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MAURICE BLANCHOT A ESCRITURA DO DESASTRE
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A Escritura Do Desastre

Oct 23, 2016

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Page 1: A Escritura Do Desastre

MAURICE BLANCHOT

A ESCRITURA DO DESASTRE

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O desastre arruína tudo deixando tudo no estado. Não atinge esse ou aquele, « eu» não estou sob sua ameaça. É na medida em que, poupado, deixado de lado, o desastre me ameaça que ele ameaça em mim o que está fora de mim, um outro que não eu que devém passivamente outro. Não há alcance do desastre. Fora de alcance está aquele que o desastre ameaça, não se saberia dizer se é de perto ou de longe – o infinito da ameaça de uma certa maneira rompeu todo limite. Estamos à beira do desastre sem que possamos situá-lo no porvir: ele é, antes, sempre já passado, e, no entanto, estamos à beira ou sob a ameaça, todas as formulações que implicariam o porvir se o desastre não fosse o que não vem, o que impediu toda vinda. Pensar o desastre (se é possível, e não é possível na medida em que pressentimos que o desastre é o pensamento) é não ter mais porvir para o pensar.O desastre é separado, aquilo que há de mais separado.Quando o desastre sobrevém, ele não vem. O desastre é sua iminência, mas, pois que o futuro, tal qual o concebemos na ordem do tempo vivido, pertence ao desastre, o desastre sempre já o retirou ou dissuadiu; não há porvir para o desastre, como não há tempo nem espaço em que ele se cumpra.

Ele não crê no desastre, não se pode crer no desastre, que se viva ou que se morra. Nenhuma fé que esteja à sua medida, e ao mesmo tempo uma espécie de desinteresse, desinteressado do desastre. Noite, noite branca - assim o desastre, essa noite à qual a obscuridade falta, sem que a luz a clareie.

O círculo, desenrolado sobre uma reta rigorosamente prolongada, reforma um círculo eternamente privado de centro.

A « falsa» unidade, o simulacro de unidade a comprometem mais que sua colocação em causa direta que no resto não é possível.

Escrever seria, no livro, devir legível para cada um, e, para si mesmo, indecifrável? (Jabès não nos disse quase isso?)

Se o desastre significa estar separado da estrela (o declínio que marca o extravio quando se interrompeu a relação com o acaso de cima), ele indica a queda sob a necessidade desastrosa. A lei seria o desastre, a lei suprema ou extrema, o excessivo da lei não codificável: aquilo a que somos destinados sem ser concernidos? O desastre não tem olhos para nós, ele é o ilimitado sem olhar, o que não pode se medir em termo de fracasso nem como a perda pura e simples.Nada é suficiente ao desastre; o que quer dizer que, da mesma maneira que a destruição em sua pureza de ruína não lhe convém, da mesma maneira a idéia de totalidade não saberia marcar seus limites: todas as coisas atingidas e destruídas, os

N. t. Usaremos em itálico o “se” toda vez que ele tiver a função de pronome apassivador ou índice de indeterminação do sujeito, a fim de diferenciá-lo de sua função de pronome reflexivo.

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deuses e os homens reconduzidos à ausência, o Nada no lugar de tudo, é demasiado e demasiado pouco. O desastre não é maiúsculo, talvez ele torne a morte vã; ele não se superpõe, sempre suprindo a ele, ao espaçamento do morrer. Morrer nos dá às vezes (com erro, sem dúvida) o sentimento de que, se nós morrêssemos, escaparíamos ao desastre, e não de nos abandonarmos a ele – donde a ilusão de que o suicídio libera (mas a consciência da ilusão não a dissipa, não nos deixa nos desviar dela). O desastre do qual seria preciso atenuar – reforçando-a - a cor negra, nos expõe a uma certa ideia da passividade. Somos passivos em relação ao desastre, mas o desastre talvez seja a passividade, nisso passado e sempre passado.

O desastre toma cuidado com tudo.

O desastre: não o pensamento devindo louco, nem talvez mesmo o pensamento enquanto porta sempre sua loucura.

O desastre, tirando-nos esse refúgio que é o pensamento da morte, dissuadindo-nos do catastrófico ou do trágico, desinteressando-nos de todo querer como de todo movimento interior, não nos permite muito menos jogar com essa questão: o que tu fizeste para o conhecimento do desastre?

O desastre está do lado do esquecimento; o esquecimento sem memória, a retração imóvel do que não foi traçado – o imemorial talvez; lembrar-se por esquecimento, o fora novamente.

« Será que tu sofreste para o conhecimento? » Isso nos é perguntado por Nietzsche, com a condição de que não nos equivoquemos sobre a palavra sofrimento: o submetimento, o « passo » do totalmente passivo em retração em relação a toda visão, todo conhecer. A menos que o conhecimento não nos porte, não nos deporte, sendo conhecimento não do desastre, mas como desastre e por desastre, golpeados por esse conhecimento, entretanto não tocados, face a face com a ignorância do desconhecido, assim esquecendo sem cessar.

O desastre, preocupação do ínfimo, soberania do acidental. Isso nos faz reconhecer que o esquecimento não é negativo ou que o negativo não vem após a afirmação (afirmação negada), mas está em proporção com o que há de mais antigo, o que viria do fundo das idades sem jamais ter sido dado.

É verdade que, em relação ao desastre, se morre demasiado tarde. Mas isso não nos dissuade de morrer; isso nos convida, escapando ao tempo em que é sempre demasiado tarde, a suportar a morte inoportuna, sem relação com nada senão o desastre como retorno.

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Jamais decepcionado, não por falta de decepção, mas a decepção sendo sempre insuficiente.

Não direi que o desastre é absoluto; ao contrário, ele desorienta o absoluto, vai e vem, descorcerto nômade, no entanto com a subitidade insensível mas intensa do fora, como uma resolução irresistível ou imprevista - que nos viria do além da decisão.

Ler, escrever, como se vive sob a sobrevigilância do desastre: exposto à passividade fora da paixão. A exaltação do esquecimento.Não és tu que falarás; deixa o desastre falar em ti, que seja por esquecimento ou por silêncio.

O desastre já ultrapassou o perigo, mesmo quando estamos sob a ameaça de -. O traço do desastre é que não se está nele jamais senão sob sua ameaça e, como tal, ultrapassagem ao perigo.

Pensar seria nomear (chamar) o desastre como pensamento dissimulado.Não sei como cheguei a este ponto, mas pode ser que nele chego ao pensamento que conduz a se manter à distância do pensamento; pois ele dá isso: a distância. Mas ir à ponta do pensamento (sob a espécie desse pensamento da ponta, da beira), não é possível somente mudando de pensamento? Daí essa injunção: não mudes de pensamento; repete-o, se o puderes.

O desastre é o dom, ele1 dá o desastre: é como se ele passasse além do ser e do não-ser. Ele não é advento (o próprio do que chega) – isso não chega, de sorte que eu, nem por isso, chego mesmo a esse pensamento, exceto sem saber, sem a apropriação de um saber. Ou então, ele é advento do que não chega, do que viria sem chegada, fora do ser, e como que por deriva? O desastre póstumo?

Não pensar: isso, sem retenção, com excesso, na fuga pânica do pensamento.

Ele dizia para si mesmo: tu não te matarás, teu suicídio te precede. Ou então: ele morre inapto a morrer.

O espaço sem limite de um sol que testemunharia não para o dia, mas para a noite liberada de estrelas, noite múltipla.

«Conhece qual ritmo mantém os homens» (Arquilóquio). Ritmo ou linguagem. Prometeu: «Neste ritmo, sou tomado». Configuração cambiante. O que resulta do ritmo? O perigo do enigma do ritmo.

1 Es gibt.

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A menos que não exista no espírito de quem quer que tenha sonhado os humanos, até a si, nada senão um cômputo exato de puros motivos rítmicos do ser, que dele são os reconhecíveis signos? » (Mallarmé.)

O desastre não é sombrio; ele liberaria de tudo se pudesse ter relação com alguém, ir-se-ia conhecê-lo em termo de linguagem e ao termo de uma linguagem por um gaio saber. Mas o desastre é desconhecido, o nome desconhecido para aquilo que no pensamento mesmo nos dissuade de ser pensado, distanciando-nos pela proximidade. Só para se expor ao pensamento do desastre que desfaz a solidão e desborda toda espécie de pensamento, como a afirmação intensa, silenciosa e desastrosa do fora.

Uma repetição não religiosa, sem lamento nem nostalgia, retorno não desejado; o desastre não seria então repetição, afirmação da singularidade do extremo? O desastre ou o inverificável, o impróprio.

Não há solidão se esta não desfaz a solidão para expor o só ao fora múltiplo.

O esquecimento imóvel (memória do imemorável): nisso se des-creve o desastre sem desolação, na passividade de um deixar-ir que não renuncia, não anuncia, senão o impróprio retorno. O desastre, nós o conhecemos talvez sob outros nomes talvez jocosos, declinando todas as palavras, como se pudesse haver para as palavras um todo.

A calma, a queimadura do holocausto, a nadificação de meio-dia - a calma do desastre.

Ele não está excluído, mas como alguém que não entraria mais em nenhuma parte.

Penetrado pela passiva doçura, assim ele tem como que um pressentimento – lembrança do desastre que seria a mais doce imprevisão. Não somos contemporâneos do desastre: está aí a sua diferença, e essa diferença é a sua ameaça fraterna. O desastre seria de mais, em demasia, excesso que não se marca senão em impura perda.

Na medida em que o desastre é pensamento, ele é pensamento não desastroso, pensamento do fora. Não temos acesso ao fora, mas o fora sempre já nos tocou na cabeça, sendo o que se precipita.O desastre, o que se desestende, a desestendida sem a obrigação rigorosa de uma destruição, o desastre revém, ele seria sempre o desastre de depois do desastre, retorno silencioso, não assolador, por onde ele se dissimula. A dissimulação, efeito de desastre.

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«Mas não há, aos meus olhos, grandeza senão na doçura» (S.W2.) Direi antes: nada de extremo senão pela doçura. A loucura por excesso de doçura, a loucura doce.Pensar, apagar-se: o desastre da doçura.

«A única explosão é um livro» (Mallarmé).

O desastre inexperimentado, aquilo que se subtrai a toda possibilidade de experiência - limite da escritura. É preciso repetir: o desastre des-creve. O que não significa que o desastre, como força de escritura, se exclua dela, seja fora de escritura, um fora-do-texto.

É o desastre obscuro que porta a luz.

O horror – o honor - do nome que arrisca sempre a devir sobre-nome, retomado de maneira vã pelo movimento do anônimo: o fato de ser identificado, unificado, fixado, parado num presente. O comentador - crítica, elogio - diz: é isso que tu és, que tu pensas; o pensamento de escritura, sempre dissuadido, esperado pelo desastre, eis que ele é tornado visível no nome, sobrenomeado, e como que salvo, no entanto, entregue ao elogio ou ou à crítica (é o mesmo), quer dizer, prometido a uma sobrevida. As covas dos nomes, as cabeças jamais vazias.

O fragmentário, mais que a instabilidade (a não-fixação), promete a descorcerto, o desarranjo.

Schleiemacher: produzindo uma obra, renuncio a me produzir e a me formular a mim mesmo, cumprindo-me em alguma coisa exterior e inscrevendo-me na continuidade anônima da humanidade – donde a relação obra de arte e encontro com a morte: nos dois casos, nós nos aproximamos de um limiar perigoso, de um ponto crucial onde nós somos bruscamente revirados. Da mesma maneira, Friedrich Schlegel: aspiração a se dissolver na morte: «O humano é por toda parte o mais alto, e mesmo mais alto que o divino». Passagem ao limite. Resta possível que, desde que escrevemos e por tão pouco que escrevamos – o pouco é somente em demasia -, nós saibamos que nos aproximamos do limite – o limiar perigoso - onde a reviravolta está em jogo.Para Novalis, o espírito não é agitação, inquietude, mas repouso (o ponto neutro sem contradição), força da gravidade, densidade, Deus sendo «de um metal infinitamente compacto, o mais denso e o mais corpóreo de todos os seres». «O artista em imortalidade» deve trabalhar para o cumprimento do zero onde alma e corpo devêm mutuamente insensíveis. A apatia, dizia Sade.

2 Simone Weil.

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A lassidão diante das palavras é também o desejo das palavras espaçadas, rompidas em seu poder que é sentido, e em sua composição que é sintaxe ou continuidade do sistema (com a condição de que o sistema tenha sido em alguma sorte previamente acabado, e o presente, cumprido). A loucura que não é jamais de agora, mas o prazo da não-razão, o «ele será louco amanhã», loucura da qual não se sabe se servir para aumentar, adensar ou aliviar seu pensamento.

A prosa tagarela: o balbucio da criança, e, no entanto, o homem que baba, o idiota, o homem das lágrimas, que não se retém mais, que se relaxa, sem palavras ele também, desnudado de poder, mas mesmo assim mais próximo da palavra que corre e escorre, do que da escritura que se retém, mesmo que fosse para além da maestria. Nesse sentido, não há silêncio senão escrito, reserva dilacerada, entalhe que torna impossível o detalhe.

Poder = chefe de grupo, ele deriva do dominador. Macht é o meio, a máquina, o funcionamento do possível. A máquina delirante e desejante ensaia em vão fazer funcionar o não-funcionamento; o não-poder não delira, ele tem sempre já saído do sulco, da sulcagem, pertencendo ao fora. Não é suficiente dizer (para dizer o não-poder): tem-se o poder, com a condição de não fazer uso dele, pois essa é a definição da divindade; a abstenção, o distanciamento da manutenção, não é suficiente, se ela não pressente que é, de antemão, sinal do desastre. Só o desastre mantém à distância a maestria. Anelo (por exemplo) um psicanalista a quem o desastre faria sinal. Poder sobre o imaginário, com a condição de entender o imaginário como o que se esquiva ao poder. A repetição como não-poder.

Temos constantemente necessidade de dizer (de pensar): chegou-me aí alguma coisa (de muito importante), o que quer dizer ao mesmo tempo, isso não saberia ser da ordem do que chega, nem da ordem do que importa, mas, antes, exporta e deporta. A repetição.

Entre certos « selvagens » (sociedade sem estado), o chefe deve provar sua dominação sobre as palavras: nenhum silêncio. Ao mesmo tempo, a palavra do chefe não é dita para ser escutada – ninguém presta atenção à palavra do chefe, ou antes, finge-se a desatenção; e o chefe, efetivamente, não diz nada, repetindo como que a celebração das normas de vida tradicionais. A qual demanda da sociedade primitiva responde essa palavra vazia que emana do lugar aparente do poder? Vazio, o discurso do chefe o é justamente porque é separado do poder – é a sociedade ela mesma que é o lugar do poder. O chefe deve se mover no elemento da palavra, quer dizer, no oposto da violência. O dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia (não vazia, tradicional, de transmissão) que ele deve à tribo, é a dívida infinita, a garantia que interdita ao homem de palavra devir homem de poder. N. t. Palavra alemã que significa “poder” na expressão nietzschiniana “Will der Macht” (Vontade de poder). Etimologicamente, Macht deriva do verbo “machen” (fazer).

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Há questão, e, entretanto, nenhuma dúvida; há questão, mas nenhum desejo de resposta; há questão, e nada que possa ser dito, mas somente a dizer. Questionamento, colocação em causa que ultrapassa toda possibilidade de questão.

Aquele que critica ou repele o jogo, já entrou no jogo.

Como se pode pretender: « O que tu não sabes de maneira alguma, de maneira alguma saberia te atormentar? » Não sou o centro daquilo que ignoro, e o tormento tem seu saber próprio que recobre minha ignorância.

O desejo: faça com que tudo seja mais que tudo e permaneça o tudo.

Escrever pode ter ao menos esse sentido: usar os erros. Falar os propaga, os dissemina fazendo crer numa verdade.Ler: não escrever; escrever na interdição de ler.Escrever: recusar escrever - escrever por recusa, de sorte que seja suficiente que se lhe peça algumas palavras para que uma espécie de exclusão se pronuncie, como se se o obrigasse a sobreviver, a se prestar à vida para continuar a morrer. Escrever por ausência.

Solidão sem consolação. O desastre imóvel que, no entanto, se aproxima.

Como poderia haver um dever de viver? A questão mais séria: o desejo de morrer seria demasiado forte para se satisfazer com minha morte como com aquilo que o esgotaria, e ele significa paradoxalmente: que os outros vivam sem que a vida lhes seja uma obrigação. O desejo de morrer libera do dever de viver, quer dizer, tem esse efeito de que se vive sem obrigação (mas não sem responsabilidade, a responsabilidade estando além da vida).

A angústia de ler: é que todo texto, por tão importante, tão agradável e tão interessante que seja (e quanto mais ele dá a impressão de sê-lo), é vazio – não existe no fundo; é preciso transpor um abismo, e se não se salta, não se compreende.

O « misticismo» de Wittgenstein, no fora de sua confiança na unidade, viria do fato de que ele crê que se pode mostrar lá onde não se poderia falar. Mas, sem linguagem, nada se mostra. E calar-se é ainda falar. O silêncio é impossível. Eis porque nós o desejamos. Escritura (ou Dizer) precedendo todo fenômeno, toda manifestação ou monstração: todo aparecer.

Não escrever – que longo caminho antes de chegar a tal ponto, e isso não é jamais seguro, não é nem uma recompensa nem um castigo, é preciso somente escrever na incerteza e na necessidade. Não escrever, efeito de escritura; como uma marca da

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passividade, um recurso da desgraça. Quantos esforços para não escrever, para que, escrevendo, eu não escreva, apesar de tudo - e finalmente eu cesse de escrever, no momento último da concessão; não no desespero, mas como o inesperado: o favor do desastre. O desejo não satisfeito e sem satisfação e, entretanto, sem negativo. Nada de negativo em « não escrever », a intensidade sem maestria, sem soberania, a obsessão do totalmente passivo.

Desfalecer sem falta: marca da passividade.

Querer escrever, que absurdo: escrever é a decadência do querer, como a perda do poder, a queda da cadência, o desastre ainda.

Não escrever: a negligência, a incúria não são suficientes para isso; a intensidade de um desejo fora da soberania talvez - uma relação de submersão com o fora. A passividade que permite se manter na familiaridade do desastre.Ele põe toda sua energia para não escrever, para que, escrevendo, escreva por desfalecimento, na intensidade do desfalecimento.

O não-manifesto da angústia. Angustiado, tu não o serias.

O desastre é aquilo que não se pode acolher, salvo como a iminência que gratifica, a espera do não-poder.

Que as palavras cessem de ser armas, meios de ação, possibilidades de salvação. Reportar-se ao desconcerto. Quando escrever, não escrever, é sem importância, então a escritura muda – que ela tenha lugar ou não, é a escritura do desastre.

Não confiemos no fracasso: seria ter a nostalgia do êxito.

Para além da seriedade, há o jogo, mas para além do jogo, procurando aquilo que engana o adversário: o gratuito, ao qual não se pode se esquivar, o casual sob o qual tombo, sempre já tombado.Ele passa dias e noites no silêncio. É a palavra, isso.

Destacado de tudo, inclusive de seu destacamento.

Um engodo do eu [moi]: sacrificar o eu [moi] empírico para preservar um eu [Je] transcendental ou formal, nadificar-se para salvar sua alma (ou o saber, estando compreendido nisso o não-saber).

Não escrever não deveria reenviar a um «não querer escrever», nem também, embora isso seja mais ambíguo, a um «Eu não posso escrever» que na verdade

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marca ainda, de uma maneira nostálgica, a relação de um « eu [je]» com a potência sob a forma de sua perda. Não escrever sem poder, o que supõe a passagem pela escritura.

Onde há o menos de poder? Na palavra, na escritura? Quando eu vivo, quando eu morro? Ou então, quando morrer não me deixa morrer.

É uma preocupação ética o que te distancia do poder? O poder liga, o não-poder desliga. Às vezes o não-poder é portado pela intensidade do indesejável.

Sem certeza, ele não duvida; ele não tem o apoio da duvida.

O pensamento do desastre, se não extingue o pensamento, nos torna despreocupados a respeito das sequências que pode ter para nossa vida esse pensamento mesmo, ele afasta toda idéia de fracasso e de êxito, toma o lugar do silêncio ordinário, aquele ao qual falta a palavra, por um silêncio à parte, no intervalo, onde é o outro que se anuncia se calando.

Retiramento e não desenvolvimento. Tal seria a arte, à maneira do Deus de Isaac Luria que não cria senão se excluindo.

Escrever é evidentemente sem importância, não importa escrever. É a partir daí que a relação com a escritura se decide.

A questão que repousa sobre o desastre já lhe pertence: ela não é interrogação, é prisma, demanda, chamada de socorro; o desastre chama pelo desastre para que a idéia de salvação, de redenção, não se afirme ainda, causando pavores destroçantes, mantendo o medo.O desastre: contratempo.

É o outro que me expõe à «unidade», fazendo-me crer numa singularidade insubstituível, como se eu não devesse faltar a ela, sempre me retirando daquilo que me tornaria único: não sou indispensável, não importa quem seja, em mim, chamado pelo outro como aquele que lhe deve socorro – o não-único, o sempre substituído. O outro é, ele também, sempre outro, entretanto se prestando a um, outro que não é nem este nem aquele e, todavia, a cada vez, o só, a quem devo tudo, inclusive a perda de mim [moi].A responsabilidade da qual sou encarregado não é a minha e faz que eu não seja mais «eu» [moi].

« Sê paciente ». Palavra simples. Ela exigia muito. A paciência já me retirou não somente de minha parte voluntária, mas de meu poder de ser paciente: se eu posso ser paciente, é que a paciência não usou em mim esse eu [moi] onde eu me retenho.

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A paciência me abre de uma parte a outra até a uma passividade que é o «passo do totalmente passivo», que abandonou, portanto, o nível de vida onde passivo seria somente oposto a ativo: da mesma maneira que tombamos no fora da inércia (a coisa inerte que padece sem reagir, com seu corolário, a espontaneidade viva, atividade puramente autônoma). «Sê paciente». Quem diz isso? Ninguém que possa dizê-lo e ninguém que possa entendê-lo. A paciência não se recomenda nem se ordena: é a passividade do morrer pela qual um eu [moi] que não é mais eu [moi] responde pelo ilimitado do desastre, isso de que nenhum presente se lembra.

Pela paciência, tomo a cargo a relação ao Outro do desastre que não me permite assumi-lo, nem mesmo permanecer eu [moi] para sofrê-lo. Pela paciência se interrompe toda relação de mim [moi] com um eu [moi] paciente.

Desde que o silêncio iminente do desastre imemorial o fizera, anônimo e sem eu [moi], se perder na outra noite em que precisamente a noite opressora, vazia, para sempre dispersada, despedaçada, estrangeira, o separava e o separava para que a relação com o outro o assediasse com sua ausência, com seu infinito longínquo, era preciso que a paixão da paciência, a passividade de um tempo sem presente - ausente, a ausência de tempo – fosse sua só identidade, restrita a uma singularidade temporária.

Se há relação entre escritura e passividade, é que uma e a outra supõem o apagamento, a extenuação do sujeito: supõem uma mudança de tempo: supõem que entre ser e não ser alguma coisa que não se cumpre, chega, entretanto, como tendo desde sempre já sobrevindo - o desobramento do neutro, a ruptura silenciosa do fragmentário.

A passividade: não podemos evocá-la senão por uma linguagem que se subverta a si mesma. Outrora, eu chamava pelo sofrimento: sofrimento tal como eu não podia sofrê-lo, de sorte que, nesse não-poder, o eu [moi] excluído da maestria e de seu estatuto de sujeito em primeira pessoa, destituído, dessituado e até mesmo desobrigado, pudesse se perder como eu [moi] capaz de sofrer; há sofrimento, haveria sofrimento, não há mais « eu [je] » sofrente, e o sofrimento não se apresenta, não é portado (menos ainda vivido) no presente, é sem presente, como é sem começo nem fim: o tempo radicalmente mudou de sentido. O tempo sem presente, o eu [moi] sem eu [moi], nada do qual se possa dizer que a experiência - uma forma de conhecimento - o revelaria ou o dissimularia.Mas a palavra sofrimento é por demais equívoca. O equívoco não será jamais dissipado, já que, falando da passividade, nós a fazemos aparecer, mesmo que seja na noite em que a dispersão a marca e a demarca. É-nos muito difícil - e tanto quanto mais importante - falar da passividade, pois ela não pertence ao mundo e não conhecemos nada que seria totalmente passivo (conhecendo-o, nós o transformaríamos inevitavelmente). A passividade oposta à atividade, eis o campo

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sempre restrito de nossas reflexões. O submeter-se, o submetimento - para formar essa palavra que não é senão um duplo de subitamente, a mesma palavra esmagada -, a imobilidade inerte de certos estados, ditos de psicose, o padecer da paixão, a obediência servil, a receptividade noturna que a espera mística supõe, o despojamento portanto, o arrancamento de si a si mesmo, o destacamento pelo qual se se destaca, inclusive do destacamento, ou então, a queda (sem iniciativa nem consentimento) para fora de si - todas essas situações, mesmo se algumas estão no limite do cognoscível e designam uma face oculta da humanidade, não nos falam quase em nada daquilo que buscamos entender deixando se pronunciar essa palavra desconsiderada: passividade.

Há a passividade que é quietude passiva (figurada talvez por aquilo que sabemos do ascetismo); também a passividade que está além da inquietude, sempre retendo aquilo que há de passivo no movimento fervoroso, desigual-igual, sem parada, do erro sem meta, sem fim, sem iniciativa.

O discurso sobre a passividade a trai necessariamente, mas pode retomar alguns dos traços pelos quais ele é infiel: não somente o discurso é ativo, ele se projeta, se desenvolve segundo as regras que lhe asseguram uma certa coerência; não somente ele é sintético, respondendo a uma certa unidade de palavra respondendo a um tempo que, sempre memória de si mesmo, se retém num conjunto sincrônico - atividade, desenvovimento, coerência, unidade, presença de conjunto, todos caracteres que não podem se dizer da passividade, mas há mais: o discurso sobre a passividade a faz aparecer, a apresenta e a representa, enquanto que, talvez (talvez), a passividade seja essa parte «inumana» do homem que, destituído do poder, afastado da unidade, não saberia dar lugar a nada que apareça ou se mostre, não se assinalando ou se indicando e, assim, pela dispersão e pela defecção, caindo sempre debaixo daquilo que se pode anunciar dela, mesmo que seja a título provisório.De onde resulta que, se nos sentimos impelidos a dizer alguma coisa da passividade, é na medida em que isso importa ao homem sem fazê-lo passar do lado do importante, na medida também em que a passividade, escapando ao nosso poder de falar dela bem como ao nosso poder de fazer-lhe a prova (de prová-la), se põe ou se depõe como aquilo que interromperia nossa razão, nossa palavra, nossa experiência.

O que é estranho, é que a passividade não é jamais bastante passiva: é nisso que se pode falar de um infinito; talvez somente porque a passividade se esquiva a toda formulação, mas parece que há nela como que uma exigência que a chamaria para sempre chegar aquém dela mesma - não passividade, mas exigência da passividade, movimento do passado em direção ao inultrapassável.Passividade, paixão, passado, pas (ao mesmo tempo negação e rastro ou movimento da marcha), esse jogo semântico nos dá um deslizamento de sentido, mas nada a que possamos nos ligar como a uma resposta que nos contentaria.

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A recusa, diz-se, é o primeiro grau da passividade - mas se ela é deliberada e voluntária, se exprime uma decisão, mesmo que negativa, ela não permite ainda contrastar com o poder de consciência, permanecendo no melhor um eu [moi] que recusa. É verdade que a recusa tende ao absoluto, a uma espécie de incondicional: é o nó da recusa que se torna sensível pelo inexorável «Eu preferiria não (fazê-lo)» de Bartleby o escrivão, uma abstenção que não teve que ser decidida, que precede toda decisão e que é mais que uma denegação, mas, antes, uma abdicação, a renunciação (jamais pronunciada, jamais esclarecida) a nada dizer – a autoridade de um dizer - ou ainda, a abnegação recebida como o abandono do eu [moi], o desleixamento da identidade, a recusa de si que não se crispa sobre a recusa, mas abre ao desfalecimento, à perda do ser, ao pensamento «Eu não o farei», teria ainda significado uma determinação enérgica, chamando uma contradição enérgica. « Eu preferiria não...» pertence ao infinito da paciência, não deixando brecha à intervenção dialética: caímos para fora do ser, no campo do fora onde, imóveis, marchando com um passo igual e lento, vão e vêm os homens destruídos.

A passividade é sem medida: é que ela desborda o ser, o ser na ponta de ser - a passividade de um passado já escorrido que jamais foi: o desastre entendido, subentendido não como um evento do passado, mas como o passado imemorial (Le Très-Haut) que revém dispersando pelo retorno o tempo presente em que ele seria vivido como revindo.

A passividade: podemos evocar situações de passividade, a desgraça, o esmagamento final do estado concentracionário, a servidão do escravo sem mestre, caído abaixo da necessidade, o morrer como a desatenção à saída mortal. Em todos esses casos, reconhecemos, mesmo que seja de um saber falsificante, aproximativo, traços comuns: o anonimato, a perda de si, a perda de toda soberania, mas também de toda subordinação, a perda da residência, o erro sem lugar, a impossibilidade da presença, a dispersão (a separação).

Na relação de mim [moi] (o mesmo) com Outrem, Outrem é o longínquo, o estrangeiro, mas se eu inverto a relação, Outrem se relaciona comigo [moi] como se eu fosse o Outro e me faz então sair de minha identidade, pressionando-me até o esmagamento, retirando-me, sob a pressão do totalmente próximo, do privilégio de ser em primeira pessoa e, arrancado a mim mesmo, deixando uma passividade privada de si (a alteridade mesma, o outro sem unidade), o inassujeitado, ou o paciente.

Na paciência da passividade, sou aquele que qualquer um pode substituir, o não-indispensável por definição e que, todavia, não pode se dispensar de responder por e para aquilo que ele não é: uma singularidade de empréstimo e de encontro – a do refém de fato (como fala Levinas), que é a garantia não consentidora, não escolhida, N. t. Referência ao romance Le Très-Haut, do próprio Maurice Blanchot.

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de uma promessa que ele não fez, o insubstituível que não detém seu lugar. É pelo outro que eu sou o mesmo, o outro que sempre me retirou de mim mesmo O Outro, se ele recorre a mim [moi], é como a alguém que não é eu [moi], o primeiro a vir ou o último dos homens, em nada o único que eu gostaria de ser; é nisso que ele me designa à passividade, dirigindo-se em mim [moi] ao morrer mesmo.(A responsabilidade de que estou encarregado não é a minha e faz com que eu não seja eu [moi].)

Se, na paciência da passividade, o eu [moi] sai do eu [moi] de tal sorte que, nesse fora, lá onde falta o ser sem que se designe o não-ser, o tempo da paciência, tempo da ausência de tempo, ou tempo do retorno sem presença, tempo do morrer, não tem mais suporte, não encontra mais alguém para portá-lo, suportá-lo, por qual linguagem outra que fragmentária, aquela do estilhaçamento, da dispersão infinita, o tempo pode ser marcado, sem que essa marca o torne presente, o proponha a uma palavra de nominação? Mas o fragmentário do qual não há experiência nos escapa também. O silêncio não ocupa o lugar dele, provavelmente só a reticência daquilo que não sabe mais se calar, não sabendo mais falar.

A morte do Outro: uma morte dupla, pois o Outro é já a morte e pesa sobre mim como a obsessão da morte.

