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1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEG~CIOS, NEGOCIANTES E OUTROS
PARCEIROS
Ubiratan Castro de Arajo *
O rveillon da cnsul o primeiro dia do ano de 1846. O jovem "lve
consul" Pierre Victor Mauboussin, responsvel pelo Consulado Francs
na Bahia, assiste da janela de um sobrado da Rua da Praia. que
interliga os vrios ancora- douros do porto da Bahia, a procisso
martima do Senhor dos Navegantes. que conduz: a imagem do Cristo
Crucificado da Igreja de Nossa Senhora da Conceio at a Igreja da
Boa Viagem, situada a quatro milhas, no interior da Baa de Todos os
Santos.
A cena da partida comove at um corao agnstico como o do jovem
aprendiz de diplomata, conhecido por suas idias republicanas. A
imagem da Virgem Me acompanha a imagem do Filho Crucificado at o
ancoradouro. O passo ritmado 6 a dor da separao; ri ligeira oscila-
o do andor sugere a bsno de urna me saudosa. Carregado por brancos
senhores vestidos de festa, o Filho embarca em uma galeota'
enfeitada. Sein os panos. :I embarcaio segue ao ritmo das vigorosas
remadas de negros escolhidos.
No ponto de chegada. uma grande festa aguarda o Divino Viajan-
te. Dentro da igreja, ouvem-se inticos e msicas dos senhores da
cida- de; do lado de fora, na praa e nas ruas adjacentes, a
algazarra do povo. Uma multido de negro,,. mulatos, mestios,
livres, libertos, escravos. marinheiros, embarcadios, estivadores,
pescadores de baleia, todos gente do mar que danam, batucam e pedem
graas por mais um ano de navegaqo que se inicia.'
."oulor ein Histria pelri Universidade tlc Paris IV-Sorbonne.
Professor Adjuiito do Departaiiieiilo de Histria da Uiiiveriidadt.
Federal da Bahia.
' Pequciia einbarao de passeio iiiovida por virios pares de
reiiios. inuito usada iio transporte de autoridades e I>rssci;is
ricas n u interior d a Bain de Tridns iib S;intoi. A tradio popular
baiana associa esta procissii 3 iniciativ:~ 30s i i a v c g ~ d o r
c s da Costa d'frica: "...segiiiido o hisioriador Silva Cainpos,
css;i in;inifcsi;i@o religiosa teria sido
Afro-Arin, ?I .?T ( 1 998.1999:. 82- 1 10 97
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O jovem cnsul ainda no entende muito bem estas coisas da Bahia.
Sua cabea esri voltada para a oposio Santa Aliana que humilha a sua
pltria. para a reforma eleitoral em Frana e para a aboli- co da
escravido nas Antilhas. Pergunta-se em voz alta:
-Afinal, por que tanto fervor deste povo a pedir boa navegao, se
a Baa de Todos os Santos to segura. se a pesca to farta e as linhas
costeiras to intensamente navegadas?
O movimento firme e lento da mo de um velho nag, seu criado,
conduz a viso do francs para o outro lado do cortejo martimo, para
a sada da bnri. Uma outra embarcao, bem mais comprida, recolhia os
remos e levantava os seus panos.
- a Amlia e vai p;ir:i a Costa! exclamou o africano. LJm outro
presente, enipregado na alfndega e amigo do jovem
consul, no somente confirmou corno deu mais detalhes do navio
ne- greiro. Era a goeleta' Amlin, de 169 toneladas. tripulada por
13 ho- mens. O capito era o Freitas e viajava com iiin passaporte
de passa- geiro. O "farol" ou falso capito era iim embarcadio de
nome Jos de Sousa Pinlo. A armadora era a viva Lopes e o grande
financiador era o Toms Pedreira Sei-emoabo. Como destino declarado
figurava nos papis oficiais o Cear, no Norte do Brasil, mas o seu
destino verdadei- ro era a Costa d7frica, mais precisamente
Lagos.
- Onim!", resmungoLi o Tio da Costa. O francs ficou de queixo
cado. O Jeremoabo. quem diria! Era
um dos mais prestigindos nomes na praa de Salvador, proprietrio
de muitas terras e homem de idias progressistas ... Havia mesmo se
meti- do em unia aventura de iiistalao de mquinas a vapor em seu
engenho de acar. Soube ainda pelo funcionrio da alfndega que o Sr.
Toms Jeremoabo havia comprado recentemente, na Costa d3frica. a
goeleta
iiiii:iiiv:i ites e piloios qiie Iziaiii o t r : i l p i iisgro
ii:is cristas da Afri:tV Salvatliir de iivila. PI-~I(.I.FSUP.Y [I?
.S[ilts(i(fo~~. SMECIEIIII>~CS;~ Gr6fica tla Bahia. Ir)R4.
' Tradiiqio (li, l'r;iiiV< yoel(~tt~~. adot;idii Iior Pirrr
Verser par;i distingiiir da pequena g;ilcota. Trata-se dc tiiiin
eiiihai-ca~lio it vel;i do kiiiilia das pilcias. iiiiiito iis:itla
iio tritico nfi.ic~no. Soa ciii-acreristic;~ E n iirili7:iqo tle
rci~iri,, o que per~iiite a tiiaiiol~ra e111 ;igii;ts rasos.
+ Deiioiiiiiialio de L:igcis. :iiii;il cn1iit:il da Nigt5ria.
iiiuiio correlite lia dociiinenrafio baiana sobre o trcifico.
Corcespoiide. tlc fato. ao iiticleo iiiicial desta cidade,
localizado tiii res~iiipli da praiide I ; I ~ I I I I ~ I lur IIic
tlci o nome.
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"Agajh Dossu" aos italianos da Sardenha, bem como manlinha um
porto clandestino pari1 o desembarque de escravos em seu engenho
situado na Ilha dos Frades, no interior da Baa de Todos os
Santos.
Diante de todas estas i-evelaqes, o jovem cnsul-aprendiz pergun-
tou ao funcionrio por que ele e outras autoridades navais da
capitania dos portos i150 reprimiam aquela navegaso t5o ilcita e to
ostensiva. Soube estai~ecido que todos os responsveis civis e
militares pelo controle da navegano recebiam uiiia "taxa" pela
importao de escravos. Cada na- vio negrciro que partia para a Costa
d7frica pagava ao oficial respons- vel pela visita do navio uma
propina (para fechar os olhos) tnhelnda em 500.000 ris por brigue e
250.000 reis por goeleta. Quando um negreiro voltava. o oficial de
polcia do porto ou o subdelegado do local de desem- barque recebiam
entre 2 a 3 contos de ris, a depender da quantidade de escravos
desembarcados. Compreendeu, enfiin, o ar de sntisho com que o seu
iiitzrlocutor assistia partida de mais uma goeleta negreira.
pois
se as expedies Costa dlAt'rica n5o tiveshem inais sucesso, os
admiriistradores de alt'2ndep:l. o capito do porto, o chefe de
polci;~ e seus deleg:idos ii;i(, poderiam mais ser pratilicados
como atualirien~c pela sua conivncia culposa. Se no recehesserii
inais. ern crica chegada de u m navio negi-eiro, negros ou seu
valor em dinheiro seguiido a sua escolha. no poderiain mais com os
seus mdicos proventos construir as casas mais belas e levar eles
inesrnos o modo de \/ida de prdigos e opulentos mercadores de
escravos.'
O ano novo de 1846 trazia para o cnsul Mauboussin a revelao de
que ele representava seu pas em um porto de piratas. Sua juventude
e fervor republicano o impeliram, entio, ;i fazer. por cont;i
prpria, uma investigaqr3a sobre o trfico de escravos na Bahia,"de
modo a contribuir com a campanha no seu pas pela abolio da
escravido nas colonias.'
i MiiiisrZrr cies Afiaires tr:iiipres Quai d'Orsay.
Correspoiidaiice Consulaire ei Coininercialc. Coiisulai de Bahia.
Vol. 5 , rol. 2 0
" Os resuliados dest~i iiivesligauo esto coiiridos iio ielat6rio
de 25 de n i a r ~ o de 1847. eiivi:ido :io Miiiistei-io dos
Nryticio\ E\.ii.:iiigciros d:i Fr:iii:i, iiititiilad
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A viagem Decidido a obter o mximo de informaes pohsveis sobre as
ativida- des dos negreiros, o cnsul francs mobilizou todos os seus
amigos. No dia 5 de janeiro deixou o porto de Salvador o brigue Trs
Amigos, de 406 toneladas. Era o maior transportador de escravos em
operao, cons- trudo na cidade portuguesa do Porto especialmente
para estc firn. Em algumah viagens trazia mais de 1.300 homens da
Cost;i d'frica. O traficante era tambm o maior de todos: Joaquim
Pereira M a r i n h ~ . ~
O primeiro resultado da investigao consular foi conseguir inter-
ceptar e copiar um manifesto de carga de mercadorias enviadas pelo
traficante portugus radicado na Bahia, Pereira Marinho. para o
trafi- cante brasileiro, seu associado. o mulato Domingos Jos
Martins. esta- belecido em Porto Novo:
ManiFesto de um cari-egainento de mercadorias enviadas ao Sr.
