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As Crises e a Manobra de Crises

Jun 02, 2018

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Salvador Raza
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  • 8/10/2019 As Crises e a Manobra de Crises

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    AS CRISES E A MANOBRA DE CRISES

    Dr. Salvador Ghelfi Raza1

    Esse ensaio trata do estudo das crises e da manobra de crise e se coloca dois desafios. Oprimeiro prover uma sistematizao de partida do conhecimento terico e praticado nessa rea deestudo. O segundo, mais difcil, efetuar uma ponte entre as Relaes Internacionais e os EstudosEstratgicos, aonde o estudo das crises e da manobra de crise se alojam, evidenciando como e ondeessas duas disciplinas se complementam e distanciam, notando com particular ateno como asdemandas de defesa e a prtica das Relaes Internacionais interagem entre si e como so afetada

    pela evoluo de conceitos e procedimentos.

    Para enfrentar esses dois desafios, estruturamos esse ensaio em dois segmentos. O primeiroreferente qualificao do fenmeno crise, e o segundo referente as causas desse fenmeno e amanobra de crise. Apresentamos esses dois seguimentos nas duas sees desse ensaio. Na primeira

    seo, procuramos oferecer elementos que permitem compreender o que o fenmeno crise. Nasegunda, apresentamos as causas das crises e, a partir delas, formulamos uma arquitetura deconceitos que procuram oferecer uma fundamentao terica para o arsenal de prticas quecontribuem para a dinmica internacional onde o uso, ou ameaa do uso da fora considerado.Partimos de uma abordagem eminentemente conceitual e progredimos em direo a aspectos mais

    pragmticos do gerenciamento das crisesou manobra de crises.

    Desde logo, importante conhecer que no se trata de um texto prescritivo de soluesprontas mas, antes, uma reflexo crtica sobre conceitos, ponderando sobre suas articulaes eutilidade.

    PRIMEIRA SEO: O FENMENO CRISEEsta seo procura responder a uma questo simples: o que so as crises? A resposta,

    entretanto, talvez no seja to simples, j que no se trata de oferecer uma definio do tipoacredite se quiser, mas sim o de identificar um fenmeno, qualificar seus critrios de anlise eexplicitar os limites do resultado dessa anlise.

    Por ocasio da longa crise que tomou a segunda metade do sculo XX, a chamada GuerraFria, a credibilidade das ameaas e a plausibilidade da hiptese da sua escalada geravam, quandocombinadas, dois efeitos.

    O primeiro era o efeito inercializador da intencionalidade do uso da fora, denominadodisuaso (deterrncia), instrumentalizado de duas maneiras. Por negao (denial), quando visavaimpedir o incio da escalada da violncia por meio da demonstrao de que um eventual ataqueseria contraposto por uma defesa substantivamente forte para gerar danos inaceitveis ao atacante,sujeitando-o a um contra-ataque com expectativas plausveis de destruir suas capacidadescombatentes e impondo-lhe a paz que seu adversrio considerava desejvel. Ou por retaliao(retaliation), quando visava impedir o incio da ao adversria pela evidenciao de que o atacadoainda reteria capacidade para revidar, e que esse revide asseguraria um nvel de destruio tambminaceitvel ao atacante.

    1 O autor Capito-de-Mar-e-Guerra, licenciado, atualmente professor de Projeto de Fora no Centro de EstudosHemisfricos de Defesa da National Defense University (CHDS/NDU), Washington, D.C. EUA. O autor agradece

    paciente reviso e valorosas sugestes oferecidas pelo Prof. Israel Guberman. Entrentato, as idias e conceitosapresentados nesse ensaio so de sua exclusiva responsabilidade e no traduzem o entendimento de nenhuma instituioou organizao.

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    O segundo efeito, denominado coao (compelncia2), era um efeito indutor da reverso deuma ao j iniciada para a situao inicial, ou para outra situao ainda aceitvel dentro doequilbrio de credibilidade/plausibilidade.

    Deterrncia e compelncia mostravam-se, do ponto de vista conceitual, como duas faces deuma moeda, unidas por uma igual lgica interna que sustentava necessidades crescentes de recursosmilitares, a fim de assegurar uma capacidade de destruio residual dos arsenais aps um primeiro

    enfrentamento. Dois efeitos que se auto-sustentavam derivavam dessa lgica. Por um lado, tornava-se complexo, seno impossvel, estabelecer uma distino pragmtica entre prevenir a guerra e

    preparar-se para a guerra. Por outro, criava-se um mecanismo de auto-validao das estruturas defora e do seu conceito de emprego, j que a referncia para a medida de sua adequao deslocava-se dos propsitos polticos para a suficincia dos meios frente ao arsenal adversrio.

    Teoricamente, a estrutura de fora e seu conceito de emprego se vinculam instrumentalmente poltica exterior. Entretanto, o que se teorizava como causalidade, se pragmatizava como causa.Os resultados dessa inverso se externalizavam, no caso americano, na limitao das possibilidades

    polticas impostas pelas alternativas militares que, por sua vez, derivavam de uma determinadaestrutura de fora. Uma das caractersticas particulares do perodo da Guerra Fria foi o

    reconhecimento dessas externalidades em seu prprio tempo. A chamada Estratgia de DestruioMtua Assegurada (MADMutual Assured Destruction), por exemplo, iria mostrar-se uma camisade fora, levando Kennedy a propor, em seu lugar, a Estratgia da Resposta Flexvel.

    Esse reconhecimento foi propiciado pela recorrncia de eventos onde a barganha poltica eraentremeada pela ameaa do emprego, ou pelo emprego limitado, dos meios militares, quando,alternadamente, soviticos e americanos procuravam fazer o outro perceber que os ganhos previstosde uma guerra no compensavam seus possveis custos, tornando prticos os conceitos dedeterrncia e compelncia. Embora a intencionalidade do uso da fora fosse sempre objeto deavaliao contextualizada, supostamente racional, a ameaa se fazia sempre crvel, j que ambos oslados possuiam suficiente informaes sobre o arsenal adversrio, sustentando a premissa de que a

    violencia armada podia escalar para patamares onde todo o esforo nacional seria consumido nadefesa dos objetivos polticos dos Estados, com o risco da prpria continuidade de suas existnciasem um armagedom nuclear.

    A cada evento que se sucedia, a Crise Iraniana (1951), a Crise dos Balcans (1954), a Crise doEstreito de Taiwan (1954), as Crise de Berlim (1958-1961), o fenmeno se repetia, culminandocom o famoso episdio dos Msseis de Cuba, em 1962, quando o armagedon nuclear passou de umaeventualidade lgica para uma alternativa pragmaticamente considerada.

    A partir da, evidenciou-se que os conceitos praticados eram limitados para explicar a causadesses conflitos e antecipar alternativas para seu gerenciamento, com a determinao dos meios defora e alternativas de emprego adequados. O risco era muito grande; quando ento nota-se um

    aumento substantivo das investigaes, bifurcada em duas tendncias: uma terico-conceitual eoutra instrumental, ambas resgatando conhecimentos do passado e progredindo juntas em direo aum sistema conceitual e uma metodologia que permitisse explicar as causas do fenmeno crise esuas implicaes, ao mesmo tempo que se formulavam procedimentos para sua gesto em conjuntocom a definio dos recursos humanos, materiais e de informao componentes dos meios de foraadequados para dar conta das demandas que se colocavam.

    A abstrao o primeiro passo em direo a um sistema conceitual, pois permite apontar eorganizar aspectos da realidade, enquanto mantm seus caracteres distintos e significativos.

    2A compelnciacompelence um termo cunhado por Thomas C. Sheeling em seu livro Arms and Influence. EUA:Yale University Press, 1966. Voltaremos a tratar da deterrncia e compelncia e dos termos associados disuaso ecoero na segunda seo desse ensaio; por enquanto, propomos tom-los de forma intercambivel.

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    Conforme Bunge3 apresenta, "a abstrao indispensvel no somente para poder aplicar idiascausais, como tambm para evitar qualquer investigao, seja emprica, seja terica". Essanecessidade metodolgica explica duas particularidades encontradas no estudo das crises, sem quese possa dizer qual causa e qual efeito.

    A primeira particularidade diz respeito ao contedo conotativo do termo crise e atransitividade indevida que seu contedo cria entre conceitos explicativos de ordens de fenmenos

    distintos. A segunda particularidade diz respeito aos critrios de recorte para a delimitao dascrises como objeto de anlise. Vamos detalhar essas particularidades a seguir, com o que

    pretendemos evidenciar que uma crise no uma crise poltico-estratgica simplesmente porquealgum, ou um manual, diz, mas sim que um conflito uma crise poltico-estratgica porque esseconflito se enquadra dentro de uma determinada categoria fenomenolgica, e que, para essacategoria, h um sistema conceitual adequado para explicar sua ocorrncia, seus processos detransformao e consequncias.

    Conotao e transitividade

    Dizer que um termo tem um significado quer dizer que ele tem um propsito; seja esse o de

    representar uma concepo abstrata de um fenmeno, ou seja o de estabelecer um significado comunicao de causas, efeitos e suas relaes. Igualmente, como Thomas Kane4explica, dizer queum termo tem um significado, traduz ou o sentido etimolgico da palavra ou um entendimentosancionado pelo seu uso, quando, nesse ltimo caso, o significado do termo evolui em funo deum novo consenso sobre o que se pretende comunicar com seu emprego.

    O termo crise, do grego krisis, traduz, em sua raiz etimolgica, uma ruptura, oudescontinuidade, de uma progresso temporal, seja para melhor ou pior. Em termos genricos, otermo diz da existncia tanto de uma situao de emergncia, como de confronto de vontades5,tornando-se consensualmente til para comunicar um conflito interno pessoa humana, quandoidias, sentimentos, paixes, dios so colocados em contraposio; ou um conflito dentro de um

    ncleo social especfico, a famlia, o trabalho; ou um conflito entre esses ncleos em seu conjuntomais genrico, quando tomamos a sociedade pelo agregado de suas partes; ou ainda uma disputa deareas de caa ou privilgios de acasalamento entre animais, dentre outras.