Na relação de mim [moi] a Outrem, Outrem é aquilo que eu não posso atingir, o Separado, o Altíssimo, aquilo que escapa a meu poder e assim o sem-poder, o estrangeiro e o desmunido. Mas, na relação de Outrem a mim [moi], tudo parece se revirar: o longínquo devém o próximo, essa proximidade devém a obsessão que me lesa, pesa sobre mim [moi], me separa de mim [moi], como se a separação (que mensurava a transcendência de mim [moi] a Outrem) fizesse sua obra em mim mesmo, me desidentificando, me abandonando a uma passividade, sem iniciativa e sem presente. E então outrem devém, antes, o Pressionante, o Sobre-eminente, até mesmo o Perseguidor, aquele que me oprime, me constrange, me desfaz, aquele que me obriga não menos do que ele não me contraria ao me fazer responder por seus crimes, ao me encarregar de uma responsabilidade sem medida que não saberia ser a minha, já que ela iria até a «substituição». De tal sorte que, segundo essa visão, a relação de Outrem a mim tenderia a aparecer como sadomasoquista, se ela não nos fizesse tombar prematuramente para fora do mundo - do ser – onde somente normal e anomalia têm um sentido.

Resta que, segundo a designação de Levinas, o outro tomando o lugar do Mesmo, como o Mesmo substitui o Outro por si, é em mim doravante - um eu [moi] sem mim [moi] - que os traços da transcendência (de uma transdescendência) se marcam, o que conduz a essa alta contradição, a esse paradoxo de um alto sentido: é que lá onde a passividade me descobre e me destrói, ao mesmo tempo estou forçado a uma responsabilidade que não somente me excede mas que não posso exercer, já que não posso nada e não existo mais como eu [moi]. É essa passividade

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responsável que seria Dizer, porque, antes de todo dito, e fora do ser (no ser há passividade e há atividade, em simples oposição e correlação, inércia e dinamismo, involuntário e voluntário), o Dizer dá e dá resposta, respondendo ao impossível e pelo impossível.

Mas o paradoxo não suspende uma ambiguidade: se eu [moi] sem mim [moi] estou à prova (sem prová-la) da passividade mais passiva quando outrem me esmaga até à alienação radical, é a outrem que tenho ainda relação, não é, antes, ao « eu [je] » do mestre, ao absoluto da potência egoísta, ao dominador que predomina e que maneja a força até à perseguição inquisitorial? Dito de outro modo, a perseguição que me abre à mais longa paciência e que é em mim a paixão anônima, eu não devo somente responder por isso me encarregando disso fora de meu consentimento, mas devo também responder a ela pela recusa, pela resistência e pelo combate, revindo ao saber (revindo, se for possível – pois pode ser que não haja retorno), ao eu [moi] que sabe, e que sabe que está exposto, não a Outrem, mas ao « Eu [Je] » adverso, à Onipotência egoísta, a Vontade assassina. Naturalmente, por aí, esta me atrai em seu jogo e me faz seu cúmplice, mas é porque é sempre preciso que haja ao menos duas linguagens ou duas exigências, uma dialética, a outra não dialética, uma onde a negatividade é a tarefa, a outra onde o neutro contrasta com o ser e o não-ser, do mesmo modo que seria preciso à vez ser o sujeito livre e falante e desaparecer como o paciente-passivo que atravessa o morrer e que não se mostra.

A fraqueza é o choramento sem lágrimas, o murmúrio da voz queixosa ou o rumor daquilo que fala sem palavras, o esgotamento, o exaurimento da aparência. A fraqueza se esquiva a toda violência que não pode nada (mesmo que ela fosse a soberania opressiva) sobre a passividade do morrer.

Nós falamos sobre uma perda de palavra - um desastre iminente e imemorial -, da mesma maneira que não dizemos nada senão na medida em que podemos fazer entender previamente que nós o desdizemos, por uma espécie de prolepse, não para finalmente não dizer nada, mas para que o falar não pare na palavra, dita ou a dizer ou a desdizer: deixando pressentir que alguma coisa se diz, não se dizendo: a perda de palavra, o choramento sem lágrimas, a rendição que a invisível passividade do morrer anuncia - sem cumpri-la – a fraqueza humana.

Que outrem não tenha outro sentido que o recurso infinito que eu lhe devo, que ele seja o apelo por socorro sem termo ao qual nenhum outro que eu [moi] saberia responder, não me torna insubstituível, menos ainda o único, mas me faz desaparecer no movimento infinito de serviço onde não sou senão um singular temporário, um simulacro de unidade: não posso tirar nenhuma justificação (nem para valer nem para ser) de uma exigência que não se dirige a uma particularidade, não pede nada à minha decisão e me excede de todas as maneiras até me desindividualizar.

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A interrupção do incessante é o próprio da escritura fragmentária: a interrupção tendo em alguma maneira o mesmo sentido que aquilo que não cessa, ambos efeito da passividade; lá onde não reina o poder, nem a iniciativa, nem o inicial de uma decisão, o morrer é o viver, a passividade da vida, escapada a si mesma, confundida com o desastre de um tempo sem presente e que nós suportamos esperando, espera de uma desgraça não por vir, mas sempre já sobrevinda e que não pode se apresentar: nesse sentido, futuro, passado são votados à indiferença, já que um e outro sem presente. Daí que os homens destruídos (destruídos sem destruicão) sejam como que sem aparência, invisíveis mesmo quando os vemos, e que se eles falam, é pela voz dos outros, uma voz sempre outra que de alguma maneira os acusa, os põe em causa, obrigando-os a responder por uma desgraça silenciosa que eles portam sem consciência.

É como se ele dissesse: «Que possa a felicidade vir para todos, com a condição de que, por esse anelo, eu seja excluído dela».

Se Outrem não é meu inimigo (como ele o é às vezes em Hegel - mas um inimigo benevolente – e, sobretudo, em Sartre em sua primeira filosofia), como ele pode devir aquele que me arranca à minha identidade e cuja pressão em qualquer espécie de posição – aquela do próximo - me fere, me fatiga, me persegue me atormentando de tal sorte que eu [moi] sem mim [moi] devenha responsável desse tormento, dessa lassidão que me destitui, a responsabilidade sendo o extremo do submetimento: aquilo pelo qual é preciso que eu responda, enquanto estou sem resposta e estou sem mim [moi], salvo por empréstimo e por simulacro ou pelo « lugar-tenente» do mesmo: o lugar-tenente canônico. A responsabilidade seria a culpabilidade inocente, o golpe desde sempre recebido que me torna tanto mais sensível a todos os golpes. É o traumatismo da criação ou do nascimento. Se a criatura é «aquele que deve sua situação ao favor do outro», eu sou criado responsável, de uma responsabilidade anterior ao meu nascimento, assim como ela é exterior ao meu consentimento, à minha liberdade, nascido, por um favor que se acha ser uma predestinação, à desgraça de outrem, que é a desgraça de todos. Outrem, diz Levinas, é constrangedor, mas não é de novo a perspectiva sartriana: a náusea que nos dá, não a falta de ser, mas o demasiado de ser, um excedente do qual eu gostaria de me desinvestir, mas do qual eu não saberia me desinteressar, pois, até no desinteresse, é ainda o outro que me vota a ocupar seu lugar, a não ser mais do que seu lugar-tenente?

Eis aqui talvez uma resposta. Se Outrem me põe em questão até me desnudar de mim, é porque ele mesmo é o absoluto desnudamento, a suplicação que desconfessa o eu [moi] em mim [moi] até o suplício.

O não-concernente (nesse sentido de que um [moi] e o outro não podem ocupar juntos o mesmo espaço, nem se reunir num mesmo tempo: ser contemporâneos), é

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de saída outrem para mim [moi], depois também eu [moi] como outro do que eu [moi], isso que em mim [moi] não coincide comigo [moi], minha eterna ausência, o que nenhuma consciência pode readquirir, que não tem nem efeito nem eficácia e que é o tempo passivo, o morrer que me é, ainda que sem partilha, comum com todos.

Outrem, não posso acolhê-lo, mesmo que fosse por uma aceitação infinita. Tal é o traço novo e difícil da intriga. Outrem, como próximo, é a relação que eu não posso suster e cuja aproximação é a morte mesma, a vizinhança mortal (quem vê Deus morre: é que «morrer» é uma maneira de ver o invisível, uma maneira de dizer o indizível – a indiscrição em que Deus, devindo em alguma maneira e necessariamente deus sem verdade, se renderia à passividade).

Se não posso acolher o Outro na intimação que exerço até me extenuar, é então pela só fraqueza desajeitada (o «apesar de tudo» infeliz, minha parte de derrisão e de loucura) que sou chamada a entrar nessa relação outra, com meu eu [moi] gangrenado e roído, alienado de uma parte à outra (assim, é por entre os leprosos e os mendigos sob as fortalezas de Roma que os judeus dos primeiros séculos pensavam descobrir o Messias).

Enquanto o outrem for o longínquo (o rosto que vem do absolutamente longínquo e dele porta o rastro, rastro de eternidade, de imemorial passado), só a relação ao qual me ordena o outrem do rosto, no rastro do ausente, é para-além do ser – aquilo que não é então o si mesmo ou a ipseidade (Levinas escreve: « para além do ser, está uma Terceira pessoa que não se define pelo si mesmo»). Mas quando outrem não é mais o longínquo, mas o próximo que pesa sobre mim [moi] até me abrir à radical passividade do si, a subjetividade enquanto exposição ferida, acusada e perseguida, enquanto sensibilidade abandonada à diferença, tomba por seu turno para fora do ser, significa o para-além do ser, no dom mesmo - a doação de signo - que seu sacrifício desmedido entrega a outrem: ela é, ao mesmo título que outrem e que o rosto, o enigma que desarranja a ordem e contrasta com o ser: a exceção do extraordinário, a colocação para fora do fenômeno, para fora da experiência.

A passividade e a questão: a passividade talvez esteja na ponta da questão, mas ela lhe pertence ainda? O desastre pode ser interrogado? Onde encontrar a linguagem em que resposta, questão, afirmação, negação, intervêm talvez, mas são sem efeito? Onde está o dizer que escapa a toda marca, aquela da predição, assim como aquela da interdição?

Quando Levinas define a linguagem como contato, ele a define como imediatidade, e isso é denso de conseqüências; pois a imediatidade é a absoluta presença, isso que abala tudo e inverte tudo, o infinito sem abordagem, sem ausência, e não mais uma exigência, mas o rapto de uma fusão mística. A

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imediatidade não é somente o afastamento de toda mediação, mas o imediato é o infinito da presença do qual não se pode mais falar, já que a relação ela mesma – que ela seja ética ou ontológica – de um só golpe queimou numa noite sem trevas: não há mais termos, não há mais relação, não há mais para além - Deus mesmo se nadificou nisso.Ou então seria preciso poder entender o imediato no passado. Aquilo que torna o paradoxo quase insustentável. É assim que nós poderíamos falar de desastre. O imediato, nós não podemos pensar nele mais do que não podemos pensar num passado absolutamente passivo cuja paciência em nós face a uma desgraça esquecida seria a marca, o prolongamento inconsciente. Quando somos pacientes, é sempre por relação a uma desgraça infinita que não nos atinge no presente, mas ao nos reportar a um passado sem memória. Desgraça de outrem e outrem como desgraça.

Responsabilidade: essa palavra banal, essa noção cuja moral mais fácil (a moral política) nos faz um dever, é preciso tentar entender como Levinas a renovou, a abriu até fazê-la significar (para além de todo sentido) a responsabilidade de uma filosofia outra (que permanece, entretanto, em muitos aspectos, a filosofia eterna1). Responsável: isso qualifica, em geral, prosaica e burguesamente, um homem maduro, lúcido e consciente, que age com medida, dá-se conta de todos os elementos da situação, calcula e decide, o homem de ação e de êxito. Mas eis que a responsabilidade – responsabilidade de mim [moi] por outrem, por todos, sem reciprocidade - se desloca, não pertence mais à consciência, não é a colocação em obra de uma reflexão agente, não é mesmo um dever que se imporia do fora e do dentro. Minha responsabilidade por Outrem supõe um abalo tal que ele não pode se marcar senão por uma mudança de estatuto de « eu [moi] », uma mudança de tempo e talvez uma mudança de linguagem. Responsabilidade que me retira da minha ordem - talvez de toda ordem - e, afastando-me de mim [moi] (mesmo que eu [moi] seja o mestre, o poder, o sujeito livre e falante), descobrindo o outro no lugar de mim [moi], me dá a responder pela ausência, pela passividade, quer dizer, pela impossibilidade de ser responsável, à qual essa responsabilidade sem medida sempre já me votou me devotando e me desviando. Mas paradoxo que não deixa nada intacto, muito menos a subjetividade do que o sujeito, o indivíduo do que a pessoa. Pois se, da responsabilidade, não posso falar senão a separando de todas as formas da consciência-presente (vontade, resolução, interesse, luz, ação reflexiva, mas

1 Nota mais tardia. Que não haja demasiado equívoco: a « filosofia eterna», na medida em que não há ruptura de aparência com a linguagem dita « grega» em que se guarda a exigência de universalidade; mas o que se enuncia, ou antes, se anuncia com Levinas, é uma excedente, um para-além do universal, uma singularidade que se pode dizer judia e que espera ser ainda pensada. Nisso profética. O judaísmo como o que ultrapassa o pensamento de sempre por ter sido sempre já pensado, mas porta, entretanto, a responsabilidade do pensamento por vir, eis o que nos dá a filosofia outra de Levinas, carga e esperança, carga da esperança.

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talvez também o não-voluntário, o inconsentido, o gratuito, o inagente, o obscuro que releva da consciência-inconsciência), se ela se enraíza lá onde não há mais fundamento, onde nenhuma raiz pode se fixar, se portanto ela atravessa toda base e não pode ser tomada a cargo por nada de individual, como, de modo outro que como resposta ao impossível, por uma relação que me interdita de me pôr a mim mesmo, mas somente de me pôr como sempre já suposto (aquilo que me entrega ao totalmente passivo), sustentaremos o enigma daquilo que se anuncia, nesse vocábulo do qual a linguagem da moral ordinária faz o uso mais facil ao colocá-lo ao serviço da ordem? Se a responsabilidade é tal que ela retira o eu [moi] do eu [moi], o singular do individual, o subjetivo do sujeito, a não-consciência de todo consciente e inconsciente, para me expor à passividade sem nome, ao ponto em que é através da passividade somente que devo responder à exigência infinita, então posso certamente chamá-la de responsabilidade, mas por abuso e, também justamente, por seu contrário e simplesmente sabendo que o fato de se reconhecer responsável de Deus não é senão um meio metafórico de anular a responsabilidade (a obrigação de ser desobrigado), do mesmo modo que, declarado responsável do morrer (de todo morrer), não posso mais chamar por nenhuma ética, nenhuma experiência, nenhuma prática, qualquer que seja - salvo aquela de um contra-viver, quer dizer, de uma não-prática, quer dizer (talvez) de uma palavra de escritura.Resta que, contrastando com a nossa razão e sem, todavia, nos entregar às facilidades de um irracional, essa palavra responsabilidade vem como que de uma linguagem desconhecida que nós não falamos senão a contragosto, a contra-vida e numa injustificação semelhante àquela em que estamos em relação a toda morte, a morte do Outro como a nossa sempre imprópria. Seria, pois, preciso justamente se virar em direção a uma língua jamais escrita, mas sempre a prescrever, para que essa palavra incompreensível seja entendida em sa densidade desastrosa e nos convidando a nos virar em direção ao desastre sem compreendê-lo, nem suportá-lo. Daí que ela seja ela mesma desastrosa, a responsabilidade que jamais alivia Outrem (nem me alivia dele), e nos torna mudos da palavra que nós lhe devemos.Resta ainda que a proximidade do mais longínquo, a pressão do mais leve, o contacto daquilo que não atinge, é pela amizade que posso responder a eles, uma amizade sem partilha, bem como sem reciprocidade, amizade para aquilo que passou sem deixar rastros, resposta da passividade à não-presença do desconhecido.

A passividade é uma tarefa - isso na linguagem outra, aquela da exigência não dialética -, da mesma maneira que a negatividade é uma tarefa: isso quando a dialética nos propõe o cumprimento de todos os possíveis, por pouco que saibamos (cooperando nisso pelo poder e pela maestria no mundo) deixar o tempo tomar todo o seu tempo. A necessidade de viver e de morrer dessa dupla palavra e na ambiguidade de um tempo sem presente e de uma história capaz de esgotar (a fim de aceder ao contentamento da presença) todas as possibilidades do tempo: eis a decisão irreparável, a loucura inevitável, que não é o conteúdo do pensamento, pois o pensamento não a contém, não mais do que nem a consciência nem a

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inconsciência lhe tiram um estatuto para determiná-la. Donde a tentação de fazer apelo à ética com sua função conciliadora (justiça e responsabilidade), mas quando a ética por seu turno devém louca, como ela deve ser, o que ela nos traz senão um salvo-conduto que não deixa à nossa conduta nenhum direito, nenhum lugar, nem nenhuma salvação: somente a aturação da dupla paciência, pois ela é dupla, ela também, paciência mundana, paciência imunda.

O uso da palavra subjetividade é tão enigmático quanto o uso da palavra responsabilidade - e mais contestável, pois é uma designação que é como que escolhida para salvar nossa parte de espiritualidade. Por que subjetividade, senão a fim de descer ao fundo do sujeito, sem perder o privilégio que este encarna, essa presença privada que o corpo, meu corpo sensível, me faz viver como minha? Mas se a pretensa «subjetividade» é o outro no lugar de mim [moi], ela não é mais subjetiva que objetiva, o outro é sem interioridade, o anônimo é seu nome, o fora seu pensamento, o não-concernente seu alcance e o retorno seu tempo, do mesmo modo que a neutralidade e a passividade de morrer seriam sua vida, se esta é o que é necessário acolher pelo dom do extremo, dom daquilo que (no corpo e pelo corpo) é o não-pertencimento.

Passividade não é simples recepção, não mais do que ela não seria a informe e a inerte matéria pronta para toda forma - passivas, as impelidas de morrer (o morrer, silenciosa intensidade; aquilo que não se deixa acolher, aquilo que se inscreve sem palavra, o corpo no passado, corpo de ninguém, o corpo do intervalo: suspensão do ser, síncope como recorte do tempo e que não podemos evocar senão como a história selvagem, inenarrável, não tendo sentido presente). Passivo: o não-relato, aquilo que escapa à citação e que a lembrança não relembraria – o esquecimento como pensamento, quer dizer, aquilo que não saberia ser esquecido porque sempre já tombado para fora da memória.

Chamo de desastre o que não tem o último por limite: aquilo que arrasta o último no desastre.

O desastre não me põe em questão, mas levanta a questão, a faz desaparecer, como se com ela « eu» [je] desaparecesse no desastre sem aparência. O fato de desaparecer não é precisamente um fato, um evento, isso não chega, não somente porque – trata-se da suposição mesma – não há « eu» [je] para sofrer-lhe a experiência, mas porque não seria possível haver uma experiência disso, se o desastre tem sempre lugar após ter tido lugar.

Quando o outro se relaciona a mim [moi] de tal modo que o desconhecido em mim [moi] lhe responda em meu lugar, essa resposta é a amizade imemorial que não se deixa escolher, não se deixa viver no atual: a parte oferecida da passividade sem

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sujeito, o morrer fora de si, o corpo que não pertence a ninguém, no sofrimento, no gozo não narcísicos.

A amizade não é um dom, uma promessa, a generosidade genérica. Relação incomensurável de um com o outro, ela é o fora religado em sua ruptura e em sua inacessibilidade. O desejo, puro desejo impuro, é a chamada a transpor a distância, chamada a morrer em comum pela separação. A morte, num só golpe, impotente, se a amizade é a resposta que não se pode entender e fazer entender senão morrendo incessantemente.

Guardar o silêncio. O silêncio não se guarda, ele é sem resguardo para a obra que pretenderia guardá-lo - é a exigência de uma espera que não tem nada a esperar, de uma linguagem que, supondo-se totalidade de discurso, se dispensaria de um golpe só, se desuniria, se fragmentaria sem fim.

Como ter relação com o passado passivo, relação que, ela mesma, não saberia se apresentar na luz de uma consciência (nem se ausentar da obscuridade de uma inconsciência)?

O renunciamento ao eu-sujeito [moi-sujet] não é um renunciamento voluntário, portanto não mais uma abdicação involuntária; quando o sujeito se faz ausência, a ausência de sujeito ou o morrer como sujeito subverte toda a frase da existência, faz o tempo sair de sua ordem, abre a vida à sua passividade, expondo-a ao desconhecido da amizade que jamais se declara.

A fraqueza não saberia ser humana mesmo se é no homem a parte inumana, a gravidade do não-poder, a leveza despreocupada da amizade que não pesa, não pensa - o não-pensamento pensante, essa reserva do pensamento que não se deixa pensar.A passividade não consente, não recusa: nem sim nem não, sem grado, só lhe conviria o ilimitado do neutro, a paciência inamestrada que atura o tempo sem lhe resistir. A condição passiva é uma incondição: é um incondicional que nenhuma proteção mantém sob abrigo, que não atinge destruição, fora de submissão assim como sem iniciativa - com ela, nada começa, lá onde nós entendemos a palavra sempre já falada (muda) do recomeço, nós nos aproximamos da noite sem trevas. É o irredutível-incompatível, o que não é compatível com a humanidade (o gênero humano). A fraqueza humana que mesmo a desgraça não divulga, o que nos transe pelo fato de que a cada instante pertencemos ao passado imemorial de nossa morte - por aí indestrutíveis enquanto sempre e infinitamente destruídos. O infinito de nossa destruição é a medida da passividade. Levinas fala da subjetividade do sujeito; se se quer manter essa palavra – por quê? Mas por que não? -, seria preciso talvez falar de uma subjetividade sem sujeito, o

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local ferido, o machucado do corpo morrendo já morto do qual ninguém saberia ser proprietário ou dizer: eu [moi], meu corpo, isso que anima o só desejo mortal: desejo de morrer, desejo que passa pelo morrer impróprio sem nele passar além de si mesmo.A solidão ou a não-interioridade, a exposição ao fora, a dispersão fora de encerramento, a impossibilidade de se manter firme, fechado – o homem privado de gênero, o suplente que não é suplemento de nada.

Responder: há a resposta à questão -, a resposta que torna a questão possível -, aquela que a redobra, a faz durar e não a apazigua, ao contrário lhe concede um novo esplendor, lhe assegura um corte -, há a resposta interrogativa; enfim, à distância do absoluto, haveria essa resposta sem interrogação à qual nenhuma questão convirá, resposta da qual não sabemos que fazer, se só pode recebê-la a amizade que a dá. O enigma (o segredo) é precisamente a ausência de questão - lá onde não há mesmo o lugar para introduzir uma questão, sem que, entretanto, essa ausência faça resposta. (A palavra críptica)

A paciência do conceito: de saída renunciar ao começo, saber que o Saber não é jamais jovem, mas sempre além da idade, de uma senescência que não pertence à velhice; em seguida, que não é preciso findar demasiado rápido, que o fim é sempre prematuro, que ele é a pressa do Finito no qual uma vez por todas se quer se confiar sem pressentir que o Finito não é senão o redobramento do infinito.

Não responder ou não receber resposta é a regra: isso não é suficiente para deter as questões. Mas, quando a resposta é ausência de resposta, a questão, por seu turno, devém a ausência de questão (a questão mortificada), a palavra passa, faz retorno a um passado que jamais falou, passado de toda palavra. É nisso que o desastre, embora nomeado, não figura na linguagem.

Bonaventura: « Em várias ocasiões, expulsaram-me das igrejas porque lá eu ria, e dos lupanares porque eu queria rezar lá». O suicídio: « Não deixo nada para trás de mim, e é cheio de desafios que parto a teu encontro, Deus - ou Nada». « A Vida não é senão a camisa xadrez que o Nada usa... Tudo é nada... Por essa parada do Tempo, os loucos entendem a eternidade, mas em verdade é o Nada perfeito, e a morte absoluta, já que, ao contrário, a vida não nasce senão de uma morte ininterrompida (se nós resolvêssemos tomar essas ideias até o fundo, isso nos levaria prontamente para entre os loucos, mas, quanto a mim, não as tomo senão em polichinelo..). » Fichter: « Na natureza, toda morte é ao mesmo tempo nascimento, e é na morte precisamente que a vida chega a seu apogeu», e Novalis: «Uma ligação concluída para a morte é uma núpcia que nos concede uma companheira para a noite»; mas Bonaventura não encara jamais a morte como a relação com uma esperança de transcendência: « Deus seja louvado! Há uma morte, e, depois, não há eternidade».

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A paciência é a urgência extrema: não tenho mais o tempo, diz a paciência (ou o tempo que lhe é deixado é ausência de tempo, tempo de antes do começo - tempo do não-aparecimento em que se morre não fenomenalmente, no desconhecimento de todos e de si mesmo, sem frases, sem deixar rastros e, portanto, sem morrer: pacientemente).

Bonaventura: « Eu me vi só comigo mesmo no Nada... Com o Tempo, toda diversidade desaparecera, e não reinava mais nada senão um imenso e apavorante tédio, vazio para todo sempre. Fora de mim, tentei me tornar Nada, mas eu permanecia, e me sentia imortal».

A afirmação, frequentemente mal citada ou facilmente traduzida, de Novalis: o verdadeiro ato filosofico é o levar à morte de si mesmo (o morrer de si, si como morrer, Selbsttötung e não Selbstmord, o movimento mortal do mesmo ao outro). O suicídio como movimento mortal do mesmo não pode jamais ser projetado, porque o evento do suicídio se cumpre no interior de um círculo no intervalo de todo projeto, talvez de todo pensamento ou de toda verdade – assim ele é sentido como inverificável, até mesmo incognoscível, e toda razão que se dá dele, por tão justa que ela seja, parece sem conveniência. Matar-se é se estabelecer no espaço interdito a todos, quer dizer, a si mesmo: a clandestinidade, o não fenomenal da relação humana é a essência do «suicídio» sempre escondido, menos porque a morte está nela em jogo do que porque morrer - a passividade mesma – nela devém ação e se mostra no ato de se esquivar, fora do fenômeno. Quem é tentado pelo suicídio é tentado pelo invisível, secreto sem rosto.Há razões para se dar a morte e o ato do suicídio não é desrazoável, mas ele encerra aquele que crê cumpri-lo num espaço definitivamente subtraído à razão (bem como a seu avesso, o irracional) alheio ao querer e talvez ao desejo, de sorte que aquele que se mata, mesmo se busca o espetáculo, escapa a toda manifestação, entra numa zona de «opacidade maléfica» (diz Baudelaire) e onde, toda relação consigo mesmo como com o outro sendo rompida, reina a irrelação, a diferença paradoxal, definitiva e solene. Isso se passa antes de toda decisão livre, sem necessidade e como que por acaso: no entanto, sob uma pressão tal que não há nada de bastante passivo em si para conter (e mesmo sofrer) a atração disso.

Do pensamento, é preciso dizer de saída que ele é a impossibilidade de se deter em nada de definido, portanto, de pensar nada de determinado e que assim ele é a neutralização permanente de todo pensamento presente, ao mesmo tempo que a repudiação de toda ausência de pensamento. A oscilação (a igualdade paradoxal) é o risco do pensamento entregue a essa dupla exigência e que ignora que ele precisa ser soberanamente paciente, quer dizer, passivo fora de toda soberanidade.

A paciência, perseverança retardada.

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Não pensamento passivo, mas eu chamaria por um passivo de pensamento, por um sempre já passado do pensamento, aquilo que, no pensamento, não saberia se tornar presente, entrar em presença, ainda menos se deixar representar ou se constituir em fundo para uma representação. Passivo do qual nada de outro pode ser dito, senão que ele interdita toda presença de pensamento, todo poder de conduzir o pensamento até à presença (até ao ser), sem, entretanto, confinar o pensamento em uma reserva, uma retração para fora da presença, mas deixando-a em proximidade - proximidade de distanciamento – com o outro, o pensamento do outro, o outro como pensamento.

Quando tudo está dito, o que resta para dizer é o desastre, ruína de palavra, desfalecimento pela escritura, rumor que murmura... o que resta sem resto (o fragmentário).

O passivo não tem que ter lugar, mas, implicado na virada que, afastando-se da volta, se faz por meio dela rodeio, ele é o tormento do tempo que, tendo sempre já passado, vem como retorno sem presente, vindo sem advir na paciência da época, época inenarrável, destinada à intermitência de uma linguagem descarregada de palavra, desapropriada, e que é a parada silenciosa daquilo a que sem obrigação é preciso, entretanto, responder. Responsabilidade de uma escritura que se marca se demarcando, quer dizer talvez – no limite – se apagando (tão logo como em longo tempo – é preciso todo o tempo para isso), na medida em que ela parece deixar rastros eternos ou ociosos.

Fragmento: além de toda fratura, de todo estilhaço, a paciência de pura impaciência, o pouco a pouco do subitamente.

O outro não está em relação senão com o outro: ele se repete sem que essa repetição seja repetição de um mesmo, redobrando-se desdobrando-se ao infinito, afirmando, fora de todo futuro, presente, passado (e por aí o negando), um tempo que sempre já fez seu tempo. O Outro não saberia aceitar se afirmar como Todo Outro, pois que a alteridade não o deixa em repouso, trabalhando-o de uma maneira improdutiva, deslocando-o de um nada, de um todo, fora de toda medida, de tal sorte que, escapando ao reconhecimento da lei como a uma qualquer nominação, nominação, desejo sem desejante nem desejado, ele marca o segredo - a separação - do morrer em jogo em todo vivente como aquilo que o afasta (sem cessar, pouco a pouco e cada vez num só golpe) de si como idêntico, como simples e devir vivente.

O que sobre Platão nos ensina Platão no mito da caverna, é que os homens em geral são privados do poder ou do direito de virar ou de se revirar.

Trocar ideias não somente seria se desviar de dizer aquilo que é pela palavra - o presente de uma presença -, mas é, mantendo a palavra fora de toda unidade, mesmo

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que seja a unidade daquilo que é, desviá-la dela mesma deixando-a diferir, respondendo por meio de um sempre já a um jamais ainda.

Na caverna de Platão, nenhuma palavra para significar a morte, nenhum sonho ou nenhuma imagem para fazer pressentir a infigurabilidade da morte. Na caverna a morte está em excesso, em esquecimento, sobrevindo do fora na boca do filósofo como o que o reduz previamente ao silêncio ou para perdê-lo na derrisão de um semblante de imortalidade, perpetuação de sombra. A morte não é nomeada senão como necessidade de matar aqueles que, tendo se liberado, tendo tido acesso à luz, revêm e revelam, desarranjando a ordem, perturbando a tranquilidade do abrigo, assim desabrigando. A morte é o ato de matar. E o filósofo é aquele que sofre a violência suprema, mas a chama também, porque a verdade que ele porta e diz pelo retorno é uma forma de violência.

A morte irônica: a de Sócrates talvez carregando-se a si mesma para a morte e assim a tornando tão discreta quanto irreal. E se a «possibilidade » da escritura está ligada à «possibilidade» da ironia, nós compreendemos por que uma e outra são sempre decepcionantes, não podendo ser reivindicadas, excluindo toda maestria (cf. Sylviane Agacinski).

Do sonho não saberíamos nos lembrar; se ele vem a nós - mas de qual vinda? Através de qual noite? – não é senão pelo esquecimento, um esquecimento que não é somente de censura ou de recalque. Sonhando sem memória, de uma maneira tal que todo sonho temporário seria um fragmento de resposta a um morrer imemorial riscado pela repetição do desejo.Não há cessação, não há interrupção entre sonho e despertar. Nesse sentido, é possível dizer: jamais, sonhador, tu podes te despertar (nem, ao resto, te deixar assim chamar, interpelar).

O sonho é sem fim, a vigília sem começo, nem um nem a outra voltam a se unir. Só a palavra dialética os põe em relação em vista de uma verdade.

Pensando de forma outra do que ele pensa, de tal sorte que o Outro venha ao pensamento como abordagem e resposta.

O escritor, sua biografia: morreu, viveu e morreu.

Se o livro pudesse por uma primeira vez verdadeiramente estrear, ele teria por uma derradeira vez desde muito tempo adquirido o fim.

O que nos faz recear e desejar o novo, é que o novo combate contra a verdade (estabelecida), combate dos mais antigos em que sempre pode se decidir alguma coisa de mais justo.