Domingo Jos Martins de Porto Novo perto de Whydah. Costa da frica.
p:wa iiisialar uina Seitoria e pelo valor de 1.200 escravos cluc
devcrio ser expedidos para a Bahia pelo brigiic iicgreiro "Trk
Amigos".
160 barris de bziosc' 544 -fuzis 600 fuzis (com a inarca
inglesa, inas feitos na Alemanha) 00 dzias dc copos dc licor 300 d
~ i a s de gnrraiiis (clc Fabi-ic:~qi(- alem) 1.200 peps de
indiaiias (tecidos estampados) inglesas 22 pcqas de 24 jardas de
lona crua da Alemaiiha 1 10 barris de plvora de 12 libras I caixa
de pedras de fuzil
" Trata-sc do inais faiiioso trnficaiite de escravos na Baliia.
citado por toda a hisroriogra- fia haiaiia, iiicliisivr por Pierre
Vrrper, Fl i r . ro r r ~ f l ~ ~ x o ~ I I r r ~ f i i . ~ L ' , V
( . ~ ~ I C . O S C I ~ I I P 0 G r i l l r i rlo B P I I I I I 1'
11 811111(/ f i ( / O . v O.F . ~ ~ 1 1 1 1 0 . v . (1o.v .S I ;~ .
I I IOS X V I I t~ X I X , Siio Paulo. Ci>i.ri:pio. 1987
" Os bzios o11 cauris. coiiio craiii cliaiuadti\ iiii Costa
d3fricn, ei.;un tratlicioiialineiiie iitilizados coino irioeda.
taiilo lia frica 0citleiii:il coiiio iio Reiiio do Coii&{i. G c
o r ~ e Dalton. P r i l i ~ i ~ i v p , i ~ r ( . l u ~ i ( . <
I I I ~ I I I O ~ P ~ I I < ~ , . ~ I ~ I O I ~ I ; C . Y E , V
S ( I ~ S of' Ko1.1 Polonyi. Garden City. Ncw York, Aiiclioi.
Books, 1968.
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Estas merc:idorias foram cairegadas em um navio que partiu de
uni porto ;ilerno e que antes de dirigir-se Costa d'frica pas- sou
pela Biihia para complelar o seu carregamento, embarcando
150 pipas de caclinqa Este cariegainenlo valia em dinheiro 96
contos de i-is ou em francos 288.000. formando uina soma neccssi-ia
para as despe- sas de instalaqki dc iiiila I'ciioria e para a
compra de 1.200 ne- gros. I "
Com estas provisOes, o Doming~iinhos da Costa d7frica j tinha
feito a compra dos,fnrclo.s" em Onim, que j estavam devidamente
apri- sionados nos arinazkns, espera do transporte para a
Bahia.
A sada do porto da Bahia transcorreu como de hbito. Os oficiais
do porto fizeram o controle dos passaportes dos tripulantes, entre
os quais um tal Jose Pereira da Fonseca, o falso capito, e do
passaporte do nico passageiro. o verdadeiro capito negreiro
Francisco Jos Nunes. A inspeo do barco foi igualmente paro i1i,ql2s
vcl: " O destino indica- do eram os Aorcs. mais uma falsidade nesta
openi$o em que tudo era formalmente d issii~iuliido.
O Trs Amigos fez a travessia do Atlntico rpida e tranquila-
mente. Nos primeiros dias de fevereiro, protegido pela escurido da
noite? subia sorrateiramente Lagos. Para avisar aos agentes da
feitoria sua chegada. lanou foguetes coloridos: a operao de
embarque aca- bara de ser tlescncadeada. Sem lanar ncora e ainda
com as velas iadas, o brigue foi abordado por vagas sucessivas de
canoas a remo. transportando cada uma 25 a 30 cativos. Em trs horas
1.400 homens tinham sido embarcados. Fez meia-volta e ganhou o
alto-mar o mais rpido possivel, parri escapar A caa inglesa.
"' Miiiisire tles Affriires traiigkrcs. Quai d'Orsay.
Correspr,iidaiice Coiisolairr et Coiiiiiiercinlr tlii Coiisiilal de
Baliia. Vol. S. 1'01. 28.
" Exl1ress5ii iis:iila ciiri,ciiteiiiriilr lia.;
correspoiidiicias eiitre os traficantes ein Iiigur da palavra r ~ .
~ c ~ i . r i ~ o . 1)rii';i d~hsiiniilni. o trfico.
'-' Ex0ress3o coi-reiitc 31C Iicije iio Br:isil pai-:I indicar
iiiiia aZo siiiililada apenas para ,:uiiipi.ir iiiiia
I'oriii:ili(l;ide. Ela veiri do teiiipo do trfico claiidestiiio.
qiiaiido o Gover- tio hiasileirtr :idolavo aiitiicles I'orinais
apeiias para horlar Liina fiscnlizaiio iiiglera uiititrfico
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No dia 5 de maro de 1846, o cnsul francs soube da chegada do Trs
Amigos. Evitando a barra do porto de Salvador, o brigue entrou na
Baa de Todos os Santos pelo Estreito do Funil, por trhs da Ilha de
Itaparic;~, e descairegou os cativos no engenho de propriedade de
Hygino Pires Gomes, na foz do Rio JequiriA, onde realizou-se, aps o
sucesso da operao, um grande festim.
Mais uma vez, o jovem francs ficou estupefato! O que ele sabia
era que este mesmo Hygino. dez anos atrs, havia sido o chefe
militai- de um movimento de carter federalista chamado de Sabinada,
que contou com apoio popular e mesmo com a participao militar de
tropas de escravos crioulos. Diante do seu espanto. seu informante
apenas suge- riu que ele refletisse um pouco sobre as circunstncias
em que ocorreu a represso quela revolta. Em 1838, quando a Cidade
do Salvador foi reconquistada pelas tropas imperiais, os oficiais
negros: como o coronel Bigode e o major Santa Eufrsia, foram
sumariamente fu~ilados ' .~ e os soldados negros jogados vivos nos
casxres em chamas. Outros lderes como o dr. Francisco Sabino e o
major Si-gio 'Veloso foram aprisiona- dos, julgados e deportados
para a fronteira do Mato Grosso com a Bol- via. O Hygino.
comandante de uma coluna rebelde, que havia f ~ ~ r a d o o cerco 5
cidade imposto pelos imperiais, simplesmente sumiu depois da
derrota da rebelio. O manto protetor dos traficantes o poupou da ao
da Justia at ser anistiado e poder voltar a traficar como
antes.
O dossi do trfico Convencido de que a rede dos traficantes tinha
ramificaes em todos os segmentos da sociedade local. inclusive com
presena expressiva no mo- vimento dcmocrtico baiano. Pieil-e Victor
Mauboussin lanou-se tarefa de uma investigao global do trfico de
escravos africanos para a Bahia.
'' llhirataii C;i\iro de A ~ i j o . "Le politiqtie et
I'lcoiioiniqiie dans tine socictt! esclavagih~c. Bciliia. 1820-
1889" (Douiorndo, Uiiiveisidade de Paris [V-Sorhoiiiie. 1992).
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A armaqo negreira A navrguiio pai-a a Costa cl'.Afi-ica j era
uina antiga tradiiio no porto da Baliia. Desde o siculo XVII, uma
parte importante c!a burguesia traficante portuguesa havia se
transferido para a Bahiu pura, daqui, melhor controlar o trlfico no
Golfo do Benin e a distribuio de escra- vos para o interior do
Brasil. Esta corporao portuguesa na Bahia, de grande visibilidade
social coiilo "os armadores", gozava de muito prest- gio, e os seus
membros mois ricos estavam presente nas mais impor- tantes
irmandades religiosii.; e na Santa Casa de Miscricrdia.14 O tr-
fico negreiro era ento legal, regulamentado pela coroa portuguesa.
e, portanto, uma vicissitude da prpria navegao e uma alternativa de
negcios para os armadores.
A partir de 18 15, a presso inglesa e a condenao da opinio
pblica internacional combinam-se, entio, com o processo de indepen-
dncia do Brasil de Portugal, o que coloca em posio muito frlgil o
novo estado br;isileiro. solidamente I'undado sobre uina base
social e poltica formada por proprietlrios de escravos e, portanto,
comprometi- do com a causa do trfico africano, mas igualmente
necessitndo do re- conhecin-iento ingls, condi~o fundamental para
sua aceitao como na'?~ soberana em um cenrio poltico internacional
dominado pela Santa Aliana. A primeira grande misso deste estado
independente foi prcci- sainrnte unificar a representao de todos os
escravocratas, propriet- rios rurais e lraficantes. para 11egoci;ir
com os ingleses uma prorrogac;o do trfico de africanos para o
Brasil, ao tempo em que, internamente, reprimia as revoltas
populares e africanas e as propostas abolicionistas, como a que Jos
Bonifcio apresentou Assemblia Nacional Consti- tuinte em 1823.
