Top Banner

of 167

Da Hermeneutica Filosofica a Hermeneutica Critico-Allterativa

Jul 09, 2015

Download

Documents

Lise Silveira
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript

EDUARDO CHAMECKI

DA HERMENUTICA FILOSFICA HERMENUTICA CRTICO-ALTERATIVA: CAMINHOS PARA DESCOLONIZAO DO SABER JURDICO

Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da Universidade Federal do Paran, como parte das exigncias para obteno do ttulo de Mestre em Direito das Relaes Sociais. Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig

CURITIBA 2010

2

TERMO DE APROVAO

EDUARDO CHAMECKI

DA HERMENUTICA FILOSFICA HERMENUTICA CRTICO-ALTERATIVA: CAMINHOS PARA DESCOLONIZAO DO SABER JURDICO

Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Direito das Relaes Sociais, no Curso de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da Universidade Federal do Paran

Orientador:

Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig Setor de Cincias Jurdicas, UFPR

Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca Setor de Cincias Jurdicas, UFPR

Prof. Dr. Antnio Carlos Wolkmer Setor de Cincias Jurdicas, UFSC

CURITIBA 2010

3

Aos meus pais, Paulo e Rosi, e ao irmo Marcelo, pelo amor e carinho, pelos exemplos de dedicao e honestidade, e pelo incodicional apoio. Karina, meu eterno amor, por ser a pessoa maravilhosa que , e por tornar a vida mais alegre. Aos amigos para toda vida Beto e Ricardo.

4

AGRADECIMENTOS

Agradeo a todos que direta ou indiretamente apoiaram e tornaram possvel essa pesquisa. Em especial ao Prof. Celso Ludwig, pela edificante orientao, por ter sempre me recebido de braos abertos, e por saber tornar coisas complexas mais simples. Ao amigo Sidnei Machado, por ter aberto meus olhos para importncia de lutar por outros mundos. Ao amigo Christian Maas, pelo incentivo dirio, pela amizade fraterna e pela reviso do texto. Aos colegas de advocacia Roberto Mezzomo, Ricardo Weber e Renato Borgert, pela engrandescedora convivncia e valiosa troca de experincias.

5

A utopia est l no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcanarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu no deixe de caminhar. Eduardo Galeano

6

RESUMO

A crise da razo lgico-positivista da modernidade abre espao para reflexo sobre novas formas da razo. A hiptese se refere possibilidade de fundamentao filosfica de racionalidade hermenutica crtico-alterativa. Significa situar a hermenutica no horizonte da transmodernidade, dotando-a de perspectiva crtica. Objetiva-se reconhecer relao de compatibilidade e complementaridade entre razo hermenutica e razo alterativa. A razo hermenutica se origina no mbito do giro lingustico-hermenutico da filosofia. A linguagem assume condio de possibilidade do pensar e do conhecer, e a hermenutica de reflexo fundamental na filosofia. Renuncia racionalidade analtica, formalista e instrumental da modernidade, que se pauta pelos valores segurana, certeza, estabilidade, ordem e universalidade. Racionalidade marcada pela conscincia da temporalidade e condicionamento do compreender e do saber em razo da finitude e historicidade do ser. Prxis hermenutica possibilita abertura para outras formas de conhecimento alm do cientfico e abertura para o Outro com base na autoconscincia dos prprios preconceitos. A razo alterativa compreende as manifestaes que partem da premissa de subverso da lgica de hierarquizao e dominao que decorre do conceito eurocntrico que engendrou a totalidade moderna. Enunciao a partir do horizonte das vtimas do sistema, marginalizadas na exterioridade da totalidade. Fundamentos na filosofia da libertao de Enrique Dussel, no pensamento descolonial de Walter Mignolo e na transio paradigmtica de Boaventura de Sousa Santos. H relao de compatibilidade pela proximidade das categorias. Razo alterativa subsume aportes da historicidade, linguagem e abertura para o Outro da razo hermenutica, mas sob perspectiva que os transcendem para agregar viso crtica. H tambm complementaridade, pois atuam preponderantemente em mbitos diversos da vida. A hermenutica se direciona ao nvel ontolgico da tradio no mbito de cada cultura. A alteridade ao nvel tico-originrio (prtico-material) prontolgico da vida do sujeito humano, espao de enunciaes universais de sobrevivncia, de vivncia digna, de produo, reproduo e desenvolvimento da vida humana em sentido biolgico e antropolgico. O direito exemplo paradigmtico dos efeitos das alteraes na perspectiva do mundo e mutao nas formas da razo, sobre as relaes sociais. A prxis jurdica fornece contedo para fundamentao filosfica da razo hermenutica e da razo alterativa, e mesmo de racionalidade hermenutica crtico-alterativa. Palavras-chave: Transmodernidade. Razo. Hermenutica. Crtica. Libertao. Descolonizao. Direito.

7

ABSTRACT

The crisis of modern logical positivism opens up space for reflection on new forms of reason. The thesis develops the possibility of a philosophical foundation for criticalalternative hermeneutic reasoning, placing hermeneutics in the horizon of transmodernity and providing it with a critical perspective. It seeks the recognition of compatibility and complementarity relationships between hermeneutic and alternative reasonings. The hermeneutic reason originates in the "hermeneutic-linguistic turn" of philosophy. Language assumes a condition of possibility of thinking and knowing, and hermeneutics of critical thinking in philosophy. It renounces analytical, formal and instrumental rationality of modernity, which is guided by values of security, certainty, stability, order and universality. Rationality marked by an awareness of temporality and conditioning of understanding and knowledge due to the finitude and historicity of the being. Praxis hermeneutic allows an opening to other forms of knowledge beyond scientific, and an opening to the Other based on self-awareness of their own prejudices. The alternative reason comprises manifestations which proceed from the premise of subversion of the logic of hierarchy and domination that arises from the Eurocentric concept that has engendered all modern totality. Enunciation from the horizon of the victims of the system, marginalized in the externality of the totality. Based on the philosophy of liberation of Enrique Dussel, on the decolonial thinking of Walter Mignolo, and the paradigm shift of Boaventura de Sousa Santos. There is a compatibility relationship by the proximity of the categories. Alternative reason subsumes contributions of historicity, language, and openness to the Other of hermeneutic reason, but from a perspective that goes beyond, aggregating a critical view. There is also complementarity, since both act mainly in diverse aspects of life. Hermeneutics is directed at the ontological level of tradition in each culture. The alterity at the ethical-original (practical-material) status pre-ontological of the human subject life, the area of universal pronouncements of survival, worthy of living, production, reproduction and development of human life in a biological and anthropological. The law is a paradigmatic example of the effects of changes in world view, and changing the forms of reason, regarding social relations. The legal practice provides content to the philosophical basis of the hermeneutic and alternative reason, and even critical-alternative hermeneutic reason. Keywords: Transmodernity. Decolonization. Law. Reason. Hermeneutics. Critical. Liberation.

8

SUMRIO

INTRODUO ..........................................................................................................10 1 1.1 1.2 1.2.1 1.2.2 1.2.3 1.3 1.3.1 1.3.2 1.3.3 1.3.4 1.3.4.1 1.3.4.2 1.3.4.3 2 2.1 2.2 2.2.1 MODERNIDADE E RAZO LGICO-POSITIVISTA.........................................16 CONCEITO DE MODERNIDADE ...................................................................16 EPISTEMOLOGIA E TEORIA DO DIREITO NA MODERNIDADE .................19 Epistemologia e cincia .............................................................................19 Epistemologia jurdica e juspositivismo.......................................................24 Interpretao normativista do direito...........................................................30 PARADIGMA DA MODERNIDADE E CRISE PARADIGMTICA...................37 Conceito de paradigma e de transio paradigmtica ................................37 Razo moderna e paradigma da modernidade...........................................41 Crise da modernidade.................................................................................43 Crise do paradigma da modernidade ..........................................................44 Crise paradigmtica sob o vis da epistemologia....................................45 Crise sob o vis do direito .......................................................................49 Crise sob o vis da interpretao jurdica................................................53

HERMENUTICA FILOSFICA E RAZO HERMENUTICA .........................59 PARADIGMA DA LINGUAGEM E VIRADA HERMENUTICA ....................59 CATEGORIAS ELEMENTARES DA HERMENUTICA FILOSFICA...........64 Libertao da verdade pela experincia da arte: superao da conscincia esttica e da conscincia histrica...............................................................64

2.2.2 2.2.3

Anterioridade da compreenso em relao ao mtodo...............................68 Historicidade e preconceitos na compreenso: pr-compreenso e fuso de horizontes ....................................................................................................70

2.2.4 2.2.5

Estrutura dialgica da reflexo hermenutica .............................................75 Linguagem como horizonte da hermenutica .............................................76

9

2.2.6 2.2.7 2.3 2.3.1 2.3.2

Resgate da aplicao enquanto problema fundamental da hermenutica..80 Hermenutica jurdica na perspectiva da hermenutica filosfica...............82 RAZO HERMENUTICA E PRXIS ............................................................84 Razo hermenutica, filosofia prtica e funo da hermenutica...............84 Razo hermenutica e epistemologia: abertura para refundar o

conhecimento...............................................................................................90 2.3.3 3 3.1 3.1.1 3.1.2 3.1.2.1 3.1.2.2 3.1.3 3.1.3.1 3.1.3.2 3.2 3.2.1 3.2.2 3.2.3 3.3 3.3.1 3.3.2 3.3.3 Razo hermenutica e abertura para a alteridade do Outro .......................99

RAZO ALTERATIVA E HERMENUTICA CRTICA ....................................104 PERSPECTIVAS DE MUNDO ALTERNATIVAS MODERNIDADE...........104 Ps-modernidade......................................................................................105 Transmodernidade: perspectiva latino-americano de libertao do Outro 110 Filosofia da libertao e paradigma da vida concreta............................110 Afirmao analtica do Outro situado na exterioridade .........................117 Descolonialidade: a continuidade da modernidade-colonialidade ..........121 Do ps-colonialismo ao giro descolonial .............................................121 Pensamento descolonial .......................................................................127

RAZO ALTERATIVA .................................................................................130 Razo do outro e racionalidade de libertao...........................................131 Razo ps-ocidental (subalterna) e racionalidade descolonial .................135 Crtica da razo indolente e epistemologia do sul global ..........................139 HERMENUTICA CRTICO-ALTERATIVA ..................................................142 Compatibilidade entre razo hermenutica e razo alterativa ..................142 Complementaridade entre razo hermenutica e razo alterativa............145 Hermenutica crtico-alterativa e direito....................................................150

CONCLUSO .........................................................................................................157 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................163