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Antes que ele esteja lá, ninguém o espera: quando está lá, ninguém o reconhece: é que ele não está lá, o desastre que já desviou a palavra estar, cumprindo-se enquanto ele não começou: rosa desabrochada em botão.

Quando tudo se obscureceu, reina o aclaramento sem luz que certas palavras anunciam.

Louvando a vida sem a qual não seria dado viver segundo o movimento de morrer.

O traço do desastre: o triunfo, a glória não lhe são opostos, muito menos lhe pertencem, apesar do lugar comum que prevê no auge já o declínio; ele não tem contrario e não é o Simples. (Daí que nada lhe seja mais estrangeiro do que a dialética, mesmo que ela fosse reduzida a seu momento destruidor).

Ele nos interroga: o que fazemos, como vivemos, quais são nossos amigos. Ele é discreto, como se suas questões não questionassem. E quando, por nossa vez, lhe perguntamos o que ele faz, ele sorri, se levanta, e é como se ele jamais tivesse estado presente. As coisas seguem seu curso. Ele não nos desarranja.

A inexperiência de morrer, isso quer dizer também: o mau-jeito em morrer, morrendo como alguém que não aprendeu ou que faltou às aulas.

O inusitado, o novo, porque ele não pode tomar lugar na história, é também aquilo que há de mais antigo, alguma coisa de não histórico ao qual somos chamados a responder como se fosse o impossível, o invisível, aquilo que desde sempre tem desaparecido sob os escombros.

Como saberíamos que somos precursores, se a mensagem que deveria fazer de nós mensageiros, nos precede em uma eternidade, nos votando a ser eternos retardatários? Somos precursores, correndo para fora de nós, adiante de nós; quando chegamos, nosso tempo é já passado, o curso, interrompido.

Se a citação, em sua força morselar, destrói de antemão o texto ao qual ela não é somente arrancada, mas que ela exalta até não ser senão arrancamento: o fragmento sem texto nem contexto é radicalmente incitável.

Por que todas as desgraças, finitas, infinitas, pessoais, impessoais, de agora, de sempre, tinham por subentendido, relembrando-a sem cessar, a desgraça historicamente datada, no entanto sem data, de um país já tão reduzido que parecia quase apagado do mapa e cuja história, entretanto, desbordava a história do mundo? Por quê?

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Ele escreve – ele escreve? - não porque os livros dos outros o deixariam insatisfeito (ao contrário, todos eles lhe agradam), mas porque são livros e que no escrever não se encontra seu contento.

Escrever para que o negativo e o neutro, em sua diferença sempre recoberta, na mais perigosa das proximidades, se relembrem um ao outro sua especificidade, um trabalhando, o outro desobrando.

O hoje é pobre; essa pobreza que lhe seria essencial, se ela não estivesse nesse tal ponto extremo que ela está tão desnudada de essência, lhe permite não chegar a uma presença, nem se atardar no novo ou no antigo de um agora.

Escreve para não somente destruir, para não somente conservar, para não transmitir, escreve sob a atração do impossível real, essa parte de desastre onde soçobra, salva e intacta, toda realidade.

Confiança na linguagem: ela se situa na linguagem - desfiança da linguagem: é ainda a linguagem que se desfiaria de si mesma, encontrando em seu espaço os princípios inabaláveis de uma crítica. De onde o recurso à etimologia (ou sua recusação); de onde o apelo aos divertimentos anagramáticos, às transposições acrobáticas destinados a multiplicar as palavras ao infinito sob pretexto de corrompê-las, mas em vão - tudo isso justificado com a condição de usá-los (recursos e recusação) à vez, no mesmo tempo, sem neles crer e sem parada. O desconhecido da linguagem permanece desconhecido.A confiança-desfiança na linguagem é já fetichismo, escolhendo tal palavra para com ela jogar no gozo e no mal-estar da perversão que supõe sempre, dissimulado, um bom uso. Escrever, desvio que afastaria o direito a uma linguagem, mesma que fosse ela pervertida, anagramatizada - desvio da escritura, que sempre des-creve, amizade para o desconhecido mal vindo, « real » escapando a toda monstração, a toda possível palavra.Escritor apesar de si mesmo: não se trata de escrever apesar de ou contra si numa relação de contradição, até de incompatibilidade a si, ou à vida, ou à escritura (isso é a biografia da anedota), mas numa outra relação da qual o outro se afastou e sempre nos afastou até no movimento de atração - donde os nomes vãos de real, de glória ou de desastre pelos quais aquilo que se separa da linguagem se consagra a eles ou tomba, talvez por perda de paciência. Pois poderia ser que todo nome - e precisamente o derradeiro, o impronunciável – fosse ainda um efeito de impaciência.

A luz lampeja - lampejo, o que, na claridade, se clama e não clareia (a dispersão que ressoa ou vibra até o deslumbramento). Lampejo, a retumbância destroçante de uma linguagem sem entendimento.

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Morrer sem meta: por aí (esse movimento de imobilidade), o pensamento tombaria para fora de toda teleologia e talvez para fora de seu sítio. Pensar sem meta assim como se morre, é o que parece que impõe, em termos não de gratuidade, mas de responsabilidade, a paciência em sua perseverança inocente – de onde o pisar do desconhecido sem linguagem, lá em nossa porta, sobre a soleira. Pensar como se morre: sem meta, sem poder, sem unidade e precisamente sem «como» - de onde a nadificação da formulação desde que ela é pensamento, quer dizer, pensamento de cada lado, em desequilíbrio, em excesso de sentido e em excesso sobre o sentido - saída, fora.Pensar como morrer exclui o «como» do pensamento, de modo que, mesmo se o suprimimos por simplificação paratática, escrevendo pensar: morrer, ele forma enigma até em sua ausência, espaço quase intransponível; a irrelação de pensar e de morrer é também a forma de suas relações, não que pensar procede em direção a morrer, procedendo em direção a seu outro, mas muito menos em direção a seu mesmo. É daí que « como » toma seu arrebatamento nem outro nem mesmo.Há uma espécie de declínio de ascendência entre pensar e morrer: quanto mais pensamos na ausência de pensamento (determinado), mais nos elevamos, de marcha em marcha, rumo ao precipício, a queda a pique, a expiração pela cabeça. Pensar não é senão ascensão ou declínio, mas não tem pensamento determinado para parar e se retornar em direção a si – daí sua vertigem que é, entretanto, igualdade, como morrer é sempre igual, sempre tábua (letal).

Se o espírito é o que há de sempre ativo, a paciência é já o não-espírito, o corpo em sua passividade sofrente, cadavérica, exposta ou superficial, o grito sob a palavra, o não-espiritual do escrito: nesse sentido a vida mesma, como sombra da vida, o dom ou despesa vivente até morrer.

« Já » ou « sempre já » é a marca do desastre, o fora da história histórica: o que nós - quem não é nós? – sofreremos antes de tê-lo sofrido, o transe como o passivo do passo [pas] além. O desastre é a impropriedade de seu nome, e a desaparição do nome próprio (Derrida), nem nome (nem verbo, mas um resto que riscaria de invisibilidade e de ilegibilidade tudo o que se mostra e tudo o que se diz: um resto sem resultado nem réliquo - a paciência ainda, o passivo, quando se detém o Aufhebung devindo o inoperável. Hegel: «Inocência somente é o não-fazer (a ausência de operação)». O desastre é esse tempo em que não se pode mais pôr em jogo, por desejo, astúcia ou violência, a vida que se busca, por esse jogo, manter ainda, tempo em que o negativo se cala e aos homens sucedeu a infinita calma (a efervescência) que não se encarna e não se torna inteligível.

Eles não pensam na morte, não tendo relação senão com ela.

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Uma leitura daquilo que foi escrito: aquele que amestra a morte (a vida-finita), desencadeia o infinito do morrer.

A passividade da linguagem: caso se se sirva, falseando-a um pouco, da linguagem hegeliana, pode-se afirmar que o conceito é a morte, o fim da vida natural e espiritual, e que morrer é o obscuro da vida, esse além da vida, sem agir, sem fazer, sem ser, a vida sem morte que é então o perecível mesmo, o eternamente perecível que nos transe, enquanto, interminavelmente, findamos de falar, falando como depois do termo, escutando sem falar o eco daquilo que sempre já passou, passando entretanto: a passagem.

O outro é sempre outrem, e outrem é sempre seu outro, liberado de toda propriedade, de todo sentido próprio, assim além de toda marca de verdade e de todo sinal de luz.

Morrer é, falando absolutamente, a iminência incessante pela qual, entretanto, a vida dura desejando. Iminência daquilo que sempre já se passou.

O sofrimento sofre por ser inocente - assim ele busca devir culpado para se aliviar. Mas a passividade nele se esquiva a toda falta: passivo fora de falha, sofrimento salvo do pensamento da salvação.

Não há desastre senão porque o desastre incessantemente falta a si mesmo. Fim da natureza, fim da cultura.

Perigo de que o desastre tome sentido em lugar de tomar corpo.

Escrever, «formar» no informal um sentido ausente. Sentido ausente (não ausência de sentido, nem sentido que faltaria ou potencial ou latente). Escrever talvez seja trazer à superfície alguma coisa como sentido ausente, acolher o impulso passivo que não é ainda o pensamento, sendo já o desastre do pensamento. Sua paciência. Entre ele e o outro, haveria o contato, a desligação de sentido ausente – a amizade. Um sentido ausente manteria «a afirmação» do impulso para além da perda; o impulso de morrer arrastando consigo a perda, a perda perdida. Sentido que não passa pelo ser, por baixo do sentido - suspiro do sentido, sentido expirado. De onde a dificuldade de um comentário de escritura; pois o comentário significa e produz significação, não podendo suportar um sentido ausente.

Desejo da escritura, escritura do desejo. Desejo do saber, saber do desejo. Não acreditemos que tenhamos dito alguma coisa por essas reversões. Desejo, escritura não permanecem no lugar, passam um acima do outro: esses não são jogos de palavras, pois o desejo é sempre desejo de morrer, não um anelo. Entretanto, em relação com Wunsch, também não-desejo, potência impotente que atravessa o

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escrever, como o escrever é a dilaceração desejada, não desejada, sofrendo bem até a impaciência. Desejo que morre, desejo de morrer, vivemos isso juntos, sem coincidência, na obscuridade do prazo.

Fazer vigília sobre o sentido ausente.

Confirma-se – na e pela incerteza - que todo fragmento não está em relação com o fragmentário. O fragmentário, «potência» do desastre do qual não há experiência, e a intensidade desastrosa, fora de prazer, fora de gozo, se marca, quer dizer demarca: o fragmento seria essa marca, sempre ameaçada por algum êxito. Não seria possível haver fragmento com êxito, satisfeito ou indicando a saída, a cessação do erro, mesmo que fosse apenas porque todo fragmento, mesmo único, se repete, se desfaz pela repetição.Relembremo-nos. Repetição: repetição não religiosa, sem lamento nem nostalgia, retorno não desejado. Repetição: repetição do extremo, desmoronamento geral, destruição do presente.

O saber não se afina nem se alivia senão nos confins, quando a verdade não constitui mais a instância à qual seria preciso que ele se submetesse finalmente. O não-verdadeiro que não é o falso, atrai o saber para fora do sistema, no espaço de uma deriva em que as palavras-chave não dominam mais, em que a repetição não é um operador de sentidos (mas o desmoronamento do extremo), em que o saber, sem passar ao não-saber, não depende mais dele mesmo, não resulta nem produz um resultado, mas muda imperceptivelmente, apagando-se: não mais saber, mas efeito de saber.No saber que sempre deve se liberar do saber, não há saber anterior, ele não se sucede a si mesmo, não há, pois, muito menos uma presença de saber. Não apliques um saber, não o repitas. Fim da teoria que detém e organiza o saber. Espaço aberto à « teoria fictícia », lá onde a teoria, pela ficção, entra em perigo de morte. Vocês, teóricos, saibam que vocês são mortais e que a teoria é já a morte em vocês. Saibam-no, conheçam seu companheiro. Talvez seja verdade que «sem teorização, vocês não dariam um passo adiante», mas esse passo é um passo a mais em direção ao abismo de verdade. De lá sobe o rumor silencioso, a intensidade tácita.Quando cessa a dominação da verdade, quer dizer, quando a referência à alternância verdadeiro-falso (inclusive a sua coincidência) não se impõe mais, mesmo que fosse como o trabalho da palavra por vir, o saber continua a se buscar e a buscar se inscrever, mas num outro espaço onde não há mais direção. Quando o saber não é mais um saber de verdade, é então de saber que se trata: um saber que queima o pensamento, como um saber de infinita paciência.

Quando Kafka deixa entender a um amigo que ele escreve porque, de outra forma, ele deviria louco, ele sabe que escrever é já loucura, é a sua loucura, espécie de vigília fora de consciência, insônia. Loucura contra loucura: mas Kafka crê que

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amestra uma abandonando-se a ela; a outra lhe causa medo, é o seu medo, passa através dele, o dilacera, o exalta, como se fosse preciso que ele se submetesse a toda a potência de uma continuidade sem parada, tensão no limite do não-suportável das quais ele fala com pavor e não sem um sentimento de glória. É que a glória é o desastre.

Aceitar essa distinção: « é preciso [il faut] » e não « tu deves [tu dois] » - talvez porque a segunda fórmula se dirija a um tu [toi] e a primeira seja uma afirmação fora da lei, sem legalidade, uma necessidade não necessária; assim mesmo uma afirmação? Uma violência? Busco um «é preciso [il faut]» passivo, usado pela paciência.

Mas alguma coisa me força a essa aventura antiga, infinita e fora de sentido, enquanto que, no coração do desastre, eu continuo a procurá-lo como aquilo que não vem, a esperá-lo, ao passo que ele é a paciência de minha espera.

Cada um, suponhamo-lo, teria sua loucura privada. O saber sem verdade seria o trabalho ou a escuta de uma singularidade intensa, análogo a essa loucura « privada », tudo o que é privado sendo loucura pelo menos na medida em que nós buscamos, por ela, comunicar.

Se o dilema é: delirar ou morrer; a resposta não faltará e o delírio será mortal.

Em seu sonho, nada, nada senão o desejo de sonhar.

Quando digo, na sequência de Nietzsche: « il3 faut [é preciso]» - com o jogo entre « falloir » [ser preciso] e « faillir » [falhar, fracassar] -, digo também: [ele] falta, [ele] tomba, [ele] engana, é o começo da queda, a lei comanda tombando, e, por aí, se salva ainda como lei.

Ele pode ler um livro, um escrito, um texto – passo sempre, não [pas] sempre, e ele o pode? – porque ele guarda, perdendo-a, uma certa relação com escrever. O que não quer dizer que ele lê o mais prazerosamente possível aquilo que lhe daria vontade de escrever - escrever sem desejo pertence à paciência, a passividade da escritura -, mas, antes, aquilo que fulmina a escritura, faz arroxear sua violência destruindo-a ou, mais simplesmente, mais misteriosamente, está em relação com o passivo imemorial, o anonimato, a discrição absoluta, a fraqueza humana.

Jamais tentar tornar a escritura impegável [imprenable]: exposta a todos os ventos de um comentário redutor, sempre já pega e retida, ou rejeitada.

3 O Il neutro. N. t. Neste trecho Blanchot joga com dois sentidos de “pas” em francês: negação e passo.

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O desígnio da lei: que os prisioneiros construam eles mesmos sua prisão. É o momento do conceito, a marca do sistema.

No sistema hegeliano (quer dizer, em todo sistema), a morte está constantemente à obra, e nada morre nele, não pode morrer nele. O que resta após o sistema, réliquo sem resto: o impulso de morrer em sua novidade repetitiva.

A palavra «corpo», seu perigo, quão facilmente dá a ilusão de que se se mantém já fora do sentido sem contaminação com consciência inconsciência. Retorno insidioso do natural da Natureza. O corpo é sem pertencimento, mortal imortal, irreal, imaginário, fragmentário. A paciência do corpo é já e ainda o pensamento.

Dizer: eu amo Sade, é não ter relação alguma com Sade. Sade não pode ser amado nem suportado; aquilo que ele escreve nos desviando absolutamente nos atraindo absolutamente: atração do desvio.Nós o destruímos, liberamos a estrela – sem raio daqui em diante: ele roda obscuro, o astro do desastre, desaparecido, como ele o anelava, na tumba sem nome do seu renome.Mas é bem verdadeiro que há uma ironia de Sade (poder de dissolução); aquele que não a pressente, lê um autor qualquer em sistema; nada que nisso possa ser dito sério, ou seu sério é a derrisão do sério como a paixão nele passa pelo momento de frieza, de segredo, de neutralidade, a apatia, a passividade infinita. É a grande ironia – não socrática: a ignorância fingida -, mas a saturação da inconveniência (quando mais nada convém), a grande dissimulação lá onde tudo é/está dito, tudo é/está redito e finalmente calado.

Jamais ou então ou então, lógica simples, nem todos os dois juntos que acabam sempre por se afirmar dialeticamente ou convulsivamente (contrariedade sem risco); toda dualidade, todo binarismo (oposição ou compossibilidade, mesmo que fosse com in-compossível) atraem o pensamento na comodidade das trocas: as contas se farão. Eros Tanatos: duas potências ainda; Um domina. A divisão não é suficiente, dialética não-cumprida. Não há aí a pulsão da morte, as impelidas de morte são arrancamentos à unidade, multitudes desvairadas.

Revenho sobre o fragmento: não sendo jamais único, ele não tem, entretanto, limite externo - o fora em direção ao qual ele tomba não é seu límen, e ao mesmo tempo nenhuma limitação interna (não é o ouriço, fechado sobre si); no entanto, alguma coisa de estrito, não por causa de sua brevidade (ele pode se prolongar como a agonia), mas pelo apertamento, o estrangulamento até a ruptura: malhas sempre saltaram (elas não faltam). Nenhum rastro [pas] de plenitude, nenhum rastro [pas] de vazio.

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A escritura é já (ainda) violência: aquilo que há de ruptura, quebra, despedaçamento, o dilaceramento do dilacerado em cada fragmento, singularidade aguda, ponta acerada. E, no entanto, esse combate é debate para a paciência. O nome se usa, o fragmento se fragmenta, se desprende do seu leito. A passividade passa em paciência, lance de aposta que soçobra.

Soçobrar, desejo da queda, desejo que é o impulso e a atração da queda, e se cai sempre vários, queda múltipla, cada um se retém a um outro que é si e é a dissolução - a dispersão - de si, e essa retenção é a própria precipitação, a fuga pânica, a morte para fora da morte.

Não se saberia «ler» Hegel, salvo a não lê-lo. Lê-lo, não lê-lo, compreendê-lo, desconhecê- lo, recusá-lo, isso cai sob a decisão de Hegel ou isso não tem lugar. Só a intensidade desse não-lugar, na impossibilidade de que haja uma, nos dispõe para uma morte - morte de leitura, morte de escritura - que deixa Hegel vivente, na impostura do Sentido acabado. (Hegel é o impostor, é aquilo que o torna invencível, louco por sua seriedade, falsário de Verdade: «escondendo o jogo» até devir, sem saber, mestre da ironia - Sylviane Agacinski.)

O que é que claudica no sistema, o que é que manca? A questão é imeditamente mancante e não faz questão. O que desborda o sistema, é a impossibilidade de seu fracasso, bem como a impossibilidade do êxito: finalmente não se pode dizer nada disso, e há uma maneira de se calar (o silêncio lacunar da escritura) que pára o sistema, deixando-o desobrado, entregue à seriedade da ironia.

O Saber no repouso; qualquer que seja a inconveniência desses termos, nós não podemos deixar a escritura fragmentária escrever a não ser se a linguagem, tendo esgotado seu poder de negação, sua potência de afirmação, retenha ou porte o Saber no repouso. Escritura para fora da linguagem, nada de outro talvez do que o fim (sem fim) do saber, fim dos mitos, erosão da utopia, rigor da paciência apertada.

O nome desconhecido, fora de nominação: O holocausto, evento absoluto da história, historicamente datado, essa queima-total onde toda a história se abrasou, onde o movimento do Sentido se abismou, onde o dom, sem perdão, sem consentimento, se arruinou sem dar lugar a nada que possa se afirmar, se negar, dom da passividade mesma, dom daquilo que não pode se doar. Como guardá-lo, mesmo que seja no pensamento, como fazer do pensamento aquilo que guardaria o holocausto onde tudo se perdeu, inclusive o pensamento guardião? Na intensidade mortal, o silêncio fugindo do grito inumerável.

Haveria na morte alguma coisa mais forte do que a morte: é o morrer mesmo – a intensidade do morrer, o impulso do impossível indesejável até no desejado. A

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morte é poder e mesmo potência – portanto limitada -, ela fixa um termo, ela adia, no sentido em que ela assinala para um dia dito, por acaso e necessário, ao mesmo tempo que reenvia a um dia não designado. Mas o morrer é não-poder, ele arranca ao presente, é sempre transposição do limiar, exclui todo termo, todo fim, não libera nem abriga. Na morte, pode-se ilusoriamente se refugiar, a tumba marca a parada da queda, o mortuário é a saída no impasse. Morrer é o fugente que arrasta indefinidamente, impassível e intensivamente na fuga.

O desapontamento do desastre: não respondendo a espera, não deixando se fazer o ponto, a ponta de acordo, fora de toda orientação, mesmo que seja como desorientação ou simples extravio.

O desejo permanece em relação com o longínquo do astro, pedindo ao céu, apelando ao universo. Nesse sentido, o desastre desviaria do desejo sob a atração intensa do impossível indesejável.

Lucidez, raio da estrela, resposta ao dia que questiona, sono quando a noite vem. « Mas quem se esconderá diante daquilo que jamais se deita? » A vigília é sem começo nem fim. Fazer a vigília está no neutro. « Eu [Je] » não faço vigília: vela-se, a noite vela, sempre e incessantemente, escavando a noite até a outra noite em que não poderia ser questão de dormir. Não se vela senão a noite. A noite é estrangeira à vigilância que se exerce, se cumpre e porta a razão lúcida em direção àquilo que ela deve manter em reflexão, quer dizer, na guarda da identidade. A vigília é estranheza; ela não se desvela, como se ela saísse de um sono que a precederia, sendo ao mesmo tempo despertar, retorno constante e instante à imobilidade da vigília. Isso vela: sem espreitar nem espiar. O desastre vela. Quando há vigília, lá onde a consciência adormecida se abrindo em inconsciência deixa se jogar a luz do sonho, aquilo que vela, o velar, ou a impossibilidade de dormir no seio do sono, não se clareia em termos de sobreacréscimo de visibilidade, de brillance refletidora. Quem vela? Precisamente, a questão é afastada [écartée] pela neutralidade da vigília: ninguém vela. Velar não é o poder de velar em primeira pessoa, não é um poder, mas o alcance do infinito sem poder, a exposição ao outra da noite, lá onde o pensamento renuncia ao vigor da vigilância, à clarividência mundana, à maestria perspicaz para se entregar à prorrogação ilimitada da insônia, a vigília que não vela, a intensidade noturna.

A decepção trabalharia no interior do desastre se este não se marcasse também como o transe do fora onde queda e fuga são imobilidade - imobilidade de uma movência. Decepção não deixa a exceção se repousar na altura, mas faz tombar sem cessar para fora do apreensível e da capacidade (sem forma nem conteúdo). A exceção escapa, a decepção esquiva. A consciência pode ser catastrófica sem cessar de ser consciência, ela não se revira, mas acolhe a reversão. Só o retorno que arranca ao presente, desviaria do consciente-inconsciente.

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Na noite, a insônia é dis-cussão, não um trabalho de argumentos se confrontando com argumentos, mas o extremo tremor sem pensamentos, o abalo rompido até à calma (as exegeses que vão e vêm em «O Castelo», relato da insônia).

Doar não é doar alguma coisa, nem mesmo se doar, pois então doar seria guardar e salvaguardar, se aquilo que se doá tem por traço que ninguém pode tomá-lo de vocês, retomá-lo de vocês e retirá-lo de vocês, auge do egoísmo, artimanha da possessão. O dom não sendo o poder de uma liberdade, nem o exercício sublime de um sujeito livre, não haveria dom senão daquilo que não se tem, sob a imposição e para além da imposição, na súplica de um suplício infinito, lá onde não há nada, exceto, fora do mundo, a atração e a pressão do outro: dom do desastre, daquilo que não se saberia pedir nem doar. Dom do dom - que não o anula, sem doador nem donatário, que faz com que nada se passe, nesse mundo da presença e sob o céu da ausência aonde chegam as coisas, mesmo não chegando. Eis porque falar de perda, de pura perda e em pura perda, parece, ainda que a palavra não seja jamais salva, ainda uma facilidade.

Alegria, dor, tenta só guardar delas a intensidade, a mais baixa ou a mais alta – não importa -, sem intenção: então tu não vives em ti nem fora de ti nem perto das coisas, mas o vivo da vida passa e te faz passar para fora do espaço sideral, no tempo sem presença em que é em vão que tu te procurarias.

Desejo, ainda relação ao astro - o grande desejo sideral, religioso e nostálgico, pânico ou cósmico; daí que não possa haver desejo do desastre. Velar é sem desejo de vigília, a intensidade noturna indesejável (o fora desejável). Pela obsessão da preocupação, não somos chamados para fora de nós mesmos, mas retidos no espaço da segurança, mesmo caminhando para o abandono. O desastre; signo de sua abordagem sem aproximação: afastam-se as preocupações para fazer lugar à solicitude. Die sorglose Nacht, a noite sem preocupação, enquanto vela aquilo que não saberia desvelar. Mas a noite, a primeira noite, se apressa ainda, noite que não rompe com o diurno, em que mesmo se não se dorme, exposto ao sono, se permanece em relação com o ser-no-mundo, na posição somente frustrada do repouso.Se eu digo: o desastre vela, não é para dar um sujeito à vigília, é para dizer: a vigília não se passa sob um céu sideral.

A experiência, na medida em que não é um evento vivido e não põe em jogo o presente da presença, é já não-experiência (sem que a negação a prive do perigo daquilo que se passa, sempre ultrapassado), excesso dela mesma onde, por mais afirmativa que seja, ela não tem lugar, incapaz de se pousar e repousar no instante (mesmo que ele fosse móbil) ou de se dar em algum ponto de incandescência do qual ela não marca senão a exclusão. Nós sentimos que não seria possível haver

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experiência do desastre; nós a entenderíamos como experiência-limite. Eis aí um de seus traços: o desastre destitui toda experiência, lhe retira a autoridade, vela somente quando a noite vela e não vigia.

Que não seja questão de Nada, jamais, para Ninguém.

O vivo da vida seria o avivamento que não se contenta da presença vivente, que consume aquilo que é presente até na isenção, a exemplaridade sem exemplo da não-presença ou da não-vida, a ausência em sua vivacidade, sempre revindo sem vinda.

O silêncio talvez seja uma palavra, uma palavra paradoxal, o mutismo da palavra (conformemente ao jogo da etimologia), mas sentimos, pois, que ele passa pelo grito, o grito sem voz, que contrasta com toda palavra, que não se endereça a ninguém e que ninguém recolhe, o grito que tomba em berro. O grito, assim como a escritura (do mesmo modo que o vivo teria sempre já excedido a vida), tende a exceder toda linguagem, mesmo se ela se deixa retomar como efeito de língua, à vez súbito (submetido) e paciente, a paciência do grito, aquilo que não pára em não-sentido, ao mesmo tempo que permanece fora de sentido, um sentido infinitamente suspendido, aberrado, decifrável-indecifrável.

No trabalho do luto, não é a dor que trabalha: ela vela.

Dor, talhando, despedaçando, pondo a vivo aquilo que não saberia mais ser vivido, mesmo numa lembrança.

O desastre não faz desaparecer o pensamento mas sim algo do pensamento, questões e problemas, afirmação e negação, silêncio e palavra, signo e insígnia. Então na noite sem trevas, privada de céu, densa da ausência de mundo, em retração de todo presente dela mesma, o pensamento vela. O que sei, de um saber contornado, conturbado e adjacente - sem relação de verdade -, é que uma tal vigília não permite nem despertar nem sono, que ela deixe o pensamento fora de segredo, privado de toda intimidade, corpo de ausência, exposto a passar, sem si sem que cesse o incessante, a troca do vivo sem vida e do morrer sem morte, lá onde a intensidade mais baixa não levanta a espera, não põe fim à prorrogação infinita. Como se a vigília docemente passivamente nos deixasse descer a escadaria perpétua.

A palavra, quase privada de sentido, é ruidosa. O sentido é silêncio limitado (a palavra é relativamente silenciosa, na medida em que ela porta aquilo em quê ela se ausenta, o sentido já ausente pendendo para o assêmico).

Se há um princípio de perseverança, um imperativo de obstinação em relação ao qual a morte faria mistério, desviados do astro, desarranjados na certeza incerta da ordem cósmica, não tendo mais situação ao olhar do universo, sem consentimento

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nem aquiescência, a paciência do «totalmente passivo» sempre nos entregou (na vida fora da vida) à interrupção de ser, ao impulso do morrer que nos fazem cair sob a atração do desastre indesejável onde continuidade em todos os sentidos e descontinuidade de todo sentido, dadas à vez, driblam a seriedade e a severidade daquilo que persevera, como o uniforme do jogo mortal.

Que aquilo que se escreve ressoe no silêncio, fazendo-o ressoar por muito tempo, antes de retornar à paz imóvel onde vela ainda o enigma.

Abstém-te de viver sob a salvaguarda do princípio de perseverança – o ser como perseveração – de onde a morte mantém seu mistério.

A escritura, sem se colocar por cima da arte, supõe que não se prefere a arte, apaga a arte como ela, a escritura, se apaga.

Não perdoes. O perdão acusa antes de perdoar; acusando, afirmando a culpa, ele a torna irremissível, porta o golpe até a culpabilidade; assim, tudo devém irreparável, dom e perdão cessando de ser possíveis.Não perdoes senão à inocência.Perdoa-me por te perdoar.A só culpa seria de posição: é ser «Eu [Je]», enquanto o Mesmo do eu-mesmo [moi-même] não lhe aporta a identidade, é somente canônico, a fim de permitir a relação infinita do Mesmo ao Outro; de onde a tentação (a só tentação) de redevir sujeito, em lugar de se expor à subjetividade sem sujeito, a nudez do espaço moribundo. Não posso perdoar, o perdão vem de outrem, mas não sou muito menos perdoado, se o perdão é o colocar em causa do eu [moi], a exigência de se doar, de se passar sem si até o mais passivo, e se o perdão vem do outro, ele não faz senão vir, não há jamais certeza de que ele possa chegar já que, no entanto, não lhe cabe ser um poder de decisão (sacramental), mas sempre se reter no indeciso. Em O Processo, pode-se crer que o levar à morte seja o perdão, o termo do interminável; só que não há fim, já que Kafka deixa claro que a vergonha sobrevive, quer dizer, o infinito mesmo, a derrisão da vida como para além da vida.

A desatenção: há a desatenção que é a insensibilidade menosprezante; também há a desatenção mais passiva que, para além do interesse e do cálculo, deixa outrem outro, deixando fora da violência pela qual ele seria apreendido, compreendido, açambarcado, identificado, reduzido ao mesmo. A desatenção não é então uma atitude do eu [moi] mais atento a si do que ao outro - ela me distrai de todo eu [moi], distração que desnuda o «Eu [Je]», o expõe à paixão do « totalmente passivo», lá onde, os olhos abertos sem olhar, eu devenho a ausência infinita, quando mesmo a desgraça que não suporta a vista e que a vista não suporta, se deixa considerar, abordar e talvez apaziguar. Mas desatenção que permanece ambígua,

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quer seja o extremo do menosprezo inaparente, quer seja o extremo da discrição oferecida até o esfacelamento.

