso Deus, e que te é perfeitamente igual e coeterna, por quem todas as coisasforam criadas, e que é o princípio em que criaste o céu e a terra; refiro-me àsabedoria criada, dessa essência intelectual que, pela contemplação da luz,também é luz; a esta, embora criada, também chamamos de sabedoria. E assimcomo a luz que ilumina difere da luz refletida, a sabedoria criada difere dasabedoria incriada; e a justiça justificante difere da justiça nascida da justificação.Nós fomos também chamados de tua justiça. Porque um de teus servos disse: “Paraque, em Cristo, nos tornemos a justiça de Deus”. – Há portanto, uma sabedoriacriada antes de todas as coisas, e ela foi criada como espírito racional einteligente, que habita tua cidade santa, nossa mãe, que está no alto, livre eeterna nos céus – e em que céus, senão aos céus dos céus, que te louvam, esse céuque pertence ao Senhor? – Se não encontramos o tempo antes dessa sabedoria, éporque ela precede à criação do tempo, tendo sido criada primeiro, mas antes delahá a eternidade de seu Criador, de quem recebeu sua origem, e não do tempo,pois este ainda não existia, mas pela sua condição de criatura criada.

Ela procede pois, de ti, nosso Deus, embora seja de essência absolutamentediversa da tua. Não encontramos nenhum tempo, não apenas antes dela, mas nelaprópria, porque ela é capaz de contemplar sempre tua face sem jamais se apartarde ti, sendo incólume às mudanças e às variações. Contudo, há nela certamutabilidade que poderia torná-la tenebrosa e gélida, não fosse o grande amorque a une a ti e que brilha como meridiana luz e calor.

Ó morada luminosa e pura! Amei tua beleza e o lugar onde mora a glória de meuSenhor, teu criador e possuidor. Por ti eu suspiro durante meu exílio! Peço àquele

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que te criou que me possua também em ti, pois também me criou. Errei comoovelha desgarrada, mas espero ser reconduzido a ti nos ombros de meu pastor,teu arquiteto.

Que me respondeis a isto, meus contraditores, vós que, também consideraisMoisés um servo piedoso de Deus, e seus livros como oráculos do Espírito Santo?Não será esta a casa de Deus que, sem lhe ser coeterna, é contudo, á sua maneira,eterna nos céus? Em vão buscais aí as vicissitudes do tempo, pois não asencontrareis, uma vez que ela transcende toda extensão, toda volubilidade dotempo, e sua felicidade é estar intimamente unida a Deus para sempre.

– Assim é – dizem eles.

Mas então, qual das verdades que meu coração proclamou diante de Deus, quandoescutava em meu íntimo a voz que canta sal glória, podeis apontar como falsa? Oque disse sobre matéria informe, na qual não podia haver ordem por carecer deforma? Mas onde não havia ordem não podia haver vicissitude de tempo; masesse quase nada, enquanto não era o nada absoluto, provinha certamente daquelede onde nasce tudo o que, de algum modo, existe.

– Tampouco negamos isto – dizem eles.

CAPÍTULOXVI-OutrosadversáriosdasEscrituras

Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras asafirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, queladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem,e dêem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem,peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. Fala com verdade emmeu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o pó elevantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo,levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio,lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração – Jerusalém, minhapátria e minha mãe – e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor,seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seusbens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartareide ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na pazdessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde mevêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó

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meu Deus, minha misericórdia.

Àqueles que, sem negar essas verdades, respeitando tua Escritura Sagrada, obrado piedoso Moisés, e reconhecendo nela, conosco, a mais alta autoridade a seguir,e contudo nos opõem alguma objeções, dirijo estas palavras: “Tu, que és nossoDeus, serás árbitro entre minhas confissões e suas objeções”.

CAPÍTULOXVII-Opiniõesdiversassobreocéueaterra

Eles dizem: “Sem dúvida, isso é verdade, mas não era isso que Moisés queriaexprimir quando, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu: “No princípio criou Deuse céu e a terra” – Pela palavra céu, ele não quis significar essa criatura espiritualou intelectual, que contempla eternamente a face de Deus; e pela palavra terra,uma matéria informe. – Que quis dizer então? – O que nós afirmamos – respondem– isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. – E que éque afirmais? – Pelas palavras céu e terra quis significar, em primeiro lugar,globalmente e de forma concisa, todo o mundo visível, para em seguidapormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouveao Espírito Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal aoqual falava era constituído de homens tais que julgou conveniente dar-lhes aconhecer apenas as obras visíveis de Deus”.

Quanto a esta terra invisível e informe, a este abismo de trevas, com que, duranteseis dias, foram sucessivamente criadas e ordenadas todas as coisas visíveis quesão conhecidas de todos, eles concordam comigo em que se pode entender comisso, sem erro, essa matéria informe de que falei.

Algum outro dirá, talvez, que a realidade invisível e visível não foi chamadaimpropriamente de céu e terra, e portanto, que o universo criado por Deus nasabedoria, isto é, no princípio, está compreendido sob esses dois termos. Porém ascoisas não foram feitas da substância de Deus, mas do nada, e não se confundemcom Deus, e nelas existe o princípio da mutabilidade, quer permaneçam comomorada eterna de Deus, quer mudando-se como a alma e o corpo do homem.

Por isso a matéria comum a todas as coisas invisíveis e visíveis, matéria aindainforme, mas susceptível de forma, e de onde se fariam o céu e a terra – em outraspalavras, a criação invisível e visível – mas uma e outra tendo recebido forma, foidesignada por essas expressões de terra invisível e informe, e de trevas reinandosobre o abismo. Com a seguinte distinção: por terra invisível e informe deve-se

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entender a matéria corpórea antes de ser qualificada pela forma; e por trevasreinando sobre o abismo, a matéria espiritual antes da restrição de sua, digamos,imoderada fluidez, e antes de ser iluminada pela sabedoria.

Poderia alguém afirmar, se quisesse: Esses termos céu e terra não significamrealidades perfeitas e acabadas, lá onde lemos: No princípio Deus criou o céu e aterra – mas um esboço ainda informe, uma matéria passível de receber forma eservir para a criação; nela já existiam, como que um embrião, sem distinção deformas e de qualidades, essas criaturas, uma espiritual, e outra material que,ordenadas como estão agora, são chamadas de céu e terra.

CAPÍTULOXVIII-Outrasinterpretações

Ouço e considero todas essas teorias, mas não quero discutir por questões depalavras, o que não serve para nada, senão para a confusão dos ouvintes. Pelocontrário, a lei é boa para a edificação se dela se faz uso legítimo, porque suafinalidade é a caridade que nasce de um coração puro, de uma boa consciência e deuma fé não fingida. Nosso Mestre sabe quais dos dois preceitos em que resumiutoda a lei e os profetas. A mim, que observo com zelo tais preceitos, ó meu Deus,luz de meus olhos na escuridão, que me importa que possa que possa encontrarsentidos diferentes para essas palavras, se todos são verdadeiros? Que meinteressa, digo eu, que outros compreendam o texto de Moisés de modo diferentedo meu? Nós todos que o lemos procuramos indagar e compreender o pensamentodo autor. E como o julgamos verídico, não ousamos admitir que ele pusesse dizer oque sabemos ou o que consideramos falso.

Assim, nos esforços que fazemos para compreender, na Escritura Sagrada, a idéiaque o escritor quis transmitir, onde está o mal se o leitor interpreta o sentido quetu, Luz de todas as inteligências sinceras, lhe fazes parecer verdadeiro, emboratalvez não tenha sido este o pensamento do autor? E considerando que ele,pensando de outra maneira, só pensou verdades?

CAPÍTULOXIX-Averdade

A verdade, Senhor é que criaste o céu e a terra. A verdade é que o princípio é tuaSabedoria, em que criaste todas as coisas. É também verdade que este mundovisível se compõe de duas grandes partes, o céu e a terra, síntese de todas asrealidades criadas. É ainda verdade que tudo o que é mutável sugere a nossopensamento a idéia de algo informe, susceptível de tomar forma, de mudar e de se

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transformar.

A verdade é que um ser tão intimamente unido a uma forma mutável que, emborasujeito em si a mudanças, nunca se transforma, não está sujeito ao tempo. Averdade é que a massa sem forma, que é quase o nada, não pode conhecer asvicissitudes do tempo. A verdade é que a matéria que constitui uma coisa, seassim podemos falar, toma o nome dessa coisa, e portanto, podemos chamar decéu e de terra a essa massa informe com a qual foram feitos o céu e a terra.

A verdade é que, de tudo o que recebeu forma, nada se aproxima mais do informeque a terra e o abismo. A verdade é que não apenas tudo o que foi criado eformado, mas ainda tudo o que possa ser criado se origina de ti, tu que és o autorde tudo que existe. A verdade é que tudo o que é formado a partir do informe,primeiro é informe, e depois recebe forma.

CAPÍTULOXX-Oprincípioesuasinterpretações

Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça dever com os olhos da alma, e que crêem firmemente que teu servo Moisés falou emespírito de verdade, há quem dê esta interpretação: “No princípio Deus criou o céue a terra” – isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é coeterno, o mundo racionale sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o céu e aterra” – isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é coeterno, toda a massa domundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamenteconhecidas.

Um terceiro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” – isto é, Deus criou emseu Verbo, que lhe é coeterno, a matéria informe das criaturas espirituais ecorporais. Outro afirma: “No princípio Deus criou o céu e a terra” – isto é, Deuscriou a matéria informe das criaturas corporais, onde estavam ainda confundidos océu e a terra, que agora distinguimos na massa do universo, com suas formas bemdistintas e determinadas.

Um último diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” – isto é, desde quecomeçou a agir, Deus criou a matéria informe, onde estavam contidosconfusamente em potencial o céu e a terra, que depois receberam forma própria, eque agora nos aparecem com tudo o que neles existe.

CAPÍTULOXXI-Aterrainvisível

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O mesmo ocorre em relação à interpretação das palavras que se seguem. Entreessas, todas verdadeiras, cada um escolhe uma. Este diz: “A terra era invisível ecaótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” – isto é, essa massa corpórea,que Deus fez, era a matéria ainda sem forma, sem ordem, sem luz, das coisascorpóreas.

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre oabismo” – isto é, esse conjunto que chamamos de terra e céu era a matéria aindainforme e tenebrosa, da qual seriam tirados o céu e a terra corpóreos, com tudo oque nossos sentidos físicos neles percebem.

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre oabismo” – isto e ,́ esse conjunto que chamamos de céu e de terra era a matériaainda informe e tenebrosa, donde seriam feitos o céu inteligível, noutros termos, océu do céu, e a terra, isto é, toda natureza corpórea, nela incluindo o céu material,ou seja, a matéria de toda criatura visível e invisível.

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre oabismo” – isto é, não quis a Escritura chamar à massa informe de céu e de terra,porque ela já existia; é dessa massa que ela chamou de terra invisível, caótica,abismo de trevas, é dela, que Deus criou o céu e a terra, isto é, a criaturaespiritual e a corporal.

E outro ainda: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre oabismo” – isto é, já existia uma matéria informe, da qual a Escritura diz que Deuscriou o céu e a terra, toda a massa corporal do mundo, dividido em duas grandespartes, uma superior, outra inferior, com todas as criaturas nelas existentes e quenos são familiares.

CAPÍTULOXXII-Objeções

Mas a essas últimas opiniões alguém poderia opor a seguinte objeção: “Se nãoquereis dar o nome de céu e terra à matéria informe, havia então alguma coisanão criada por Deus, e de que ele se serviria para criar o céu e a terra. De fato, aEscritura, não diz que Deus criou essa matéria, a menos que consideremos que sejaela o que chama céu e terra quando diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” –No que se segue: “A terra era invisível e informe” – ainda que a Escritura quisessedesignar assim a matéria informe, nós apenas poderíamos entender com isso amatéria criada por Deus, conforme está escrito: “Criou o céu e a terra” – Aos que

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sustentam as duas últimas opiniões que acabamos de expor, ou de uma das duas,respondem assim: “Não negamos que esta matéria informe seja obra de Deus, dequem procede tudo o que é bom. De fato afirmamos ser um bem superior o que écriado e plenamente formado, mas também dizemos que aquilo que é passível deser criado e receber forma, embora seja um bem inferior, é ainda um bem.

A Escritura não menciona a criação por Deus dessa matéria informe, mas deixatambém de falar de muitas outras coisas, como, por exemplo, da criação dosquerubins, dos serafins, dos tronos, das dominações, dos principados, daspotestades, todas criaturas que o Apóstolo menciona claramente, e que Deusevidentemente criou. Se as palavras: “Deus criou o céu e a terra” – compreendemtodas as coisas, que diremos das águas sobre as quais pairava o Espírito de Deus?

Se pretendemos que sejam parte do que designa a palavra terra, como conceberpor isso uma matéria informe, quando vemos as águas tão belas? E, por outrolado, por que está escrito que dessa matéria informe foi criado o firmamento,chamado de céu, quando não se faz menção da criação das águas? Pois as águasque vemos correr com harmoniosa beleza e não são nem informes, nem invisíveis!E se elas receberam sua beleza quando Deus disse: “Que se reúnam as águas queestão sob o firmamento! – e se nessa reunião receberam sua formação, que dizerdas águas que estão acima do firmamento? Informes, elas não teriam merecidolugar tão honroso, nem é referido com que palavras foram formadas.

Assim, se o Gênesis é omisso quanto à criação de certas coisas, criação essa queestá acima de dúvidas para uma fé sadia e uma inteligência segura, e se nenhumadoutrina racional ousa sustentar que essas águas são coeternas a Deus, pelo fatode as vermos mencionadas no Gênesis sem a menção do momento de sua criação ,por que haveríamos de aceitar, à luz da verdade, que essa matéria informe, que aEscritura chama de terra invisível e desordenada e de abismo tenebroso, foi feitapor Deus do nada e por isso não é coeterna a Deus, embora a narração daEscritura tenha deixado de referir o momento em que foi criada?

CAPÍTULOXXIII-AopiniãodeAgostinho

Ouço e medito essas opiniões na medida de meu fraco entendimento, que confessoa Deus, embora ele bem o conheça. Vejo que se podem originar duas espécies deopiniões sobre um testemunho de interprete fidedigno. Uma é reativa àveracidade das coisas, e outra à intenção daquele que as enuncia. Procurarconhecer a verdade sobre a criação é uma coisa; procurar saber o que Moisés,grande servo de tua lei, quis o que o leitor ou ouvinte entendessem de suas

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palavras, é outra.

Quanto à primeira opinião, longe de mim todos que têm como verdades os seuserros!

Quanto à segunda, longe de mim todos os que julgam falsidade o que Moisés disse.Possa eu unir-me em ti, alegrar-me em ti, Senhor, com aqueles que se alimentamde tua verdade na imensidão da caridade. Aproximemo-nos juntos das palavras deteu Livro, procurando tua vontade nas intenções de teu servo, a cuja pena asrevelaste.

CAPÍTULOXXIV-Qualaverdade?

Quem de nós, entre tantos significados possíveis que ocorrem aos estudiososquanto as varias interpretações de tuas palavras, poderá atinar com taisintenções e declarar com segurança: “Eis o pensamento de Moisés, este é osentido que quis dar á sua narração”. – Quem poderá declará-lo, com a mesmasegurança que ele, que essa narração é verdadeira, qualquer que tenha sido opensamento de Moisés?

Eis que eu, meu Deus, teu servo, te consagrei nesta obra o sacrifício de minhasconfissões; peço à tua misericórdia que me permita a realização desse desejo, edeclaro com toda segurança que criaste todas as coisas, as invisíveis e as visíveis,pelo teu verbo imutável.

Mas poderei dizer com a mesma certeza que Moisés teve essa intenção, e nãooutra, quando escreveu: “No princípio, criou Deus o céu e a terra”? – Emboraesteja persuadido de que isto está claro na tua verdade, não vejo com igualcerteza o que Moisés pretendia ao escrever tais palavras. Por essa expressão: “noprincípio” pode ter significado: “no começo da criação”. Por céu e terra, pode terquerido dar-nos a entender, a natureza espiritual e corporal, não já formada eperfeita, mas uma e outra, só esboçada e sem forma. Vejo que ambos os sentidossão igualmente plausíveis. Mas não posso atinar em qual dos dois pensava Moisésquando escrevia essas palavras. Fosse porém qual fosse sua intenção ao exprimiressas palavras, eu não poderia duvidar de que tão grande homem tenhaentrevisto a verdade e a tenha formulado adequadamente.

CAPÍTULOXXV-Osdiversospartidos

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Que ninguém me moleste portanto, dizendo: “O pensamento de Moisés não é oque tu dizes, mas o que eu digo”. – Se apenas me dissessem: “Como sabes queMoisés de fato entendia essas palavras no sentido que lhe atribuis?” – Eu não meagastaria, e responderia talvez o que respondi acima, ou até mais explicitamente,se meu contraditor fosse insistente.

Quando porém, me dizem: “O pensamento de Moisés não é o que dizes, é o que euafirmo” – sem contudo provar a veracidade de uma ou outra interpretação, então,ó vida dos pobres, ó meu Deus, em cujo seio não há contradição, inunda de paz omeu coração, para que eu tenha paciência para suportar essas pessoas. Pois nãoemitem tais opiniões inspirados por Deus, ou porque tenham lido o pensamento deteu servo, mas porque são orgulhosos. Ignoram o pensamento de Moisés, mas sóapreciam o deles, e não por que seja verdadeiro, mas por ser o deles. Assim nãofosse, apreciariam igualmente a opinião alheia, quando verdadeira, assim como euaprecio o que eles dizem de verdadeiro, não porque vem deles, mas porque éverdade, e que, por isso mesmo, é tanto deles como minha, pois pertence emcomum a todos os amantes da verdade.

Quanto à pretensão de que o pensamento de Moisés não está no que digo, mas noque eles dizem, isso eu não aceito. Ainda que assim fosse, sua temeridade não é daciência, mas a da audácia; seria produzida não por uma intuição correta, mas peloorgulho.

Senhor, teu julgamento é terrível. Porque tua verdade nem é um bem meu, nem obem deste ou daquele: a verdade é o bem de todos nós; e tu nos conclamasabertamente a que participemos dela, com a advertência severa de não apossuirmos como bem privativo, para não sermos privados dela. De fato, quemreivindica apenas para si o que ofereces para gozo de todos, e quer para si o que éde todos, é rejeitado desse bem comum para o que é seu, isto é, da verdade paraa mentira: o que fala mentira fala do que é seu.

Ouvem, pois, juiz excelente, ó Deus, que és a própria Verdade: ouve o querespondo a esse contraditor.

É diante de ti que falo, e na presença de meus irmãos que usam legitimamente dalei, cujo fim á caridade. Escuta e vê o que lhes digo, se é de teu agrado. Eis aspalavras fraternas e de paz que lhe dirijo: “Quando ambos vemos que tuaspalavras são verdadeiras, ou as minhas palavras são verdadeiras, pergunto: ondeo vemos? Certamente não é em ti que eu a vejo, nem tampouco é em mim que tu

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a vês. Ambos a vemos na verdade imutável, que está acima de nossasinteligências”.

Uma vez que não discordamos sobre essa luz do Senhor, nosso Deus, por quediscutir sobre o pensamento de nosso próximo? Nós não o podemos ver comovemos a verdade imutável.

Se o próprio Moisés nos aparecesse e nos explicasse seu pensamento – nem assimveríamos esse pensamento, mas apenas acreditaríamos nele. Cuidemos pois, denão nos levantarmos orgulhosamente um contra o outro a respeito das Escrituras.Amemos ao Senhor, nosso Deus, de todo o nosso coração, de toda nossa alma, detodo nosso espírito, e ao próximo como a nós mesmos. É segundo esses doispreceitos da caridade que Moisés pensou aquilo que escreveu em seus livros. Nãoacreditarmos nisso seria considerar o Senhor mentiroso, atribuindo a seu servosentimentos distintos daqueles que ele próprio lhe ensinou. Diante de tantospensamentos igualmente verdadeiros que podem ser deduzidos dessas palavras,vê que estultice é afirmar temerariamente que Moisés teve este pensamento enão aquele, ofendendo com nossas disputas perniciosas a caridade, por amor daqual ele escreveu as palavras que procuramos interpretar!

CAPÍTULOXXVI-AgostinhonolugardeMoisés

Todavia, meu Deus, que me elevas em minha pequenez, que descansas minhafadiga, que ouves minhas confissões e perdoas meus pecados, tu me ordenas queeu ame a meu próximo como a mim mesmo; não posso crer que Moisés, teu servotão fiel, tenha sido aquinhoado com menos dons do que eu teria desejado eapetecido se tivesse nascido em seu tempo, e me tivesses confiado a tarefa de teservir com meu coração e minha língua, e disseminar essas Escrituras. Estas, tantotempo depois, deviam ser úteis a todos os homens e, pelo mundo afora, triunfarcom o prestígio de sua autoridade sobre as afirmações das doutrinas falsas eorgulhosas.

Quereria, se estivesse no lugar de Moisés – pois todos procedemos da mesmamassa, e que é o homem se não te lembras dele? – e me tivesses confiado amissão de escrever o Gênesis, quereria receber de ti tal eloqüência, tal qualidadede estilo, que mesmo os espíritos incapazes de compreender como foi que Deuscriou, não pudessem rejeitar minhas palavras como superiores às suas forças; queos que já o pudessem, descobrissem, nas poucas palavras de teu servo, todas asverdades que sua reflexão já lhes tivesse proporcionado; e que se alguém, à luz detua verdade, nelas percebesse outro significado, também ele o pudesse encontrar

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nessas mesmas palavras.

CAPÍTULOXXVII-OsdiversossentidosdaEscritura

Assim como uma fonte, em seu pequeno leito, torna-se depois mais abundante e,pelos diversos regatos que alimenta, banha espaços muito mais amplos quequalquer um deles, que deslizam através de muitas regiões, assim também anarração do ministro de tua palavra, que deveria alimentar a tantos interpretes,faz brotar de seu estilo sóbrio e conciso torrentes de límpida verdade, de ondecada um tira para si a verdade que pode, para depois desenvolvê-la em longassinuosidades de palavras.

Alguns, lendo ou escutando aquelas palavras, imaginam a Deus como homem oucomo massa material dotada de imenso poder que, por decisão nova e repentina,criara fora de si mesma e como que à distância, o céu e a terra, esses dois grandescorpos, um superior, outro inferior, onde estão contidas todas as coisas. E aoouvirem dizer:”Deus disse: faça-se isto! E isto foi feito! – imaginam que se trata depalavras comuns, que começam e terminam, que soam no tempo e passam. Julgamque, logo após pronunciadas, começa existir o que ordenaram que existisse. Todasas suas demais concepções ressentem-se do mesmo hábito de pensar de modocarnal.

Nisto são como crianças, pois enquanto essa linguagem humilde sustentar suafraqueza como o seio de uma mãe, o que se fortifica salutarmente é a fé, que lhesfaz ter como certo que Deus criou todas as realidades, cuja admirável variedadeimpressiona a seus sentidos.

Mas, se alguém, desprezando a aparente simplicidade de tuas palavras, em suaorgulhosa fraqueza, se lançar para fora do ninho que o nutriu, então cairámiseravelmente, Senhor Deus, tem piedade dele! Que os transeuntes não pisemeste passarinho implume; manda teu anjo para que o reponha no ninho, para queviva até que aprenda a voar!

CAPÍTULOXXVIII-Divergências

Para outros essas palavras não são um ninho, mas um vergel (jardim)ensombreado onde descobrem frutos ocultos que procuram e colhem, voando ecantando alegremente.

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Quando lêem ou ouvem as palavras de Moisés, vêem que tua estável e eternapermanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso nãoexiste criatura corpórea que não seja obra tua. Vêem que tua vontade,confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem quenasça nela uma decisão nova, que não existisse antes; que criaste o mundo, nãotirando de tua substância uma imagem tua, forma substancial de toda realidade,mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderiaser formada à tua imagem pela volta à tua Unidade, segundo a medidapreviamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie.Vêem assim que todas as obras da criação são excelentes, ou porque permanecempróximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem asadmiráveis variedades do mundo. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegramna luz de tua verdade, à medida que o podem com suas forças terrenas.

Outros, refletindo o sentido destas palavras: “No princípio criou Deus...” – vê noprincípio a Sabedoria, porque também ela nos fala.

Outro, ao considerar as mesmas palavras, entende por princípio o começo dacriação, e a expressão: “Deus criou no princípio” significa para ele: “Deusprimeiramente fez”. E entre os mesmos que por princípio entendem que Deus criouem sua Sabedoria o céu e a terra, um acredita que céu e terra designam a matériada qual o céu e a terra foram criados; outro pensa que a expressão se aplica anaturezas já formadas e distintas; outro sustenta que a palavra céu significanatureza formada e espiritual, a terra, a natureza informe e material.

Aqueles porém que entendem por céu e terra a matéria ainda informe, com a qualviriam a ser formados o céu e a terra, não têm unanimidade: um concebe essamatéria como origem comum das criaturas sensíveis e espirituais, outro apenascomo fonte de massa sensível e corpórea, contendo em seu vasto seio todas asrealidades visíveis, oferecidas a nossos sentidos.

Tampouco são unânimes os que crêem que nesse texto céu e terra se referem àscriaturas já formadas e dispostas; um acredita que se trata do mundo invisível evisível; outro, apenas do mundo visível, onde se contempla o céu luminoso e aterra tenebrosa, com tudo o que eles contêm.

CAPÍTULOXXIX-Dificuldades

Mas quem interpreta a palavra: “No princípio criou...” como se ela quisesse dizer:

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“Primeiramente Deus criou...” – apenas pode entender, por céu e terra, se quiserse manter coerente à verdade, a matéria do céu e da terra, isto é, da criaçãouniversal, tanto espiritual como material.

Pois, se quiser referir-se com isso a um universo já inteiramente formado, seríamoslevados a indagar-lhe: “Se Deus criou isso antes, o que criou depois?” – Depois deter criado tudo, não encontrará mais nada para criar e, gostando ou não, ouvirá apergunta: “Como é possível que Deus tenha criado isso primeiro, se nada crioudepois?”

Se ele quer significar que Deus criou primeiro a matéria informe, e depois lhe deuforma, já não é uma tese absurda, desde que seja capaz de discernir a prioridadena eternidade, no tempo, na escolha, na origem. Na eternidade: Deus antecedetodas as coisas; no tempo: a flor precede o fruto; na escolha: o fruto vale mais doque a flor; na origem: o som precede o canto.

Dessas quatro prioridades, a primeira e a última dificilmente se compreendem,enquanto é bem fácil entender as outras duas. É de fato raro e dificultoso concebera tua eternidade criando, mas conservando-se imutável, as coisas mutáveis e, porisso, antecedendo-as. E precisa ter uma inteligência penetrante paracompreender, sem grande esforço, como o som antecede o canto, uma vez que ocanto é o som organizado; e uma coisa pode muito bem existir sem forma, mas oque não existe não pode receber forma. Assim, a matéria é anterior ao que dela seforma. E não porque seja sua causa eficiente, pois também é objeto da criação;nem tampouco porque lhe seja anterior no tempo. De fato, não emitimos em umprimeiro instante, sons desarticulados e informes, para depois os ligarmos eformar uma melodia e um canto, como se faz com a madeira e a prata aofabricarmos uma arca ou um vaso.