Diante da presso cresceiite dos ingleses, desenvolve-se, ento,
uma poltica de dissimulac;o e de sabotagem por parte das
autoridades brasileiras que assinam tratados para no serem
cumpridos, que fingem aplicar as leis e que fecham os olhos s
atividades agora ilcitas dos traficantes. Por ironia, os senl1orc.c
de escravos do Brasil adotam uma
" Vcr serie de oito Liriigii:. l>iihlic:iJos iiii Rri is l rr
c/c Hisicir-iri. ci11i.c l9h6 e 197 1 , da autoria de Mariela
Alvrs. ii~titriladn: O coiiiCrcio iiiartiin r alg~iiis ariiiaclorcs
do seculo XVIII. iia B~ihi;~.
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poltica de resistncia em relao aos ingleses, que bem pode ter
sido inspirada na resistcncia escrava contra eles movida por
crioulos e afri- canos. E nesse contexto que a armao negreira se
transforma em uma atividade clandestina protegida: ilegal para
efeitos externos e legtima para um consenso interno de beneficirios
da escravido. Outro diplo- mata francs, simptico causa dos
traficantes, assim retratou esta situao:
A nholiylic: d o trfico n o Brasil tornou-sc ilusria 1120
somente pela iiii~itr~sibilidade de substituir os Negros, niais
ainda, pelo iiiodo desajeitado pclo qual esta negoiac;o foi
concluda. Os ingleses forain muito violentos e os brasileiros foram
muito pusi- 1,'iniiiics; os priiiicirns cxigirain demais e os
outros tudo prririiete- rniii para nada cumprirem. ''
Nestes novos tempos, a armao negreira tornou-se uma ativida- de
de alto risco, exigindo novas prticas operacionais, tanto no que
diz respeito navegalio quanto ao empreendimento comercial. A
primeira grande adaptao operou-se no navio negreiro, cada vez mais
diferencia- do dos demais navios que faziam a navegao da Costa
d7frica. O navio negreiro tinha que ser extremamente manobrvel,
para entrar em guas mais rasas dos ancoradouros africanos; tinha
que ser muito veloz, para escapar da caa inglesa; tinha que ser
muito barato, para amenizar as perdas em caso de naufrgio ou
captura. O investigador francs aprendeu logo a distinguir um
negreiro distncia: baixo calado, casco mais arredondado, alta
mastreao.
Para o ano de 1846, foram apuradas 23 sadas e 22 entradas,
mobilizando um total de 3.583 toneladas para as sadas e 3.393
tonela- das para as chegadas. Somente neste ano foram importados
9.403 cati- vos pelo porto da Bahia. dos quais 6.825 eram
originrios de Onim (La- gos), 1928 de Whydah. I XO do Cabo Lobo e
470 de Ambriz. A maioria dos 25 navios em operao era composta de
velhos navios adaptados para o trfico em estaleiros locais. Alguns
deles, no entanto, tinham uma histria mais conhecida. Os brigues
TrEs Ainigoh. Isbelle e a goeleta
" Miii is tre des ACkiii-cs Eir;iii:-~.i-cs Qiini d 3 0 r s i i
y . Note iiitcriie du Dpar toinrnt coiidaiiiiiaiii I'aholitioii tle
Ia niilz de iioirs nii Bresil. Minoircs et Docuiiiziits. Hresil.
Vol. 8. fol. 258.
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Navios negreiros identificados pelo cnsul em operao em 1846
Tipo Nome Armador/Consignatario
Goeleta Arnlia 169 ton. Viva Francisco Lopes Idem Andorinha 80
ton. Joaquim A. da Cruz Rios
Alberto dos Santos
Idem Audaz 152 ton. Lopes Vianna
Idem Agaja Dossu 122 ton. Thomas Jeremoabo Idem Bella Angela 169
ton. Joaquim A. da Cruz Rios Idem Gaio 43 ton. Cypriano de
Mello
Idem Guero 218 ton. Viva Francisco Lopes
Idem Maria 51 ton. Gantois e Paillet Idem Maria Angelina 23 ton.
Thomas Jeremoabo (?) Idem Mariquinha 45 ton Gantois e Paillet
Idem Martin Van Buren 50 ton. Gantois e Paillet
Idem Taglione 122 ton. Domingo Gomes Bello Idem No identificado
Falucho Bahiano 113 ton
Pedroso de Albuquerque Joaquim Pereira Marinho
Idem Especulador 130 ton. No identificado
Brigue Ana E Constncia 162 ton. Ferraz e Correia
Idem Andono VI No identificado
Idem Bom Sucesso 199 ton. No identificado
Idem Brasiliense 218 ton. Joaquim A. da Cruz Rios
Idem Eolo 83 ton.
Idem Gabriel 297 ton Idem Galgo 310 ton.
Idem Isabelle 141 ton.
Idem Sylphide 322 ton.
Jos Joaquim Machado
Joaquim Pereira Marinho No identificado
Joaquim A. da Cruz Rios
Pedroso de Albuquerque
Idem Tres amigos 406 on. Joaquim Pereira Marinho Fonte: ''
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Andorinha foram construdos nacidade do Porto com as
especificac;es particulares para o trfico. Os faluchos Baiano e
Especulador foram construdos ern Barcelona com as mesmas espe~ i f
i ca~es . '~ A goeleta Taglioni era um velho navio franc2s vendido
pela casa E. Vaudry a Do- mingo Gomes Bello, um traficante
portiigus estabelecido na Bahia. A goeleta Agaja Dossu e o brigue
Sylphide eram navios sardos comprados na Costa d7frica.
Estiveram especialmente ativos, neste ano de 1846, os seguintes
capites negreiros: os espanhis Pablo Reyes. Bonaventura Rieira,
Renito Derizans e Don Isidoro: os portugueses e hriisileiros J.
Gomes de Vas- concelos Barriga, Francisco Jos Niines. Jos Lus
Vieira. D. da Costa Laje. Alberto dos Santos, Freitas ide prenome
nio identificado), Jos Rosello. Pedro Francisco dos Santos.'"egundo
apurou Mauboussin, eram todos muito experimentados no trfico, com
muitas passagens e inculpaes no tribuilal ingls de Serra Leoa. O
relato do c6nsul enfatiza os elogios que todos os capites
traficantes faziam aos bons tratos que receberam a bordo dos navios
de caa iiigleses. Mesmo sendo o trfico cot~sidei-ado como crime de
pirataria, jairiuis suas vidas ou suas liberda- des estiveram em
risco. Para eles, i1 grande perda era o fracasso da expedio que os
privava da participao no butim.
Mauboussin registrou em seu dossi o orgulho com que os trafican-
tes falavam da sua frota pirata. Ao tempo em que ridicularizavam a
efic- cia dos cruzeiros ingleses, vanzloriavam-se de seus navios
negreiros: fi- nos veleiros que permitiam aos navegadores
experientes escxpar de toda vigilncia. Ein caso de captusa de um ou
outro navio, diziam que nenhuma perda sria seria infligida ao
negcio do trfico, porque, pelo novo modo de armao adotado,
compravam-se sempre navios velhos e baratos, para os quais
enconti-avain-se sempre capitzes. aventureiros perseguidos na
Espanha e em Portugal (piratas), ou mesmo brasileiros muito
corajosos que sabiam muito bem que o passaporte de passageiro a
bordo os tornava inviol\1eis. c to inEm tripuiiinics habituados,
pela experincia, aos casos
" Filril / , ( i 2i.o iiiii iin\,ici h velo rsireito e
coiiil~rido, de o r i~c i i i ir:ihe, iniiito iia;ido iin
iiavrg:~dri tl Tejo.
' V o d o s os iioiiies d r iiaviris e c~ipir8es 'iratls iio
rel;ilSrio do 6iisul Piei-re Vilor M ~ L I ~ O L I S S ~ I ~ C O I
I ~ I C ' I I I co111 os c~t:idos 1Ior Verger. FIii.*.o reflii.ro.
1111. 645-647
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de captura, quando eles eram desembarcados e perdiam apenas as
suas roupas. Ele nos relata que, nestes casos, o grumete, o capito
do navio (,geralmente o falso) e o cozinheiro eram levados perante
o almirante co- mandante do cruzeiro e o resto da ec~uipagem
desembarcada no ponto mais prximo da costa. Os navios negreiros que
ostentassem o pavilho espanhol tinham os mastros serrados. Os
demais eram vendidos a preos aviltados e comprados pelos
comerciantes de Serra Leoa, reconduzidos ao Brasil, onde eram
vendidos com grande lucro e armados de novo para o trfico. H casos
de navios que foram :lprisionados at trEs vezes, re- vendidos e
reutilizados no trfico.