10

INTRODUO

A modernidade marca o advento de nova perspectiva de mundo, isto , da relao dos homens entre si e perante o mundo. Inaugura outras bases societais e institucionais almejando realizar projeto civilizacional, e funda novos modelos filosficos epistemolgicos e cientficos. Na atualidade se consolida amplo e crescente movimento global, com razes no Sculo XX, de crtica modernidade. Fundamenta-se em diagnsticos de crise da modernidade, seja de suas instituies e modelos societais, seja da razo e racionalidades que sustentam sua filosofia, epistemologia e cincia, ou ainda das pretenses assumidas em seu projeto universal de emancipao do homem. Subdivide-se em diversas vertentes, cada qual adotando um vis crtico e propondo diferentes projetos e perspectivas, que por vezes rumam por caminhos contrapostos. A crtica da modernidade congrega manifestaes intituladas como ps-modernas, hipermodernas, neomodernas e at antimodernas. O presente estudo se situa no mbito da crtica que pretende transcender aos limites deste debate entre modernidade e ps-modernidade (e suas variaes), adotando a perspectiva transmoderna proposta pelo filsofo argentino Enrique Dussel. Sustenta que esse embate se localiza no interior da totalidade da concepo hegemnica que predomina no mbito mundial, segregando o horizonte oriundo da periferia. Parte da crtica ao conceito mtico de modernidade, ou seja, de sua considerao como fenmeno europeu de emancipao racional do homem, que deveria se alastrar e se realizar pelo resto do mundo ainda carente dessa emancipao racional. Agrega ao conceito perspectiva mundial, desvelando a outra face constitutiva da modernidade que, sob a premissa da superioridade do estgio de evoluo da sociedade e do homem europeu, legitimou a violncia e dominao de outros povos mundiais, resultando na negao da alteridade na exterioridade da totalidade europia. Pretende promover a transio para outros mundos, que integrem e co-realizem solidariamente a totalidade moderna e a alteridade mundial nos diversos mbitos da vida.

11

Nesse contexto, o tema objeto de reflexo a razo e suas racionalidades; ou, mais especificadamente, a crise da razo lgico-positivista e da racionalidade formal e instrumental da modernidade, sua superao pela razo lingusticohermenutica e pela racionalidade histrica, e o vis da exterioridade crticotransformadora da razo alterativa ps-ocidental, marcada por racionalidade libertadora e descolonial. Oportuno antecipar esclarecimento sobre a conotao conferida no presente trabalho aos conceitos de razo e racionalidade, pois comportam significao plurvoca, e foram historicamente utilizados com sentido prprio por autores clssicos, tornando difcil sua delimitao e preciso. Razo ser tratada como entendimento, isto , capacidade/possibilidade de compreender e expressar a realidade. A cada forma da razo, corresponde uma perspectiva de possibilidade e de meios adequados para apreenso da verdade e conhecimento da realidade e, por conseguinte, de ao que preencha o contedo de bem, pelo que se revela ordenadora do agir humano. 1 Adota-se a diferenciao entre razo e racionalidade assumida por Celso Ludwig, no sentido de que, em tese, a razo designa conceito universal e a racionalidade forma particular; ou melhor, a razo uma idia geral, que se efetiva historicamente em diversas formas de racionalidade.2

So conceitos que se auto-

implicam, pois determinada forma da razo se revela em suas racionalidades, e determinada racionalidade se fundamenta em uma forma da razo. O problema que se prope desenvolver se refere possibilidade de relacionar a razo hermenutica com a razo alterativa; ou seja, refletir sobre a viabilidade filosfica de fundamentar racionalidade hermenutica crtica com base na racionalidade de libertao-descolonizao-emancipao que demarca a

perspectiva transmoderna. Com o desenvolvimento dessa hiptese se pretende explorar possvel vnculo de compatibilidade e complementaridade entre razes hermenutica e1

BONALDO, Frederico; BENEDUZI, Renato Resende. Razo prtica e razo terica. In: BARRETO, Vicente de Paulo (org.). Dicionrio de filosofia do direito. So Leopoldo/Rio de Janeiro: Unisinos/Renovar, 2006. p. 691. LUDWIG, Celso Luiz. Formas da razo: racionalidade jurdica e fundamentao do direito. 1997. Tese (Doutorado em Direito) Cincias Jurdicas, Universidade Federal do Paran, Paran. p. 0608.

2

12

alterativa, ou ento, entre hermenutica filosfica e teorias da libertao e descolonizao. O xito dessa empreitada contribuiria para fundamentao terica de prxis hermenutica crtica, que se coloque ao lado dos projetos de afirmao da alteridade e resgate da dignidade e autonomia do Outro, excludo e marginalizado na exterioridade da totalidade criada pela modernidade centro-europia. Justificando essa pretenso de subsumir a hermenutica filosfica elaborada pelo filsofo alemo Hans-Georg Gadamer, no sentido de adotar seus fundamentos e transcender a seus limites para lhe agregar perspectiva crtica de libertao-descolonizao-emancipao, destaca-se que o prprio autor previu a possibilidade e a necessidade de superar seu condicionamento histrico para dar novos rumos prxis hermenutica. Em reflexo escrita 25 anos depois da publicao de sua obra-prima Verdade e Mtodo I: Traos Fundamentais de uma Hermenutica Filosfica (1960), Gadamer reconheceu a limitao inerente finitude histrica de seu ser: estou perfeitamente consciente do condicionamento temporal dos pontos de partida de minha formao do pensamento. tarefa dos mais jovens dar conta das novas condies da prxis hermenutica. 3 O plano de trabalho adotado para desenvolvimento do tema, mediante metodologia terico-reflexiva, seguir linha que permita o encadeamento coerente e compreensvel das diferentes perspectivas representadas pelas trs formas da razo e de suas correlatas racionalidades, observando em que medida cada qual adota, rompe ou subsume as premissas das demais. No significa, no entanto, que as formas da razo se sucedam em linearidade temporal ou espacial. Pelo contrrio, coexistem manifestaes tpicas das diferentes formas da razo no mesmo espao/tempo. No mbito de cada forma da razo, percorrer-se- o caminho entre sua caracterizao mais abstrata e universal, e sua progressiva especificao em formas mais concretas, passando pelos contornos da filosofia, epistemologia, cincia, direito e hermenutica em cada qual, at chegar prxis. Isso no significa que exista vnculo de antecedncia da teoria em relao prxis. Pelo contrrio, conforme acentuam as razes hermenutica e alterativa, a prxis precede a teoria; isto , a

3

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e mtodo II: complementos e ndice. 2. ed. Petrpolis: Vozes, 2002. p. 10.

13

hermenutica filosfica ou o pensamento descolonial se fundamentam em prticas hermenuticas ou descoloniais. O direito, nesse planejamento, figura como espcie de termmetro que ir mensurar os desdobramentos das mutaes nas formas da razo em mbito especfico do inter-relacionamento humano em sociedade. Figura como exemplo paradigmtico para identificar em que medida a alterao na concepo de mundo e de realidade implica em novos valores que modificam a concepo e prxis relacionada s cincias sociais, pois o direito atravessado por questes que refletem o ser, o saber e o poder na sociedade. Importante esclarecer que no se prope arrogar a tarefa de elaborar os contornos de nova teoria do direito ou de hermenutica jurdica alterativa o que certamente ultrapassaria os limites e possibilidades da presente pesquisa , e sim indicar fundamentos para buscar na prxis jurdica manifestaes de novas racionalidades que reflitam alteraes no entendimento geral sobre a realidade. Ou seja, o objetivo investigar na prxis jurdica manifestaes que expressem e tornem possvel pensar em racionalidade jurdica hermenutica e/ou em

racionalidade jurdica crtica, libertadora e descolonial, possibilitando sua teorizao nesse sentido. O tema a ser tratado no primeiro captulo a razo lgico-positivista que demarca a modernidade, principiando pela apresentao do critrio adotado para definir essa perspectiva, qual seja a assuno de projeto antropocntrico de evoluo e emancipao do homem. Comporta trs eixos principais. Em primeiro lugar, apresentar os contornos conferidos epistemologia e cincia na modernidade, destacando a pretenso de objetividade, neutralidade e universalidade na produo de conhecimento, mediante relao metodolgica e instrumental entre sujeito e objeto, bem como a reflexa consumao de lgica positivista, formalista e normativista na sistematizao do direito e da interpretao jurdica, com especial enfoque nas formulaes de Hans Kelsen e Emilio Betti. Em segundo, caracterizar a modernidade como paradigma filosfico, epistemolgico e societal, identificvel a partir da razo lgico-positivista que lhe subjacente e a partir da racionalidade analtica, formalista e instrumental, que se pauta pelos valores segurana, certeza, estabilidade, ordem e universalidade. Finalmente, destacar a viso crtica de que o paradigma da modernidade ingressou em perodo de crise, que abre espao para

14

transio paradigmtica, conforme tese difundida por Boaventura de Sousa Santos, ressaltando as especificidades dessa crise nos vieses da epistemologia e cincia, e no direito e interpretao jurdica. No segundo captulo, abordar-se- a formao da razo hermenutica, com base na obra de Hans-Georg Gadamer. Tambm se subdivide em trs objetivos fundamentais. Descrever sucintamente os termos do giro lingustico na filosofia, que significa a passagem da conscincia subjetiva como fundamento de possibilidade e validade do conhecimento para a linguagem, mbito em que ocorre o giro hermenutico, pelo qual a hermenutica deixa de ser uma tcnica ou mtodo de interpretao aplicvel a campos especficos do saber e passa condio de reflexo fundamental na filosofia, pertinente para entendimento dos problemas filosficos em geral. Na sequncia, apresentar as categorias fundamentais da hermenutica filosfica: sua perspectiva de verdade, a anterioridade da

compreenso em relao ao mtodo, a historicidade e condicionamento da compreenso pelo horizonte passado da tradio e pelo horizonte presente da aplicao, sua estruturao dialgica e lingustica, e relao com o direito. E, ao final, pensar a relao constitutiva entre prxis hermenutica e razo hermenutica, enunciando as premissas e atribuies dessa forma de entendimento da realidade, em especial de conscientizao sobre a temporalidade e condicionamento do compreender e do saber em razo da finitude e historicidade do ser. E ainda, em que medida essa forma da razo se relaciona com a epistemologia de modo a se abrir para novas formas de conhecimento, e como a hermenutica propicia abertura para a alteridade do Outro. O terceiro captulo, por sua vez, pretende indicar os termos de formulao de razo alterativa, isto , da razo fundamentada no Outro situado na exterioridade da totalidade e pensar sua relao com a razo hermenutica. Principiar-se- por delinear o cenrio formado pela coexistncia de diferentes perspectivas crticas e projetos alternativos modernidade, destacando as caractersticas centrais de cada qual, objetivando elucidar a relao de proximidade entre a proposta transmoderna da filosofia da libertao e o pensamento descolonial, em oposio no superao do condicionamento pelo fundamento da totalidade na crtica ps-moderna e no pscolonialismo. Na sequncia, explorar-se- com mais detalhes a razo do Outro e a racionalidade de libertao na filosofia de Enrique Dussel, a razo ps-ocidental e

15

racionalidade descolonial proposta por Walter Mignolo, e a Epistemologia do SulGlobal de Boaventura de Sousa Santos, para investigar possvel liame comum que permita lhes reunir sob a denominao de razo crtico-alterativa. Finalmente, empreender-se- anlise das categorias fundantes da razo hermenutica e da razo alterativa, buscando aperfeioar entre elas relao de compatibilidade e complementaridade, o que autorizaria formular racionalidade hermenutica crticoalterativa. Novamente se recorrer ao direito para buscar na prxis jurdica elementos que legitimem essa fundamentao.