Com efeito, essas matérias precedem no tempo os objetos que delas são feitos.Mas com o canto não é assim. Quando se canta ouve-se o som do canto: não há emprimeiro lugar sons desorganizados, que depois assumem a forma de canto. Logoque ele soa, o som se desvanece, e não deixa de si nada que se possa coordenarcom arte. Por conseguinte, o canto é formado de sons: o som é sua matéria e, parase transformar em canto, recebe uma forma. A prioridade não se fundamenta emum poder criador, porque o som não é o artífice do canto, mas é apenas posto pelocorpo à disposição da alma do cantor, para que dele faça um canto. Nem se tratade prioridade temporal: o som é produzido ao mesmo tempo que o canto.Tampouco se trata de prioridade de escolha: o som não é superior ao canto, pois ocanto nada mais é que som, mas um som bonito. Trata-se apenas de uma

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prioridade de origem, pois o canto não recebe forma para se tornar som, mas osom para se tornar canto.

Compreende-se por esse exemplo, que a matéria das coisas foi criada antes, echamada de céu e terra, porque dela foram formados o céu e a terá. Não foi criadaantes em sentido cronológico, porque o tempo só tem início com a forma dascoisas; ora, a matéria era informe, e se tornou perceptível juntamente com otempo. Todavia, nada se pode mencionar dessa matéria a não ser algumaprioridade temporal, embora ocupe a última posição na escala de valores, pois oque tem forma é evidentemente superior ao que é informe. Ou que foi precedidapela eternidade do Criador, que a fez para que fossem feitas do nada todas ascoisas.

CAPÍTULOXXX-Espíritodecaridade

Nessa diversidade de opiniões verdadeiras, que da própria verdade brote aconcórdia! Que nosso Deus tenha compaixão de nós, para que usemoslegitimamente da lei segundo o preceito que tem por fim a caridade pura.

Por isso, se me perguntarem qual dessas opiniões foi a de teu servo Moisés, eunão seria coerente com minhas confissões se não te confessasse que o ignoro.

Sei, contudo, que essas opiniões são verdadeiras, a não mera interpretaçõesmaterialistas, sobre as quais já disse tudo o que pensava. São como meninosesperançosos aqueles que não temem as palavras do teu Livro, tão profundas emsua humildade, tão eloqüentes em sua concisão. Mas nós todos que, eu o declaro,distinguimos e dizemos a verdade sobre tais palavras, amemo-nos uns aos outros;e amemos igualmente a ti, nosso Deus, fonte da Verdade, pois temos sede, não defantasias, mas da própria Verdade. Honremos a teu servo, que nos legou tuaEscritura, cheio de teu espírito, e estejamos certos que, ao escrever as palavrasque lhe revelaste, ele teve em mira as revelações mais salientes da verdade eseus frutos proveitosos.

CAPÍTULOXXXI-OGênesiseseuautor

Assim, quando alguém me diz: “O pensamento de Moisés é o meu” – e outro diz:“Não, ele pensou como eu” – parece-me mais consoante ao espírito religioso dizer:“Por que não admitir ambos os pontos de vista, se ambos são verdadeiros?” – E sealguém descobrir um terceiro, um quarto sentido, e outros mais, desde que sejam

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verdadeiros, por que não acreditar que Moisés viu todos eles, ele por cujointermédio o Deus único adaptou as Escrituras à inteligência da multidão, quedeveria descobrir-lhe significados diversos e verdadeiros?

Por mim, digo-o sem hesitar e do fundo do coração: se, investido da mais altaautoridade, tivesse algo a escrever, preferiria fazê-lo de modo que minhaspalavras proclamassem tudo o que cada um pudesse conceber de verdadeiro sobreisso, em vez de propor um significado único e claro que excluísse todos os demais,cuja falsidade não me pudesse ofender. E também não quero, meu Deus, ser tãotemerário ao ponto de acreditar que esse grande homem não mereceu de ti essagraça.

Moisés, redigindo esses textos, pensou, concebeu todas as verdades que já fomoscapazes de encontrar, e também as que não o pudemos, mas que podem serdescobertas.

CAPÍTULOXXXII-Oração

Enfim, Senhor, tu que és Deus, e não carne e sangue, se um homem não pôde vertudo por completo, poderia teu Espírito bom, que me deve conduzir à terra daretidão, desconhecer algo do que tencionavas revelar por essas palavras a seusleitores vindouros, apesar de teu mensageiro não entender senão um dosnumerosos sentidos verdadeiros? Se assim é, o sentido que ele pensou era o maiselevado de todos. Mas revela a nós, Senhor, esse sentido ou algum outro que forde teu agrado e real; e quer nos mostres o mesmo sentido que ao homem de Deus,quer seja outro, inspirado pelas mesmas palavras, alimenta nosso espírito, guarda-nos da ilusão do erro.

Eis, Senhor meu Deus! Quantas páginas escrevi sobre tão poucas palavras! Destemodo, minhas forças e o meu tempo serão suficientes para examinar todos os teuslivros? Permite-me, pois, abreviar minhas confissões e adotar uma únicainterpretação, que me farás escolher como verdadeira, certa e boa, entre asmuitas outras que me poderão ocorrer. Que minha confissão seja fiel o bastantepara que eu tenha exatidão ao exprimir o pensamento de teu servo, pois para talme esforçarei; e, se não o conseguir, que eu pelo menos diga o que tua Verdademe quis dizer por suas palavras, como ela disse a Moisés o que lhe aprouve.

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LIVRODÉCIMO-TERCEIRO

CAPÍTULOI-Invocação

Eu te invoco, ó meu Deus, minha misericórdia, que me criaste, e que não olvidasteaquele que te esqueceu. Chamo-te à minha alma, que preparas para te receberfazendo-te desejar por ela.

Não abandones ao que te invoca. Antes mesmo que eu te invocasse, já o tinhasprevenido.

Muitas vezes me instaste, falando de mil modos diversos para que te ouvisse delonge, para que me convertesse e invocasse por ti que me chamavas.

Senhor, apagaste todos os meus delitos para não ter de punir o que fizeramminhas iníquas mãos, e te antecipaste a meus atos meritórios para merecompensar do que fizeram tuas mãos, que me criaram; de fato, existias antes demim, e eu não era digno de receber de ti o ser.

Contudo, eis que existo, graças à tua bondade que precedeu tudo o que sou e doque me fizeste. Não tinhas necessidade de mim, eu não sou um bem que te possaser útil, meu Senhor e meu Deus. Se estou a teu serviço, não é porque a ação tecansa ou porque teu poder, privado de meus serviços, diminua; nem porque meuculto seja para ti o que é a cultura para a terra, que sem ela ficaria estéril. Eudevo te honrar para ser feliz em ti, a quem devo meu ser, capaz de felicidade.

CAPÍTULOII-AcriaçãoeabondadedeDeus

É pela plenitude de tua bondade que as criaturas subsistem, para que um bem,para ti de todo inútil, ou de nenhum modo igualável a ti, embora saído de ti,continuasse a existir, pois tu o criaste. Com efeito, que poderiam merecer de ti océu e a terra, que criaste no princípio? E digam, as naturezas espirituais ecorpórea, que méritos tinham a teus olhos, que as criaste em tua Sabedoria? Queméritos, para receber de ti o ser, que mostram inacabado e informe, quandotendem à desordem e se afastam de tua semelhança? O que é de naturezaespiritual, mesmo informe, é ainda superior a um corpo que recebeu forma; umcorpo sem forma é superior ao puro nada; ora, todas essas coisas continuariaminformes em teu Verbo, se essa mesma palavra não as recolhesse à tua Unidade,comunicando-lhes a forma e a excelência graças apenas a ti, soberano Bem. Mas

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que merecimentos antecipados apresentaram a teus olhos, para existir mesmoinformes essas criaturas que, sem que as criasses nem teriam existido?

E o que a matéria corporal merecera de ti para existir, mesmo invisível e caótica?Nem mesmo essa existência teria, se não as tivesses criado. Não existindo ainda,não podia ter merecimento algum para existir. E a criatura espiritual, ainda noestado embrionário, que títulos teria, mesmo para ser essa coisa vagante etenebrosa, semelhante ao abismo, diferente de ti, se por teu Verbo não fosseconduzida ao mesmo Verbo que a criou e se, iluminada por ele, também não setransformasse em luz, não igual, mas análoga à tua imagem? Para um corpo, não éa mesma coisa existir e ser belo, pois de outro modo não poderia viver e viversabiamente não são a mesma coisa, porque, se fosse, todo espírito seria imutávelem sua sabedoria.

Mas seu bem reside em se manter unido a ti, para não perder, afastando-se, a luzque adquiriu com a tua proximidade, tornando a cair em uma vida semelhante aum abismo de trevas.

E também nós, que por nossa alma somos criaturas espirituais, nós nos afastamosde ti, nossa luz, nós fomos outrora trevas nesta vida e ainda padecemos por entreos restos de nossas trevas, até que nos tornamos tua justiça em teu Filho único,como as montanhas de Deus. Pois fomos objetos de teus juízos, que são profundoscomo abismos.

CAPÍTULOIII-Aluz

Sobre as palavras que proferiste no começo da criação: “Faça-se a luz, e a luz foifeita” – eu entendo que se adaptam com propriedade à criatura espiritual, que jáera uma espécie de via apta a receber tua luz. Mas assim como ela não tinhamerecido de ti ser essa espécie de vida apta a receber a luz, do mesmo modo, umavez criada, ela como as demais formas não mereceu de ti essa iluminação. Porquesua informidade não te agradaria se não tivesse tornado luz, e isso não secontentando com existir, mas contemplando a luz que a iluminava, unindo-seintimamente a ela. Assim, ela devia a existência e o viver feliz apenas à tua graça;voltada, por uma escolha feliz, para o que não pode mudar nem para melhor, nempara pior. Voltou-se para ti, que és o único que existes, e só o teu ser é simples,pois o viver e a felicidade são para ti a mesma coisa, porque és tua própriafelicidade.

CAPÍTULOIV-Abondadecriadora

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CAPÍTULOIV-Abondadecriadora

Que faltaria, pois, a esse bem, que és tu mesmo, se nenhuma dessas criaturasexistisse, ou se tivesse permanecido informes? Tu as criaste, não por ternecessidade delas, nem para aumentar tua felicidade, mas levado pela plenitudede tua bondade, comunicando-lhes uma forma.

Na tua perfeição, desagrada-te sua imperfeição; tu as aperfeiçoas para que elas teagradem, e não, com isso, aperfeiçoar a ti mesmo.

Com efeito, teu Espírito bom pairava sobre as águas, e não era por elas levadocomo se nelas descansasse. Se diz que teu Espírito nelas repousava; mas era eleque as fazia em si.

Incorruptível, imutável, bastando-se a si mesma, tua vontade era suspensa acimada vida que tinhas criado, para a qual viver não é o mesmo que viver feliz, porqueela vive, mesmo quando flutua sobre as trevas. Esta vida carece ainda voltar-separa seu Criador, para viver cada vez mais próxima à fonte da vida, para ver a luzna Luz divina, e nela haurir perfeição, brilho e felicidade.

CAPÍTULOV-Atrindade

Mas eis que me aparece o enigma da Trindade que és, meu Deus. Porque tu, Pai,criaste o céu e a terra no princípio de nossa Sabedoria, que é tua Sabedoria,nascida de ti, igual e coeterna, a ti, isto é, em teu Filho.

Já falei longamente do céu do céu, da terra invisível e informe e do abismo dastrevas, onde a natureza espiritual errante e fluida permaneceria tal se não sevoltasse para Aquele de quem toda vida procede, para que, por meio de sua luz,se tornasse viva e bela, o céu do céu, criado mais tarde entre a água superior e aágua inferior.

Pelo vocábulo “Deus” eu já entendia o Pai, que criou essas coisas; na palavra“princípio” eu entendia o Filho, em quem ele as criou. E, como eu acreditava naTrindade de meu Deus, eu a procurava em tuas santas palavras. E vi em tuasEscrituras que teu Espírito pairava sobre as águas. Eis tua Trindade, meu Deus,Pai, Filho, Espírito Santo, Criador de toda criatura!

CAPÍTULOVI-Oespíritosobreaságuas

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CAPÍTULOVI-Oespíritosobreaságuas

Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensinefalsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade,dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e astrevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito?Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seriaisso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não erasobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se nãopairasse sobre alguma coisa.

Era pois, necessário, mencionar primeiro o elemento sobre o qual ele pairava, jáque convinha falar dele apenas dizendo que pairava. Mas por que não convinhaapresentá-lo senão dizendo que pairava?

CAPÍTULOVII-Aságuassemsubstância

Agora, quem o puder com a inteligência, siga a teu Apostolo, quando ele diz quetua caridade se difundiu em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado,quando nos instrui sobre as coisas espirituais e nos indica o caminho excelso dacaridade, e dobra o joelho diante de ti por nossa causa, para que conheçamos aciência altíssima da caridade de Cristo. E é porque era super eminente desde oprincípio que pairava sobre as águas.

A quem e como falarei do peso da concupiscência, que nos arrasta para um abismoprofundo, e da caridade que nos eleva, com a ajuda de teu Espírito, que pairavasobre as águas?

A quem falar, como falar? Nós submergimos e emergimos, mas não em abismosmateriais. A metáfora é a um tempo correta e muito inexata. São nossas paixões,nossos amores, a impureza de nosso espírito que nos arrasta para baixo sob o pesodas preocupações. E é tua santidade que nos eleva pelo amor de tua paz, para quelevantemos nossos corações para junto de ti, onde teu Espírito paira sobre aságuas, e alcancemos o sublime repouso, quando nossa alma tiver atravessadoessas águas que são sem substância.

CAPÍTULOVIII-Àluzqueiluminaastrevas

O anjo caiu, a alma do homem caiu, revelando assim as profundas trevas em que

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teria caído o abismo que continha todas as criaturas espirituais, se não tivessesdito desde o começo:

“Faça-se a luz!” – se a luz não se tivesse feito, se todas as inteligências de tuacidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessemrepousado em teu Espírito que paira, imutável, sobre os seres transitórios. Deoutro modo, até o céu do céu não seria mais que abismo de trevas, enquanto queagora é luz no Senhor.

Nesta lamentável inquietação dos espíritos decaídos, que, despidos da veste detua luz, manifestam as próprias trevas, mostras claramente a grandeza de tuacriatura racional; na busca da felicidade, ela só se sacia com tua grandeza, ondeencontra repouso – pois que ela não pode bastar-se a si própria. Porque tu,Senhor, iluminarás nossas trevas. De ti vêm nossas vestes de luz, e nossas trevasserão como o sol do meio-dia.

Dá-te a mim, meu Deus, entrega-te a mim. Eu te amo. Se meu amor é pouco, fazeque eu te ame com mais força. Não posso medir, não posso saber o que falta a meuamor para que seja suficiente para que minha vida corra para teus braços, e dalinão saia antes de se esconder no segredo do teu rosto.

Se isto reconheço: tudo me corre mal onde tu não estás, não somente à minhavolta, mas até em mim mesmo; e toda a abundância que não é meu Deus, paranão passa de indigência.

CAPÍTULOIX-OamordeDeus

Mas o Pai e o Filho, não pairavam também sobre as águas? Se os imaginamoscomo um corpo pairando no espaço, isso não se pode aplicar nem mesmo aoEspírito Santo. Se porém entendermos por isso a excelência imutável da divindadeacima de tudo o que é transitório, então o Pai, o Filho e o Espírito Santo pairavamigualmente sobre as águas. E por que só se menciona o Espírito Santo? Por que semenciona apenas a seu respeito um lugar onde estava, ele que, no entanto, nãoocupa espaço? Também apenas dele se disse que era um dom de Deus, e é em teudom que repousamos; é nele que gozamos de ti. Nosso repouso é nosso lugar. Épara lá que o amor nos arrebata, e teu Espírito levanta nossa humildade paralonge das portas da morte. A paz, para nós, reside na tua boa vontade. Os corpostendem, por seu peso, para o lugar que lhes é próprio; mas um peso não tende sópara baixo; tende para o lugar que lhe é próprio. O fogo sobe, a pedra cai. Cada

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um é movido por seu peso, e tende para seu justo lugar. O óleo, lançado à água,flutua; a água, lançada ao óleo, afunda. Ambos são impelidos por seu peso aprocurarem o lugar que lhes é próprio. As coisas que não estão em seu lugar seagitam; mas quando o encontram, repousam.

Meu peso é meu amor; para onde quer que eu vá, é ele quem me leva. Teu domnos inflama e nos eleva; ardemos e partimos. Subimos os degraus do coração ecantamos o cântico gradual. É o teu fogo, o teu fogo benfazejo que nos consome enos eleva, enquanto subimos para a paz de Jerusalém celeste. Regozijei-me aoouvir essas palavras: “Vamos para a casa do Senhor!” – Ali nos há de instalar tuaboa vontade, e não desejaremos nada mais do que permanecer ali eternamente.

CAPÍTULOX-OsdonsdeDeus

Feliz a criatura que não conheceu outro estado! Seria porém diferente do que ése, apenas criada, teu Espírito, que paira sobre todas as coisas mutáveis, não ativesse erguido com este apelo: “Faça- te a luz” – e a luz se fez. Em nós, o tempoem que éramos trevas distingue-se do tempo em que nos tornamos luz. Mas dessacriatura só se diz o que teria sido se não fosse iluminada. A Escritura fala delacomo se tivesse sido flutuante e tenebrosa, para nos realçar a causa que atransformou, isto é, que a conduziu para a luz inextinguível, para que tambémfosse luz. Quem o puder, compreenda, quem não o puder, que te peça a graça de ocompreender. Por que importunam, como seu fosse a luz que ilumina a todohomem que vem a este mundo?

CAPÍTULOXI-Ohomemeatrindade

Quem é capaz de compreender a Trindade onipotente? E quem não fala dela,ainda que a não compreenda? Rara é a pessoa que, falando dela, sabe o que diz.Discute-se, disputa-se, mas ninguém sem paz interior contempla esta visão.

Quisera que os homens refletissem sobre três coisas que têm dentro de si mesmos.Elas diferem muito da Trindade, e eu só as proponho para que as usem comoexercício e experiência do pensamento, e com isso compreender como estão longedeste mistério. Eis as três coisas: ser, conhecer, querer. Porque existo, conheço,quero e vejo. Eu sou aquele que conhece e quer. Sei que existo e que quero, equero existir e saber. Repare, quem puder, como nessas três coisas a vida éindivisível, a unidade da vida, a unidade da inteligência, a unidade da essência;veja a impossibilidade de distinguir elementos inseparáveis e, contudo, distintos.

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O homem está diante de si mesmo; que ele se examine, veja e me responda.Contudo, por ter encontrado e reconhecido esta analogia, não julgue por isso tercompreendido a essência do Ser imutável, que transcende tais movimentos daalma, que existe imutavelmente, conhece imutavelmente e quer imutavelmente.Mas é por causa de tais atributos que em deus há a Trindade, ou esses trêsatributos pertencem a cada pessoa divina, cada uma sendo assim uma e trina? Ouambas as coisas são admiravelmente reais: a Trindade, misteriosamente simples emúltipla, sendo para si mesma seu próprio fim infinito, pelo qual existe, se conhecee se basta imutavelmente na magnitude superabundante de sua unidade? Quemconceberá facilmente este mistério? Quem poderia explicá-lo? Quem,temerariamente, ousaria enunciá-lo de algum modo?

CAPÍTULOXII-AcriaçãoeaIgreja

Ó minha fé, vai adiante em tua confissão. Dize a teu Senhor: “Santo, santo, santo!É o Senhor, meu Deus! – Em teu nome fomos batizados, Pai. Filho e Espírito Santo;em teu nome batizamos, Pai, Filho e Espírito Santo. Também entre nós Deus criou,pelo seu Cristo, um céu e uma terra, isto é, os espirituais e os carnais de suaIgreja. E nossa terra, antes de receber a forma da doutrina, era invisível einforme, e estávamos imersos nas trevas da ignorância, porque castigaste ohomem por causa de sua iniqüidade, e teus justos juízos são como abismosprofundos.

Mas porque teu Espírito pairava sobre as águas, tua misericórdia não abandonounossa miséria, e disseste: “Faça-se a luz”. Fazei penitencia, porque está próximo oreino de Deus. Fazei penitencia, faça-se a luz! E porque tínhamos a almaconturbada, nos lembramos de ti, Senhor, às margens do Jordão, sobre essamontanha grande como tu, que te tornaste pequeno por nós.

Nossas trevas te desagradaram, nós nos voltamos para ti, e a luz se fez. E eis queoutrora fomos trevas e que agora somos luz no Senhor.

CAPÍTULOXIII-Nósealuz

Contudo, somos luz apenas pela fé, e não por uma visão clara. É na esperança quefomos salvos, e a esperança que vê não é mais esperança. O abismo clama peloabismo, mas é já pela voz de tuas cataratas. Não pude falar-vos como a homensespirituais, mas como a carnais. Quem assim fala, não julga ainda ter atingido suameta e, esquecendo-se do que ficou para trás, avança para o que está vivo, como o

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cervo tem sede de água das fontes, e diz: “Quando chegarei?” – Ele deseja oabrigo de sua morada, que está no céu e chama o abismo inferior dizendo: “Nãovos conformeis com este mundo, mas reformai-vos renovando vosso espírito, e nãoqueirais ser crianças na mente, mas sede pequeninos quanto à malícia, para quesejais perfeitos no espírito...”

E ainda: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou?” – Mas não é mais sua voz quefala assim, e sim a tua voz, porque mandaste teu Espírito do alto do céu porintermédio de Jesus, que subiu ao céu e abriu as cataratas de seus dons, para quea torrente de alegria alegrasse tua cidade. É por essa cidade que suspira o amigodo esposo, ele que já possui as primícias do Espírito, mas que ainda geme, porqueestá à espera da adoção e do resgate do seu corpo. É por ela que suspira, porqueele é membro da Esposa de Cristo; por ela se abrasa em zelo, porque é o amigo doesposo. Zela por ela, não por si mesmo, pois é pela voz de tuas cataratas, e nãocom sua própria voz, que ele chama pelo outro abismo, objeto de seu zelo e deseus temores. Assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, ele receia queas inteligências débeis se corrompam e se afastem da pureza que está em teuEsposo, teu Filho único. Quão resplandecente será essa luz, quando o virmos talcomo ele é, e quando tiverem passado essas lágrimas que se tornaram o pão demeus dias e de minhas noites, enquanto a cada dia me perguntam: Onde está oteu Deus?

CAPÍTULOXIV-Esperança

Também eu pergunto: “Onde estás, meu Deus? Onde estás?” – Respiro um poucode ti quando minha alma se expande dentro de mim mesmo em gritos de exaltaçãoe de louvor, verdadeiro canto de festa. – Mas ela ainda está triste, porque torna acair e a ser abismo, ou melhor, porque sente que ainda é abismo.

Minha fé, que acendeste à noite para conduzir meus passos, lhe diz: “Por que estátriste, ó minha alma, e por que me perturbas? Espera no Senhor. Seu Verbo é umalâmpada para teus passos. Espera, persevera, até que a noite passe, a noite, mãedos iníquos, até que passe a ira do Senhor, ira da qual outrora fomos filhos quandoéramos trevas”. – Dessas trevas ainda arrastamos os restos neste corpo mortopelo pecado, até que alvoreça o dia e se dissipem as sombras. Espera no Senhor.Desde a manhã estarei diante deles, e o contemplarei, e o louvarei eternamente.Desde a manhã estarei diante dele e verei a salvação de minha face, meu Deus,que vivificará nossos corpos mortais pelo seu Espírito que habita em nós,misericordiosamente levado por sobre as águas tenebrosas de nossas almas.

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Por isso, em nossa peregrinação, recebemos dele o penhor de já sermos luz; ele jános salvou pela esperança e, de filhos da noite e das trevas que éramos, ele fezfilhos da luz e do dia.

Na incerteza da ciência humana, só tu és capaz de distinguir entre uns e outros,porque põe nossos corações à prova e chamas à luz dia e às trevas noite. Quem,senão tu, sabe nos distinguir? E que temos nós que não o tenhamos recebido deti? Nós, feitos vasos de honra, fomos feitos da mesma argila que serviu para fazeros vasos de ignomínia.

CAPÍTULOXV-Símbolos

E quem, senão tu, nosso Deus, estendeu sobre nós um firmamento de autoridade,da tua divina Escritura? O céu se dobrará como um livro, e agora ele se estendesobre nós como um pergaminho. Mais sublime é a autoridade de que goza tuadivina Escritura depois que morreram aqueles que cujo intermédio no-lascomunicaste. E sabes, Senhor, sabes como cobriste de peles os homens, quando opecado os tornou mortais. Por isso estendeste como um pergaminho o firmamentode teu Livro, e tuas palavras em tudo concordes, que dispuseste sobre nós peloministério de homens mortais. Por sua morte, a autoridade de tuas palavras, poreles divulgadas, desdobra sua força sobre tudo o que existe em baixo; ela não seerguia tão alto enquanto eles viviam. É que ainda não tinhas desenrolado o céucomo um pergaminho, nem tinhas ainda difundido a glória de sua morte por todaparte.

Senhor, faze que contemplemos os céus, obra de tuas mãos! Dissipa de nossosolhares as nuvens com que os tens velado. Neles está teu testemunho, dandosabedoria aos humildes. Meu Deus completa teu louvor pela boca dos meninos queainda mamam! Não conhecemos outros livros que assim destruam a soberba, eque abatam tão bem o inimigo que resiste a toda reconciliação contigo, e defendeseus pecados. Não, Senhor, não conheci outras palavras tão puras, que tantos mepersuadissem à confissão, e sujeitassem minha mente a teu jugo, convidando-me ate servir tão desinteressadamente. Oxalá eu as compreenda, bondoso Pai!

Concede esta graça à minha submissão, pois as firmaste para os coraçõessubmissos.

Há outras águas, creio eu, sobre esse firmamento: águas imortais e isentas dacorrupção terrena. Que elas louvem teu nome! Que os povos celestes de teus

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anjos te bendigam, pois não têm necessidade de olhar esse firmamento, nem deler para aprenderem a conhecer tua palavra!

Eles sempre vêem tua face, e ali lêem, sem as sílabas transitórias, o objeto da tuavontade eterna.

Lêem, escolhem, amam. Lêem perpetuamente, e o que eles lêem jamais fenece;escolhendo e amando, lêem tua imutável vontade. Teu códice jamais de fecha,jamais se enrola, porque tu mesmo és eternamente esse livro; tu os estabelecesteacima deste firmamento, levantado por ti acima da fraqueza dos povos da terra,para que estes, olhando-o, reconheçam tua misericórdia, que te anuncia no tempo,tu criador do tempo. Tua misericórdia está no céu, e tua verdade se eleva até àsnuvens. As nuvens passam, mas o céu permanece. Os que pregam tua palavrapassam para uma outra vida, mas tua Escritura se estende sobre os povos até ofim dos séculos.

O céu e a terra passarão, mas tuas palavras não passarão. O pergaminho seráenrolado, e a erva sobre o qual se estendia passará com seu esplendor, mas a tuapalavra permanecerá eternamente. Agora ela nos aparece no enigma das nuvense através do espelho dos céus, e não como é na realidade, porque ainda não semanifestou o que havemos de ser, apesar de amados pelo teu filho. Ele nos olhouatravés da teia da sua carne e nos acariciou, e nos inflamou de amor, e corremosatrás de sua fragrância. Mas quando ele aparecer seremos semelhantes a ele,porque o veremos tal como ele é. Vê-lo tal qual é será nossa felicidade, mas nósainda não o podemos contemplar.

CAPÍTULOXVI-Deus,fontedeluz

Assim como só tu existes plenamente, só tu possuis o conhecimento absoluto:imutável, com efeito, és em teu ser, imutável em teu saber, imutável na tuavontade. Tua essência sabe e quer imutavelmente, tua ciência é e querimutavelmente, tua vontade é e sabe imutavelmente.