As perdas de 1846 confirmam esta tranqilidade dos traficantes.
Neste ano foram capturados pelos cruzadores ingleses seis
negreiros: os brigues Gabriel, Galgo e Isabelle; as goeletas Gajol
Maria e Amlia. representando 74% da Ii-otri em operao. Este
resultado era bastante animador em relao ao uno anterior, quando
foram aprisionados 13 negreiros, dos quais dois ji estavam em
operao: o brigue lsabelle e a goeleta Mariquinha. Alin do mais,
nenhum verdadeiro capito negreiro foi inculpado no tribunal do
almirantado britnico em Santa Helena. Sabe- se apenas que o falso
capito da Amliti, Jos de Sousa Pinto. respon- deu a processo por
irrifico ilegal.
O investigador francs tambm descobriu que estas expedies eram
apenas pai-te de uma rede bem mais connplexa de operaes ne-
cessiriiis ao sucesso do trfico, pois estes negreiros saam do porto
da Bahia vazios, como o Trs Amigos no dia 5 de janeiro, com a nica
inisszo de trazer da Costa d'frica o seu carregamento humano, e
mui- to antes j se havia desencadeado a expedio das mercadorias
neces- srias 2 compra dos escravos em frica. O sistema utilizado at
ento, no perodo do trfico clandestino, era muito conhecido. Os
navios mer- cantes europeus e americanos passavam pela Bahia
transportando mer- cadorias n~anufnturadas, As quais se juntavam a
cachaa e o fumo da Bahia. Corn a sua carga completa, seguiam viagem
para a frica. onde a sua carga era depositada nas feitorias
brasileiras.
Por volta de 1845, o sistema aperfeioou-se mais ainda. De uni
lado. as exportaes legais de fumo e c:ich:ia para a Costa d7.\frica
eram feitas diretamente do porto da Bahia ati-aves de barcos
mercantes
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que nio faziam o trfico e, portanto, no tinham as caractersticas
estru- turais de um navio negreiro, nem transportavam apetrechos ou
sinais do trfico, corno correntes, cadeados etc ... Neste mesmo ano
de 1846, partiram da Bahia para esta destinao 4.896 pipas de
cachaa'" e 50.198 mangotcs de fuino.'" Por outro lado. os produtos
manufaturados eram eiitregues diretamente nas feitorias brasileiras
na Costa d'frica por navios mercantes arnericailos ou europeus.
Para estas operaes, os traficantes da Bahia se beneficiavam de
crditos generosos forneci- dos pelos comerciantes ingleses para
pagamento a termo, ern prazos muito mais dilatados do que os
concedidos aos senhores de engenhos, os grandes consumidores finais
do produto deste trfico: o escravo.
Cada grande traficante da Bahia operava atravs de uma feitoria
na Costa d7frica, onde um representante-traficante associado se en-
carregava do armazenamento das mercadorias e da reaiizaqlio das
com- pras. Segundo Mauboiissin. a rede de traficantes estava assim
constituda em 1846:
Oniin (Lagos), Whyd e Amhi-iz so os pontos para onde so
expedidas as mercadorias. Ein Oiiiin. o Sr. Fen-ugein, poi-tugus. o
agente feitor dos Srs. Alves da Cruz Rios, da viva Lopes e do Sr.
Joaquiin Percii-a Marinho. o Sr. Syrs, port~igus, (e ariics dclco
Sr. Jean Noel Sala. francs, atualmente residetite na Franp)
rcprcsen- ta a casa belgo-francesa Gantois e Pailhet, estabelecida
na Bahia; o Sr. Dalvi, Lirn sardo. o agente da casa Manoel Pinto da
Fonseca, do Rio de Janeiro. c da inaior pai-te das companhias
formadas re- cenlcincnic. Eiii Wliydl. o corirspoiidcnte pi-incipal
de todos os traficantes negreiros C o Sr. Francisco de Souza,
conhecido pelo vulgo de Chach, ti-iliutrio do rei d'Haoiney. Em
Arnbriz, um Sr. Jauffiet. antigo capitiio de longo curso do porto
de Marselha, ins- talou-se por conta da mesina casa belgo-francesa
Gantois e Pai Ihct para cnviar-lhe Negros. Ui11 inulato chamado
Domingo Jos Martins, brasilciro. cst estabelecido eri1 Porto Novo e
recebe os seus aprovisioiiai~ienios ein inercadorias de uma casa de
Hainbur- go. Hoje, ele o inaior instigador do comrcio de
escravos."
'" A pipa de nchaqn i.i>rrt~spoii
-
O negcio de escravos Enquanto cada negreiro fazia a travessia do
Atlntico. uma operac;o muito complicada se desenrolava na Costa
d9frica: a compra do es- cravo. Segundo apurou o cnsul francgs, os
termos de troca eram muito instveis. Habitualmente, a regra
fundamental para os responsveis pe- las feitorias era manter esse
negcio sempre na base da troca de mer- cadorias por escravos e, ao
mesmo tempo. manter a oferta dessas mer- cadorias em um nvel mnimo.
As mercadorias mais procuradas eram o fumo de corda, para fuiniir e
para mascar. e a cachaa. As outras mer- cadorias correntes eram as
espingardas, a plvora e os tecidos. Quando essas mercadorias
escasseavam na Costa d7frica. era possvel com- prar mais escravos,
posto que o preo deles baixava sensivelmente.
Mauboussiri nos d um exemplo dessa operao: quando faltava fumo e
cachaa, era possvel comprar um escravo por apenas um rolo de fumo,
pesando duas arrobas e valendo 5 mil ris ( 15 francos aproxi-
madamente). 4 arte do traficante era a de saber manejar com a
rarida- de relativa de cada mercadoria, propondo sempre na troca um
"pacote" equilibrado de mercadorias por um escravo." Em 1846, o
pacote mais correntemente utilizado era: iirn barril de plvora. uma
espingarda, um rolo de fumo e uma ou duas pesas de tczido, valendo
aproximadamente 55,75 francos por cabea de escravo. Se o agente da
feitoria quisesse operar em moeda, seriam necessrias 5 onas de ouro
(aproximada- mente 400 francos) por cabeqa. pelos mesmos negros, ou
scj;i. cerca de oito vezes o prec;o obtido no escambo.
Para atribuir um valor nominal a cada mercadoria. era corrente
na Costa d'Africa a unidade "onqa", que. segundo Mauboussin, no
correspondia h "ona de ouro" mas a um valor nominal inteiramente
convencional.
A investigao continua. O cnsul conseguiu, ento, interceptar e
copiar um documento original contendo instrues e indicando as des-
pesas para montar uma feitoria de negros em Onim, pelo qual se pode
ter uma referncia do valor desta ona do trfico:
'' Ehsr sistema de "pcicores" f o i 1;irpaiiieiitr iitilizado
para a coinpra de outros pri)iliii>:. dn fr ica coiiio o
iiiarfiiii e ( j s5ii
-
Valor das r1ierc;iiinrias qiic s5o importadas na Costa: Urn
fuzil representa 1 onqa Uma pea de tecido de 28 a 30 jardas, I ona
Uin garr:ifo de 20-50 litros vazio. I onq:i Um gai.iiil;'io chcio,
I oiiy;i Uma pipa de cacliaya do Brasil, 24 onqas Idem de Havana,
20 onas Uni niangotc de fuiiio. I ona Uin barril de hzios coiii
17.500 bzios cada), I on;i2'
Preqo atual dos Ncgros na Costa d3frica: Comprado em iniio do
i-ei, 17 o n p s Comprado aos "cahcceiros" do i-ei, 17 onas
Coinpi-ado cin maos de populares. 13 onas Todos os Ncgros
coinprados e ventiitios entre 1iiorias. 15 oiic;rs As rnulhcres
valeni uinn ona a rnenos Os jovcns Negros valcin quase o mesino que
os outros"
Atualinenfc iis dcspcsas so as seguintes: Taxa pelo desernbnrque
de cada navio paga ao Rei de Oriiin. 60 o n p Taxa para a casa e
doinsticos do Rei. 36 onyas Taxa para chapu e guarda-chuva do Rei,
20 onas Trs pipas de cncli;iga de presente ao Rei. 60 onas
Pagamento nos carpinieiros, scrrnlliciros s toncleiros empregados
nus ai-rii~i~ens de Negros. 130 onas Despesas coin 4 canoas e 4
coinpanhias de 2 1 homcns cada. 325 onas (Estas canoas e estes
homens veiri da possess5o holandesa de Elinina) Pagaincnto :io
honierii encarregado do descrnbarque das mercadorias, 35 on;ih
!. Mini>ii.rc (ic, Affniiw.; Eir:iiiperas. Quai d'Orsay
Correspoiiduiice Coiisuluire et Corriinerciale. Coiisiilrii de
Buhia. Vol 5. rol. 24.
'a 1de111. l(11 25.