    Essas situaestantas quanto nosso intelecto possa conceber a partir da realidade empricaacabam sendo chamadas pelo termo genrico crise, porque apresentam um conjunto comum decaractersticas em suas manifestaes. Chamamos essas caractersticas percebidas dos fenmenosde externalidades, as quais procuramos medir e classificar. De uma forma geral, reconhece-sequatro dessas externalidades como recorrente em todas as crises:

    Tenso

    Oportunidade Riscos

    Intencionalidade

    3BUNGE, M. La causalidade: el principio de causalidade en la ciencia moderna. trad. Aernan Rodrigues. BuenosAires, Argentina: Sudamericana, 1959. pag. 1894KANE, Thomaz S. The Oxford essential guide to writing: A Rhetoric and Handbook for College Students. New York,EUA: Berkely, 2000. Pag. 243.5Alguns autores exemplificam essas caractersticas com duas dimenses do ideograma chins representativo das crise("weiki"): perigo ("wei") e oportunidade ("ji"). Outros contestam esse exemplo. Para uma discusso sobre a validadedessa traduo/correlao, vejahttp://www.straightdope.com/columns/001103.html(capturado em 26/07/01).

    http://www.straightdope.com/columns/001103.htmlhttp://www.straightdope.com/columns/001103.htmlhttp://www.straightdope.com/columns/001103.htmlhttp://www.straightdope.com/columns/001103.html
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    Entretanto, uma definio abrangente das crises utilizando essas externalidades, como porexemplo, uma situao de tenso em que as oportunidades temporais e os riscos previstos geram a

    percepo da possibilidade de sucesso na disputa de interesses, serve tanto para descrever adisputa pelo privilgio de acasalamento entre animais, como alguns dos eventos gerados na disputaamericano-sovitica por seus interesses durante a Guerra Fria; o que nos poderia autorizar aexplicar o acasalamento de lobos e o armagedon nuclear como desfechos lgicos decorrentes de

    uma mesma relao de causa e causalidade abstrada nos dois fenmenos.Alguma coisa, evidentemente, est errada. A lgica vai explicar o erro por silogismos e

    falcias. Um outro exemplo talvez auxilio o entendimento do que queremos evidenciar: a claridadeque a luz do Sol produz e a claridade que uma lmpada produz so externalidades similaressegundo o efeito perceptvel pelo olho humano, mas isso no autoriza a concluso de que umalmpada um Sol em miniatura, ou que o Sol emite luz em funo de seus filamentosincandescentes.

    O mecanismo que propicia tal tipo de erro conhecido: o uso de um termo comum descritorde externalidades similares a uma srie de fenmenos empregado alm do sentido conotativo deuma noo geral que se pretende comunicar e sanciona o entendimento de que todas essas

    externalidades derivam de um mesmo fenmeno. Essa condio assumida como suficiente paraautorizar a transitividade de conceitos explicativos de um fenmeno particular para outro,concorrendo para justificar o entendimento de partida de que realmente trata-se de um nicofenmeno. O erro , portanto, circular.

    Quando essa transitividade ocorre entre ordens de fenmenos distintos, como por exemploentre a fsica e a guerra, ela se mostra mais evidente. O conceito definido na Fsica como centro degravidade, por exemplo, til como descritor do ponto onde a aplicao da fora na guerra oferecemaiores possibilidades de vitria. O termo d uma conotao explicativa de um fenmenoespecfico na prtica blica, mas no autoriza a transitividade do conceito de gravidade paraexplicar porque o esforo de combate efetuado pelo agregado de meios materiais, humanos e de

    informao orientados por um propsito poltico, sujeitos a uma estrutura organizacional earticulados por uma doutrina, tem capacidade de dobrar a vontade do adversrio, fazendo-o aceitara paz nos termos oferecidos pelo vencedor.

    Como vimos, quando a transitividade dos conceitos ocorre entre fenmenos de naturezaclaramente percebida, o emprego conotativo dos termos facilmente identificado, retirando do rolde trabalhos acadmicos com contedo til aqueles que efetuam a transposio dos conceitos almdo prprio sentido dos conceitos. o caso de textos prescritivos de princpios gerais da fsica para oemprego da fora militar, tal como na frase: a massa dos exrcitos (M), impulsionada (acelerada -A) pela liderana dos generais, gera a fora (F) necessria para a vitria. A frmula F=MA, trouxeuma importante contribuio para a Fsica, mas para a guerra, ela apenas uma metfora

    interessante, uma frase de efeito desprovida de qualquer contribuio substantiva. Mas quando osfenmenos se mostram vinculados, como o caso das crises domsticas e as crises internacionais,identificar a transitividade como um erro circular se torna mais problemtico.

    O elemento de vinculao entre as diversas manifestaes das crises o uso intencional daviolncia por grupos organizados para a obteno de um objetivo previamente antecipado. Animaisse organizam e usam de violncia, clulas familiares apresentam graus de violncia em suadinmica, Estados se organizam e usam de violncia. Quando abstrairmos da briga familiar e doconflito entre os Estados os elementos de violncia e instrumentalidade dos meios de fora, adistino conceitual desaparece e ambos eventos poderiam ser tomados como manifestaes de ummesmo fenmeno geral.

    No entanto, apesar de um vnculo aparente, os mecanismos que explicam uma briga defamlia no autorizam a identificar igual comportamento dos Estados no ambiente internacional,

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    nem to pouco a movimentao dos meios militares nas crises pode ser explicada por semelhanaao comportamento de uma matilha de lobos. De fato, o entendimento do por qu esse vnculo no autorizado, talvez a nica, simples, embora pouco conhecida: ainda no existe uma teoria geraldos conflitos unificadora de todos os fenmenos permeados pela violncia.

    O atual conhecimento da humanidade ainda no oferece uma teoria unificadora dos conflitos.H sistemas conceituais que identificam adequadamente certas manifestaes de violncia, outros

    sistemas apontam para outras manifestaes. Por enquanto, um erro conceitual entender adinmica interativa dos Estados no ambiente internacional pelos mesmos sistemas conceituais queexplicam, por exemplo, a guerra entre formigas ou uma crise familiar.

    A condicionalidade da frase anterior tem uma razo. Podemos estar caminhando em direo uma teoria unificadora dos conflitos, onde o entrechoque de interesseshumanos e no humanosevidenciados segundo formas particulares, encontrem sua explicao comum. Entretanto, a teoriados conflitos se encontra ainda compartimentada, com sistemas conceituais ainda relativamenteestanques, cada um deles aplicvel, com graus razoveis de sucesso, manifestaes especficas dofenmeno crise.

    Tal como na Fsica, embora possamos estar caminhando em direo a uma teoria geralexplicativa do fenmeno de produo de luz natural, de luz artificial, do movimento de planetas ede eltrons, essa teoria ainda no existe; o sistema conceitual newtoniano, por exemplo, se mostratil para explicar um determinado conjunto fenomenolgico, perdendo sua especificidade quandonos aproximamos do extremamente pequeno (atmico) ou do extremamente grande (o universo).6

    Dois aspectos necessitam uma clarificao adicional.

    Inicialmente, necessrio distinguir os trabalhos que investigam explicaes alternativas dofenmeno crise, daqueles que simplesmente tomam implicitamente a existncia de uma TeoriaGeral dos Conflitos para validar suas concluses. Os primeiros esto solidamente embasados nametodologia da pesquisa cientfica e contribuem para o avano do conhecimento por meio da

    refutao de hipteses7

    , o que, eventualmente, nos levar a aperfeioar nosso conhecimento atualou, at mesmo, a uma Teoria Geral dos Conflitos.

    Os trabalhos que assumem a existncia de uma Teoria Geral dos Conflitos incorrem no errocircular a que nos referimos. Dessa forma, ainda cabe queles que utilizam conceitos derivados desistemas conceituais desenvolvidos para explicar o uso da violncia que ocorre nas clulasfamiliares, ou nas matilhas de ces, por exemplo, o nus da prova de suas aplicabilidades, paraexplicar o fenmeno crises entre Estados, justificando porque todos se identificam como um mesmofenmeno. Sem isso, suas concluses no so vlidas e, portanto, no podero ser aceitas.

    O segundo aspecto a ser clarificado diz respeito existncia de determinados conceitos que semostram teis na explicao de certos mecanismos ou processos que ocorrem nas crises. o caso,

    por exemplo, da Teoria do Processo de Tomada de Deciso, da Teoria das Organizaes, e daTeoria dos Jogos. Cada uma delas encerra um sistema conceitual articulado cuja utilidade estlimitada por suas prprias premissas (ou hipteses de refutao). Nesse caso, cada uma dessasteorias explica um determinado aspecto componente do fenmeno, sem a pretenso de explicar ofenmeno como um todo. Quando isso ocorre, retornamos ao erro circular.

    6Para aprofundar nesse tema, sugerimos GILLES, G.G.A cincia e as cincias. trad. Roberto Leal Ferreira. So Paulo:UNESP, 1994. HARR, R.As filosofias da cincia. Ed. Edies 70. Lisboa, 1988.7 Ver POPPER, Karl R. A lgica da pesquisa cientfica. Trad. Octanny Mota e Leonidas Hegenberg. So Paulo:

    Cultrix, 1989. Pag. 62 a 77. Popper enfatiza o aspecto lgico-formal do teste de teorias que ele denominafalseacionismo. Para ele, qualquer teoria sempre provisria at o aparecimento de uma evidncia contrria. Isto ,enquanto resiste aos testes.

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    Vamos resumir aqui nosso argumento e encerrar essa discusso que avana em direo epistemologia, afastando-nos do propsito desse ensaio.

    Afirmamos que o termo crise um descritor genrico de determinadas caracterstica presentesem conflitos - humanos e no humanos - que envolvem o uso da violncia organizada para aconsecuo de fins antecipadamente determinados; e explicamos que embora esses conflitos

    possam ser manifestaes de um nico fenmeno, o atual conhecimento da humanidade ainda no

    possui uma teoria geral explicativa das crises econmicas, das crises de personalidade e das crisespolticas como se essas fossem manifestaes particularizantes desse fenmeno nico chamadocrise. O problema, como tambm explicamos, que a premissa de uma teoria geral dos conflitos ,

    por enquanto, s uma premissa. Sobre esse argumento, conclumos que o contedo normativo geraldo termo crise, embora sancionado pela prtica, no autoriza tratar todas as crises como um nicofenmeno e que, quando esse princpio violado, ocorre um erro circular.

    Critrios de recorte

    Para contornar o problema que apresentamos acima no resolv-lo, j que isso orientaria oesforo de pesquisa em outra direo estabelecemos critrios que delimitam dentro do universo

    amostral das crises, aquelas que so nosso objeto de anlise, permitindo a construo de suposiesplausveis que se relacionem um conjunto de conceitos aceitos como vlidos. O que queremos simplesmente circunscrever parcelas da realidade emprica com critrios claros de incluso eexcluso, com o que tornamos possvel delimitar o que relevante ou irrelevante observar e osdados que devem ser selecionados para sua anlise. Chamamos esses critrios de critrios derecorte e, ao conjunto resultante damos a qualificao de crises poltico-estratgicas.

    Aqui tambm existem armadilhas. A seguir, apresentamos duas dessas armadilhas e suasconsequncias. A primeira ocorre quando os critrios de recorte acabam por criar os prpriosfenmenos, e depois desaparecem. A segunda surge quando os critrios de recorte criam umsubconjunto que no existe seno como resultado dos critrios aplicados; e depois desaparecem,

    deixando esse subconjunto como se fosse um fenmeno especfico em si mesmo. A diferenaconceitual entre estas duas armadilhas sutil, mas os resultados prticos, principalmente no estudodas crise poltico-estratgicas so enormes.