Não é justo a teus olhos que a luz imutável seja conhecida pelo ser mutável, queela ilumina, como ela se conhece a si própria. Por isso, minha alma é para ti comoterra sem água, porque assim como não pode iluminar a si mesma, não se podesaciar por seus próprios meios. Porque em ti está a fonte da vida, e graças à tualuz é que veremos a luz.

CAPÍTULOXVII-Aságuasamargas

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CAPÍTULOXVII-Aságuasamargas

Quem reuniu em um só mar as águas amargas? Seu objetivo é o mesmo: umafelicidade temporal, terrena, alvo de todas as suas ações a despeito da grandediversidade de cuidados que as agitam. Quem, senão tu, Senhor, poderia dizer aessas águas que se reunissem em um só lugar, e à terra enxuta que aparecesse,sedenta de ti? O mar é teu, pois tu o fizeste, e tuas mãos formaram a terraenxuta. Não é a amargura das vontades mas a reunião das águas que chamamosde mar. Também refreias as paixões más das almas e fixas os limites até ondepermites que avancem as águas, para que suas ondas se quebrem sobre simesmas; e assim, crias o mar, submetido a teu poder universal.

As almas sedentas de ti, que aparecem a teu olhos separadas do mar com outrafinalidade, tu as regas com um orvalho vivo, misterioso e doce, para que a terraproduza seu fruto.

E a terra o produz; ao teu comando, ó Senhor que és seu Deus, nossa almagermina obras de misericórdia, de acordo com sua condição: ela ama o próximo evai em auxílio de suas necessidades materiais. Carrega em si a semente dacompaixão, por uma semelhança de natureza, porque é o sentimento de nossafraqueza que nos leva a compadecer as misérias dos que são necessitados, asocorre-los, como desejaríamos que nos socorressem se tivéssemos as mesmasnecessidades. E não se trata só de dar apoio fácil, como ervas nascidas desementes, mas de proteção enérgica, vigorosa como a árvore que carrega frutos,símbolos das obras que arrebatam à mão do poderoso a vítima da injustiça, dando-lhe um abrigo à sombra protetora de um julgamento justo.

CAPÍTULOXVIII-Meditação

Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça daterra a vontade, e que a justiça lance os olhos sobre nós do alto dos céus, e que nofirmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome,acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e nãodesprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa terra, olha,Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua luz brilho no momento oportuno. Por estahumilde messe de boas obras, faze que nos possamos elevar a uma contemplaçãodeliciosa do Verbo da Vida, e que brilhemos no mundo como astros, fixados nofirmamento de tua Escritura.

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E aí, de fato, que nos ensinas a distinguir entre as realidades inteligíveis e assensíveis, entre as almas espirituais e as almas que se entregam aos sentidos,como entre o dia e a noite.

Deste modo já não és mais o único, no segredo de teu discernimento, como erasantes da criação do firmamento, a distinguir entre a luz e as trevas. Também tuascriaturas espirituais, dispostas e ordenadas nesse mesmo firmamento, depois quetua graça se manifestou através do mundo, brilham sobre a terra, separam o diada noite e marcam as diferenças dos tempos. De fato, as coisas antigas passaram,e eis que se fizeram novas, nossa salvação está mais próxima do que quandocomeçamos a crer, a noite avançou e se aproximou o dia, coroas o ano com tuabenção, envias teus operários à tua messe, semeada pelo trabalho de outrosoperários, enviando-os também para outra sementeira, cuja messe será colhida nofim dos séculos.

Assim ouves as preces do justo e abençoas seus anos. Mas continuas eternamenteo mesmo, e em teus anos, que não terão fim, preparas um celeiro para os anos quepassam.

Por desígnio eterno, lanças sobre a terra os bens do céu no tempo oportuno; a um,teu Espírito dá a palavra de sabedoria, luminar maior para os que encontram seudeleite na luz de uma verdade clara como o raiar do dia; a outro dás, pelo mesmoEspírito, a palavra de ciência, luminar menor; a outro a fé; a outro o poder decurar; a outro o dom dos milagres; a outro a graça da profecia; a este odiscernimento dos espíritos, àquele o dom das línguas. E todos esses dons sãocomo estrelas, são obra de um só e mesmo Espírito, que reparte a cada um os seusdons como lhe agrada, e que faz aparecer tais astros para o bem comum.

Mas a palavra de ciência em que estão encerradas todos os mistérios, que variamcom o tempo, como varia a lua, e os outros dons que mencionei ao compará-loscom as estrelas, diferem a tal ponto desse brilho de sabedoria de que goza o raiardo dia, que não passam de crepúsculo.

Contudo, teus dons são necessários àqueles homens, a quem teu prudente servidornão pôde dirigir como a espirituais, mas como a carnais, ele que pregou aSabedoria entre os perfeitos.

Quanto ao homem carnal, semelhante a um menino em Cristo, que só se alimentade leite, que não se julgue abandonado em sua noite, que saiba contentar-se com

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a luz da lua e das estrelas, até que possa tomar alimento sólido e olhar para o sol.Eis o que nos ensinas em tua sabedoria, nosso Deus, em teu livro, que é teufirmamento, para que distingamos todas as coisas em contemplação admirável,embora ainda estejamos sob a lei dos sinais, dos tempos, dos dias e dos anos.

CAPÍTULOXIX-Aindaaterraseca

Mas antes, lavai-vos, purificai-vos, arrancai a iniqüidade de vossos corações e demeus olhos, para que apareça a terra seca. Aprendei a fazer o bem, sede justospara com o órfão e defendei a viúva, para que a terra produza a erva tenra eárvores cheias de frutos. Vinde e dialoguemos, diz o Senhor, e assim nofirmamento do céu se ascenderão luminares que brilharão por sobre a terra.

Aquele rico perguntava ao bom Mestre o que deveria fazer para ganhar a vidaeterna. E o bom Mestre, que é bom porque é Deus, e não um homem como o rico oconsiderava, lhe declarou: “O que deseja conseguir a vida deve observar osmandamentos, afastar de si a amargura da malícia e da iniqüidade, não matar,não cometer adultério, não roubar, não prestar falso testemunho, a fim de que semostre a terra seca, geradora do respeito do pai e da mãe e do amor do próximo.

– Tudo isto já fiz – diz o rico. – De onde vêm pois tantos espinhos, se a terra éfértil? – Vai, arranca os espessos emaranhados da avareza, vende teus bens,enriquece-te dando tudo aos pobres, e possuirás um tesouro no céu; segue oSenhor se queres ser perfeito, junta-te aos que ele instrui nas palavras desabedoria, ele que sabe o que se deve dar ao dia e à noite. Também tu o saberás,e eles se tornarão para ti luminares no firmamento do céu. Mas isso não serealizará se ali não estiver teu coração, e teu coração, não estará onde nãoestiver teu tesouro – Assim falou teu bom Mestre. Mas a terra estéril entristeceu,e os espinhos sufocaram a Palavra divina.

Mas vós, geração escolhida, fracos aos olhos do mundo, que tudo deixaste paraseguir o Senhor, caminhais após ele, confundi os fortes; segui-lo com vossos pésresplandecentes, e brilhai no firmamento para que os céus cantem suas glórias,distinguindo a luz dos perfeitos, que ainda não são semelhantes aos anjos, e astrevas dos pequenos, que ainda não perderam a esperança. Brilhai sobre toda aterra! Que o dia resplandecente de sol transmita ao dia seguinte a palavra deSabedoria, e que a noite, iluminada pela lua, transmita à noite a palavra deCiência. A lua e as estrelas brilham na noite, mas a noite não as obscurece, porquesão elas que iluminam a noite, de acordo com a sua capacidade.

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Como se Deus tivesse dito: Façam-se luminares no firmamento, e logo se fez ouvirum ruído vindo do céu, semelhante ao de um vento violento, e foram vistaslínguas de fogo, que se dividiram e se colocaram sobre cada um deles. Eapareceram luminares no céu, que possuíam a palavra de vida. Correi por todaparte, chamas sagradas, fogos admiráveis. Vós sois a luz do mundo, e não estaisdebaixo do alqueire. Aquele a quem vos unistes foi exaltado e ele vos exaltou.Correi e dai-vos a conhecer a todas as nações.

CAPÍTULOXX-Osrépteiseasaves

Que o mar também conceba e dê à luz tuas obras; que as águas produzam répteisdotados de almas vivas. De fato, separando o precioso do vil, vos tornastes a bocade Deus, pela qual ele diz: “Produzam as águas...” não a alma viva, filha da terra,mas répteis dotados de almas vivas, e pássaros que voam sobre a terra. Assimcomo esses répteis, teus sacramentos, ó meu Deus, deslizaram, graças às obras deteus santos, por entre as ondas das tentações do século para regenerarem ospovos com teu nome, em teu batismo.

Então se operaram grandes maravilhas, semelhantes a enormes cetáceos, e aspalavras de teus mensageiros percorreram a terra, sob o firmamento de teu Livro,que com tua autoridade deveria proteger seu vôo para onde quer que fossem. Nãohá língua nem palavras em que não se ouçam suas vozes; seu som espalhou-se portoda a terra, e suas palavras até os confins do mundo, porque tu, Senhor,abençoando-os, os multiplicaste.

Estaria eu mentindo? Ou confundindo a questão, não distinguindo as claras noçõesdas coisas do firmamento das obras corpóreas que se realizam no mar agitado esob o firmamento?

Por certo que não. Há coisas cuja idéia é completa, acabada, que não semultiplicam no curso das gerações, tais como as luzes da sabedoria e da ciência.Mas esses seres são o objeto de operações materiais múltiplas e variadas e,crescendo umas de outras, se multiplicam sob tua benção, meu Deus. É assim querefreias a impertinência de nossos sentidos, dando a uma verdade única o meio dese exprimir de varias maneiras, por movimentos do corpo. Eis que produziram tuaságuas, pela onipotência de teu Verbo. Tudo isto se originou das necessidades depovos afastados de tua verdade eterna, por meio do teu Evangelho. De fato foramessas águas que fizeram brotar essas coisas, e sua amargura estagnante foi causade que teu Verbo as criasse.

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Todas tuas obras são belas, mas és indizivelmente mais belo tu, que criaste tudo oque existe. Se Adão não se tivesse separado de ti, em sua queda, de seu seio nãoteria saído o oceano amargo do gênero humano, com sua profunda curiosidade,seu orgulho cheio de tempestades, suas ondas instáveis. E os dispensadores detuas palavras não teriam a necessidade de representar, no meio de tantas águas,por meio de sinais físicos e sensíveis, teus atos e palavras místicas. Foi nessesentido que entendi esses répteis e essas aves. Mas até os homens iniciadosnesses sinais e deles imbuídos, não avançariam no conhecimento desses mistérios,aos quais estão sujeitos, se sua alma não se elevasse á vida do espírito, e, após apalavra inicial, não aspirasse à perfeição.

CAPÍTULOXXI-Aalmaviva

E assim não foi a profundeza do mar, mas a terra livre do amargor das águas que,impelida pelo teu Verbo gerou não mais os répteis dotados de almas vivas e ospássaros, mas a alma viva.

E esta não mais tem necessidade de batismo (necessário para os gentios), comotinha necessidade enquanto as cobriam. Pois não se entra de outro modo no reinodos céus, desde que assim o determinaste. Para ter fé, ela já não exige grandesmaravilhas. Ela crê sem ter visto sinais e prodígios, porque é terra fiel, já distintadas águas do mar que a incredulidade torna amargas: e as línguas são umsinal,não para os fiéis, mas para os infiéis.

A terra que estendeste acima das águas não tem necessidade dessa espécie deaves que as águas produziram por ordem de teu Verbo. Envia-lhe, pois, teu Verbo,por meio de teus mensageiros. Nós falamos de suas obras, mas quem age por seuintermédio, para que produzam uma alma viva, és tu. A terra a germina porque éa causa dos fenômenos que ocorrem na superfície, assim como o mar foi causa daprodução dos répteis dotados de almas vivas, e das aves sob o firmamento do céu.A terra já não necessita destas criaturas, embora ela se alimente de peixespescados nas profundezas do mar, nessa mesa que preparaste na presença doscrentes; porque eles foram pescados nas profundezas do mar para alimentar aterra árida.

Também as aves, ainda que nascidas no mar, multiplicam-se sobre a terra. Asprimeiras gerações evangélicas foram motivadas pela incredulidade dos homens,mas também fiéis nela encontram diariamente copiosas exortações e bênçãos.Todavia, a alma viva, extrai da terra sua origem, porque somente aos fiéis émeritório abster-se de amar este mundo, para que sua alma viva por ti, essa alma

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que estava morta quando vivia em delícias mortíferas. Ó Senhor, só tu fazes asdelicias de um coração puro.

Que teus ministros trabalhem na terra, não como nas águas da incredulidade,quando pregavam e falavam utilizando-se de milagres, de sinais misteriosos, determos místicos, para capturar atenção da ignorância, mãe da admiração, pelomedo desses sinais secretos. Por esta porta, de fato, os filhos de Adão têm acessoà fé, esquecidos de ti enquanto se escondem de tua fade e se tornam abismos. Queteus ministros trabalhem como em terra seca, separada das fauces do abismo; eque sejam modelo para os fiéis, vivendo sob teus olhares e incitando-os à imitação.E assim ouve não só para ouvir, mas também para praticar. “Procurai a Deus, evossa alma viverá, e a terra dará nascimento a uma alma viva. Não vosconformeis com este mundo em que vivemos, abstendo-vos dele. A alma viveevitando as coisas cujo desejo causa-lhe a morte.

Abstende-vos das violências selvagens da soberba, das ociosas voluptuosidades daluxúria, da falsidade que engana em nome da ciência, para que os animais ferozessejam domesticados, os brutos domados e para que as serpentes sejaminofensivas: todos representam alegoricamente os movimentos da alma humana.O fastio do orgulho, as delícias da luxúria, o veneno da curiosidade, sãomovimentos da alma morta, mas não morta a ponto de carecer de todomovimento; é afastando-se da fonte da vida que ela morre, o mundo a arrebata aopassar, e a este se amolda.

Mas tua palavra, meu Deus, é a fonte da vida eterna, e não passa. Ela mesma nosproíbe que nos afastemos de ti por essas palavras: “Não vos conformeis com omundo em que vivemos, para que a terra, fertilizada pela fonte da vida, produzauma alma viva, uma alma que busque em tua palavra, transmitida por teusevangelistas, se fortificar, imitando os imitadores de teu Cristo”. – Eis o sentido daexpressão “segundo sua espécie”, porque o homem imita a quem ama. “Sede comoeu” – diz o Apostolo, - porque sou como vós. – Assim haverá na alma viva apenasferas sem maldade, agindo com doçura. Pois nos deste este mandamento: “Fazeivossas obras com mansidão, e sereis amados por todos” – Também os animaisdomésticos serão bons: se comerem, não sofrerão fastio e, se não comerem, nãoterão fome. As serpentes, tornando-se boas, serão incapazes de causar danos, mascontinuarão astutas e cautelosas; não investigarão a natureza temporal, senão namedida necessária para compreender e contemplar a eternidade através dascoisas criadas. Esses animais, as paixões, obedecem à razão, quando refreados emseus caminhos mortais, vivem e se tornam bons.

CAPÍTULOXXII-Sentidomísticodacriaçãodohomem

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CAPÍTULOXXII-Sentidomísticodacriaçãodohomem

Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, quenos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do mundo,quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir apalavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com omundo em que vivemos” – então seguir-se-á aquilo que acrescentasteimediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. – E jánão será “segundo vossa espécie” – como se fosse imitar nossos predecessores ouviver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que ohomem seja feito de acordo com sua espécie” – mas “façamos o homem à nossaimagem e semelhança” – para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Paratanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, nãoquerendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite eagasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vossocoração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. –Também não dizes: “Faça-se o homem” – mas “à nossa imagem e semelhança”.Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua verdade, nãomais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições,ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lheensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e aUnidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o homem” sediz no singular: “E Deus criou o homem”. Depois deste plural: “À nossa imagem” –este singular: “À imagem de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimentode Deus, à imagem de seu criador” – e “tornando-se espiritual, julga todas ascoisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”.

CAPÍTULOXXIII-Ojulgamentodohomemespiritual

Ele julga tudo, significa que tem autoridade sobre os peixes do mar, sobre ospássaros do céu, sobre os animais domésticos e selvagens, sobre toda a terra esobre todos os répteis que nela se arrastam. Exerce esse poder pela inteligência,pela qual percebe as coisas que são do Espírito de Deus. Mas, elevado a tãogrande honra, o homem não entendeu sua dignidade, igualou-se aos jumentosinsensatos, tornando-se semelhante a eles.

Por isso, na tua Igreja, Senhor, pela graça que lhe concedeste – pois somos obratua, e criados para obras boas, tanto os que governam como os que obedecemsegundo o Espírito tem o dom de julgar. Porque assim fizeste a criatura humanahomem e mulher, em tua graça espiritual, onde não há distinção conforme o sexo,

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nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre. Os espirituais, portanto,tanto os que presidem como os que obedecem, julgam espiritualmente. Eles nãojulgam conhecimentos espirituais que brilham no firmamento, pois não lhes cabefazer juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam tua Escritura, mesmo emsuas passagens obscuras: nós lhe submetemos nossa inteligência, e temos certezade que até aquilo que está oculto à nossa compreensão é justo e verdadeiro. Ohomem, pois, embora já espiritual e renovado pelo conhecimento, conforme aimagem de seu criador, deve ser cumpridor da lei, e não seu juiz. Nem pode ajuizarsobre o que distingue espirituais e carnais. Somente teus olhos, meu Senhor, osdistinguem, mesmo que nenhuma obra sua os tenha revelado a nós, para que osreconheçamos por seus frutos. Mas tu, Senhor, já os conheces e os classificaste, eos chamaste no segredo de teu pensamento, antes de ter criado o firmamento.

Tampouco julga, o homem espiritual, os povos inquietos deste mundo. De fato, porque julgaria ele os que estão fora, ignorando quem alcançará a doçura da tuagraça, e quem permanecerá na eterna amargura da impiedade?

Por isso, o homem que criaste à tua imagem, não recebeu poder sobre os astros docéu, nem sobre o mesmo céu misterioso, nem sobre o dia e a noite que chamaste áexistência antes da criação do céu, nem sobre a massa das águas, que é o mar.Mas recebeu poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos osanimais, sobre toda a terra, e sobre tudo o que se arrasta pela superfície do solo.

Ele julga e aprova o que acha bom, e reprova o que acha mau, quer na celebraçãodos sacramentos, com que são iniciados os que na tua misericórdia tira das águasprofundas, quer no banquete em que se serve o peixe tirado das profundezas paraalimento da terra fiel; quer nas palavras e expressões sujeitas à autoridade de teuLivro que, semelhantes aos pássaros, voam sob o firmamento: interpretações,exposições, discussões, bênçãos e invocações que brotam sonoras da boca, paraque o povo responda: Amém! É necessário que essas palavras sejam enunciadasfisicamente, por causa do abismo do mundo e da cegueira da carne que,impossibilitada de ver o pensamento, tem necessidade de sons que firam osouvidos. Assim, sem dúvida é sobre a terra que as aves se multiplicam, emboratenham suas origens na água.

O homem espiritual julga também aprovando o que acha correto e reprovando oque é vicioso nas obras e nos costumes dos fiéis. Julga das suas esmolas,comparáveis aos frutos da terra; ele julga a alma viva pelas paixões domadas pelacastidade, os jejuns, e pelos pensamentos piedosos, na medida em que essas coisasse manifestam aos sentidos do corpo. Em resumo, é juiz de tudo o que pode se

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corrigir.

CAPÍTULOXXIV-Cresceiemultiplicai-vos

Mas que é isto? Que mistério é este? Abençoas os homens, Senhor, para que elescresçam, se multipliquem, e encham a terra. Não queres nisto dar-nos a entenderalguma coisa?

Por que não abençoaste também a luz, que chamaste dia, nem a terra, nem omar? Eu diria, meu Deus, que nos criaste à tua imagem, diria que quisesteconceder especialmente ao homem esta benção, se não houvesses abençoadoigualmente os peixes e os cetáceos, para que cresçam, se multipliquem, encham aságuas do mar, e os pássaros para que se multipliquem sobre a terra.

Afirmaria ainda que essa benção foi reservada às espécies vivas que sereproduzem por meio de geração, caso a encontrasse também nas árvores, nasplantas, nos animais da terra. Mas não foi dito nem às plantas, nem às árvore ,nem aos répteis: “Crescei e multiplicai-vos” – embora todas essas criaturas semultipliquem pela procriação, como os peixes, os pássaros e os homens,conservando assim sua espécie.

Quer dizer, então, ó minha Luz, ó Verdade? Que tais palavras carecem de senso eforam ditas em vão? De nenhum modo, ó Pai de misericórdia. Longe de mim, longedo servidor de teu Verbo, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentidodessas palavras, e espero que os melhores que eu, ou seja, os mais inteligentes, aentendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que teagrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que nãofalaste em vão aquelas palavras.

Não calarei as reflexões que me sugere a leitura dessas palavras. O que penso éverdadeiro, e nada vejo que impeça de explicar assim os textos figurados de teuslivros. Sei que sinais corporais podem exprimir de vários modos uma idéia que oespírito concebe em um só sentido; uma idéia expressa de um só modo. Comoexemplo, cito a simples idéia do amor de Deus e do próximo. Quantos símbolos,quantas línguas, e em cada uma inúmeras locuções lhe dão uma expressãoconcreta! É assim que crescem e se multiplicam os peixes das águas.

E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma sóforma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o céu e a

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terra” – E não pode a frase ser interpretada diversamente – descartando o erroou o sofisma – conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim quecrescem e se multiplicam as gerações dos homens!

Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentidopróprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” – se aplica a todas as criaturas quenascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado,como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essabenção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturasespirituais e temporais, como no céu e na terra; de almas justas e injustas, comona luz e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como nofirmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos,como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas obras demisericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente enas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, comonos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva.Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas queesse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma idéia de vários modose que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenaso encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais.

Os sinais corpóreos, originados da profundidade de nossa cegueira carnal,correspondem, segundo penso, às gerações das águas; os conceitos intelectuais,gerados pela fecundidade da inteligência, simbolizam,me parece, as geraçõeshumanas.

E é por isso, Senhor, creio que disseste tanto às águas como aos homens: “Cresceie multiplicai-vos” – Nessa benção, penso que nos deste a faculdade, o poder deformular de várias maneiras uma única idéia, e de compreender também demuitas maneiras uma expressão única, mas obscura.

É assim que as águas do mar se povoam, e não se moveriam sem as váriasinterpretações das palavras. É assim que a terra se povoa de gerações humanas;sua aridez se fecunda pela sua paixão da verdade, sob o poder da razão.

CAPÍTULOXXV-Osfrutosdaterra

Quero ainda dizer, Senhor meu Deus, o que me inspiram as palavras que seguemda tua Escritura. E o farei sem medo, porque direi a verdade; pois não vem de ti,

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por acaso, a inspiração do que queres que eu diga? Não creio que eu possa dizer averdade se tu não me inspirares, pois tu és a própria verdade, e todo homem émentiroso. Por isto, quem mente fala do que é seu. Logo, para falar a verdade, sófalarei o que me inspiras.

Tu nos deste para alimento todas as ervas que produzem semente e que cobrem aterra, e todas as árvore que contém em si, em germe, seus frutos. E não foisomente a nós que deste esse alimento, mas também às aves do céu, aos animaisda terra e aos répteis, mas não aos peixes e aos grandes cetáceos. Dizíamos queesses frutos da terra significam e representam alegoricamente as obras demisericórdia, que a terra fecunda produz para as necessidades desta vida. Erasemelhante a uma terra assim o piedoso Onesíforo, cuja casa recebeu a graça detua misericórdia, porque muitas vezes assistira a teu Paulo, sem se envergonharpor suas cadeias.

É o mesmo que fizeram os irmãos que, de Macedônia, lhe forneceram o que lhe eranecessário, produzindo também abundante fruto. E contudo, o Apóstolo se queixade certas árvore que não lhe tinham dado fruto devido, quando escreve: “emminha primeira defesa ninguém me assistiu; todos me abandonaram. Que isto nãolhes seja imputado!” – Tais frutos são devidos aos que nos ministram doutrinaracional, ajudando-nos a compreender os mistérios divinos. E nós lhes devemosexemplos de todas as virtudes; e também lhes devemos os frutos como a pássarosdo céu, por causa das bênçãos que distribuem abundantemente sobre a terra, poissua voz se fez ouvir por toda a terra.

CAPÍTULOXXVI-Odomeofruto

Nutrem-se com esses alimentos os que neles se alegram; não encontram nelesalegria os homens cujo deus é seu ventre. E até entre os que ofertam esses frutos,o fruto não é o que eles dão, mas o espírito com que o oferecem. Por isso, naqueleque servia a seu Deus e não a seu ventre percebo claramente a fonte de suaalegria; e participo fortemente de seu regozijo. Paulo recebera os presentes queos filipenses lhes tinham mandado por intermédio de Epafrodito. Vejo bem a razãode sua alegria. E é dela que se nutria, porque ele diz com verdade: “Alegrei-memuito no Senhor, vendo enfim reflorescer para mim vossa estima, da qual jáandáveis desgostados”.

Eles, de fato, tinham estado realmente aborrecidos e, tornados áridos, nãoproduziam mais o fruto das boas obras; e Paulo se alegra por eles, porque suassimpatias tornaram a florescer, e não por o terem socorrido na sua indigência.

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Porque ele diz em seguida: “Não é por causa das privações que sofro que faloassim: aprendi a me contentar com o que tenho. Sei acomodar-me às privações, esei viver na abundância. Em tudo e por tudo habituei-me à saciedade e à fome, àabundância e à penúria. Tudo posso naquele que me fortalece”.

Qual então o motivo de tua alegria, ó grande Paulo? De onde vem tal júbilo, deque te alimentas, ó homem renovado para o conhecimento de Deus, conforme aimagem de teu Criador, alma viva que possui tal domínio de si, língua alada queexprime os mistérios? É certamente a tais almas que se deve este alimento. O quefoi para ti esse alimento substancioso? A alegria.

Ouçamos o que segue: “Contudo, fizestes bem ao partilhar de minhas tribulações”– Esta é a fonte da alegria, isto é o que o nutre, as boas obras, e não o confortoque aliviou sua miséria. Ele diz:

“Na tribulação dilatastes meu coração” – pois ele aprendeu a viver na abundânciae sofrer as privações, em ti, que o confortas. – “Bem sabeis, filipenses – diz ele –que nos primórdios de minha pregação do Evangelho, quando deixei a Macedônia,nenhuma Igreja me assistiu com seus bens quanto ao dar e receber, com exceçãode vós, que, várias vezes me enviaste, para Tessalônica, com que suprir às minhasnecessidades”. – Alegra-se agora por voltarem à prática de boas ações, felicitando-se por terem eles reflorido como campo fértil e verdejante.

Referia-se por acaso às próprias necessidades quando dizia: “Socorrestes às minhasnecessidades”? – Será este o motivos de sua alegria? Certamente que não. E comoo sabemos?