16

1 MODERNIDADE E RAZO LGICO-POSITIVISTA

A modernidade demarca o advento da razo lgico-positivista. No correto associar com exclusividade uma nica forma de razo ou uma racionalidade especfica modernidade. Em toda sua extenso espacial e temporal se confrontaram, transformaram e sucederam diversas formas de razes, de racionalidades, de paradigmas e de metodologias. Entretanto, direcionando o enfoque ao vis da epistemologia, e suas implicaes na cincia e no direito, e privilegiando viso que permita desvelar as fontes que redundaram na atual formatao das cincias sociais e do direito, pode se afirmar que a razo lgico-positivista foi hegemnica na modernidade, e preponderou na formao das estruturas, instituies, dogmas e saberes hoje prevalentes na sociedade. Com intuito de compreender a formao e modulao dessas estruturas, instituies, dogmas e saberes, ou, mais especificadamente, revelar seu carter totalizante e opressor de outras razes e racionalidades ocultadas na exterioridade da totalidade moderna, revela-se pertinente iniciar trilhando brevemente o caminho percorrido na formao dessa concepo, possibilitando a posterior denncia da ideologia e intenes que lhes subjazem.

1.1 CONCEITO DE MODERNIDADE

A modernidade inaugurada com uma srie de mudanas sociais, culturais, filosficas e polticas que engendraram sociedade diversa daquela que caracterizava a Idade Mdia. O incio da modernidade, sob o vis tradicional eurocntrico, usualmente associado ao renascentismo (sculos XV e XVI), correlato ao enraizamento de valores humanistas e revalorizao do homem e do racionalismo. Parece mais adequado, entretanto, identificar a gnese da modernidade na transio decorrente de grandes transformaes mundiais nos sculos XV e XVI, em especial a

17

ampliao das fronteiras do mundo europeu pelas grandes navegaes e colonizao do mundo, o desenvolvimento de centros urbanos, a substituio da economia feudal pelo mercantilismo, e do modelo poltico feudal pelos Estadosnao, o incio da expanso industrial, etc. Nesse contexto, houve fenmenos histricos determinantes para a reconfigurao dos padres societais: o humanismo renascentista, que implementa viso antropocntrica, rompendo com teocentrismo e filosofia teolgica do medievo, e consequente relativizao da estratificao hierrquica do mundo; a reforma protestante, que ao sustentar que a f suficiente para que o indivduo compreenda a mensagem divina, independentemente da mediao pela igreja, aponta na direo do individualismo em oposio ao saber da autoridade institucional; a revoluo cientfica, que redundou na valorizao da cincia experimental ativa frente ao saber contemplativo, e na conciliao entre saber terico e saber aplicado; e a revoluo francesa, que difundiu os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade. 4 No mbito de cada campo especfico do conhecimento se privilegia o implemento da inovao mais afeta ao seu prprio objeto de estudo para fixar o incio da modernidade: na poltica, o advento do Estado-nao; na filosofia, o racionalismo; na cincia, a teoria heliocntrica; na geopoltica, a descoberta do Novo Mundo, e assim por diante. No mbito em que se insere a presente pesquisa, o critrio determinante para inaugurao da modernidade a difuso de seu projeto e de seus ideais. Conforme posicionamento de Krishan Kumar, o conceito moderno de modernidade se implementou no final do Sculo XVII, pela assimilao da idia da progressiva evoluo do homem e da sociedade, baseada na secularizao do conceito de histria da filosofia crist, superando a at ento prevalente crena na tendncia de decadncia do mundo. O renascimento havia conferido novo alento f na humanidade, mas, ainda contemplando o passado, buscando resgatar os padres de excelncia da antiguidade clssica. 5

4

MARCONDES, Danilo. Iniciao histria da filosofia: dos pr-socrticos a Wittgenstein. 10 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 141-157. KUMAR, Krishan. Da sociedade ps-industrial ps-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 89-91.

5

18

Segundo o autor, a crena evolucionista, e valorizao do tempo presente, significou que:

As divises, ento convencionais, de Antiga, Medieval e Moderna foram elevadas categoria de estgios da histria mundial e estes, por sua vez, aplicados a um modelo evolucionrio da humanidade, que concedeu especial urgncia e importncia ao estgio mais recente, o moderno. Os tempos modernos finalmente ganhavam vida. No eram mais considerados simples cpias inferiores de tempos mais antigos, mais gloriosos; nem, tambm, o ltimo estgio de uma existncia humana empobrecida que, ainda bem, acabaria com a histria humana sobre a terra. Ao contrrio, a modernidade significava rompimento completo com o passado, um novo comeo baseada em princpios radicalmente novos. E significava tambm o ingresso em um tempo expandido de forma infinita, um tempo para 6 progressos sem precedentes na evoluo da humanidade.

Sob o vis do projeto civilizacional, foi justamente a adoo da premissa evolucionista que possibilitou o rompimento com a perspectiva da Idade Mdia. Decorrem dessa perspectiva premissas de grande importncia na caracterizao da modernidade: valorizao do indivduo e da subjetividade, pois a razo o fundamento ltimo da certeza e da verdade, em oposio tradio, ao saber externo e autoritrio das instituies; conhecimento cientfico assume funo privilegiada de instrumentalizar o desenvolvimento da humanidade; pretenso de emancipao do sujeito e dos povos. O iderio da modernidade revela horizonte de otimismo no homem, em sua capacidade de transformar o mundo. Cr-se estar no auge da capacidade de desenvolvimento da civilizao, pelo que o momento oportuno para resolver os problemas que sempre afligiram o homem. Dispe-se a enfrentar grandes desafios tericos e prticos, originando as snteses de conhecimentos universais de legitimao do saber filosfico-poltico (as metanarrativas), que se arrogam na tarefa de exaurir o conhecimento sobre, por exemplo: a verdade, a razo, a liberdade, a histria, a democracia, o capital, o mercado, etc. Reitera-se ressalva que, tratando-se de fenmeno multifacetado e multidisciplinar, e que teve de se amoldar aos diferentes contextos espaciais e temporais, o relato apresentado se resume a tipo ideal do projeto societal e filosfico da modernidade, destacando indicativamente seus traos mais gerais e

elementares, sem ingressar em particularidades e especificidades.6

Ibidem. p. 91

19

1.2 EPISTEMOLOGIA E TEORIA DO DIREITO NA MODERNIDADE

1.2.1 Epistemologia e cincia

A epistemologia moderna, e seus reflexos no direito e na interpretao jurdica, representam vetor privilegiado para anlise da modernidade, principalmente pelo destacado posto a que foi alado o conhecimento cientfico, e por ilustrar a racionalidade instrumental que permeou seu iderio. O termo epistemologia pode ser empregado em acepo filosofia da cincia, isto , ramo da filosofia com reflexo orientada crtica sobre os conceitos, metodologia, e implicaes culturais do conhecimento cientfico, ou enquanto teoria do conhecimento (gnoseologia), assumindo como objeto a origem, natureza, limites, e etapas do conhecimento e do ato cognitivo. 7 Na modernidade, essas acepes se entrelaam, pois a temtica referente possibilidade de conhecer se confunde com a aptido privilegiada do conhecimento cientfico. A epistemologia moderna erigiu como premissa objetividade do conhecimento, e a concepo de que o conhecimento universal algo construdo em uma relao entre sujeito e objeto.8

Questo fundamental para a epistemologia

como se d o liame entre sujeito e objeto na relao de conhecimento, e qual a contribuio de cada qual para que seja atingida a verdade. O debate metodolgico girou em torno do deslocamento do fundamento do conhecimento para um ou outro plo da relao do conhecimento. A preponderncia do objeto e dos fatos, relegando ao sujeito a observao, constatao e descrio da realidade que lhe exterior e autnoma, a marca das correntes empiristas, dentre as quais sua manifestao mais radical o positivismo7 8

ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de filosofia. 5 ed. So Paulo: Martins Fontes, p. 161. Quem atua na compreenso intelectual das coisas do mundo o sujeito do conhecimento, e as coisas do mundo, ou seja, tudo que revela o ser, tudo o que constitui o receptculo daquela apreenso, passa a ser, deste modo, o objeto do conhecimento, sendo a sntese entre ambos realizada pelo conceito. Reduzem-se a trs, portanto, os elementos do processo intelectual de conhecimento: o sujeito, o objeto e o conceito. (COELHO, Luiz Fernando. Teoria crtica do direito. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 22).

20

de Augusto Comte. Nas palavras de Agostinho Ramalho Marques Neto sobre o empirismo: o conhecimento flui do objeto, refere-se especificamente a ele e s tem validade quando comprovvel empiricamente. O conhecimento , por conseguinte, para o empirismo, uma descrio do objeto, tanto mais exata quanto melhor apontar as caractersticas deste. 9 A fixao do fundamento do conhecer no sujeito (subjetivismo) e nas teorias, assumindo que o objeto construdo pela razo, caracteriza o vis racionalista, do qual a manifestao mais ilustrativa o idealismo de Rene Descartes. Segundo Marques Neto: A tese fundamental do idealismo a de que no conhecemos coisas, mas sim representaes de coisas ou as coisas enquanto representadas. Isto no implica necessariamente numa negao do real, mas na concepo de que nos impossvel conhecer as coisas tal como elas so e si mesmas. 10 Immanuel Kant, ainda na seara da tradio racionalista, situou sujeito e objeto no mesmo plano, justificando que, por um lado, o conhecimento no prescinde do material cognoscvel da experincia sensvel, e, por outro, deve necessariamente ser ordenado pela razo universal. A transcendentalidade kantiana decorre da identificao da funcionalidade na relao entre sujeito e o objeto, em que a razo vincula experincia, ao mesmo tempo em que por ela despertada. Conhecer e, por consequncia, fazer a unio entre os elementos materiais de ordem emprica e os elementos formais de ordem intelectual. 11 Sobre o carter dialtico da estruturao da relao do conhecimento, em que se constitui a prpria vivncia humana, Luiz Fernando Coelho expe que: o sujeito que conhece, a atividade que dele se desprende e o objeto atingido por essa atuao, cuja sntese se expressa subjetiva e objetivamente pelos conceitos, os quais se articulam em juzos e proposies tambm entre si articulados, formando os raciocnios como instrumentos do pensar e do conhecer. 12

9

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A cincia do direito: conceito, objeto e mtodo. 2 Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 5. Ibidem. p. 8. Ibidem. p. 10. COELHO, Luiz Fernando. Op. cit. p. 27.