    A prim eira armadi lha

    No primeiro caso, as crises poltico-estratgicas seriam um estgio intermedirio entre a paz ea guerra, e distinta de ambas, sendo definida por critrios especficos e regida por regras prprias. Aespecificidade do novo fenmeno decorreria de uma mudana qualitativa de parcela do expectrodos conflitos em funo de um aumento quantitativo da capacidade de destruio das armas(nucleares e convencionais). A parcela transformada desse expectro, tal como um balo que inflado

    expande seus limites, teria empurrado a guerra e a paz um pouco mais para os extremos, ocupandoo centro do espectro dos conflitos. No s a guerra teria contornos mais restritos, como tambm a

    paz teria ficado limitada, e entre as duas as crises poltico-estratgicas se instalariam como umfenmeno especfico.

    Quais os problema com essa definio? Vrios, mas um apenas suficiente para atingir onosso prpsito. Chamamos esse problema de desvio funcionalista. Chegaremos a ele como umaalternativa ao Dualismo e, a partir da, derivaremos algumas concluses.

    Sob uma perspectiva Dualista8, paz e guerra so definidas por sua contraposio lgica: aguerra como ausncia da paz. Ao se introduzir as crises nessa relao, todo um constructo lgico

    8 O Dualismo, dentro da filosofia, referenciado Lei da Identidade, ou Lei de Liebniz, ou Princpio daTransdiscritibilidade dos Idnticos: se duas coisas so idnticas, ento elas tem as mesmas propriedades. Ou

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    alterado, sem que um novo seja oferecido em substituio, onde, necessariamente, paz, crise eguerra sejam mutuamente consideradas, com a clara delimitao do contedo explicativo de cadaum dos termos. Raymond Aron9 captura essa problemtica quando ele diz que a noo de guerrafria prejudica a distino entre a paz e a guerra, fazendo com que a frmula clauzewitzianda (aguerra como continuao da poltica por outros meios) tenha que ser substituida pela frmulainversa: a poltica a continuao da guerra por outros meios.

    O relevante, para efeitos desse ensaio, no a frmula ter sido invertida; mas o que issosignifica: a implicita refutao do constructo clausewitziano, sem que outro, igualmente consistenteseja oferecido. Ao contrrio, continua-se a usar as mesmas construes como se nada tivesse sidoalterado.

    O que diz a Teoria Clausewitziana, ou Teoria da Guerra? Partindo da concepo da guerracomo ato de fora para compelir o inimigo nossa vontade, Clausewitz demonstra que no hlimites lgicos para sua ascenso aos extremos, tendo em vista o fenmeno descrito como da aorecproca, e da retorna a realidade, evidenciando que a guerra no se conforma como um nico

    pulso de violncia, mas sim que existem possibilidades de gradao, tendo em vista a funomediadora da poltica, o que lhe permite, finalmente, concluir que a "guerra no nada mais do que

    a continuao do intercurso poltico com a introduo de outros meios"10

    .Uma vez iniciado o conflito, afirma Clausewitz, cada ato agressivo, em uma cadeia sistmica

    de antagonismo e competio, provoca represlias ainda maiores, em um processo escalatrio; amenos que esse processo seja interrompido por algum elemento moderador, os conflitos tenderiama escalar para sua forma absoluta. No entanto, isso uma abstrao, um modelo ideal (no nosentido de ser boa, mas sim lgica), que serve de referncia para anlise, tendo em vista que afuno mediadora da poltica impede a ascenso dos conflitos aos extremos lgicos.

    Para demonstrar a funo mediadora da poltica, Clausewitz apresenta a relao assimtricaentre o ataque e a defesa, evidenciando a existncia de um ponto culminante do ataque queexplicaria o aparente paradoxo da "suspenso das aes" (as pausas na guerra), quando,

    logicamente, esta deveria ser um "continuum" de violncia e mtua destruio. Para isso, postulasobre os fatos da realidade, que o avano em territrio inimigo drena foras (morais e fsicas) doatacante, provocando uma situao alm da qual a continuidade dos engajamentos visando aobteno de novos territrios inimigo no projeta mais possibilidade de sucessos nos engajamentos;nesse estgio da guerra, teria sido atingido o ponto culminante do ataque11.

    Esse ponto teoricamente determinado pela possibilidade remanescente ao atacante deexplorar a assimetria entre o ataque e a defesa, recorrendo a uma postura defensiva, visando obterfatores de fora compensatrios que lhe permitam esperar pela paz. O ponto culminante do ataquedetermina, portanto, o limite das expectativas de sucesso ttico. Por outro lado, a aferio da vitriaem todas as guerras no pode ser configurada apenas pela derrota completa do inimigo. A

    essencialidade da vitria, est na consecuo dos propsitos polticos que determinaram o empregodos meios de fora a fim de submeter a vontade do adversrio nossa.

    negativamente, se algo tem uma propriedade e outro no, ento eles no so idnticos, eles so distintos. O dualismo seapresenta, tambm, no Primeiro Argumento de Descartes: No posso duvidar da existncia da minha mente. Possoduvidar da existncia de meu corpo. Logo, eles no so os mesmos.O constructo dualista, estensivamente empregado nas cincias sociais, um artifcio analtico arbitrrio, afirmam algunsautores, por excluir a interprentrao dos opostos. Cultura e estrutura, por exemplo so interdependentes e no podemser dissociados, assim como estabilidade e mudana, onde estabilidade pode simplesmente ser uma fase de mudana, ouvice-versa.9ARON, op cit. pag. 231.10CLAUSEWITZ, von Carl. On War. trad. Michael Howard e Peter Paret New York,: Alfred A. Knopf, 1993. Pag. 9911Clausewitz, op. cit. Livro 7, Cap. 6.

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    H um ponto (terico), alm do qual, a busca desse propsito poltico, incorre no risco de queo balano dos fatores de fora (moral e fsica), desencadeados pelos sucessos at ento obtidos naguerra, possam ser sobrepujados pela agregao, pelo oponente, de novos fatores de fora, gerados

    pela conseqente reduo dos fatores de fora do adversrio. Essa situao de vantagem relativa (oude equilbrio) do atacante no confronto dos fatores de fora e fraqueza, denominado pontoculminante da vitria12.

    Alm desse ponto, a continuidade do avano no projetaria mais expectativas de obteno dopropsito poltico originalmente considerado; sendo racionalmente determinante que o atacantealtere seus objetivos polticos (eventualmente recuando), coerentemente com o novo equilbrio deforas, procurando recuperar capacidades que lhe permitam consolidar os ganhos obtidos, nosentido de obter uma paz ainda mais vantajosa.

    A determinao do ponto culminante da vitria atesta a continuidade lgica poltica-guerra-poltica: a guerra como parte do todo poltico. Note-se, portanto, que a frase famosa a guerra acontinuao do intercurso poltico com a introduo dos meios de fora no uma hiptese departida, mas sim uma concluso, e que essa pode ser demonstrvel a partir da teorizao das

    relaes entre evidncias (fatos da realidade).

    Os pontos culminantes do ataque e da vitria referem-se a resultados particulares que podemadvir da evoluo da dinmica de superioridade relativa do atacante sobre o defensor ao longo daguerra em funo de aes polticas, possibilidades estratgicas e resultados tticos, alm de todo ocomplexo de criao e disponibilizao de fora de parte a parte. Da a relevncia da discusso dos

    pontos culminantes, j que ela se d sobre a perspectiva da guerra como um fenmeno blicointegral, sem o que qualquer teorizao que deixe de levar em conta um desses fatores vazia deutilidade.

    Ora, se as crises so introduzidas como um fenmeno especfico (um novo fato da realidade,alterando a dualidade guerra-paz como critrio de anlise), um novo constructo deveria serapresentado, j que nada assegura mais a concluso acima. Entretanto, no isso que ocorre. O

    constructo clausewitziano acaba sendo distorcido para incluir, arbitrariamente, outros elementosque, de um ponto de vista terico, so simplemesmente desnecessrios. Ou ento, algumas de suas

    partes so tomadas fora de seus contextos para justificar determinadas idias difusas e, muitasvezes equivocadas, evidenciando, na prtica, a transitividade indevida dos conceitos queexplicamos anteriormente.

    Entretanto, o leitor poderia dizer que, o que est errado o dualismo como critrio de anlise,postulando, em seu lugar, uma abordagem funcionalista, segundo a qual seria possvel justificar oconceito de crise em termos de sua contribuio para explicar o processo de transformao da pazem guerra. Afinal, essa a prtica atual, e ela reflete uma evoluo no conhecimento das crises, queo constructo clausewitiziano no explicaria.

    Entretanto, essa postulao frgil. O funcionalismo no explica nem o processo detransformao do oposto - da guerra para a paz - , nem o papel interveniente da poltica nesse

    processo de transformao. O funcionalismo tambm no explica o estado final do conceito deguerra e paz pela introduo das crises nessa relao. Se uma alterao qualitativa decorre de umaalterao quantitativa para dar especificidade as crises como um fenmeno nico, de se esperarque a mesma alterao qualitativa possa ocorrer nos fenmenos guerra e paz por essas terem tidoseus domnios tambm reduzidos quantitativamente pela introduo das crises entre elas.

    12Clausewitz, op. cit. Livro 7, Cap. 22.

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    Veja-se as contradies a que isso pode levar. Vamos aceitar que o deslocamento dos navios eaeronaves brasileiros, durante a Guerra da Lagosta13, seja uma crise segundo esse critriofuncionalista. Ora, nesse caso, tnhamos uma crise enquanto os meios militares brasileiros estavamse deslocando para o ponto de contato, sem saber qual seria a reao francesa; mas se Franareagisse com violncia quando em contacto com os meios militares brasileiros, ento odeslocamento desses meios teria sido uma mobilizao para a guerra. Agora no mais crise,

    guerra! Mas o deslocamento j ocorreu. um fato do passado. Bem, nesse caso, o fenmeno nopassado tem que mudar, j que crise e guerra possuem naturezas distintas!

    O problema que o funcionalismo limitado para explicar o fenmeno crise como umfenmeno especfico. Ele apenas diz que, se as crises podem ser percebidas e essa percepo temuma finalidade prtica, ento elas existem. Ponto. No importa, para o funcionalismo, explicar ofenmento crise, da mesma forma no importa refutar a concluso, por exemplo, de que sua lgicaautorizaria dizer que computadores pensam, j que eles apresentam algumas habilidades que amente humana possui. Para o funcionalismo, as funes desempenhadas pelos computadores soteis, e isso suficiente para seus propsitos. Para o funcionalismo, as crises, individualizadascomo um fenmeno, tem uma funo, e isso suficiente.

    A necessidade de se instrumentalizar alternativas de fora, durante a Guerra Fria, para darconta de um estado de no-paz-no-guerra, encontra no enfoque funcionalista uma ferramenta tilpara alojar as crises poltico-estratgicas em um espectro de conflitos-tipo. Essa tipologia erafuncionalmente til para o planejamento de defesa, j que, naquele perodo, as metodologias de

    planejamento eram calcadas em cenrios-ameaa. Ao mesmo tempo, esses cenrios justificavam acontinuidade da existncia de determinadas capacidades militares, estruturas e, at mesmo, das

    prprias instituies militares.