-
Pagamento ao vigia de terra, 12 onas Ra@o diria de cacliap para
os canoeiros (uma garial cada vez que passam a barra). I ona
Despesa e aliinentac;5o dos Negros de coi-rentcs. I ona Transporte
cios Negros da cidade al 11 emboc;idura do rio. 3 onq;is Por cada
einb;irc;iqio que transporta escravos. 10 onas.'"
A partir deste relatrio, pode-se encontrar uma correspondncia
entre esta ona do trfico e as moedas cotadas no mercado internacio-
nal. O preo do escravo foi adotado como a referncia mais geral
deste comrcio, verdadeira mercadoria-moeda dos africanos neste tipo
de tro- ca. Na lista de preos tle escrr ivo~ apresentada, o preo
praticado entre as feitorias parece estar mais prximo relao
indicada como corrente entre um "pacote" de mercadorias (55,75
francos) e um escravo. As- sim, pode-se chegar a um valor
estimativo de 3,71 francos por ona do trfico. No relatrio
Mauboussin tambm est indicada uma cotaiio de 33 1 ris por franco. o
que nos permite estimar a seguinte equivalncia para o ano de
1846:
1 o n ~ a d o ti-rfico = 3.7 1 francos = 1.228 reis
e nos permite estimar os seguintes valores unitrios para um
escravo comprado em Onim, ein 1846:
15 onas = 55.65 francos = 18.420 ris
Somando-se as taxas e servios pagos em Onim, obtm-se um valor
estiniado de 2.259 ris por ercravo embarcado, o que nos indica um
valor unitrio de 20.679 iis. Seguindo a investigao contbil, o cnsul
indica que deve-se acrescer o valor unitrio do Frete do navio da
Costa d'frica Bahia de 120.000 ris por escravo e tambm pagar 20.000
i-is por cada negro ao consignatario, piiru serem distribudos com
as autoridades brasileira.\. e mais 25.000 ris por cada cativo ao
proprietrio do poi~to de desembarque na Bahia, para que cada um re-
cebesse um.a camisa, um calo e alimentos durante o tempo em que
estivessem armazenados.
-
Esse con,junto de elementos permite a seguinte composio de valor
dos 6.825 escravos importados do pas de Onim para a Bahia em 1 846,
calculados em moeda brasileira (reis):
Elemento Valores unitrios Valores globais VO
Preo de compra 18$420 125:716$500 9.92 Taxas e servios (Onirn)
2$259 15:417$675 1.21 Frete do navio 120$000 81 9:000$000 64.62
Propinas (Bahia) 20$000 136:500$000 10.77 Desembarque (Bahia)
25$000 170:625$000 13.46 Totais 185$679 1.267:259$175 100.00
Segundo valores indicados no mesmo relatrio, o primeiro preo de
um destes escravos recm-importados variava entre 450$000 e 480$000.
Segundo os hbitos do mercado de escravos baiano, o preo destes
escravos novos era menos elevado do que o preo de um africa- no
residente no pas, porque eles ainda no estavam adaptados s con-
dies de trabalho no Brasil e apresentavam grande risco d- doenas na
chegada. fosse pelas condies subumanas da travessia ou pela aquisi-
o de doeiiq;is do pas.
Variaes dos preos dos escravos, segundo a origem nacional Bahia,
1846 (em ris)
Mnimo Mximo - -
Africano desembarcado 450$000 480$000 Africano residente jovem
428$750 529$677 Africano residente ainda jovr 400$000 470$000
Brasileiro jovem 478$000 496$428 Brasileiro ainda jovem 430$000
Fonte: z6
"' Fnraiii titilizudos os diidoh ci~iisliiiiles d o relut6i-i do
ciisul M L L ~ I ~ O L I S S I I I e os du(los 1evriiit:idos por
Miirin J o h C dl: SOIIZU Aiidratle, A 11i
-
Estes pi-ecos podia171 variar ainda mais para cima, pois era
hbito de alguns traficantes fazerem um pequeno investimento
ensinando algu- mas palavras em portugus ao africano, tanto para
enganar uma fisca- lizaio eventual contra o trfico, quanto para
aumentar o valor de venda do e s ~ r a v o . ' ~
A grande difei-ena entre o preo de compra do escravo na Costa
d7Africa, 18 inil ris por cabea, e o preo de venda no mercado de
Sal- vador, 480 mil ris, indicada por Mauboussin em seu relatrio,
compat- vel com a notcia encontrada em manuscrito atribudo ao Lord
John Hay:
Que o risco vlido ~oi-iin-se evidente, quando sc conhece a
dilreiia dos preos dos escravos na frica e no Brasil: no pri- meiro
pas eles potfciii scr coinprados por I O dlares a cabeqa e vendidos
rio lt i i i io por 500.7X
Ganhos do trfico Neste ramo de con~rcio em que a regra
fundamental era a esperteza aplicada em cada operao, foi muito
difcil para o investigador francs estabelecer claramente as margens
de ganho. Admitindo como preo mdio final de importao 185$679 ris e
os preos mnimos de merca- do na Bahia, na fiiixa de 450(i;000,
obier~:nios Iiinn margem de ganho de 264$321 por escravo vendido, o
que representa uma expectativa de Iu- cros na ordem de 142%. em um
prazo de trs meses, o que perfaz 47.3% ao ms. Este simples exerccio
especulativo nos d urna medida de quo atraente era o investiineiito
iio tr5fico de escravos em uma praca comercial ern que as
oportunidades de investimento eram limita- das aos negcios de
exportain do acar, ali9s um produto mal coloca-
" Anedtn contada por Mi~xiniiliaiio de Hnhshiirgo pela qiiiil os
traficniites eiisinnvain uina s paliivra no afric:i~i - Minas -.
Ix1ra deiiioiistrar aos j1ii7es que este escravo er:i antigo
residente 110 p a s "Ciiiiii~ i.cicC s e cliainii" Reslioslii.
\,linas. iiin iioiiie tiiiiiio eo11iii111 eiitre cscr:iuos. Oiitle
voe? ii:rhccii" Respiisiri: Miii:is. i i i i i ;~ (Ias proviiici;~~
priiici- pais do Br:isil, iiias tanibCiii i i i i i :~ tiiho
iiitiito iiiiportaiite tle ticyi,ii; atricaiios. qi1.5 'orne- cr
nos brasileiros u iiiclliiii- c;iriic ~ i ~ i i i ~ ; ~ i i ; r .
Oritlc viici: trnballin? Resl>osia: Miiias. Miiias so as iniiias
de ouro e di;iiiiaiite qiie coiisiitiieiii unia iiiiportaiite
riqueza do piiis. O juiz que, iiat~iraliiiriitr t:iinbiii possui
escravos. anota as crC~ Minas. :irquiva os aiitos, e qucst,;io est;
wsolvidn. pnm a aotisfao das partea." Maxiiniliaiio tle Habsburgo.
Baliici ISCiO. E.sho(.ov (11. vio,qciii. Rio de Janeiro. I'eiiipo
Br;isileir. I1)X?. 11. 154.
'"~oseiiiiirie Erik~i Horcli. " 0 1 1 ilie slave irnde"
(rriiiiscrilio e t r n d u ~ o ) . R(,isi.~rti dn 1~ i .s t i r~ i
to (/C E.srr~t/os Bi.ci.\ilcii.o.\~. 78 (IC)XX!, 11. 147
-
do no mercado internacional. e em outras economias de exportao
al- ternativas, de maturao bem mais demorada.
No difcil, pois, compreender que a participaqo nas armaes
negreiras fosse o investimento de curto prazo mais atraeriie.
apesar do alto risco, o que alis tornava sua remunerao mais alta.
Os efeitos desta atrao exercida pelo trficc sobre os capitais
disponveis na pra- a se fiizeni logo sentir pela escassez e pelo
conseqente alto custo do dinheiro em Salvador, expresso pelas altas
taxas de juros ali praticadas. Estas estimativas para o ano de 1846
revelam a gravidade e a extenso da falta crnica de recursos
financeiros na Bahia durante o perodo de importaco clandestina de
escravos.
A sede de recursos financeiros justificou a criao, em 1845, do
Banco Comercial da Bahia, que se transformou, em 1846, no segundo
banco comercial brasileiro. Ele tinha sido criado como um banco de
depsitos e de descontos. com a faculdade de emisso de letras de
c5m- bio e de bnus. cujo valor no podia ser inferior a 100$000 ris,
resgat- veis em dez dias. Estimulados pela escassez de dinheiro,
seus diretores tomaram a deciso de exceder os limites previstos no
estatuto da socie- dade para lanar no mercado bnus pagveis vista.
ou seja, verdadeira moeda-papel. No ano de 1846, foram lanados no
mercado financeiro local 532 contos de ris destes papis. Neste
ri-iesmo ano o banco des- contou um total de 2.673:800$000 rkis em
letras de cambio, o que repre- sentava uma cifra muito prxima de
2.467:42 1$522 ris, expectativa de ganhos totais com a importao de
9.403 escravos neste ano de 1846. O sucesso deste empreendimento.
legal e seguro. era medido pela distri- buio cle dividendos aos
acionistas na ordem de 12.22% ao fim do ano, percentual muito mais
modesto do que os ganhos no trrfico.?"
