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ANTÓNIO PINHO VARGAS RACIONALIDADE(S) E COMPOSIÇÃO Maio de 2008 Oficina nº 306
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Antonio Pinho Vargas

Oct 02, 2015

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  • ANTNIO PINHO VARGAS RACIONALIDADE(S) E COMPOSIO

    Maio de 2008 Oficina n 306

  • Antnio Pinho Vargas

    Racionalidade(s) e composio

    Oficina do CES n. 306 Maio de 2008

  • OFICINA DO CES Publicao seriada do Centro de Estudos Sociais Praa D. Dinis Colgio de S. Jernimo, Coimbra Correspondncia: Apartado 3087 3001-401 COIMBRA

  • 1

    Antnio Pinho Vargas Centro de Estudos Sociais

    Racionalidade(s) e composio

    Resumo: Analisam-se trs aspectos fundamentais da relao entre diferentes concepes

    da racionalidade e princpios da composio musical contempornea. Partindo da

    permanncia de topos modernistas nas correntes reactivas ps-modernas, prope-se uma

    anlise crtica da orientao e mtodos de dois compositores-pedagogos em Portugal e

    apresentam-se alguns princpios, considerados indispensveis, para uma nova

    racionalidade na anlise musical e na composio hoje.

    I. Da sobrevivncia de postulados modernistas, sob outras formas, nas correntes

    reactivas ps-modernas

    Vivemos num perodo marcado por dois grupos de acontecimentos histricos que

    marcam o panorama e o contexto da composio musical na maior parte dos pases:

    primeiro, a emergncia da corrente serial no ps-guerra e segundo, a reaco dita

    ps-moderna a partir dos anos 1970.

    1. Primeiro, a emergncia da corrente serial ligada chamada escola de Darmstadt de

    1950, de Boulez, Stockhausen e Nono e dos seus numerosos seguidores. Esta corrente,

    inicialmente muito circunscrita, veio a adquirir um prestigio intelectual e artstico no

    campo contemporneo que, a mdio prazo, lhe veio a dar a primazia simblica face s

    outras correntes suas contemporneas e, a longo prazo, uma hegemonia quase total nas

    instituies culturais que promoviam e divulgavam a criao musical e nas instituies

    do ensino da composio.

    Esta primazia assentou num conjunto de princpios de racionalidade derivados da

    racionalidade tcnico-cientfica tal como estes se apresentavam aps a segunda guerra

    Conferncia lida na Escola Superior de Msica de Lisboa, em 4 de Maro de 2008, aqui revista e aumentada.

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    mundial. Muitos deles ainda hoje tem um prestigio poderoso, especialmente junto dos

    jovens compositores, tal como Adorno escreveu em vrios artigos durante os anos 60.

    Alis, contra os princpios seriais tal como eram enunciados nos anos 50, ainda nessa

    dcada os compositores Xenakis e Ligeti escreveram artigos com criticas s aporias do

    pensamento serial. Mas mesmo estes compositores, crticos do serialismo do ps-guerra,

    de outro modo manifestavam uma aderncia a alguns princpios mais gerais ligados a

    essa forma de racionalidade derivada do pensamento cientfico. Xenakis usou princpios

    cientficos para cada pea; Ligeti, mais livre, usava o total cromtico e s a partir de

    1985 recomeou a usar material escalar e harmnico classificvel em termos tonais e

    da a sua expresso msica nem tonal nem atonal. Deste modo, ambos ficaram

    durante vrias dcadas ligados umbilicalmente aos princpios mais gerais do

    pensamento moderno: unidade, organicidade (derivao orgnica de uma clula

    inicial), construtivismo e atonalidade radical.

    2. O segundo grupo de acontecimentos que referi desenrolaram-se a partir do final dos

    anos 60 nos Estados Unidos com os minimalistas e na Europa durante os anos 70. As

    posies destes grupos de compositores foram marcadas por uma reaco contra a

    hegemonia global do ps-serialismo no pensamento musical entretanto institudo

    como dominante.

    Os americanos recuperaram fundamentalmente dois conceitos antagnicos em

    relao aos anteriores: pulsao regular, centros tonais e material diatnico.