    Sob um enfoque funcional, no relevante que essa tipologia seja conceitualmente frgil porpressupor alteraes sequenciais, lineares e mutuamente excludentes dos diversos tipos de conflitos,sem explicar como eles evoluem de um estgio anterior para outro. Ela simplesmente utilizada

    por sua utilidade funcional de encapsular a multidimensionalidade e multidirecionalidade14

    dosconflitos segundo formas antecipadamente aceitas como vlidas e, como tal, possibilitar umplanejamento para dar conta das demandas militares encerradas nessas cpsulas.

    O critrio empregado para esse encapsulamento a doutrina15, na forma de regras gerais deao e comportamento, elaboradas sobre sucessos e erros do passado, que visam orientar a ao

    13A Guerra da Lagosta foi um conflito ocorrido em 1963 entre o Brasil e Frana em torno de privilgios de pesca dalagosta no litoral nordestino brasileiro, com a mobilizao de Foras Navais e da Fora Area Brasileira. O Brasiladvogava que a lagosta seria uma riqueza natural da plataforma continental e, portanto, sujeito legislao brasileiraque concede direitos de pesca e estabelece procedimentos para a preveno e punio de delitos. Enquanto que a Frana

    postulava que a lagosta, tal como os peixes que se moviam livremente acima da plataforma podiam ser pescados,

    respeitados os limites do mar territorial e tratados internacionais; intransigentemente alegando direitos de pesca naquelaparte do litoral brasileiro e que, portanto, o Brasil no podia apresar seus lagosteiros. O Brasil teria ganho a questocom uma famosa frase do Alte Paulo Moreira, que assessorava a comisso diplomtica: "O Brasil est disposto a aceitara tese da Frana se os dignos representantes franceses concordarem que, quando o canguru d seus saltos, pode serconsiderado uma ave." Para uma apreciao do papel da Fora Area Brasileira na Guerra da Lagosta, com a

    participao do 1 GAE, vejahttp://www.rudnei.cunha.nom.br/FAB/port/4-7.html.Capiturado em Nov/2001.14Essa multidimensionalidade caracteriza-se pela possibilidade de, por exemplo, termos uma crise inserida em umaguerra ou ento uma guerra fria. J a multidirecionalidade exprime a possibilidade dos conflitos poderem tantoescalar, como distender, quando se considera a violncia como a varivel de controle; ou ento expadir-se ou contrair-se, quando a varivel o nmero de atores envolvidos. Assim, quando dizemos que um conflito escalou verticalmente,queremos dizer que o nvel de violncia aumentou e, quando dizemos que a escalao foi horizontal, estamos dizendoque mais atores foram envolvidos no mesmo conflito.

    15O termo doutrina possui vrios significados que convergem para trs entendimentos. O primeiro pode ser expressonos termos que o Departamento de Defesa dos EUA o emprega: o conjunto de princpios fundamentais que instruem aao militar visando a consecuo dos objetivos nacionais. O segundo est associado ao conjunto de conhecimentos e

    http://www.rudnei.cunha.nom.br/FAB/port/4-7.htmlhttp://www.rudnei.cunha.nom.br/FAB/port/4-7.htmlhttp://www.rudnei.cunha.nom.br/FAB/port/4-7.htmlhttp://www.rudnei.cunha.nom.br/FAB/port/4-7.html
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    coletiva por meio de um arsenal de alternativas que mostram expectativas de sucesso quandoempregadas de uma determinada maneira. Entretanto, erro dizer que doutrinas no precisam serconceitualmente sustentadas, sobre a explicao simplista de que, afinal, doutrinas so doutrinas!

    No vamos em um ensaio querer tratar de todos os temas que envolvem a crise com a mesmaprofundidade. Mas nesse caso vale a pena apenas como exerccio intelectual apresentar uma dascausas para que esse erro ocorra nos pases sem uma slida literatura e atividade acadmica em

    defesa. Essa causa parece se radicar na tentativa de teorizar a partir de manuais doutrinrios depases mais desenvolvidos, principalmente os EUA e Inglaterra. Esses manuais so o que elesdizem o que so: manuais doutrinrios, os quais impem uma determinada conduta, sem a

    preteno (e nem so para isso) de explicitar o sistema conceitual que o instrui. Seu propsitoprescinde da necessidade de explicitar esse sistema conceitual. Ou dito de outra maneira, uma vezque o sistema conceitual gera seu efeito, ele desaparece, permanecendo apenas implicitamente naarticulao dos termos nos textos doutrinrios.

    O resultado duplamente ruim. Por um lado, permite interpretaes contraditrias dadoutrina, onde a doutrina deveria ser o prprio elemento de coeso da ao e pensar coletivo;segundo gera um descrdito doutrina, que se transforma apenas em um documento pr-forma;

    com todos envolvidos sabendo, implicitamente, que ela no serve para nada e que, quandonecessrio, vo ter que improvisar mesmo!

    Doutrinas evoluem segundo as prticas e os conceitos que explicam essas prticas, no sepodendo separar quem causa e quem causalidade somente para efeitos analticos. Entretanto,quando doutrinas so s regras, sem um sistema conceitual mesmo que seja implcito - que asarticule, ento no existe doutrina, mas sim um glossrio. O que vemos no estudo das crises soglossrios que dizem que uma crise poltico-estratgica , e oferecem uma definio; as crises

    poltico-estratgicas so, ento, o que essas definies dizem que ela so, elas so! E, como suautilidade medida pela funcionalidade para a prpria doutrina que a definiu, o resultado terdefinies criando fenmenos: critrios de recorte da realidade criando as crises.

    A segun da armadi lha

    Dissemos que apresentaramos duas armadilhas e suas consequncias. A primeira tratamosacima, quando evidenciamos como os critrios de recorte acabam por criar os prprios fenmenos,e depois desaparecem. A segunda diz respeito a erros de recorte que levam a um subconjunto queno existe seno como resultado dos critrios aplicados.

    Para apresentar esta segunda armadilha, necessitamos antecipar a concluso dessa seo:crises poltico-estratgicas so uma forma de guerra limitada. Note-se que no estamos tratandode todas as crises, mas sim de um segmento especfico que tomamos como objeto de anlise,conforme tambm j explicamos.

    Segundo esse estendimento, podemos estabelecer trs recortes qualificadores das crisespoltico-estratgicas:

    prticas que instruem a ao coletiva, possibilitando a antecipao de posturas e comportamentos humanos sem umaclara explicitao das aes individuais a empreender ou sem uma clara compreenso da situao que se apresenta ao

    julgamento para a ao. O terceiro associa o termo doutrina ao acervo coletivo da experincia acumulada que instrui omodo pelo qual os elementos componentes dos arranjos de meios so articulados com as estruturas de combate e deapoio ao combate visando seu emprego na guerra. A doutrina, distingue-se dos protocolos de operao. Esses

    protocolos esto associados ao desempenho dos arranjos de meios sob condies especificadas, enquanto que a doutrinatrata das alternativas do uso dos arranjos de meios sob condies antecipadas, para o que instrui a seleo dos

    protocolos de operao em articulao com as organizaes de combate e de apoio ao combate.

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    Natureza: as crises poltico-estratgicas so um conflito poltico-social onde um ator(coletivo ou individual) busca impor sua vontade sobre outro (tambm coletivo ouindividual) por meio da ameaa ou uso da fora.

    Os elementos essenciais que definem essa natureza so a tipologia do conflito poltico-socialpor meio do qual a funo humana se materializa no entrechoque de interesses quecaracteriza a poltica, e na instrumentalidade da ameaa ou uso da fora nessa relao. S

    existe uma crise poltico-estratgica quando homens e mulheres organizam-se e dispem-sea usar da violncia para a consecuo de objetivos politicamente determinados.

    Dinmica especfica. As crises poltico-estratgicas emergem da ruptura (krisis) de umequilbrio (acordo) tcito ou impltico, seguida de negociaes diretas entre as partes, ou pormeio de terceiras partes, conduzidas sob a ameaa ou uso da fora, e concluem com oatingimento de um novo acordo poltico.

    A ruptura ocorre com maiores ou menores elementos de surpresa em funo da capacidadedos oponentes perceberem sinais de sua deflagao e os intepretarem. As negociaes soconduzidas com informaes imperfeitas e incognitas, onde, essencialmente, ocorre umauma prova de fora moral e fsica por meio da efetividade ou ameaa da ltima, segundogradaes que variam desde a observao armada at o engajamento violento entre as

    partes, com destruio de vidas e material. O acordo final busca um novo equilbrio,contingencial e temporal, que cessa a possibilidade da continuidade ou escalada dadestruio e, por causa dele, os atores envolvidos impem maior ou menor urgncia emobter esse acordo, com o que geram uma compresso de eventos no tempo, aumentandoas tenses com que as negociaes so conduzidas.

    Entretando, esses dois critrios somente so insuficientes. Eles no possuem suficienteespecificidade para isolar as crises poltico-estratgicas como uma sub-categoria do fenmenoguerra, caracterizado por Clausewitz, como sendo um ato de violncia destinado a forar oadversrio a submeter-se nossa vontade. Dai o terceiro critrio ser funcionalmente necessrio.

    Note-se, entretanto, que a funcionalidade aqui aplicada como critrio de recorte e no comosistema conceitual que define o fenmeno. Consciente dessa limitao e, portanto, do arbtrio queela impe, podemos oferecer o terceiro critrio:

    Limitao dos meios e da intencionalidade da violncia que eles geram. Segundo esserequisito, os meios de fora transcenderiam alguns esparos recursos militares, mas noatingiriam o patamar onde exrcitos, marinhas e foras areas combateriam, efetivamente,com todos seus recursos, contra todos os alvos vlidos. Da mesma forma, a violncia iriaacima da veemncia das declaraes, mas as mortes e danos materiais ainda no semostrariam abaixo da imprevisibilidade dos efeitos colaterais que bombardeios areos,

    por exemplo causariam nas populaes de centros urbanos.

    Como antecipamos, esse um critrio de recorte arbitrrio e impreciso. Mesmo poucosrecursos podem capturar a noo da capacidade blica de um pas. Como Luttawk16apresenta, oefeito poltico evocado por meios de fora so diretamente relacionados s capacidades do Estadoque eles representam. , portanto, um problema de percepo, como Thomas Schelling explica: adistino entre crises poltico-estratgicas e guerra funo da percepo dos atores envolvidossobre a distino entre coero e fora bruta17. Alm disso, nem sempre a intencionalidade dasaes caracteriza a agressividade e nem sempre a agressividade acompanhada de violncia. Porexemplo, o Coronel do Exrcito britnico que, durante a colonizao da Amrica do Norte, doou

    16LUTTWAK, The political use of seapower. Baltimore, USA: Johns Hopkins University Press, 1974.17Ver SCHEELING, Thomas C. Arms and Influence. Yale University Press, New Haven, EUA. 1966, pag. 5.