Como alternativa incompar2vel de investimento a curto prazo, o
negcio do trfico mobilizava os mais ricos e ativos comerciantes da
pra- a de Salvador, em uma quantidade e variedade de agentes que
ultrapas- savam em muito os notrios traficantes baianos, os
armadores e proprie- trios de navio. como Joaquim Pereira Marinho,
Joaquim Alves da Cruz Rios. a famlia da viva Lopes. Thomas
Jeremoabo, Pedroso de Albuquerque, Domingo Gomes Bello, Hygino
Pires Gomes. Mauboussin
-
demonstra grande indignnco com a presena ativa de comerciantes
es- trangeiros como armadores e proprietrios de navio, muito
especialmente com o francs Guillaume Pailhet, sobre quem faz
referncias inflamadas em outro relatrio enviado a seu ministrio.
Este francs chegou Bahia em 1837 e logo associoli-se a um belga de
nome Gantois, para formar uma sociedade exclusivamente dedicada ao
trfico de escravos cuja ra- zo social era Gantois & Pailhet,
que depois incorporaria, como scio, o Sr. Marback, um judeu ingls
estabelecido em Liverpool. Outras persona- lidades de destaque na
comunidade de comerciantes estrangeiros na Bahia estavam associados
nas arm;les negreiras, e Mauboussin indica os cn- sules da Santa S.
da Espanha e do Uruguai. A grande maioria, no eiitan- to, dos
associados no ti-fico no pode ser nominada pelo cnsul. Eram todos
os investidores que aplicavam dinheiro na armao de cada expedi- o
sob a liderana dos armadores e consignatrios.
Atento a esta relao ntima entre o gosto pela especulao fi-
nanceira e a habitualidade do ti-afico de escravos. Mauboussin
registrou, em 1846, uma situaiia em que uma importante atividade
ecni~fiinicii prejudicada pela falta dos capitais aplicados
massivamente no trfico. A explorao de diamantes 110 centro da
Provncia da Bahia tornou-se uma atividade importante desde 1844.
quando foram descobertas gran- des jazidas de diamantes na
localidade de Mucug. Em 1846. a explora- o diamantfera acelera-se
na Serra do Sincor, gerando uma irripor- tante concentrao de
populao, o que foi um fator de aumento de importaes baianas. Neste
contexto de verdadeira corrida ao diaman- te, o c8nsul francs
registra com indignao:
Este infame tr;ilico (iiegreiro1. triste recr)nliccer. E o nico
co- mrcio para o qual estio aptos os capit;llistas tia Bahia c a
prova disso e convincente pois no h um s dclcs quc tenha querido
aplicas seus capitais na explorao das minas de diaman~e desco-
bertas nesta provncia. Por posto e por especialidade. prel'erirain
todos cxploi-;ir n Negro t. ctiiprczndei- expcdics :I Costa. ao
iiivCs de experiincnlar especulaes sobi-e as quais podei-iam oblcr
nobretneiile luci-os coin toda garantia. :"
"' MiiiistErr drs .Aft':iires trniipres. Ooai d'Oi-say. P V.
Maiihoiissiii. Melnoire nbjoiiil aiix eLais geiikraux de
coiiiinerce er tle ~invigatioii d u port de Baliiri. aiiiiie 1x46
Corre~poiidaiice Coiisiiloire ei Coiiiiiicrc.i;ilc Coiisiilni tle
Bahi;~. Vol. S. lol. 48.
-
No apenas no inundo do com6rcio e da agricultura podiam ser
eiicontrados os beneficirios do negcio do trfico. Havia todo um
ramo de atividades ligadas ao mar que estavam tecnicamente no
centro da atividade traficante. Eram os doiios de estaleiros, os
proprietrios de navios, os capites e imediatos, eram os
marinheiros.
Mauboussin no conseguiu detalhar os gastos especficos com a
reparao dos navios velhos nem as despesas de armao dos navios com
cordas, velas e outros equipamentos. Ele apenas indica que estes
gastos eram considerveis em relao armao dos navios, pois tudo era
comprado da melhor qualidade. Sabe-se tambm que dois navios, a
goeleta Mariquinha e o brigue Isabelle, sofreram reparos srios
depois de terem sido capturados em Santa Helena pelos ingleses, que
certa- mente, como de hbito, danificaram os navios para prejudicar
o trfico. Tambm os ganhos dos capites e imediatos no foram
especificados. Mauboussin apenas descobriu que os capites e
imediatos recebiam um adiantamento ein dinheiro de 200$000 e
100$000 ris. respectivamente. ficando o restante condicionado ao
sucesso da expedio. Falta tam- bm no relatrio Mauboussin a
indicaiio dos gastos de frete e seguro das mercadorias
transportadas diretamente da Europa para as feitorias na Costa
d7frica. Ele nos revela. no entanto. um montante global des- tinado
economia naval em 1846, atravs do pagamento de 120$000 ris por
escravo transportado para um total de 9.403 escravos transpor-
tados? estimado em 1.128:360$000 reis.
Outros grandes beneficirios e cinplices do trfico, desde o pri-
meiro momento. eram os fiincionhi-ios do estado. Na verdade, os
funcio- nrios civis e inilitares do porto embolsavam propinas como
se fossein um vei-dadeiro imposto, coin a pequena diferena que o
faziam privadamente e no para os cofres pblicos. Estima-se que.
razo de 500$000 por brigue e 250$000 por goeleta, foram embolsados
6:500$000 ris. o que equivalia a4.5 s;ilrios do tenente-coronel
comandante geral do Corpo de Polcia da Provi~cia da Bahia. Para os
grandes funcionrios. chefes de polcia e su hdelqados. a parLe no
butim era bem mais importrinte. Para o ano de 1 846, foram
distribudos 1 88:060$000 ris de propinas e agra- dos,
correspondentes a um pouco mais de 1 .O00 escravos novos a preqo de
desembarque.
-
H tambii-, na Bahia, os beneficirios menores, para quem a
participao no tr3fico torna distintos de outras pessoas d~ seu
mesmo estatiito social: os marinheiros do trfico. As tripulaes eram
recni- tntlris tia Bahia entre a gente de cor habituada a esta
navegao. A estimativa dos contingentes de tripulaiio muito
prejudicada pelo hbito, como tudo no trfico. de no declarar o total
da tripulao no momento da sada do porto de Salvador. As prprias
informaes cons- tantes neste reliitrio permitem estimar que, no
conjunto de 19 expedi- es de sucesso, foram pagos (722 salrios de
marinheiros pela traves- sia do Atlntico, o que forma uin total de
174:400SOOO r6is. Esta iiias- sa de salrios paga a pessoas simples
do povo metidgs no negcio do trfico de escravos no representa quase
nada (2,9%) eni relaiin ao movimento anual de dinheiro girando no
trfico. No entanto, eiii uma sociedade to hierarquizada como a
baiana do tempo da escravido, uma boa referncia para avaliar o
impaclo desses salrios pagos so- bre a renda da popu1ac;o urbana
pobre de Salvador a compurao com os s:ilrios pagos a profissionais
que se situavam no mesmo nvel social dos inarinheiros do
trfico.
Ein i;ma atividade de alto risco como esta. a remunerao dos
marinheiro. estava subordinada ao nmero de expedies bem sucedi- das
pci- ano, A maioria das embai-caes fez uma viarem por ano. o que
correspondia, em mdia, a 70 dias de trabalho. Nestes casos, cada
ma- rinheiro recebeu bem mais que um soldado de polcia engajado no
servi- o um ano inteiro e somentc 50$000 ris a menos do que um
arteso livre, carpinteiro ou pedreiro, trabalhando estes um alio
inteiro. Um rna- riiiheii-o do brigue Trs Amigos. que fez a
travessia por duas vezes em 1 846, por 140 dias de trabalho recebeu
muito mais do que qualquer tra- balhador manual da cidade durante
um ano de trabalho. Cada marinhei- ro do brigue Brasiliense, que
fez quatro viagens, percebeu uma renda anual quase igual ao de um
capito de policia, que pertencia a um esca- lo social bein mais
elevado que o deles:" Com esta renda anual. cada um destes
marinheiros podia comprar para si um escravo africano novo, " 0 s
d;~doa de salarjos pagos a profihsioiiuis ai-tesBos r fuiicioiirios
~~hl icos para efeito de
coinpai-aiio coin o s sallirios de iiiariiiheiros do rrbfico
forain extrados de Kutia M. de Qtieii-tis Mailoso. "Ali Notiveuti
Moiide: oiie proviiice d'tin iiotivel einpire: Bnhia &LI XIX"
sicle" (Urititoraclo. Uiiiversi(1ade de Paris IV-Sorhr~iiiic. Ic
)80i .