10 11 12

21

A variao no modo de relacionamento ente sujeito e objeto originam diferentes espcies de conhecimento: conhecimento cientfico e senso comum. Enquanto nesse prevalecem representaes ou imagens mentais, naquele os conceitos oriundos dessas abstraes das imagens e dos prprios conceitos so tematizados e particularizados. 13 O que especifica a epistemologia moderna que no trata essa diferena como mera distino qualitativa ou de enfoque. O conhecimento cientfico moderno se constitui pela superao e em oposio ao senso comum, pejorativamente denominado de conhecimento vulgar. A assuno da superioridade hierrquica do conhecimento cientfico em comparao ao senso comum, e consequente superioridade civilizacional dos povos em condies de lhe produzir, foi fator que possibilitou o desenvolvimento da face colonialista da modernidade. O senso comum taxado como opinio desprovida de elaborao intelectual, juzo formulado sem reflexo, fundado nas aparncias sensveis, assistemtico, ambguo e eminentemente prtico.14 Identificado com a tradio partilhada pela comunidade, tido como conservador, tendendo manuteno do estado das coisas. O socilogo portugus Boaventura de Sousa Santos formulou tese de que a cincia moderna se constitui a partir da primeira ruptura epistemolgica, que significa que o conhecimento cientfico racional e vlido construdo em oposio opinio e ao senso comum.15

E acrescenta que uma das preocupaes da cincia

moderna foi evitar a influncia da metafrica linguagem do conhecimento vulgar, responsvel pela veiculao de concepes irrefletidas e falsas, pelo que pretendeu afastar as pr-compreenses do senso comum mediante emprego de tcnica e rigorosa linguagem cientfica. 16 Em contraposio ao senso comum, o conhecimento cientfico,

principalmente na acepo positivista, apresenta-se como derivado de metdica elaborao intelectual, fundado em sistemtico, lgico e coerente corpo de13 14 15

Ibidem. p. 28. MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Op. cit., p. 44-46. SANTOS, Boaventura de Sousa. Introduo a uma cincia ps moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 31. Ibidem. p. 111-112.

16

22

enunciados demonstrados como verdadeiros. Pode ser objetivamente provado. capaz de conferir certeza e previsibilidade aos fatos, e se impe por ser dotado de operacionalidade e instrumentalidade, que o tornam adequado para utilitria transformao da realidade. O ideal epistmico-cientfico da modernidade foi traduzido nas formulaes elaboradas pelos filsofos do Crculo de Viena - com destaque para Rudolf Carnap, e para a contribuio de Ludwig Wittgeinstein - que, a partir dos aportes da filosofia analtica, engendraram o positivismo lgico ou neopositivismo. 17 O positivismo lgico foi elaborado a partir do objetivo de se desenvolver um discurso terico que assegurasse o autocontrole do discurso terico, e que propiciasse representao fiel do mundo. Erigiu condio de fundamento de legitimidade do conhecimento o princpio da verificao, seja pela compreenso emprica, seja pela demonstrao analtica. Assumindo os aportes fundamentais do positivismo, privilegia a consistncia lgico-formal do discurso cientfico. 18 Do princpio da verificabilidade (emprica ou analtica), resulta que o ponto central do positivismo lgico a objetividade do conhecimento, ou melhor, a verdade objetiva como premissa do discurso cientfico. Objetividade que compreendia tanto a vinculao ao mtodo quanto ao resultado, no sentido de que o conhecimento cientfico no projeo do sujeito, e sim reconstruo ou representao do objeto real via pensamento conceitual.19

A excluso da subjetividade asseguraria a

neutralidade e universalidade do conhecimento cientfico. Sobre esse ideal empirista que relaciona mtodo com validade do conhecimento, Marques Neto assevera que:

Para o empirismo, o mtodo consiste em um conjunto de procedimentos que por si mesmo garantem a cientificidade das teorias elaboradas sobre o real. Como o sujeito se limitaria a captar o objeto, essa captao seria tanto mais eficaz e neutra quanto mais preciso e rigoroso fosse o mtodo utilizado. Desse modo, a metodologia se reduz, na concepo empirista, a17

A contribuio de Wittgeinstein na elaborao do positivismo lgico se refere ao Wittgeisntein Primeiro, destacando o desenvolvimento da filosofia analtica em sua obra Tractatus LogicoPhilosophicus (1921), diferenciando-se do Wittgeinstein Segundo, que forneceu as bases para a filosofia da linguagem com a obra Investigaes Filosficas (1956). COELHO, Luiz Fernando. Op. cit. p. 57. Idem.

18 19

23

um corpo de regras cuja validade no apenas considerada inquestionvel porque afirmada dogmaticamente, como ainda por cima assegura a validade do conhecimento cientfico que se quer produzir. O pesquisador aqui levado a adotar os padres aceitos e estabelecidos do mtodo cientfico, sem uma discusso mais profunda dos critrios de cientificidade (...). A elaborao cientfica se limitaria, assim, ao cumprimento rigoroso de certas tcnicas pr-estabelecidas, que conteriam o poder quase miraculoso de conferir cientificidade aos conhecimentos elaborados atravs delas. Quanto mais o pesquisador se abstivesse de qualquer participao ativa e crtica no processo de construo cientfica, quanto mais ele se limitasse a cumprir mecanicamente as regras metodolgicas, tanto melhor cientista ele seria, e 20 tanto maior o grau de confiabilidade de suas teorias.

A neutralidade e universalidade, que resultam no cientificismo do positivismo, fundamentam-se na crena na dogmtica afirmao da transparncia do real (objeto) e na tambm dogmtica afirmao da eficcia do mtodo. 21 Segundo Santos, o positivismo do Crculo de Viena, em especial pelo seu cariz de auto-elevar a cincia condio de aparelho privilegiado de representao do mundo, fundamentando-se para tanto na pretensa coincidncia entre a precisa e unvoca linguagem do conhecimento cientfico e a experincia ou observao imediata, o apogeu da dogmatizao da cincia. razo positivista nos seguintes termos:22

Discrimina as premissas da

Trata-se de uma concepo que assenta nos seguintes pressupostos: a realidade enquanto dotada de exterioridade; conhecimento como representao do real; averso metafsica e o carter parasitrio da filosofia em relao cincia; a dualidade entre fatos e valores com a implicao de que o conhecimento emprico logicamente discrepante do prosseguimento de objetos morais ou da observao de regras ticas; a noo de unidade da cincia nos termos da qual as cincias sociais e as cincias naturais partilham a mesma fundamentao lgica e at metodolgica. Dentro desta filosofia geral distingo o positivismo lgico pela sua nfase na unificao da cincia, pelo modelo de explicao hipotticodedutivo e pelo papel central da linguagem cientfica na construo do rigor 23 e da universalidade do conhecimento cientfico.

O dualismo entre conhecimento cientfico e senso comum, entretanto, no foi a nica bipartio que marcou o conhecimento moderno. Tambm foi20 21 22 23

MARQUES NETO, Augusto Ramalho. Op. cit. p. 63-64. Ibidem. p. 65. SANTOS, Boaventura de Sousa. Introduo (...). Op. cit., p. 22. Ibidem. p. 52.

24

determinante para sua formatao, e para os efeitos que advieram de seus caracteres, o dualismo entre homem/sociedade e natureza. No contexto do evolucionismo e antropocntrico da modernidade, a natureza visualizada sob vis instrumental, e passa a figurar como matria-prima para o desenvolvimento histrico do homem. Santos afirma que:

(...) a desumanizao da natureza e consequente desnaturalizao do homem criam as condies para que este possa exercer sobre a natureza um poder arbitrrio, tica e politicamente neutro. (...) o estranhamento da natureza em relao ao homem enquanto objeto de conhecimento condio da sua reintegrao enquanto objetivo do conhecimento. O paradigma da cincia moderna vive desta contradio entre pressupostos tericos e consequncias sociolgicas da cincia. 24

Dualismo entre homem e natureza originou diferenciao entre cincias naturais e sociais. A epistemologia moderna pendeu para preponderncia do modelo cientfico das cincias naturais, o que por vezes significou questionamento acerca da validade do estatuto cientfico das cincias sociais, ou seu desenvolvimento na esteira do enfoque, problematizao e metodologia das cincias naturais. Isso especialmente relevante na considerao de que o positivismo, destacadamente o positivismo lgico, foi formado a partir de modelo de racionalidade de domnio do sujeito sobre o objeto oriundo das cincias naturais, e artificialmente transposto para as cincias sociais, inclusive para a pretensa cincia do direito.

1.2.2 Epistemologia jurdica e juspositivismo

No ambiente histrico, filosfico e cultural que permeia o iderio da modernidade, em especial pelo processo de secularizao que desvela o carter humano do poder e das instituies, ganham relevo os temas que concernem epistemologia jurdica, com destaque para delimitao do objeto, mtodo de conhecimento, possibilidades e limites da cincia do direito, e relao entre ordem jurdica e interpretao.

24

Ibidem. p. 66-67.