Porque ele diz em seguida: “Eu não procuro a dádiva, mas o fruto”. – Aprendi de ti,meu Deus, a discernir a dádiva do fruto. O dom é a própria coisa dada por aqueleque acode às nossas necessidades; é o dinheiro, a comida, a bebida, a roupa, umabrigo, e auxílio. O fruto é a vontade boa e reta do doador. O bom Mestre não selimita a dizer: “Aquele que receber um profeta” – mas acrescenta: “Aquele quereceber um justo...” – mas acrescenta: “na qualidade de justo”. – E assim, aquelereceberá a recompensa do profeta, e o outro, a do justo. Ele não diz apenas:

“Aquele que der um copo de água fresca a um de meus pequeninos” – masacrescenta: “na qualidade de discípulo”. – E prossegue: “Na verdade vos digo: estenão ficará sem recompensa”.

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– Dom é receber o profeta, receber o justo, dar um copo de água fresca a umdiscípulo; fruto é fazer isso em consideração de sua qualidade de profeta, de justo,de discípulo. É com este fruto que Elias era alimentado pela viúva: ela sabia quealimentava um homem de Deus, e é por isso que o fazia. Os alimentos, porém, quelhe eram levados pelo corvo, não passavam de dom, e não era o Elias interior, maso Elias exterior que recebia esse alimento, o que poderia morrer se lhe faltasseesse alimento.

CAPÍTULOXXVII-Peixesecetáceos

Por isso, Senhor, direi diante de ti a verdade. Por vezes, ignorantes e infiéis que,para serem iniciados e conquistados para a fé, precisam desses rituais de iniciaçãoe de milagres mirabolantes, simbolizados, a meu ver, pelos peixes e peloscetáceos, acolhem teus servos e os socorrem, ou os auxiliam nas necessidades davida presente, sem saber por que o fazem nem em vista de que devem agir. Dessemodo, nem aqueles os alimentam, nem estes são alimentados por eles, pois osprimeiros não são movidos por vontade santa e reta, e os segundos não sealegram com os dons recebidos, não descobrindo neles fruto algum. Ora, a alma sóse alimenta com o que lhe traz alegria. É esta a razão pela qual os peixes e oscetáceos se nutrem de alimentos que a terra só pode produzir depois de separadose purificados de amargura das águas do mar.

CAPÍTULOXXVIII-Abondadedacriação

Viste, meu Deus, que tudo o que criaste te pareceu excelente. Também nós vemostua criação, e ela nos parece excelente. Para cada espécie de obra criada, disseste:“Faça-se” e quando elas se fizeram, viste que eram boas. Sete vezes está escrito –eu as contei – que viste a excelência de tua obra; e na oitava vez contemplastetoda a criação, e disseste que, no seu conjunto, era não apenas boa, mas muitoboa. Tomadas separadamente, tuas obras eram boas; consideradas em seuconjunto, elas eram boas e até excelentes. O mesmo julgamento se pode fazer dabeleza dos corpos. Um corpo, formado de membros todos belos, é muito maisbonito que cada um desses membros cuja harmoniosa organização forma oconjunto, embora, considerados à parte, também eles tenham sua beleza própria.

CAPÍTULOXXIX-ApalavradeDeuseotempo

Procurei ver com atenção se forma sete ou oito as vezes que constataste abondade de tuas obras quando elas te agradaram. Mas não encontrei uma

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seqüência temporal não tua visão, de onde pudesse deduzir que foi esse o númerode vezes que viste tuas criaturas. Então disse:

“Senhor, não será verdadeira tua Escritura, inspirada por ti, que és a própriaverdade? Por que então me dizes que tua visão das coisas não está sujeita aotempo, enquanto tua Escritura me diz que dia por dia viste a bondade de tuasobras? E calculei quantas vezes o fizeste.”

A isto me respondes, porque és meu Deus, falando com voz forte no ouvidointerior de teu servo, rompendo minha surdez, me exclamas: “Ó homem, o queminha Escritura diz, isto digo eu.

Mas ela fala no tempo, enquanto este não atinge o meu verbo, que permanece emmim, eterno como eu. Assim, o que vês por meu Espírito, sou eu quem o vê; o quedizes por meu Espírito, sou eu quem o diz. Mas o que vês no tempo, eu não vejo notempo; e o que dizes no tempo, eu não digo no tempo.”

CAPÍTULOXXX-Errodosmaniqueus

Ouvi, Senhor, meu Deus, tua voz, e recolhi em meu coração uma gota de doçura detua verdade. Compreendi que há uns aos quais tuas obras desagradam. Elessustentam que muitas delas fizeste constrangido pela necessidade, como aestrutura dos céus, a ordem dos astros; afirmam que não as criaste por ti mesmo,mas que elas já existiam alhures, criadas por outra fonte; que te limitaste a reuni-las, a ordená-las, a entrelaçá-las; que com elas construíste as muralhas do mundo,depois de vencido teus inimigos, para que essa construção os mantivesse cativos, enão mais pudessem se revoltar contra ti; que não criaste nem organizaste outrosseres, como os corpos carnais, os animais pequenos e tudo o que se prende à terrapor meio de raízes; que foi um espírito hostil, uma outra natureza, não criada porti, e que se opõe a ti nas regiões inferiores do mundo, que as gerou e organizou.Esses insensatos falam assim porque não vêem tuas obras através de teu Espírito,nem te reconhecem neles.

CAPÍTULOXXXI-Aluzdoespíritodivino

O oposto sucede aos que vêem tuas obras através de teu Espírito, pois és tu équem as vê neles. Portanto, quando vêem que elas são boas, tu também vês essabondade; em tudo o que lhes agrada por tua causa, tu és que nos agradas, e o quenos agrada através de teu Espírito é em nós que te agrada. Com efeito, quem

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dentre os homens sabe das coisas do homem, senão o espírito do homem que nelehabita? Do mesmo modo o que pertence a Deus ninguém o sabe, a não ser oEspírito de Deus. “Quanto a nós, diz ainda Paulo, não recebemos e espírito destemundo, mas o Espírito de Deus, para que conheçamos os dons que nos vêm deDeus”.

E isto me fez perguntar: Posto que certamente ninguém sabe das coisas de Deus,com exceção do Espírito de Deus, como então nós conhecemos os dons que nos vêmde Deus? Eis a resposta que recebi: As coisas que sabemos por seu Espírito,ninguém as sabe a não ser o Espírito de Deus. É pois justo que foi dito aos quefalavam, inspirados pelo Espírito de Deus: “Não sois vós os que falais” – e aos queobtém seu saber do Espírito de Deus: “Não sois vós os que sabeis”. – E com igualrazão se diz aos que vêem através do Espírito de Deus: “Não sois vós os quevêem”. Assim, em tudo o que vemos de bom pelo Espírito de Deus, não somos nósque vemos, mas Deus.

Por isso, uma coisa é julgar mau o que é bom, como o fazem aqueles de quem faleiacima, e outra coisa é o homem ver o que é bom. Todavia, muitos amam tuacriação porque é boa, mas não tem amam nessa criação; e por isso preferem gozardela que de ti. Há ainda outro caso, quando alguém vê que uma coisa é boa, mas éDeus que nele vê que essa coisa é boa, e é Deus que é amado em sua criação. Elesó o pode ser graças ao Espírito que Deus nos deu, porque o amor de Deus foiderramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Por ele,vemos que tudo o que de algum modo existe é bom, pois recebe seu ser daqueleque é, não de um modo qualquer, mas de modo absoluto.

CAPÍTULOXXXII-Acriação

Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferiordo mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adornodessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda acriação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamentodo céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águasmateriais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu,onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nasnoites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra.Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, oranua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore. Vemosos luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e asestrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a

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cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros,animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o vôo dos pássaros éaumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se deanimais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor detodos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e seassemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana háuma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assima mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui umespírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a colocasob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio daação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos,e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seuconjunto, são muito boas.

CAPÍTULOXXXIII-Amatériaeaforma

Que tuas obras te louvem para que te amemos! Que nós te amemos, para quetuas obras te louvem! Elas têm seu princípio e fim no tempo, seu nascimento emorte, seu progresso e decadência, sua beleza e sua imperfeição. Elas têm,portanto, sucessivamente sua manhã e sua noite, umas oculta; outras,manifestamente.

Foram feitas por ti do nada, não de tua substância, nem de nenhuma substânciaestranha ou inferior a ti, mas de matéria concriada, isto é, criada por ti ao mesmotempo em que lhe deste forma, sem nenhum intervalo de tempo. Sem dúvida amatéria do céu e da terra é uma coisa, e sua forma é outra; a matéria tua a fizestedo nada, a forma, tu a tiraste da matéria informe.

Contudo, criaste uma e outra a um só tempo, de maneira que entre a matéria e aforma não houvesse nenhum intervalo de tempo.

CAPÍTULOXXXIV-Alegoriadacriação

Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tuacriação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras,consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teuVerbo, em teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja,predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã,nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do

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tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens– porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti emvoragens de trevas. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nossocorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dospecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que teeram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em umcorpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse ozelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bensda terra para adquirir os do céu.

Acendeste então os luzeiros no firmamento: teus santos, que possuem a palavrade vida e brilham pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, paradifundir a fé entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dossacramentos os milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavrassagradas, conformes ao firmamento de teu Livro, pelas quais seriam abençoadosteus fiéis. Formaste depois a alma viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bemordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a alma, que não estavasujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridadehumana para imitar, à tua imagem e semelhança; submeteste, como a mulher aohomem, a atividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que a teusministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida, que esses mesmosfiéis propiciassem o necessário para suas necessidades temporais; obras valiosasde caridade, cujos frutos colherão no futuro. Vemos todas essas coisas, e todas sãomuito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos deste o Espírito, para quepor ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas.

CAPÍTULOXXXV-Prece

Senhor Deus, tu que nos deste tudo, concede-nos a paz do repouso, a paz dosábado, a paz do ocaso. De fato, esta formosíssima ordem de coisas muito boas,passará quando atingir o termo de seu destino, e terá sua tarde como teve seuamanhecer.

CAPÍTULOXXXVI-OrepousodeDeus

O sétimo dia, porém, não tem crepúsculo; não entardece porque o santificastepara que se prolongue eternamente. E o repouso de teu sétimo dia, depois de tercriado tantas e tão boas obras, embora sem te causar fadiga, a palavra de tuaEscritura nos anuncia que também nós, depois de nossos trabalhos, que são bonsporque assim nos o concedeste, encontraremos o repouso em ti, no sábado da vida

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eterna.

CAPÍTULOXXXVII-Orepousodaalma

Então também repousarás em nós, como hoje opera em nós; e o repouso de quegozaremos será teu, como as obras que fazemos são tuas. Mas tu, Senhor, sempreestás ativo e sempre estás em repouso. Tu não vês o tempo, não ages no temponem repousas no tempo; todavia, concede-nos que vejamos no tempo,fazes opróprio tempo e o repouso além do tempo.

CAPÍTULOXXXVIII-OdescansodeDeus

Vemos, portanto, as tuas criaturas porque elas existem. Mas elas existem porquetu as vês. Olhando à nossa volta, vemos que elas existem; em nosso íntimo, vemosque são boas. Mas tu já as viste feitas quando e onde viste que deviam ser feitas.Agora somos inclinados a praticar o bem, depois que nosso coração concebeu essaidéia em teu Espírito. Outrora estávamos inclinados ao mal, desertando de ti. Tu,porém, ó Deus, único bem, nunca cessaste de nos fazer o bem. Por tua graça,algumas de nossas obras são boas, mas não são eternas. Esperamos, depois derealizá-las, repousar em tua grande santificação. Mas tu, que não precisas denenhum outro bem, estás sempre em repouso, porque és teu próprio repouso.

Que homem poderá dar ao homem a compreensão desta verdade? Que anjo aoutro anjo?

Que anjo ao homem? É a ti que devemos pedir, e em ti é que a devemos buscar, éà tua porta que devemos bater. E somente assim receberemos, somente assimencontraremos, somente assim se nos abrirá tua porta.

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DEMAGISTRO(DOMESTRE)

CAPÍTULOI-FINALIDADEDALINGUAGEM

AGOSTINHO

– Qual te parece ser nossa intenção quando falamos?

ADEODATO

– Pelo que me acode ao espírito agora, eu diria ou ensinar ou aprender.

AGOSTINHO

– Com uma dessas coisas eu concordo; de fato, é evidente que quando falamosqueremos ensinar; todavia, como aprender?

ADEODATO

– Mas diga-me, pensas que se pode aprender sem perguntar?

AGOSTINHO

– Mesmo neste caso, creio que só queremos ensinar. Diga-me pois, nossasperguntas terão outro motivo que não ensinar o que queremos àquele a quemperguntamos?

ADEODATO

– Dizes a verdade.

AGOSTINHO

– Vês, pois, que nosso propósito ao falar é apenas ensinar.

ADEODATO

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– Para mim ainda não está claro; ora, se falar nada mais é que emitir palavras,também as emitidos ao cantar; às vezes falamos sozinhos, sem um interlocutor quepossa aprender; em tais casos, não creio que pretendamos ensinar algo.

AGOSTINHO

– Creio, contudo, que há certa maneira de ensinar pela recordação, processocertamente valioso, como teremos ocasião de ver em nossa conversação. Ora, seopinas que ao recordarmos não aprendemos, ou que nada ensina aquele querecorda, eu não me oponho; e desde já afirmo que é dupla a finalidade da palavra:para ensinar ou para despertar reminiscências nos outros ou em nós mesmos; eisto ocorre também quando cantamos, concordas?

ADEODATO

– Não, absolutamente, pois é bem raro que eu cante para lembrar-me, mas é bemfreqüente que o faça para deleitar-me.

AGOSTINHO

– Compreendo a tua idéia; mas não percebes que o que te deleita no canto éapenas uma certa modulação do som, que, pelo fato de se poder associar ou não àspalavras, faz com que uma coisa seja o falar e outra o cantar? Na verdade,também com a flauta e a cítara se modulam os sons, cantam também os pássaros,e nós mesmos, às vezes, entoamos um motivo musical sem palavras, o que se podechamar canto, mas não fala; tens alguma objeção a isto?

ADEODATO

– Nenhuma.

AGOSTINHO

– Aceitas, pois, que a palavra só foi instituída para ensinar e recordar?

ADEODATO

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– Poderia concordar, se não me levasse a opinar diversamente o fato de que, aoorarmos, nós sem dúvida falamos, e, certamente não é lícito crer que ensinamosou recordamos algo a Deus.

AGOSTINHO

– Suspeito que não sabes que, se nos foi dito para orarmos em lugares fechados,significando com isso o espaço secreto da alma, o foi porque Deus não quer serlembrado de algo ou ensinado por nossas palavras, para atender a nossos desejos.Quem fala, pois, manifesta exteriormente sua vontade articulando o som: mas nósdevemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais profundo recesso da alma racional, aque se chama o homem interior; quis Ele que fosse este o seu templo. Não leste noApóstolo: “Não sabeis que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus habitaem vós”, e que “Cristo habita no homem interior?” E não atentaste nas palavrasdo Profeta: “Falai dentro dos vossos corações, e nos vossos leitos arrependei-vos;oferecei os sacrifícios da justiça e confiai no Senhor”?

Onde crês que se possam oferecer os sacrifícios da justiça, a não ser no templo damente e no íntimo do coração? Onde se fizer o sacrifício, aí também se há de orar.Por isso, não são necessárias palavras quando oramos, isto é, palavras soantes,exceto, talvez, no caso do sacerdote que exprime em palavras seu pensamento,mas não para que Deus ouça, e sim os homens e, envolvidos na recordação, sejamelevados até Deus. Ou não pensas assim?

ADEODATO

– Concordo plenamente.

AGOSTINHO

– Não te preocupas pois o fato de que o Mestre supremo, ensinando a orar aosseus discípulos, ensinou certas e determinadas palavras, parecendo não ter feitooutra coisa que ensinar as palavras a serem empregadas quando rezamos?

ADEODATO

– Isso não me preocupa absolutamente, pois não lhes ensinou palavras; e sim,pelas palavras, aquilo que deveriam saber quanto a quem e o que haviam de pedir

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na oração, como foi dito, no segredo do coração.

AGOSTINHO

– Entendeste corretamente: creio que também notaste, apesar de nem todosconcordarem que, mesmo sem emitir som algum, nós falamos quandointeriormente articulamos as palavras em nossa mente; assim, com as palavrasque emitimos, o que fazemos é apenas chamar a atenção; entretanto, a memóriadas coisas, à qual as palavras estão associadas, provoca-as e faz com que venham àmente as próprias coisas, das quais as palavras são sinais.

ADEODATO

– Compreendo e concordo contigo.

CAPÍTULO II - O HOMEM MOSTRA O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS SÓPELASPALAVRAS

AGOSTINHO

– Nós concordamos, portanto, em que as palavras são sinais.

ADEODATO

–Concordamos.

AGOSTINHO

– Então, podemos chamar assim a um sinal que nada signifique?

ADEODATO

– Não.

AGOSTINHO

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– Quantas palavras há neste verso: “Si nihil ex tanta superis placet urbe relinqui”?

ADEODATO

– Oito.

AGOSTINHO

– Logo, oito são os sinais.

ADEODATO

– É mesmo.

AGOSTINHO

– Creio que compreendes este verso.

ADEODATO

– Parece-me que sim.

AGOSTINHO

– Dize-me o sentido de cada palavra.

ADEODATO

– Sei o que significa o “si”, mas não encontro um sinônimo para expressar-lhe osignificado.

AGOSTINHO

– Sabes indicar, ao menos, em que campo está seu significado?

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ADEODATO

– Parece-me que o “si” expressa dúvida: mas onde está a dúvida, senão noespírito?

AGOSTINHO

– Por enquanto, aceito; continua.

ADEODATO

– “Nihil” que outra coisa significa senão o que não existe?

AGOSTINHO

– Talvez fales com acerto, porém a afirmação anterior me impede de concordarcontigo: que não existe sinal sem que signifique algo; ora, o nada de modo algumpode ser alguma coisa.

Por isso, a segunda palavra deste verso não seria, pois, um sinal, uma vez quenada significa; e então, teríamos errado ao concordar que todas as palavras sãosinais, ou que todo sinal signifique algo.

ADEODATO

– Estás me apertando demais; observa todavia que, se não tivermos nada paraexpressar, seria sem dúvida tolice proferimos alguma palavra; creio que tu, aofalar agora comigo, nada do que disseste foi inútil, mas que, com os demais sonsque saem da tua boca, ofereces-me sinais para que eu entenda algo; nãoprecisarias ter pronunciado essas duas sílabas ( ni-hil) se elas não significassemalgo. No entanto, se entendes que com elas necessariamente se gera umenunciado e que elas, ao atingir nossos ouvidos, nos ensinam ou lembram algo,logo entenderás o que eu queria dizer, mas não posso explicar.

AGOSTINHO

– Que faremos então? Poderemos afirmar que esta palavra ( nihil), mais do que a

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própria coisa, que não tem existência em si, significa aquele estado da alma que segera quando não se vê a coisa e, no entanto, percebe-se ou se pensa ter percebidoque a coisa não existe?

ADEODATO

– É bem isso que eu procurava explicar.

AGOSTINHO

– Seja lá como for, vamos em frente, para não cairmos no maior absurdo de todos.

ADEODATO

– Qual?

AGOSTINHO

– Que “nada” nos detenha e que, no entanto, a nossa conversa fique parada.

ADEODATO

– De fato é ridículo e, mesmo não atinando como isso pode acontecer, vejoclaramente que já ocorreu.

AGOSTINHO

– Se Deus quiser, no momento oportuno compreenderemos melhor este gênero deabsurdo; agora volta àquele verso e procura mostrar, conforme teu entendimento,o que significam as demais palavras.

ADEODATO

– A terceira, “ex”, é uma preposição, que poderíamos substituir por “de”.

AGOSTINHO

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– Veja, não estou te pedindo que troques uma palavra conhecidíssima por outraigualmente conhecida, de mesmo significado, suposto que signifique o mesmo;contudo, por enquanto, admitamos que seja assim. Certamente, se o poeta, nolugar de dizer “ex tanta urbe”, e eu indagasse o que significa “de”, responderias“ex”, sendo que estas duas palavras, isto é, sinais, têm – como tu crês – o mesmosignificado; eu, porém, busco esta mesma coisa, não sei se una e idêntica, que taissinais significam.

ADEODATO

– Parece-me que signifique a separação de algo do lugar em que estava contido eao qual pensa se pertencer; quer porque essa coisa já não exista, como aconteceneste verso, onde sem existir mais a cidade (de Tróia) subsistiram dela algunstroianos, quer porque permaneça, como ocorre ao afirmarmos haver na África unscomerciantes vindos da cidade de Roma.

AGOSTINHO

– Para admitir que é assim que se passa, não irei enumerar todas as objeções quese poderiam apresentar a essa tua regra; mas facilmente podes perceber queexplicaste palavras com outras palavras, isto é, sinais com outros sinais, coisasconhecidíssimas com outras também conhecidas; porém gostaria que, se te forpossível, me mostrasses as coisas em si, de que tais palavras são os sinais.

CAPÍTULO III - SE É POSSÍVEL MOSTRAR ALGUMA COISA SEM OEMPREGODEUMSINAL

ADEODATO

– É bem estranho que não saibas, ou melhor, que simules não saber, que não épossível obter de mim uma resposta satisfatória ao teu desejo; pelo fato deestarmos conversando, simplesmente não podemos responder senão com palavras.Todavia, indagas de mim coisas que de modo nenhum pode ser consideradaspalavras; e, no entanto, também sobre essas tu me interrogas com palavras.Começa tu a interrogar-me sem palavras, para que depois eu te possa responder àaltura.

AGOSTINHO

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– Admito que tens razão; contudo, se te perguntasse o significado dessas trêssílabas:

“paries” (parede), creio que poderias apontar-me com o dedo, para que eu visse acoisa em si, de que esta palavra de três sílabas é o sinal, demonstrando-a eindicando-a tu mesmo, sem necessitar de palavra alguma.

ADEODATO

– Certamente que se pode fazê-lo, mas só com aqueles nomes que significamcorpos e desde que tais corpos estejam presentes.

AGOSTINHO

– Mas à cor, talvez, podemos chamar corpo, ou, antes, uma qualidade do corpo?

ADEODATO

– Uma qualidade.

AGOSTINHO

– Com que, então, também a cor se pode apontar com o dedo? Ou aindaacrescentas aos corpos suas qualidades, de modo que elas também possam serdemonstradas sem palavras, desde que presentes?

ADEODATO

– Eu, ao falar dos corpos, quis significar tudo o que é corpóreo, isto é, tudo o quenos corpos se percebe.

AGOSTINHO

– Considera, porém, se mesmo nisso não terás de abrir alguma exceção.

ADEODATO

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– A advertência é justa; de fato, não deveria dizer todas as coisas corpóreas, mastodas as coisas visíveis. Admito que o som, o cheiro, o sabor, a gravidade, o calor emuitas outras coisas que recaem sob os outros sentidos, embora não se possamperceber sem que estejam associadas aos corpos, e portanto a estes dizemrespeito, não se podem, todavia, apontar com o dedo.

AGOSTINHO

– Diga-me, nunca viste alguém conversar com os surdos por gestos, e os própriossurdos entrei si também por gestos, perguntam, respondem, ensinam ou indicamtudo o que querem, ou quase tudo? Se é assim, então podemos indicar sempalavras não as coisas visíveis, mas também os sons, os sabores e as outras coisassemelhantes. Também os histriões, nos teatros, expõem sem palavras einterpretam peças inteiras, na maioria das vezes através de mímica.

ADEODATO

– Nada tenho a opor-te, a não ser aquele “ex” (de), não só eu, mas nem mesmo omelhor dos histriões poderia demonstrar-te, sem palavras, o que significa.

AGOSTINHO

– Talvez isto seja verdade, mas vamos supor que ele possa; não duvidascertamente, como creio, que, qualquer que seja o gestual que adote para tentardemonstrar a coisa que é significada por esta palavra, não será a coisa em simesma, porém em seu sinal. Por isso, ele também terá indicado, se não umapalavra com outra palavra, pelo menos um sinal com outro sinal; assim, estemonossílabo “ex” e aquele seu gesto significarão a mesma coisa que eu pedi queme demonstrasses sem sinais.

ADEODATO

– Mas, rogo-te, como é possível o que tu estás pedindo?

AGOSTINHO

– Do mesmo modo que o foi para a parede.

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ADEODATO

– Mas também esta, pelo desenvolvimento do nosso raciocínio, não pode serindicada sem sinal. Pois o ato de apontar o dedo certamente não é a parede em si,mas apenas um dos possíveis sinais, por meio de que a parede pode ser observada.Não vejo, portanto, nada que possa ser indicado sem sinais.

AGOSTINHO

– Se, porém, te perguntasse o que é caminhar, e tu te levantasses e fizessesaquela ação, não usarias da própria coisa para ensinar-me, em vez de usarpalavras ou outros sinais?

ADEODATO

– Admito que assim é, e tenho pejo de não ter observado coisa tão evidente, queme traz à memória milhares de coisas, indicativas por si mesmas, e não pelossinais com que as mostramos, como sejam: comer, beber, estar sentado, ficar depé, gritar e inúmeras coisas.

AGOSTINHO

– E dize-me então: se eu desconhecesse o significado da palavra e te perguntasse,enquanto caminhas, o que é caminhar, como mo explicaria?

ADEODATO

– Continuaria o mesmo ato de caminhar, mas um pouco mais depressa, para que anovidade introduzida despertasse a atenção; e, todavia, não teria feito coisadiversa do que pretendia te mostrar.

AGOSTINHO

– Não sabes pois que uma coisa é caminhar e outra é andar depressa?

Ora, caminhar não é o mesmo que andar depressa, e quem anda depressa, nãoquer dizer que caminhe: ainda mais que podemos meter pressa no ler, no escrever,

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e em muitíssimas outras coisas. Por isso, se após minha indagação fizesses maisdepressa o que fazia antes, eu seria induzido a crer que caminhar outra coisa não édo que se apressar, uma vez que a novidade introduzida foi a pressa, e eu com istoseria levado a engano.

ADEODATO

– Confesso que não é possível prescindir de sinais, se formos inquiridos no curso daação; pois, se nada for acrescentado à ação que estamos realizando, nossointerlocutor poderá supor que não queremos responder-lhe, ignorando-o,continuamos a nossa ação. Mas se alguém nos indagar de coisas que podemosfazer, não enquanto as fazemos, podemos mostrar-lhe a própria coisa fazendo-a,antes que com um sinal, em resposta ao que ele pergunta. A não ser que ele mepergunte, enquanto falo, o que é falar: porque qualquer coisa que lhe disser paraexplicar-lhe isso, sempre o farei falando; e falarei para ensiná-lo até que lhe fiqueperfeitamente claro o que desejava saber, sem afastar-me da própria coisa quedesejava demonstrar, nem procurar sinais com que demonstrá-la.

CAPÍTULOIV-SEOSSINAISSEMOSTRAMCOMSINAIS

AGOSTINHO

– Argumentas com agudeza, e por isso considera a possibilidade de convir entrenós que se possam mostrar sem sinais as ações que não estão em curso quando dapergunta, mas que podemos fazer logo em seguida; ou as que fazemos desde queas ações nada mais sejam do que os próprios sinais. Pois, quando falamos,emitimos sinais, donde se gera a palavra “significar”

(fazer sinais – signa facere).

ADEODATO

– É possível convir.

AGOSTINHO

– Portanto, ao discutirmos sobre os sinais, se podem mostrar uns sinais por meiode outros; mas quando falamos das coisas em si, que não são sinais, não se podem

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mostrar senão fazendo-o logo após a pergunta – se for possível – ou dando algumsinal pelo qual possam ser compreendidas.

ADEODATO

– Exatamente.

AGOSTINHO – Nessa tríplice possibilidade, vamos primeiro considerar, se quiseres,o caso em que se mostram sinais com sinais; diga-me, as palavras sozinhas sãosinais?