Afro-Ario, 2 1.27 I 1 998.19YS), 83- 1 1 O
-
um daqueles que ele ajudo~i a transportar para o cativeiro. Essa
capaci- dade de capitalizaiio por parte de gente livre de cor ajuda
muito a com- preender um dinamismo desta pequena economia do mar,
onde se em- pregavam escravos de pequenos proprietrios nos servios
porturios como remadores e carrega doi.^^, na navcg;iC5o interna da
Baa de To- dos os Santos, bem coino ein uma atividade muito intensa
e lucrativa coino a pesca da baleia. Somente assim, o jovem cnsul
investigador entendeu os batuques e o fervor religioso desta gente
do mar na festa do Bom Jesus dos Navegailtes.
Hoje. como ler corretamente o relatrio dt. Pierre Victor
Mauboussin?
Certamente que o ojetivo perseguido pelo autor era sensibilizar.
de alguma forma, as autoridades do seu ministrio em favor da campa-
nha abolicionista na Frana que culminaria, em 1848, com a vitria de
Vtor Schoelcher e seus seguidores. Na Bahia, um posicionamento 150
ntido contra os mercadores e senhores de escravos animava o senti-
mento de rejeio ao conservadorisino dominante. no somente no 113-
cante escravido como tambm no que dizia respeito liberdade dos
povos, causa mobilizadora em um tempo de rebelio europia contra a
Santa Aliana. Com o advento da onda revolucionria de 1848,
Mouboussin se destacaria na agitao revolucionria entre os estran-
geiros na Bahia. fosse endere~ando calorosa correspondncia a
Lamartine, ministro dos negcios estrangeiros do governo provisrio,
ou mobilizando a comunidade de cerca de 300 residentes franceses e
mais os brasileiros simpticos id6ia da Repblica para a coleta de
fundos para as vtimas daquela revoluc;ao na Frana. Termina a sua
estada encabeando petirto em favor da proinoio de um funcioririo do
con- sulado, o que lhe custa uma repreenso e a perda do posto:"
Cento e cinqenta anos depois, este relatiio perde inteiramente a
sua eficicin como documento ativo e sobressai-se como testcxunho. O
ardor repiiblicaiio espanta do seu texto qualquer trao de
hipocrisia ou dissimiiliic50, muito prprios cultura da escravido. 4
inilitf~ncia poltica agua os seus sentidos pini ver, no sentido
micheletiano to em
-
voga entre os jovens republicanos da poca. o claro da Histria.
Mais do que o desvendamento de nomes e fatos isolados, Pierre
Victor Mauboussin pretendeu apreseiitnr ;i rede do trfico em
funcionamento durante um ano na praa comercial da Bahia. exatamente
na repre- sentao deste conjunto em movimento que reside a
importncia do seu testemunho.
A conex-o africana Como olhar hoje esta mquina mercante
negreira?
Grande a tentagiio t!e integrar o trfico negreiro como periferia
de um sistema capitalista iiiuiidializiido tendo como metrpole a
Europa e. mais precisamente, a Inglaterra. Conectado com os
mercados euro- peus e americanos como circuito complementar, foi
capaz de fzzer che- gar a economias n5o monetizadas e no
exportadoras de produtos a g - colas. como era o caso da Costa
d7frica. as manufaturas europ&ias. 0peraciori;il no seii tempo.
seus resultados projetados para o futuro na forma de acurnulaq50
primitiva de capital completariam a sua integra- o perfeita no
processo de desenvolvimento do capitalismo.
H tambm verdade em tudo isso. O que dizer da intensa circula- o
de mercadorias que nos revela Mauboussin? So manufaturas ale- ms e
inglesas que passam pela Bahia, que se juntam a merc:itlori;is
baianas e v50 para a Costa d'frica. So escravos que vm para os
engenhos produzir o acar que comprar manufaturados europeus,
contribuindo, pois, para o processo de reprocliicn ampli;ida do
capital na metrpole. No entanto, emerge do relatrio a evidencia de
uma arti- culaiio bem mais complexa entre niercados diferentes. As
mesmas mercadorias europias e ao inesino escravo atribuam-se
valores reais e nominais diferentes de cada lado do Atlntico, todos
eles desvinculados dos respectivos custos de produo.
Olhando pelo lado do traficante Pereira Marinho. era um grande
negcio comprar um escravo na Costa por Liin pouco mais de 20 inil
ris e podei- vendC-lo por 480 inil ris, mesmo com altos riscos da
travessia, alto custo de transporte e uma importante taxa de
propina s autorida- des brasileiras. Poderamos dizer, ento, que o
rei de Onim era lesado ao
-
vender os cativos do I~,intrrlrind nigeriano a 17 onas poi-
cabea? Se atentarmos para a produc;o do escravo na prpria fricn.
veremos que o seu custo era muito baixo, rnesino considerando as
despesas de captura feitas pelo rei-mercador, na medida em que eram
as prprias sociedades interioranas vtimas de capturas que produziam
o alimento suficiente para a criak de seus prprios f i l l ~ o s .
~ ~ ~ At mesmo o transporte do interior para a costa era pago pelo
trabalho dos prprios escravos como carre- gadores das rnercridorias
que alimentavam o comrcio interno na fri- ca. No poderamos dizer
que tambm era um grande negcio para o rei de Oniin vender o que
nada lhe custou e poder comprar 17 onas em fuzis, tecidos e mais
presentes adicionais?
Outra grande tentao 6 fazer uma leitura muito particularista.
seja da corporaqiio brasileira dos traficantes, seja da relao
comercial negreira entre Brasil e frica vista como uma "sociedade
negrei~-a".~' ou mesmo flar em um amplo e indefinido "mundo do
trfico". H5 tam- bin verdade nisso. O relatrio Mauboussin, no
entanto, ;io tempo em que descreve a natureza particular do negcio
negreiro, no negligencia a integrao paradoxal dos negociantes do
trfico como lderes de uma praa mercantil: suficientemente integrada
no imprio infornial britiinico na condio de importadora de
manufatura^:^% pperfeitaniente margi- nais como armadores e
consigiiatrios negreiros.
Pensar o trfico Bahia-Lagos tambm buscar I'orrnas de repre-
sentaao lgica desta complexidade histrica. Tomando cada uma das
partes neste negcio negreiro como um conjunto matemtico, no sentido
da metfora braudelianu da representao das estruturas como conjun-
tos de coiijuiitos;"' pode-se representar o negcio negreiro como
inter- seo entre elas, com efeitos diferenciados em cada uma. Esse
exerc- cio simples pode ajudar-nos a compreender melhor o
testemunho do jovem chnsul frances.
'' Claudr Mcill;issoux. Atitr.opolopio ( / ( i r.vc,i.(ivic/(io
O i.c,riri.r i I r ~ / r i i ~ o r (litilreii~o. Rio de J : I ~ ~ I
I - I : lor~t : Z:~li:~r. I V1)5
'' Picrrc Plriciii~ii. Lo i.ou/e
-
A interseo negreira Essa interseo entre a Bahia escravista e a
Costa d'frica exportado- ra de escravos pode ser assim
formalizada:
Neste espao de interseqo esto contidos alguns elementos que do
ao trfico negreiro uma grande capacidade de resistncia diante das
aes hostis oriundas destas mesmas sociedades como tambm do sistema
mundializado de mercados tendo como metrpole a Inglaterra
antitraficanfe.
O primeiro elemento que salta aos olhos a sobrevivtlncia, pela
adoiio de prr'iticas e pelo aperfeioamento de tradies coiiierciais.
de uina economia do trfico coordenada por convenes especficas,37
construdas historicamente e reafirmadas quotidianamente por todos
os agentes do trfico. do lado da Costa d'frica e do lado da Bahia.