O que é estranho na certeza cartesiana «eu penso, eu existo [je suis]», é que ela não se afirmava senão falando e é que a palavra precisamente a fazia desaparecer, suspendendo o ego do cogito, reenviando o pensamento ao anonimato sem sujeito, a intimidade à exterioridade e substituindo a presença vivente (a existência do eu sou, eu existo [je suis]) pela ausência intensa de um morrer indesejável e atraente. Logo bastaria que o ego cogito se pronuncie para que ele cesse de se anunciar e para que o indubitável, sem cair na dúvida e permanecendo não duvidoso, seja, intacto, arruínado invisivelmente pelo silêncio que fissura a linguagem, é dela o escoamento caudaloso e, perdendo-se nela [na linguagem], a transmuta em sua perda. Eis porque pode-se dizer que Descartes jamais soube que ele falava e, muito menos, que ele permanecia silencioso. É nesta condição que a bela verdade é preservada.

Para Platão, segundo a dialética que lhe é própria e numa descoberta então atordoante (aliás perigosa, pois não sem resto), o outro do outro é Mesmo; mas como não entender no redobramento o repetitivo que descobre, esvazia, desidentifica, retirando a alteridade (o poder alienante) ao outro, sem cessar de deixá-lo outro, sempre mais outro (não majorado, mas excedido), pela consagração do desvio e do retorno?

Desatenção: a intensidade da desatenção, o longínquo que vela, o além da atenção para que esta não se limite tornando somente atentos alguma coisa, até mesmo alguém, até mesmo tudo, desatenção nem negativa nem positiva, mas excessiva, quer dizer, sem intencionalidade, sans animadversão, sem o êxtase do tempo, desatenção mortal à qual não temos a liberdade - o poder - de consentir, nem mesmo de nos deixar ir (de nos doar ao nos abandonar), a paixão desatenta, atraente, negligente que, enquanto o astro brilha, sob um céu disponível, sobre a terra que porta, marca o impulso em direção ao e o inacesso do Fora eterno, quando a ordem cósmica subsiste, mas como reino arrogante, impotente, abrogado, sob o lampejo inaparente do espaço sideral, na claridade sem luz, lá onde a soberania suspensa, ausente e sempre lá, remente sem fim a uma lei morta que, na queda mesmo, recidiva como lei sem lei da morte: o outro da lei.

Se a ruptura com o astro pudesse se cumprir à maneira de um evento, se pudéssemos, mesmo que fosse pela violência de nosso espaço assassinado, sair da ordem cósmica (o mundo) onde, qualquer que seja a desordem visível, o arranjo a arrasta sempre, o pensamento do desastre, em sua iminência adiada, se ofereceria ainda à descoberta de uma experiência pela qual não teríamos mais que nos deixar retomar, no lugar de ser expostos àquilo que se esquiva numa fuga imóvel, no intervalo do vivente e do morrente; fora de experiência, fora de fenômeno.

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Só o regime médio se deixa afirmar ou negar; mas não há mais lugar para afirmação, negação, quando a tensão mais alta, a depressão mais baixa (aquilo que volatiliza em incandescência o sempre honesto gozo – mesmo que fosse o mais turvo, aquilo que na dor cai sob a dor - demasiado passivo para ser sofrido: sua calma insuportável) rompem todas as relações que se deixariam significar - apresentar ou ausentar – sem um dizer : desligadas então até o neutro do qual nenhuma linguagem dispõe, embora não se separe delas, sem cessar de ser deslocada nelas.A intensidade não poderia ser dita alta ou baixa sem restabelecer a escala dos valores e os princípios de uma medíocre moral. Que ela seja energia ou inércia, ela é o extremo da diferença, o excesso sobre o ser (tal como o supõe a ontologia), excesso que, absoluto desarranjamento, não admite mais regime, região, regra, direção, ereção, insur-reição, nem muito menos o simples contrário destas palavras, de sorte que ela destrói aquilo que ela indica, queimando o pensamento que a pensa e exigindo nesta consumpção onde transcendência, imanência não são mais do que figuras flamejantes extintas: emendas de escritura que a escritura sempre perdeu de antemão, esta tanto excluindo o processo sem limite quanto parecendo incluir uma fragmentação sem aparência que supõe, entretanto, ainda uma superfície contínua sobre a qual ela se inscreveria, como ela supõe a experiência com a qual ela rompe - assim se continuando pela descontinuidade, engodo do silêncio que, na ausência mesma, sempre nos entregou ao desastre do retorno.Intensidade: aquilo que atrai neste nome não é somente que ele escapa em geral a uma conceitualização, é que ele se desliga em uma pluralidade de nomes, se denominando tão logo eles se nomeiam e afastando tanto a potência que se exerce quanto a intencionalidade que marca uma direção, o sinal e o sentido, o espaço que se projeta e o tempo que se extasia, com esse embaraço de que ele parece uma espécie de interioridade corporal - a vibrância vivente - pela qual se imprimem de novo os insípidos ensinamentos da consciência-inconsciência. Daí que seria preciso dizer que só a exterioridade, no seu intervalo absoluto, em sua desintensificação infinita, devolve à intensidade de atração desastrosa que a impede de se deixar traduzir em revelação, em acréscimo de saber, em crença, retornando-a em pensamento, mas pensamento que se excede e não é mais que o tormento - a retorsão - deste retorno.

«Intensidade», essa palavra diferente à qual Klossowski nos conduziu para que a palavra nos desconfesse, guardando-se justamente de fazer dela uma palavra-chave ou palavra-reclame que bastaria simplesmente invocar para que seja aberta a brecha por onde escorreria, se secaria o sentido, nos permitindo uma vez por todas escapar a sua restrição (F. Schlegel: «o infinito de intensidade»).

No fora silencioso - o silêncio do silêncio - que de nenhuma maneira teria relação com uma linguagem, não vindo dela, mas tendo sempre já saído dela, vela aquilo que não começou nem terá fim, essa noite em que outrem é substituído pelo outro,

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aquele que Descartes tentou fixar sob os traços do Grande Contraditor, do Outrem enganador que não tem somente por papel driblar a evidência - o manifesto da visão - nem perseguir a obra da dúvida (a duplicidade, simples partilha do Uno em que este continua a se preservar), mas abala o outro como outrem, com o quê desmorona a possibilidade da ilusão e da seriedade, da enganação e do equívoco, da palavra muda, como do mutismo falante, não deixando mais a zombaria dar um sinal, mesmo se este não significa nada, ainda que, através do silêncio do silêncio – aquele que não viria de uma linguagem (seu fora, entretanto) – transpasse, pelo repetitivo, a derrisão do retorno desastroso (a morte embargada).

Esses nomes, lugares da deslocação, os quatro ventos da ausência de espírito soprando de nenhuma parte: o pensamento, quando este se deixa, pela escritura, desligar até o fragmentário. Fora. Neutro. Desastre. Retorno. Nomes que certamente não formam sistema e, naquilo que eles têm de abrupto à maneira de um nome próprio não designando ninguém, deslizam para fora de todo sentido possível sem que esse deslizamento faça sentido, deixando somente uma entreluz deslizante que não clareia nada, nem mesmo esse fora-de-sentido cujo limite não se indica. Nomes que, num campo devastado, assolado pela ausência que os precedeu e que eles portariam em si mesmos se, vazios de toda interioridade, eles não se erguessem exteriores a si mesmos (pedras de abismo petrificadas pelo infinito de sua queda), parecem os restos, cada um, de uma linguagem outra, ao mesmo tempo desaparecida e jamais pronunciada, que nós não saberíamos tentar restaurar sem reintroduzi-los no mundo ou exaltá-los até um supra-mundo do qual, em sua solidão clandestina de eternidade, eles não saberiam ser senão a instável interrupção, a invisível retirada.

Sempre de retorno pelos caminhos do tempo, não avançaremos nem retardaremos: tarde é cedo, próximo longe.

Os fragmentos se escrevem como separações não cumpridas; aquilo que eles têm de incompleto, de insuficiente, trabalho da decepção, é sua deriva, o índice de que, nem unificáveis, nem consistentes, eles deixam se espaçarem marcas com as quais o pensamento, ao declinar e se declinando, figura conjuntos furtivos que ficticiamente abrem e fecham a ausência de conjunto, sem que, fascinado definitivamente, o pensamento se detenha neles, sempre revezado pela vigília que não se interrompe. Daí que não se possa dizer que haja intervalo, já os fragmentos, destinados em parte ao branco que os separa, encontram nesse intervalo abismal não aquilo que os termina, mas aquilo que os prolonga, ou os põe em espera daquilo que os prolongará, já os prolongou, fazendo-os persistir através de seu inacabamento, sempre prontos então a se deixar trabalhar pela razão infatigável, no lugar de permanecer sendo a palavra decaída, posta à parte, o segredo sem segredo que nenhuma elaboração saberia preencher.

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Lendo essas frases antigas: «A inspiração, essa palavra errante que não pode tomar fim, é a longa noite da insônia, e é para se defender dela, desviando-se dela, que o escritor vem a escrever verdadeiramente, atividade que o devolve ao mundo onde ele pode dormir». E mais esta: «Lá onde eu sonho, isso vela, vigilância que é a surpresa do sonho e onde vela de fato, num presente sem duração, uma presença sem pessoa, a não-presença onde não advém jamais nenhum ser e cuja fórmula gramatical seria «Ele[O Il Neutro]...» Por que esse lembrete? Por que, apesar do que elas dizem sobre a vigília ininterrupta que persiste por trás do sonho, e sobre a noite inspiradora da insônia, essas palavras parecem ter necessidade de ser retomadas, repetidas, para escapar ao sentido que as anima e a fim de ser desviadas de si mesmas, do discurso que as utiliza? Mas, retomadas, elas reintroduzem uma segurança à qual se creria ter cessado de pertencer, elas têm um ar de verdade, dizem alguma coisa, pretendem a uma coerência, dizem: tu pensaste isso há muito tempo, és, portanto, autorizado a pensá-lo de novo, restaurando essa continuidade razoável que faz os sistemas, fazendo jogar no passado uma função de garantia, deixando isso devir ativo, citador, incitador e impedindo a invisível ruína que a vigília perpétua, fora de consciência inconsciência, devolve ao neutro.

Palavra de espera, silenciosa talvez, mas que não deixa à parte silêncio e dizer, e que faz do silêncio já um dizer, que diz no silêncio já o dizer que o silêncio é. Pois o silêncio mortal não se cala.

A escritura fragmentária seria o próprio risco. Ela não reenvia a uma teoria, não dá lugar a uma prática que seria definida pela interrupção. Interrompida, ela se prossegue. Interrogando-se, ela não se arroga a questão, mas a suspende (sem mantê-la) em não-resposta. Se ela pretende não ter seu tempo senão quando o todo - ao menos idealmente – tivesse se cumprido, é, portanto, porque esse tempo não é nunca seguro, ausência de tempo num sentido não privativo, anterior a todo passado-presente, como posterior a toda possibilidade de uma recência por vir.

Se, por entre todas as palavras, há uma palavra inautêntica, é justamente a palavra «autêntica».

A exigência fragmentária, exigência extrema, é antes de tudo tida preguiçosamente como se detendo em fragmentos, rascunhos, estudos: preparações ou rejeitos daquilo que não é ainda uma obra. Que ela atravesse, reverta, arruine a obra porque esta - totalidade, perfeição, cumprimento - é a unidade que se complaz em si mesma, eis o que pressente F. Schlegel, mas que por fim lhe escapa, sem que se possa lhe rechaçar esse desconhecimento que ele nos ajudou, que ele nos ajuda ainda a discernir no momento mesmo em que o partilhamos com ele. A exigência fragmentária, ligada ao desastre. Que não haja, entretanto, quase nada de desastroso nesse desastre, será, pois, preciso que aprendamos a pensá-lo sem talvez sabê-lo jamais.

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A fragmentação, marca de uma coerência tanto mais firme quanto seria preciso que ela se desfaça para se atingir, não por um sistema dispersado, nem pela dispersão como sistema; mas o despedaçamento (o dilaceramento) daquilo que jamais pré-existiu (real ou idealmente) como conjunto, nem muito menos poderá se reagrupar em alguma presença de porvir que seja. O espaçamento de uma temporalização que não se apreende - falaciosamente – senão como ausência de tempo.

O fragmento, enquanto fragmento, tende a dissolver a totalidade que ele supõe e que ele carrega em direção à dissolução de onde ele não se forma (propriamente falando), à qual ele se expõe para, desaparecendo, e, consigo, toda identidade, se manter como energia de desaparecer, energia repetitiva, limite do infinito mortal - ou obra da ausência de obra (para redizê-lo e calá-lo ao redizê-lo). Daí que a impostura do Sistema - o Sistema elevado pela ironia a um absoluto de absoluto - é maneira para o sistema de se impor ainda pelo discrédito do qual o credita a exigência fragmentária.

A exigência fragmentária faz sinal ao Sistema que ela dispensa (como ela dispensa a princípio o eu [moi] autor) sem cessar de torná-lo presente, assim como, na alternativa, o outro termo não pode totalmente esquecer o primeiro termo do qual ele tem necessidade para substituí-lo por si. A crítica justa do Sistema não consiste (como se se compraz nisso o mais frequentemente) em tomá-lo em erro ou a interpretá-lo insuficientemente (isso acontece mesmo para Heidegger) mas em torná-lo invencível, incriticável ou, como se diz, incontornável. Então, nada lhe escapando por sua unidade onipresente e pelo reagrupamento de tudo, não resta mais situação para a escritura fragmentária salvo a se retirar como o necessário impossível: o que, portanto, se escreve através do tempo fora do tempo, numa suspensão que, sem retenção, quebra o selo da unidade, precisamente não o quebrando, mas deixando-o de lado sem que se possa sabê-lo. Assim, a escritura fragmentária não pertenceria ao Uno do mesmo modo que ela, no entanto, se afastaria da manifestação. E assim, ainda, ela não denunciaria menos o pensamento como experiência (sob qualquer forma que se entenda essa palavra) do que o pensamento como cumprimento de tudo.

«Ter um sistema, eis o que é mortal para o espírito; não ter um, eis também o que é mortal. De onde a necessidade de sustentar, perdendo-as, ao mesmo tempo as duas exigências» (Fr. Schlegel).

O que Schlegel diz da filosofia vale para a escritura: não se pode devir escritor sem sê-lo jamais; desde que se é escritor, não se o é mais.

Toda beleza é de detalhe, dizia em termos parecidos Valéry.

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Mas isso seria verdadeiro se houvesse uma arte dos detalhes que não teria mais por horizonte a arte de conjunto.

O inconveniente (ou a vantagem) de todo ceticismo necessário é elevar cada vez mais alto a barra da certeza ou da verdade ou da crença. Não se crê em nada por necessidade de demasiado crer e porque se crê ainda demasiado quando não se crê em nada.

O quanto seria absurda essa questão endereçada ao escritor: tu és de parte em parte escritor, quer dizer, em tudo que tu és, és tu mesmo escritura vivente e agente? Seria imediatamente condená-lo à morte ou fazer ingenuamente seu elogio fúnebre.

A exigência fragmentária nos chama a pressentir que não há ainda nada de fragmentário, não propriamente falando, mas impropriamente falando.

A afirmação passa sem prova, com a condição de não pretender provar nada.

Busco aquele que diria não. Pois dizer não é dizer com o lampejo que o « não» está destinado a preservar.

O que chega através da escritura não é da ordem daquilo que chega. Mas então quem te permite pretender que jamais chegaria alguma coisa como a escritura? Ou então, a escritura não seria tal que ela não teria jamais necessidade de advir?

Alguém (Clavel) escreveu de Sócrates que todos nós o matamos. Eis o que não é de modo algum socrático. Sócrates não teria gostado de nos tornar culpados de nada, nem mesmo responsáveis de um evento que sua ironia tinha de antemão tornado insignificante, até mesmo benéfico, nos suplicando a não tomá-lo a sério. Mas, com certeza, Sócrates não esquece senão uma coisa. É que mais ninguém depois dele podia ser Sócrates, e que sua morte matou a ironia. E à ironia que seus juízes en tinham todos dessa morte; é à ironia que nós outros, seus justos choradores, continuamos todos a ter dela.

O não-saber não é nada saber, nem mesmo o saber do « não », mas o que dissimula toda ciência ou nesciência, seja o neutro enquanto não-manifestação.

Uma «descoberta» que se reitera [on ressasse] devém a descoberta da reiteração [ressassement].

R. C. é em tal ponto poeta que a partir dele a poesia brilha como um feito, mas que a partir desse feito da poesia todos os feitos devêm questão e mesmo questão poética. N. t. René Char.

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O fervor pelo progresso infinito não é válido senão como fervor, pois que o infinito é o fim mesmo de todo progresso.

Hegel é certamente o inimigo mortal do cristianismo, mas na medida em que ele é cristão, se, longe de se contentar com uma só Mediação (o Cristo), ele faz mediação de tudo. Só o judaísmo é o pensamento que não mediatiza. E eis por que Hegel, Marx são antijudaicos, para não dizer antissemitas.

O filósofo que escreveria como poeta visaria sua própria destruição. E mesmo visando-a, ele não pode atingi-la. A poesia é questão para a filosofia que pretende lhe dar uma resposta, e assim compreendê-la (sabê-la). A filosofia que põe tudo em questão, tropeça na poesia que é a questão que lhe escapa.

Quem escreve está em exílio da escritura: lá é sua pátria onde ele não é profeta.

Aquele que não se interessa por si mesmo não é, no entanto, por isso, desinteressado. Ele não começaria a sê-lo senão se nele o desinteresse por ele não o tivesse sempre já aberto a outrem que passa todo interesse.

Escrever sua autobiografia, seja para se confessar, seja para se analisar, seja para se expor aos olhos de todos, à maneira de uma obra de arte, é talvez procurar sobreviver, mas por um suicídio perpétuo - morte total enquanto fragmentária.Escrever-se é deixar de ser para se confiar a um hospedeiro - outrem, leitor - que não terá doravante por dever e por vida senão a inexistência de vocês.

Num sentido, o «eu [moi]» não se perde porque ele não se pertence. Não existe, pois, eu [moi] senão como não-pertencente a si, e, portanto, como sempre já perdido.

O salto mortal do escritor sem o qual ele não escreveria, é necessariamente uma ilusão na medida em que, para se cumprir realmente, é preciso que ele não tenha lugar.

A supor que se possa escolarmente dizer: o Deus de Leibniz é porque é possível, compreender-se-á que se pode dizer ao contrário: o real é real enquanto excluindo a possibilidade, quer dizer, sendo impossível, do mesmo modo a morte, do mesmo modo, e num título mais alto, a escritura do desastre.

Só um eu [moi] finito (tendo por só destino a finitude) deve por isso vir a se reconhecer, no outro, responsável do infinito.

Não é senão enquanto infinito que eu sou limitado.

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Se, como o afirma etimologicamente Levinas, a religião é aquilo que liga, mantém junto, então o que acontece com o não-laço que desune para além da unidade, o que acontece com aquilo que escapa à sincronia do «se manter junto» sem, entretanto, romper toda relação ou sem cessar, nessa ruptura ou nessa ausência de relação, de abrir uma relação ainda? É preciso ser não-religioso para isso?

Infinito-limitado, isto és tu?

Se tu escutas «a época», tu aprenderás que ela te diz em voz baixa, não para falar em nome dela, mas para te calar em nome dela.

Certamente Sócrates não escreve, mas, sob a voz, é pela escritura, entretanto, que ele se dá aos outros como o sujeito perpétuo e perpetuamente destinado a morrer. Ele não fala, ele questiona. Questionando, ele interrompe e se interrompe sem cessar, dando forma ironicamente ao fragmentário e votando por sua morte a palavra à obsessão da escritura, do mesmo modo que esta à só escritura testamentária (sem assinatura, todavia).

Entre as duas proposições falsamente interrogativas: por que há, antes, alguma coisa ao invés de nada? E por que há, antes, o mal ao invés do bem?, eu não reconheço essa diferença que se pretende nelas discernir, já que ambas são portadas por um «há» que não é nem ser nem nada, nem bem nem mal e sem o qual tudo isso desmorona ou já portanto desmoronou. Sobretudo o há, enquanto neutro, dribla a questão que recai sobre ele: interrogado, ele absorve ironicamente a interrogação que não saberia sobrepujá-lo. Mesmo se ele se deixa vencer, é porque a derrota é a sua conveniência inconveniente, do mesmo modo que o mau infinito em sua repetição perpétua o determina como verdadeiro na medida em que ele imita (falsamente) a transcendência e, assim, lhe denuncia a ambiguidade essencial, a impossibilidade, para esta, de ser mensurada pelo verdadeiro ou pelo justo.

Morrer quer dizer: morto, tu já o és, num passado imemorial, de uma morte que não foi a tua, que tu, portanto, não conheceste nem viveste, mas sob a ameaça da qual tu te crês chamado a viver, esperando-a doravante do porvir, construindo um porvir para torná-la enfim possível, como alguma coisa que terá lugar e pertencerá à experiência. Escrever não é mais pôr no futuro a morte sempre já passada, mas aceitar sofrê-la sem torná-la presente e sem se tornar presente para ela, saber que ela teve lugar, ainda que ela não tenha sido provada, e reconhecê-la no esquecimento que ela deixa e cujos traços que se apagam, chamam a se excetuar da ordem cósmica, lá onde o desastre torna o real impossível e o desejo indesejável. Esta morte incerta, sempre anterior, atestação de um passado sem presente, não é jamais individual, do mesmo modo que ela desborda o todo (aquilo que supõe o

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advento do todo, seu cumprimento, o fim sem fim da dialética): fora do todo, fora do tempo, ela não saberia ser explicada, assim como o pensa Winnicott, somente pelas vicissitudes próprias à primeira infância, quando a criança, ainda privada de eu [moi], sofre estados abalantes (as agonias primitivas) que ela não pode conhecer já que ela não existe ainda, que se produziam, portanto, sem ter lugar, aquilo que conduz mais tarde o adulto, numa lembrança sem lembrança, por seu eu [moi] fissurado, a esperá-las (seja para desejá-las, seja para temê-las) de sua vida que se a acaba ou desmorona. Ou antes, não é senão uma explicação, de resto impressionante, uma aplicação fictícia destinada a individualizar aquilo que não saberia sê-lo ou ainda a fornecer uma representação do irrepresentável, a deixar crer que se poderá, com a ajuda da transferência, fixar no presente de uma lembrança (quer dizer, numa experiência atual) a passividade do desconhecido imemorial, operação de desvio talvez terapeuticamente útil, na medida em que, por um modo de platonismo, àquele que vive na assombração de um desmoronamento iminente, ela permite dizer: isso não terá lugar, isso já teve lugar, eu sei, eu me relembro – o que é restaurar um saber de verdade e um tempo comum linear.

Sem a prisão, saberíamos que estamos todos já na prisão.

A morte impossível necessária: por que estas palavras - e a experiência inexperienciada à qual elas se referem – escapam à compreensão? Por que este confronto, esta recusa? Por que apagá-las fazendo delas uma ficção própria a um autor? É bem natural. O pensamento não pode acolher aquilo que ele porta em si e que o porta, exceto se ele o esquece. Eu falarei disso sobriamente, utilizando (talvez as falsificando) observações fortes de Serge Leclaire. Conforme este, não se vive e não se fala senão matando o infans em si (em outrem também), mas o que é o infans? Evidentemente, aquilo que ainda não começou a falar e jamais falará, mas, mais ainda, a criança maravilhosa (terrificante) que fomos nos sonhos e nos desejos daqueles que nos fizeram e nos viram nascer (pais, toda a sociedade). Esta criança, onde ela está? Segundo o vocabulário psicanalítico (do qual, creio, só podem utilizar aqueles que exercem a psicanálise, quer dizer, para quem ela é risco, perigo extremo, questionamento cotidiano – se não ela é só a linguagem cômoda de uma cultura estabelecida), haveria lugar para identificá-la na «representação narcísica primária», o que quer dizer que ela tem estatuto de representante para sempre inconsciente, e, por conseguinte, para sempre indelével. De onde a dificuldade propriamente falando «louca»: para não permanecer nos limbos do infans e do aquém do desejo, trata-se de destruir o indestrutível e mesmo de pôr fim (não de um só golpe, mas constantemente) àquilo a que não se tem, jamais se teve, nem se terá acesso – ou seja, a morte impossível necessária. E, de novo, nós não vivemos e não falamos (mas com que espécie de palavra?) senão porque a morte já teve lugar, evento insituado, insituável que, para não se tornar mudo por isso no falar mesmo, nós confiamos ao trabalho do conceito (a negatividade) ou ainda ao trabalho psicanalítico ao qual não é possível senão que ele não tenha levantado “a confusão

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ordinária” entre esta primeira morte que seria o cumprimento incessante e a segunda morte chamada, por uma simplificação fácil, «orgânica» (como se a primeira não o fosse).Mas aqui nós interrogamos o encaminhamento de Hegel e nos relembramos dele: a confusão – aquilo que vocês nomeiam confusão – jamais pode ser dissipada de outro modo senão por um passe de mágica, o ardil dito (comodamente), idealista - naturalmente de uma grande importância significativa? Sim, relembremo-nos do todo primeiro Hegel. Ele também, antes mesmo daquilo que se chama sua primeira filosofia, pensou que as duas mortes não eram dissociáveis e que só o fato de afrontar a morte, não somente de lhe fazer frente ou de se expor a seu perigo (o que é o traço da coragem heróica), mas de entrar em seu espaço, de sofrê-la como morte infinita e, também, morte bem simplesmente, «morte natural», podia fundar a soberania e a maestria: o espírito em suas prerrogativas. Resultava disso talvez absurdamente que aquilo que punha em abalo a dialética, a experiência inexperimentável da morte, o detinha tão-logo, parada da qual todo o processo ulterior guardou um tipo de lembrança, como de uma aporia com a qual seria sempre preciso contar. Eu não entrarei no detalhe da maneira com a qual, desde a primeira filosofia, por um enriquecimento prodigioso do pensamento, a dificuldade foi superada. Isso é bem conhecido. Resta que se a morte, o assassinato, o suicídio são postos em obra e que se a morte se amortiza ela mesma, tornando-se potência impotente, mais tarde negatividade, há, a cada vez que se avança com ajuda da morte possível, a necessidade de não passar além da morte sem frases, a morte sem nome, fora de conceito, a impossibilidade mesma.Acrescentarei uma observação, uma interrogação: a criança de Serge Leclaire, o infans glorioso, terrificante, tirânico, que não se pode matar na medida em que não se alcança uma vida e uma palavra senão cessando de enviá-la à morte, não seria precisamente a criança de Winnicott, aquela que, antes de viver, soçobrou no morrer, a criança morta que nenhum saber, nenhuma experiência saberiam fixar no passado definitivo de sua história? Tão gloriosa, terrificante, tirânica porque, em nosso desconhecimento (mesmo e, sobretudo, quando nós fazemos semblant de sabê-lo e de dizê-lo, como aqui), sempre já morta. Aquilo que nós nos esforçaremos para matar, é, justamente, a criança morta, não somente aquela que teria por função carregar a morte na vida e se manter nela, mas aquela para quem a «confusão» das duas mortes não pode não se produzir e que, por aí, não nos autoriza nunca a «erguê-la», golpeando de inanidade o Aufhebung e tornando vã toda refutação do suicídio.Ressalto que Serge Leclaire e Winnicott se esforçam, quase da mesma maneira, em nos desviar do suicídio mostrando que este não é uma solução. Nada de mais justo. Se a morte é a paciência infinita daquilo que não se cumpre jamais uma vez por todas, o curto-circuito do suicídio frustra necessariamente a morte transformando «ilusoriamente» em possibilidade ativa a passividade daquilo que não pode ter lugar porque tendo sempre já tido lugar. Mas talvez seja preciso entender o suicídio de outra forma.

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É possível que o suicídio seja a maneira pela qual o inconsciente (a vigília em sua vigilância não despertada) nos adverte que alguma coisa claudica na dialética, nos relembrando que a criança sempre a matar é a criança já morta e que assim, no suicídio – aquilo que nomeamos assim -, não se passa simplesmente nada; de onde o sentimento de incredulidade, de pavor que ele nos fornece sempre, ao mesmo tempo em que ele suscita o desejo de refutá-lo, quer dizer, de torná-lo real, quer dizer, impossível. O «não se passa nada» do suicídio pode justamente receber a forma de um evento numa história que, por aí, por este fim audacioso, resultado aparente de uma iniciativa, toma uma feição individual: o que faz enigma, é que, precisamente me matando, «eu» não «me» mato, mas, entregando de alguma maneira o ouro ao inimigo, alguém (ou alguma coisa) se serve de um eu que desaparece - em figura de Outro - para lhe revelar e revelar a todos aquilo que imediatamente escapa: a saber o depois-do-golpe [après-coup] da morte, o passado imemorial da morte antiga. Não há morte agora ou futura (de um presente por vir). O suicídio é talvez, é sem dúvida uma estupidez, mas tem por lance tornar por um instante evidente – escondida – a outra estupidez que é a morte dita orgânica ou natural, na medida em que esta aqui pretende se dar por distinta, definitivamente posta à parte, a não confundir, podendo ter lugar, mas não tendo lugar senão uma vez, assim a banalidade do único impensável. Mas qual seria a diferença entre a morte por suicídio e a morte não suicidária (se há alguma)? É que a primeira, se confiando à dialética (totalmente fundada sobre a possibilidade da morte, sobre o uso da morte como poder) é o oráculo obscuro que nós não deciframos, graças ao qual, entretanto, pressentimos, esquecendo sem cessar, que aquele que foi até o extremo do desejo de morte, invocando seu direito à morte e exercendo sobre si mesmo um poder de morte - abrindo, assim como o disse Heidegger, a possibilidade da impossibilidade - ou ainda, crendo se tornar mestre da não-maestria, se deixa prender numa espécie de armadilha e se suspende eternamente - um instante, evidentemente – aí onde, cessando de ser um sujeito, perdendo sua liberdade obstinada, ele se choca, outro do que ele mesmo, com a morte como com aquilo que não chega ou como com aquilo que se retorna (desmentindo, à maneira de uma demência, a dialética fazendo-a resultar em algo) na impossibilidade de toda possibilidade. O suicídio é num sentido uma demonstração (daí seu traço arrogante, enfadado, indiscreto), e aquilo que ele demonstra é o indemonstrável, a saber que, na morte, não se passa nada e que ela mesma não passa (de onde a vaidade e a necessidade de seu caráter repetitivo). Mas resta desta demonstração abortada que nós não morremos «naturalmente», da morte sem frases e sem conceito (afirmação sempre a pôr em dúvida) senão se, por um suicídio constante, inaparente e prévio, cumprido por ninguém, nós cheguemos assim (bem entendido, este não é «nós») ao engodo do fim da história em que tudo retorna à natureza (uma natureza suposta desnaturada), quando a morte, cessando de ser uma morte sempre dupla, tendo como que esgotado a passividade infinita do morrer, se reduz à simplicidade de alguma coisa de natural, mais insignificante e mais desinteressante que o desmoronamento de um montículo de areia.

win7ULT, 05/30/13,
SUICÍDIO COMO ESCÂNDALO, EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE; VIDA QUE INVADE A OBRA
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«Mata-se uma criança». É deste título que é preciso no fim se lembrar naquilo que ele tem de força indecisa. Não sou eu que teria que matar e sempre matar o infans que fui como que em primeiro lugar e enquanto eu não era ainda, mas ao menos sendo nos sonhos, nos desejos e no imaginário de alguns, depois de todos. Há morte e assassínio (palavras que eu ponho no desafio de distinguir seriamente e que é preciso, entretanto, separar); por esta morte e por este assassínio, é um «se» impessoal, inativo e irresponsável, que tem que responder - e do mesmo modo que a criança é uma criança, sempre indeterminada e sem relação com quem quer que seja. Uma criança já morta vai morrendo, de uma morte assassina, criança da qual nós não sabemos nada, mesmo se a qualificamos de maravilhosa, de terrificante, de tirânica ou de indestrutível : exceto nisto em que a possibilidade de palavra e de vida dependeria, pela morte e o assassínio, da relação de sigularidade que se estabeleceria ficticiamente com um passado mudo, aquém da história, fora de passado por conseguinte, do qual o infans eterno se faz figura, ao mesmo tempo que ele se esquiva a isso. «Mata-se uma criança». Não nos enganemos sobre este presente: significa que a operação não saberia ter lugar uma vez por todas, que ela não se cumpre em nenhum momento privilegiado do tempo, que ela se opera inoperável e que assim ela tende a não ser senão o tempo mesmo que destrói (apaga) o tempo, apagamento ou destruição ou dom que sempre já se confessou na precessão de um Dizer fora do dito, palavra de escritura por onde este apagamento, longe de se apagar por seu turno, se perpetua sem termo até na interrupção que lhe constitui a marca.«Mata-se uma criança». Este passivo silencioso, esta eternidade morte e à qual é preciso dar uma forma temporal de vida a fim de poder se separar dela por um assassínio, este companheiro de ninguém que procuramos particularizar numa falta, vivendo então de sua recusa, desejante deste não-desejo e falante por e contra sua não-palavra, não há nada (saber ou não-saber) que possa nos advertir dela, mesmo se em poucas palavras a mais simples das frases parece divulgá-lo (mata-se uma criança), mas frase imediatamente arrancada de toda linguagem, uma vez que é para fora de consciência e inconsciência que ela nos atrairia, a cada fez que nos seria dado, outros do que nós mesmos e em relação de impossibilidade com o outro, pronunciá-la, impronunciável.