ADEODATO

– Não.

AGOSTINHO

– Parece-me, portanto que, ao falarmos, usamos as palavras para significar ou aspalavras em si, ou bem outros sinais, como seria o gesto associado à fala, ou asletras que usamos na escrita; porque o que indicamos com estes dois vocábulos(gesto e letra) ou são sinais em si mesmos ( o próprio gesto e as próprias letras),ou algo que não é sinal, como quando dizemos “pedra”. Esta palavra, pois, é umsinal enquanto representa algo, mas a coisa indicada não é um sinal. Este gênerode palavras que representam coisas que não são sinais, não pertence, porém, àparte que nos propomos discutir. De fato, nós nos propomos considerar o caso dossinais que são expressos por sinais, e no caso distinguimos dois aspectos: ou seensinam e recordam os mesmos sinais, ou outros sinais diferentes. Não te parece?

ADEODATO

– Está claro.

AGOSTINHO

– Dize-me, então: os sinais que são palavras sob qual sentido recaem?

ADEODATO

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– O ouvido.

AGOSTINHO

– E o gesto?

ADEODATO

– A vista.

AGOSTINHO

– Como? Por acaso, as palavras escritas, não serão também palavras? Ou, para serexato, não serão entendidas como sinais de palavras, sendo a palavra o que seprofere, com certo significado, articulando a voz? Mas a voz só pode ser percebidapelo sentido do ouvido; disso resulta que, quando se escreve uma palavra,apresenta-se um sinal aos olhos, que suscita na mente o que será percebido com oouvido.

ADEODATO

– Concordo plenamente.

AGOSTINHO

– Creio que também concordarás em reconhecer que quando dizemos “nome”queremos significar algo.

ADEODATO

– É verdade.

AGOSTINHO

– Mas o que, afinal?

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ADEODATO

– Naturalmente aquilo cujo nome se profere, como Rômulo, Roma, virtude, rio eincontáveis coisas.

AGOSTINHO

– Estes quatro nomes significam alguma coisa?

ADEODATO

– Sim, algumas coisas.

AGOSTINHO

– Achas que há diferença entre estes nomes e as coisas que eles significam?

ADEODATO

– Muitíssima.

AGOSTINHO

– Gostaria de ouvir de ti qual é esta diferença.

ADEODATO

– Em primeiro lugar, estes são sinais e aquelas não o são.

AGOSTINHO

– Concordas em que chamemos de “significáveis” as coisas que podem serexpressas pelos sinais, e não são sinais em si mesmas, assim como chamamos de“visíveis” as que podem ser vistas, para depois discutirmos sobre elas maiscomodamente?

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ADEODATO

– Concordo.

AGOSTINHO

– E os quatro sinais que antes proferiste podem ser significados por qualquer outrosinal?

ADEODATO

– Admira-me que penses eu ter esquecido aquilo que ficou assentado, isto é: queas letras escritas são sinais de sinais, ou seja, sinais dos sons que a voz articula.

AGOSTINHO

– Que diferença há entre eles?

ADEODATO

– Aquelas (as letras escritas) são visíveis, e estes (os sons articulados pela voz),audíveis. Terás alguma dificuldade em aceitar este adjetivo, “audíveis”, uma vezque admitimos “significáveis”?

AGOSTINHO

– Certamente que o aceito, e com agrado. Contudo, ainda pergunto se essesquatro sinais podem ser expressos por algum outro sinal audível, como lembrasteacontecer com os visíveis.

ADEODATO

– Sim, isto também foi mencionado há pouco. Por isso respondi que o nomesignifica algo, e ao significado associei esses quatro nomes; e aqueles e estes,posto que se proferem com a voz, reconheço serem audíveis.

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AGOSTINHO

– Qual é pois a diferença, entre o sinal audível e as coisas audíveis que significaque, por sua vez, também são sinais?

ADEODATO

– Entre o nome e estas quatro coisas que associamos ao seu significado, parece-mehaver esta diferença: o nome é sinal audível dos sinais audíveis, enquanto ascoisas audíveis são também sinais audíveis, mas não de sinais audíveis, e sim decoisas em parte também visíveis, como Rômulo, Roma, rio e em parte inteligíveis,como virtude.

AGOSTINHO

– Aceito e concordo; mas sabes que é a palavra tudo aquilo que é proferido com avoz e que traz em si algum significado?

ADEODATO

– Sei.

AGOSTINHO

– Logo, o nome também é palavra, pois é proferido articulando a voz e tem umsignificado; e se afirmamos que um homem eloqüente utiliza palavras apropriadas,sem dúvida queremos dizer que usa nomes. Portanto, quando, em Terêncio, oescravo fala ao velho patrão: “Rogo que digas boas palavras”, entende “nomes”.

ADEODATO

– Concordo.

AGOSTINHO

– Gostaria que me respondesses também a isto: vimos ser a palavra sinal do nomee o nome sinal do rio e o rio sinal de uma coisa visível, e como reconheceste a

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diferença entre esta coisa e o rio, isto é, o seu sinal, e entre este sinal e o nomeque é sinal deste sinal, qual julgas que seja a diferença entre o sinal do nome quedissemos ser a palavra e o mesmo nome de que ela é sinal?

ADEODATO

– Julgo que a diferença seja a seguinte: o que é significado com o nome ésignificado também com a palavra; como, pois, nome é palavra, assim também rioé palavra; mas nem tudo o que é significado com a palavra o é pelo nome.Também aquele “si” (se) que principia o verso que propuseste, e aquele “ex” (de)do qual tratamos tão longamente, arrazoando até chegarmos à presente questão,são palavras, mas não nomes, e podemos encontrar inúmeros exemplos comoestes. Pois, como todos os nomes são palavras, mas nem todas as palavras sãonomes, julgo estar clara a diferença entre a palavra e nome, isto é, entre o sinaldaquele sinal que não significa nenhum outro sinal e o sinal daquele sinal que podesignificar outros.

AGOSTINHO

– Concedes que todo cavalo é animal, mas nem todo animal é cavalo?

ADEODATO

– Haverá como duvidar?

AGOSTINHO

– Pois bem, entre nome e palavra existe a mesma relação que há entre cavalo eanimal. A menos que discordes pelo fato de que por “verbum” , além de “palavra”,pode-se entender “verbo”, isto é, aquela parte do discurso que descreve ação e sedeclina, como “escrevo”, “escrevi”, “leio”, “li”, o que obviamente não são nomes.

ADEODATO

– Acabas de esclarecer o que me suscitava dúvidas.

AGOSTINHO

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– Isto não deve preocupar-te. Na verdade, em geral, chamamos sinais a tudo o quecontém um significado, dentre os quais encontramos também as palavras. Aindachamamos sinais (insígnias) às bandeiras militares, que são sinais propriamenteditos, o que não se poderia afirmar das palavras. Todavia, se te dissesse que todocavalo é animal, mas nem todo animal é cavalo, assim como toda palavra é sinal,mas nem todo sinal é palavra, creio que não restaria dúvida alguma.

ADEODATO

– Entendo sim, e concordo plenamente, que entre “palavra” tomada em sentidogeral de

“nome” existe a mesma diferença que há entre animal e cavalo.

AGOSTINHO

– Sabes também que, quando dizemos animal, este nome trissílabo, que a vozprofere, não é a mesma coisa que com ele se significa?

ADEODATO

– Já concordamos sobre isto há pouco, a respeito de todos os sinais e de todos ossignificáveis.

AGOSTINHO

– Não te parece que todos os sinais significam uma coisa distinta deles próprios,pois ao pronunciarmos este trissílabo – animal – de modo algum significaremosaquilo que ele mesmo é?

ADEODATO

– Não, certamente; pois quando dizemos sinal, este significa todos os outros sinais,quaisquer que sejam, incluindo a si mesmo também, pois é uma palavra, e, comovimos, todas as palavras são sinais.

AGOSTINHO

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– E quando proferimos o dissílabo “verbum” (palavra), não acontece algosemelhante?

Pois, se tudo o que proferimos com algum significado é também significado poreste dissílabo, ele também está incluído no gênero dos sinais.

ADEODATO

– Assim é.

AGOSTINHO

– E não é assim também para “nome”? Este, pois, significa os nomes de todos osgêneros, e “nome” mesmo é de gênero neutro. Ou, se te perguntasse que parte daoração é nome, não poderias responder-me acertadamente dizendo “nome”?

ADEODATO ]

– Poderia.

AGOSTINHO

– Portanto, há sinais que, entre as outras coisas que significam, significam tambéma si mesmos.

ADEODATO

– Há.

AGOSTINHO

– Quando dizemos “coniunctio” (conjunção), julgas que este sinal quadrissílabopossa ser um daqueles?

ADEODATO

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– Certamente que não; porque as coisas que significa não são nomes, enquanto eleé um nome.

CAPÍTULOV-SINAISRECÍPROCOS

AGOSTINHO

– Raciocínio correto; vejamos agora se é possível encontrar sinais que sesignifiquem reciprocamente, tais que, assim como este significa aquele, tambémaquele signifique este; e não me parece ser o caso entre aquele quadrissílabo“conjunctio” e as coisas que este significa, tais como: “si” (se), “vel” (ou), “nam”(pois), “namque” (e pois), “nisi” (se não), “ergo” (logo), “quoniam” (́ porque) e outrassemelhantes, porque aquela palavra sozinha significa todas estas, mas não hánenhuma entre estas que signifique aquele quadrissílabo.

ADEODATO

– Compreendo, e gostaria de saber quais os sinais que se significamreciprocamente.

AGOSTINHO

– Sabes, então, que, quando dizemos “nome” e “palavra”, dizemos duas palavras?

ADEODATO

– Sei, sim.

AGOSTINHO

– E não sabes que, quando dizemos “nome” e “palavra”, dizemos dois nomes?

ADEODATO

– Também sei.

AGOSTINHO

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– Portanto, sabes que tanto o nome pode ser significado com a palavra,quanto apalavra com o nome.

ADEODATO

– Concordo.

AGOSTINHO

– E podes dizer-me, salvo a diversidade de escrita e de pronúncia, em que diferementre si?

ADEODATO

– Talvez possa, pois parece-me tratar-se do mesmo caso de que falei há pouco. Defato, quando dizemos “palavra”, entendemos tudo o que proferimos com algumsignificado; assim, todo nome, e ainda o próprio termo “nome”, é uma palavra,mas nem toda palavra é nome, embora quando dizemos “palavra” entendemos“nome”.

AGOSTINHO

– E se alguém afirmasse e demonstrasse que, assim como cada nome é palavra,também cada palavra é nome, poderias ainda determinar sua diferença, afora odiverso som da sua pronúncia?

ADEODATO

– Creio que não poderia, e julgaria não haver diferença alguma.

AGOSTINHO

– Como? Se tudo o que proferimos, com algum significado, tanto são palavrascomo nomes e, contudo, por certas razoes, são palavras e, por outras razões sãonomes, não haverá entre nome e palavra distinção alguma?

ADEODATO

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– Não compreendo como isto possa se dar.

AGOSTINHO – Isto certamente entendes: tudo o que é “colorido” é visível e tudo oque é visível é “colorido”, apesar de estas duas palavras significarem coisasdistintas e separadas.

ADEODATO

– Entendo.

AGOSTINHO

– E porventura será difícil admitir que do mesmo modo toda palavra é nome etodo nome é palavra, embora estes dois termos “nome” e “palavra” tenhamsignificado diferente?

ADEODATO

– Percebo que isto pode acontecer, mas espero que me mostres como istoacontece.

AGOSTINHO

– Creio que reparaste que tudo o que nossa voz profere com algum significado fereo ouvido onde é percebido, e daí é enviado à memória para ficar conhecido.

ADEODATO

– Sim, reparo.

AGOSTINHO

– Acontecem, portanto, duas coisas quando falamos algo.

ADEODATO

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– Assim é.

AGOSTINHO

– Aceitarias que por uma destas qualidades fosse chamadas palavras (“verba” de“verberare” : percutir, bater) e pela outra nomes (“nomina”, de “nosco” :conhecer)? E o primeiro termo assim se chamasse por causa do ouvido, e osegundo, por causa do espírito?

ADEODATO

– Concordarei assim que me tiveres demonstrado que podemos, com acerto,chamar nomes a todas as palavras.

AGOSTINHO

– Será fácil, pois creio que aprendeste e recordas que se chama “pronome” aquiloque está em lugar do nome, ainda que denote a coisa com menor intensidade queo nome. Parece-me que foi assim que o definiu o gramático que mencionaste:“Pronome é uma parte da oração que, usada no lugar do nome, significa a mesmacoisa que este, porém menos plenamente”.

ADEODATO

– Lembro-me e concordo.

AGOSTINHO

– Vemos portanto que, de acordo com esta definição, os pronomes se referem sóaos nomes, e só podem ser empregados no lugar destes, como quando se diz: estehomem, o mesmo rei, a mesma mulher, esse ouro, aquela prata ; os termos “este”,“mesmo”, “mesma”, “esse”, “aquela” são pronomes, “homem”, “rei”, “mulher”,“ouro”, “prata” são nomes que, mais plenamente que os mesmos pronomes,significam as coisas.

ADEODATO

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– Percebo e estou de acordo.

AGOSTINHO

– Enuncia-me agora algumas conjunções, as que quiseres.

ADEODATO

– “E” ( et), “também” ( que), “mas” ( at), “senão” ( atque).

AGOSTINHO

– Tudo o que disseste parece ser nome?

ADEODATO

– De maneira alguma.

AGOSTINHO

– Mas ao menos julgaste que eu falei bem dizendo: “tudo isso”, “tudo o que”disseste?

ADEODATO

– Completamente correto; e compreendo, quão admiravelmente me demonstrasteque enunciei nomes, pois se assim não fosse não se poderia dizer: “tudo isto” ( haecomnia), como se poderia dizer com acerto “todas estas palavras” ( haec omniaverba). Todavia, se me perguntares a que parte da oração pertence “palavra”,responderei que é um nome. Eis a razão de, a este nome, acrescentares opronome, para que a tua frase estivesse correta.

AGOSTINHO

– Sem dúvida estás enganado, embora demonstres certa agudeza. Para desfazer oengano, presta mais atenção ao que vou dizer, posto que eu consiga dizê-lo como

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quero, pois falar sobre palavras com palavras é tão complicado como entrelaçar osdedos e assim tentar coçá-los, quando apenas quem os mexe pode distinguir osdedos que têm comichão dos que ajudariam a acalmar-lhe o prurido.

ADEODATO

– Eis-me aqui todo ouvidos e atenção, pois a comparação despertou-me profundointeresse.

AGOSTINHO

– As palavras resultam certamente de som e de letras.

ADEODATO

– Assim é, de fato.

AGOSTINHO

– Ora, lançando mão de uma autoridade que nos é caríssima, quando o ApóstoloPaulo diz: “Não havia em Cristo o sim e o não, mas somente havia nele o sim”, nãocreio que seja o caso de pensar que as três letras que pronunciamos dizendo “sim”( est) existissem em Cristo mas, antes, o que estas três letras significam.

ADEODATO

– Entendo e acompanho-te.

AGOSTINHO

– E compreendes com certeza que não há diferença entre dizer: “se chama virtude”ou “se nomeia virtude”.

ADEODATO

– É claro.

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AGOSTINHO

– Assim é, pois, igualmente claro não haver diferença se alguém disser: “o quehavia nele (em Cristo) se chama “sim” ou se nomeia “sim” .

ADEODATO

– Percebo que aqui também não há diferença.

AGOSTINHO

– E já vislumbraste aonde quero chegar?

ADEODATO

– Ainda não.

AGOSTINHO

– Não percebes que nome é aquilo com que se nomeia uma coisa?

ADEODATO

– Não há para mim coisa mais clara.

AGOSTINHO

– Então notas que “est” (é – sim) é nome, se o que havia em Cristo se chama “est”(é – sim).

ADEODATO

– Não há como negá-lo.

AGOSTINHO

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– Mas se indagasse a que parte do discurso pertence “est” (é – sim), creio que nãoresponderias “nome”, mas “verbo”, embora o raciocínio tenha demonstrado que étambém nome.

ADEODATO

– É exatamente como dizes.

AGOSTINHO

– Poderás ainda duvidar que também as outras partes da oração sejam nomes,como demonstraremos no caso do verbo “est” ?

ADEODATO

– Não duvido, pois percebo que significam algo; mas se me perguntares a respeitodas próprias coisas que elas significam, isto é, como cada uma, individualmente, sechame ou nomeie, só poderei responder com aquelas partes da oração que nãochamamos de nomes, mas que, ao que parece, deveríamos chamar palavras?

AGOSTINHO

– Nem se preocupa que o nosso arrazoado possa ser abalado pela afirmação que sedeve atribuir ao Apóstolo autoridade de doutrina, mas não de palavras, e que,portanto, as bases de nossa persuasão não são tão firmes como parecia? E podeser que Paulo, embora tenha vivido e ensinado retissimamente, não tenha faladocom igual exatidão quando disse: “o sim era nele” (em Cristo); tanto mais que elemesmo confessa inepto na arte de falar? Como julgas que se possa refutar talobjeção?

ADEODATO

– Não saberia o que responder, e rogo-te que procures um dos que são tidos comoautoridades máximas na arte da palavra, para esclarecer o que desejas.

AGOSTINHO

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– Parece-te, pois, que a razão por si só, sem o aval da autoridade, não bastariapara demonstrar que todas as partes da oração tem um significado e que, por isso,cabe-lhes uma denominação; ora, se se chamam, também se nomeiam, e, se senomeiam, terão de nomear-se com um nome; o que se vê facilmente comparandodiversas línguas. Pois é evidente que se perguntarmos como os gregos nomeiam oque nós nomeamos “quis” (quem), nos responderiam tis; como nomeiam o que nósnomeamos “bene” (bem), eles kalõs; o que nós nomeamos “scriptum” (escrito), elesto gegrammenon; o que nós “et” (e), eles kaí; o que nós “ab” (por, de), eles, ápò oque nós “heu” (ai), eles oi; e quanto a todas estas partes da oração que enumerei,estaria certo quem fizesse a pergunta: seria possível isto se não fossem nomes?Podemos demonstrar, mediante este processo, que o apóstolo Paulo faloucorretamente, sem apelar para a autoridade de outros oradores: que necessidadehá, pois, de procurarmos em outros o apoio para a nossa opinião?

– Mas se houver alguém tão tardo ou tão teimoso que não ceda e teime não cedersem a autoridade daqueles autores, aos quais o consenso geral atribui as regrasda arte de falar, quem se poderia encontrar na língua latina mais exímio do queCícero? Ora, nas suas nobilíssimas orações, apelidadas “verrinas”, ele chama“nome” ao termo “coram” (diante de), embora naquela passagem possa sertomado como preposição ou como advérbio. Mas, como poderia ocorrer que eunão esteja compreendendo bem aquela passagem, que poderia ser interpretadadiversamente por outrem, vou citar um caso a que não creio se possa fazerobjeção alguma. Os mais renomados mestre de dialética afirmam que uma frasecompleta é formada pelo nome e pelo verbo, quer seja afirmativa ou negativa; oque Túlio (Cícero), em certa passagem, denomina enunciado ou proposição. Quandoo verbo está na terceira pessoa, dizem que o caso do nome deve ser o nominativo,e está certo; e se, quando dizemos: “O homem senta, o cavalo corre”, examinares oque ficou dito, reconhecerás, segundo julgo, que ocorrem aí duas proposições.

ADEODATO

– Reconheço-o.

AGOSTINHO

– Observas que em cada proposição há um nome – na primeira, “homem”, e nasegunda,

“cavalo” – e que está associado a um verbo, “senta” e “corre” respectivamente?

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ADEODATO

– Percebi.

AGOSTINHO

– Ora, se eu dissesse apenas “senta” ou “corre”, com toda a razão me perguntariasquem ou o que eu responderia “homem”, ou “cavalo”, ou “animal”, ou qualqueroutra coisa que ligasse o nome referido ao verbo para completar o enunciado, istoé, a proposição, que poderia ser afirmativa ou negativa.

ADEODATO

– Compreendo.

AGOSTINHO

– Suponhamos agora que estamos vendo algo bem distante e não distinguimos sese trata de um animal, de uma pedra ou de outra coisa, e que eu afirmasse:“porque um homem, é (também) animal”, não faria eu uma afirmação temerária?

ADEODATO

– Muito temerária, mas não o seria se dissesses: “Se é um homem, é um animal”.

AGOSTINHO

– Dizes o certo. Portanto, na tua frase o “se” satisfaz a mim e a ti; e, ao contrário,aos dois desagrada o “porque” da minha.

ADEODATO

– Concordo.

AGOSTINHO

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– Observa agora se estas duas proposições, “se satisfaz”, e “porque desagrada”,estão completas.

ADEODATO

– Completas, certamente.

AGOSTINHO

– Vamos, diga-me então quais são os verbos e quais os nomes.

ADEODATO

– Vejo que os verbos são “satisfaz” e “desagrada”, e os nomes, quais outroshaveriam de ser senão “se” e porque”?

AGOSTINHO

– Logo, está suficientemente demonstrado que estas duas conjunções também sãonomes.

ADEODATO

– Sim, suficientemente.

AGOSTINHO

– E poderias por ti mesmo, seguindo esta regra, demonstrar a mesma coisa nosconfrontos das demais partes da oração?

ADEODATO

– Poderia.

CAPÍTULOVI-SINAISQUESIGNIFICAMASIMESMOS

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AGOSTINHO

– Vamos em frente, e diga-me se te parece que, assim como concordamos quetodas as palavras são nomes, e todos os nomes, palavras, também te parece quetodos os nomes são vocábulos e todos os vocábulos nomes.

ADEODATO

– Não encontro entre eles outra diferença senão a do som das sílabas.

AGOSTINHO

– Por enquanto, aceito, embora não faltem os que vêem entre eles diferença designificado, o que não vem ao caso discutirmos agora. Porém, com certezacompreendes que chegamos àqueles sinais que tem significado recíproco, semoutra diferença que a do som, e àqueles que significam a si mesmos junto com asdemais partes da oração.

ADEODATO

– Por ora não entendo.

AGOSTINHO

– Não compreendes então que “nome” significa “vocábulo” e “vocábulo” “nome”, eque assim – além do seu som – não há outra diferença entre eles quanto ao nomeem geral; mas que, quanto a ser nome em particular, trata-se de uma das oitospartes da oração, sem que naturalmente inclua as outras sete.

ADEODATO

– Compreendo.

AGOSTINHO – Contudo, era isso mesmo que estava dizendo quando afirmava quevocábulo e nome significam-se reciprocamente.

ADEODATO

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– Entendo, mas o que querias dizer com as palavras “significam a si mesmos juntocom as demais partes da oração”?

AGOSTINHO

– Acaso a discussão anterior não nos provou que todas as partes da oração podemchamar-se tanto nomes como vocábulos, isto é, podem ser significadas pelostermos de “nome” e de “vocábulo”?

ADEODATO

– Certamente.

AGOSTINHO

– Se te indagasse como chamas o nome em si mesmo, isto é, o som expresso porestas duas sílabas, seria correto me responder “nome”?

ADEODATO

– Seria correto.

AGOSTINHO

– E significará a si mesmo, talvez, o sinal com quatro sílabas, quando proferimos

“coniunctio” (conjunção)? Não; porque este termo não pode ser incluído entre ascoisas que significa.

ADEODATO

– Compreendo perfeitamente.

AGOSTINHO

– E foi isso que antes afirmamos: que o nome significa a si mesmo tanto quanto os

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outros nomes que significa; o que podes chamar também do “vocábulo”.

ADEODATO

– Sim, está fácil; agora porém me ocorre que o termo “nome” pode ser tomado emsentido geral ou particular, enquanto “vocábulo”, ao contrário, não é uma das oitopartes da oração; parece-me, pois, que os dois termos são diferentes não só pelosom, mas também por isso.

AGOSTINHO

– Acreditas que

“nomem” (nome) e “ónoma” (nome) tenham algo mais diferente que o som, quetambém distingue a língua grega da latina?

ADEODATO

– Neste caso, sinceramente, nada mais encontro.

AGOSTINHO

– Chegamos, então, àqueles sinais que, além de significantes a si mesmo, cominteira reciprocidade um significa o outro, ou seja, os seus significadosmutuamente se significam. Assim, o que este significa também aquele significa evice-versa, tendo por diferença entre si apenas o som; este quarto caso, nós oencontramos agora: os três anteriores referem-se a “nome” e “palavra”.

ADEODATO

– Chegamos.

CAPÍTULOVII-RESUMODOSCAPÍTULOSANTERIORES

AGOSTINHO

– Desejaria que fizesses um resumo do que apuramos em nossa discussão.

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ADEODATO

– Farei o que puder. Antes de mais nada, lembro que por certo tempo indagamosda razão por que se fala, e achamos que se fala para ensinar ou para recordar.Pois, mesmo quando interrogamos, nada mais pretendemos do que fazer saber aointerlocutor o que dele queremos ouvir. Depois vimos que, ao cantar, o som queemitimos apenas por prazer não pertence propriamente à locução; e quando naoração nos dirigimos a Deus, a quem não se pode ensinar ou recordar algo, o valordas palavras está em admoestar a nós mesmos ou, mediante nós, admoestar einstruir aos outros. A seguir, após teres demonstrado o bastante que as palavrasnada mais são do que sinais e que não pode existir sinal que não tenha significado,propuseste-me um verso, de cujas palavras busquei explicar o significado, uma poruma, o verso era: “Si nihil ex tanta superis placet urbe relinqui”. Sua segundapalavra (nihil), apesar de familiar a todos, não conseguimos, todavia, encontrar oque significava, pois parecia a mim que nós não a empregamos inutilmentedurante a fala, mas para transmitir algo a nosso ouvinte; isto é, parecia-me queesta palavra indicasse, talvez, o estado da mente quando acha que não existe acoisa que procura ou que julga tê-la achado; e tu evitaste com uma brincadeiraaprofundar não sei como a questão, adiando para outra ocasião o esclarecimento.Não julgues, porém, que eu esqueça dessa tua dívida comigo. Depois, quando eubuscava explicar a terceira palavra do verso, me convidaste a indicar não outrapalavra equivalente mas, pelo contrário, a mostrar a própria coisa que a palavrasignifica. Respondi, em nossa conversação, que isto não seria possível, econsideramos aquelas coisas que podem ser apontadas aos nossos interlocutores.Pensava eu que isso fosse possível com todas as coisas corpóreas, mas depoisachamos que o seria apenas com as visíveis. Daí passamos, não lembro como, aossurdos e aos histriões, observando que exprimem pelo gesto sem voz, não só ascoisas visíveis, mas muitas outras e quase todas as que expressamos com palavras,e conviemos que os gestos também são sinais. Voltamos pois a indagar se seriapossível indicar, sem empregar sinal algum, as mesmas coisas que indicamos porsinais, sendo aquela parede, aquela cor e tudo o que é visível e que é indicadopelo gesto, devemos convir que é sempre indicado por certo sinal. Nisso eu meenganei e respondi que não poderíamos achar nada disso, e, todavia, ficou assenteentre nós que seria possível mostrar, sem sinais, aquilo que nós não fazemos nomomento da pergunta, mas que podemos fazer depois de interrogados; a locução,porém, não se enquadra nisto, pois quando falamos, se alguém nos perguntar oque é falar, demonstra-se facilmente por si mesmo: falando.