    Entre os europeus, os dois movimentos que caracterizaram melhor o mesmo tipo

    de reaco contra o ps serialismo fizeram-no de maneiras muito diversas. Em Frana,

    os compositores da chamada escola espectral basearam-se em conceitos derivados da

    nova considerao da srie dos harmnicos como dado elementar da natureza que as

    especulaes numricas dos serialistas tinham desconsiderado, quer do ponto de vista

    das notas ou das alturas, como o vocabulrio dominante as tinha rebaptizado quer

    do ponto de vista dos ritmos ou das duraes, igualmente uma designao que

    deriva da diviso em parmetros operada pelo serialismo integral a partir da obra de

    Webern e de Messiaen.

    Na Alemanha, por outro lado, os compositores que contestavam a primazia serial

    fizeram-no de um modo menos teorizado do ponto de vista da tcnica musical, mas

    mais teorizado do ponto de vista esttico e filosfico. As suas posies reclamavam

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    principalmente a possibilidade da expresso subjectiva, liberta das condicionantes

    sistemticas dos algoritmos seriais e ps-seriais e, por outro lado, a conscincia da

    contingncia inerente ao acto compositivo, defendendo que nenhuma sistematizao

    prvia permitiria assegurar partida que os resultados fossem artisticamente vlidos.

    Alguns dos seus representantes usaram gestos derivados do romantismo alemo tardio,

    por isso, gestos carregados de referncias msica tonal alem do final do sculo XIX e

    do incio do sculo XX.

    Todas estas correntes foram alvo de ataques mais ou menos ferozes por parte dos

    compositores e musiclogos seriais entretanto surgidos como teorizadores e

    defensores das suas prticas com base nos argumentos de falta de rigor intelectual, de

    falta de disciplina composicional, de incompreenso da pulso histrica que, na sua

    perspectiva, teria terminado com a tonalidade e qualquer vestgio dela que fosse.

    Feito este intrito histrico preliminar gostaria de tentar explicitar, em primeiro

    lugar, aqueles aspectos em que, para mim, estas correntes manifestam em si a presena

    de alguns tpicos fundamentais dos mesmos princpios construtivistas modernos e,

    nesse sentido, transportaram e reproduziram de diversas formas aspectos muito

    importantes da racionalidade modernista dominante.

    Os minimalistas punham em aco um princpio de construo-base a partir de

    uma clula inicial. Nessa perspectiva, as suas peas dos anos 60 e 70 so

    paradoxalmente to rgidas como as Estruturas de Boulez, no sentido de terem um

    programa composicional que, uma vez posto em aco, posto em movimento, tem de

    cumprir o seu destino inexorvel. So peas que aceitam o princpio da unidade e o

    princpio da organicidade de forma inquestionvel.

    Os espectrais franceses, estabelecido o centro polar a nota base a partir da qual

    analisam o espectro harmnico fazem da derivar sucessivas leituras de campos

    harmnicos dos possveis espectros: s harmnicos pares, s mpares, inferiores,

    superiores, afectados e transformados por modulao de frequncia de outra nota ou

    grupo de notas, etc. Desse ponto de vista, mantm absolutamente a mesma obsesso na

    unidade e na coerncia dos princpios, no carcter derivado dos procedimentos sempre a

    partir de um dado inicial. Estes aspectos se enunciados em abstracto, fora das

    aplicaes concretas dos ps-seriais permanecem tanto nos minimalistas como nos

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    espectrais, embora sejam realizados e postos em aco a partir de outros pontos de

    partida e de outros pressupostos.

    Os alemes so, talvez, aqueles que se afastam mais claramente do corpus terico

    modernista, no tendo sido as suas proclamaes de subjectividade e de liberdade do

    acto composicional acompanhadas por novos princpios geradores em relao aos quais

    os compositores estariam obrigados, do mesmo modo, a prosseguir uma fidelidade

    orgnica. Daqui deriva uma muito maior dificuldade em fazer anlises dessas peas nos

    termos que se tornaram igualmente dominantes nas escolas: a soluo dos professores

    modernistas foi, pura e simplesmente, no as analisarem. Preferiram antes no enfrentar

    analiticamente peas que punham em causa os seus mtodos de anlise destinados a

    descobrir, ou desvendar, princpios base ocultos e maneiras de fazer derivar o material

    musical, talvez no de si prprio, mas mais dos vrios algoritmos iniciais possveis:

    sries dodecafnicas, grelhas de acordes pr-organizadas, sries numricas de Fibonacci

    ou de Luca, associadas a intervalos ou a outros parmetros, espectros harmnicos,

    ritmos em processos graduais de transformao, etc.