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    cobertores retirados de um hospital de doentes com sarampo indgenas que no tinham defesasnaturais contra esta doena foi extremamente agressivo, mas no violento18.

    Por outro lado, esse terceiro critrio de recorte til por delimitar um conjunto especfico deguerras limitadas como objeto de investigao, visando basicamente trs objetivos:

    a) Prevenir sua ocorrncia em nveis superiores, salvaguardando interesses ameaados,pela aplicao dos meios de fora dos Estados e, se necessrio, os de aliados;

    b) Caso essa guerra limitada no puder ser evitada, determinar procedimentos eorientaes aos comandantes militares para sua gesto; e

    c) Se necessrio, preparar a transio para nveis superiores de violncia.

    Note-se, portanto, que o terceiro critrio no cria um fenmeno especfico, mas apenascircunscreve uma sub-categoria funcionalmente necessria dentro de uma fenomenologiaespecfica. So trs as vantagens desse entendimento, como veremos a seguir.

    Primeiro, no se torna necessrio inventar um novo sistema conceitual para dar conta da

    explicao do que seja o fenmeno crises poltico-estratgicas. Elas so um guerra limitada,explicada pela Teoria da Guerra, com o que se pode explicitar como e por qu as crises poltico-estratgicas escalam ou distendem, sua relao com a paz, assim como se pode explicar seuscomponentes tticos, estratgicos e polticos, empregando-se esses conceitos em seus prpriossentidos.

    Segundo, esse entendimento trs a doutrina de volta ao seu papel, aceitando que ela possaincorporar procedimentos diferenciados para esse tipo de guerra, sem que, entrentanto, a doutrinatenha que especificar o fenmeno a que ela se refere, evitando o erro circular a que nos referimos.

    Nesse sentido, podemos clarificar o termo manobra de crises como sendo prticas que instruem oemprego dos instrumentos de fora disposio dos Estados - militares e no militares - capazes de

    impor uma percepo de coao ou de sustentar a violncia coletiva organizada dentro de limitesimplicitamente aceitos pelas partes.

    Em outros termos, a crise est para a guerra assim como a manobra de crise est para oguerrear. Com isso, as tticas continuam sendo o uso dos meios de fora nos engajamentos e aestratgia continua sendo o uso dos combates para o propsito da poltica. A dimenso quantitativa

    limitada do emprego da fora no altera nem o conceito de ttica, nem o de estratgia e to poucoa relao entre ambas.

    Terceiro, permite empregar o termo crise poltico-estratgico em vez do termo guerra,fazendo uso de trs vantagens funcionais que esse sinnimo apresenta.

    a) Faculta a continuidade de negociaes diplomticas tpicas de tempo de paz, praticadaspor canais e procedimentos que, de outra maneira estariam bloqueados pelos costumes enormas da guerra.

    b) Traz ainda implcito o entendimento de que a busca de uma soluo para o conflito seriaantecedida de negociaes diplomticas, inercializando a escalada da violncia por

    prevenir a mobilizao em grande escala, ao mesmo tempo que permite que essasnegociaes diplomticas normalmente lentas e complexas sejam desenvolvidassegundo sua prpria dinmica, forando a subordinao da fora ao seu propsito poltico,em maior decurso de tempo.

    18MCNEIL, W. Plagues and Peoples. New York, USA: Anchor Doubleday, 1976. Veja, ainda,DIAMONT, J. Guns,Germs, and Steel. New York, EUA: W.W. Norton & Company, 1997.

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    c) Previne o reconhecimento implcito da identidade poltica de um ator, terroristas porexemplo, que caso tivessem reconhecido seu status de atores polticos deveriam sertratados como prisioneiros de guerra e julgados segundo regras e procedimentos tpicosdessa situao, como as Convenes de Genebra.

    A fim de deixar claro o conceito, retomemos o exemplo dba Guerra da Lagosta. Quando osnavios e aeronaves brasileiros se deslocam para o ponto de encontro com o navio francs, trava-se,

    desde o incio, um duelo de vontades antecipando a possibilidade do uso da fora; esse um tipo deengajamento, no caso ainda apenas na mente dos comandantes, conforme a Teoria da Guerraexplica. O Brasil usa sua fora nesse engajamento para mandar uma clara e inequvoca mensagemsobre sua inteno. A Frana avalia os custos e ganhos e se retira. Desde o incio a poltica est

    presente determinando quando lutar, como lutar e quando parar de lutar. Desde o incio umaguerra, limitada no caso, onde as negociaes se desenvolvem enquanto os meios de fora somobilizados e posicionados. Se a Frana reagisse, a guerra escalaria. No precisamos mudar o

    passado para explicar a transformao de crise em guerra. um fenmeno nico.

    Utilizar o termo crise poltico-estratgico para as guerras limitadas funcionalmente til doponto de vista pragmtico das negociaes diplomticas. Entretanto, ao nos apropriarmos desse

    termo, devemos estar alertados de sua desvantagem. O critrio utilizado para determinar a sub-categoria das crises poltico-estratgicas como um tipo de guerra limitada muito elstico impreciso - permitindo uma grande possibilidade de interpretaes de quais sejam seus limites paraas guerras no-limitadas. O recorte do universo amostral leva a um subconjunto que s existe comoresultado do terceiro critrio. Concluso: o terceiro critrio funcionalmente til do ponto de vistada gesto do conflito, mas desnecessrio do ponto de vista da qualificao do fenmeno e arbitrriona sua definio. A segunda armadilha est em se tomar os trs critrios como conceitualmentenecessrios. Se a aceitarmos, acabaremos no mesmo circulo vicioso entre a definio das crises e adoutrina a que nos referimos anteriormente.

    Uma p ropo st a d e d efin ioPor outro lado, se escapamos dessas armadilhas, talvez possamos apresentar uma definio

    operacional, funcionalmente til, para as crises poltico-estratgicas, reconhecendo que elas no soperfeitamente estanques ou delimitadas por fronteiras rgidas.

    As crises poltico-estratgicas so uma forma de guerra onde os meios empregados e a

    intencionalidade do uso violento da fora so limitados, sendo essa limitao contingencial e

    temporalmente determinada segundo valores, costumes e prticas implicitamente reconhecidas e

    aceitas na dinmica poltica interna e internacional.

    Para aqueles que preferem no ver o termo guerra mencionado, pelas razes que jexpusemos, uma outra definio seria:

    As crises so uma forma de conflito permeado pela ameaa ou o uso limitado da fora para

    a conquista de objetivos politicamente determinados

    Observe-se que evitamos a primeira armadilha pois no estamos simplesmente definindo oque a crise . E pronto! Tambm evitamos a segunda armadilha, pois enquadramos as crises dentrode uma categoria fenomenolgica especfica as guerras para as quais j existe um sistemaconceitual explicativo ainda no refutado e, a partir dai, fazemos um recorte til de um segmentodesses fenmenos com propsitos especficos, conscientes das limitaes dos critrios que estamosempregando. Sem esse reconhecimento, voltamos a primeira armadilha, quando ento oscomputadores comeam mesmo a pensar. E qual seria a utilidade funcional dessa definio?Quatro, pelo menos, se evidenciam de imediato.

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    Primeiro, ela util por oferecer critrios para excluir da categoria das crises poltico-estratgicas aquelas onde o fator humano no esteja presente ou onde a instrumentalidade do uso dafora para os propsitos polticos ainda no tenha se apresentado. Por exemplo, uma crisefinanceira, onde as perdas monetrias por uma das partes no implica na ameaa de que essa v usarda fora para impor sua vontade sobre outras partes. Entretanto, se isso ocorrer, o fenmeno passa aser uma crise poltico-estratgica, cujo estopim foi a crise financeira que a antecede.

    De acordo com esse entendimento, quando a vontade de uma das partes no ameaa osinteresses de seu rival, o resultando o estabelecimento de solues de compromisso naacomodao de interesses, delimitando um estado que convencionou-se chamar de paz. Podemosmesmo dizer que quando os propsitos dos grupos no so competitivos, ento a paz prevaleceentre esses grupos, o que d sentido ao entendimento de Raymond Aron 19de que, at hoje, a paznos tem aparecido como a suspenso, mais ou menos durvel, das modalidades violentas deconflitos entre os Estados.

    Segundo, essa definio util por incluir na categoria de crises poltico-estratgicas a Guerrada Lagosta entre Brasil e Frana, a Crise dos Misseis de Cuba e a crise das Falklands/Malvinas que

    para os Argentinos foi uma guerra. Ou seja, podemos agora tratar efetivamente dos fenmenos

    includos nessa categoria, independente do contedo conotativo dos termos que os descrevem.Terceiro, ela permite operacionalizar o conceito de proporcionalidade, praticado nas

    Relaes Internacionais, segundo o qual, somente foras razoavelmente necessrias devem seradjudicadas a objetivos limitados.

    Quarto, e mais importante, podemos articular outros conhecimentos e conceitos com esseconceito de crise poltico-estratgico, sem que se incorra na transitividade indevida a que nosreferimos logo de incio. Vamos explorar essa possibilidade na prxima seo, quando tratamos dascausas das crises.

    A partir daqui, utilizaremos simplesmente crise para expressar as crises internacionais

    poltico-estratgicas, conscientes da especificidade do seu contedo denotativo.

    Concluses da primeira seo

    Nessa seo, apresentamos o termo crise como um descritor genrico de um conjunto deefeitos aparentemente similares, que os fenmenos de natureza distinta apresentam. Evidenciamos,ento, o erro conceitual decorrente do emprego acrtico de conceitos derivados de outras reas deconhecimento para o estudo das crises e evidenciamos duas armadilhas relacionadas aos critriosempregados para a especificao das crises poltico-estratgicas.

    Demonstramos ento que as crises poltico-estratgicas nada mais so do que uma forma deguerra limitada, com o que se permite inseri-las no universo de fenmenos blicos,independentemente do nome que lhes seja dado, enquanto que as distinguimos como sub-conjuntoespecfico desse universo para efeitos funcionais. Apresentamos ento a vantagem de se utilizar otermo crise poltico-estratgica em vez de guerra limitada, com a cautela de que isso funcionalmente til, mas impreciso e arbitrrio como critrio de delimitao dessas crises como umfenmeno especfico.

    Apresentamos ento quais seriam quatro vantagens do termo e dissemos que exploraramos altima a possibilidade de incorporar e articular outros conceitos para explicar as causas dascrises.

    19ARON, Raymond. Paz e guerra entre as naes. ed. Universidade de Braslia, 1962. pag. 220.