25

Diferentes escolas se sucederam no modo de conceber e versar sobre o direito, ora privilegiando perspectivas idealistas, como os modelos tpicos de jusnaturalismo, ora perspectivas empiristas, como a Escola da Exegese e as correntes dogmticas, ora adotando o sentido racional de justia, como o fazem o jusracionalismo teolgico ou antropocntrico, ora o sentido histrico, identificado pela Escola Histrica com o esprito do povo, ou ainda privilegiando o direito oficial estatal, posio que demarca as correntes positivistas. Para o presente trabalho, frente ao vigor com que se cristalizou nas prticas jurdicas que atravessaram o Sculo XX, importa a caracterizao do modelo metodolgico e cientfico do direito engendrado pelo positivismo jurdico. No se ignora que atualmente as premissas fundantes do positivismo jurdico se encontrem relativizadas, e que as teorias crticas desconstruram alguns de seus principais dogmas; entretanto, inegvel que ainda hoje goza de grande prestgio principalmente na prxis jurdica, e que constitui o cerne da perspectiva hegemnica que segue presente sob o vis da dogmtica jurdica. Subsumindo o direito aos termos da relao de conhecimento prevalente na modernidade, denota-se que a epistemologia jurdica envolve o sujeito jurista, o objeto enquanto fenmeno jurdico, e os conceitos jurdicos como representaes ideais e abstraes dessa relao. Nesse enfoque, o positivismo jurdico a concepo que adota como fenmeno jurdico (objeto) o direito positivo, isto , o direito oficial legislado e institudo pelo Estado. A corrente positivista se origina da contraposio ao direito natural. A doutrina jusnaturalista sustenta, em suma, que a validade do direito positivo subordinada a um sistema superior de normas e princpios, que se caracteriza por ser universal, imutvel e inato, e que traduz concepo ideal de justia. Historicamente, esse fundamento universal do ideal de justia teve diferentes referncias: cosmolgica (cosmos/natureza); teolgica (Deus); antropocntrica (razo). 25 A formulao da proposta positivista se d em oposio eleio de fundamento metafsico jusnaturalista. Objetiva a superao da falta de clareza e

25

BEDIN, Gilmar Antnio. Direito Natural. In: BARRETO, Vicente de Paulo (org.). Dicionrio de filosofia do direito. So Leopoldo/Rio de Janeiro: Unisinos/Renovar, 2006. p. 240-242.

26

objetividade decorrente da natureza plurvoca dos fundamentos metafsicos, que ensejam diferentes e subjetivas leituras, e consequente relativismo do ideal de justia. importante relacionar o surgimento e consolidao do positivismo jurdico na Europa com o processo histrico de implementao do Estado Nacional moderno. A passagem de direito costumeiro, plural e multifacetado para o monismo jurdico, correlata transio de estado fragmentado para estado politicamente centralizado, conduz a nova forma de conhecer e tratar o direito. 26 Em busca do rigor cientfico, o juspositivismo preza pela formalidade e sistematicidade, em detrimento das condies sociais concretas, de valoraes tico-polticas, e de perspectiva crtica. Objetiva a construo de conhecimento jurdico unvoco, neutro, absoluto e objetivo, resultando, consequentemente, em cincia dogmtica, esttica e fechada. Sua formulao mais bem elaborada e determinante na constituio da cincia do direito foi obra de Hans Kelsen, com destaque para a Teoria Pura do Direito. No se pretende apresentar detalhadamente as mincias da hermtica arquitetnica da cincia do direito e da teoria geral do direito elaboradas por Kelsen, e sim ilustrar os contornos conferidos ao direito pela concepo positivista de direito em busca da cientificidade modelada pela concepo moderna de epistemologia e conhecimento cientfico. Sua proposta foi desenvolver cincia jurdica separada e autnoma em relao a outras reas do conhecimento, produzindo teoria que possibilitasse ao conhecimento do direito resultado objetivo, exato e neutro, dotado de mtodo prprio e compatvel com a especificidade de seu objeto, e purificado de interferncia valorativa tica, poltica ou social. Esse objetivo de imediato assumido no primeiro pargrafo do prefcio primeira edio da obra Teoria Pura do Direito:

H mais de duas dcadas que empreendi desenvolver uma teoria jurdica pura, isto , purificada de toda a ideologia poltica e de todos os elementos de cincia natural, uma teoria jurdica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade especfica do seu objeto. Logo desde o comeo foi meu intento elevar a Jurisprudncia, que - aberta ou26

AGUILLAR, Fernando Herren. Metodologia da cincia do direito. 2 ed. So Paulo: Max Limonad, 1999. p. 119.

27

veladamente - se esgotava quase por completo em raciocnios de poltica jurdica, altura de uma genuna cincia, de uma cincia do esprito. Importava explicar, no as suas tendncias endereadas formao do Direito, mas as suas tendncias exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possvel os seus resultados do ideal de 27 toda a cincia: objetividade e exatido.

Revelando influncia empirista nas formulaes do positivismo jurdico, a pretenso de pureza na construo do conhecimento do direito se alcana pela limitao de seu objeto ao estudo das normas do direito positivo. A metodologia empregada para tanto excluir perturbaes subjetivas e ideolgicas que comprometeriam a pureza do objeto. Por pureza metdica deve se compreender a rejeio dos mtodos pertinentes a outros campos do saber, e adoo de procedimento lgico e sistemtico prprio ao peculiar objeto da cincia do direito. Restringe a Teoria Pura do Direito ao direito positivo em geral, a responder o que e como o direito, e no o que deveria ser. 28 Kelsen no afirma ser irrelevante pesquisar sob vis poltico ou sociolgico a instituio da norma; afirma apenas que essa tarefa cabe a outros campos do conhecimento. Ou seja, ao cientista do direito no importa repercutir sobre a convenincia ou justia da norma, mas descrever por intermdio de regras jurdicas o direito vigente de forma a sistematizar logicamente sua operacionalizao. 29 A conduta humana s interessa cincia do direito enquanto contedo de normas postas e vigentes. Restringido seu campo de observao ao direito positivado, ou seja, aos fatos convertidos em molduras formais que lhe conferem a marca de indubitveis, a exemplo dos fatos observados pelas cincias naturais, adquire status de verdadeiro conhecimento cientfico. A regra de Direito e a lei da natureza comportam os mesmos elementos: descrio de um julgamento hipottico vinculando certas consequncias a certas condies. Diferenciam-se em razo da cincia da natureza descrever seus objetos mediante relao de causalidade (se A , B ou ser), ao passo que a cincia jurdica os descreve mediante relao

27 28 29

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 Ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. VII. Ibidem. p. 1. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 63.

28

normativa de imputao (se A , B deve ser), caracterizando a especificidade da legalidade de seu objeto. 30 Outro ponto determinante na Teoria Pura do Direito que, diferentemente das teorias jusnaturalistas que subsumiam o direito positivo em uma ordem mais ampla, condicionando sua validade a um fundamento metafsico exterior, Kelsen aduz que o fundamento de validade de uma norma s pode estar contido em outra norma superior.31

Sistematiza a ordem jurdica de uma comunidade mediante

encadeamento hierrquico em forma piramidal, pressupondo como fundamento ltimo de validade a ocupar vrtice da pirmide a norma fundamental. 32 Em decorrncia dessa estruturao lgico-sistemtica do ordenamento jurdico, Kelsen afirma que o contedo da norma irrelevante para lhe qualificar como vlida ou invlida. O pressuposto de validade eminentemente formal; ou seja, desde que seu processo de criao tenha observado as diretrizes imediatas das normas superiores e mediatas da norma fundamental, integra validamente o ordenamento jurdico e a conduta imputada deve ser observada, independentemente de seu teor. Conclui que todo e qualquer contedo pode ser Direito. No h qualquer conduta humana que, como tal, por fora do seu contedo, esteja excluda de ser contedo de uma norma jurdica. 33 A norma fundamental, ao conferir validade s normas editadas com sua observncia, cumpre a funo de tornar a subjetiva manifestao do legislador em norma objetiva integrante de uma ordem jurdica positiva. Ou seja, legitima epistemologicamente a cientificidade do objeto da cincia do direito. 34

30 31

Ibidem. p. 64. (...) a Teoria Pura do Direito pergunta: como possvel uma interpretao, no reconduzvel a autoridades metajurdicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurdicas objetivamente vlidas descritveis em proposies jurdicas? A resposta epistemolgica (teortico-gnoseolgica) da Teoria Pura do Direito : sob a condio de pressupormos a norma fundamental. (KELSEN, Hans. Teoria pura [...]. Op. cit. p 141-142). Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu ltimo fundamento de validade a norma fundamental desta ordem. a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa. (Ibidem. p. 136). Ibidem. p. 139. Ibidem. p. 142-144.

32

33 34

29

Sobre os pontos marcantes da doutrina juspositivista, imprescindvel citar a lio de Norberto Bobbio, que indica sete caractersticas fundamentais do positivismo jurdico: 1) Modo de abordar o direito: direito tido como fato, e no como valor, pelo que a validade do direito meramente formal, prescindindo de anlise do contedo. Direito passvel de conhecimento cientfico similar ao aplicado ao mundo natural. 2) Definio do direito: definido em funo do elemento coao. 3) Fontes do direito: legislao como fonte proeminente do direito. 4)Teoria da norma jurdica: norma um comando imperativo. 5)Teoria do ordenamento jurdico: conjunto de normas vigentes como todo coerente e completo. 6) Mtodo da cincia jurdica: teoria da interpretao mecanicista, prevalecendo elemento declarativo sobre o produtivo ou criativo no direito. 7)Teoria da obedincia: positivismo tico enquanto ideologia de

observncia da lei. 35 A episteme positivista a base sobre a qual se desenvolveu a dogmtica jurdica, concepo at hoje prevalente na prxis jurdica. Ou melhor, a dogmtica jurdica uma das manifestaes do positivismo. A dogmtica jurdica revela o ponto de vista interno do direito positivo, formulando viso normativa da juridicidade, validade e inteligibilidade do direito, sistematizando, ordenando e relacionando seus elementos de modo a proporcionar conhecimento terico e tcnico aos operadores, voltados soluo de problemas concretos do direito. 36 Conforme Plauto Faraco de Azevedo: Aparentemente, o jurista, utilizandose dos dados da Dogmtica Jurdica, realiza um trabalho de mera descrio lgico-

35

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico: lies de filosofia do direito. So Paulo: cone, 1995. p. 131-133. AGUILLAR, Fernando Herren. Op. cit. p. 138-141.