(Uma cena primitiva?) Vocês que vivem mais tarde, próximos de um coração que não bate mais, suponham, suponham-no: a criança – ela teria sete anos, oito anos talvez? – de pé, afastando a cortina e, através da vidraça, olhando. O que ela vê: o jardim, as árvores de inverno, o muro de uma casa: enquanto ela vê, sem dúvida à luz de uma criança, seu espaço de jogo, ela se cansa e lentamente olha para o alto em direção ao céu ordinário, com as nuvens, a luz cinza, o dia opaco e sem distância. O que se passa em seguida: o céu, o mesmo céu, repentinamente aberto, negro absolutamente e vazio absolutamente, revelando (como que pela vidraça quebrada)

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uma tal ausência que tudo nela desde sempre e para sempre se perdeu, a ponto que nela se afirme e se dissipe o saber vertiginoso de que nada é aquilo que há, e de saída nada para-além". O inesperado dessa cena (seu traço interminável) é o sentimento de felicidade que imediatamente submerge a criança, a alegria devastadora da qual ela não poderá testemunhar senão pelas lágrimas, um escoamento sem fim de lágrimas. Crê-se numa tristeza de criança, procura-se consolá-la. A criança não diz nada. Ela viverá doravante no segredo. Não chorará mais.

Alguma coisa claudica na dialética, mas só o processo dialético, em sua exigência inultrapassável, em seu cumprimento sempre mantido, nos dá a pensar naquilo que dele se exclui, não por desfalecimento ou irreceptibilidade, mas no curso de seu funcionamento e a fim de que este funcionamento possa se prosseguir interminavelmente até seu termo. A história acabada, o mundo sabido e transformado na unidade do Saber que se sabe a si mesmo, o que quer dizer que o mundo para sempre deveio ou está morto, assim como o homem que dele foi a figura passageira, do mesmo modo que o Sujeito cuja identidade sábia não é mais do que a indiferença à vida, sua vacância imóvel: a partir daí onde nos é dado raramente, mesmo que seja ativamente, e pelo jogo mais perigoso, nos portar, não somos de maneira alguma livrados da dialética, mas esta se torna puro Discurso, aquilo que se fala e não diz nada, o Livro como jogo e jogada do absoluto e da totalidade, o Livro que se destrói se construindo, o trabalho do “Não” em suas formas múltiplas por trás do qual leitura, escritura se mobilizam para o advento de um Sim único e ao mesmo tempo sempre reiterado na circularidade em que não há mais afirmação primeira e última. Poderíamos imaginar que já estamos lá: de onde a preocupação e a prática-teórica da linguagem por relação ao que parece que não haja Saber que não deva se conjecturar. Como se a inversão que Marx propunha a respeito de Hegel: «passar da linguagem à vida», se invertesse por seu turno, a vida acabada, quer dizer cumprida, devolvendo a uma linguagem sem referência (por aí devindo ciência de si mesma e modelo de toda ciência) a tarefa de dizer tudo se dizendo sem fim. O que pode, sob a aparência de uma negação [désaveu] da dialética, conduzir a prolongá-la sob outras formas, de modo que não se estaria jamais seguro de que a exigência dialética não pretenda a sua própria renúncia para se renovar com aquilo que a põe fora de causa - inefetiva. De onde segue, mas não segue talvez nada, nem mesmo este talvez, mesmo que sejamos condenados a ser sempre salvos pela dialética da qual seria preciso primeiro saber aquilo que autoriza a duvidar que ela possa ser, não direi refutada (a possibilidade de uma refutação pertence a seu desenvolvimento), mas somente recusada, e se a dúvida não consegue arruinar a recusa, porque não se trataria então da recusa primeira – a recusa de começar, de filosofar, de entrar em diálogo com Sócrates ou, de modo mais geral, a recusa de preferir à violência muda a violência já falante: preferência ou decisão sem a qual, segundo Eric Weil, não seria possível haver nem dialética, nem filosofia, nem saber. Ou antes, será que não

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restaria alguma coisa desta recusa no processo dialético? Não persistiria nele ao mesmo tempo se modificando até dar lugar àquilo que não se poderia chamar uma exigência não dialética? Ou melhor, aquilo que claudica na dialética e no entanto a faz funcionar poderia se separar dela e sob quais condições, a que preço? Que isso deva custar caro, muito caro – sem dúvida a razão, em forma de logos, mas há uma outra razão? -, é aquilo que se deixa pressentir e, outro pressentimento, se há limites ao campo dialético, estes se deslocando sem cessar, é preciso perder a ingenuidade de crer que se possa, uma vez por todas, exceder estes limites, designar zonas de saber e de escritura que neles permaneceriam decididamente estrangeiras, mas de novo ainda, pela recusa que a acompanha e a altera e a consolida, perguntemo-nos se não é fazendo obstinadamente seu jogo que nos aconteceria de driblá-la ou de pô-la em falta no fato de que ela não saberia desfalecer. No lugar da recusa – que é sem lugar – invocada por Eric Weil, talvez seria preciso, fora de todo misticismo, entender aquilo que não entendemos: a exigência não exigente, desastrosa, do neutro, a efração do infinitamente passivo onde se encontram, se desjuntando, o desejo indesejável, a pulsão do morrer imortal.

Se se pronuncia o desastre, sentimos que não é uma palavra, um nome, e que não há em geral nome separado, nominal, predominante, mas sempre toda uma frase encabrestada ou simples em que o infinito da linguagem, em sua história não acabada, em seu sistema não fechado, procura se deixar encarregar por um processo de verbos, mas, ao mesmo tempo, na tensão jamais apaziguada entre nome e verbo, a tombar como em parada para fora de linguagem sem, entretanto, cessar de pertencer a ela. Assim a paciência do desastre nos conduz a não esperar nada do «cósmico» e talvez nada do mundo, ou, ao contrário, muito do mundo, se conseguirmos destacá-lo da ideia de ordem, do arranjamento sobre o qual velaria sempre a lei; enquanto o «desastre», ruptura sempre em ruptura, parece nos dizer: não há lei, interdito, depois transgressão, mas transgressão sem interdito que termina por se congelar em Lei, em Princípio do Sentido. A longa, a interminável frase do desastre: eis aquilo que procura, formando enigma, se escrever, para nos afastar (mas não uma vez por todas) da exigência unitária, esta necessariamente sempre em trabalho. O cósmico seria a maneira pela qual o sagrado, encobrindo-se (voilant) como transcendência, gostaria de se fazer imanente, a tentação, portanto, de se fundir com a ação do universo e de se tornar assim indiferente às vicissitudes fatigantes do próximo (da vizinhança), pequeno céu em que se sobrevive ou com o qual se morre universalmente na serenidade estóica, «tudo» que nos abriga, ao mesmo tempo em que nós nos dissolvemos nele, e que seria repouso natural, como se houvesse uma natureza fora dos conceitos e dos nomes? O desastre, ruptura com o astro, ruptura com toda forma de totalidade, sem, entretanto, denegar a necessidade dialética de um cumprimento, profecia que não anuncia nada além do que a recusa do profético com simples evento por vir, abrindo, todavia, descobrindo a paciência da palavra velante, atingida pelo infinito sem

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poder, isso que não se passa sob um céu sideral, mas aqui, um aqui em excesso sobre toda presença. Aqui, onde, pois? « Voz de ninguém, de novo».

O teórico é necessário (por exemplo, as teorias da linguagem), necessário e inútil. A razão trabalha para se usar a si mesma, organizando-se em sistema, à procura de um saber positivo em que ela se pouse e se repouse e ao mesmo tempo se porta a uma extremidade que forma parada e encerramento. Devemos passar por esse saber e esquecê-lo. Mas o esquecimento não é secundário, o desfalecimento improvisado daquilo que se constituiu em lembrança. O esquecimento é uma prática, a prática de uma escritura que profetiza porque ela se cumpre renunciando a tudo: anunciar talvez seja renunciar. O combate teórico, mesmo que seja contra uma forma de violência, é sempre a violência de uma incompreensão; não nos deixemos deter pelo traço parcial, simplificador, redutor, da compreensão mesma. Essa parcialidade é própria do teórico: «a golpes de martelo», dizia Nietzsche. Mas o martelamento não é somente o choque das armas; a razão martelante está à procura de seu derradeiro confronto por onde não sabemos se começa, se toma fim o pensamento que se prolonga, como um sonho feito de vigília. Por que o ceticismo, mesmo refutado, é invencível? Levinas se pergunta isso. Sabia disso Hegel, que fez do ceticismo um momento privilegiado do sistema. Era somente fazê-lo servir. A escritura, mesmo se ela parece demasaido exposta para ser dita cética, supõe também que o ceticismo deixa previamente e sempre de novo o lugar limpo, o que não pode ainda chegar senão pela escritura.

O ceticismo, nome que rasurou sua etimologia e toda etimologia, não é a dúvida indubitável, não é a simples negação niilista: antes: a ironia. O ceticismo está em relação com a refutação do ceticismo. Refuta-se o ceticismo, mesmo que seja só vivendo, mas a morte não o confirma. O ceticismo é o retorno mesmo do refutado, aquilo que faz anarquicamente irrupção, caprichosa e irregularmente, cada vez (e ao mesmo tempo não cada vez) que a autoridade, a soberania da razão, até mesmo da desrazão, nos impõem sua ordem ou se organizam definitivamente em sistema. O ceticismo não destrói o sistema, ele não destrói nada, é uma espécie de alegria sem riso, em todo caso sem zombaria, que de um golpe só nos desinteressa da afirmação, da negação: assim neutro como toda linguagem. O desastre seria, também, esta parte de alegria cética, sempre indisponível, e que faz passar o sério (da morte, por exemplo) para além de todo sério, do mesmo modo que ela alivia o teórico não nos deixando confiar nele. Chamo novamente por Levinas: «A linguagem é já ceticismo».

As tensões que se unificam não podem muito menos dar lugar a uma afirmação; não se pode então dizer, como se, por aí, se se liberasse de toda dialética: afirmação das tensões, mas, antes, paciência tendida, paciência até a impaciência. O contínuo o descontínuo seriam o conflito hiperbólico que reencontraríamos sempre, após ter-

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nos desfeito deles. A continuidade porta o descontínuo que, no entanto, a exclui. O contínuo se impõe sob todas as formas, como se impõe o Mesmo, de onde o tempo homogêneo, de onde a eternidade, de onde o logos que reagrupa, de onde a ordem em que toda mudança é regrada, a felicidade de compreender, a lei sempre primeira. Mas não basta, para romper o contínuo em sua continuidade, introduzir o heterogêneo (a heteronomia) que deles depende, que forma compromisso com o homogêneo, na medida em que a interação entre eles é uma forma de oposição apaziguada que permite a vida, que inclui a morte (como quando se cita, complacentemente e sem buscar aquilo que se decidia por ele por esta maneira abrupta de dizer, Heráclito e as palavras «viver de morte, morrer de vida»): a tradução aqui carrega aquilo que haveria para traduzir, mas não traduz, como acontece quase sempre. Há uma exigência de descontinuidade que não deveria nada ao contínuo, mesmo que fosse como ruptura? Por que este tormento monótono que se escande na escritura fragmentária e que assim chama pela paciência e não porque esta ajudaria sarcasticamente a durar? Paciência sem duração, sem momentos, interrupção indecisa sem ponto de interesse, lá onde isso velaria sempre sem que saibamos, no desfalecimento tendido por uma identidade que põe a nu a subjetividade sem sujeito.

O presente, se ele se exalta em instantes (aparecendo, desaparecendo), esquece que ele não saberia ser contemporâneo de si mesmo. Essa não-contemporaneidade é passagem sempre ultrapassada, o passivo que, fora do tempo, o desarranja como forma pura e vazia onde tudo se ordenaria, se distribuiria seja igualmente, seja desigualmente. O Tempo desarranjado, saído de seus gonzos, se deixa ainda atrair, mesmo que seja através da experiência da fenda, numa coerência que se unifica e se universaliza. Mas a experiência não-experimentada do desastre, retração do cósmico que é demasiado fácil desmascarar como o desmoronamento (a falta de fundamento onde se imobilizaria uma vez por todas, sem problemas nem questões, tudo aquilo que temos que pensar), nos obriga a nos retirar do tempo como irreversível, sem que o Retorno lhe assegure a reversibilidade.

A fenda: fissão que seria constitutiva de mim [moi] ou se reconstituiria em mim [moi], mas não um eu [moi] fendido.

A crítica é quase sempre importante, mesmo que ela fosse parcial, travestidora. Entretanto, quando ela devém imediatamente guerreira, é porque a impaciência política a carregou sobre a paciência própria ao «poético». A escritura, em relação de irregularidade consigo mesma, portanto com o todo outro, não sabe aquilo que advirá politicamente dela: está aí sua intransitividade, esta necessidade de estar em relação indireta com o político. Este indireto, o desvio infinito que tentamos entender como retardo, prazo, incerteza ou aléa (invenção também), nos torna infelizes. Gostaríamos de marchar, de uma maneira direita, em direção ao alvo, a transformação social que está em nossa

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potência de afirmar. Era outrora o voto do engajamento, é ainda aquele de uma moral passional. Daí que nos arranjemos para nos reconhecer sempre divididos: um, o sujeito livre, trabalhando para sua liberdade imaginária pela luta para a liberdade de todos e nisso respondendo à exigência dialética; o outro que não é mais um, mas sempre vários e, bem mais, em relação com a pluralidade sem unidade da qual cerceamos, demasiado facilmente, por palavras negativas, ambivalentes, justapostas (desaparecimento, separação, dispersão ou o sem-nome, sem-sujeito) a dificuldade que ele nos traz de escapar a uma experiência presente e rumo à qual a palavra de escritura momentaneamente, em sua extremidade suposta, diferença repetitiva, paciente efração, se abre ou se oferece pela perplexidade mesma. Nós vivemos-falamos dois; mas como o outro é sempre outro, não podemos nos consolar nem nos reconfortar pela escolha binária, e a relação de um ao outro se desfaz sem cessar, desfaz todo modelo e todo código, é, antes, a não-relação da qual não somos encarregados.É na primeira perspectiva que viver-escrever-falar se dá como homogêneo, como se as vicissitudes, vicissitudes históricas, da relação comum-conflitual que estes verbos portariam, unidos, separados, suscitassem um assunto comum, sempre em conflito, lá onde é necessário agir quando a linguagem se faz ato, no tumulto da violência que se desenvolve a partir dela e a domina também: tal é a lei do Mesmo. Não é preciso se desviar disso nem muito menos parar nisso, e é então em direção a um tipo totalmente outro de palavra, palavra de escritura, palavra do outro e sempre outra, cuja exigência não se desenvolve, que, fora de tudo, fora de consciência e inconsciência, por meio daquilo que vacila entre a vigília e despertar, nós nos sabemos (não o sabendo) sempre já deportados. Naturalmente, a separação, que parece tocar um e outro e dividi-los infinitamente, pode por seu turno dar lugar a uma dialética, sem que, entretanto, a exigência outra, aquela que não pede nada que se deixa sempre excluir, o esfacelamento inesfacelável, possa se anular não entrando em linha de conta.

A obra sempre já em ruína: é pela reverência, pelo que a prolonga, a mantém, a consagra (a idolatria própria a um nome), que ela se congela ou se ajunta às boas obras da cultura.

E ainda uma palavra: não é preciso dar fim ao teórico na medida em que este seria aquilo que não dá fim, na medida também em que todas as teorias, por mais diferentes que sejam, se intercambiam sem cessar, distintas somente pela escritura que as porta e escapa então às teorias que pretendem decidi-la?

Admito (a título de ideia) que a idade de ouro seria a idade despótica em que a felicidade natural, o tempo natural, a natureza então, são percebidos no esquecimento da Soberania do Rei supremo que, único [seul] detentor de Verdade-Justiça, sempre pôs boa ordem em tudo aquilo que é, coisas, vivos, humanos, de modo que esta ordem à qual, que eles vivam, que eles morram, todos são submetidos

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felizes, é aquilo que há de mais natural, já que a obediência rigorosa ao governo que a assegura torna este único, invisível e certo. De onde resulta que todo retorno à natureza corre o risco de ser retorno nostálgico à administração do único tirano ou ainda que, se se lê bem uma tradição grega, não há natureza, e tudo é «político» (Gilles Susong). Mesmo conforme Aristóteles, é a tirania de Pisístrato que, na tradição dos camponeses atenienses, era tida como a idade de Cronos ou a idade de ouro, como se a hierarquia mais dura, quando todos os valores são de um só lado, se afirmam invisivelmente, incondicionalmente, fosse o equivalente de um engodo feliz.

O sofrimento de nosso tempo: «Um homem descarnado, a cabeça pendida, os ombros curvados, sem pensamento, sem olhar». «Nossos olhares estavam virados para o solo».

Campos de concentração, campos de nadificação, figuras onde o invisível para sempre se tornou visível. Todos os traços de uma civilização revelados ou postos a nu («O trabalho liberta », « reabilitação pelo trabalho»). O trabalho, nas sociedades em que ele é precisamente exaltado como o movimento materialista pelo qual o trabalhador toma o poder, devém o extremo castigo em que não se trata mais de exploração nem de mais-valia, mas o limite em que todo valor se desfez e o «produtor», longe de reproduzir ao menos sua força de trabalho, não é mesmo mais o reprodutor de sua vida, o trabalho cessando de ser sua maneira de viver e devindo seu modo de morrer. Trabalho, morte: equivalentes. E o trabalho está em todo lugar, em todo momento. Quando a opressão é absoluta, não há mais lazer, «tempo livre». O sono está sob vigilância. O sentido do trabalho é, portanto, a destruição do trabalho no e pelo trabalho. Mas se, como aconteceu em certos kommandos, trabalhar consiste em carregar em passo de corrida pedras até tal lugar, empilhá-las, depois levá-las novamente sempre correndo ao ponto de partida (Langbein em Auschwitz; o mesmo episódio no Gulag, Soljenitsyne)? Então, o trabalho não pode mais se destruir por qualquer sabotagem, se ele é já destinado a se anular a si mesmo. No entanto, ele guarda um sentido: não somente destruir o trabalhador, mas, mais imediatamente, ocupá-lo, fixá-lo, controlá-lo e, ao mesmo tempo, talvez lhe dar consciência de que produzir e não produzir, é uma coisa só, é igualmente o trabalho, mas, por aí, fazer tomar consciência deste nada, o trabalhador, que a sociedade que se exprime pelo campo de trabalho é aquilo contra o que é preciso lutar, mesmo morrendo, mesmo sobrevivendo (vivendo apesar de tudo, abaixo de tudo, para além de tudo); sobrevida que é (também) morte imediata, aceitação imediata da morte em sua recusa (eu não me mato, porque isso lhes daria muito prazer, eu me mato, portanto, contra eles, permaneço em vida apesar deles).

O saber que vai até aceitar o horrível para o saber, revela o horror do saber, as camadas baixas do conhecimento, a cumplicidade discreta que o mantém em relação N. t. Inscrições em campos nazistas.

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com aquilo que há de mais insuportável no poder. Penso neste jovem detido de Auschwitz (ele sofrera o pior, conduzira sua família ao crematório, enforcara-se; salvo – como dizer: salvo? – no último instante, dispensaram-no do contato com os cadáveres, mas quando os SS fuzilavam, ele devia manter a cabeça da vítima para que se pudesse alojar mais facilmente uma bala na nuca). A quem lhe perguntava como ele pudera suportar isso, ele teria respondido que ele «observava o comportamento dos homens diante da morte». Não acreditarei nele. Assim como nos escreveu Lewental de quem se encontrou as notas enterradas próximas a um crematório: «A verdade foi sempre mais atroz, mais trágica que aquilo que se dirá dela». Salvo no último instante, é no último instante que o jovem homem de quem falo era cada vez obrigado a viver e a reviver, cada vez frustrado de sua morte, trocando-a pela morte de todos. Sua resposta («eu observava o comportamento dos homens...») não foi uma resposta, ele não podia responder. O que resta, é que, forçado por uma questão impossível, ele não pôde encontrar o álibi que, na busca do saber, na pretensa dignidade do saber: esta conveniência última na qual nós cremos que ela nos seria concedida pelo conhecimento. E como, com efeito, aceitar não conhecer? Lemos os livros sobre Auschwitz. O voto de todos, lá, o último voto: saibam o que se passou, não esqueçam, e ao mesmo tempo jamais vocês saberão.

Pode-se dizer: o horror domina em Auschwitz, o não-sentido, no Gulag? O horror porque a exterminação sob todas as formas é o horizonte imediato, mortos-vivos, párias, muçulmanos: tal é a verdade da vida. Entretanto, um certo número resiste; a palavra política guarda um sentido; é preciso sobreviver para testemunhar, talvez para vencer. No Gulag, até à morte de Stalin e à exceção aos oponentes políticos dos quais os memorialistas falam pouco – demasiado pouco - (exceto Joseph Berger), não há políticos: ninguém sabe por que está lá ; resistir não tem sentido, exceto para si mesmo ou para a amizade, o que é raro; só os religiosos tem convicções firmes capazes de dar significação à vida, à morte; a resistência será portanto espiritual. É preciso esperar as revoltas vindas das profundezas, depois os dissidentes, os escritos clandestinos, para que as perspectivas se abram, para que, dos escombros, as palavras arruinadas se façam ouvir, atravessem o silêncio. Seguramente, o não-sentido está em Auschwitz, o horror no Gulag. O insensato em sua derrisão é representado (talvez) melhor pelo filho do Lagerführer Schwarzhuber: com dez anos, ele vinha às vezes procurar seu pai no campo; um dia, não o encontraram; imediatamente, seu pai pensou: ele foi recolhido por descuido e lançado com os outros na câmara de gás; mas a criança somente se escondera e, daquele momento em diante, lhe puseram no pescoço um cartaz para identificá-lo. Outro signo é o desvanecimento de Himmler assistindo a execuções em massa. E a consequência: como ele temia ter-se mostrado fraco, ele deu a ordem de multiplicá-las, e foram inventadas as câmaras de gás, a morte humanizada do lado de fora, no lado de dentro o horror em seu ponto extremo. Ou ainda, às vezes se organizam concertos; a potência da música, por instantes, parece trazer o esquecimento e perigosamente fazer desaparecer a distância entre vítimas e carrascos. Mas,

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acrescenta Langbein, para os párias: nem esporte, nem cinema, nem música. Há um limite onde o exercício de uma arte, qualquer que seja, torna-se um insulto à desgraça. Não o esqueçamos.

É preciso ainda meditar (mas isso é possível?) sobre isto: no campo, se a necessidade, como o disse vivendo-a Robert Antelme, porta tudo, mantendo uma relação infinita com a vida, mesmo que seja da maneira mais abjeta (mas não se trata mais aqui de alto nem baixo), consagrando-a por um egoísmo sem ego, há também este limite em que a necessidade não ajuda mais a viver, mas é agressão contra toda a pessoa, suplício que desnuda, obsessão de todo o ser lá onde todo o ser se desfez. Os olhos foscos, apagados, brilham imediatamente num clarão selvagem por um pedaço de pão, «mesmo se subsiste a consciência de que se vai morrer dentro de alguns instantes» e de que tanto faz se alimentar ou não. Este clarão, este lampejo não iluminam nada de vivente. Entretanto, por este olhar que é um último olhar, o pão nos é dado como pão: dom que, fora de razão, os valores exterminados, na desolação niilista, toda ordem objetiva renunciada, mantém a chance frágil da vida pela santificação do «comer» (nada de « sagrado», entendamo-lo bem), alguma coisa que é dada sem partilha por aquele que disso morre («Grande é o comer», diz Levinas, conforme uma palavra judia). Mas ao mesmo tempo a fascinação do olhar moribundo em que se congela a faísca de vida, não deixa intacta a exigência da necessidade, mesmo que fosse primitiva, não permitindo mais situar o comer (o pão) na categoria do comestível. Neste momento extremo em que morrer se troca pela vida do pão, muito menos para satisfazer uma necessidade, ainda menos para torná-la desejável, a necessidade – trabalhosa – morre também como simples necessidade e exalta, se glorifica, fazendo dela alguma coisa de inumano (retirada de toda satisfação), a necessidade de pão tornada um absoluto vazio onde daquele momento em diante não podemos senão nos perder a todos. Mas o perigo (aqui) das palavras em sua insignificância teórica talvez seja pretender evocar a nadificação onde tudo soçobra sempre, sem ouvir «calem-se» dirigido àqueles que não conheceram senão de longe ou parcialmente a interrupção da história. Entretanto, velar sobre a ausência desmesurada, é preciso, é preciso sem cessar, porque aquilo que recomeçou a partir deste fim (Israel, nós todos), é marcado por este fim com o qual não terminamos de, por ele, nos despertar.

Se o esquecimento precede a memória ou talvez a funde ou não tem parte com ela, esquecer não é somente uma falta, uma omissão, uma ausência, um vazio (a partir do qual nós nos lembraríamos, mas que, no mesmo momento, sombra anticipadora, riscaria a lembrança em sua possibilidade mesma, devolvendo o memorial à sua fragilidade, a memória à perda de memória): o esquecimento, nem negativo nem positivo, seria a exigência passiva que não acolhe nem retira o passado, mas, designando nele aquilo que jamais teve lugar (como no por vir aquilo que não saberá encontrar seu lugar num presente), reenvia a formas não históricas do tempo, ao

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outro dos tempos, a sua indecisão eterna ou eternamente provisória, sem destino, sem presença.O esquecimento apagaria aquilo que jamais foi inscrito: rasura pela qual o não-escrito parece ter deixado um traço que seria preciso obliterar, deslizamento que vem por isso a construir para si um operador por onde o ele sem sujeito, liso e vão, se gruda, se induta no abismo desdobrado do eu [je] evanescente, simulado, imitação de nada, que se congelará no Eu [Moi] certo do qual toda ordem revém.

Nós supomos que o esquecimento trabalha à maneira do negativo para se restaurar em memória e memória vivente e revificada. É assim. Pode ser de outro modo. Mas mesmo, se separamos ousadamente o esquecimento da lembrança, nós procuramos ainda um efeito de esquecimento (efeito do qual o esquecimento não é a causa), uma espécie de elaboração escondida e do escondido que se manteria no intervalo do manifesto e que, se identificando com este intervalo mesmo (a não-identidade) e se mantendo como não-manifesto, não serviria a nada além da manifestação; do mesmo modo que o lethé termina tristemente, gloriosamente, em alethéia. O esquecimento inoperante, para sempre desobrado, que não é nada e não faz nada (e que mesmo o morrer não alcançaria novamente), eis aquilo que, se esquivando ao conhecimento como ao desconhecimento, não nos deixa tranquilos, não nos inquietando, já que nós o recobrimos com a inconsciência-consciência.

O mito seria a radicalização de uma hipótese, a hipótese pela qual, passando ao limite, o pensamento sempre envolveu aquilo que o dessimplifica, o desagrega, o desfaz, destruindo em cheio a possibilidade de se manter, mesmo que fosse pelo relato fabuloso (retorno ao dizer mesmo). Mas resta que a palavra mito protege, na medida em que, sem rasurar a palavra verdade, ela se dá como não-verdadeira, o inatual que não agirá, ao menos para aqueles (nós todos) que vivendo parecem não reconhecer senão o poder ativo do presente. Do mesmo modo, a radicalização em que o jogo etimológico parece nos prometer a segurança do enraízamento, dissimula o arrancamento que a exigência do extremo (escatologia: sem ultimidade e sem logos) tira de nós como desterrados, privados pela linguagem mesma da linguagem entendida ainda como terra em que se enterraria a raiz germinal, a promessa de uma vida em desenvolvimento.

As palavras mais simples veiculam o incambiável, cambiando-se em torno dele que não aparece.A vida tão precária: jamais presença de vida, mas nossa eterna prece a outrem para que ele viva enquanto morremos.

Do «câncer» mítico ou hiperbólico: por que ele nos apavora por seu nome, como se por aí o inominável se designasse? Ele pretende pôr em xeque o sistema de código sob a autoridade do qual, vivendo e aceitando viver, estamos na segurança de uma existência puramente formal, que obedece a um signo modelo conforme um

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programa cujo processo seria de ponta a ponta normativo. O «câncer» simbolizaria (e «realizaria») a recusa de responder: eis então uma célula que não entende a ordem, se desenvolve fora da lei, de uma maneira que se diz anárquica – ela faz mais: destrói a ideia de programa, tornando duvidosas a troca e a mensagem, a possibilidade de reduzir tudo a simulações de signos. O câncer, sob este ponto de vista, é um fenômeno político, uma das raras maneiras de deslocar o sistema, de desarticular por proliferação e desordem a potência programante e significante universal – tarefa outrora cumprida pela lepra, depois pela peste. Qualquer coisa que não compreendemos neutraliza maliciosamente a autoridade de um saber-mestre. Não é, portanto, pela simples morte no trabalho que o câncer seria uma ameaça singular: é como desregramento mortal, desregramento mais ameaçador que o fato de morrer e devolvendo a este seu traço de não se deixar contar nem entrar em linha de conta, do mesmo modo que o suicídio desaparece das estatísticas em que se pretende enumerá-lo. Se a célula dita cancerosa, se reproduzindo indefinidamente, é eterna, aquele que dela morre pensa, e é essa a ironia de sua morte: «Eu morro de minha eternidade».

As palavras a afastar por causa de sua sobrecarga teórica: significante, simbólico, texto, textual, depois ser, depois finalmente todas as palavras, o que não seria suficiente, pois, as palavras não podendo ser constituídas em totalidade, o infinito que as atravessa não saberia se deixar surpreender por uma operação de retração - irredutível pela redução.

Dando voz àquilo que é comum, não segundo o ser, mas através do outro que o ser, que se anuncia desordenado, não escolhido, não acolhido, a impotência de atração.

Calma, sempre mais calma, a calma indesejável.

Comum: nós partilhamos as cargas, cargas insuportáveis, fora de medida e fora de parte. A comunidade não se imuniza, sempre passou além da troca mútua de onde ela parece vir, vida do irreciproco, do introcável, daquilo que arruína a troca (a troca tem sempre por lei o estável). Mudar supõe, por contraste, a não-mudança. Mas mudar a partir do fora que exclui o mutável e o imutável e a relação que se introduz subrepticiamente a partir de um e do outro.

Resta o inominado em nome de que nós nos calamos.