– Com isso ficou estabelecido que: ou se mostram sinais com sinais ou, com sinais,indicam-se coisas que o não são; ou então, sem sinais podemos mostrar as coisas

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que podemos fazer depois de interrogados. Desses três casos, consideramos ediscutimos com mais detalhes o primeiro. Por esta discussão, ficou esclarecido queexistem sinais que não podem, por seu turno, receber significado pelos sinais queeles significam, como ocorre no caso do quadrissílabo “coniunctio” (conjunção); aopasso que existem outros que o podem, como no caso de “sinal”, e entendemos quesignifica também “palavra”, pois sinal e palavra são dois sinais e duas palavras(sinal-palavra, palavra-sinal). Neste caso em que os sinais tem significado mútuo,demonstramos também que uns não têm o mesmo valor, outros o têm igual, eoutros finalmente são idênticos.

Assim, quando pronunciamos o dissílabo “sinal”, certamente nos referimos a todosos sinais que podem indicar ou significar uma coisa; mas, se dizemos “palavra”,esta não se refere a todos os sinais, mas apenas aos que se pronunciamarticulando a voz. Donde ficou claro que embora “palavra” seja indicada com umsinal, e “sinal” (signun) com “palavra” (verbum); isto é; estas duas sílabas poraquelas e aquelas por estas – todavia, “sinal” vale mais que “palavra”, porqueaquelas duas sílabas (sinal) têm sentido mais amplo que estas (palavras). Porém“palavra” em geral e “nome” em geral, têm o mesmo valor. Pelo raciocínio, vimosque todas as partes da oração também são nomes, sendo que a todas podemossubstituir pelo pronome e de todas podemos dizer que “nomeiam” algo, e todaselas formam, se lhe acrescentarmos o verbo, uma proposição ou um enunciadocompleto. Mas, apesar de “nome” e “palavra” terem o mesmo valor, pois tudo oque é “palavra” é “nome”, entretanto não são idênticos. Observamos, em nossadiscussão, com muita probabilidade, que a razão por que se diz “verba” (palavras)difere da outra por que se diz

“nomina” (nomes). “Verba” diz respeito à percussão (verberatio) do ouvido, e“nomina” ao conhecimento (commemoratio: notio, noscere) do espírito; por isso, écorreto dizer qual é o “nome” desta coisa desejando gravá-la na memória, e nãousamos, ao contrário, “palavra”. Entre os sinais que não têm o mesmo valor, massão completamente idênticos, diferenciando-se só pelo som das letras,encontramos “nomen” (nome) e ónoma (nome).

Quanto a esse gênero de sinais com significado recíproco, entendi que nãoencontramos nenhum sinal que, além de significar os outros, não significassetambém a si mesmo.

Eis tudo o que pude recordar. Tu, que, nesta discussão, apenas falaste sabendo etendo a certeza, poderás avaliar se meu resumo está correto e ordenado.

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CAPÍTULO VIII - NÃO SE DISCUTEM INUTILMENTE ESTAS QUESTÕES.ASSIM,PARARESPONDERÀQUELEQUEINTERROGA,DEVEMOSDIRIGIRA MENTE, DEPOIS DE PERCEBER OS SINAIS, ÀS COISAS QUE ESTESSIGNIFICAM

AGOSTINHO

– Certamente resumiste com acerto tudo o que eu queria, e devo admitir queestas argumentações me parecem mais claras agora do que quando, disputandoem nossas indagações, as tirávamos de não sei que esconderijos. Contudo, aondequero te levar por meio de tantas voltas e rodeios é difícil dizer neste momento.Talvez julgues que foi mero divertimento, ou que nos afastamos das coisas seriascom questões menores, buscando nisso, quando muito, uma utilidade por pequenae medíocre que seja; ora, se estas discussões tivessem que gerar algo de grandeou importante, seria bom que o soubesses agora, ou, ao menos, ter disto umvislumbre.

Todavia, eu gostaria que, antes de mais nada, não julgasses eu ter feito contigouma brincadeira inoportuna; embora às vezes usando de tom jocoso, a minhabrincadeira jamais deverá ser tida como infantil, pois eu nunca visei benspequenos ou medíocres. No entanto, se te dissesse que era precisamente a eternabem-aventurança para onde, com a ajuda de Deus, isto é, da própria verdade,pretendia conduzir-te com passos pequenos, ajustados ao nosso pé vacilante,recearia parecer ridículo por ter começado com um caminho tão longo, não emconsideração às próprias coisas que são significativas, mas aos sinais. Espero queme perdoes, portanto, se quis fazer contigo uma espécie de prelúdio, não parabrincar, e sim para treinar a agilidade e a agudeza da mente, que nos facultarãomais tarde não só suportar, mas também amar a luz e o calor daquela região davida bem-aventurada.

ADEODATO

– Continua por esta senda, pois eu não julgaria desprezível ou de pouco valorqualquer coisa que digas ou faças.

AGOSTINHO

– Então, continuemos! Retomemos aquela parte da nossa discussão sobre os sinaisque não significam outros sinais, aquelas coisas que chamamos “significáveis”. Em

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primeiro lugar, dize-me se “homem é homem”.

ADEODATO

– Agora, na verdade, não sei se estás brincando.

AGOSTINHO

– Porquê?

ADEODATO

– Porque me estás perguntando se o “homem” é diferente de “homem”.

AGOSTINHO

– E julgarias também que estou a zombar de ti se te perguntasse se a primeirasílaba deste nome é mesmo “ho” e a segunda “mem”?

ADEODATO

– Certamente.

AGOSTINHO

– Mas negarás que estas duas sílabas dêem “homem”?

ADEODATO

– E como negar?

AGOSTINHO

– Pergunto, pois, se és o mesmo que estas duas sílabas unidas.

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ADEODATO

– De maneira alguma. Porém percebo agora onde queres chegar.

AGOSTINHO

– Fala, então, uma vez que não crês tratar-se de zombaria.

ADEODATO

– Julgas, talvez, que se possa concluir que não sou “homem”?

AGOSTINHO

– Mas diga-me, não pensas o mesmo, já que concordaste ser verdade tudo o quefoi dito e de onde se tira essa conclusão?

ADEODATO

– Não vou manifestar meu pensamento antes de ouvir de ti qual a intenção dapergunta “se é homem é homem”; te referias às duas sílabas ou ao seu significado?

AGOSTINHO

– Antes, responde-me qual o sentido em que tomaste a minha pergunta: pois, se éambígua, devias precaver-te e não responder antes de ter certeza quanto aosentido de minha pergunta.

ADEODATO

– E porque me seria obstáculo esta ambigüidade, uma vez que respondi numsentindo e no outro? Naturalmente que homem é homem, e estas duas sílabasnada mais são do que duas sílabas, e o que elas significam nada mais é do que é(homem).

AGOSTINHO

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– Brilhante a tua resposta: mas por que tomaste nos dois sentidos apenas (o quese diz)

“homem” e não as demais coisas de que falamos?

ADEODATO

– E de que modo poderia me persuadir de que não tomei assim das outras?

AGOSTINHO

– Se tivesses tomado apenas a minha primeira pergunta só no aspecto do som dassílabas, não me terias respondido nada, pois até poderia parecer-te que nadahouvesse indagado; mas, como fiz repercutir no teu ouvido três palavras, uma dasquais repeti no meio, dizendo: “utrum homo homo sit” (se homem é homem), tutomaste a primeira e a segunda palavra não conforme os mesmos sinais, mas peloque elas significam, coisa evidenciada pelo simples fato de que te ocorreu deimediato dever responder à minha pergunta com rapidez e desembaraço.

ADEODATO

– Dizes a verdade.

AGOSTINHO

– Qual motivo então te fez preferir tomar só a palavra do meio (homo) segundo osom e o significado?

ADEODATO

– Mas agora tomo-a exclusivamente pelo seu significado. Concordo contigo não serpossível conversar se a mente, ouvidas as palavras, não evocar logo as coisas deque aquelas são sinais. Por isso, mostra-me como eu pude ser enganado por esseraciocínio, que concluiu que não sou homem.

AGOSTINHO

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– Será mais oportuno reapresentar-te as mesmas perguntas, para que tu possasperceber por ti mesmo onde erraste.

ADEODATO

– Está bem.

AGOSTINHO

– Não vou perguntar-te o mesmo que antes, pois já o concedeste. Antes, observacom mais atenção, se na palavra “homo” (homem) a sílaba “ho” é outra coisa quenão “ho” e a sílaba “mo” nada mais que “mo” .

ADEODATO

– Não vejo, na realidade, nada além disso.

AGOSTINHO

– Observa ainda se, ao juntar estas duas sílabas, pode-se fazer um homem.

ADEODATO

– Absolutamente te concederia isto, uma vez que concordamos, acertadamente,que, depois de ouvir o sinal, a mente examina seu significado, e só após o exameconcede ou nega o que foi proposto. Mas aquelas duas sílabas, quando separadas,soam sem qualquer significado, e por isso ficou assente que têm valor apenas comosom.

AGOSTINHO

– Estás pois convicto que não se deve responder às perguntas senão de acordocom as coisas que as palavras significam?

ADEODATO

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– Não vejo como haveria de concordar com isto, desde que se trate de palavras.

AGOSTINHO

– Gostaria de saber o que responderias àquele zombeteiro que, dizem, fez sair umleão da boca do companheiro com quem discutia. Após indagar-lhe se o quedizemos sai da nossa boca, e não lhe sendo possível nega-lo, induziu facilmente ointerlocutor a proferir o nome “leão”; feito isso, começou a andar ao redor dele eescarnecê-lo, pois admira que aquilo que dizemos sai da nossa boca e não podendonegar que proferira a palavra “leão”, estava assumindo que, sendo embora boapessoa, vomitara um animal tão feroz.

ADEODATO

– Não seria difícil responder a esse brincalhão, pois eu não concordaria que tudo oque dizemos sai da nossa boca, uma vez que proferimos apenas sinais, e o que danossa boca sai não é a coisa significada, mas o sinal que a significa; assunto este deque tratamos há pouco.

AGOSTINHO

– Com isso o refutarias corretamente; mas que me responderias se te perguntassese homem é um nome?

ADEODATO

– Que mais haveria de ser?

AGOSTINHO

– Então, quando te vejo, vejo um nome?

ADEODATO

– Não.

AGOSTINHO

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– Queres que te diga o que disso resulta?

ADEODATO

– Não te incomodes: eu mesmo, ao responder-te que um homem é nome quandome perguntaste se homem era nome, reconheço que declarei não ser eu homem, efiz isto apesar de já termos estabelecido que só devemos admitir ou negar o que édito conforme o significado das coisas.

AGOSTINHO

– Parece-me, todavia, que não foste incidir nesta reposta sem motivo, pois aprópria lei da razão, gravada em nossas mentes, pode iludir a tua vigilância. Defato, se te perguntasse o que é “homem”, responderias talvez: “animal”; porém, sete perguntasse que parte da oração é “homem”, só poderias respondercorretamente dizendo “nome”; por aí concluímos que “homem” é nome e animal: oprimeiro (ser nome) dizemos enquanto é sinal; o segundo (ser animal) quanto àcoisa significada. Se alguém pois, me perguntasse se homem é nome, responderiaque é, uma vez que esta pergunta deixa entender que a indagação é a respeito de“homem” só como sinal.

Se, ao contrário, me perguntar se homem é animal, anuirei mais facilmenteporque, mesmo que se omitissem os termos “nome” e “animal” indagando apenas“o que é homem”, obedecendo àquela regra do falar que já estabelecemos, aminha mente voltar-se-ia para o significado daquelas duas sílabas e só poderiaresponder “animal”, e até poderia acrescentar a definição completa, isto é,“animal racional, mortal”; não te parece?

ADEODATO

– Certamente; mas, se concordamos que é um nome, como nos subtrairmos aconclusão desagradável de que não somos homens?

AGOSTINHO

– Demonstrando que a ela não se chegou pelo sentido da palavras, quandoconcordamos com o nosso interlocutor.

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E se este quisesse deduzi-la da palavra considerada como sinal, nada haveria atemer, pois qual prejuízo haveria em confessar que não sou aquelas duas sílabas?

ADEODATO

– Nada mais verdadeiro. Mas por que então incomoda ouvir dizer: “Tu não éshomem” uma vez que, pelo que já vimos, é uma verdade incontestável?

AGOSTINHO

– Por ser difícil evitar de pensar que aquela conclusão – ao ouvirmos estas duassílabas – não se relacione com seu significado, pela regra de grande e naturalvalor, segundo a qual a nossa atenção, ao ouvirmos os sinais, volta-se logo para ascoisas significadas.

ADEODATO

– Aceito quando dizes.

CAPÍTULO IX - SE DEVEMOS PREFERIR AS COISAS, OU OCONHECIMENTODELAS,AOSSINAIS

AGOSTINHO

– Queria, pois, que bem compreendesse que são mais importantes as coisassignificadas do que seus sinais. Tudo o que existe em função de outra coisa,necessariamente tem valor menor que a coisa pela qual existe, se concordas comisso.

ADEODATO

– Parece-me impróprio concordar com isto sem refletir. Quando, por exemplo, sediz: “coenum” (lamaçal), parece-me que este nome seja em muito superior à coisaque significa. De fato, o que desagrada ao ouvirmos esta palavra não é o som;“coenum” , mudando apenas uma letra, torna-se “coelum” (céu), mas é evidente aenorme diferença que há entre as coisas que estes dois nomes significam. Por issoeu não teria por essa palavra toda a repulsa que tenho ao que significa, e,portanto, eu a prefiro a isso; pois menos desagrada o seu som do que ver ou tocar

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a coisa que significa.

AGOSTINHO

– Falas com sabedoria. Assim, não seria correto afirmarmos que todas as coisastêm valor superior aos sinais que as exprimem.

ADEODATO

– Assim parece.

AGOSTINHO

– Dize-me, então, qual seria a intenção dos que deram um nome a coisa tão feia edesagradável? Tu os aprovas ou desaprovas?

ADEODATO

– Na verdade, não me acho em condição nem de aprová-los nem de desaprová-los,e também não sei que intenção tiveram.

AGOSTINHO

– Poderás, ao menos, dizer-me qual a tua intenção, a finalidade de pronunciaresesse nome?

ADEODATO

– Sim; ao pronunciá-lo, quero avisar ou ensinar ao meu interlocutor aquilo quejulgo necessário avisá-lo ou ensiná-lo.

AGOSTINHO

– Como? O fato de ensinar e avisar, ou de receber tal ensinamento, facilmenteexpresso com este nome, não deveria talvez ser-te mais caro que a própriapalavra?

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ADEODATO

– Admito que o conhecimento obtido por este sinal seja preferível ao próprio sinal,mas não preferível à coisa em si.

AGOSTINHO

– Então, no que acima afirmamos, embora seja falso que devemos sempre preferiras coisas aos seus sinais, é verdade que tudo o que existe em função de outra coisatenha valor menor que a coisa pela qual existe. O conhecimento, pois, do lamaçal,para o qual foi instituído esse nome, há de ser considerado mais que a palavraque, por sua vez, vimos ser preferível ao próprio lamaçal. E é bem esse o motivodo conhecimento ser preferível ao sinal de que estamos tratando, pois este existedevido àquele e não aquele por causa deste. Assim, aquele glutão, devoto aoventre, conforme relata o Apóstolo, quando disse que vivia para comer, foicontestado por um homem sóbrio, que lhe ouviu as palavras e, não tolerando-as,assim o redargüiu: “Bem melhor seria que comesses para viver”; e vemos que osóbrio falou assim seguindo essa mesma regra (regra que estabelece que tudo oque é devido a outra coisa, como no caso de comer que é subordinado ao viver – éinferior à coisa pela qual existe). O comilão desagradou porque avaliava tãomiseravelmente sua vida, que a tinha em menor conta que os prazeres do paladar,afirmando viver para comer. O homem sóbrio é digno de louvor porque,compreendendo qual das duas coisas (comer e viver) é feita para a outra, ou seja,qual está subordinada à outra, alertou que devíamos comer para viver e não viverpara comer. Do mesmo modo, tu e todo homem sensato que aprecie as coisas peloseu valor e justo lado, se um charlatão afirmasse: “Ensino para falar”, lheresponderias: “Homem, não seria melhor falar para ensinar?” Ora, se tais coisassão verdadeiras, como alias reconheces, observa quanto as palavras têm menorimportância, em comparação com aquilo por que as usamos; sendo que o própriouso das palavras já é mais importante do que elas próprias. As palavras, pois,existem para que as usemos, e as usamos para ensinar. Por isso, ensinar é melhorque falar, e assim o discurso é melhor que a palavra.

Muito melhor que as palavras é, portanto, a doutrina. Mas quero ouvir de ti sepor acaso tenhas algo a opor.

ADEODATO

– Concordo em que a doutrina seja preferível às palavras; mas talvez se possa

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levantar objeção contra a regra que diz: “tudo o que existe em função de outracoisa é inferior aquilo pelo qual existe”.

AGOSTINHO

– Trataremos disto a seu tempo e com mais detalhes: por enquanto, o queconcedes já basta para que eu chegue aonde me proponho. Concordas, pois, que oconhecimento das coisas é mais importante que os sinais que as exprimem. Porisso, o conhecimento das coisas significadas deve ser preferido ao conhecimentodos sinais, não te parece?

ADEODATO

– Mas eu disse, por acaso, que o conhecimento das coisas não é superior ao dossinais, ou melhor, que é superior aos próprios sinais? Por isto hesito em concordarcontigo neste ponto.

Se o nome “lamaçal” é melhor que seu significado, por que o conhecimento destenome não haveria de ser também melhor que o da coisa, embora o nome em siseja inferior aquele conhecimento? Lidamos aqui com quatro termos: nome, coisa,conhecimento do nome e conhecimento da coisa. Como o primeiro é superior aosegundo, por que também o terceiro não seria superior ao quarto? E, em não lhesendo superior, acaso lhe estaria subordinado?

AGOSTINHO

– Noto que guardas muito bem na memória o que concedeste, e que explicasteclaramente teu pensamento. Creio porém, que compreendes como este nometrissílabo “vitium” (vicio), quando o pronunciamos, é melhor, como som, do que seusignificado; entretanto, o simples conhecimento do nome é bem menos valioso queo conhecimento dos vícios. Assim, ainda que consideremos aqui os quatro termosque mencionaste: nome, coisa, conhecimento do nome, conhecimento da coisa, comrazão nós preferimos o primeiro ao segundo. Quando Pérsio escreve na sua sátiraeste nome, dizendo: “Sed stuped hic vitio” (mas este se admira do vicio), não sónão torna viciado o verso, mas, pelo contrário, de algum modo dá-lhe beleza,apesar do significado desse nome ser sempre execrável, onde quer que seencontre. Mas observamos também que não é tampouco preferível o terceirotermo ao quarto, e sim o quarto ao terceiro. O conhecimento deste nome (vicio) ébem menos importante se comparado ao conhecimento dos vícios.

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ADEODATO

– Acreditas pois, que tal conhecimento, apesar de nos tornar mais mesquinhos,teria de ser preferido? O próprio Pérsio, a todas as penas que a crueldade dostiranos excogitou ou a cobiça impôs, antepõe apenas aquela que atormenta oshomens, quando obrigados a reconhecer os vícios que não conseguem evitar.

AGOSTINHO

– Assim, também chegarias a negar que deve ser preferido o conhecimento dasvirtudes ao do seu nome, pois saber da virtude e não possuí-la é um suplicio, queaquele poeta satírico almejou como castigo dos tiranos.

ADEODATO – Deus me livre de tal loucura: entendo que não devemos culpar ospróprios conhecimentos, entre os quais o da moral, a mais excelsa disciplina comque se educa o espírito, mas sim, que devemos considerá-los – como creio quetambém Pérsio pensava – os mais míseros dos que são atacados por tal doença,que nem um tão grande remédio pode curar.

AGOSTINHO

– Entendimento correto; mas em que pesa o pensamento de Pérsio? Não estamossubmetidos, nisso, a tal autoridade; ainda mais que é difícil elucidar aqui qualconhecimento deve ser preferido a outro. Por ora, estou satisfeito com o queconseguimos; isto é, ter o conhecimento das coisas que são significadas como umvalor superior, se não ao conhecimento dos sinais, pelo menos aos sinais em si. Poristo voltemos agora a discutir sobre o gênero das coisas que podem se mostrar porsi mesmas, como dizíamos, sem sinais, como sejam: comer, passear, sentar, fazer esemelhantes.

ADEODATO

– Volto a meditar sobre as tuas palavras.

CAPÍTULOX-SEÉPOSSÍVELENSINARALGOSEMSINAIS.AS COISASNÃOSEAPRENDEMPELASPALAVRAS

AGOSTINHO

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– Parece-te que podemos indicar, sem uso de sinais, tudo que podemos fazer, logoapós sermos interrogados, ou algo deve ser excluído?

ADEODATO

– Na verdade, tenho pensado muito neste gênero de coisas, sem todaviaencontrar nada que se possa ensinar sem sinal, executando, talvez, o próprio falare ensinar, mas este só se nos perguntarem o que é ensinar. Parece-me que quempergunta – qualquer coisa que eu faça após a indagação para que aprenda – não opode aprender através da própria coisa, que deseja lhe seja mostrada. Porexemplo: se quando estou fazendo outra coisa, alguém me perguntasse que écaminhar e eu, imediatamente, buscasse demonstrar-lhe a coisa sem usar sinaiscomeçando a caminhar, como poderia evitar que ele entendesse que caminhar éapenas o quando andei? Ora, se ele pensar nisso, terá sido levado a engano, poisjulgará que quem andar mais, ou menos, do quanto eu andei, não caminhou. E oque vale quanto a esta palavra aplica-se também a todas aquelas que julguei sepossam mostrar sem sinal, menos as duas que exclui.

AGOSTINHO

– Concordo com isso, mas não te parece que falar é uma coisa e ensinar é outra?

ADEODATO

– Certamente, pois se fossem a mesma coisa não se poderia ensinar senão falando;ora, como muitas coisas são ensinadas com outros sinais que não palavras, quempoderia negar a diferença?

AGOSTINHO

– Ensinar e significar são a mesma coisa ou diferem em algo?

ADEODATO

– Creio que a mesma.

AGOSTINHO

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– Será correto afirmar que nós usamos de sinais (que significamos) para ensinar?

ADEODATO

– Sem dúvida.

AGOSTINHO

– Se alguém afirmasse que ensinamos para usar sinais (para significar), não seriafacilmente refutado pela afirmação precedente?

ADEODATO

– Seria.

AGOSTINHO

– Se usarmos pois os sinais para ensinar, não ensinamos para usar os sinais: umacoisa é ensinar e outra é usar os sinais (significar)

ADEODATO

– É verdade, e quando disse que eram a mesma coisa, eu não respondicorretamente.

AGOSTINHO

– Agora, responde a isto: quem ensina o que é ensinar o faz usando sinais ou outromodo?

ADEODATO

– Não vejo como o poderia fazer diversamente.

AGOSTINHO

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– Não é pois verdade a tua afirmação anterior, isto é, que não se pode ensinarsem sinais a quem indague o que é ensinar, porque constatamos que nem mesmoisto podemos fazer sem usar sinais, pois me concedeste que uma coisa é usar sinais(significar) e outra ensinar. Se são coisas distintas e uma se mostra pela outra,quer dizer que certamente não se mostra por si mesma, como te pareceu.Portanto até aqui nada encontramos que se mostre por si mesmo, salvo a palavraque, entre as outras coisas, significa também a si mesma; mas como ela também éum sinal, parece nada haver que possa ensinar-se sem sinais.

ADEODATO

– Nada tenho a opor.

AGOSTINHO

– Concluímos então que nada pode ser ensinado sem sinais, e que o próprioconhecimento tem de ser, para nós, mais caro que os sinais pelos quais o obtemos,embora nem todas as coisas que eles exprimem devam ser preferidas aos seuspróprios sinais.

ADEODATO

– Parece ser assim mesmo.

AGOSTINHO

– Lembras quantas voltas demos para chegar a tão modesto resultado? Desde ocomeço de nossa conversa, que dura já um bom tempo, fatigamo-nos bastantepara descobrir estas três coisas: 1) se era possível ensinar sem sinais; 2) se haviasinais preferíveis às coisas que expressam; 3) se o conhecimento das coisas podeser melhor que os sinais. Mas há ainda uma quarta que gostaria de saber agora:se as coisas que encontramos, estão para ti claras e não te deixam possibilidade dedúvida.

ADEODATO

– Seria mesmo agradável, depois de tantos rodeios, que tivéssemos chegado àcerteza, mas esta pergunta gera em mim certa inquietação, que me impede de

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assentir. Tenho a impressão que tal não me perguntarias se não tivesses algumaobjeção a apresentar: e o emaranhado do assunto não me permite ver tudo eresponder com segurança, pois, entre tantos véus, temo que se esconda algo queos olhos da minha mente não possam divisar.

AGOSTINHO

– Agrada-me a tua dúvida, porque revela uma alma sem leviandade, e istogarante imensamente a tranqüilidade. É de fato difícil não se perturbar quando oque nós tínhamos como ponto de consenso fácil e pacífico é derrubado e como quearrebatado das mãos por discussões.

Por isso, como é justo ceder depois de observar e examinar bem os motivos, assimé perigoso conservar como coisa certa o que não é. Às vezes, quando desmoronaaquilo que tínhamos como estável e permanente, pode haver o receio que se geretão grande aversão ou medo da razão, que nos pareça não podermos maisdepositar nossa fé nem sequer na verdade mais evidente.

Mas, vamos adiante? Reexaminemos, agora um pouco mais rapidamente, se tensrazão de duvidar. Pergunto: se alguém, que não conheça as armadilhas que setendem aos pássaros com varas e visco, deparasse com um caçador com estearnês, e que vá indo pelo caminho sem ter começado ainda a sua tarefa e, vendo ocaçador, apressasse o passo, e estranhando em seu íntimo tudo aquilo, seperguntasse o que poderiam significar aqueles apetrechos; e o caçador, sentindo-se observado e admirado, para fazer mostra de si, exibisse a cana e o falcão,conseguisse atrair e apanhar um passarinho, diga-me: o caçador, sem usar desinais, mas usando a própria coisa, não estaria a ensinar ao seu espectador o queesse queria saber?

ADEODATO

– Parece-me que o caso é semelhante àquele que mencionei, isto é, de quempergunta o que é caminhar. Neste caso também não acho que foi mostrada toda aarte de caçar.

AGOSTINHO

– É simples desfazer-se desta impressão; eu acrescento: se aquele espectador fosse

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inteligente o bastante para compreender por inteiro a arte de caçar só pelo queviu, isto bastaria para demonstrar que alguns homens podem ser ensinados semsinais sobre algumas coisas, embora não sobre todas.

ADEODATO

– No caso, também posso acrescentar isto: quem pergunta o que é caminhar, se forbem inteligente, compreenderá por inteiro o que é caminhar, bastando que se lhemostrem uns poucos passos.

AGOSTINHO

– Podes, eu concordo com prazer. Chegamos pois a esse resultado, ou seja, queumas coisas podem ser ensinadas sem sinais, sendo portanto falso aquilo que hápouco nos parecia verdadeiro, isto é, não existir nada que se possa mostrar ouensinar sem sinais; e acode à nossa mente não uma ou duas coisas, mas milharesque, sem precisar de sinal algum podem mostrar-se por si mesmas. Poderemos poisduvidar, eu te pergunto? Sem considerar os muitos espetáculos em que uns atoresrepresentam nos teatros as coisas sem usar sinais, Deus e a natureza nãoapresentam e mostram por si mesmos, ao observador, o sol e a luz, que tudobanha e recobre, a lua e as estrelas, a terra e os mares com infinidade de criaturasque os habitam?