36

30

sistemtica das normas jurdicas positivadas. neste sentido que habitualmente se entende e deve situar-se o carter neutro e, logo, cientifico de seu labor. 37

1.2.3 Interpretao normativista do direito

No pensamento moderno a hermenutica se revela um tema muito prximo epistemologia, pois se prope a dominar e controlar o ato de interpretar, ou, mais especificadamente, a formular regras e mtodos para propiciar a correo da interpretao. Nesse modelo hermenutico que passa a ser identificado como

hermenutica tradicional, a hermenutica jurdica surge como ramo da cincia que, conforme definio de Carlos Maximiliano, tem como objeto o estudo e a sistematizao dos processos aplicveis para determinar o sentido e o alcance das expresses do Direito.38

E, diferenciando a significao entre hermenutica e

interpretao, esclarece que: Esta a aplicao daquela; a primeira descobre e fixa os princpios que regem a segunda. A hermenutica a teoria cientfica do ato de interpretar. 39 A concepo sobre o conceito e contornos conferidos interpretao do direito teve seu desenvolvimento correlacionado aos aportes do juspositivismo e da dogmtica jurdica, resultando em modelo eminentemente normativista e metdico, fundamentado na crena da possibilidade do intrprete constatar/reproduzir sentido objetivo e imanente aos textos legais. O ideal formalista e legalista na interpretao do direito, todavia, anterior formulao cientfica e sistemtica do positivismo jurdico. Sua manifestao mais extremada reside na proposta da Escola da Exegese, contempornea ao modelo napolenico de direito, que, por questes polticas, visava a retirar dos juzes qualquer liberdade ou discricionariedade na aplicao da lei, e fortalecer a segurana de ordem jurdica fundamentada na lei. O Cdigo Civil de Napoleo se37

AZEVEDO, Plauto Farazo de. Crtica dogmtica e hermenutica jurdica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989. p. 28. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenutica e aplicao do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 1. Idem.

38 39

31

autoproclamava sistema jurdico completo, sistemtico, preciso e fechado. O mtodo exegtico caracterizou a interpretao da lei como processo de aplicao neutra e mecnica das regras ditadas pelos legisladores. Aperfeioou-se com a concepo de que a sentena seria um silogismo - constitudo pela lei como premissa maior, o fato como premissa menor, e o intrprete como elemento neutro pelo qual o juiz aplicaria a vontade do legislador ao caso concreto. 40 Sobre a estrutura da interpretao jurdica como simples operao de subsuno do fato norma, ensina Rodolfo Luis Vigo:

O modo como o intrprete deveria proceder tinha identidade logicamente com a estrutura de um silogismo dedutivo, de onde se observava que a premissa maior era a lei, a premissa menor era o fato e, por fim, a concluso era o conjunto de consequncias dispostas na mesma lei. Notese que se tratava de um silogismo que alcanava a objetividade, o rigor e a simplicidade prpria do saber terico e, por isso, a consequncia ou resultado interpretativo se deduzia assptica, fcil, mecanicamente. Ao juiz era vedado formular preferncias, ampliaes ou restries em virtude das modalidades do caso ou de seu senso de justia, pois ao intrprete se exigia simplesmente que procedesse segundo o mecanismo formal da 41 subsuno.

Historicamente, variando segundo contextos e premissas filosficas, sociais e polticas, houve diferentes concepes de direito e sociedade e, em consequncia, diversas escolas e teorias sobre o direito e sua interpretao. Para a Escola Histrica Alem - que rene autores como Savigny e Puchta - o direito no se identifica com a lei positivada pela vontade do legislador, e sim deflui da histria e dos costumes. Assim, o mtodo histrico renuncia a interpretao que traduza o esprito do legislador, e busca o sentido das leis que se identifique com o esprito do povo pela reconstruo da conscincia social que engendrou sua produo. Fundando uma viso voltada mais para o futuro que para o passado, a Jurisprudncia dos Interesses de Ihering adota concepo utilitarista do direito, valorizando os fins em detrimento dos meios. Dessa concepo se origina o mtodo teleolgico de interpretao, pelo qual o direito deve ser interpretado em vistas da finalidade prtica da lei, seja ela identificada com o interesse das partes, seja com40

BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retricos da sentena penal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 17. VIGO, Rodolfo Luis. Interpretao jurdica: do modelo juspositivista-legalista do sculo XIX s novas perspectivas. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 38.

41

32

objetivos sociais e polticos considerados valiosos. O mtodo sociolgico, formulado por Duguit, corresponde viso da Escola do Sociologismo Jurdico, e afirma a supremacia dos fatos em relao s normas na interpretao do direito. Ainda, ilustrativamente, dentre outros, destacam-se: o mtodo comparativo, que amplia os horizontes da interpretao pela comparao com o ordenamento de outras naes mais avanadas; o mtodo cientfico da Escola da Livre Investigao Cientifica, que pretende conciliar o fato social com os valores jusnaturalistas; mtodo da Escola do Positivismo Ftico, que prima pela vinculao da validade da norma aferio de sua correspondncia emprica; mtodo da Escola Egolgica de Carlos Cossio, pelo qual a norma estrutura preliminar que instrumentaliza a interpretao da conduta humana; e mtodo tpico-retrico, elaborado por Theodore Viehweg, que, flexibilizando a rigidez das normas, busca aproximao prudente entre fatos e direito, objetivando resultado aceitvel como verdadeiro. 42 Os mtodos de interpretao do direito na hermenutica tradicional tambm cumprem o papel de chancelar a cientificidade do processo de inteleco do sentido da norma jurdica mediante observncia das tcnicas e procedimentos prestabelecidos, supostamente dotando a interpretao da necessria neutralidade e objetividade, resguardando-a de indesejveis interferncias ideolgicas. Kelsen, ao elaborar a Teoria Pura do Direito, reservou reflexo especfica acerca do espao na cincia do direito interpretao da lei. Refere-se interpretao autntica, qual seja a efetivada pelos rgos encarregados de aplicar o direito, como operao mental que acompanha o processo da aplicao do Direito no seu progredir de um escalo superior para um escalo inferior. 43 Destacam-se suas consideraes sobre a indeterminao do direito. Em decorrncia da indeterminao intencional relacionada lgica de que a norma individual deve representar derivao escalonada da norma geral, ou pela indeterminao no intencional relacionada pluralidade de significaes atribuveis a sequncia de palavras que exterioriza a regra de direito, observa que a norma jurdica comporta variadas e diversas possibilidades de aplicao passveis de42

Para anlise mais detalhada, remete-se s obras que serviram de base a essa resenha: BRUM, Nilo Bairros de. Op. cit., p. 16-36. WARAT, Luiz Alberto. Introduo geral ao Direito: interpretao da lei, temas para uma reformulao. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. p. 66-87. KELSEN, Hans. Teoria pura (...). Op. cit. p. 245.

43

33

corresponderem legitimamente vontade do legislador. Conclui que na aplicao da norma se identifica espcie de moldura, no interior da qual cabem vrias possibilidades legitimas de aplicao. A interpretao do direito significa fixar essa moldura. 44 A busca pela identificao de qual a opo correta de interpretao e aplicao da lei no encontra resposta no direito positivo, pelo que no se encontra no mbito da cincia do direito, e sim da poltica do direito. Assim como ato de criao pelo legislador de normas gerais, a eleio de uma dentre as possveis interpretaes que se enquadrem na moldura, ou seja, a criao de normas individuais, tambm manifestao de vontade derivada de normas morais, normas de justia e valores sociais, pelo que no possvel formular juzo de validade e verificabilidade com base no direito positivo. 45 46 cincia do direito, para Kelsen, compete a interpretao do direito no autntica ou puramente cognoscitiva, limitada a descrever as possveis significaes da norma, incapaz de criar direito novo ou suprir eventuais deficincias ou lacunas. Ressalta que a conscincia de seu objeto fundamental para que no assuma papel decisrio que no lhe compete, falsamente caracterizando como cientfico posicionamento poltico. Destaca que: A interpretao jurdico-cientfica tem de evitar, com o mximo cuidado, a fico de que uma norma jurdica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma s interpretao: a interpretao correta. Isto uma fico de que se serve a jurisprudncia tradicional para consolidar o ideal da segurana jurdica. 47 Prosseguindo no desenvolvimento de diferentes teses e perspectivas que contriburam decisivamente para a formatao da hermenutica tradicional, relevante destacar, ainda que brevemente, o pensamento do jurista italiano Emilio44 45 46

Ibidem. p. 246-247. Ibidem. p. 249. Nesse ponto, o pensamento de Kelsen se revela crtico e progressista em relao aos tradicionais mtodos de interpretao, especialmente quando se arvoram de portadores da verdade sobre o sentido do direito: No h absolutamente qualquer mtodo capaz de ser classificado como de Direito positivo - segundo o qual, das vrias significaes verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como correta (...). Apesar de todos os esforos da jurisprudncia tradicional, no se conseguiu at hoje decidir o conflito entre vontade e expresso a favor de uma ou da outra, por uma forma objetivamente vlida. Todos os mtodos de interpretao at o presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possvel, nunca a um resultado que seja o nico correto. (Ibidem. p. 248). Ibidem. p. 251.

47

34

Betti, responsvel pela elaborao de Teoria Geral da Interpretao, que, apesar de pouco citada, possui grande influncia na formatao do modelo hermenutico presente na prxis jurdica atual. Betti caracteriza a hermenutica como ramo do conhecimento cientfico relacionado epistemologia, e orientado para compreenso da interpretao enquanto processo direcionado ao entendimento. Esse processo, apesar de suas variadas aplicaes, nico e rene os mesmos elementos fundamentais, pelo que a interpretao do direito deflui de perspectiva hermenutica geral. 48 Sua aspirao buscar a relativa objetividade passvel de ser preservada no processo interpretativo e, com isso, dotar-lhe de controle e exatido, recorrendo, para tanto aos cnones hermenuticos. Observa que: Somente na verdadeira interpretao a observncia de critrios metdicos, unida constante conscincia da dependncia em relao a uma perspectiva condicionadora, garante a possibilidade de controle e, nesse sentido, uma relativa objetividade do entendimento. 49 A primeira noo necessria para entender a hermenutica bettiana reside no modo pelo qual se estabelece a relao de interpretao nas cincias do esprito enquanto fenmeno gnosiolgico, que engendra a antinomia entre elementos subjetivos e objetivos a serem controlados pelo intrprete para que se alcance a pretensa objetividade relativa do entendimento. Assim como no processo de conhecimento, a interpretao se d em relao de trs termos: num extremo se localiza o sujeito-intrprete, espiritualidade viva e pensante; noutro, uma segunda espiritualidade que se objetivou em formas representativas; e no centro, a forma representativa na qual o esprito se objetivou, com a qual ganhou existncia fenomnica e objetividade real, resultando em modificao do mundo sensvel, apartada e independente do esprito que a engendrou. 50 Segundo Betti, essa relao de conhecimento que se d nas cincias do esprito tem a particularidade de ser ato de reconhecimento e reconstruo do esprito objetivado nas formas representativas, que fala ao interpretante com base na afinidade pela humanidade em comum. No entanto, apesar de significar48

BETTI, Emilio. Interpretao da lei e dos atos jurdicos: teoria geral e dogmtica. So Paulo: Martins Fontes, 207. p. XXXIX. Ibidem. p. XLII. Ibidem. p. XCVII.