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    SEGUNDA SEO: AS CAUSAS DAS CRISES E A MANOBRA DE CRISE

    A definio das crises que apresentamos na seo anterior possibita a incluso e excluso deconflitos em uma categoria fenomenolgica, mas ela nada diz a respeito de suas causas. O que algo importante, j que se soubermos identificar a causa, talvez possamos impedir que essas guerras

    limitadas ocorram; ou ento, fazer com que elas ocorram, conforme a demanda poltica.O problema, vale a pena afirmar logo de incio, que no sabemos exatamente qual acausa

    das crises. H vrias causas recorrentes identificadas, com vrias hipteses sobre qual delas teriapreponderncia para gerar um conflito, dado que outro conjunto de variveis tambm estejampresentes; mas, de fato, a concluso que os principais trabalhos realizados sobre esse tema chegam que as crises derivam de uma combinao de causas, e, cada vez que emergem, decorrem de umacombinao particular. David Singer, por exemplo, em 1986, criticava os estudos sobre as causasda guerra dizendo nada que valha a pena como teoria das causas das guerras realmente existe...ns ainda no temos uma teoria das causas das guerras20.

    Vamos apresentar nessa seo quais seriam as principais causas que, segundo alguns autores,

    quando combinadas, teriam maior probabilidade de gerar uma crise. Mas antes, cabe lembrar queessas causas surgem da experincia e no da experimentao. dizer, no podemos metodicamente

    provocar uma dessas crises segundo um plano de pesquisa para testar uma hiptese. De fato, o quetemos um arsenal de eventos histricos a Histria da Guerra , com o que investigamos o

    passado em busca de lies e padres que iluminem nosso entendimento de possibilidades similaresno futuro. Mais que isso buscar princpios gerais e inequvocos, quando nosso erro seria ir almdo que a Histria autoriza antecipar.

    Consciente desse limite, podemos nos beneficiar de trabalhos extensos sobre o tema, sem anecessidade de efetuar nossa prpria reviso da Histria das causas da Guerra. F. H. Hinsley, porexemplo, investiga as causas das guerras e sua preveno desde o Sculo XIV at a Primeira Guerra

    Mundial. E.H. Carr faz um brilhante21

    trabalho de pesquisa sobre as causas das crises poltico-estratgicas entre 1919 e 193922 e Jack S. Levy levanta hipteses sobre as causas atuais dessascrises23.

    Entendimentos sobre as causas das crises

    Nesse ensaio vamos apresentar trs conjuntos de entendimentos sobre as causas das crises. Oprimeiro, desenvolvido por Kenneth Walts, denominado Teoria das Imagens, em seu livroMan, theState, and War24. O segundo, apresentado por Stephen Evera em seu livro Causes of War: Powerand the Roots of Conflic25. O terceiro, situa as causas das crises a partir das perspectivas realistas eneo-realistas que instruem a teorizao e prtica das relaoes internacionais. Nosso propsito em

    apresentar essas trs perspectivas, nessa sequncia, triplo. Por um lado, queremos evidenciar acomplementariedade e at mesmo superposio das diversas perspectivas que apresentam as causas

    20 SINGER, D. Research, Policy, and the Correlates of War. In Oyvind Osterud, ed. Studies of War and Peace.Oslo:Norwegian University Press, 1986. pag. 44-58.21 O trabalho de Carr foi bastante criticado por autores que viam nele uma certa apologia ao apaziguamento(appeasement). As edies subsequentes eliminaram algumas partes com esse teor. Entretanto, Carr considerado umexpoente da escola realista e seu trabalho uma referncia importante nas Relaes Internacionais, principalmentequando procuramos ver a evoluo das formas de pensar nessa disciplina.22CARR, E.H. The Twenty Years Crisis, 1919, 1939: An Introduction to the Study of International Relations. NewYork: Harper & Row, 1964.23LEVY, Jack S. The Causes of War: A Review of Theories and Evidence. In Tetlock P et al (ed) Behaviour, Society,

    and Nuclear War. 2 vols. New York: Oxford University Press, 1991.24WALTZ, Kenneth N.Man, the State, and War. New York: Columbia University Press, 195925EVERA, Stephen Van. Causes of War: Power and the Roots of Conflicts. Ithaca: Cornell University Press, 1999.

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    das crises. Por outro, como um corolrio do primeiro, mostraremos a complementariedade das duasprincipais teorias empregadas para a gesto das crises: a Teoria da Estabilidade e a Teoria doEquilbrio. Finalmente, pretendemos evidenciar a complexidade do tema, convidando o leitor aexplorar a literatura referenciada de forma a construir sua prpria sistematizao sobre as causasdas crises e, a partir do contraste com as quais apresentamos, propor outros entendimentos queavancem no conhecimento do tema.

    O mo delo de Wal ts

    Kenneth Waltz apresenta a chamada Teoria das Imagens, segundo a qual podemos agrupar ascausas das crises em trs conjuntos, ou imagens. Na primeira, a causa est associada prprianatureza humana, cujo comportamento admite uma tipologia que varia desde o idealismo pacifista,at o realismo belicista absoluto. dizer que uma das causas das crises est relacionada

    personalidade de alguns lderes como, por exemplo, Sadan Hussein na crise que levou a Guerra doGolfo. A segunda imagem relaciona as causas dos conflitos eventos intra-estado. o caso, porexemplo, do desencadeamento de uma crise internacional com o propsito de encobrir srios

    problemas de poltica interna, como parece ter sido, por parte da Argentina, a Guerra das Malvinas.

    A terceira imagem, ao tratar das causas dos conflitos como sendo inter-estados, tem sua teoriacentrada no conceito da existncia de uma relao de anarquismo existente na relao entre Estadossoberanos no Sistema Poltico Intenacional26.

    Essa Teoria um marco conceitual importante para o estudo das causas das crises, poroferecer critrios que abrangem a maioria dos fatores que levam s crises internos, intra-estado einter-estados. Entretanto, ela criticada como restritiva por no considerar a interconectividadeentre as imagens.

    O mod elo de Evera

    Stephen Evera apresenta cinco causas para as guerras, as quais adaptamos para os propsitos

    desse ensaio sem, entretanto, descaracterizar sua idia original. O trabalho de Evera um marcoimportante porque referencia essas causas ao uso, ou ameaa dos meios militares. Note-se aqui afora do entendimento das crises poltico-estratgicas como guerras limitadas. Fazemos essatransposio do trabalho de Evera sobre guerras para o estudo das crises propositalmente,convidando o leitor a refutar esse entendimento. Afinal, assim que se constroi conhecimento,aperfeicoando sistemas conceituais e a prpria educao nos estudos de defesa.

    1. Erro de anlise

    As crises tm maior probabilidade de ocorrer quando os Estados so presos de falsosotimismos a respeito dos benefcios que elas podem trazer ou a respeito dos custos da guerra.

    Nos estgios inicias das guerras limitadas (as crise poltico-estratgicas), por exemplo, ondeos nveis de violncia praticados ainda so baixos, os partidos ainda esto elaborando seus critriosde aceitabilidade da violncia para aquela disputa, ou, ainda, procurando estimar a determinaodos oponentes em explorar as oportunidades de alcanarem seus interesses. Com isso, a escalada doconflito, em sua fase inicial, passa a ter um certo carter exploratrio, j que os custos decorrentesainda so baixos. Essa situao acaba permitindo que as movimentaes de navios possam serintempestivas e mal elaboradas, as normas de comportamento27desfocadas do propsito ltimo dacrise e as declaraes polticas carregadas de empfia e posturas desafiadoras.

    26Para ampliar o conceito de anarquismos nas Relaes Internacionais, veja BULL, Hedley. The anarchical society: astudy of order in world politics. 2 edio. ed. MacMillan. London. 1977.27As normas de comportamento so o acervo de instrues normativas que estabelecem os limites do emprego da fora

    para sua consecuo dos objetivos de defesa. Fazem, portanto, com que seja guardada coerncia entre a utilizao dafora e a vontade poltica. Essas normas possuem duas dimenses mutuamente complementares. A primeira,

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    Ao fazerem isso, os Estados associam, erradamente, um carter explortorio uma maioraceitabilidade de riscos na fase inicial das crises, no levando em conta que os riscos tmaceitabilidade decrescente com a escalada do conflito.

    2. Mobilizao e ataque

    Segundo essa causa, as crises tm maior probabilidade de ocorrncia quando existe umdesequilbrio entre as capacidades dos Estados oponentes de mobilizarem suas foras, ou atacarantes que o outro possa faz-lo.

    A vantagem do primeiro movimento de um Estado gera o receio de um ataque de surpresa nooutro Estado, conduzindo este a um ataque preemptivo28 no sentido de se antecipar quela

    possibilidade. Isso levaria os Estados a ocultar suas capacidades combatentes e antagonismos, como receio de que qualquer demonstrao desses dois elementos ative uma reao adversria, com oconsequente prejuzo para as negociaes diplomticas, ao mesmo tempo que fomenta o falsootimismo que a primeira causa aponta.

    As duas primeiras causas esto, portanto, interligadas; assim como seus efeitos para a prticadas Relaes Internacionais e a manobra de crise, tendo em vista que erros de anlise aumentam o

    grau de urgncia de ataques preemptivos que, por sua vez, impem maiores tenses na coleta einterpretao de dados, corrompendo o fluxo de processo de tomada de deciso que leva a novoserros de anlise. A presso de tempo leva queles que decidem nas crises a descuidar-se de

    procedimentos diplomticos e canais de comunicao que poderiam aliviar as tenses, levando asoluo da crise, ao mesmo tempo com que reduz a possibilidade de verificao das correo das

    premissas que sustentam as decises tomadas, provocando novos erros, em um crculo vicioso comtendncia a escalar o conflito.

    3. Poder relativo

    As crises poltico-estratgicas tm maior probabilidade de ocorrncia quando o poder relativodos Estados varia sensivelmente. Nesse caso, os Estados veriam janelas de oportunidades ou

    vulnerabilidade29que poderiam explorar, forando a rapidez nas negociaes diplomticas, com oque aumentam a possibilidade de percepes equivocadas que levam as crises. o caso, porexemplo, quando um Estado v seu poderio declinar e ascelera a obteno de acordos antes que ele

    perca a capacidade de forar os acordos nos termos desejados, ou ao contrrio, quando um Estadov o poderio do outro aumentar e duvida da inteno desse manter acordos firmados, rompendo as

    barganhas diplomticas ao passo que abre oportunidade para o uso da fora. Como Bethman-Hollweg disse em 1914, nos eventos iniciais que levaram a Primeria Guerra Mundial: ... se a

    guerra tiver que ocorrer, melhor que seja agora do que daqui a dois anos, quando a Entente estarmais forte30.