Todavia, se observarmos isto com maior atenção, talvez não encontremos nadaque se possa aprender pelos seus próprios sinais. De fato, se me for apresentadoum sinal e eu não souber de que coisa é o sinal, este nada poderá me transmitir;se, ao contrário, já souber de que é sinal, que estará me ensinando? Assim,quando leio “Et saraballae eorum non sunt immutatae” (E as suas coifas não foramtrocadas), a palavra (coifas) não me explica a coisa que significa. Pois se uns objetosque servem para cobrir a cabeça têm este nome de ‘saraballae” (coifas), tereiporventura, depois de ouvi-lo, aprendido o que é cabeça e o que é cobertura? Aocontrário, eu já as conhecia antes, pois delas adquiri conhecimento sem que asouvisse chamar assim por outrem, mas vendo-as com os meus próprios olhos.Quando as duas sílabas da palavra “caput” (cabeça) soaram pela primeira vez aomeu ouvido, desconhecia seu significado como quando ouvi e li pela primeira vez“saraballae”. Porém, ouvindo repetidamente dizer “caput” (cabeça), e notando eobservando a palavra quando era pronunciada, reparei facilmente que elasignificava aquela coisa que eu bem conhecia, por tê-la visto. Mas antes deentender seu significado, a palavra era para mim apenas um som, e aprendi que

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era um sinal quando a associei àquilo de que era sinal, e aprendi-lhe o significadopela visão direta do objeto. Vemos, pois, que é mais pelo conhecimento da coisaque se aprende o sinal do que o contrário.

Para que compreendas isto com maior clareza, imagina que estejamos ouvindoagora, pela primeira vez, pronunciar a palavra “caput” (cabeça). (Lembra-te quebuscamos o conhecimento não da coisa que é significada, mas do próprio sinal,conhecimento que nós não temos enquanto ignorarmos o que sinaliza). Se, nanossa pesquisa, nos mostrassem ou apontassem com o dedo a própria coisa, ao vê-la teríamos conhecimento do sinal; isto é, saberíamos o que quer dizer aquele sinalque tínhamos ouvido, mas não compreendido. No sinal há duas coisas: o som e osignificado; ora, o som não foi certamente recebido como sinal de algo, mas comosimples verberação no ouvido, enquanto o significado foi apanhado pela visão dacoisa que é significada.

Como o apontar do dedo só pode significar o objeto que o dedo está apontando, ecomo o dedo não está apontado pelo sinal, mas para a parte do corpo que sechama “caput” (cabeça), ocorre que, pelo gesto, não venho a conhecer a coisa, quejá conhecia, nem o sinal que o dedo não estava apontado. Mas não quero colocargrande ênfase no gesto de apontar o dedo, pois o tenho mais como sinal do ato deindicar do que das próprias coisas indicadas; veja o que ocorre quando dizemos:“ecce” (eis), e habitualmente acompanhamos este advérbio com o gesto deapontar como se não bastasse um só desses sinais para indicar. E procurarei aomáximo te convencer, se o puder, disto: que nada aprendemos por meio dos sinaischamados palavras; antes, como já disse, aprendemos o valor da palavra, ou seja,o significado oculto no som pelo conhecimento ou da percepção da coisasignificada; mas não a própria coisa mediante o significado.

E o que disse da cabeça, poderia dizer do que serve para cobrir a cabeça e deinfindáveis outras coisas; que, embora as conhecesse, nunca, até agora, tive oconhecimento daquelas “saraballae” (coifas). Se alguém com um gesto meapontasse estas “saraballae” (coifas) ou as pintasse, ou me mostrasse algo deparecido, não diria, como aliás poderia se quisesse falar um pouco mais, que nãomas ensinou, mas que não me ensinou com as palavras o que está diante de mim.Se, ao tê-las diante de mim eu fosse avisado com as palavras: “Ecce saraballae”(eis as coifas), aprenderia uma coisa que não sabia, não pelas palavras que forampronunciadas, mas pela visão direta da coisa em si, à qual associei o nome, cujovalor gravei. Pois, quando aprendi a própria coisa, não acreditei nas palavras deoutrem, mas nos meus olhos; talvez acreditasse também nelas, mas apenas comoum alerta, ou seja, para procurar com os olhos o objeto em questão.

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CAPÍTULOXI - NÃOAPRENDEMOS PELAS PALAVRASQUEREPERCUTEMEXTERIORMENTE,MASPELAVERDADEQUEENSINAINTERIORMENTE

AGOSTINHO

– Limitado o valor das palavras, e delas direi, querendo valorizá-las, que apenasestimulam a procurar as coisas, sem porém mostrá-las para que as conheçamos. Noentanto, aquele que me apresenta alguma coisa, quer aos sentidos corporais, querà mente, ensina-me de fato as coisas que quero conhecer. Com as palavras nãoaprendemos senão palavras; de mais a mais, o som das palavras, pois se não forsinal tampouco é palavra, não vejo como possa ser palavra, som que ouvipronunciado como sendo palavra, até que lhe conheça o significado. O sentidocompleto das palavras, se consegue apenas depois de conhecer as coisas; e aocontrário, ouvindo somente as palavras, não aprendemos nem sequer estas. Defato, não tivemos conhecimento das palavras que aprendemos senão depois deperceber seu significado, o que acontece não ouvindo as vozes que as proferem,mas pelo conhecimento das coisas significadas. Ao ouvirmos palavras, éperfeitamente razoável saber ou não o que significam; se o sabemos, não foramelas que no-lo ensinaram, apenas o recordaram; se não o sabemos, nem sequer orecordam, mas talvez nos estimulem a procurá-lo.

Ora, daqueles objetos que servem para cobrir a cabeça e dos quais apenasouvimos o nome (coifas), só podemos adquirir a noção depois de vê-los; portanto,nem sequer o seu nome conhecemos completamente, não antes de conhecermos ospróprios objetos. Todavia, podes afirmar que de nenhum modo senão pelaspalavras, aprendemos o que se narra a respeito dos três jovens, aqueles que comsua fé e religião venceram o rei e as chamas, quais os hinos de louvor quecantaram a Deus; quais as honras que mereceram do próprio inimigo; responder-te-ei que já conhecíamos todas as coisas significadas por aquelas palavras. Pois eujá tinha na minha mente o que significa três jovens, o que é forno, o que é fogo, oque é rei, o que quer dizer ser preservado do fogo, e por fim, as demais coisassignificadas por aquelas palavras. Mas, como aquelas “saraballae” (coifas), ficampara mim desconhecidos os jovens Ananias, Azarias e Misael; nem os seus nomesme ajudaram a conhecê-los. E confesso que, mais que saber, posso afirmar minhacrença que tudo o que se lê naquela narração histórica tenha ocorrido naqueletempo assim como foi escrito; e os próprios historiadores a que emprestamos fénão ignoravam esta diferença. Diz o profeta: “Se não credes, não entendereis”; ecertamente não diria isto se não tivesse por necessário estabelecer uma diferençaentre as duas coisas. Por isso, creio tudo o que entendo, mas nem tudo o que creioentendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo o que creio conheço. Eu

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sei quanto é útil crer também em muitas coisas que não conheço, utilidade que seaplica também na história dos três jovens. Como não posso saber a maioria dascoisas, sei porém que é útil acreditar nelas. Quanto às coisas que compreendemos,não consultamos a voz de quem fala, que é exterior, mas a verdade que dentro denós reside, em nossa mente, estimulados talvez pelas palavras a consultá-la. Quemé consultado ensina em verdade, e este é o Cristo que habita, como foi dito, nohomem interior, isto é, a virtude única de Deus e a eterna Sabedoria, que todaalma racional consulta, mas que se revela ao homem na medida de sua própriaboa ou má vontade. E se ocorre o erro, isto não acontece por falha da verdadeconsultada, como não é por erro da luz externa que os olhos se enganam; esta luzque consultamos a respeito das coisas visíveis, para que no-las torne claras naproporção em que nos é permitido distingui-las.

CAPÍTULOXII-CRISTOÉAVERDADEQUEENSINAINTERIORMENTE

AGOSTINHO

– Ora, se para as cores precisamos de luz, e para as outras coisas que nosso corpopercebe interpelamos os elementos do mundo, os objetos percebidos e os própriossentidos são instrumentos de que a mente se serve para conhecer as coisasexternas. Todavia, para aquelas coisas que conhecemos pela inteligênciaconsultamos, por meio da razão, a verdade interior; e o que diremos, para quefique claro, senão que pelas palavras nada mais aprendemos além do som queatinge nosso ouvido? Pois todas as coisas que percebemos, ou são apanhadas pelossentidos físicos ou pela mente. Chamamos às primeiras “sensíveis”, e às segundas“inteligíveis” ou, para usar a linguagem de nossos autores, às primeiras “carnais” eàs segundas “espirituais”.

Quanto às primeiras, se estiverem ao nosso alcance podemos responder, comoquando estamos olhando a lua, e alguém nos pergunte o que é ou onde ela está.Neste caso, quem pergunta, se não enxergam acredita ou não nas nossas palavras,mas não aprende de modo algum; a menos que também veja o que lhe está sendoafirmado e, nesse caso, não aprende pelo simples som das palavras, mas pelascoisas mesmas e que ferem seus sentidos. As palavras, pois, têm o mesmo sompara quem vê, como para quem não vê. Se porém somos indagados, não sobre ascoisas presentes, mas sobre as que percebemos outrora, respondendo, nãofazemos referencias às mesmas, mas às suas imagens gravadas em nossa memória;não sei como poderíamos chamar tais imagens de verdadeiras, pois percebemosserem falsas, a não ser que acrescentemos que sua visão e percepção não sãoatuais, mas pretéritas. Portanto, nós gravamos nos meandros da memória as

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imagens como documentos das coisas que percebemos; contemplando-as comhonestidade na nossa mente, não mentimos quando falamos. Mas estes sãodocumentos válidos só para nós, pois quem nos ouve, se as percebeu oupresenciou, não as aprende pelas minhas palavras, mas as reconhece nas imagensque também levou consigo; todavia, se nunca as percebeu, todos concordarão queele mais do que aprender, crê nas palavras.

Tratando das coisas que percebemos pela mente, isto é, por meio do intelecto e darazão, estamos ainda tratando de coisas que temos como presentes, sob a luzinterior da verdade, que ilumina o homem interior, que dela desfruta. Mastambém aqui nosso interlocutor conhece o que eu digo pela sua própriacontemplação, e não mediante minhas palavras, posto que ele também veja por sia mesma coisa com olhos interiores e simples. Portanto, nem sequer a este, que vêas coisas na verdade, ensino algo dizendo-lhe a verdade, uma vez que não aprendepelas minhas palavras, mas pelas próprias coisas que Deus a ele revela em seuinterior; e ele, interrogado sobre elas, sem mais, poderia responder. Ora, haveráabsurdo maior que acreditar que minhas palavras possam ter instruído aqueleque, interrogado antes de minha preleção, poderia responder sobre o assunto? Ocaso, que ocorre com freqüência, de alguém interrogado negar algo e depois,estimulado por ulteriores perguntas, vir a concordar, depende da fraqueza da suavisão que não pode abarcar todas as coisas pela luz interior, e a isto sendo levado,por partes sucessivas, pelas perguntas inerentes às mesmas partes de umaverdade única, que ele não podia intuir, de uma só vez, no seu conjunto. Se chegarisso por meio das perguntas, não significa que as palavras lhe ensinaram algumacoisa, mas apenas que lhe ofereceram um meio, uma capacitação para enxergar noseu interior. Seria assim se eu te argüisse sobre o que estamos tratando agora,isto é, se é possível ensinar algo pelas palavras, e tu, na incapacidade de abrangercom a mente a questão inteira, julgasses, no primeiro momento, absurda apergunta. Por isso, foi preciso apresentar a pergunta na medida da tua capacidadede ouvir o mestre interior, e dizer-te as coisas que, quando ouves, confessas comcerteza serem verdadeiras e que afirmas conhecê-las bem; onde aprendeste?Responderias, talvez, que fui eu quem tas ensinou? E então eu perguntaria: Como?Se eu te afirmasse ter visto um homem voando, as minhas palavras dar-te-iamtanta certeza como se me ouvisses dizer que os homens sábios são melhores queos tolos? Certamente, depois de negar, responderias não acreditar na primeira ou,mesmo que acreditasses, que ela é para ti completamente desconhecida, e noentanto que sabes com certeza a segunda. Compreenderias pois com clareza quenada aprendeste com minhas palavras: nem aquilo que ignoravas, nem aquilo quejá sabias otimamente; pois jurarias, ao ser interrogado parte por parte sobre asduas coisas, que a primeira te era desconhecida e a segunda, conhecida. E entãochegarias a admitir tudo o que antes negavas ao reconhecer como claras e certas

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as partes que compõem a questão; isto é, que a respeito de tudo o que falamos,quem nos está ouvindo ou desconhece se não verdadeiras, ou sabe que são falsas,ou sabe que são verdadeiras. No primeiro caso, ou crê, ou opina, ou duvida; nosegundo, nega; no terceiro, afirma, mas em nenhum dos três aprende. Tantoaquele que depois de me ouvir ignora a coisa, como quem reconhece que ouviufalsidades e como quem, interrogado, poderia repetir o que foi dito, demonstraque nada aprendeu pelas minhas palavras.

CAPÍTULO XIII - A FORÇA DAS PALAVRAS NÃO CONSEGUE MOSTRARSEQUEROPENSAMENTODEQUEMFALA

AGOSTINHO

– E também no tocante às coisas que se contemplam com a mente, aquele que nãoentende, inutilmente ouve as palavras de quem as vê, a não ser porque é útilacreditar em tais coisas enquanto se ignoram. Aquele porém que as pode verinteriormente, é discípulo da verdade; exteriormente, é juiz de quem fala, oumelhor, das suas palavras, pois muitas vezes sabe as coisas que foram ditas,enquanto quem as disse não as sabe. Seria este o caso em que alguém,acreditando nos epicuristas e julgando mortal a alma, repetisse os argumentos játratados pelos mais sábios sobre a sua imortalidade, na presença de quem podeintuir as coisas espirituais. Este julgaria que aquele diz a verdade, ou antesconsiderará falácia o que diz. Devemos pois, acreditar que quem não sabe podeensinar? E, no entanto, usa as mesmas palavras que também usaria aquele quesabe.

Por isso tudo, nem sequer resta às palavras o papel de manifestar ao menos opensamento de quem fala, pois é duvidoso se este sabe ou não o que diz.Considera também os mentirosos e enganadores, e facilmente compreenderás que,com as palavras, eles não só não revelam, mas até ocultam o pensamento. Jamaisduvidaria que as palavras sinceras se esforcem e façam o melhor para manifestar oespírito de quem fala, o que conseguiriam, e seria ótimo para todos se não fossepermitido aos mentirosos falarem. Todavia, repetidamente percebemos em nósmesmos e nos outros que as palavras não expressam o pensamento; e isto podeacontecer de duas maneiras: ou quando as palavras que gravamos e repetimossaem da boca de quem está pensando em algo diferente, o que acontece amiúdequando cantamos um hino; ou quando, nos saem umas palavras em vez de outras,contra a nossa vontade, por um lapso da própria língua; também neste caso nãosão transmitidos os sinais das coisas que temos na mente. Os mentirosos, semdúvida, também pensam as coisas que dizem, e embora nós não saibamos se falam

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a verdade, sabemos porém que eles têm em mente o que dizem; a menos que lhesaconteça uma das coisas que mencionei; e se me objetarem que, às vezes, istopode ocorrer, e que, quando ocorre, isto aparece, ainda que muitas vezes possaficar oculto, e que eu, ao ouvir tais coisas, às vezes também possa ser enganado,não me oporei.

E há ainda outro caso, bastante freqüente e origem de inúmeras controvérsias:quando quem fala exprime de fato seu pensamento, mas apenas para si e para unspoucos, e não para o interlocutor e para os demais. Por exemplo, se alguém emnossa presença afirmasse que o homem é superado em valor por alguns animais,não o toleraríamos e logo refutaríamos com grande veemência esta falsa eperniciosa afirmação; e talvez por valor ele entenda a força física, e com talpalavra enuncie mesmo o que pensava, sem mentir, sem engano, sem ocultar aspalavras gravadas na memória, agitando na mente alguma outra coisa, sem quepor um lapso da língua fale algo diverso do que corresponde ao seu pensamento;estaria apenas chamando com um nome diverso do nosso a coisa que pensa, e nósteríamos concordado imediatamente com ele, se houvéssemos intuído o seupensamento, o que não conseguiu explicar-nos com as palavras de sua afirmação.Dizem que a definição pode sanar tal erro; assim, se nesta questão se definisse oque é valor (virtus), tornar-se-ia claro, dizem, que a controvérsia gira só em tornoda palavra, e não da coisa. Mas, mesmo concordando com isto, quantos bonsdefinidores poderemos encontrar? E isso embora se tenha discutido bastantesobre a arte de definir, o que não é oportuno tratarmos aqui, nem merece semprea minha aprovação.

Nem considero o caso de não ouvirmos bem umas coisas e disputarmoslongamente sobre elas como se as tivéssemos ouvido. Quando, há pouco, quis dizer“misericórdia” com uma certa palavra púnica, afirmaste ter ouvido, daqueles quetêm familiaridade com esta língua, que aquela palavra significa “piedade”. Euopunha-me, afirmando que tinhas esquecido de todo o que tinhas ouvido, pois meparecia teres dito não “piedade”, mas “fé”, embora tivéssemos sentados bemperto, e certamente estas duas palavras não podiam levar a um engano pelasemelhança do som.

Por um bom lapso de tempo pensei, todavia, que não soubesses aquilo que te foradito, e no entanto era eu que não sabia o que havias dito; ora, se eu tivesseouvido claramente as tuas palavras, não teria recebido a impressão, nadaabsurda, que a língua púnica indicasse com o mesmo vocábulo “piedade” e“misericórdia”. Tais coisas ocorrem com freqüência mas, como disse, vamos deixá-las de lado, para não dar a impressão que quero atribuir culpa às palavras pela

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negligência de quem ouve, ou até pela surdez dos homens. O que mais aflige é oque disse acima, isto é, o não conseguirmos conhecer o pensamento de quem fala,embora ouvindo claramente as palavras, e palavras latinas, e sendo nós da mesmalíngua.

CAPÍTULO XIV - CRISTO ENSINA INTERIORMENTE, O HOMEM AVISAEXTERIORMENTEPELASPALAVRAS

AGOSTINHO

– Porém agora admito que, quando as palavras tenham sido ouvidas por quem jáas conhece, a este possa parecer que quem fala tenha realmente pensado no seusignificado; mas significará talvez que também aprendeu o que agora estamosindagando, isto é, que aquele tenha falado a verdade? E, porventura, os mestrespretendem que se aprendam e retenham os seus conceitos pessoais e não asdisciplinas mesmas que querem ensinar quando falam? Mas quem seria tão toloem mandar o seu filho à escola para que aprenda o pensamento do professor? Masquando tiverem exposto com palavras todas as disciplinas que dizem professar,inclusive as que concernem à virtude e à sabedoria, então os discípulos irãoconsiderar consigo mesmos se as coisas ditas são verdadeiras, consultando averdade interior conforme sua capacidade. E é então que, finalmente, aprendem;e, quando dentro de si descobrem que as coisas ditas são verdadeiras, louvam osmestres sem perceber que elogiam homens mais doutrinados que doutos, se é queaqueles, também sabem o que dizem. Erram, pois, os homens ao chamar demestres outros homens, porque na maioria dos casos entre o tempo da audição e otempo da cognição não se interpõe tempo algum; e, como depois da admoestaçãodo professor, logo aprendem em seu íntimo, julga que aprenderam pela fala domestre exterior, que nada mais faz do que admoestar.

Mas sobre a importância das palavras, bem considerada no seu conjunto, não épequena, falaremos, se Deus permitir, em outro lugar. Por ora avisei-te apenasque não lhes atribuas importância maior do que é necessário, para que não secreias, mas também comece a compreender quão grande é a verdade do que estáescrito nos livros sagrados que não se chame a ninguém de mestre na terra, pois overdadeiro e único Mestre de todos está no céu. E o que há nos céus, no-loensinará Aquele que, por meio dos homens, também nos admoesta com sinaisexteriores, para que, voltados para Ele interiormente, sejamos instruídos. Amar econhecer a Ele constituem a bem-aventurança, que todos afirmam buscar, masbem poucos são os que se alegram por tê-la encontrado. E agora gostaria de ter astuas impressões sobre este meu arrazoado. Se tu soubesses que eram verdadeiras

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as coisas expostas, dirias que as conhecias quando interrogado sobre cada umaseparadamente; observa, portanto, de quem as aprendeste; não certamente demim, a quem terias respondido, se te indagasse sobre elas. Se, ao contrário, sabesque não são verdadeiras, nem eu nem Aquele tas ensinou: eu, porque nunca teriaa possibilidade de ensinar; Aquele, por tu não teres ainda a possibilidade deaprender.

ADEODATO

– Eu, na verdade, pela admoestação das tuas palavras aprendi que servem apenaspara estimular o homem a aprender, e que já é grande resultado se por meio dapalavra transmite-se um pouco do pensamento de quem fala. Se foi dita averdade, isto no-lo pode ensinar somente Aquele que, por sinais externos, avisa oque habita dentro de nós; Aquele que, pela sua graça, hei de amar com tanto maisardor quanto mais eu progredir no conhecimento. Mas quanto a essa tua oração,que usaste continuamente, sou-te grato particularmente por isto: que ela previu edesfez todas as objeções que tinha preparado para te fazer, e nada descuidastedaquilo que me suscita dúvidas, e sobre o que não me responderia assim aquelesecreto oráculo, como tuas palavras afirmaram.

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PERFILBIOGRÁFICO-SANTOAGOSTINHO(354-430)

“Ó Senhor, cumpre em mim Tua obra e revela-me essas páginas!”

Com estas palavras, o Bispo Agostinho de Hipona, aos 43 anos de idade, abre o seucoração. Não fora fácil o caminho de sacerdote, que, dentro do silêncio das noitesafricanas, invocava o auxílio divino. Agostinho conhecera os prazeres do mundo, asensualidade das festas pagãs, o aplauso das multidões deslumbradas por suaoratória. E quando, finalmente, se voltou para dentro de si, já era bispo há pelomenos dois anos, venerado em toda a África.

Reconstruindo sua existência desde o princípio, ele visa a expurga-la de toda culpa,para entregá-la novamente a Deus. Ao escrever as Confissões, numa exposição porvezes ingênua de todos os seus sentimentos e conflitos até a reconquista da fé,Agostinho dirige-se principalmente a Deus. Mas não esquece o rebanho que lhe foiconfiado: “Quem eu sou nesse exato momento é o que desejam saber muitos. Maspara que desejam saber isso? Para congratular-se contigo, ó Senhor, ouvindo comoeu avancei por obra Tua pelo Teu caminho, e para rezar por mim, sentindo quantomeu peso me faz retardar o passo. Se assim for, é para esses que falo”.

Aperdiçãodaalmaresideemalgumasperas

Agostinho nasceu a 13 de novembro de 354, em Tagaste, pequena cidade daNumídia, atual Argélia. Sua infância e adolescência transcorreram principalmenteem sua cidade natal, no ambiente limitado de um povoado perdido entremontanhas. Mais tarde, descreveria em cores carregadas este período. “Cometiapequenos furtos na despensa da casa ou na mesa, por gulodice ou para ter algo adar a meus camarada. Mesmo nos jogos, muitas vezes conseguia, levado pelaânsia de superioridade, vitórias fraudulentas”. Um furto de peras ficou-lhesobretudo na memória. “Fi-lo não premido pela necessidade, mas por desprezo àjustiça e excesso de maldade”.

Suas observações sobre a severidade do ensino da época são bem maisequilibradas, encerrando um protesto ainda hoje válido: “Para aprender tem maisvalor uma curiosidade livre do que a coerção baseada no medo”.

“Quantas misérias e enganos experimentei naquela época, quando era rapazinho eme propunham, para viver direito, a obediência àqueles que me instruíam, paraque nesse mundo construísse minha imagem...”

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De Tagaste, Agostinho vai para Madaura, onde inicia os estudos de retórica. Orapaz parece talhado para a oratória. Lê e decora trechos de poetas e prosadoreslatinos, dentre os quais Virgílio e Terêncio. Adquire, com Varrão, noções decaráter enciclopédico. Aprende regras elementares de música, física e matemática.Recebe tinturas de filosofia, o suficiente para compreender certos poetas. Emcompensação, jamais dominará o grego.

Agostinho fará os estudos superiores em Madaura e Cartago. Depois de longosanos receberá, finalmente, de acordo com os programas da época, o título de vireloquentissimus atque doctissimus.

Ondeestáafelicidade?

“Vim a Cartago, e uma multidão de torpes amores rodeou-me de todo lado. (...)Amar e ser amado era para mim uma coisa deliciosa, tanto mais quanto podiatambém possuir o corpo da pessoa amada”. Na realidade, porém, Agostinho nãoera o pecador que ele descreve nas suas Confissões. Segundo o testemunho de umadversário, o bispo donatista (herético) Vicente de Cartena, o estudanteAgostinho era um jovem ponderado, dedicado aos livros.

Não que lhe faltassem oportunidades mundanas. Cartago, a maior cidade doOcidente latino depois de Roma, era um dos grandes centros do paganismo, quedois séculos de doutrina cristã ainda não haviam conseguido derrubar. A procissãoanual à deusa do céu (a antiga Tanit dos fenícios) atraía multidões ávidas deprazer, vindas de todas as partes da África. Na grande metrópole realizavam-se osespetáculos sensuais, comedias e pantomimas que contavam as aventuras eróticasde deuses e homens. Agostinho, um rapaz de apenas dezessete anos, deixou-secativar pela alegria e esplendor das cerimônias em honra dos milenares deusesprotetores do império.

Em Cartago permanece durante três anos, unindo-se a uma mulher emconcubinato – o que as leis e costumes da época consideravam perfeitamentenormal. “Tinha só a ela e era-lhe fiel, como um marido”, escreve mais tarde. “Tivede experimentar com ela, às minhas custas, a diferença entre um compromissoconjugal criado para procriar filhos e o acordo de um coração apaixonado, do quala prole nasce ainda que não desejada, mesmo que depois se seja levado a amá-la”.Referia-se a seu filho Adeodato, nascido em 373.

“Naquele período tão incerto, estudava os livros de eloqüência, na qual desejava

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destacar-me com um fim reprovável, por orgulho, pelo prazer da vaidade humana.Seguindo, portanto, a ordem tradicional do ensino, chegara a um livro, deCícero...” Continha ele uma discussão imaginária entre Cícero e Hortênsio, outrogrande orador romano, em torno do valor da filosofia.

Cícero demonstrava que a verdadeira felicidade reside na busca da sabedoria.

Agostinho sentiu-se fascinado. Os dezenove anos de sua vida pareceram-lhecompletamente desperdiçados. A busca e a investigação tornaram-se, daquelemomento em diante, seu objetivo primordial.

De início, decidiu dedicar-se ao estudo das Escrituras, mas logo se cansou: oadmirador de Virgilio, Terêncio e Cícero ficou desiludido diante do estilo simplesda Bíblia.

Omestredaeloqüênciaeumbêbadotrilhamcaminhosiguais

De volta à cidade natal, Agostinho abre uma escola particular, onde ensinagramática e retórica. Gosta de ensinar; durante treze anos esta será sua profissão.Seus múltiplos interesses intelectuais, entre os quais o ocultismo e a astrologia,não o impedem de tornar-se excelente professor, capaz de despertar a curiosidadedos alunos.