49 50

35

reconduo das formas interioridade humana, transpe o contedo originrio, pois direcionada para subjetividade diferente da que lhe originou. 51 Dessa configurao da relao de conhecimento/entendimento que demarca as cincias do esprito resulta a antinomia que deve ser controlada no processo de interpretao. Por um lado, exige-se do intrprete que reproduza com objetividade a forma representada, conferindo ao resultado do processo a mxima correspondncia e fidelidade a essa forma; isto , subordinado ao objeto. Por outro lado, essa objetividade somente pode ser reconstruda pela subjetividade do intrprete, com base em sua capacidade e conscincia. Nas palavras de Betti:

O intrprete chamado a reconstruir e reproduzir o pensamento alheio a partir do seu interior como algo que se torna seu; mas, embora se torne seu, deve, ao mesmo tempo, opor-se a ele como algo objetivo e alheio. Por um lado, esto em antinomia ente si a subjetividade inseparvel da espontaneidade do entendimento, e, por outro, a objetividade, por assim dizer, a alteridade do sentido que se busca obter. Dessa antinomia resulta toda dialtica do processo interpretativo, e sobre ela pode-se construir uma teoria geral da interpretao que, ao refletir criticamente sobre esse processo, se encarrega dos seus fins e de seus mtodos. Ela recebe o nome de teoria hermenutica. 52

Os parmetros que guiam o intrprete para que mantenha sua subordinao ao objeto, e, com isso, preserve-se a relativa objetividade do processo interpretativo e correo do entendimento sobre o objeto, so os cnones hermenuticos. Em razo do destacado vis metodolgico e epistemolgico, Betti revela sua conformao orientao da hermenutica tradicional. 53 Representando diretivas a serem observadas para controle da tenso entre subjetividade do entendimento e objetividade do sentido a ser atribudo, os cnones ora dizem respeito ao objeto a ser interpretado, ora ao sujeito da interpretao. Referem-se ao objeto o cnone da autonomia hermenutica ou da imanncia do critrio, que veicula a necessidade de entender a forma representada segundo sua autonomia, lei de formao, necessidade, coerncia e racionalidade interior, e no segundo perspectiva ou objetivo externo; e o cnone da totalidade e coerncia da

51 52 53

Idem. Ibidem, p. XCVII. Ibidem, p. 52.

36

considerao hermenutica, pelo qual devem ser correlacionados para fiel significao o todo e suas partes constituintes. So atinentes ao intrprete o cnone da atualidade da compreenso, que estabelece a necessidade de que a forma representada seja reconstruda e atualizada segundo sua prpria experincia de vida, sensibilidade e inteligncia, com o que se afasta a possibilidade de objetividade absoluta na interpretao; e cnone da adequao do entendimento ou correspondncia hermenutica, que implica na necessria harmonia e ntima adeso entre os dois termos do processo interpretativo, ou seja, que haja conformidade entre os espritos para que o intrprete possa alcanar o sentido da representao.54 Apresentadas os conceitos e caractersticas da Teoria Geral da

Interpretao, Betti enuncia a classificao dos tipos de interpretao segundo variados critrios, que implicam diferentes sistematizaes de suas categorias centrais, com destaque para a ordenao a partir da funo da interpretao. Sob esse vis, a interpretao classificada em: meramente recognitiva, quando se resume a entender a representao e se exaure nesse ato; reprodutiva ou representativa, em que se vincula ao ato posterior para fazer entender; e normativa, em que o entendimento visa ao posterior agir. 55 A interpretao jurdica - assim como a teolgica e psicolgica - qualifica-se como interpretao normativa, no no sentido de vinculao dogmtica s normas, mas sim por se destinar a interpretar normas. Objetiva a compreenso do texto legal com a finalidade de ordenar a ao e disciplinar conduta humana; ou seja, vinculao prtica jurdica, e tambm voltada adeso e internalizao para respeito e observncia das regras de conduta pelo cidado-intrprete.56 A conformao aos cnones hermenuticos revela especial importncia, pois a subjetividade decorrente da espontaneidade do intrprete pode significar o afastamento do texto. Por um lado, a exigncia de eficcia de vinculao das condutas ao texto torna destacada a importncia do cnone da atualidade da compreenso, pois, para que possa ser internalizado e observado, o preceito tem que ser transposto para a vida do intrprete. Nesse ponto, reclama postura valorativa do sujeito, no que vai de encontro ao juspositivismo. Em contrapartida, por54 55 56

BETTI, Emlio. Op. cit. p. XLIII-LVIII. Ibidem. p. XVIII. Ibidem. p. 175-176.

37

outro, reclama empenho do sujeito em prestar observncia ao cnone da identificao congenial ou afinidade de valores do intrprete e da forma representativa, evitando o afastamento em relao autonomia hermenutica do texto legal a objeto do processo de interpretao. 57 A partir dessas premissas, Betti ingressa em detalhada anlise dos contornos assumidos pela interpretao da lei e dos negcios jurdicos, construindo teoria da interpretao jurdica de grande influncia sobre a prxis jurdica.

1.3 PARADIGMA DA MODERNIDADE E CRISE PARADIGMTICA

Esse conjunto de fontes epistemolgicas, jurdicas e hermenuticas formam espcie de modelo, de parmetro que orienta a produo do conhecimento desenvolvido por uma comunidade. Para representar a instituio e desenvolvimento desse modelo, como influencia o resultado do processo de conhecimento e/ou interpretao, em especial no campo do direito, e caracterizar o processo de crise que abre espao para transio para outros modelos, til a visualizao que se extrai do conceito de paradigma e de transio paradigmtica. Assim, antes de sistematizar as caractersticas do paradigma epistmico, jurdico e hermenutico da modernidade, revela-se pertinente uma breve apresentao da noo de paradigma adotada no presente trabalho.

1.3.1 Conceito de paradigma e de transio paradigmtica

A noo de paradigma usualmente associada tese de Thomas Kuhn, apresentada na obra A estrutura das revolues cientficas (1962), em que sistematizou manifestaes contrrias ao positivismo lgico, superando a viso de que a cincia teria curso evolutivo linear, lastreado exclusivamente no progressivo acmulo de conhecimento. Pelo contrrio, identificou que o progresso cientfico tem57

ROESLER, Claudia Rosane. A impossibilidade de saltar sobre a sombra: uma anlise da proposta hermenutica de Emlio Betti. In: SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes (org.). Hermenutica e argumentao: em busca da realizao do direito. Ijul: Uniju/Educs, 2003. p. 68-71.

38

natureza eminentemente revolucionria, mediante saltos qualitativos decorrentes da substituio de suas premissas elementares, motivada por fatores exteriores (psicolgicos e sociolgicos), pelo que no pode ser justificada por elementos internos ao prprio conhecimento cientfico. Esses saltos qualitativos pelos quais se desenvolve a cincia ocorrem pela sucesso dos paradigmas. Em linhas gerais, Kuhn sustenta que a cincia historicamente progride da seguinte maneira: pr-cincia cincia normal crise/revoluo nova cincia nova crise/revoluo (e assim sucessivamente). A pr-cincia tem a marca da desorganizao, da indiscriminada coexistncia de mtodos e conceitos praticados pelos diversos cientistas. A cincia se torna madura a partir do momento em que uma teoria bsica resolve os problemas enfrentados pelas diferentes correntes, e confere unidade e universalidade ao saber. A cincia normal denota a aceitao macia do paradigma pela comunidade cientfica, que espcie de modelo que contm os princpios, conceitos e teorias elementares que iro balizar o desenvolvimento da atividade. A partir do momento em que comeam a se repetir fracassos e anomalias, e os fundamentos do paradigma passam a ser seriamente questionados, a ponto de no mais contar com a confiana de seus defensores, inicia-se um perodo de crise e revoluo, que se caracteriza por frtil embate de novas teses. Esse perodo perdura at que determinado grupo prevalea sobre os demais e atraia novos adeptos, a ponto de que a maioria da comunidade cientfica acolha o novo paradigma como teoria fundamental. 58 Desse panorama estruturado por Kuhn, podem se pinados alguns conceitos importantes para a elaborao e compreenso de teorias crticas. O autor conceitua paradigmas como: realizaes cientficas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma comunidade de praticantes de uma cincia.59

Em outra passagem, destaca que o

paradigma traduza as crenas, valores e tcnicas adotadas pelos membros da comunidade, bem como as solues concretas a que se deve socorrer para resolver os quebras-cabeas da cincia normal. Ainda, acrescenta a perspectiva de que: Um paradigma aquilo que os membros de uma comunidade cientfica partilham e

58 59

CHALMERS, Alan Francis. O que cincia afinal? So Paulo: Brasiliense, 1993. p. 123-133. KUHN, Thomas S. A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 2007. p. 13.

39

inversamente, uma comunidade cientfica consiste em homens que partilham um paradigma. 60 Sobre a revoluo cientfica (transio paradigmtica), originada da radicalizao da insuficincia do paradigma dominante em fornecer respostas s anomalias surgidas de suas diretrizes, Kuhn destaca que no se trata de processo cumulativo resultante da rearticulao do velho paradigma, e sim reconstruo da rea de estudos com base em novos princpios, generalizaes tericas, mtodos e aplicaes .61

Conclui que: (...) as mudanas de paradigma realmente levam os

cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que seu nico acesso a esse mundo d-se atravs do que vem e fazem, poderemos ser tentados a dizer que aps uma revoluo, os cientistas reagem a um mundo diferente. 62 Sem descurar as incompletudes da teoria da revoluo cientfica seja por conferir preponderncia s cincias naturais sobre as sociais, seja por no ingressar na seara das influncias sociais, polticas e econmicas na evoluo do conhecimento cientfico - a epistemologia crtica de Kuhn abre novas perspectivas para compreenso da cincia. Discorrendo sobre o tema, Boaventura de Sousa Santos afirma que:

O desafio de Kuhn filosofia lgico-positivista reside em que, por um lado, o desenvolvimento da cincia no cumulativo e, por outro, a escolha entre paradigmas alternativos no pode ser fundamentada nas condies tericas de cientificidade, uma vez que elas prprias entram em processo de ruptura na fase revolucionria. Deixa de haver critrios universalmente aceitos, quer para a suficincia da prova, quer para a adequao das concluses. Est tambm precludo o recurso aos critrios mais gerais elaborados para a seleo da teoria verdadeira, como sejam a exatido, a simplicidade, a fertilidade, a consistncia lgica, etc., uma vez que cientistas diferentes aplicam esses critrios em momentos e situaes diferentes. Para explicar as razes de opes cientficas fundamentais preciso sair do crculo das condies tericas e dos mecanismos internos de validao e procur-los 63 num vasto alforbe de fatores sociolgicos e psicolgicos.