O dom, a prodigalidade, o consumação não deslocam senão momentaneamente o sistema geral que a lei domina e que faz poucas diferenças entre útil e inútil: a consumação devém o consumo; ao dom responde o contradom; o desperdício pertence ao rigor da gestão de coisas que não funciona senão graças a um certo jogo, que não é o signo de um fracasso, mas uma forma de gasto onde a usura se preserva

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fazendo uma parte àquilo que aparentemente não serve. Não se pode então falar da perda «pura e simples», ou antes, não se pode senão falar dela até o momento em que a perda, sempre inapropriada e impura, retumba na linguagem como aquilo que não se deixa jamais dizer, mas ressoa ao infinito se perdendo nele e tornando-o atento à exigência de se perder – exigência por si mesma inexistente ou já perdida. Nem o sol nem o universo nos ajudam, de outro modo senão por imagens, a conceber um sistema de trocas marcado pela perda no ponto em que mais nada não se manteria junto nele e em que o incambiável não se fixaria mais em termos simbólicos. (Georges Bataille jamais pensou por muito tempo: «o sol não é senão a morte»). O cósmico nos tranquiliza pelo arrepio desmesurado de uma ordem soberana com a qual nós nos identificamos, mesmo que seja para além de nós mesmos, na salvaguarda da unidade santa e real. Assim é com o ser e provavelmente com toda ontologia. O pensamento do ser encerra de todas as maneiras, inclusive aquilo que não se compreende nele, o ilimitado que se reconstitui sempre pelo limite. A palavra do ser é palavra que assujeita, retorna ao ser, dizendo a obediência, o obedecimento, a audiência soberana do ser em sua presença escondida-manifesta. A recusa do ser é ainda assentimento, consentimento do ser à recusa, à possibilidade recusada: nenhum desafio à lei pode se pronunciar nela de outro modo do que no nome da lei que nela se confirma. Abandona a esperança fútil de encontrares no ser apoio para a separação, a ruptura, a revolta que poderiam se cumprir, se verificar. Pois é que tu ainda precisas da verdade e de colocá-la acima do «erro», como tu queres distinguir a morte da vida e a morte da morte, fiel ao absoluto de uma fé que não ousa se reconhecer vazia e que se satisfaz com uma transcendência da qual o ser seria ainda a medida. Procura, portanto, não procurando nada, aquilo que esgota o ser precisamente onde ele se representa como inesgotável, o em vão do incessante, o repetitivo do interminável por onde não há talvez mais lugar em distinguir entre ser e não ser, verdade e erro, morte e vida, pois um remete ao outro, como o semelhante se agrava em semelhante, quer dizer em não-igual: o sem parada do retorno, efeito da instabilidade desastrosa.

O dom seria um ato de soberania pelo qual o «eu» que doa livremente e gratuitamente desperdiçaria ou destruiria «bens»? O dom de soberania não é ainda senão título de soberania, enriquecimento de glória e de prestígio, mesmo que seja no dom heróico da vida. O dom é, antes, retração, subtração, arrancamento e, antes de mais nada, suspensão de si. O dom seria a paixão passiva que não deixa o poder de doar, mas, me depondo de mim mesmo, me obriga me desobrigando lá onde não tenho mais, não sou mais, como se doar marcasse em sua proximidade a infinita ruptura, a distância incomensurável da qual o outro é menos o termo do que a inassinalável estranheza. É porque doar não é doar alguma coisa, mesmo dispendiosamente, nem dispensar nem se despender, é antes doar aquilo que é sempre tomado, quer dizer, talvez o tempo, meu tempo enquanto ele não for jamais meu, do qual eu não disponho, os tempos para além de mim e de minha

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particularidade de vida, o lapso de tempo, o viver e o morrer não na minha hora, mas na hora de outrem, figura infigurável de um tempo sem presente e sempre revindo.

O dom do tempo seria desacordo com aquilo que se acorda, perda (no tempo e pelo tempo) da contemporaneidade, da sincronia, da «comunidade», isso que agrupa e reagrupa: advento - que não advém - da irregularidade e da instabilidade? Enquanto tudo vai, nada vai junto.

A energia se dilapida como destruição das coisas ou colocação fora da coisa. Admitamo-lo. Todavia, essa dilapidação, enquanto o desaparecimento da coisa, até mesmo da ordem das coisas, busca por seu turno entrar em linha de conta, seja reinvestindo-se como outra coisa, seja deixando-se dizer; por aí, por esse dizer que a tematiza, ela devém considerável, reentra na ordem e se «consagra». Só a ordem ganhou em sua perda.

«A soberania não é NADA» (G. B.)

Entre o homem de fé e o homem de saber, poucas diferenças: os dois se desviam do alea destruidor, reconstituem instâncias de ordem, apelam a um invariante que eles pregam ou teorizam – todos os dois, homens de arranjo e de unidade para quem o outro e o mesmo se conjugam, falando, escrevendo, calculando, eternos conservadores, conservadores de eternidade sempre em busca de alguma constância e pronunciando a palavra ontológica com um fervor assegurado.

«A poesia, senhoras e senhores: uma palavra de infinito, palavra da morte vã e do só Nada» (Celan). Se a morte é vã, a palavra da morte também o é, inclusive aquela que crê dizê-lo e decepciona ao dizê-lo. Não contem com a morte, a de vocês, a morte universal, para fundar o que quer que seja, nem mesmo a realidade desta morte tão incerta e tão irreal que ela se esvanece sempre de antemão e que com ela se esvanece aquilo que a renuncia. As duas formulações «Deus é morto», «o homem é morto», destinadas a soar ao léu para as orelhas crédulas e que se inverteram comodamente ao benefício de toda crença, mostram bem, mostram talvez que a transcendência – esta palavra, esta grande palavra que deveria se arruinar e guarda entretanto um ar majestoso – a carrega sempre, mesmo que seja sob uma forma negativa. A morte retoma por sua conta a transcendência divina para sobrelevar a linguagem acima de todo nome. Que Deus seja morto tem por sequência que a morte é de Deus; a partir do que a frase imitativa «o homem é morto» não põe de maneira alguma em xeque a palavra homem entendida como noção transitória, mas anuncia quer uma super-humanidade com todos seus semblantes aventurosos, quer a denúncia da figura humana para que se anuncie, de novo e em seu lugar, o absoluto divino que a morte importa, do mesmo tempo que ela o transporta.

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Daí que nós sejamos chamados a levar em conta aquilo que, ironicamente («senhoras, senhores»), Celan gostaria de nos dizer. Nós o podemos? Ressalto que ele põe em relação, por uma relação de enigmática justaposição, a palavra o infinito, a palavra a morte vã, esta redobrada pelo Nada como terminação decisiva: o nada final que, no entanto, está sobre a mesma linha (sem precessão nem sucessão) do que a palavra que vem do infinito, onde o infinito se dá, retine infinitamente. Palavra de infinito, palavra de nada: isso vai junto? Junto mas sem acordo, sem acordo mas sem discordância, pois há palavra de um e de outro, aquilo que deixaria pensar que não haveria palavra poética se o entendimento infinito não se desse a ouvir como o retinir estritamente delimitado da morte em seu vazio, proximidade de ausência que seria o traço mesmo de todo doar. Assim, venho a esta suposição: «Deus é morto», «o homem é morto», pela presunção daquilo que gostaria de se alarmar aí fazendo do «ser-morto» uma possibilidade de Deus, como do «ser-morto» uma possibilidade humana, são talvez somente o signo de uma linguagem ainda demasiado potente, soberana em alguma maneira, que assim renuncia a falar pobremente, de modo vão, no esquecimento, no desfalecimento, na indigência – a extinção do sopro: únicas marcas de poesia. (Mas «únicas»? Esta palavra, em seu desígnio de exclusão, falta à pobreza que não saberia se defender, e deve por seu turno se extinguir).

Pode-se duvidar de uma linguagem e de um pensamento que devem recorrer, sob formas variadas, a determinantes de negação para introduzir questões até então reservadas. Nós interrogamos o não-poder, mas não é a partir da potência? do impossível mas como o extremo ou o jogo do possível? Nós nos prestamos ao inconsciente sem conseguir separá-lo da consciência de outro modo do que negativamente. Discorremos sobre o ateísmo, o que sempre foi uma maneira privilegiada de falar de Deus. Em revanche, o infinito não se ganha senão sobre o finito que, por isso, não termina de terminar e se prolonga sem fim pelo desvio ambíguo da repetição. Mesmo o absoluto, como afirmação massiva e solitária, porta a marca daquilo com que ele rompeu, sendo o rejeito da solução, o distanciar toda ligação ou toda relação. Mas, enfim, aquilo que um discurso filosófico ou pós-filosófico nos deu, acentuando o alethés grego, designado etimologicamente como não-escondido, não-latente, deixa entender a primazia do escondido em relação ao manifesto, do latente ao olhar do aberto, de modo que, caso se se recuse a pôr em trabalho o negativo à maneira de Hegel, haveria nisso que se nomeará pela sequência verdade, não o traço primeiro de tudo aquilo que se mostra em presença, mas a privação já segunda de um dissimulado mais antigo, de um se retirar, se subtrair que não o é por relação ao homem ou nele mesmo, que não é destinado à divulgação, mas que é portado pela linguagem como o segredo silencioso desta. De onde se concluirá que, ao interrogar de uma maneira necessariamente abusiva, o saber «etimológico» de uma língua (que não é apesar de tudo senão um saber particular), é também por abuso que se chega a privilegiar a palavra presença entendida como ser, não que seja preciso dizer o contrário, a saber que presença

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reenviaria a uma ausência sempre já recusada ou ainda que a presença, presença de ser e como tal sempre verdadeira, não seria senão uma maneira de afastar a falta, mais precisamente de faltar à falta, mas que talvez não haveria lugar para estabelecer uma relação de subordinação ou qualquer relação que seja entre ausência e presença, e que o «radical» de um termo, longe de ser o sentido primeiro, o sentido próprio, não alcançaria a linguagem senão pelo jogo de pequenos signos não independentes e por si mesmos mal determinados ou incertamente significativos, determinantes que fazem jogar a indeterminação (ou indeterminantes que determinam) e arrastam aquilo que gostaria de se dizer numa deriva geral onde não há mais nome que como sentido pertença a si mesmo, mas não tem por centro senão a possibilidade de se descentrar, de se declinar, se infletir, se exteriorizar, se denegar ou se repetir: no limite se perder. (Pode-se ainda propor esta observação à reflexão, mesmo se a moda se apodera dela para pôr em valor como índex cômodo aquilo que na linguagem não se indica: a neutralização repetitiva).

A etimologia ou um modo de pensar que se reclama ou se aprofunda com pesquisas etimológicas, abre um espaço de questões que se parece deixar de lado, atraído por pré-conceitos que não se quer ou não se pode reconhecer. A palavra mesma etimologia reenvia por sua etimologia a uma afirmação que regula aquilo sobre aquilo que se se interroga: saber do sentido «verdadeiro» das palavras (o que se pode dizer do etymon?). Mas não podemos nos deixar prender a uma tal proposição. O saber de erudição se distingue muito ou pouco das etimologias ditas populares ou literárias - etimologias de afinidade e não mais somente de filiação: é um saber estatisticamente provável, não somente dependente de pesquisas fonológicas sempre a completar, mas dependente dos tropos da linguagem que, em certas épocas, se impõem implicitamente (hoje, metonímia, metáfora; tudo gira em torno dessas duas únicas figuras: «cães de faiença insubstituíveis», diz Gérard Génette com uma útil ironia). Por que a filiação nos impressiona? O sentido mais antigo de uma palavra na mesma língua ou em línguas diferentes parece restaurar ou reavivar a significação que a linguagem corrente utiliza usada ou em razão da usura. Com esse pensamento-sorrateiro [arrière-pensée] de que o mais antigo está mais próximo da pura verdade ou remete em memória aquilo que se perdeu. Ilusão fecunda ou não, mas ilusão. Jean Paulhan mostrou que a etimologia não saberia constituir prova. Como Benveniste e com ele, Paulhan mostrou que nós não remontamos necessariamente pela etimologia a um sentido mais concreto, até mesmo mais «poético», já que numerosos exemplos provam ou provariam que «o abstrato» se impõe de saída, do mesmo modo que não se vai da motivação à imotivação. Para, assim, revir à etimologia de alethéia à qual Heidegger se confia com uma perseverança admirável, resta a saber por que, revelando o pensamento grego, ela – a etimologia de alethéia – parece ignorada pelos gregos - e por que Platão, talvez por jogo, mas que seriedade no jogo, tenha lido ale-théia, descobrindo um sentido que se pode traduzir por: errância divina - o que não é também de pouca importância. A verdade (aquilo que

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se nomeará comumente verdade) quereria dizer segundo essa etimologia: corrida errante, extravio dos deuses; de onde segue que é a palavra «divino» - théia - que ressoa de saída em alethéia e que o a privativo não funciona então de uma maneira privilegiada, mesmo se se duvida que a palavra tão antiga, apeíron, tenha podido não se decompor de modo outro do que pondo em valor a negação. Resta que Heidegger, quando reconhece a língua privilegiada na língua grega capaz da palavra alethéia, etimologicamente de uma significância tão decisiva, se conduz, ambos tão pouco ingênuos, tão ingenuamente quanto Hegel transportado pela língua alemã qualificada de especulativa porque ela porta a palavra Aufhebung. Pois foram um e o outro, seja com a ajuda de uma etimologia suposta (provável), seja por uma análise verbal, que criaram essas palavras, filosófica ou poéticamente: palavras de aurora de onde segue um dia de pensamento à luz do qual momentaneamente não se escapa. (Heidegger: «É o dote mais sublime que a língua dos gregos já recebeu ». E, no entanto, ao se seguir Heidegger mesmo, a alethéia, tal como se a pensa sem pensá-la, não pertence ainda à língua grega, pois não há língua e logos senão pela alethéia que é liberada de todo olhar sobre a verdade e mesmo sobre o ser. Entretanto, é preciso dizer também que ela «joga na totalidade da língua grega » e que, se Heráclito não a encontra, não se expõe a ela, é por causa da predominância nele e por ele do logos. Bloqueio em algum modo da a-lethéia pelo legein. Enfim, há lugar para observar que, se alethéia se entende e se traduz por «desabrigo4» (tradução momentaneamente escolhida por Beaufret e Janicaud), é então um movimento totalmente outro de pensamento, uma direção totalmente outra do que aquela que a tradução mais frequente (o «não-velado», o «não-escondido», o «desvelamento») nos propõe. O «desabrigo» pode se concluir desse fato de que a palavra alemã Unverborgenheit reenvia a bergen: esconder, pôr em segurança, confiar ao lugar protetor, abrigar. A alethéia como desabrigo reconduz à errância, sentido que tinha previsto Platão (no Crátilo). De onde a precaução de não insistir sobre a frase demasiado conhecida: «linguagem, casa do ser». Mesmo em Platão, o mito da caverna é também o mito do abrigo: arrancar-se àquilo que abriga, desviar-se dele, desabrigar-se, eis aqui uma das peripécias maiores que não é somente aquela do conhecimento, mas justamente antes condição de uma «reviravolta de todo o ser », como o diz ainda Platão – retorno brusco que nos põe em face à exigência da virada. Que tal ou qual maneira de traduzir engaje a esse ponto o pensamento, pode-se se assustar com isso, lamentar-se e concluir que a filosofia não é senão uma questão de palavras. Nada a dizer contra isso, senão que é preciso sempre se perguntar, como o sugeria Paulhan, por que uma palavra é sempre mais do que uma palavra. E Valéry: «A tarefa filosófica a se cumprir seria de reenviar à história as palavras da filosofia cumprida. » Mas revenhamos à questão mais instante: a parte concedida ao saber frágil da etimologia não é excessiva, quer dizer, demasiado fácil?). Resta ainda que a etimologia, saber certo ou incerto, fixa a atenção sobre a palavra como célula seminal da linguagem, nos reenviando ao antigo preconceito de que a 4 N. T: Em francês “Desabritement”.

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linguagem seria essencialmente feita de nomes, seria nomenclatura. (Valéry dizia jà que um dos erros da filosofia é de se ater às palavras negligenciando as frases. «Ó, filósofos, o que é preciso elucidar, não são as palavras… são as frases»). Mas muito menos nada está decidido por aí. O privilégio concedido ao verbo que reduz o nome a uma ação somente congelada, fixada, mesmo se ele constrange a opção cratiliana, mesmo se ele torna mais difícil a criação etimológica, nos faz reencontrar os mesmos problemas quase não modificados: frases, sequências de frases, nascimentos de frases, frases evanescentes numa linguagem ou numa pluralidade de linguagens; desde que escrevemos, arrastamos conosco estes problemas, pensando sem pensar neles. A menor palavra, dizia já Humboldt, é toda a linguagem, todo o gramatical de uma língua, que nela se supõe. Resta enfim que o delírio sábio da etimologia está em relação com a vertigem histórica. Toda a história de uma língua, sob a pressão de certas palavras, se abre e, por esta analogia, quer se mistifica, quer se desmistifica – pensamos e falamos na dependência de um passado ao qual pedimos contas ou que nos mantém não sem prestígio em seu esquecimento. O escritor que joga, inventa ou, de uma maneira mais esquiva, se assegura, pela etimologia, com um pensamento, é menos desfiante do que exageradamente confiante na força criadora da linguagem que ele fala, vida da linguagem, invenção popular, intimidade dialetal: sempre a linguagem como morada, a linguagem habitável, nosso abrigo. E imediatamente nos sentimos enraizados, puxando então esta raiz por um arrancamento que a exigência de escritura detém, do mesmo modo que ela tende a nos arrancar a todo natural, a série etimológica reconstituindo em uma espécie de natureza histórica o devir linguageiro. O outro perigo da etimologia não é somente sua relação implícita com uma origem, o maravilhamento de recursos improváveis que ele nos descobre de uma maneira sedutora, é que ela nos impõe sem poder justificá-la nem mesmo assim se explicar com isso uma certa concepção de história – qual? Está longe de estar claro: necessidade de uma proveniência, continuidade sucessiva, lógica de homogeneidade, acaso se fazendo destino, as palavras tornadas o depósito sagrado de todos os sentidos perdidos, latentes, cuja recolha é de agora em diante a tarefa daquele que escreve em vista de um Dizer final ou de um contra-Dizer (acabamento, cumprimento) – etimologia e escatologia teriam então parte ligada, começo e fim supondo-se para assim chegar à presença de toda presença ou parusia. Mas a seriedade etimológica que abandonou a seriedade científica, tem por correspondência, ou compensação, as fantasias etimológicas, estas farsas que sempre em certos momentos se deram livre curso e que, desde que a ciência da linguagem impôs conquistas quase certas, não aparecem mais do que como uma pequena loucura, um devaneio de língua, jogo de desejo, destinado a se libertar do saber mesmo exigindo a miragem lexical ou ainda a mimar, para deles rir, os usos do inconsciente – por fim, não se ri e não se se diverte, o que é também sem importância. Salvo neste fato de que o ceticismo parece ganhar, mas o ceticismo pede mais.

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Qual é a justificação da relação que estabelece Heidegger entre Ereignis - cujo sentido corrente é «evento»-, Eraügnis, do qual ele o aproxima (por uma decisão que o «Duden» - célebre dicionário alemão - legitima: Eraügnis, antiga palavra em que a palavra olho, Auge, se deixa adivinhar, que chama, pois, pelo olhar, o ser nos olharia; o que de novo relaciona ser e luz) e Ereignis se analisando de tal sorte que a palavra eigen, «próprio», se destaca ao ponto que «o evento» devém aquilo que faz advir ao nosso ser «o mais próprio» («Duden» recusa a relação etimológica entre eigen, próprio, e Ereignis). Não é o arbitrário que aqui surpreende, é ao contrário o trabalho mimético, o semblante da analogia, o apelo a um saber contestável, o qual nos torna trapaceados por uma espécie de necessidade transhistórica. É verdade que a exigência de uma «justificação» pode, por seu turno, aqui como alhures, ser acolhida e rejeitada. Não há nada a justificar, isso não releva do justo ou do não-justo, mas se dá como uma incitação a pensar e a interrogar. Heidegger diz: «Jamais crer em nada, tudo tem necessidade da prova». Eis porque nós também nos interrogamos, reconhecendo nessa prova um procedimento filológica e filosoficamente oneroso.

Admitamos que a palavra eigen, tal como a encobre misteriosamente Ereignis, não indique nada que anunciaria «propriedade» e «apropriação», que ela é ilimitada, na medida em que «ser» não é mais sua conveniência e não saberia se decidir a isso. Mas por que eigen, «próprio» (como traduzi-lo de modo outro?) Ao invés de «impróprio»? Por que esta palavra? Por que «presença» em sua afirmação teimosa (paciente), que nos entrega ao repúdio da «ausência», do mesmo modo que, outrora, em Sein und Zeit, a oposição entre «autenticidade» e «inautenticidade» - tradução superficial - preparava de uma maneira ainda tradicional a questão mais enigmática do «próprio» que finalemente nós não podemos acolher ao mesmo título que aquilo que pemanece indecidido n’«a-propriação» (Derrida), nessa ausência de lugar e de verdade sem a qual o dom da escritura, o dom do Dizer, dando tanto a vida quanto a morte, tanto o ser quanto o não-ser, não seria mais essa despesa que desarranja todo evento. «Impróprio» ou «a-propriação», ao passo que, no entanto, o «próprio» é neles recebido ao mesmo tempo que recusado, é o apelo àquilo que nos obriga, por isso, a não mais terminar e não saberia se reclamar uma verdade, mesmo que ela fosse entendida como não-verdade. Assim a errância corre em vão sobre o seu erro. (Não esqueçamos que, para Heidegger, o Ereignis tem também por traço sua retração, designado pelo Enteignen - Enteignis - ou despropriação.)

Nem ler, nem escrever, nem falar, é, no entanto, por aí que escapamos ao já dito, ao Saber, ao entendimento, entrando no espaço desconhecido, espaço de angústia, onde aquilo que é dado talvez não seja recebido por ninguém. Generosidade do desastre. Nesse espaço a morte, a vida são sempre ultrapassadas.

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O dom de escrever é precisamente aquilo que a escritura recusa. Aquele que não sabe mais escrever, que renuncia ao dom que recebeu, cuja linguagem não se deixa reconhecer, está mais próximo da inexperiência não-provada, a ausência do «próprio» que, mesmo sem estar, dá lugar ao advento. Quem louva o estilo, a originalidade do estilo exalta somente o eu [moi] do escritor que recusou abandonar tudo e ser abandonado de tudo. Em breve ele será notável; a notoriedade o entrega ao poder: faltar-lhe-iam o apagamento, o desaparecimento.Nem ler, nem escrever, nem falar, não é o mutismo, talvez seja o murmúrio inaudito: estrondo e silêncio.

«Só alcançou o fundo de si mesmo e reconheceu toda a profundidade da vida aquele que um dia abandonou tudo e foi abandonado por tudo, para quem tudo soçobrou e que se viu só com o infinito: é um grande passo que Platão comparou com a morte» (Schelling, citado por Heidegger).

Por que mais um livro ainda, lá onde o abalo da ruptura - uma das formas do desastre - o devasta? É que a ordem do livro é necessária àquilo que lhe falta, à ausência que se esquiva dele: da mesma maneira que o «próprio» da «apropriação », o evento onde copertencem o homem e o ser, se abisma no impróprio da escritura que escapa à lei, ao rastro, assim como ao resultado de um sentido garantido. Mas o impróprio não é somente a negação do «próprio», ele se desvia do próprio ao mesmo tempo que se reporta a ele: ele o atrai no abissal, o mantém ao desabusá-lo. Próprio ressoa ainda no impróprio: como a ausência de livro, o fora-de-livro faz entender aquilo além do qual ele passa. Daí o apelo ao fragmentário e o recurso ao desastre, se nós nos relembramos de que o desastre não é somente o desastroso.

Por que mais livros ainda, senão para provar-lhes o fim tranquilo, tumultuoso que só opera o «trabalho» da escritura, lá onde a dispersão do sujeito, a retirada do múltiplo nos entregam a essa « tarefa do passamento » da qual fala M'Uzan, mas que não saberia se contentar, como ele o sugere, de fazer viver a vida até o esgotamento por uma renovação do desejo. Nisso reconheço, antes, a paixão, a paciência, a extrema passividade que abre a vida ao morrer e que é sem evento - do mesmo modo que a «biografia» já rasurada, que é vida e morrer de escritura (tal como Roger Laporte nos propôs o nome solitário), não deixa nada chegar, não garante nada, nem mesmo o fato de escrever – o que devolve ao segredo do neutro esse morto-sobrevivente ao qual vocês prestam a designação estável, quase profissional, de escritor.

Ele escrevia, quer isso fosse possível ou não, mas não falava. Tal é o silêncio da escritura.

«Escrever é incessante, e, no entanto, o texto não avança senão deixando para trás de si lacunas, buracos, rasgos e outras soluções de continuidade, mas as rupturas elas

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mesmas são rapidamente reinscritas, pelo menos por muito tempo que...» (Roger Laporte) – «Escrever... poderia constituir bem mais do que um gênero novo». Mas «se Escrever exige e, no entanto, recusa toda escritura, toda tipografia, todo livro, como escrever?»... «Não compreendo mais como pude por tanto tempo me identificar com o projeto estético de criar um gênero novo». « Escrever não foi riscado senão com um traço oblíquo: é preciso que eu dê o acabamento final ao trabalho de destruição» (R. L.).

«... salvar um texto de sua desgraça de livro» (Levinas).

O que chegou não chegou - assim falava a paciência para que não fosse apressado o fim.

«Eu» morro antes de ter nascido.

Materialismo: o «meu» seria talvez medíocre, sendo apropriação ou egoísmo; mas o materialismo de outrem - sua fome, sua sede, seu desejo - é a verdade, a importância do materialismo.

Há uma leitura ativa, produtiva - produzindo texto e leitor, ela nos transporta. Depois a leitura passiva que trai o texto, parecendo se submeter a ele, dando a ilusão de que o texto existe objetivamente, plenamente, soberanamente: unitariamente. Enfim, a leitura não mais passiva, mas de passividade, sem prazer, sem gozo, escaparia tanto à compreensão quanto ao desejo: é como a veladura noturna, a insônia «inspiradora» em que se ouviria o «Dizer» para além do tudo está dito e em que se pronunciaria o testemunho da última testemunha.

Última testemunha, fim da história, época, virada, crise – ou então, fim da filosofia (metafísica). Mesmo em Heidegger, ao longo de um seminário que parece autorizar com sua presença, a questão da entrada no advento (Ereignis, com tudo o que esta palavra aporta) implica falar do «fim da história do ser», nuançando-a com estas precauções: « Há que se meditar se ainda é possível falar de ser e também de história do ser após a entrada no advento, se é verdade ao menos que a história do ser é compreendida como a história de doações nas quais o advento (Ereignis) se mantém em retração». Mas é duvidoso que Heidegger se tenha reconhecido numa tal proposição cujo mérito é a temeridade e cujo sentido é somente demasiado claro: as doações que são as maneiras pelas quais o ser se dá ao se retirar (para se ater aos Gregos: logos em Heráclito, Uno em Parmênides, ideia em Platão, energeia em Aristóteles e, último avatar entre os modernos, Gestell – do qual Lacoue-Labarthe propõe este equivalente: instalação), se interromperiam desde o instante em que o Ereignis, o advento, advém, cessando de se deixar esquivar pelas «doações de sentidos» que ele torna possíveis através de sua retração. Mas se uma decisão histórica (já que é

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preciso se exprimir assim) se anuncia com a frase «o advento advém», fazendo-nos advir a nosso (ser) «o mais próprio», seria preciso muita ingenuidade para não pensar que a exigência de se retirar cessou, desde então. É antes o «se retirar» que rege de uma maneira mais obscura, mais instante, pois o que se pode dizer do Eigen, «nosso ser mais próprio»? Nós não o sabemos, a não ser que ele reenvia a Ereignis, da mesma maneira que Ereignis o «encerra», ao mesmo tempo que o mostra por uma análise verbal necessariamente grosseira. De novo, nada é dito quando tudo é dito pelo mais prudente dos pensadores: exceto que se coloca a questão, com Heidegger que não a coloca diretamente, do fim da história do ser – assim como Hegel deixa a outros a formulação abrupta: «fim da história».Por que escrever, entendido como mudança de época, entendido como a experiência (a não-experiência) do desastre, implica cada vez as palavras inscritas na cabeça deste «fragmento», que ele revoga entretanto? Que ele revoga, mesmo se aquilo que nele se anuncia, se anuncia como um novo que sempre já teve lugar, mudança radical da qual todo presente se exclui.Quanto à afirmação da história, campo de uma dialética que seria outra que a dialética hegeliana, dialética dita infinita, dialética do aqui-agora, história sem progresso nem regresso (não circular), ela não pode muito menos renunciar a exigências múltiplas cuja pressão se inscreve em forma de época. Escrever na ignorância e na rejeição do horizonte filosófico, pontuado, agrupado ou dispersado pelas palavras que delimitam este horizonte é necessariamente escrever na facilidade da complacência (a literatura da elegância e do bom gosto). Hölderlin, Mallarmé e tantos outros não nos permitem isso.

Os postulados da etimologia: o infinito se constitui a partir do finito, como sua negação-inserção (o infinito é o não-finito e também no finito), do mesmo modo que o alethéia não se entenderia senão a partir de e em lethé. Mas nós podemos sempre recusar esta decomposição lexical. Podemos sempre pôr e entrever que a exigência do infinito ou como sentimento vago, ou como a priori de toda compreensão, ou como um conjunto – supratotalidade – sempre em ultrapassamento, é necessária para que recebamos a palavra e a ideia de finito (Descartes!): dito de outro modo, o infinito da linguagem como conjunto infinito é, então, sempre pressuposto para que a delimitação de uma só palavra e da palavra «finito» possa intervir. É a experiência grega, tal como a reconstituímos, que privilegia o «limite» e que confirma o antigo escândalo do encontro do irracional, quer dizer, com a não-conveniência daquilo que, na mesura, não se mensura (o primeiro que divulgou a incomensurabilidade da diagonal do quadrado, perece, afogado num naufrágio: é que ele fizera o reencontro com uma morte totalmente outra, o não-lugar do sem fronteiras, cf. Desanti). O uso do bom e do mau infinito devido a Hegel, pelos únicos qualificativos de «bom» e de «mau», dá a pensar. O mau infinito, o etc. do finito, é aquele cujo entendimento (que não é de nenhum modo mau) tem necessidade, congelando, fixando, imobilizando um de seus momentos, enquanto a verdade da razão suprime o finito: o infinito ou o finito suprimido, «levantado», é

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«positivo», nesse sentido de que ele reintroduz o qualificativo e reconcilia qualidade e quantum. Mas o que se pode dizer do mau infinito? Entregue ao repetitivo sem retorno, ele não se choca com o sistema hegeliano, à maneira de um desastre? O que leva a sugerir que o infinito se deixaria decidir como aquilo que é dado como primeiro, dando lugar em seguida ao finito, este infinito imediato desarranjaria todo o sistema, mas segundo a maneira que Hegel sempre previamente repeliu, ironizando sobre o infinito noturno. Enfim, o apelo a um «infinito atual dado», nós não podemos tirá-lo, mesmo que seja ingenuamente, do transfinito de Cantor. Resta que estamos insidiosamente (inevitavelmente) submetidos a indicações etimológicas que consideramos por provas e das quais tiramos decisões filosóficas que nos trabalham em segredo. Tal é o perigo, até mesmo o abuso que põe em causa muito mais do que o recurso à etimologia.

Será que os gregos pensavam alethéia a partir de lethé? É duvidoso. E que nós possamos substituí-los por nós, dizendo que eles eram, entretanto, regidos por esse im-pensado, é um direito filosófico contra o qual não haveria nada a dizer, se nós não o impuséssemos por um saber filológico que coloca a filosofia sob a dependência de uma ciência determinada: o que contradiz as relações claramente afirmadas por Heidegger entre pensamento e saber, todo saber tendo necessidade de um «fundamento» que não lhe pertence e que o pensamento está destinado a lhe dar retirando-o dele (postas à parte as matemáticas, dizem certos filósofos matemáticos).

Ereignis, palavra «última» do pensamento, talvez não ponha em jogo senão o jogo do idioma do desejo.