    Em segundo lugar, pode-se perguntar de que forma que as diversas crenas

    (beliefs) que subsistem nos mtodos de ensino de anlise e de composio impedem um

    desenvolvimento de uma racionalidade alternativa quela que subsiste, apesar da reaco

    daqueles movimentos que referi, muitas vezes designados de ps-modernos, conceito que

    no interessa discutir, uma vez que, de certo modo, j perdeu a sua operacionalidade antes

    mesmo de se ter conseguido definir de uma forma clara e inequvoca.

    Quero defender que a aplicao de algoritmos composicionais um passo atrs na

    busca da racionalidade individual que permite a assumpo plena da subjectividade de

    um criador.

    II. O ensino de Nunes e Bochmann como obstculo descoberta-de-si uma crtica

    do ensino dos compositores-pedagogos em Portugal

    Na Conferncia de 1994 na Escola Superior de Msica de Lisboa, durante um

    seminrio, fiz uma crtica da anlise habitualmente seguida na escola: medir, descobrir

    aquilo que susceptvel de formalizao, de ser medido, procurar nota a nota um

    suposto segredo quase sempre de tipo ps-serial, etc. Pensei que naquele momento era

    importante associar a crtica proveniente das cincias sociais deriva modernista tardia,

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    com uma crtica aos mtodos de anlise praticados de forma dominante em Portugal,

    por via do ensino de Bochmann e dos seus discpulos, de Nunes e dos seus discpulos e

    dos compositores de Aveiro ligados pitch-class set theory americana criada nos anos

    60 e 70 mas divulgada por eles em Portugal s nos anos 90, quando, nos Estados

    Unidos, a sua anterior primazia nas universidades j se encontrava em fase terminal.1

    Estas correntes tem mais afinidades do que diferenas. No h divergncias

    profundas em relao a uma srie de pontos que se configuram como os pilares da

    corrente genericamente designada de ps-serial. Existem algumas diferenas, mas so

    diferenas que incidem principalmente sobre a maneira de realizar aquilo que todos

    partilham: uma msica atonal, que parta do total cromtico, que tenha ritmo irregular ou

    irracional e que, no seu modus faciendi, associe o uso sistemtico de nmeros aos

    diversos parmetros possveis. Todos partilham igualmente a primazia da descrio de

    como a msica foi feita em relao maneira como a msica .

    Na minha definio de compositor-pedagogo, exposta no ensaio do livro Sobre

    Msica (Vargas, 2002: x-xx), claro que o conceito no designa todos os professores de

    composio. Nem todos os professores de composio so compositores-pedagogos.

    Trata-se sim de um compositor que ensina com base em anlises das prprias peas e na

    transmisso dos seus procedimentos; as suas tabelas destinam-se tanto composio das

    peas como aos seminrios de composio ou s aulas de anlise sobre essas peas.

    O ensino da composio em Portugal foi marcado, a partir dos anos 80, por Nunes

    e Bochmann; estes dois compositores, na sua aco diferenciada mas simultnea,

    realizaram em Portugal, com um certo tipo de eficcia, a transmisso dos princpios

    ps-seriais, o que resultou na disseminao das tcnicas ps-seriais de uma forma

    tecnicamente efectiva; mas fizeram-no igualmente assumindo que a tcnica

    composicional e a racionalidade prevalecente na composio musical estava

    intrinsecamente ligada a essas mesmas tcnicas. O resultado mais evidente foi terem

    produzido um conjunto de alunos que so hoje vistos como epgonos: partilharam no

    s as tcnicas mas igualmente as posies estticas de fundo.2

    1 Sobre este aspecto ver McClary, Susan (1989); ver tambm a excelente e muito bem fundamentada recenso de J. Antnio Oliveira Martins ao livro de Joo Pedro Oliveira, Teoria Analtica da Msica do Sculo XX, na Revista Portuguesa de Musicologia , n 9 (1999). O autor utiliza mesmo o termo colonizao para qualificar a forma descontextualizada como a pitch-class set theory nos apresentada nesse livro. De igual modo, o impacto em Portugal destas teorias iniciadas por Babbitt e Allen Forte tem sido residual. 2 No que respeita ao impacto real do seu ensino seria muito revelador fazer um estudo comparado entre os alunos de Nunes e Bochmann que permaneceram fundamental-mente no quadro esttico e tcnico que