No outono de 374 deixa Tagaste, transferindo-se para Cartago. Mais uma vezdedica-se ao ensino da retórica. “Os estudantes receberam minha ordem deaprender, além de literatura, a refletir e a habituar seu espírito na concentraçãosobre si mesmos”. Os cartagineses, porém, são demasiado turbulentos. Agostinhosegue para Roma, em 383. Pouco tempo depois verificaria que os jovens romanos,embora mais quietos e gentis, têm o hábito de abandonar as aulas na ocasião emque devem pagar os honorários aos mestres. A luta contra os maus pagadoresdura um ano, até que um concurso lhe dá a cátedra de eloqüência em Milão.

Igrejas majestosas ao lado de templos pagãos; teatros e circos que nada ficavam adever aos romanos; assim era Milão, na época a capital administrativa da parteocidental do império, a residência do imperador. Era, sobretudo, uma cidade ondehavia a possibilidade de fazer carreira.

Agostinho consagrava as manhãs aos cursos de eloqüência, passando as tardes nasantecâmaras dos ministérios. Esperava obter a presidência de um tribunal ou

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posto de governador de uma província. Era, à primeira vista, um homem feliz:pago pelo Estado, personagem quase oficial, respeitado como professor. Noentanto, dominava-o uma profunda inquietude quanto aos rumos da suaexistência.

Por volta dos fins de 385, o mestre de eloqüência é escolhido para recitar asaudação anual do imperador. Agostinho sai de casa com alguns amigos, dirigindo-se ao palácio imperial.

“Ia para mentir”, escreverá ao lembrar a oração de louvor em honra deValentiniano II, então com catorze anos. No caminho encontra um “pobre mendigobêbado, que ria e fazia arruaça”. A cena, embora o aborreça, revela-lhe umaspecto da verdade que procurava. O bêbado, com um pouco de dinheiro,alcançara a felicidade. “È claro que essa não era autentica alegria, eu sei disso.Mas por acaso era autentica a alegria que eu procurava com as minhas ambições eenredos tortuosos? Numa noite ele digeriria o vinho e sua bebedeira passaria; eu,ao contrário, iria dormir e acordaria com meu tormento, hoje, amanhã, quem sabeaté quando...”

A inquietude é tema tipicamente agostiniano, um aspecto permanente de seudesenvolvimento. O despertar de seu espírito crítico levou-o a abandonar ocristianismo que sua família professava. Agostinho adotou o maniqueísmo deMani, profeta persa que pregava uma doutrina na qual se misturavam Evangelho,ocultismo e astrologia. Segundo Mani, o bem e o mal constituíam princípiosopostos e eternos, presentes em todas as coisas. Era uma religião teoricamentesevera, mas cômoda na prática: o homem não era culpado por seus pecados, poisjá trazia o mal dentro de si. Ninguém era obrigado a aceitar a fé sem antes discuti-la e compreendê- la. A doutrina seduziu, como ele mesmo diria: “um jovem amanteda verdade, já orgulhoso e loquaz devido às disputas mantidas na escola doshomens doutos”. O abandono do maniqueísmo viria mais tarde, ocasionado pelainsatisfação das respostas que a doutrina oferecia. Seu lugar seriatemporariamente preenchido por um profundo ceticismo.

Umacançãodecriançapodemudarumavida

Entre os dignitários procurados por Agostinho figurava Ambrósio, bispo de Milão,um dos homens mais poderosos do império. O jovem professor buscava com eleuma colocação oficial.

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Em vez disso, encontrou respostas para algumas de suas dúvidas. “Esse homem deDeus acolheu-me como um pai. Eu imediatamente o amei’. Passa a assistir, todosos domingos, aos sermões de Ambrósio. Recomeça a ler os Evangelhos. Procuradiscutir com o sacerdote, que, entretanto, se nega ao debate. Ambrósio sabe que,para o antigo maniqueu, disputas filosóficas têm menos valor do que a aceitaçãoda crença cristã por intermédio da fé.

Por esta época volta para a África a mulher com quem vivera durante catorzeanos. A separação foi provocada pela mãe de Agostinho, Mônica, que desejavapara o filho uma união cristã, e que chegou ao ponto de lhe arranjar uma noiva.Agostinho, em seus escritos, jamais procurou justificar a sua fraqueza e o excessode zelo materno. Ao contrário, falará com remorso de sua união ilegítima e daconcubina cujo nome jamais ousará dizer em suas Confissões.

As dúvidas espirituais de Agostinho eram partilhadas por dois amigos, Alípio eNebrídio.

Tinham, os três, abandonado a família para viver juntos uma nova experiência.“Éramos três bocas de pobres famintos, que desabafávamos entre nós nossamiséria e esperávamos que nos outorgassem alimento no momento justo”. Ao ladode seus companheiros, decidiram juntar seus bens e dedicar-se à filosofia. Mashavia uma dificuldade: como suas noivas e esposas acolheriam o projeto? Alípioaconselhava Agostinho a permanecer solteiro, para entregar-se totalmente aosestudos e meditações. Este, porém, como disse nas Confissões, “estava bem longeda grandeza de alma desses sábios. A mim, acariciava-me a morbidez da carne ecom mortífera suavidade arrastava a minha cadeia, temendo livrar-me dela erejeitando essas palavras de incitação ao bem e essa mão libertadora como quemsente remexer uma ferida”.

Em 386 chega à resposta definitiva. Enquanto Alípio e Agostinho meditam, umavoz infantil, vinda da casa da vizinha, repetia: “Toma, lê”. Era o refrão de umacanção infantil que a criança entoava. “Refreando o ímpeto das lágrimas, levantei-me, interpretando essa voz como uma ordem divina’. O livro está lá: São Paulo.Toma-o, abre-o ao acaso e lê: “Não nas orgias e nas bebedeiras, não nos deslizes enas impudências, não nas discórdias e na inveja, mas revesti-vos do Senhor JesusCristo e não deis à carne concupiscências”.

Ameditaçãoseinspiranomurmúriodaágua

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Na pequena vila de Cassiciaco, Agostinho encontra o lugar ideal para seus estudose meditações. As frias manhãs de outono e inverno transcorrem durantediscussões. As noites são dedicadas ás preces. Em Cassiciaco ele escreve suasprimeiras obras: De Vita Beata, acirrada polêmica contra os descrentes; ContraAcadêmicos; De Ordine, motivada pelo murmúrio da água que corria junto àstermas – um estudo sobre a ordem e a harmonia da natureza governada por Deus.Ali são também escritos os Solilóquios, uma invocação quase contínua a Deus.Terminadas as férias, Agostinho escreve a Milão, dizendo que arranjassem “outrovendedor de palavras para os estudantes”. Permanece em Cassiciaco até março de387. Depois volta à cidade para assistir às aulas de catecismo. Na noite de vigíliada Páscoa, juntamente com Alípio e seu filho Adeodato, Agostinho recebe obatismo das mãos de Ambrósio. Era o amanhecer de 25 de abril de 387, dia daRessurreição.

Agostinho resolveu retornar à África, para realizar, na terra natal, seu ideal devida monástica. A viagem, porém, foi retardada pela doença de sua mãe, vítimade uma febre maligna, que a levaria à morte em poucos dias. “Com apenas 56 anosincompletos, tendo eu 33, essa alma religiosa e devota libertou-se do corpo”. Ogrande sonho de Mônica se realizara: o filho entregara-se de corpo e alma aocristianismo.

Agostinho chega à África em 388. Cinco anos haviam passado desde que,desgostoso com a inquietude dos estudantes cartagineses, partira para Roma.Volta à Tagaste, onde vende a propriedade deixada pelo pai e distribui o dinheiroentre os pobres. Conserva apenas uma pequena porção de terra, onde, ao lado dosamigos Alípio e Ovídio, funda o primeiro mosteiro agostiniano. São poucos osdiscípulos, e a regra que os une não é a das ordens monásticas orientais. Seu idealé a contemplação, o otium deificante. Mas ao misticismo junta-se a necessidade deaprofundar definitivamente os problemas do espírito. Prova disso é o De DiversisQuaestionibus, nascido das discussões no interior do mosteiro.

Nos dois anos de permanência em Tagaste, Agostinho escreve outros livros. DeMúsica, iniciado em Milão, De Genesi (contra os maniqueus). De Vera Religione,considerado uma de suas primeiras obras-primas. Neste livro seu interlocutor éAdeodato, que, com apenas dezesseis anos, revela uma maturidade e perspicáciaque assombram o pai. O rapaz consegue acompanhar Agostinho em seus difíceisargumentos sobre o valor das palavras. Somente em raros momentos confessahesitações: “Até aqui minha inteligência não chega...” Então o raciocínio deAgostinho torna-se mais simples, mais discursivo.

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Adeodato morreria no ano seguinte, com apenas dezessete anos. Muitos, porém, osubstituíram, continuariam o ideal que animava os habitantes do mosteiro deTagaste, dividindo-se entre a ação e a vida contemplativa.

Oapelodamultidão:umpastorparaenfrentarosleõesvorazes

No início de 391, a chamado de um funcionário imperial, Agostinho segue paraHipona. A cidade, com cerca de 30 mil habitantes, funcionava com grande centrocomercial: no seu porto era embarcado o trigo enviado a Roma. Encostada nasmontanhas cobertas de pinheiros, a segunda metrópole africana em importânciagozava de posição privilegiada, sendo até mesmo bem protegida por fortificações.

Certo dia Agostinho assistia à missa quando o velho bispo da cidade, Valério,começou a explicar ao povo as necessidades da diocese, acentuando a urgência deter um sacerdote que o ajudasse. Da multidão elevou-se, cada vez mais distinto, opedido: “Agostinho padre”. Agostinho procurou resistir, defendendo atranqüilidade de sua vida monástica, mas a insistência da população triunfou: comos olhos cheios de lágrimas, ajoelha-se frente a Valério e é ordenado sacerdote.Tem 37 anos e sabe que pesadas tarefas o esperam; terá de lidar comnecessidades objetivas do povo, ao lado de suas preocupações espirituais. Seutemperamento contemplativo, porém, permanecerá sempre fiel aos ideais deCassiciaco e Tagaste. Funda, com Alípio, um segundo mosteiro. Seus discípulosserão, mais tarde, bispos em várias cidades da África – o catolicismo destecontinente será marcadamente agostiniano.

Em 396, atendendo ao pedido de Valério, Agostinho é sagrado bispo auxiliar.Conserva o hábito de penitente, recusando-se a usar anel e mitra. Desde osprimeiros dias de sua sagração, teve de se defrontar com “leões vorazes”, osheréticos que estavam por toda parte. Ele mesmo, em seu livro sobre heresias,chegaria a contar 88. A principal delas era a seita dos donatistas, que, em fins de312, se havia separado da Igreja, alegando que os católicos mostraram-sedemasiado servis ao poder imperial por ocasião das perseguições de Diocleciano.Na época, os donatistas lutavam violentamente, e não só com discussões. Opróprio Agostinho salvara-se por milagre de uma emboscada. Um outro bispo foraferido de morte diante altar.

Ainda quando simples padre, Agostinho havia percebido a gravidade do cisma quese desencadeava sobretudo nas regiões berberes menos romanizadas, entre ospobres do campo oprimidos pelos proprietários rurais. Na agitação donatista haviaum amplo aspecto de revolta social. Camponeses, escravos e desertores

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incendiavam e saqueavam os grandes domínios.

Sessenta cristãos já haviam sido trucidados. Era tempo, como escrevia Possídio, deque a Igreja “longamente humilhada reerguesse a cabeça”. Agostinho iniciou aluta convidando os chefes donatistas para discussões públicas. Escreve contra elesmais de uma dúzia de livros e opúsculos, nos quais procura demonstrar que asantidade da Igreja universal não pode ser negada ou destruída pelas culpas dealguns de seus membros.

Éprecisopaciênciadiantedeolhosemchamas

No início do século V, caracterizado por perseguições e heresias, Agostinho é umdos personagens mais destacados. As desordens desencadeadas pelos donatistaslevam o poder oficial a intervir. Em 411 é organizada uma grande conferência emCartago; 279 donatistas, enfrentam 264 bispos católicos – entre os quaisAgostinho – numa discussão pública. Agostinho, “o lobo mortífero que ameaçadestruir nosso rebanho”, como diziam os donatistas, domina a reunião. A 26 dejunho de 411, o cisma era suprimido legalmente.

Grande parte da doutrina agostiniana se desenvolve neste período, nascida noschoques em que o bispo de Hipona intervém não só como representante oficial daIgreja, mas também a título pessoal, por uma profunda necessidade de suainteligência. Por isso, as batalhas que trava têm um toque particular, tornam-severificações e pesquisas que contribuem para desenvolver suas opiniões.Multiplicam-se encontros, discussões públicas, sínodos e concílios, mais numerososque os de Roma. Mas em nenhuma ocasião Agostinho – sempre orador oficial –esquece o fato de que mais valioso que a palavra é o amor, de que os heréticos sepersuadem com exemplos de amor fraterno, não com argumentações sutis. “Osolhos dos doentes queimam, por isso são tratados com delicadeza... Os médicos sãodelicados até com os doentes mais intolerantes: suportam o insulto, dão oremédio, não revidam as ofensas. Fique bem claro que não somos (católicos edonatistas) adversários: há um que cura e outro que é curado”.

Aespadadosbárbaroséacóleradosantigosdeuses

24 de agosto de 410. Uma terrível notícia abala o mundo: Roma, a capital doimpério, a cidade sagrada que desde a ocupação gaulesa de 387 a.C. nunca maisenfrentara a desonra da invasão, fora tomada por visigodos de Alarico. Forçandoos muros aurelianos da Porta Salária, os bárbaros dedicam-se ao saque,

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incendiando e causando depredações. Mensageiros apressados trazem notíciastrágicas, dizem que os cadáveres são tantos que não é possível enterrá-los. Eagora, seguido por uma longa fileira de carros com os tesouros roubados dostemplos, Alarico dirige-se para o sul, para empreender a conquista da África.

Um mito apagou-se. Durante séculos, pareceu que Roma era a predileta dos céus.

Primeiro, protegida pelos deuses que Enéias trouxera de Tróia, depois pelo Deusque Pedro trouxera de Jerusalém. Agora não se podia mais crer nisso. A fraquezado império – que precisou consentir na entrada pacífica dos bárbaros em seuterritório, que tivera de recrutar corpos militares inteiros entre os recém-chegados, que vira seus recursos desperdiçados nas lutas entre pretendentes aimperador – tornava-se patente. No Ocidente empobrecido, afastado dasimportantes rotas comerciais que asseguravam a riqueza de Constantinopla, aautoridade imperial diluiu-se, substituída pela concentração do poder em mãos dosgrandes proprietários de terras.

Somente a Igreja sobreviveria, conservando, em sua estrutura baseada na divisãoadministrativa do império, os vestígios da civilização romana. Somente a Igrejadispunha de elementos intelectualmente capazes, submetidos a uma rígidaorganização, de modo a conservar a centralização que caracterizara o mundoromano. A vontade única do imperador foi aos poucos substituída pela vontadeúnica do bispo de Roma.

Diante dos refugiados que fugiam à aproximação dos visigodos, diante daquelesque diziam que na ruína de uma cidade perecera todo o império, eleva-se a voz deAgostinho:

“Vamos, cristãos, germes celestes, peregrinos na Terra, que andais à procura dacidade celeste nos céus, que desejais juntar-vos aos anjos, compreendei bem queestais aqui de passagem...”

São palavras que dão a entender que nesse mundo tudo passa, e que ascivilizações são mortais como os indivíduos. Mas os pagãos – e mesmo muitoscristãos amedrontados – parecem surdos às suas palavras. Roma caiu porque osantigos deuses foram ultrajados. Alarico não passa da mão vingadora de Júpiter.

Para Agostinho, inicia-se outra batalha, uma das mais decisivas na história docristianismo.

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Entrevárioséprecisoescolher

“A galinha come o escorpião e, digerindo-o, transforma-o em ovo. E como não falarde Roma? Não temos lá muitos irmãos? Não está lá uma grande parte daJerusalém terrestre? É o que digo, quando não me calo a respeito dela, a não serque não seja verdade o que dizem de nosso Cristo, que Ele seria culpado pelaqueda de Roma, protegida por divindades de pedra e de madeira... Deuses quetêm olhos e não vêem, orelhas e não ouvem. Eis a que guardiões foi confiada Romapor homens doutos: a guardiões que não enxergam. Se tais deuses podiamproteger Roma, por que razão morreram antes dela? Sei que respondem – Romamorreu – É verdade, mas eles (os deuses) também morreram”.

O trabalho em que Agostinho apresenta a defesa do cristianismo e convida seuscontemporâneos a compreender o sentido profundo da história é a sua obra-prima,A Cidade de Deus. Já não se trata de um reino de Deus que sucede à vida terrena.A cidade de Deus e a dos homens coexistem: a primeira, antes simbolizada porJerusalém, é agora a comunidade dos cristãos. A cidade dos homens tem poderespolíticos, moral e exigências próprias. As duas cidades permanecerão lado a ladoaté o fim dos tempos, mas depois a divina triunfará para participar da eternidade.

Agostinho levou 13 anos para escrever os 22 livros da obra que teria enormeinfluência em toda a Idade Média. Para ele, Deus legitima a própria existência dopoder, sem garantir o exercício concreto deste. A providência divina não confere aum ato o caráter de ato moralmente cristão. Desta forma, um católico podeafirmar que nada se faz sem Deus, do qual procedem o princípio de autoridade e aorientação misteriosa dos fatos. E ao mesmo tempo, pode evitar que ocristianismo seja responsabilizado por este ou aquele acontecimento particular. Ocristão pode, simultaneamente, ver a mão da providência na queda de Roma, elutar contra o perigo bárbaro com todo o coração e todas as suas forças. A filosofiapolítica de Agostinho é uma filosofia de tempos difíceis, e serviu admiravelmenteaos objetivos de seu autor, destruindo a argumentação dos polemistas pagãos.“Roma não é eterna, porque só Deus é eterno”.

O perigo imediato passara, a morte havia paralisado, em Consenza, a marcha deAlarico.

O chefe bárbaro jazia, com seu cavalo e seus tesouros, no leito do rio Busento.Agostinho, porém, não encontrava descanso. Novas heresias, como a dospelagianos, pretendiam afastar do cristianismo todo o elemento sobrenatural,

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ameaçavam a comunidade dos fiéis. O bispo prossegue em sua luta, procurandosempre antepor os argumentos do coração aos da razão. As palavras que maisfrequentemente aparecem em seus escritos são amor e caridade. Amor, para ele,significa o conjunto de forças que leva o homem a um determinado caminho,escolhido pela consciência. “Há amores que devem ser amados, e amores que nãodevem ser amados”. Para Agostinho, o conhecimento abrange o homem inteiro,mente e coração. A alma é uma substância dotada de razão e apta para governaro corpo. A fé serve de ponto de partida para colocar a mente na direção certa,marca os limites do campo que a razão deverá preencher. A realização vemquando se compreende aquilo em que se acredita.

Sua doutrina nasce nos estudos que se originaram da necessidade de responderaos heréticos. Agostinho procura uma filosofia – que ele entende como sendo ocaminho para a felicidade – capaz de englobar o cristianismo e a salvação. Adotaalgumas posições dos seguidores de Platão, como a concepção de dois níveis deconhecimento – um através dos sentidos, e outro percebido unicamente pelarazão. E junta-lhes a figura de Cristo. Com esses elementos iniciais ergue umedifício filosófico que muito influenciaria o pensamento ocidental e que, em algunsaspectos, conserva ainda hoje toda a sua força polêmica.

Muitas vezes, porém, ao desenvolver uma idéia, interrompe o raciocínio paradeixar fugir um grito de amor a Deus: “Ó Senhor, amo-Te. Tu me estremecestemeu coração com a palavra e fizeste nascer o amor por Ti. Tarde Te amei, ó Belezatão antiga e tão nova, tarde Te amei...

Tocaste-me, e ardo de desejo de alcançar Tua paz”. Mesclavam-se nele o polemistainimigo das heresias, o administrador dos recursos da Igreja e o místico, queescolhera, tantos anos atrás, uma vida de recolhimento.

Umaárvoretemfolhasverdes.Comoserãoosfrutos?

“Agostinho, vida”, é o grito que ressoa na Basílica da Paz de Hipona, a 26 desetembro de 426. É um dia de grande emoção para os fiéis: o bispo Agostinhodesigna o seu sucessor na pessoa do Padre Heráclio. Repete-se, depois de trintaanos, uma cena que os habitantes da cidade não esqueceram – a escolha deAgostinho por Valério. Como aquele que o nomeara, Agostinho é agora um velho.Tem 72 anos. Relembra aos fiéis que uma vez exprimira o desejo de ter cinco diaslivres por semana para poder escrever e rever as obras que de todos os lugareslhe solicitavam.

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Nascem, depois de um ano de trabalho, os dois volumes de Retratações, quecomentam dezenas de obras. Sua “especialização” como escritor não o impede,porém, de continuar a se dirigir ao povo.

Durante quarenta anos, desde que reencontrou a fé, Agostinho teve sua vidasobrecarregada. Primeiro constrói seu mosteiro. Torna-se depois sacerdote ebispo, encarregado até mesmo de distribuir justiça em nome do império.Conseguiu, entretanto, permanecer fiel à sua vocação de contemplativo e arranjoutempo para realizar uma obra literária gigantesca – 113 trabalhos, 224 cartas emais de quinhentos sermões. Excetuadas as Confissões, escritas entre 397 e 398,foram precisos vinte anos para completar os 15 livros sobre a Trindade. O DeDoctrina Christiana, depois de parcialmente escrito, teve de aguardar quase trintaanos até que Agostinho pudesse cuidar da terça parte restante.

Poucos escritores do passado são conhecidos tão detalhadamente quanto ele. Seas Confissões revelam até mesmo os recantos de sua alma, os discursos quepronunciou em quarenta anos mostram-no sob outros aspectos. É fácil imaginá-locom sua voz, que a idade tornava apagada, usando uma linguagem direta e fácil,muito diferente das sutilezas de seus escritos. O antigo mestre de eloqüênciaconsegue transmitir e adaptar os conceitos mais abstratos às exigências e àcapacidade do auditório.

Falava duas vezes por semana na Igreja da Paz. Em certa ocasião, explicando SãoJoão aos fiéis, ficou tão entusiasmado que pregou durante cinco dias consecutivos,constantemente aplaudido. Mas o bispo não alimentava ilusões: ”Vossos louvoressão folhas de árvore ; gostaria de ver os frutos”. Muitas vezes lamentou adistância entre o seu pensamento, sua fé e amor a Deus, e as palavras queproferia. “...Entretanto, a atenção dos que me escutam prova-me que meu modode falar não é tão frio quanto possa parecer-me; pelo seu interesse compreendoque tiram dele algum proveito...”

Olugardopastoréàfrentedorebanho

Na primavera de 429, a África é dominada pelo terror. Chamados por Bonifácio,comandante do exército imperial, os vândalos atravessam o Mediterrâneo. Vêmcomo amigos. No entanto, passados poucos meses, o general é obrigado aempunhar as armas contra os soldados de Genserico. O Bispo de Hipona dirigepalavras severas a Bonifácio: “Olha a África, olha como está devastada.. Ninguémteria pensado ou suposto que o célebre Bonifácio, aquele que de simples tribuno,com poucos soldados, vencendo e destruindo toda resistência, conseguiu pacificar

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todas estas populações, teria se sujeitados aos bárbaros, que com tamanhaaudácia devastam e saqueiam tantas regiões outrora povoadas... Eu, que estouatento às últimas causas, sei quantos males a África sofre por causa dos pecadosde seus habitantes; mas não quisera que tu estivesses entre os malvados einíquos; por causa dos quais Deus flagela os que escolhe com penas temporais...”

Tarde demais. Os vândalos eram piores inimigos que os visigodos de Alarico. Seunome tornou-se sinônimo de destruição e morte. Em poucos dias devastaram aMauritânia, e em seguida a Numídia. Apesar dos esforços de Bonifácio, os bárbarostornaram-se donos de todo o país. As legiões romanas dominavam apenas trêscidades: Cartago, Cirta e Hipona. Nesta última, mais bem fortificada, Bonifácioprepara a derradeira defesa. Agostinho, aos 75 anos, vê que não há mais salvaçãopara os hiponenses. Embora, nas amargas horas de desânimo, peça a Deus que otire deste mundo, torna-se, como fizera vinte anos antes em relação aosrefugiados de Roma, o organizados do auxílio aos fugitivos. Torna-se a voz daÁfrica, a testemunha mais categorizada do fim da latinidade no continente.

Data desses dias uma das últimas cartas escritas a Honorato, bispo de Thiabe,para lembrar que ao pastor de almas não é permitido fugir ante os perigos, e queo lugar dos bispos é à frente dos fiéis, até o fim: “...não devemos, por causa dessesmales incertos, cometer a culpa certa de abandonar nosso povo. Daí, adviria a elegrande mal, não quanto às coisas desta vida, mas da outra, que merece serprocurada com maior diligência e solicitude... Temamos que se extingam,abandonadas por nós, as pedras vivas, mais que a obra do incêndio que queima aestrutura de nossos edifícios terrenos. Temamos a morte dos membros do Corpode Cristo, privados do alimento espiritual, mais que as torturas a que a ferocidadedos inimigos poderia submeter os membros do nosso corpo...”

TodoconhecimentoresideemDeusenaalma

Catorze longos meses resistiria Hipona ao assédio dos vândalos. A cidade estavarepleta de refugiados, a quem era preciso alimentar e vestir. Ao inimigo externojuntavam-se a carestia, a fome e as epidemias. Agostinho só podia oferecer a todaessa gente as suas preces. “Vós dizeis – Desgraçados de nós, o mundo morrerá.Mas ouvi a palavra: Céu e Terra passarão, mas a palavra de Deus não passará”.

Muitos começaram a julgá-lo capaz de milagres. Certo dia trouxeram-lhe umapessoa doente, para que ele a curasse com sua benção. Agostinho respondeu:“Meu filho, se tivesse tais poderes, começaria por curar a mim mesmo”. Suadoença durou poucos dias. Quando percebeu que a morte se avizinhava, pediu que

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o deixassem só, para que pudesse rezar. Nas paredes do quarto mandara afixarpergaminhos nos quais fizera escrever os salmos penitenciais de Davi.

Agostinho morreu na noite de 28 para 29 de agosto de 430. “Não fez testamento”,escreveu Possídio, “porque, pobre para servir a Deus, não tinha bens a deixar...Mas deixou à Igreja um clero numeroso e mosteiros cheios de homens e mulheressob voto de continência e obedientes a seus superiores”.

De livro na mão e coração em chamas – assim os pintores medievais viram o bispode Hipona. O livro simboliza a ciência; o coração inflamado, o amor. Sabedoria eamor foram os seus dons inseparáveis, que muito contribuíram para que o PapaJoão II declarasse, em 534, que “a Igreja de Roma segue e conserva as doutrinasde Agostinho”.

Ao construir sua filosofia como uma arma de defesa da fé, Agostinho forjou umavisão do mundo que influenciaria, por muitos séculos, todos os líderes espirituaisdo ocidente. A Cidade de Deus, síntese de filosofia, teologia, estudo das relaçõesentre o Estado e a liberdade de consciência, marcou profundamente o pensamentopolítico da Idade Média. Carlos Magno, considerava-o o seu livro preferido.

Agostinho foi o autor mais citado no último Concilio do Vaticano, destinado a abrirnovos rumos para o cristianismo dos tempos atuais. O fato talvez tivessesurpreendido aquele que, nos Solilóquios escritos ao pé da água que corria pelastermas de Cassiciaco, declarava que sua única finalidade era conhecer Deus e suaprópria alma.