Nietzsche: «Como se minha sobrevida fosse algo de necessário». Nietzsche visa a imortalidade religiosa pessoal, duvidando que seja justo e importante desejar a eternidade. Seria preciso ir mais longe. Mesmo o desejo de si como efêmero, no instante jamais finito ou no instante imediatamente desaparecido, é ainda demasiado. A vida sem nenhuma forma de sobrevida, na ausência de toda relação de necessidade temporal, a vida sem presente, que a duração universal não rege (o conceito de tempo), não mais do que ela se afirma na singularidade íntima de um tempo vivido: eis aquilo que extrai de melhor maneira o tempo, pura diferença, o lapso de tempo, o intervalo intransponível que, transposto, se ilimita pela impossibilidade de toda transposição – impossível transpor como tendo sido sempre já transposto. A transcendência do viver que não basta exprimir na vida mesma como sobre-vida, ultrapassamento da vida; mas exigência de uma outra vida que seja vida do outro, de onde tudo vem e para o qual, virados, nós não nos reviramos. «Como se a sobrevida [sobre-vida] fosse necessária à vida»: o avivamento do viver, sua vivacidade, sua retenção ao mesmo tempo que sua doação, recusam a simples transcendência do projeto, presente de porvir, intencionalidade de uma consciência, no lugar do ilimitado, queimadura inconsolável de onde se exclui todo acabamento,

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todo cumprimento em uma presença. Espera infinita bem como inesperada. Esquecimento, lembrança do imemorial, sem memória.

«Que exista um esquecimento, a prova disso resta a fazer» (Nietzsche). Precisamente, o esquecimento sem prova, improvável, vigilância que sempre desvela.

Nietzsche contra o super-homem: «Somos definitivamente efêmeros». «A humanidade não pode aceder a uma ordem superior». Consideremos «a urna funerária do último homem». Essa recusa de um homem para além do homem (em A Aurora) vai de par com tudo o que Nietzsche diz contra o perigo que haveria em se confiar à embriaguez e ao êxtase como à verdadeira vida na vida: do mesmo modo, seu desgosto pelos «alucinados divagantes, os extáticos que procuram por instantes de arrebatamento dos quais eles caem na angústia do espírito de vingança». A embriaguez tem o erro de nos dar um sentimento de potência.

A suspeita salutar a respeito da linguagem que Nietzsche nos fornece, apesar do denunciamento ambíguo da «gramática», visa na maioria das vezes a parte excessiva, não vigiada, feita às palavras isolada : «Em todo lugar onde os homens colocavam uma palavra, eles acreditavam  ter feito uma descoberta... tinham deflorado um problema». Mas isso é já muito? E quando ele acusa as «palavras petrificadas, eternizadas», será que ele quer, assim, revir à linguagem como dialética ou ainda a um movimento como de arrancamento, de desarranjamento ou de exterminação que está à obra na palavra, aquilo que já Humboldt evocava vaguamente nomeando de o dinamismo espiritual da linguagem, sua mediação infinita. Hoje, os linguistas responderiam muito facilmente a Nietzsche. E, no entanto, a suspeita, ao mesmo tempo que muda de forma, não é apaziguada. Outra aflição de Nietzsche, formulada de uma maneira surpreendente: «Não teríamos palavras senão para os estados extremos» - alegria, dor -, frustrando o dia cinza, o inexperimentado, o abaixo da vida que é o devir do viver. Pode-se dizer o contrário: que nós não temos palavras para o extremo; que o ofuscamento, a dor fazem queimar todo vocábulo e o tornam mudo (paradoxo da etimologia: se o «ofuscamento» [éblouissement] está em relação com o alemão blöde que significa antes de tudo «frágil», depois « de vista fraca», nos admiramos pelo fato de que o excesso de luz, aquela que cega, tenha que se dizer a partir de uma miopia, de um déficit do olho – aquilo que atrai na etimologia é sua parte de desrazão mais do que aquilo que ela explica, a forma de enigma que ela preserva ou redobra decifrando). Mas Nietzsche não observa somente, como mais tarde Bergson, que as palavras não convêm senão a uma análise grosseira, aquela do entendimento («extremo» querendo dizer: aquilo que é evidente, caracterizado)? Lá ainda a suspeita não suspeita bastante.

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Valéry: « O pensador está numa jaula e se move indefinidamente entre quatro palavras». Isso dito pejorativamente não é pejorativo: a paciência repetitiva, a perseverança infinita. E o mesmo Valéry – é o mesmo? – virá assim a afirmar de passagem: « Pensar?... Pensar! é perder o fio». Comentário fácil: a surpresa, o intervalo, a descontinuidade.

As raízes, invenções dos gramáticos (Bopp) (dito de outro modo, ficção teórica, mas a teoria linguageira não é mais fictícia do que não importa qual saber). Ou então, diz Schlegel, «assim como o nome o exprime», « germe vivente sempre à obra na linguagem». Assim como o nome o exprime: (o nome, aqui, «raiz»), esse apelo ao nome mostra a petição de princípio, a circularidade da qual toda linguagem tira sua fecundidade: a raiz tendo sido nomeada por analogia com o crescimento vegetal e com a unidade suposta de um princípio germinativo escondido sob a terra, disso se tira a ideia de que a raiz é o germe formador pelo qual as palavras, em línguas diversas, recebem poder de desenvolvimento, enriquecimento criador. De novo, não-crentes e crentes: eles todos tendo e não tendo razão. O escritor que, como Heidegger, retorna à raiz de certas palavras ditas fundamentais e delas recebe uma impulsão para variações de pensamentos e de palavras, torna «verdadeira» a concepção segundo a qual há na raiz uma potência ao trabalho e que faz trabalhar.

Que mesmo Humboldt, tão prudente, vá da analogia interna – no interior da língua - («a autossignificação») à analogia externa – a imitação do mundo, das coisas, do ser em geral (o real) pelas palavras em sua sonoridade que ele tinha recusado, no entanto, distinguindo o momento articulatório do rumor auditivo, mostra a tentação irresistível de «desnaturar» o processo de significação naturalizando-o (contrariamente àquilo que sustentam comentadores contemporâneos, Humboldt reconhece na sequência de similitudes verbais: wehen [soprar5], Wind [vento], Wolke [nuvens], wirren [turvar], Wunsch [anelo], o reflexo de «flutuações, turbulências, incertezas recebidas pelos sentidos – as impressões – e devolvidas pelo W, contração do U surdo»). É verdade que Humboldt nuança esta ideia de imitação e não lhe presta uma importância decisiva. Mais decisiva é a «transcendência» da linguagem nela mesma: é a língua que entra em ressonância com a língua e se determina sem fim, ação interrompida, ininterrupta, a qual faz em seguida «entrar a alma em ressonância consigo mesma ou com o objeto». «A língua pode ser comparada a uma trama imensa na qual cada parte está religada a todas as outras e onde todas estão no conjunto segundo uma coesão mais ou menos reparável». Aquilo que Humboldt nomeará de o conjunto subjacente do sistema. (Quando Humboldt escreve: «Que haja uma conexão estreita entre o elemento fonético e sua significação, isso é incontestável, mas é raro que se possa apreender disso sistematicamente a organização: não se pode na maioria das vezes senão ter disso uma impressão difusa, e sua natureza profunda nos escapa», esta é uma hesitação e uma linguagem ainda de precaução. Enfim, Humboldt usa a palavra símbolo mais ou 5 Em francês respectivamente souffler, vent, nuage, troubler, souhait.

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menos como Hegel: pelo símbolo é tornado legível ou mostrável o irrepresentável: «o símbolo tem o poder de convidar e de forçar o espírito a permanecer junto da representação daquilo que não se representa – o puro transcendente. Alhures, Humboldt fala da «diferença irredutível entre o conceito e o elemento fonético»).

O que quer que diga Gérard Génette contrariamente talvez àquilo que ele mesmo pensa, a recusa ascética de Hermógenes não é estéril, já que se lhe deve a possibilidade de um saber linguístico e que nenhum escritor escreve se ele não o tem em mente a fim de repelir, mesmo se ele cede a elas, todas as facilidades miméticas e a fim de, por aí, vir a uma prática totalmente diferente.

Por que a exigência do dom se afirma em nosso tempo em funções tão diferentes e em pensamentos tão adversos e diversos quanto aquele de Georges Bataille, Emmanuel Levinas, Heidegger? A questão vale ser posta sem que haja conveniência e unidade de resposta. Que se evoque Nietzsche e Mauss para um, isso permite somente reparar fixações de sentido (de designação) pelas quais se cristalizaram problemas já instantes. A busca pelo outro – sob o termo da heterologia - precede, em Bataille, aquilo que o dom» ou a despesa queria nomear - desarranjamento da ordem, transgressão, restituição de uma economia mais geral que a gestão de coisas (a utilidade)não dominaria; mas a perda impossível, ligada à ideia de sacrifício e à experiência de momentos soberanos, não deixa se congelarem em um sistema as tensões que dilaceram o pensamento e que a aspereza de uma linguagem sem repouso sustenta. Com Levinas, a aproximação, talvez enganosa, talvez superficial (porque o horizonte filosófico é diferente), vem da mesma palavra outro pela transcendência de outrem: a relação infinita de um a outro obriga para além de toda obrigação; o que conduz à ideia do dom que não é o ato gracioso de um sujeito livre, mas um desinteressamento sofrido onde, para além de toda atividade e de toda passividade, a responsabilidade paciente vai até a «substituição», o « um pelo outro » onde o infinito se doa sem poder se trocar. Não seria preciso se ater a interpretação demasiado fácil daquilo que se entende (e se traduz) para Heidegger: «a história do ser é compreendida como a história de doações nas quais o advento (Ereignis) se mantém em retração»; de onde a questão simplista: «a entrada no advento significaria o fim da história do ser? » A palavra « doação » é doada pela fórmula alemã do «há»: Es gibt: isso doa, isso, o «ele», sendo «sujeito» do Ereignis, o advento do mais próprio. Se se contenta em dizer: o ser se doa enquanto o tempo se retira, nós não dizemos nada porque entendemos «ser » em maneira do «ente» que doa, se doa e favorece. No entanto, Heidegger diz firmemente: « Presença (ser) pertence à clareira – o aclaramento – do se retirar (tempo). Clareira – aclaramento – do se retirar (tempo) traz consigo a presença (ser)». Sem nada concluir, recebemos daí a doação sempre em relação com a presença (o ser). «O advento advém » (presença de todas as presenças, parusia), assim como «a palavra fala», é dom de palavra pronunciando a riqueza múltipla do Mesmo que não é jamais o idêntico.

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O que há de comum ou de próximo entre Bataille e Levinas, é o dom como exigência inesgotável (infinita) do outro e de outrem indo até a perda impossível: dom da interioridade. De que se afastam, em Heidegger, a retenção do Mesmo e a experiência da presença, sem que, todavia, o « se doa » ou o «ele doa» possa, apesar das precisões que fazem «o advento» intervir, aceitar qualquer sujeito explícito. Quem doa? O que é que se doa? Questões sem conveniência que ressoam na linguagem sem recolher outra resposta que a linguagem mesma, o dom da linguagem. De onde o perigoso pendor a sacralizar esta. O movimento espontâneo do romantismo é de reportar aos tempos antigos, originários, o reconhecimento do caráter religioso de toda palavra; A. W. von Schlegel: «A palavra foi no início um culto, ela tornou-se uma ocupação». «A linguagem, casa do ser». Mas repitamos com Levinas, ainda que ele privilegie o Dizer como dom de significância: «A linguagem é já ceticismo». Escrever é desconfiar absolutamente - confiando absolutamente na escritura - da escritura. Qualquer fundamento que se dê a este duplo movimento que não é tão contraditório quanto sua formulação bastante apertada o dá a ler, resta a regra de toda prática escrevente: o «se doar se retirar  » tem aí, não direi sua aplicação nem sua ilustração, termos pouco adequados, mas aquilo que, através da dialética e fora da dialética, se justifica em se deixando dizer, desde que haja dizer e pelo quê há dizer.

Não nos deixemos demasiadamente tentar – ao mesmo tempo o acolhendo – por aquilo que o saber afirma, tal como aquele de Leroi-Gourhan, descrevendo os primeiros traços da escritura como séries de «pequenos entalhes» dispostos de distância a distância (igualmente); aquilo que dá a pensar que está à obra por aí o impulso repetitivo, quer dizer o ritmo. Arte e escritura, não distintas. Uma outra afirmação: «Se existe um ponto sobre o qual tenhamos agora toda certeza, é que o grafismo começa não na representação ingênua, mas no abstrato». Deixamos isso se afirmar, com esta reserva: abstrato para nós, quer dizer, para nós, separação, afastamento. Assim, voltamos à decisão maior que é sempre justo e necessário contestar, com a condição de que não se cesse de pensá-la impensável; Todorov: «Diacronicamente, não se saberia conceber a origem da linguagem sem pôr no ponto de partida a ausência de objetos»; e Leroi-Gourhan: « Isso leva a fazer da linguagem o instrumento da liberação em relação ao vivido». Reserva mantida no tema destas formulações demasiado fáceis, pode-se dizer: tal é a exigência, na linguagem, do processo de significação, exigência que não afasta somente o «objeto», «o vivido», mas o sentido mesmo na significação, por um movimento extremo que finalmente escapa, ao mesmo tempo que permanece em obra. Só que a linguagem porta também o símbolo em que simbolizante e simbolizado podem ser parte um do outro (isso dito num vocabulário sempre aproximativo), onde o irrepresentável está presente na representação que ele desborda, em todo caso ligado por uma certa relação «motivada» de cultura (pensar-se-á imediatamente: natural), reintroduzindo entre

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signo e «coisa» uma presença-ausência instável que a arte – e a arte como literatura – mantém ou regenera (Cf. as observações de Todorov na Poética 21).

Exemplo das ficções etimológicas. Ritmo: a tranquila e sem dúvida «faltosa» etimologia nos reenviaria a sreu e rheô, escoar; de onde rhuthmos, fluxo e refluxo daquilo que escoa (e ritma e rima1). Mas ninguém decidirá então se é a escansão repetitiva sempre já à obra que permitiu reconhecer o vai-e-vem dos fluxos ou se a experiência privilegiada do espetáculo do mar só deu o sentimento, de modo outro, desapercebido, da repetição. Os inúmeros fenômenos repetitivos (mesmo que fosse apenas: inspiração-expiração, fort-da, dia-noite, etc.) fazem duvidar disso evidentemente. Aqui ainda, a etimologia tradicional dá a ilusão de um exemplo «concreto», do exemplar (e de um certo saber) ; nós evocamos os homens do mar, os navegadores ousados, apavorados e encantados, amestrando o desconhecido mais perigoso (essa inanidade marinha que os porta e os engole) pela observação de um movimento regulado, de uma primeira legalidade: tudo vem do mar para essas pessoas do mar, como tudo vem do céu para outros que reconhecem tal agrupamento de astros e designam, na «configuração» mágica dos pontos de luz, esse ritmo nascente que rege já toda sua linguagem e que eles falam (escrevem), antes de nomeá-lo.

Relembremo-nos de Hölderlin. «Tudo é ritmo», teria ele dito a Bettina conforme um testemunho, o de Sinclair, que ela imagina talvez. Como entendê-lo? Não é o cósmico numa totalidade já ordenada da qual caberia ao ritmo manter o pertencimento. O ritmo não é segundo a natureza, segundo a linguagem ou mesmo segundo a «arte» onde ele parece predominar. O ritmo não é a simples alternância do Sim e do Não, do «se doar-se retirar », da presença-ausência, ou do viver-morrer, do produzir-destruir. O ritmo, ao mesmo tempo que retira o múltiplo do qual a unidade se esquiva, ao mesmo tempo que parece regulado e se impor segundo a regra, ameaça esta entretanto, pois sempre ele a ultrapassa por um retorno brusco que faz com que estando em jogo ou à obra na mesura, ele não se mensure no jogo e na obra. O enigma do ritmo - dialético, não-dialético: não mais um do que o outro se libera disso – é o extremo perigo. Que, falando, nós falemos para fazer sentido com o ritmo e tornar sensível e significante o ritmo fora de sentido, eis o mistério que nos atravessa e do qual nós não nos libertaremos ao reverenciá-lo como sagrado.

«Os otimistas escrevem mal» (Valéry). Mas os pessimistas não escrevem.

O atalho não permite alcançar de modo mais direto (mais rápido) um lugar, mas, antes, perder o caminho que deveria conduzir até lá.

1 Como se sabe de agora em diante e como está dito em L'Entretien infini [A Conversa Infinita], segundo Benveniste, ritmo não deriva provavelmente de rheô, mas, por rhutmos, de rhusmos que Benveniste fixa na expressão: «configuração cambiante, fluída».

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Interrogar-nos demasiado abertamente sobre o ritmo é pôr em relação o ritmo e o aberto e, de uma certa maneira, somente nos abrir ao ritmo ao nos assujeitar obsessivamente a ele, tornado o Sujeito único que abre e escande o aberto segundo uma cláusula. Ritmo não é Sujeito de outro modo senão que por abuso. «Tudo é ritmo» não leva a dizer – o que seria demasiado e demasiado pouco dizer -: o ritmo é a totalidade do todo, entretanto não, antes, um simples modo, como se disséssemos: tudo aquilo que é, é segundo o ritmo – afirmação que seria preciso, entretanto, atingir, pois essa relação do ser com o ritmo, relação inevitável, nos concederia não pensar o ser sem pensar o ritmo que, ele mesmo, não é segundo o ser. Outra maneira de se deixar questionar pela diferença.

Melville-René Char: «O infinito desejante repentinamente recua». Melville, pelas palavras inglesas, sugere um choque violento: a atração ardente infinita é o pavor que repele. O absoluto desejante (o infinito que seria o infinito do desejo, em relação com o desejo) não passa somente pelo «sem desejo», mas exige o espanto, retração desmesurada através da atração desmesurada.

Nós não repelimos a terra à qual de todas as maneiras pertencemos, mas não fazemos dela um refúgio, nem mesmo para nela fazer uma estadia, uma obrigação bela, «pois terrível é a terra». O desastre sempre retardatário, sono estrangulado, poderia nos relembrar uma lembrança do imemorável, se houvesse uma lembrança do imemorável.

Se «a indiscrição em consideração ao indizível» (E. L.) talvez seja a tarefa, esta se enuncia pela colocação em relação do mesmo prefixo repetido, «in», com a ambiguidade que ele mantém do infinito. O indizível seria circunscrito pelo Dizer elevado ao infinito: aquilo que escapa ao dizer, é não somente isso que é preciso dizer, mas isso não escapa senão sob a marca e na retenção do Dizer. Do mesmo modo, a indiscrição é faltar à reserva com a ajuda da reserva, mantendo-se nela, faltando a ela.

A «mudança radical», poder-se-ia indicá-la especificando-a dessa maneira: que, daquilo que advém, todo presente se exclui. A mudança radical adviria ela mesma sobre esse modo do não-presente que ela faz advir sem se confiar, no entanto, ao porvir (previsível ou não) ou se retirar num passado (transmitido ou não).

(Uma cena primitiva?) «Indiscrição, indizível, infinito, mudança radical, não há entre aquilo que se chama por estas palavras, senão uma relação, ao menos uma exigência de estranheza que as devolveria turno por turno – ou juntas – aplicáveis àquilo que se nomeou uma cena? - Erroneamente, já que, escapando ao figurável, como à ficção ; simplesmente para não falar delas assim como de um evento tendo tido lugar num momento do tempo. – Uma cena: uma sombra, um fraco clarão, um ''quase'' com os traços do ''demasiado',' do excessivo em tudo. – O segredo ao qual

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se fez alusão, é que não há nada de secreto, exceto para aqueles que se recusam à confissão. – Indizível, entretanto, enquanto narrado, proferido: não o ''proferir'' mallarmeano (ainda que não se possa evitar passar por ele – lembro-me disso ainda: ''eu profiro a palavra, para mergulhá-la de novo em sua inanidade''; é o ''para'', esta finalidade de nada demasiado estabelecida, que não permite se suspender nisso), antes o dito que, sem remeter a um não-dito (como se tornou costume pretendê-lo) ou a uma riqueza de palavras inesgotável, reserva o Dizer que parece denunciá-lo, autorizá-lo, provocá-lo a um desdito – Dizer: poder de dizer? Isso o altera imediatamente. O desfalecimento lhe conviria melhor. – Se a conveniência não estivesse aqui fora de aposta: o dom do pouco, do pobre, na ausência da perda jamais recebida. – Mas quem conta? – O relato. – O ante-relato, ‘'a circunstância fulgurante'' pela qual a criança fulminada vê – ela tem o espetáculo disso – o assassinato feliz de si mesma que lhe doa o silêncio da palavra. – As lágrimas são de uma criança ainda. – Lágrimas de toda uma vida, de todas as vidas, a dissolução absoluta que, alegria ou tristeza, o rosto pueril reergue para nelas brilhar até a emoção sem signos. – Imediatamente interpretado de modo banal. – A banalidade não tem erro, comentário de consolação onde a solidão se recusa sem refúgio. – Eu volto a isso: as circunstâncias são do mundo: a árvore, o muro, jardim de inverno, o espaço do jogo com o que o tédio; é, portanto, o tempo e seu discurso, o narrável sem episódio ou puramente episódic ; até mesmo o céu, na dimensão cósmica que ele supõe desde que se o nomeia – os astros, o universo –, é o aclaramento do dia parcimonioso, mesmo que fosse o ''fiat lux'', distanciamento que não distancia. - Todavia, o mesmo céu. . . – Precisamente – é necessário que seja o mesmo. – Nada mudou. – Salvo o abalo de nada - Que rompe, pela quebra de uma vidraça (por trás da qual se se assegura com uma transparência protegida), o espaço finito-infinito do cosmos – a ordem ordinária – para substituir disso a vertigem sábia do fora desertado, tal que negro e vazio, respondendo à repentinidade da abertura e se dando absolutos, anunciando a revelação pela ausência, a perda e o para o além dissipado. – Mas ''o para além'', embargado pela decisão desta palavra esvaziada ''nada'' que não é ela mesma nada, é ao contrário chamada na cena, desde que o movimento de abertura, desde que a revelação, assim como a tensão do nada, do ser e do há intervêm e provocam o abalo interminável.- Eu o concedo: ''nada é aquilo que há' 'interdito de se deixar dizer em tranquila e simples negação (como se em seu lugar o eterno tradutor escrevesse: ''Não há nada'' . – Nenhuma negação, mas termos que pesam, estâncias justapostas (sem vizinhança), suficiência fechada (fora de significação), cada um imóvel e mudo, e assim usurpando sua relação em frase da qual seríamos bem embaraçados de designar aquilo que gostaria de se dizer nela. – Embaraço é pouco: que tu passes por esta frase aquilo que ela não pode conter senão estilhaçando. – De minha parte, ouço o irrevogável do há que ser e nada, marulho vão, projetando, reprojetando, traçando, apagando, rolam segundo o ritmo do anônimo ruído. - Ouvir o sem-eco da voz: estranho entendimento. – entendimento do estranho, mas não vamos mais longe. – Já tendo sido demasiado avante, voltando atrás. –

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Voltando em direção à interpelação inicial que convida à suposição fictícia sem a qual falar da criança que jamais falou, seria fazer passar na história, na experiência ou no real ainda, a título de episódio ou novamente de cena imóvel, aquilo que as arruinou (história, experiência, real) deixando-os intactos. – O efeito generoso do desastre. – A senescência do rosto sem rugas. – O insulto maior da poesia e da filosofia indistintas». «A questão sempre suspensa: sendo morto deste ''poder-morrer'' que lhe doa alegria e assolação, ele sobreviveu, ou antes, que quer dizer então sobreviver, senão viver de uma aquiescência na recusa, no secamento da comoção, em retração do interessamento por si, des-interessado, extenuado até à calma, não esperando nada? – Por conseguinte, esperando e fazendo vigília já que de repente despertado e, sabendo-o de agora em diante, jamais bastante despertado».

Naturalmente, «desastre» pode se entender a partir da etimologia. Muitos fragmentos portam aqui o rastro dela. Mas a etimologia não se mostra neles como um saber preferencial ou mais original, assegurando sua maestria sobre aquilo que então não é mais do que uma palavra. Ao contrário, é o indeterminado daquilo que se escreve com essa palavra, que ultrapassa a etimologia e a arrasta no desastre.

Que não haja espera do desastre, é na medida em que se pensa que a espera é sempre espera de um esperado ou de um inesperado. Mas a espera, do mesmo modo que ela não se reporta mais a um porvir do que a um passado acessível, é assim também espera da espera, o que não nos fixa num presente, pois «eu» tenho sempre já esperado aquilo que esperarei sempre: o não memorável, o desconhecido sem presente dos quais não posso me lembrar mais do que não posso saber se não esqueço o porvir, o porvir sendo minha relação com aquilo que, naquilo que chega, não chega, e portanto não se apresenta, não se re-presenta. Eis porque é permitido pelo movimento da escritura dizer: morto, tu o és já. E o que é o esquecimento? Não mais do que uma privação do memorável na memória, ele não se reporta à ignorância daquilo que haveria de presente no porvir. O esquecimento designa o além do possível, o Outro inesquecível que, passado ou futuro, o esquecimento não circunscreve: o passivo da paciência.

Não há origem, se origem supõe uma presença original. Sempre passado, de ora e já passado, algo que se passou sem ser presente, eis o imemorial que o esquecimento nos dá, dizendo: todo começo é recomeço.

É certo que se enfraquece o pensamento de Heidegger, quando se interpreta «o ser-para-a-morte» pela busca de uma autenticidade pela morte. Visão de um humanismo perseverante. Já o termo «autenticidade» não responde ao «Eigentlichkeit» onde se anunciam as ambiguidades mais tardias da palavra eigen que detém o Ereignis que não pode se pensar em relação a «ser». Entretanto, mesmo se abandonamos a ilusão da «morte própria» de Rilke, resta que o morrer, nessa

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perspectiva, não se separa do «pessoal», negligenciando aquilo que há de «impessoal» na morte em relação a que é preciso dizer não «eu» morro, mas se morre, morrendo sempre outro.

Schelling: «A alma é o verdadeiro divino no homem, o impessoal... A alma é o não-pessoal». Ou ainda: «na medida em que o espírito humano se reporta à alma como alguma coisa de não-sendo, quer dizer, a algo do sem-entendimento, sua essência mais profunda (enquanto separado da alma e de Deus), é a loucura. O entendimento é loucura regrada. Os homens que não têm em si nenhuma loucura são homens de entendimento vazio e estéril...» (trad. Courtine).

Se é verdade que, para um certo Freud, «nosso inconsciente não saberia representar para si nossa própria mortalidade», isso significa além do mais que morrer é irrepresentável, não somente porque morrer é sem presente, mas porque não tem lugar, mesmo que seja no tempo, na temporalidade do tempo. Do mesmo modo que, se é preciso meditar sobre a interpretação de Pontalis: (o inconsciente) «ignora o negativo porque ele é o negativo, que se opõe à suposta plena positividade da vida», é necessário se relembrar de que o «negativo» ora está em obra, falando com a palavra e assim se relacionando ao «ser», ora seria o não-trabalho do desobramento, paciência que não é duração, pré-inscrição que sempre se apaga como produção de sentido (sem ser in-sensato), e não se sofre a si mesmo «em nós» senão como a morte de outrem ou a morte sempre outra, com a qual nós não comunicamos, mas da qual, aquém da prova, nós nos provamos responsáveis. Alguma relação, portanto, (na morte) com a violência e a agressividade. Aquilo que a mima antes, figura infigurável, está, através da escritura mesma, o desligamento, a ruptura, a fragmentação, mas sem encerramento, « processo que não tem outra finalidade que de se cumprir [ou melhor de não se cumprir e à qual seu caráter de repetição imprime a marca do pulsional» (Pontalis). Acrescentarei que todas as figuras sociais atuais da pulsão da morte (ameaça atômica, etc.) não têm nada a ver com aquilo que esta tem de infigurável e se reportam ainda mais ao primeiro sentido do negativo (hegeliano), destruindo para construir talvez. Não a nada a fazer com a morte que sempre teve lugar: Obra do desobramento, não-relação com um passado (ou um porvir) sem presente. Assim o desastre estaria para além daquilo que nós entendemos por morte ou por abismo, em todo caso minha morte, já que não há mais lugar para ela, desaparecendo nela sem morrer (ou o contrário).

Mortal, imortal: essa reversão tem um sentido?

Lendo em R.B. [Roland Barthes] o que este não diz mas sugere, imagino que para Werther o amor-paixão não é senão um desvio para morrer. Após a leitura de Werther, não houve mais amantes, porém mais suicidas. E Goethe se desencarregou sobre Werther da tentação de morrer, não de sua paixão, escrevendo não

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absolutamente para não morrer, mas pelo movimento de uma morte que não lhe pertencia mais. «Isso não pode senão terminar mal».

O eu [moi] responsável de outrem, eu [moi] sem eu [moi], é a fragilidade mesma, ao ponto de ser posto em questão de parte em parte enquanto eu [je], sem identidade, responsável daquele a que ele não pode dar resposta, respondente que não é questão, questão que se reporta a outrem sem muito menos esperar dele uma resposta. O Outro não responde.

Permaneço persuadido de que a paixão da etimologia esteja ligada a um certo naturalismo, como à procura de um segredo original que uma primeira linguagem portaria e cuja perda deixaria índices de língua a língua, índices que permitiriam de reconstituí-lo. O que justifica a poucos custos a exigência de escrever e faria crer que, pela escritura, o homem detém um segredo pessoal que ele poderia descobrir inocentemente sem que o outro saiba, enquanto que, se há um segredo, ele está na relação infinita de um a outro que a deriva do sentido dissimula porque um parece manter nela sua necessidade até na morte.Mas é verdade que a ideia de arbitrário em linguística é também criticável e tem, sobretudo, um valor de ascese, nos afastando das soluções fáceis. (Talvez o pensamento do arbitrário do signo suponha já a imagem implícita, dissimulada, de um «mundo»).

O desastre, experiência não-provada, desfaz – deixando-a intacta - a relação com o mundo como presença ou ausência, sem, entretanto, nos liberar da obsessão da qual ele nos encarrega: é que a irreciprocidade com o Outro (outrem) em direção à qual ele nos orienta - questão imediata e infinita – não se passa no espaço sideral ao qual ele seria subordinado, substituindo-o por uma heterogeneidade radical. O que não quer dizer que nós nos desinteressemos dos terceiros que sofrem através de uma ordem injusta, enquanto que nosso sofrimento seria sempre justificado – para além da justiça – já que somos responsáveis por aquele que nos faria sofrer (outrem), não que tenhamos que assumir o mal que ele nos faria sofrer, mas porque a paciência à qual ele nos vota para além de todo passivo, nos reconduz em direção a um passado sem presente. A pseudo-intransitividade da escritura tem relação com essa paciência que nenhum complemento - vida ou morte - saberia completar.

Naturalmente, a questão já posta se põe de novo: se a obsessão de outrem vai até a perseguição, o morrer na vida mesma não seria fazer prova de uma espécie de crueldade para com ele, torná-lo em algum modo cruel? Mas é esquecer que não tenho que acolher, que assumir aquilo que nos seria feito. Através da passividade da paciência, o eu [moi] não tem nada a sofrer, tendo perdido até o desaparecimento a capacidade de um eu [moi] privilegiado sem cessar de ser responsável. Não há mais nome, mas esse sem-nome não é o grosseiro anonimato, tal como o define Kierkegaard («o anonimato, expressão suprema da abstração, da impessoalidade, da

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ausência de escrúpulos e de responsabilidade, é uma das fontes profundas da corrupção moderna»); há muitas confusões nessa frase, como se o anonimato fosse o anonimato em exercício no mundo, por exemplo, o anonimato dito burocrático.

O escritor, o insone do dia.

Escrever, certamente, é renunciar a se levar pela mão ou a se chamar por nomes próprios, e ao mesmo tempo é não renunciar, é anunciar, acolhendo – sem reconhecê-lo – o ausente - ou, pelas palavras em sua ausência, estar em relação com aquilo do qual não se pode se lembrar, testemunha do não-provado, respondendo não somente ao vazio no sujeito, mas ao sujeito como vazio, seu desaparecimento na iminência de uma morte que já teve lugar fora de todo lugar.