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    Como disse, o ensino de Bochmann e Nunes baseia-se fundamental-mente na

    anlise das prprias peas e na descrio dos processos utilizados. Assim, Bochmann

    descreve as suas rvores, as suas redes numricas derivadas da srie de Luca e da srie

    de Fibonacci e mostra a sua aplicao a alguns parmetros, no seu caso particular,

    principalmente aos intervalos. importante salientar que a prpria designao

    parmetros s se compreende na sequncia do serialismo integral que historicamente

    criou o conceito.

    Nunes analisa e descreve o seu uso dos pares rtmicos que se traduzem

    igualmente em sries numricas. Por vezes, dada a associao que faz entre um

    intervalo e um par rtmico (por exemplo uma quarta, e uma proporo 4/3 sendo que a

    srie dos harmnicos permite para um intervalo qualquer vrias escolhas de propores:

    8:6 outra possvel para uma quarta perfeita) a srie numrica proporcional usada nas

    prprias peas em estreita relao com a utilizao do mesmo intervalo.

    Nunes no tem em conta a crtica feita por Ligeti3 a este pressuposto do

    serialismo. Ligeti considerava que uma proporo rtmica no da mesma natureza da

    qualidade acstica de um determinado intervalo e, por isso, este ponto de partida, ao

    tom-los como equivalentes, assenta numa falcia, num erro terico.

    Qualquer dos dois compositores pedagogos assume pressupostos prvios que tm

    uma grande importncia nos resultados musicais. Por exemplo, o estabelecimento de

    relaes entre as sries numricas de que partem e valores rtmicos do tipo

    semi-colcheia =1 ou semicolcheia de quintina =1 um procedimento directamente

    derivado de Messiaen e de Boulez/Stockhausen.

    Para estes compositores, no entanto, quando as sries numricas resultam, ou

    fornecem, como resultado possvel um acorde perfeito ou uma realizao rtmica que

    possa produzir uma pulsao regular, a sua atitude descartar imediatamente esses

    resultados e abrir excepes para encontrarem alternativas aos resultados do sistema

    gerador que sejam indiscutivelmente atonais e no pulsadas, para garantir, como dizia

    Boulez nos anos 50 e eles repetem, que no haja nenhuma inconsistncia no sistema. lhes foi transmitido e aqueles que, ou o abandonaram, ou mesmo nunca o partilharam, e finalmente verificar qual a sua relevncia no actual panorama da composio em Portugal. Esse estudo seria mais fcil no caso de Nunes do que no caso de Bochmann uma vez que, na Escola Superior de Msica, o seu ensino foi partilhado. Julgo que se poder fazer uma distino em dois perodos divididos grosso modo pelo ano de 1990. At essa data, julgo que sem excepes importantes, os alunos de Bochmann transitaram para a categoria de discpulos de Nunes. Depois de 1990 isso j no se verificou sistematicamente. 3 Ver, entre outros textos, Ligeti (1964).

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    Ou seja, apesar de proclamarem sistematicamente e bem alto que estes

    procedimentos de tipo algortmico so o garante da coerncia e da lgica

    composicional, os compositores ps-seriais so os primeiros a alterar os resultados dos

    seus sistemas quando estes podem suscitar ligaes a aspectos da msica tonal. Evit-lo

    a todo o custo um dos pressupostos ocultos, no ditos, que comanda todo o arsenal de

    processos que se alteram quando do esse tipo de resultados. Pode-se perguntar ento

    pela famosa consistncia do sistema, pela famosa lgica e rigor dos processos

    composicionais. Que consistncia, que rigor, que lgica essa, se s vlida quando

    fornece certo tipo de resultados e j no vlida quando fornece outros?

    O carcter falacioso desses argumentos pseudo-cientficos assim muito evidente.

    A ideia bouleziana de inconsistncia os conceitos devem-se atribuir aos seus

    inventores e no aos seus seguidores e imitadores obviamente uma construo

    terico-esttica que s existe porque est aceite partida o velho postulado de

    Schoenberg de que foroso manter a todo o custo uma msica cromtica radicalmente

    atonal. Esta posio s sustentvel a partir de determinada filosofia da histria da

    evoluo da linguagem musical que normalmente considerada inquestionvel.