    A ocorrncia dessas janelas de oportunidade ou vulnerabilidade tambm concorrem para a

    ocorrncia de crises, ou ento restringem as possibilidades de acomodao de interesses uma vez ascrises intaladas, porque elas reduzem a confiana que os Estados possuem sobre a permanncia dos

    eminentemente jurdica, refere-se s limitaes impostas pelo Direito Interno e pelo Direito Internacional Publico. Asegunda, de natureza eminentemente poltica, determina os limites das aes blicas.28Os ataques preemptivos distinguem-se dos ataques preventivos em que esses ltimos visam evitar que as causas quelevariam a preempo sejam instaladas.29 Janelas de oportunidades traduz uma situao onde a capacidade ofensiva do adversrio reduzida, enquanto as

    janelas de vulnerabilidades traduzem a situao onde nossas capacidades defensivas so reduzida. A distino entrejanelas de oportunidade e vulnerabilidade decorre da assimetria entre ataque e defesa. Essa assimetria, com ntidavantagem para a defesa, um conceito contra-intuitivo que explica porque, na maioria das vezes, a crise cessa sem queum dos lados tenha sido desarmado e porque existem situaes em que ambos os lados so fortes o suficiente para se

    defenderem, mas no suficientemente fortes para atacarem. Para expandir esse entendimento, veja PROENA, D,DINIZ, E. e RAZA, S.G. Guia de Estudos de Estratgia. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.30Evera, op. cit. pag. 79

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    acordos, incitando prticas diplomticas (ou polticas) substancialmene belicosas e agressivas,testando a vontade e inteno dos oponentes.

    Acordos demandam confiana nos resultados que a diplomacia possa prover, mas quando osatores envolvidos no conflito encontram-se sob essa situao de variao de poder relativo, suasconfianas so erodidas, possibilitando percepes da eminncia de ruptura da situao deequilbrio, motivando-os a ataque preventivo agora, enquanto ainda existe uma capacidade residual

    de vitria, ao risco de uma guerra de reao depois, com essa capacidade ainda mais reduzida.Bismarck exemplifica essa situao quando ele nota que tratados e acordos possuem uma clusulaimpltica de rebus sic stantibusenquanto as condies permanerem as mesmas31.

    4. Recursos cumulativos

    As crises poltico-estratgicas tm maior probabilidade de ocorrncia quando os benefciosque ela pode prover so cumulativos. Ou seja, quando a acumulao de recursos possibilita umEstado proteger ou adquirir outros recursos, eles tendem a competir por esses recursos, j que sua

    presena ou ausncia implica em maior ou menor possibilidade do atendimento de suasexpectativas de conquistar melhores condies sociais e econmicas para sua populao.

    Esses recursos podem ser de diversas ordens: industriais, matrias primas, energia, tecnologiaou agricultura32. Mas tambm podem ser referentes a novas possibilidades estratgicas que aconquista de determinadas bases ou acessos geogrficos de valor militar podem prover.

    5. Conquista fcil

    As crises poltico-estratgicas tm maior probabilidade de ocorrncia quando a conquista fcil, possibilitando a prtica de polticas exteriores expansionistas, seja por razes defensivas, seja

    por razes de conquistas oportunistas. Ou, ao contrrio, quando os Estados se percebem comopresas de conquistas fceis. Nessa situao, enquanto um lado v uma janela de oportunidade eavalia as vantagens da conquista e articula a criao de fato consumado, o outro v nessa situaouma vulnerabilidade e avalia a necessidade de lanar um ataque preventivo ou preemptivo. Essa

    dinmica fomenta a corrida armamentista e aumenta a tenso nas negociaes diplomticas, comconsequncias dificilmente reversveis.

    Analisando essas cinco causas, Evera conclui que, quando elas se apresentam, todas sopotencialmente danosas ao equilbrio da paz e criam condies para um desafio de vontades eforas nas crises. Entretanto diz ele, as quatro ltimas so mais raras no mundo real, especialmenteno mundo contemporneo, com o que explicam apenas uma parcela limitada de causas de crisesregistradas na Histria. A primeira, ao contrrio, explica uma parcela bem maior de causas dascrises, principalmente quando essa causa percepes equivocadas por falsos otimismos - colocada na raiz das outras quatro: Estados frequentemente exageram na interpretao dasvantagens de mobilizar primeiro, na percepo de janelas de oportunidade, na qualificao de suas

    vulnerabilidades, no grau e natureza dos recursos necessrios e, principalmente, se equivocam emantecipar que guerras de conquista so fceis e causam fatos consumados a que os outros Estadostm que submeter-se.

    31JOLL J. The origins of the First World War. Londres: Longman, 1984, pag. 35.32Para o caso particular da acumulao de recursos energticos e sua relao causal com as crises poltico-estratgicas,veja DEBEIR, J., et al. In the servitude of power: energy and civilization through the ages. trad. do francs para o

    ingls por John Barzman. Londres, Inglaterra: Zed Books, 1990. Para a relao entre tecnologia e as guerras, vejaMACNEILL, W. The pursuit of power: technology, armed forces and societe sinse A.D. 1.000. Chicago, EUA: TheUniversity of Chicago Press, 1982.

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    O mo delo d erivado das Relaes Internac ion ais

    A tipologia das causas oferecidas por Waltz e Evera, quando combinadas, oferece umaperspectiva integradora das causas das crises fornecidas pelas duas principais tendnciascontemporneas de pensar as Relaes Internacionais: o realismo clssico e o neo-realismo (ourealismo estruturalista). Os realistas clssicos, como Hans Morgenthay, E. H Carr, George Kenn eHenry Kissinger, vem no fator humano e na conquista de poder pelos Estados os principais fatores

    causais das crises. Para eles, os Estados so os mais importantes atores poltico no cenriointernacional. Alm disso, esses atores so unitrios e decidem racionalmente sobre a relao decusto-benefcio das alternativas, procurando maximizar seu poder relativo. J os neo-realistas,como Kenneth Waltz, John Measrsheimer and John L. Gaddis, vem como principal fator causaldas crises a estrutura anrquica do sistema internacional e a conquista de segurana pelos Estados.

    A critica dos neo-realistas aos realistas clssicos se concentra em dizer que esses no provemuma explicao funcionalmente til para a causa das crises. Keohane sintetiza essa crtica ao dizer:os realistas nos dizem porque estamos com tais problemas, mas eles no ajudam em sair dele33.Para os neo-realistas, o realismo s aponta como soluo para as crises a busca da hegemonia de

    poder porque o sistema internacional cria seus prprios incentivos para agresso. Por outro lado, os

    realistas vem os neo-realistas sem realismo em suas propostas de como conduzir a prtica dasrelaes diplomticas, um academicismo desvirtuado da realidade que proclama o pluralismo comosubstituto da hegemonia, sem perceber que o pluralismo leva fragmentao; e que a fragmentaodestri aquilo que ela tenta preservar a organizao do sistema internacional: o remdio viraveneno!

    Como vemos, os realistas e neo-realistas apresentam perspectivas que se complementam noprovimento das causas das crises. Entre essas perspectivas, encontramos duas variantes.

    Primeira variante e a Teoria da Estabi l idade

    A primeira variante, partindo do realismo clssico, reconhece a funo e natureza do sistemainternacional, mas advoga que o enraizamento das causas da crises nos fatores humanos e naracionalidade dos Estados como atores unitrios deve ser refinada pela considerao de quatrooutros fatores: o equilbrio ofensivo-defensivo das capacidades blicas dos atores envolvidos; namotivao desses atores para tomar a iniciativa das aes; na percepo de janelas de oportunidade

    para explorar essa motivao; e nas vantagens que a explorao dessas oportunidades podem trazerem termos de acmulo de recursos que contribuem para a consecuo dos interesses dos Estados.

    Esses quatro fatores so os mesmos apontados por Evera (2,3,4 e 5) para as causas das crises,e portanto, sofrem do mesmo problema: explicam uma parcela limitada dos conflitos registrados naHistria. Entretanto, essa crtica deve ser contextualizada, porque a parcela que eles explicamabrange muitas das crises poltico-estratgicas contemporneas, inclusive alguns elementos da

    Guerra Fria e seus sub-conflitos, por meio da denominada Teoria da Estabilidade.

    A Teoria da Estabilidade34 um termo utilizado para descrever a preveno/erupo de crisesa partir da simetria/assimetria da percepo dos atores sobre suas capacidades combatentes. Aqui, otermo capacidades combatentes tem um duplo sentido. No primeiro, capacidades dizem respeito aosmeios que um Estado pode rapidamente ativar e utilizar em um ataque imediato (first-strikecapability), buscando neutralizar a capacidade de reao adversria antes que ela possa ser

    33HEOHANE, Robert O. ed. Neorealism and Its Critics (New Directions in World Politics. USA: Columbia UniversityPress, 1986.pag. 198.34Para um detalhamento e aplicao da Teoria da Estabilidade, tambm denominada Teoria do Primeiro Golpe veja

    NYE, J.S et. al. Hawks, Doves and Owls: an agenda for avoiding nuclear war. New York, USA: Norton, 1985. Parauma crtica, veja REITER, D. Exploding the Poderkeg Mith: preemptive wars almost never happen. InternationalSecurity 20. Fall, 1995. pag. 5-34.

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    mobilizada; no segundo, capacidades dizem respeito a possibilidade de um Estado mobilizar seuarsenal blico antes que o adversrio possa faz-lo. Em termos esquemticos: a vantagem relativa

    por um Estado A, em qualquer dessas duas situaes, gera no Estado B a considerao danecessidade de um ataque preventivo, j que B antecipa a derrota seja porque A tomou ainiciativa de atacar, seja porque ele sabe que mesmo se ambos decidirem mobilizar suascapacidades ao mesmo tempo, A disponibilizar, no mesmo espao de tempo, um arsenal blico

    superior ao seu.H uma enorme literatura sobre esse tema, com diversas variantes, nem todas concordantes. O

    entendimento de deterrncia e compelncia apresentado no incio desse ensaio se enquadra nessadiscusso. Inclusive com relao aos prprios termos, j que h uma linha de pensamento, porexemplo, que prefere o termo disuaso ao deterrncia e coao a compelncia, alegando quedeterrncia e compelncia so anglicismos desnecessrios.

    A simplicidade expositiva do conceito de deterrncia/disuao mascara a complexidade desua teorizao. Por exemplo, enquanto para o ocidente o conceito de deterrncia possui umanatureza singular e defensiva, embora admitindo que a defesa possa ser efetuada pela ameaa doataque, para os soviticos o conceito de deterrncia era plural, podendo assumir uma natureza

    defensiva, na forma denominada "sderzhivaniye", com significado de "manter em check", e umanatureza ofensiva, na forma denominada "ustrasheniy", com significado de ameaa (no existe emrusso uma palavra equivalente a compelncia, embora tal conceito esteja inserido no termo"ustrasheniy"). A assimetria entre os conceitos fazia com que, para os soviticos, a deterrncia

    praticada pelo ocidente (principalmente na fase da Poltica de Conteno - Containment) visandoevitar a escalada da guerra para seus limites lgicos, era interpretada pelos soviticos sempre comouma postura poltica ofensiva expressa na forma de uma ameaa de retaliao, com isso levando-osa preparao para a guerra, j que estava implcito que se no cedessem, sofreriam a devastao

    prometida35.

    Outra linha de pensamento considera que deterrncia um conceito equivocado j que nada

    assegura que os efeitos deterrentes teriam, ou no, sido efetivos na preveno da guerra. Oargumento aqui bastante interessante. Se a guerra ocorreu, ento a deterrncia falhou ou ela noexistiu. Se a guerra no ocorreu, ento foi porque a causa que a criava foi removida ou porque osatores envolvidos consideraram qualquer outro fator interveniente quando, ento a deterrncia no

    pode ser tomada como causa fator principal ou nico do no-conflito, no havendo como validar adeterrncia seno como um ferramental analtico.