60 61 62 63

Ibidem. p. 220-221. Ibidem. p. 116 Ibidem. p. 116 e 148. SANTOS, Boaventura de Sousa. . Introduo (...) Op. cit. p. 135.

40

As definies formuladas para explicar a evoluo da cincia servem como valioso instrumental a ser empregado em outros campos do conhecimento, em especial: analisar historicamente o sentido das manifestaes pretritas dentro do contexto de sua enunciao; compreender o modo pelo qual integrantes de determinada comunidade adotam acriticamente algumas premissas como verdades inquestionveis; observar como essas premissas so definidoras da identidade coletiva comunitria e at mesmo da subjetividade de seus integrantes; identificar o esgotamento de modelo terico que proporcione transio para diferentes perspectivas; assentar as bases sobre as quais se formulam teorias crticas. Objetivando ilustrar a operacionalidade conceitual da noo de paradigma e aproveitando o ensejo para apresentar noes que sero relevantes para a sequncia da pesquisa - cita-se o emprego do termo na anlise da histria da evoluo da filosofia, que usualmente subdividida a partir dos paradigmas que orientam as diversas correntes de produo filosfica: a) Paradigma do ser ou ontolgico: o ser enquanto essncia (metafsica) determina o sentido e forma das coisas, tanto na orientao cosmolgica orientada pela fysis da filosofia grega, quanto na orientao teocntrica da Idade Mdia. b) Paradigma da conscincia ou do sujeito: prevalncia da razo subjetiva e universal como determinante do sentido das coisas. c) Paradigma da linguagem: a linguagem realada condio de fundamento e possibilidade do conhecimento a partir do giro lingustico. d) Paradigma da vida concreta: proposta da filosofia da libertao de concepo alternativa situada a partir da exterioridade da totalidade do mundo moderno, valorizando a condio existencial do indivduo com base na efetiva situao ftica, material e moral, dentro do contexto histrico e espacial em que se encontre.

41

1.3.2 Razo moderna e paradigma da modernidade

O advento da razo moderna significa uma nova forma de ver o mundo, com novas perspectivas e racionalidades. A razo clssica adotava racionalidade metafsica. A razo moderna, em contraposio perspectiva que predominou na antiguidade e na Idade Mdia, centra-se na racionalidade lgica. Em trabalho sobre as formas da razo, Celso Ludwig observa que a razo moderna fundada na subjetividade transcendental e no mtodo capaz de produzir seu prprio objeto, e tem o condo de se auto-diferenciar em mltiplas racionalidades que intentam suceder razo metafsica. 64 Ao se referir ao paradigma da modernidade, reporta-se ao conjunto de crenas, valores e tcnicas que influenciaram o desenvolvimento da epistemologia, cincia, direito e hermenutica na modernidade, e que se conjugaram e proliferaram hegemonicamente a partir desses saberes, pelo que foram determinantes na configurao das sociedades e culturas da atualidade. Remete-se ao conjunto de solues concretas que servem como ponto de partida na busca de solues modernas para os problemas que se apresentem s comunidades cientficas e societais. Refere-se ao mundo visto a partir do horizonte da modernidade, ou mesmo aos elementos partilhados pela comunidade que qualificam determinado indivduo como moderno; ou seja, que delimitam a fronteira entre os includos na totalidade da modernidade e os excludos que se situam em sua exterioridade. O paradigma epistmico-cientfico da modernidade formado por epistemologia constituda sob o vis do paradigma filosfico da subjetividade, que concebe o conhecimento como produto de uma ao do sujeito racional e consciente sobre um objeto, em que a linguagem figura como mero instrumento de mediao. E por concepo de conhecimento cientfico orientada pelo modelo das cincias naturais, demarcada pela objetividade, neutralidade e universalidade, que visa ao desenvolvimento da tcnica e previsibilidade e controle dos fenmenos naturais e sociais, com escopo utilitarista.

64

LUDWIG, Celso Luiz. Formas da razo: racionalidade jurdica e fundamentao do direito. 1997. Tese (Doutorado em Direito) Cincias Jurdicas, Universidade Federal do Paran, Paran. p. 205206.

42

O vetor central que se dessume desse paradigma - ou seja, que determina os valores, crenas e tcnicas que alberga, fornece as premissas na busca de solues concretas pelos diversos saberes, e delineia uma peculiar viso de mundo orientado pelos desgnios da razo lgico-positivista. Exterioriza-se em racionalidade analtica, formalista, instrumental e auto-referencial, que se pauta nos valores segurana, certeza, estabilidade, ordem e universalidade. No paradigma moderno, o mtodo adquire fundamental importncia. No simples mediao, e sim mediao voltada para alguma coisa ou finalidade. A existncia desse contedo finalstico jungido ao mtodo significa que lhe subjacente forma da razo que o condiciona e, consequentemente, tambm o seu resultado. Em outros termos, a verdade que se alcana metodologicamente vinculada aos valores que determinada razo alberga, e racionalidade que orienta o mtodo. Sobre o tema, Ludwig observa:

Colada a um caminho (ao modus), encontra-se uma racionalidade (logos). Qual a racionalidade? a pergunta crucial do debate filosfico atual. De algum modo, a definio acerca de qual racionalidade deve entrar em jogo, coloca-se como questo prvia ao mtodo mais adequado. (...) Na noo moderna de mtodo como caminho na busca de algo, acima mencionado, decisiva a relao intencional estabelecida entre o logos em jogo e o mtodo usado. Decisiva ao ponto de modificar o resultado enquanto produo da verdade. Se o mtodo figura como caminho que pode ser trilhado novamente, ou seja, se consiste numa via de conhecimento que pode ser repetida exaustivamente, o proceder da cincia produzir um conhecimento, medido no por sua verdade, mas por sua certeza. 65

Boaventura de Sousa Santos destaca a feio totalitria da racionalidade que preside a cincia moderna, que caracteriza como paradigma dominante, pois nega o carter racional s demais formas de conhecimento que no assumirem suas premissas epistemolgicas e metodolgicas, em especial o senso comum e os estudos humansticos. Indica como caractersticas marcantes desse paradigma dominante: a separao entre homem e natureza; a superao da incerteza da razo por si s pela valorizao da experincia e observao emprica dos fatos; a premissa metodolgica de que conhecer significa quantificar e reduzir complexidade, em detrimento da qualificao dos entes; que o conhecimento tem natureza causal, analisando as regularidades para formular leis que possibilitem a previso dos65

Ibidem. p. 58-59.

43

eventos futuros, privilegiando o funcionamento das coisas em detrimento de sua finalidade; que o xito do conhecimento consiste na possibilidade de manipulao e transformao do real; finalmente, que adota viso mecanicista do mundo, em que a pretensa ordem e a estabilidade permitem sua dominao e transformao utilitria e funcional. 66 Orientado especificamente para o direito, o paradigma epistmico-cientfico da modernidade se desdobra em paradigma jurdico-hermenutico eminentemente positivista, normativista e formalista, que busca dotar o conhecimento do direito e a interpretao de suas normas do prestgio do conhecimento cientfico. Em busca da pretensa neutralidade, objetividade e universalidade no conhecimento e

compreenso do direito, o teor de sua verdade preenchido por elementos eminentemente formais, lgicos, analticos e com referncia no prprio sistema. Ou seja, a verdade jurdica prescinde de elementos materiais. Satisfaz-se com a realizao dos valores segurana, certeza e ordem, em detrimento de valores morais ou da justia material.

1.3.3 Crise da modernidade

A crise da modernidade pode ser visualizada em diversas frentes. Pode ser considerada como crise do sujeito moderno, ou da centralidade e auto-suficincia da subjetividade e da razo. Ou como crise do avano cientfico e da tcnica, que prestaram servios a projetos pouco louvveis. Pode ser analisada sob o vis da nova conjuntura internacional em tempos de globalizao neoliberal, e consequente descentralizao e limitao da atuao dos Estados-nao, ou ainda compreendida como crise do modo de vida moderno, sobejamente afetado pelos novos rumos da industrializao, informao. Considera-se que o diagnstico da crise da modernidade essencialmente pragmtico. O cenrio mundial denuncia o descumprimento das promessas emancipatrias iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade (paz). Pelo66

pelo

consumismo

e

desenvolvimento

das

tecnologias

de

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia. 5 Ed. So Paulo: Cortez, 2005. p. 60-64.

44

contrrio,

constata-se

agravamento

de

suas

insuficincias:

desigualdades

conjunturais entre pessoas e entre naes, sistemticas violaes a direitos humanos, desrespeito a autonomia e autodeterminao dos povos, ambiente de permanentes tenses e hostilidades (tnicas, religiosas, classistas, raciais, nacionalistas, sexistas), iminncia de tragdias ambientais, etc., do a tnica da primeira dcada do novo milnio. Esses fenmenos permaneceram conjunturalmente restritos periferia do sistema-mundo67

, o que possibilitou hegemonia dominante atribuir sua causa a

fatores naturais ou sociais locais. No entanto, seu atual alastramento pelo globo, e disseminao no interior dos prprios espaos nacionais das naes do centro do sistema-mundo, revela as contradies inerentes ao projeto da modernidade, e abre espao para o desenvolvimento de propostas e perspectivas alternativas.

1.3.4 Crise do paradigma da modernidade

Concentrando a reflexo nos contornos da epistemologia, cincia e direito na modernidade, identifica-se crise do paradigma tradicional de produo do conhecimento, que abre espao para contexto de transio paradigmtica: o paradigma filosfico, cientfico e epistemolgico da modernidade no mais capaz de fornecer as respostas almejadas pela pluralidade de multifacetrias comunidades, e ainda no surgiu (e no se sabe se surgir) um novo paradigma capaz de unificar os mais diversos anseios e perspectivas em torno de projeto comum. Santos afirma que o paradigma da modernidade teria chegado ao seu esgotamento, principalmente diante do afloramento de suas contradies internas, manifestadas no fracasso em manter em equilbrio a relao regulaoemancipao, com o pilar regulao absorvendo e se sobrepondo s prticas emancipatrias. A crise final do paradigma moderno se evidencia no agravamento67

A referncia ao sistema-mundo tem fundamento na teoria do sistema mundial de Immanuel Wallerstein que, analisando a economia capitalista em escala mundial, recusa a noo de terceiro mundo, justificando que existe apenas um nico mundo estruturado mediante sistema global de trocas. Em funo de espcie de diviso internacional do trabalho entr