    Em lugar de se discutir com estes compositores estas questes, como a consistncia

    ou a coerncia da linguagem musical, nos termos em que eles prprios as propem,

    necessrio, pelo contrrio, pr em causa os pressupostos que eles aceitam partida.

    preciso evitar a armadilha de discutir estes conceitos, que so usados

    frequentemente com o fim de legitimar os resultados artsticos, pela via dos argumentos

    pseudo-cientficos. Isso s se consegue deslocando, trazendo a discusso para o campo

    esttico, ou seja, interrogando os resultados musicais e no a maneira, o mtodo como

    se comps.

    Se se cometer o erro de discutir os mtodos, ento a nica forma de no ficar

    enredado na circularidade daqueles argumentos fazer uma crtica radical aos

    pressupostos de que partem, para eles indiscutveis, e uma crtica das narrativas

    histricas que, ao longo de cinquenta anos, foram construdas para legitimar essa

    corrente esttica, por compositores e por musiclogos muitas vezes amigos e

    companheiros dos compositores que legitimavam.

    Todos estes mtodos, no entanto, so apresentados com valor universal como

    demonstrao de racionalidade, de lgica, de coerncia independentemente da sua

    insero histrica ter sido claramente localizada nos anos 50. Os ps-serialistas

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    efectuam uma deslocalizao dos acontecimentos histricos para a categoria das

    verdades imutveis e universais e concebem deste modo uma espcie de fim da histria.

    Como se a passagem do tempo e a consequente mudana das ideias se pudesse aplicar a

    toda a actividade humana em geral, mas no ao pensamento e prtica musical. Para os

    compositores destas correntes, estes pressupostos, sendo indiscutveis, no so

    argumentos mas premissas da argumentao. No fcil por isso sair do crculo

    auto-defensivo que criam.

    Mas, na verdade, no s esses mtodos no so indiscutveis como muitos

    compositores, hoje em dia, no s no os seguem como nem sequer esto interessados

    na questo. Ultrapassaram-na na prtica e no perdem tempo a discuti-la teoricamente.

    O seu objectivo encontrar novos modos de expresso musical, encontrar outros gestos

    e outros objectos musicais completamente para alm daquelas problemticas.

    no entanto foroso reconhecer que o discurso-tipo dos compositores-pedagogos

    exerce algum fascnio sobre os jovens compositores e por essa razo que o estou a

    tratar aqui.

    J em 1956 Adorno escrevia no seu artigo A nova msica est a envelhecer:

    Estas experincias da racionalizao integral exercem um forte fascnio nos jovens de hoje. Ele deriva claramente da generalizada e difundida antipatia em relao a qualquer forma de expresso em msica. (...) Este erro a confuso entre expresso como um todo e o tipo de expresso associado com o romantismo fora de moda e um tipo de romantismo j ultrapassado.4

    Adorno continua:

    Entre os produtos desta atitude de esprito h algumas que possuem aquela fora de sugesto caracterstica, ao que parece, de tudo o que por absurdo que seja o resultado prossegue a sua lgica at ai fim... E, sem dvida, estas composies acabam por se tornar absurdas, sendo, de um ponto de vista musical, destitudas de sentido; a sua lgica e coerncia acabam por no estar altura quando chega o momento do concerto. (apud Vargas, 2002: 112)

    Adorno assinala o fascnio destes procedimentos sobre os jovens compositores

    mas distingue os resultados artsticos das teorias iniciais. De facto, o fascnio que ele

    refere prende-se e efectiva-se muito mais atravs da descrio dos mtodos e da

    auto-anlise dos compositores-pedagogos do que propriamente dos resultados artsticos,

    das obras. 4 A localizao histrica marca esta opinio de Adorno (1956), que j no corresponde realidade de 2008. Foi em 1976 que Hans-Jrgen von Bose apresentou em Darmstadt a sua Sonata para Violino solo, o que, s por si, atesta o abandono da antipatia em relao ao romantismo e expressividade que Adorno ainda refere.