O relatrio de Mauboussin ilustra muito bem as concluses de
historiado- res africanistas que representain esse coniki-cio de
escravos como uin negcio organizado. baseado no reconhecimento de
regras comerciais consensuais e na coiifiana intuu entre parceiros,
mesmo quando es- sas regras contrariavan~ as normas do ,frc.e
trride ingls hegernnic~.'~
O segundo elemcnto ele reflexilo a constituio. nesta economia do
trfico, de um espao econmico no regulamentado por qualquer
autoridade estatal. Como bem mostra Mauboussin. o estado
brasileiro, tendo aceito a presso inglesa de proscrio do trriiico,
tornou-se inca- paz de cobrar taxas e impostos sobre essa
atividade, resignando-se a aceitar a propina coino forma corrompida
de remunerac;o de seus fuii- cionirios civis e militares. Para
tanlo. dependia dos resultados das expe- dies negreiras, dos
costuines estabelecidos por este negcio. subordi- nando-se,
finalmente, vontade dos traficantes. Esse imprio brasileiro
" Usaiiios o coiiceilo d i "coiiveiio" tal coino 6 crahnlliiido
pvlos ecoiioiiiihias que hiiscaiii a ciii;ilise da coordeiinlici
ecoti6iiiic:i 1130 apeiiah ;ctr;ives da noio-i~cpiil;1~5(~ (1~8
iilt.rc;ido. iii:is iaiiibiii ;iir:iv& tle coiivciicu soci:~j.;
,411di.i. OrIaii (o rg . ) . Ai~ltli..s
-
no dispunha de qualquer jurisdio na costa d7frica, nem dispunha
de qualquer possibilidade e interveno poltica ou militar para
dirimir con- flitos ou impor condies mais favorveis aos seus
sditos. Do lado africano, o rei de Onim no tinha qualquer soberania
para alm da feitoria? assegurando apenas as condies de segurana das
operaes na Cos- ta em troca igualmente de propinas e taxas
disfaradas em presentes. Para completar o quadro de ausncia de
regulamentao estatal. :i de- cretao da ilegalidade deste comrcio
pela Inglaterra e sua imposico ao fraco estado brasileiro, impediam
o estabelecimento de qualquer iicor- do bilateral entre o Imprio do
Brasil e o Reino de Onim.'" Tudo real- mente dependia, inclusive a
inocda de referncia, dos consensos esta- belecidos entre os
parceiros do negcio. Os conflitos entre eles certa- mente existiam.
mas tifio ti notcias de afrontamentos ou rupturas gra- ves.
Predominava principalmente o que registrou Pien-e Pluchon:
Todos, que s pensam em enganar-se mutuamente no acessrio - tirar
o inximo de vantagens possiveis do interlocutor - ina- nifestam uma
estrita solidaricdadc sohrc o csscncial: o coriiCrclo dos calivos.
"' Um terceiro elemento a ser considerado a reprodiit$o, nos
dois
lados do Atlntico. de grupos sociais que viviam do trAfico e que
se constituam em agentes do interciinbio social, econmico e
cultural para alm da compra e venda de escravos. Quando se extingue
o trfico transntlntico e, portanto, os coincrciantes brasileiros
viram as costas para a Costa d'ti-ica, esses grupos de
.'brasileiros" na frica e "afri- canos" na Bahia permanecem como
elo de comunicao entre os povos da Costa e da dispora na ~ a h i a
. "
"' A posi de dista~ici:iiiieiilc da frica atlotiida pelo
Iiiipirio Briisileii-o bern deinoiis- trada pc.l:i Iiisttii-ia
diploiiiaticn hrnsileira: Alhei-lo dn Costa e Silva. A.v reltr(.es
eflti-r o B I . ( I . F ~ / 1: 11 Afi-i1.~ A ~ ~ , R I . ( I . ic
1822 l.i.a M t t i l d i ~ l . Luanda. Museu Nacioiinl da
Escravatiirri/l~istituto Nacional do Patriiiidiiio Cultural. 1996;
Alhei-to da Cosra e Silva. .'O Brasil, a frica e o AilAiitico no
seculo XIX", S T V D I A , 52 (1094). pp. 195-730.
41 Pieri-e Pluchori. Ltr i -oi~tr /Iras r.scloi~~s. p . 125. ''
C1 frni>ineii dos "hiasilciro.i" iin frica ji foi bastante
est~idado: Veiycr. Flici.11 e i-eflu-
so. pp 59')-h32; .lerry Micli;iel Tiiiiier. L(>,(
br.i,silic~i~s. Tlic ini]>ac.r (!f ,foi-rflei- Brcizrliuti
.sl(ri~es rrl)ori D( i11ni i1~1~. R o h ~ o t ~ . BOSIOII
l!~iiversity. 1975: Bellartnin Coffi Codo, "LCF hrsil~eiis c11
4friqlie clc I 'Oilest: Iiier cr aiijo~ird'hui", Uh'ESC'O/SSHKC'
?iuiirfffo. Iri.vfir!rrt.r Lu rourr l c ~ . ~ esc.loi~
-
Um ltimo elemento que uma leitura contempornea desta inter- seo
negreira niio pode desconsiderar a produo de uma territorialidade
do trfico. Diferentemente da equaio historicamente construda das
ecoiic.niias nacionais localizadas em territrios contnuos
delimitados, ocupados por populaes vivendo em situao de contigui-
dade e submetidas a um sistema de poder unificado nacionalmente, a
interseo negreira construiu um espao em rede," interligando, pela
nuvegnqiio iiventureira e perseguida, portos de trfico, articulando
po- dereh diferentes e ci-ialido r e f r21icias de ti.o;is
culturais para povos exti-emariieiite diferentes. Olhar para a
territorialidade do trfico como antever formas precoces da
globalizaio contemporiinea, onde, no lu- gar do Atlntico, navega-se
o ciberespao.
A diferena negreira A interseo negreira provoca tambm a sua
negao em ambas as partes.
Ca- B B - Ca
No lado africano, a revolta contra a deportao parii iirnii
escra- vido mercantil do outro lado do Atlntico constitui uma das
mais emo- cionantes sagas de luta pela liberdade escritas na
histria dos povos. As constantes revoltas no interior africano, nos
portos da Costa, nos navios e no porto de desembarque. Essa reao
africana ao trifico deve ser tambm considerada nos processos de
desestabilizao dos reinos so- beranos traficantes e de facilitaqo
da ocupuo colonial posterior aboliilo do trfico atlntico, que
trazia como bandeira o fim da escravi- do, corno, por exemplo, a
resistncia do povo do reino de Ketu escra- vido que Ihes havia
imposto o reino do D a ~ m . ~ '
No lado baiano, a reao ao trfico se d tanto pela resistncia
escravido, manifestada pelas revoltas africanas nas plantaes de
acar e nas armaes de peixe da Bahia, pela participao crioula em
revoltas
'" Miltoii Saiitos et alii. 7i,ri.rttjrro. ,plohalizcl(~c?o I,
,i.ci,yirr~i~tcr~.io, S i i o Paulo. Hiicitecl ANPUR. 1996.
"' E1isL.r Suiiioniii, "Froin tlie iiiierior i o tlie coast:
bridpiiis tlie g;~p i11 rhe sri~dy of tlie slavt: tracle aiid
sl;ivcry ii i D;ilioiiic~". I!ri(,sc~oLYSHKC S~iiiiir~c~i~
Iii.~rii~irc. Ln rolire &.r P . V ~ . ~ U I > P S - TIIC
SI~II-13 I . I ) I I ~ P . Toroi~fo. York University, I097
-
populares, pelos quilombos e pelas fugas. Manifesta-se tambm r t
opo- sio ao trfico que resulta da rejeio presenca africana no
Brasil sustentada por liberais, a l~u i i s dos mais radicais, do
fim do sculo XVIII aos fins do sculo XIX. que defendiam a
reexportao dos filhos do trfico para a frica ou, no pior dos casos,
uma "civilizaio" to radical do negro tio Brasil que apagasse da
memria dos restantes a "barbaria" africaiiii. U m exemplo
eloquetite desse tipo de oposiqo ao trafico k a defesa que fez
Migiiel Calinon da colonizao europiia. em 1835, ainda
tra~imatizildo pela insurreio dos mals:
... o de prevenir, com cficacia e evidente utilidade, a funesta
necessidade de africanos. ou os effeiros ainda mais funestos da
cxistencia de tantos barhuros nestc abenoado Paiz. ... Reconheo
cluc ;i Colonisao nesta Provncia. tem que en- conti-ar n5o pequenas
dil't'iculdadcs. ( . . . )A 2" consiste na solapa- da e arteira
opposio . quc L entrada de colonos livres devem fkzci. os
iiriinoi-ais traficantes dc Cc~rrrc!-htrn~arru. esses Contrahan-
dist:is criiiis. e seos nuiiicrosos asseclas e coinparces, que
conci- nuain iinporiar Alric:iiios. faciliiar o seo desembarque em
nos- sas Cos~as. c a proinovi- a suo venda em nossos Mercados."
A reunio afro-baiana A interseo negreira tambm responsvel pela
reunio dos
dois lados do Atlntico, no que se poderia trrnalizar como B u
Ca
expresso mesmo de uma cultiira afro-brasileira resultante da
vivncia dos filhos da dispora africana no Brasil. civilizando
africanamente uma sociedade brasileira e estabelecendo as
referncias que tornam poss- veis as navegaes contemporneas que
reatam contato com aquelou- tros que abrrisileirai-am a Costa d'
Afi-ica.
Pontes Fraiice. Arcliivcs du Miiiistre dcs Afkiires Etraiigres.
Quai d'orsay. Corro.v/)o~ztla~lc.r.
Coir.sul(~irr ~t C O I I I I I L O ) I . ~ < ~ / C
CIo~~.vi~l(~t (/c, R[rlii(i. VoI. 5. 1847- 185.5 Fraiict. Archive.\
du Miiiistkrr des Affiiii-c\ Eir:iiiglre.