    O problema com esse argumento est em ver a deterrncia como uma causa em si mesmo,quando na realidade ela apenas um efeito desejado. Essa confuso alerta para a necessidade deno se tomar a deterrncia como resultante da mera posse de meios militares, quando ento um

    problema ainda maior criado: o estabelecimento de uma dicotomia entre capacidades militares e

    propsitos polticos, j que essas capacidades militares passam a encontrar na deterrncia umatarefa que se completa na prpria existncia dessas capacidades.

    Outra linha de pensamento, ainda, v disuaso quando as capacidades blicas empregadas soconvencionais e deterrncia quando as capacidades blicas so nucleares. H dois problemas comessa distino. O primeiro, mais imediato e facilmente identificado, diz respeito dificuldade deexplicar essa categorizao de deterrncia e disuaso quando a diferena entre os efeitos dosarmamentos nuclear de pequena capacidade e os armamentos convencionais de grande capacidadede destruio desaparecem. O segundo, diz respeito a limitao s negociaes diplomticas queessa distino implica. Veja-se, por exemplo, o caso americano que, ao priorizar, na dcada de 50,as armas nucleares em detrimento das convencionais, acabou por permitir que os soviticos

    35 KUZYK Boris. Exporting Deterrence. http://groups.yahoo. com/group/armstrade/ message/4749. (capturado emago/01).

    http://groups.yahoo.com/group/armstrade/message/4749http://groups.yahoo.com/group/armstrade/message/4749http://groups.yahoo.com/group/armstrade/message/4749
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    explorassem as limitaes no uso dessas armas por meio de polticas mais agressivas, porperceberem que o limite de aceitabilidade de seus empregos (threshold) era muito mais alto do queas convencionais.

    Deterrncia e compelncia, disuaso e coero so temas sobre os quais ainda no hcompleto acordo sobre seu significado36, embora algum consenso tenha sido obtido em torno de trsaspectos. Primeiro, deterrncia e compelncia refletem um efeito desejado, enquanto disuaso e

    coero dizem respeito as aes a empreender para gerar o efeito pretendido, seja o de evitar oincio de uma ao, seja o de cessar uma ao j iniciada. Quando essa distino no necessria,as diferenas entre deterrncia e disuaso e coao e compelncia desvanecem.

    Segundo, disusao e coao, enquanto aes a empreender, descrevem um processo dedeciso sobre custos e benefcios do uso da fora baseado em dois fatores: a motivao do alvo paraatender as demandas impostas e a probabilidade de que ele venha a atende-las, mesmo na ausnciade medidas deterrentes. O que nos remete ao entendimento de que a seleo dos mecanismos dedisuaso e a coao implicam em consideraes ticas, j que sua eficincia funo do terrorimposto, requerendo o cultivo do dio para garantir a credibilidade da ameaa. Deterrncia ecompelncia, por sua vez, sofrem do mesmo problema pois, ao tratarem apenas dos efeitos

    desejados, minimizam a necessidade de explicitar as aes necessrias, permitindo queconsideraes sobre os fins justifiquem os meios.

    Terceiro, admite-se que a deterrncia s tem credibilidade se aquele que pretender evitar umataque possuir uma vantagem relativa de foras que permita-lhe inflingir danos muito maiores aoatacante do que aqueles que ele tem probabilidade de sofrer. Estamos falando de percepo, e node medidas efetivas. Dessa forma, trs fatores interferem no clculo da eficincia da deterrncia. Adiferena qualitativa em termos da natureza ofensiva ou defensiva percebida do armamento, de uma

    percepo do balano quantitativo e, principalmente, do posicionamento relativo conhecido dasforas.

    Em relao aos dois primeiros fatores, fcil ver-se que no so variveis alterveis facilmente.

    Aps terem sido adequadamente estimadas por aes de inteligncia, suas alteraes exigemesforos de logstica de produo facilmente identificveis. J o terceiro fator parte da dinmicados meios de fora na manobra de crises, onde concentrao e disperso de foras concorre para asuperioridade relativa onde se antecipa a aplicao da fora. Autores como Ken Booth 37vem nasforas militares vantagens relativas sobre outras foras por essas possuem as caractersticas listadasna Tabela 1.

    Versatilidade Diferentes alternativas de emprego e correspondentes tarefas que as forasmilitares podem cumprir em crises, sem a necessidade de alterar suacomposio e configurao bsica.

    Controlabilidade Capacidade dos meios militares poderem ser empregados tanto para escalarcomo distenter a crise, basicamente em funo do controle de sua posturaofensiva ou defensiva que, em si mesmo, um reflexo do tipo deorganizao e posicionamento empregado.

    Mobilidade Diz respeito a facilidade com que os meios militares podem dispersar ouconvergir para explorar situaes particulares nas crises.

    36Para ampliar essa discusso, veja SCHELLING, T.C. The strategy of conflict. Massachusetts, EUA: Harvard U.P.,1980. E, ainda do mesmo autor, Strategy and arms control. in: Strategy and arms control, Newport, EUA: NWC Press,1985. eArms and Influence. Yale University Press, New Haven, EUA. 1966. BUZAN, B.An introduction to strategic

    studies : military technology and international relations. New York: St. Martin's Press, 1987.37BOOTH, Ken. Navies and Foreign Policy. Londres: Croom Helm,1977. pg. 33-36. Ampliamos e adaptamos nesseensaio a caracterizao apresentada pelo professor Booth para abranger os meios militares de forma genrica, semespecificar sua natureza eminentemente naval, aro-espacial ou terrestre.

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    Capacidade deprojeo

    Possibilidade dos meios militares transportarem, de forma no visvel, outrosmeios que possibilitem o acesso terra para aes especficas, ou projetaremseus armamentos a partir do mar sobre posies em terra.

    Potencial deacesso

    Expressa a capacidade dos meios militares poderem deslocar-se paraprximo da situao do conflito por guas internacionais, sem que isso sejatipificado como uma agresso.

    Tabela 1. Caractersticas dos meios militares

    Finalmente, deve ser visto que os trs fatores so condio necessria para a deterrncia, masno suficiente, j que a credibilidade da ameaa no est assossiada apenas a mera posse de meiosmilitares, mas tambm considera a motivao dos Estados para usar a fora.38

    Segun da v ariante e a Teo ria do Equ ilbrio

    A segunda variante parte do neo-realismo mas advoga o refinamento das causas das crises emfuno da possibilidade de equvoco na interpretao da relao custo-benefco do uso da fora nointercurso poltico. Essa variante est diretamente associada com a primeira causa das crises

    apontada por Evera (erro de anlise), possuindo grande potencial explicativo das causas das crises,principalmente porque ela sustenta a denominada Teoria do Equilbrio.

    A Teoria do Equilbrio39 um termo utilizado para descrever a preveno/erupo de crises apartir da percepo equivocada de um ator sobre a intencionalidade do uso da fora pelo outro.

    O equvoco na percepo dessa intencionalidade tem vrias fontes. Certamente informaesimperfeitas uma delas, mas sistemas conceituais obsoletos e arrogncia tambm tem sua parcelade culpa. Exemplos no faltam aqui. A declarao do Almirante E.I. Alekseiev, Chefe do Estado-Maior da Marinha Russa: Eu pessoalmente no posso admitir a possibilidade da derrota da

    Esquadra Russa pelos Japoneses. Ou a declarao do General Leopoldo Galtiere: A Argentina

    ocupou as Ilhas Falkands em 1982 erradamente acreditando que os ingleses no possuam acapacidade militar para recuper-las e que uma campanha militar inglesa para tal seriainconcebvel40.

    O reconhecimento das capacidades adversrias tem um peso especfico na causalidade dascrises, j que Estados tendem a ocultar suas capacidades para preservar alternativas de ao visandosituaes que seus cenrios de conflito no podem antecipar. Nesse caso, a prtica da manobra decrises aponta uma alternativa em termos do mtuo conhecimento dos processos de formulao eintegrao dos oramentos militares. Esse conhecimento mtuo possibilita que atores efetuem umamedida indireta de suas capacidades militares, sem a necessidade de expor diretamente seusarsenais. O atual movimento do Chile e da Argentina um exemplo da busca de transparncia de

    seus oramentos de defesa, buscando dividendos em termos da preveno de crises.Esse exemplo enquadra-se dentro das chamadas medidas de confiana mta, que nada mais

    so do que mecanismos de preveno das crises tendo a Teoria do Equilbrio como pano de fundo.A troca de observadores militares, operaes navais conjuntas e a presena de alunos estrangeirosem cursos de altos estudos militares so todas medidas de confiana mtua com maior ou menorgrau de contribuio para um mesmo propsito: evitar as guerras.

    38Para um maior detalhamento dessa discusso veja RUSSET M. Russett. The Calculus of Deterrence. in InternationalPolitics and Foreign Policy, editado por James N. Rosenau, ed Collier-Macmillan, Londres, 1969, pag. 364.39Para uma aplicao da Teoria do Equilbrio, veja TAYLOR, A.J.P.Rumors of War. London, Hamilton Hamish, 1952.

    e Walt, S. The origins of Alliances. Ithaca: Cornell University Press, 1987.40LEBOW, Richard N. Miscalcutation in the South Atlantic: The origins of the Falklands War. Journal of StrategicStudies 6 (March 1983). Citado em Evera, op. cit. pag. 23.

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    Essas duas Teorias, do Equilbrio e da Estabilidade, ao tratarem de percepes sobrecapacidades e intencionalidade41, combinam-se para explicar as causas das crises enquanto

    propem alternativas que se complementam para a manobra de crise. Com isso estabelecem umafuno abstrata que podemos expressar por uma curva de propenso s crises (Figura 1). Essa curva definida por dois pontos. O primeiro (A), estabelece a relao entre os fatores humanos e a buscade poder pelos Estados; o segundo (B), estabelece a relao entre a percepo de segurana em

    funo de um maior ou menor grau de liberdade dos Estados na opo por alternativas dentro de umambiente internacional eminentemente anrquico42. O entendimento de onde os pontos A e B secolocam dependem da interpretao dos atores envolvidos a cada um dos fatores que determinamesses pontos como capazes de explicar a dinmica internacional.

    A curva de propenso s crises se extende entre esses dois pontos. Cada ponto nessa curvadefine uma determinada arquitetura intelectual por meio da qual as causas das crises so percebidas,

    aproximando-se ou afastando-se de um enfoque puramente realista ou exclusivamente neo-realista.A forma dessa curva modelada por dois conjuntos de fatores. O primeiro fator decorre de quatrocausas das crises apontadas por Evera: a presena de incentivos para mobilizar primeiro (2),aumentar o poder relativo (3), acumular recursos (4) ou pela facilidade da conquista (5). O segundofator conformado pela disponibilidade de informaes sobre as capacidades militares dos atoresenvolvido