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    H casos muito recentes de alunos, nomeadamente desta escola, que face

    angstia que inevitavelmente faz parte da criao artstica e da descoberta-de-si, se

    deixaram seduzir pelos automatismos propostos pelos compositores-pedagogos, os

    automatismos que produzem com facilidade todo o tipo de material musical;

    abandonaram assim a difcil busca de si em troca da segurana aparente que conduz,

    inevitavelmente, ao discutvel estatuto de imitadores dos imitadores.5

    A msica , sem dvida, de todas as artes aquela na qual os dinossauros

    modernistas mais tempo sobrevivem.6

    III. Da necessidade de racionalidades alternativas no pensamento musical

    Antes de avanar, convm clarificar o que se entende por racionalidade

    tcnico-cientfica. Boaventura de Sousa Santos descreve esse modelo da racionalidade

    cientfica, emergente nos finais do sculo XVIII, como um modelo totalitrio na

    medida em que nega o carcter racional a todas as formas de conhecimento que no se

    pautarem pelos seus princpios epistemolgicos e pelas suas regras metodolgicas

    (2000: 58).7 De acordo com as anlises de Max Weber, o perodo moderno caracteriza-

    se por uma diviso em trs reas/esferas autnomas, cada uma dotada de uma

    racionalidade especfica; assim, para alm, da tcnico-cientfica, dominada pelos

    pressupostos de exactido, de medida, de diviso e classificao, h duas outras

    racionalidades que se formaram no mesmo perodo: a racionalidade moral-prtica, base

    do direito moderno, que assenta na argumentao, que procura encontrar verdades

    5 Morton Feldman (1985: 52-53) assinala tambm um processo de certo modo semelhante no seu ensaio Boola Boola: It is a process of teaching teachers to teach teachers. Neste texto, dirigido contra Babbitt e os seus discpulos, lana-lhes crticas acerbas: They have created a climate that has brought the musical activilty of an entire nation down to a college level. 6 Ainda Feldman: A painter who continually turned out paintings exactly like Jackson Pollock would soon be on his way to Rockland State Hospital. In music they make him chairman of a department (idem). 7 Para este autor, a matemtica fornece cincia moderna, no s o instrumento privilegiado de anlise, como tambm a lgica da investigao, e ainda o modelo de representao da prpria estrutura da matria. De um modo que ns podemos facilmente relacionar com a problemtica que estamos a tratar, Santos escreve: O mtodo cientfico assenta na reduo da complexidade. O mundo complicado e a mente humana no o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relaes sistemticas entre o que separou (60). Deste processo histrico da emergncia da cincia e da sua racionalidade prpria no sculo XVII, que passou a favorecer as quantidades mensurveis considerao das qualidades dos objectos, e da sua gradual supremacia, derivaram as consequncias tardias para o pensamento musical durante o perodo que estou a analisar.

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    provveis ou plausveis, e a racionalidade da esfera esttico-expressiva, que se move na

    busca do belo e do prazer esttico.

    O que aconteceu historicamente no Ocidente foi uma gradual supremacia da

    racionalidade tcnico-cientfica que atingiu o seu ponto mais alto depois da Segunda

    Guerra e a sua progressiva colonizao das outras duas racionalidades. Nesse sentido,

    aquilo que o momento serial e ps-serial representam na msica o momento mais

    intenso dessa colonizao, vivido do ps-guerra at aos anos 60 e 70, perodo em que as

    convices da cincia comearam a ser postas em causa no prprio campo cientfico,

    por exemplo, por Thomas Kuhn e Paul Feyerabend.

    bvio que no pretendo opor racionalidade, a irracionalidade: a primeira,

    tomada erradamente como um todo o tal todo totalitrio do qual apenas fica de fora,

    em oposio binria, a irracionalidade. As formas prprias da racionalidade

    esttico-expressiva, no sentido ps-renascentista do termo, presentes ainda nos artistas

    modernos do incio do sculo XX, foram dominantes durante vrios sculos. At 1945,

    todos os artistas, de uma maneira geral, trabalharam de acordo com a razo

    esttico-expressiva prpria da sua esfera. Mesmo os compositores da Segunda Escola de

    Viena no se cansaram de o sublinhar de vrias formas.

    esse uso da razo esttica em novos moldes que se pretende recuperar hoje,

    depois do curto perodo anos 1950 e 1960 em que a msica foi dominada e

    colonizada por uma forma especfica e particular de aplicao da racionalidade

    tcnico-cientfica, dotada de uma crena quase cega em meros exerccios aritmticos

    como garantes do rigor do pensamento.

    Como procurei dizer antes, os seus praticantes usam esse tipo de argumentos para

    legitimar a msica que fazem, mas manifestam uma secreta e incoerente falta de confiana

    nos seus prprios sistemas quando lhes alteram os resultados para manter os objectivos

    fundamentalmente atonalidade e rtmica irregular que derivam, no de princpios

    racionais, como procuram fazer crer, mas sim de uma determinada filosofia da histria.

    Com esta perspectiva histrica indispensvel para compreender o contexto actual

    podemos avanar para a questo seguinte: como propor outro tipo de racionalidade que

    parta de outros pressupostos, que proponha outras solues?

    No existe uma maneira de regressar busca de si mesmo, de encetar o caminho

    da descoberta da racionalidade que cada um tem dentro de si, sem pagar o preo da

    dvida e da contingncia.

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    Como vimos h pouco, o exemplo dos compositores alemes que seguiram pela

    via da reflexo esttica e filosfica ser talvez mais produtivo do que as tentativas das

    outras correntes que referi.

    A racionalidade que procuro defender mais do que encontrar um mtodo

    substituto. Por exemplo, na anlise musical ser ver o que l est, que relaes

    formalizveis ou no formalizveis possvel descobrir ou encontrar. O tipo de peas

    que tenho em mente peas livres, de Gubaidulina, Kurtag, Rihm, etc. nunca faz parte

    da msica que os do primeiro grupo analisa. Por outro lado, compor buscar tipos de

    relaes possveis entre objectos que se podem encontrar objects trouves mesmo

    quando so compostos.

    Esta atitude, se considerada na prtica do compositor, representa uma abertura

    face ao que existe para descobrir o que ainda no existe; coloca o compositor no limiar

    de um caminho de descoberta e no de aplicao. Pelo contrrio, a primeira atitude

    que, em ltima instncia, idntica quer na anlise quer na composio procura

    encontrar nas peas que analisa aquilo que j (se) conhece ou j se (re)conhece; a

    adopo de um mtodo de composio deste tipo provoca obrigatoriamente que o

    resultado seja de um tipo similar aos resultados habituais das peas que usam esses

    mtodos. Se Kurtag, por hiptese absurda, comeasse a compor com multiplicao de

    acordes, maneira de Boulez, ou parmetros maneira de quase todos os ps-seriais,

    como Nunes e Bochmann, o resultado musical seria sempre prximo dos resultados

    conhecidos dos compositores que usam esses mtodos; nunca seria Kurtag. O que que

    faz que Kurtag seja Kurtag?

    Talvez por isso, quando em 1990, perguntei directamente a Wolfgang Rihm, no

    perodo das perguntas no final de uma conferncia que fez em Bruxelas, como que ele

    ensinava os seus alunos, sabendo-se que era um adversrio assumido do ensino de

    sistemas de composio, a sua resposta foi: Procuro ajudar o aluno a encontrar o

    sistema que tem dentro de si. nesta posio que eu me revejo, foi nela que me

    fundamentei quando, no ano seguinte, comecei a leccionar composio nesta escola,

    sendo que nunca procurei ocultar aos alunos que a busca de um mtodo infalvel est

    condenada ao fracasso simplesmente porque tal coisa no existe.

    Em paralelo com esta crtica que foi fundamental para definir, isolar e

    desconstruir aquilo que eu no queria fazer tenho desenvolvido o meu trabalho de

    compositor, nos ltimos quinze anos, em torno de dois conceitos fundamentais:

  • Racionalidade(s) e composio

    12

    primeiro, o conceito de teoria/durante a teoria que se cria durante o prprio acto de

    compor por oposio teoria/antes, a teoria prpria da pr-composio paramtrica e,

    segundo, o conceito de objecto musical, que tem vindo a tornar-se para mim

    progressivamente mais claro e mais rico de consequncias. Um objecto musical, no

    sentido que dou ao termo, visto como um todo, indivisvel em parmetros, mas apto a

    todo o tipo de transformaes decorrentes do trabalho da inveno, da imaginao e da

    criatividade (possvel mas contingente) a partir do dado inicial e/ou da ideia da pea.

    Referncias bibliogrficas

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