Escrever e a perda; mas a perda sem dom (um dom sem contrapartida) arrisca sempre ser uma perda apaziguante que traz a segurança. Eis porque não há sem dúvida discurso amoroso, senão do amor em sua ausência, «vivido» na perda, no envelhecimento, quer dizer na morte.

Se a morte é o real, e se o real é o impossível, se se aproxima do pensamento da impossibilidade da morte.

Segundo o discípulo de Barl-Shem, o Rabbi Pinhas, nós devemos «amar mais» o cruel e o odioso para compensar por nosso amor a falta de amor da qual ele é responsável, a qual provoca uma «dilaceração» das potências do Amor que é preciso reparar para ele. Mas que significam crueldade, ódio? Eles não são traços de Outrem que é precisamente o desnudado, o abandonado, o desmunido. Na medida em que se pode falar de ódio e de crueldade, é, no entanto, porque, por eles, o mal atinge também terceiros, e então a justiça exige a recusa, a resistência e até a violência destinada a repelir a violência.

Eu gostaria de me contentar com uma só palavra, mantida pura e viva em sua ausência, se, por ela, eu não tivesse que portar todo o infinito de todas as linguagens.

«A menor nuance de antissemitismo manifestada por um grupo ou por um indivíduo prova a natureza reacionária desse grupo ou desse indivíduo» (Lenin, citado por Guillemin).

Guardar o silêncio é o que, sem sabermos, todos nós queremos, escrevendo.

Job: «Falei uma vez... não repetirei; / duas vezes... não acrescentarei nada». É o que talvez signifique a repetição da escritura, repetindo o extremo ao qual não há nada a acrescentar.

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O que diz por vezes Nietzsche dos judeus? «Da pequena comunidade judia provém o princípio do amor: é uma alma mais apaixonada cuja brasa choca sob humildade e pobreza: o que não é nem grego nem hindu nem mesmo germânico; o hino à caridade que Paulo compôs não tem nada de cristão, é o jorrar judeu da eterna chama, que é semita...» - « Cada sociedade tem tendência a degradar seus adversários até a caricatura... Na ordem de valores aristocráticos romanos, o Judeu era reduzido à caricatura... Platão torna-se em mim uma caricatura...» - « Esconder sua inveja a respeito da inteligência mercantil dos Judeus sob fórmulas de moralidade, eis o que é antissemita, vulgar, pesadamente canalha». Nietzsche compreende muito bem que os Judeus tornam-se comerciantes porque não se lhes permitiu qualquer outra atividade. De onde este anelo obscuro anunciando para os Judeus um porvir novo: « Dar aos Judeus a coragem de qualidades novas, enquanto eles passaram em novas condições de existência: assim como convém a meu próprio instinto e nesta via não me deixei extraviar por uma oposição venenosa que precisamente agora toma a frente». Isto entre muitas observações duvidosas, quando Nietzsche não vê mais no cristianismo senão um judaísmo emancipado ou quando ele toma emprestado, sem reflexão, sua linguagem dos costumes cristãos do tempo. Mas se o antissemitismo se faz sistema, movimento organizado, ele o recusa imediatamente com horror. Quem não sabe disso? (Que o pensamento de Nietzsche seja perigoso, é verdade. Ele nos ensina isso antes de tudo: se nós pensamos, nada de repouso).

Nietzsche: «No “Antigo Testamento”' judeu, esse livro da justiça de Deus, encontram-se homens, eventos e palavras de um estilo tão grandioso que a literatura grega e a literatura hindu não oferecem nada de comparável. Fica-se tomado de espanto e de respeito diante desses prodigiosos vestígios do que o homem foi outrora e se se entregará a tristes reflexões ao tema da antiga Ásia e de sua pequena península avançada, a Europa, que pretende encarnar em face dela os ''progressos do homem''...» - «Ter posto ao lado do Antigo esse Novo Testamento, esse monumento de um gosto rococó em todos os aspectos, para deles fazer juntos um só e mesmo livro, a Bíblia, o Livro por excelência, eis talvez a maior das imprudências, o maior dos ''pecados contra o espírito'' que a literatura moderna tenha sobre a consciência». O que entende Nietzsche aqui? Ele fala de estilo, de gosto, de literatura, mas por aí realça aquilo que portam tais palavras. E, eu o noto, a civilização grega não é nisso menos atingida do que a cristã. Alhures, o cristianismo é louvado por ter sabido manter o respeito pela Bíblia, mesmo que fosse interditando-lhe a leitura direta: “A maneira pela qual se manteve até os nossos dias, no conjunto, o respeito pela Bíblia, constitui talvez o melhor exemplo de disciplina e afinamento dos modos pelos quais a Europa deve ao cristianismo: livros dessa profundidade, depositários de uma significação última (sublinho), têm necessidade de ser protegidos pela tirania de uma autoridade exterior a fim de se assegurar essa duração de vários milênios que é indispensável para esgotar seu sentido e compreendê-lo até o fim ». O que é dito aí julga nossos julgamentos sobre Nietzsche, sem, é verdade, nos aproximar do

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judaísmo. Do mesmo modo, num outro livro quase nos mesmos termos: «O Antigo Testamento é justamente outra coisa: Tire-se o chapéu diante do Antigo Testamento! Aqui encontro grandes homens, uma paisagem heroica e uma coisa entre as raras do mundo: a ingenuidade incomparável do coração robusto; bem mais, eu encontro um povo».

Não estando em busca nem do lugar, nem da fórmula.

«A única explosão é um livro». Um livro: um livro em meio a outros, ou um livro reenviando ao Liber único, último e essencial, ou mais justamente, o Livro maiúsculo que é sempre não importa qual livro, já sem importância ou para além do importante. «Explosão», um livro; aquilo que quer dizer que o livro não é o reagrupamento laborioso de uma totalidade enfim obtida, mas tem por ser o estilhaçamento ruídoso, silencioso, que sem ele não se produziria (não se afirmaria), enquanto que, pertencendo ele mesmo ao ser estilhaçado, violentamente desbordado, posto para fora de ser, ele se indica como sua própria violência de exclusão, a recusa fulgurante do plausível: o fora em seu devir de estilhaço. É o morrer de um livro em todos os livros que é o apelo ao qual é preciso responder: não tomando somente reflexão sobre as circunstâncias de uma época, sobre a crise que se anuncia nela, sobre o abalo que se prepara nela, grandes coisas, poucas coisas, mesmo se elas exigem tudo de nós (como o dizia já Hölderlin, pronto para lançar sua pena sob a mesa, a fim de ser tudo para a Revolução). Resposta que, no entanto, concerne ao tempo, um outro tempo, um outro modo de temporalidade que não nos deixa mais ser tranquilamente nossos contemporâneos. Mas resposta necessariamente silenciosa, sem presunção, sempre já interceptada, privada de toda propriedade e suficiência: tácita no fato de que ela não saberia ser senão o eco de uma palavra de explosão. Talvez seria preciso citar, advertência sempre inédita, as palavras vivificantes de um poeta muito próximo: «Escutem, prestem atenção: mesmo muito afastados, livros amados, livros essencais começaram a estertorar»6 (René Char).

(Uma cena primitiva?) O traço do narcisismo, entendido vulgarmente ou sutilmente, é que, como do amor-próprio de La Rochefoucauld, é fácil denunciar o efeito disso em tudo e em todo lugar; basta lhe dar uma forma adjetiva: o que é que não seria narcísico? Todas as posições do ser e do não-ser. Mesmo quando ele se renuncia até a devir negativo, com a parte de enigma que então o obscurece, ele não cessa de ser passivamente ativo: a ascese, a retração absoluta e até ao vazio, se deixam reconhecer como modos narcísicos, uma maneira bastante fraca para um sujeito decepcionado, ou incerto de sua identidade, de se afirmar se anulando. Contestação que não é negligenciável. Nós redescobrimos aí a vertigem ocidental que reporta todos os valores ao Mesmo, e tanto mais se se trata de um «mesmo» mal constituído, evanescente, perdido ao mesmo tempo que apreendido, quer dizer, tema de predileção para alguns movimentos dialéticos.6 No original: ....

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As mitologias mostram bem que a versão de Ovídio, poeta inteligente, civilizado, cuja concepção do narcisismo segue todos os movimentos narrativos, como se estes detivessem o saber psicanalítico, modifica o mito para desenvolvê-lo tornando-o mais acessível. Mas o traço do mito que Ovídio termina por esquecer é que Narciso, pendido sobre a fonte, não se reconhece na imagem fluida que lhe reenviavam as águas. Este, portanto, não é ele, seu «eu» talvez inexistente, que ele ama ou deseja, mesmo que fosse em seu desconhecimento. E se ele não se reconhece, é porque aquilo que ele vê é uma imagem, que a similitude de uma imagem não remete a ninguém, tendo por caráter não se parecer com nada, mas ele se «apaixona» por ela, porque a imagem – toda imagem – é atraente, atração do vazio mesmo e da morte em seu engodo. O ensinamento do mito que, como todo mito virando fábula, é educativo, seria que não é preciso se fiar à fascinação das imagens que não somente enganam (de onde os fáceis comentários plotinianos), mas tornam todo amor insensato, porque é preciso uma distância para que nasça o desejo de não se satisfazer imediatamente – o que Ovídio, em seus acréscimos sutis, bem traduziu fazendo Narciso dizer (como se Narciso pudesse falar, «se» falar, solilocar): «possessão me fez sem possessão».O que há de mítico neste mito: a morte está nele presente quase sem se nomear, pela água, a fonte, o jogo floral de um encantamento límpido que não abre sobre o sem-fundo apavorante do subterrâneo, mas que o mira perigosamente (loucamente) na ilusão de uma proximidade de superfície. Narciso morre? Quase; tornado imagem, ele se dissolve na dissolução imóvel do imaginário onde ele se dilui sem saber, perdendo uma vida que ele não tem; pois, se se pode reter alguma coisa dos comentadores antigos, sempre prontos a racionalizar, é que Narciso jamais começou a viver, criança-deus (a história de Narciso, não a esqueçamos, é a história de deuses ou semi-deuses), não se deixando tocar pelos outros, não falando, não se sabendo, já que, segundo a ordem que ele teria recebido, ele deve permanecer desviado de si – assim, muito próximo da criança maravilhosa, sempre já morta e entretanto destinada a um morrer frágil, do qual Serge Leclaire nos falou. Sim, mito frágil, mito da fragilidade onde no entre-dois tremente de uma consciência que não se formou e de uma inconsciência que se deixa ver e assim faz do visível o fascinante, nos é dado aprender uma das versões do imaginário segundo a qual o homem – é isto o homem? -, se ele pode se fazer segundo a imagem, é mais certamente exposto ao risco de se desfazer, segundo sua imagem, se abrindo então à ilusão de uma similitude, talvez bela, talvez mortal, mas de uma morte evasiva que está toda na repetição de um desconhecimento mudo. Certamente, o mito não diz nada de tão manifesto. Os mitos gregos não dizem, em geral, nada, sedutores por um saber oculto de oráculo que chama o jogo infinito de adivinhar. O que nós chamamos de sentido, até mesmo de signo, lhes é estrangeiro: eles fazem signo, sem significar, mostrando, esquivando, sempre límpidos, dizendo o mistério transparente, o mistério da transparência. De sorte que todo comentário é denso, tagarela e tanto quanto mais se ele se enuncia sobre o modo narrativo, a história misteriosa se desenvolvendo, portanto, inteligentemente em episódios explicativos

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que por seu turno implicam uma claridade fugidia. Se Ovídio, prolongando talvez uma tradição, faz intervir na fábula de Narciso a sina que se pode dizer falando da ninfa Eco, é justamente para nos levar a tentar redescobrir nela uma lição de linguagem que nós acrescentamos só depois. Mas isto aqui permanece instrutivo: já que é dito que Eco o ama não se deixando ver, é, portanto, com uma voz sem corpo, condenada a sempre repetir a última palavra – e nada mais – que Narciso seria chamado ao reencontro e a uma espécie de não-diálogo, linguagem que, longe de ser a linguagem de onde o Outro deveria lhe vir, não é senão a aliteração mimética, rimante, de um semblante de palavra. Narciso é suposto solitário, não porque ele é demasiado presente a si mesmo, mas porque lhe falta, por decreto (tu não verias, esta presença refletida – o si mesmo – a partir da qual uma relação vivente com a vida outra poderia se ensaiar; ele é suposto silencioso, não tendo da palavra senão o acordo repetitivo de uma voz que lhe diz o mesmo sem que ele possa atribuí-lo para si e que é precisamente narcísico neste sentido de que ele não a ama, que ela não lhe doa nada de outro a amar. Sina da criança da qual se crê que ela repete as últimas palavras, enquanto ela pertence ao rumor crescente que é de encantamento e não de linguagem; e sina também de apaixonados que se tocam pelas palavras, que estão em contato com palavras e que podem se repetir sem fim, se maravilhar com o mais banal, justamente porque sua língua é língua, e não linguagem, e porque eles se miram um no outro, por uma reduplicação que vai da miragem à admiração. O que toca neste mito provavelmente tardio, é, portanto, que nele retine novamente a interdição de ver, tão constante na tradição grega que permanece, no entanto, o lugar do visível, da presença já divina no fato de que ela surgia e em suas múltiplas aparências. Sempre há alguma coisa para não ver, menos porque não é preciso olhar tudo, mas porque, os deuses sendo essencialmente visíveis e sendo o visível, é a visão que expõe ao perigo do sagrado, cada vez que o olhar, por sua arrogância pronta a desfigurar e a possuir, não olha sobre o modo da retenção e da retração. Sem mobilizar Tirésias que encena em demasia o papel do adivinho de serviço, e muito menos encenar com as duas palavras de oráculo, como se elas fossem a reversão premeditada uma da outra: «conhece-te a ti mesmo » e «ele viverá se ele não se conhece», é preciso antes pensar que Narciso, vendo a imagem que ele não reconhece, vê nela a parte divina, a parte não vivente de eternidade (pois a imagem é incorruptível) que, sem que ele saiba, seria a sua, e que não tem o direito de olhar sob pena de um desejo vão, de sorte que se pode dizer que ele morre (se ele morre) por ser imortal, imortalidade de aparência que atesta a metamorfose em flor, flor fúnebre ou flor de retórica.

A exigência de um pensamento se rendendo ao múltiplo e procurando escapar a majoração do Uno: «O múltiplo, é preciso fazê-lo não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas ao contrário o mais simplesmente, à força de sobriedade, ao nível de dimensões das quais se dispõe, sempre n - 1; o uno faz parte do múltiplo sendo sempre subtraído dele.» (Deleuze-Guattari). De onde se poderia concluir que o uno não é mais então uno, mas a parte de subtração pela qual o múltiplo se

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constrói se multiplicando sem que todavia a unidade se inscreva nela como falta; é o ponto mais difícil, e não se trata então de um modelo normativo, sob a guarda de um saber particular que se prescreve? O múltiplo é ambíguo, de uma ambiguidade, antes de tudo, fácil de determinar, já que há o múltiplo, o variado, o cambiante ou o diverso dos quais, pelas condutas conjuntas da razão dialética ou prática, até mesmo pelo apelo da reconciliação mítica, se forma a totalidade unitária que os preserva alterando-os como meios ou momentos mediadores ou, misticamente, lançando-os no grande fogo da consumação ou da confusão. Mas, então, múltiplo, coisas variadas ou separadas, caindo sob a fascinação do Uno, não lhe serviram senão de elo, ou de figuras sensíveis, ou de nomes de empréstimo, aproximação daquilo que não saberia de outro modo ser próximo: espera e recurso do cumprimento no uni-verso a acabar ou a fingir. Do uno, sujeito (mesmo que fosse sujeito fissurado, sempre duplo, em vão desejante) ao uno universal ou supremo, o múltiplo, o dissociado, o diferente não terão sido senão passagem: reflexos da Presença maiúscula que, mesmo não portando nome, se consagra na soberana altura. Mistura ousada de uma dialética e de um remontamento (místico) pela esperança de salvação. Não é preciso depreciar tais condutas, porque a aposta delas é importante, visada quase (até hoje ou ontem) de toda moral e de todo saber. Resta que a lei do Uno e seu primado glorioso, inexorável-inacessível, excluem o múltiplo como múltiplo, reconduzindo, mesmo que fosse por desvios, o outro em direção ao mesmo, e substituindo a diferença pelo diferente, sem deixar esta vir em questão, tanto é potente e necessária a organização da palavra respondendo à ordem de um universo habitável (onde nos é dada a promessa de que tudo será – é portanto já – presente, em participação na Presença apreensível-inapreensível). Mas esta soberania do Mesmo e do Uno, majestosa ou simples (que ela esteja próxima ou por esperar), dominando tudo de antemão e reinando sobre todo ser, arrastando em sua orbe todo aparecer bem como todo essência, tudo o que se diz e tudo que está para dizer, formulações, ficções, questões, respostas, proposições de verdade e de erro, afirmações, negações, imagens, símbolos, palavras de vida e de morte, marca precisamente que é no fora da soberania do Uno e do Todo, no fora do Universo como de seu além e quando tudo está cumprido, a morte enfim advinda em forma de vida contente, que, de uma maneira então mais instante, a exigência sem direito do outro (o múltiplo, o desnudado, o esparso) se doa como aquilo que sempre escapou ao cumprimento, e assim, para o pensamento satisfeito, adormecido por ser acabado, se afirma (afirmação como vazio) a obsessão velante e incessante de outrem (na não-presença) que ela não sabe no entanto reconhecer, sabendo somente que esta lhe revém, desastre noturno, a fim de assinalá-la a uma perpetuidade desunida, premissas talvez de uma escritura, sua revolução em todo caso enquanto extinta.

A atração do simples é que ele é o dom - jamais doado – do Uno: o conjunto que nós não conhecemos senão como desdobrado e cujo redobrar esquiva a infinita riqueza do «uma só vez» que nele se suplicia. De modo que estamos sempre

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autorizados a dizer: o simples não é simples, sem que sejamos, por essa fórmula, conduzidos a nada mais do que salvaguardar a inacessibilidade do Uno, sua retirada do ser, sua fascinante transcendência. O complexo permanece sendo a encabrestamento mais ou menos hierarquizado que se oferece à análise para nela se decompor ao mesmo tempo que mantém seu ser-junto [être-ensemble]. E o múltiplo pode também se reduzir facilmente na medida em que ele se constroi pelo número até o mais: isso enquanto a unidade lhe for o agente constitutivo, em participação com o Uno imóvel. Mas múltiplo como múltiplo nos reenvia à Als-Struktur, a estrutura do como. Pluralidade então subtraída à unidade e de onde a unidade sempre se subtrai, relação do outro, pelo outro que não se unifica: ou ainda diferença estrangeira ao diferente, fragmentária sem fragmentos, esse resto a escrever que, à maneira do desastre, sempre precedeu - arruinando-o - todo começo de escritura e de palavra. (Entretanto, a estrutura do como - múltiplo enquanto múltiplo, como tal ou em si - tende a reestabelecer a identidade do não-idêntico, a unidade do não-uno, desfazendo a desligação e a estabilizando numa forma; o pensamento do múltiplo é de novo diferido, em relação por aí com a impertinência da diferença que não se deixa pensar).

«A soberania não é NADA». Assim pronunciada a palavra nada não implica somente a soberania em sua ruína, pois a ruína soberana poderia ser ainda uma maneira para a Soberania de se afirmar realçando o nada maiúsculo. A soberania, segundo o esquema da negatividade sempre à espreita, se projetaria então absolutamente naquilo que tenderia a negá-la absolutamente. Mas poderia ser que o nada não esteja aqui ao trabalho e, sob sua forma extravagante e cortada, esquiva somente aquilo que se esquiva naquilo que não pode ser nomeado, o neutro, o neutro sempre se neutralizando e ao qual não há nada de soberano que, de antemão, não se tenha já rendido: seja na negligência do Uno, seja pela escansão negativa do outro, negação que não nega nem afirma, e, através da erosão infinita da repetição, deixa o Outro se marcar e se demarcar e se remarcar como aquilo que não tem relação com aquilo que vem em presença, nem também com aquilo que se ausenta dele.

«Mas não, sempre Num projetar da asa do impossível Tu te despertas, com um grito, Do lugar, que é apenas um sonho...7» (Yves Bonnefoy)

Uma frase isolada, aforística, não fragmentária, tende a ressoar como uma palavra de oráculo que teria a auto-suficiência de uma significação por si só completa. Se se isola essa frase de Wittgenstein que eu cito de memória (a lembrança singulariza): «A filosofia seria o combate contra o encantamento, (o arrebatamento) da razão pelos meios da linguagem», ela impacta com uma espécie de evidência: seria preciso alcançar uma razão «pura» preservando-a da fascinação de uma certa linguagem – 7 Em francês:

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«literária» sem dúvida, até mesmo «filosófica». Mas como conduzir o combate? De novo por meios de linguagem, e desde que se renunciou à esperança do Tractatus, é, pois, de uma luta da linguagem contra si mesma que seria questão: o que restauraria as necessidades da dialética, a menos que não se esteja à procura de uma espécie de linguagem justa ou verdadeira da qual uma razão simples, silenciosa, decidiria, razão ideal, tão logo posta em acusação como portando uma violência esquivada, mestra de julgamento, autoridade de saber e de poder que reduz a linguagem a não ser senão um meio neutro através do qual o dizer verdade se transmitiria sem se deformar. Como se, precisamente, a razão falasse sem falar, aquilo que no rigor pode se afirmar, mas num sentido não estritamente razoável, de onde as contradições que tão logo param. Mesmo se nós pressentimos que o neutro está em jogo no infinito da linguagem, ele não tem a propriedade de dar a este uma neutralidade, sendo inapreensível, exceto ao infinito, e desde que se o apreende, sempre pronto como questão negativa a cair seja em direção ao Uno, seja em direção ao Outro que ele retém repetitivamente por um movimento de retração: em relação, portanto, com o infinito da linguagem que nenhuma totalidade saberia enclausurar e que, se ele se afirma, é fora da afirmação como da negação de que o saber e o uso nos dão a conhecer. De onde a obrigação de não falar sobre a linguagem sem saber que se se limita então ao limitado de um saber, mas a partir da linguagem que não é precisamente um ponto de partida, a não ser como a exigência indizível que, no entanto, lhe pertence.Resta que a frase de Wittgenstein não se apaga, dizendo talvez, como creio que alguém o disse, que a grande audácia do pensamento é a audácia de ser sóbrio, de não se deixar embriagar pelo patético, pelo encantamento do profundo, pelo enfeitiçamento do essencial – aquilo que é importante, mas com a condição de reter então o outro perigo: a tentação do rigor da ordem, de sorte que a filosofia seria também o combate da razão contra o razoável.

«O azul do céu» é aquilo que melhor diz o vazio do céu: o desastre como retração para fora do abrigo sideral e recusa de uma natureza sagrada.

Confiando na linguagem entendida como o desafio provocante que nos foi confiado da mesma maneira que nós lhe fomos confiados.

Guardar o segredo é evidentemente dizê-lo como não-segredo, no fato de que ele não é legível.

A frase isolada, aforística, atrai porque ela afirma definitivamente, como se mais nada falasse em torno dela, no fora dela. A frase alusiva, isolada também, dizendo, não dizendo, apagando aquilo que ela diz ao mesmo tempo que ela o diz, faz da ambiguidade um valor. «Suponhamos que eu não tenha dito nada». A primeira é normativa. A segunda crê escapar à ilusão do verdadeiro, mas se prende à ilusão mesma como verdadeiro, crê que aquilo que foi escrito pode se reter. A exigência do

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fragmentário é exposição a esses dois tipos de risco: a brevidade não a satisfaz; em margem ou em retração de um discurso suposto acabado, ela a reitera por cacos e, na miragem do retorno, não sabe se ela não dá uma nova segurança àquilo que ela extrai dele. Ouçamos essa advertência: «É preciso temer que, como a elipse, o fragmento, o ''eu não digo quase nada e o retiro imediatamente'' potencializa a maestria de todo o discurso retido, arrazoando de antemão todas as continuidades e todos os suplementos por vir» (Jacques Derrida).

A questão sempre a questionar: «O múltiplo se conduz a dois?» Uma resposta: quem diz dois não faz senão repetir Uno (ou a unidade dual), a menos que o segundo termo, enquanto o Outro, não seja o infinitamente múltiplo ou que a repetição do Uno não o mantenha senão para dissipá-lo (talvez ficticiamente). Não há, portanto, dois discursos: há o discurso e haveria o dis-curso do qual não «sabemos» quase nada, senão que ele escapa ao sistema, à ordem, à possibilidade, inclusive à possibilidade de palavra, e que talvez a escritura o ponha em jogo lá onde a totalidade se deixou excedida.

A água onde Narciso vê aquilo que ele não deve ver, não é o espelho capaz de uma imagem distinta e definida. Aquilo que ele vê, é no visível o invisível, na figura o infigurável, o desconhecido instável de uma representação sem presença, a representação que não reenvia a um modelo: o anônimo que o nome que ele não tem poderia só manter à distância. É a loucura e a morte (mas para nós, nós que nomeamos Narciso, o estabelecemos como Mesmo desdobrado, quer dizer, sem que ele saiba - e o sabendo – encobrindo o Outro no mesmo, a morte no vivente: a essência talvez do segredo – cisão que não é, por isso, uma cisão -, aquilo que lhe daria um eu [moi] dividido sem eu [je], ao mesmo tempo que o priva de toda relação com outrem). O escoamento caudaloso de fonte, à vez, deixou ver algo de claro, a imagem atraente de alguém e, embaralhando-a limpidamente, impede a fixidez estável de um visível puro (do qual se poderia apropriar) e arrasta tudo – aquele que é chamado a ver e aquilo que ele acreditaria ver – numa confusão de desejo e de medo (termos que escondem o escondido, uma morte que não seria por isso uma morte). Se Lacoue-Labarthe, em reflexões muito preciosas, nos relembra aquilo que teria dito Schlegel: «Todos os poetas são Narciso», não é preciso se contentar de reencontrar aí superficialmente a marca do romantismo para o qual a criação - a poesia - seria subjetividade absoluta, o poeta se fazendo sujeito vivendo no poema que o reflete, do mesmo modo que ele é poeta transformando sua vida de tal maneira que ele a poetiza encarnando nela sua pura subjetividade, é preciso, sem dúvida, entendê-lo ainda de modo outro: é que no poema onde ele se escreve, ele não se reconhece, é que no poema ele não toma consciência de si mesmo, rejeitado dessa esperança fácil de um certo humanismo segundo o qual, escrevendo ou «criando», ele transformaria em maior consciência a parte de experiência obscura que ele sofreria: ao contrário, rejeitado, excluído daquilo que se escreve e sem mesmo estar presente nele pela não-presença de sua morte mesma, é preciso que ele renuncie a

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toda relação de si (vivente e morrente) com aquilo que pertence doravante ao Outro ou permanecerá sem pertencimento. O poeta é Narciso, na medida em que Narciso é anti-Narciso: aquilo que, desviado de si, portando e suportando o desvio, morrendo de não se re-conhecer, deixa o rastro daquilo que não teve lugar.

As palavras de Ovídio a reter sobre Narciso: «ele perece por seus olhos » (vendo-se como deus – o que relembra: quem vê Deus morre) e «desgraçado, porque tu não eras o outro, porque tu eras o outro». Por que desgraçado? A desgraça reenvia à ausência de filiação, como de fecundidade, órfão estéril, a imagem da vicissitude solitária. Outro sem ser outro. Isso permite os desenvolvimentos dialéticos ou, ao contrário, mantém num rigor imóvel de onde a poesia não é excluída.

Viver sem vivente, como morrer sem morte: escrever nos reenvia a essas proposições enigmáticas.

É a linguagem que seria «críptica», não somente em sua totalidade excedida e não teorizável, mas como encobrindo bolsões, lugares cavernosos onde as palavras se fazem coisas, o dentro fora, nesse sentido indecriptável, na medida em que o deciframento é necessário para manter o segredo no segredo. O código não basta mais. A tradução é infinita. E, no entanto, é preciso que encontremos a palavra-chave que abre e não abre. Salva-se por aí alguma coisa que libera a perda e lhe recusa o dom. «''Eu'' não salvo um foro interior senão ao pô-lo em ''mim'', à parte de mim, fora» (Derrida). Frase de desenvolvimentos ilimitados. Mas quando o «eu [moi]» - o outro do Eu [Je] – se apropria das palavras-coisas para nelas enterrar um segredo e dele gozar sem gozo, no receio e na esperança de que ele seja comunicado (partilhado com alguém outro na falta de uma parte), é com uma linguagem petrificada que nós temos relação pela qual não pode mesmo mais se transmitir aquilo que haveria do intransmissível. É talvez a isso que tenda «o idioma do desejo», com suas motivações miméticas cuja soma é imotivada e que se oferecem ao deciframento como o absoluto indecifrável. Certamente, o desejo de escrever que a escritura transporta e que a porta, não permanece sendo o desejo em geral, mas se refrata em uma multiplicidade de desejos escondidos ou destacados artificiosamente cujos efeitos de não-arbitrário (anagrama, ritmo, rima interna, jogo mágico de letras) fazem da linguagem mais «razoável» um processo contaminado, rico daquilo que ela não pode dizer, impróprio àquilo que ele diz e enunciando no segredo (bem ou mal guardado) a impropriedade inapreensível.

Escrever sem o desejar e sem o querer: o que é que se esconde aí naquilo que não é o simples retorno do indesejável e do involuntário? É demasiado fácil reconhecer nisso a paciência de escrever até sua passividade mais extrema (que nenhuma escritura automática pôde satisfazer), como nisso se reconhece, no choque que nisso se disjunta, o desejo de morrer, um extinguindo-se, despertando-se pelo outro numa perpetuidade que parece enganar o tempo, pelo menos o muda, de tal sorte que a instabilidade do desastre não possa se esgotar em declínio. ++

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«Guardar um segredo, na particularidade de uma coisa que não se diz, supõe que se poderia dizê-lo. Não é nada de extraordinário: uma retenção antes desagradável. - Mas se reporta já à questão do segredo em geral, ao fato (isto não é um fato) de se perguntar se o segredo não está ligado ao caso de que haveria ainda algo a dizer, quando tudo estaria dito: o Dizer (com sua maiúscula gloriosa) sempre em excesso sobre o tudo está dito. - O não aparente do todo manifesto, aquilo que se retira, se esquiva na exigência da tirada dos véus: a obscuridade do clarão ou o erro da verdade mesma. - O não-saber após o saber absoluto que precisamente não deixa mais pensar um «após». – Salvo sob o 'é preciso ('il faut)'' do retorno que ''dessignifica'' todo antes, como todo após, desligando-o do presente, tornando-o inadaptável. - O segredo escapa, não é jamais limitado, ele se ilimita. Aquilo que se esconde nele, é a necessidade de estar escondido. – Não há nada de secreto, em lugar nenhum, eis o que ele diz sempre. – Não o dizendo, já que, com as palavras ''há'' e ''nada'', o enigma continua a reger, impedindo a instalação e o repouso. - O estratagema do segredo é ora se mostrar, se tornar tão visível que ele não se vê (portanto é se apagar como segredo), ora deixar entender que o segredo não é segredo senão lá onde falta todo segredo ou toda aparência de segredo. - O segredo não está ligado a um “eu” [''je''], mas à curvatura do espaço que não se saberia dizer inter-subjetiva, já que o eu [je] sujeito se reporta ao Outro na medida em que o Outro não é sujeito, na desigualdade da diferença: sem comunidade; o não-comum da comunicação. - ''Ele viverá doravante no segredo'': essa frase constrangedora se elucida por aí? – É como se fosse dito que para ele a morte se cumpriria na vida. – Deixemos ao silêncio essa frase que não quer talvez dizer senão o silêncio».

Interrogo essa afirmação que não se pode negligenciar nem tratar legalmente: «A ética da revolta se opõe a todo discurso clássico do Soberano Bem, como a toda pretensão moral ou imoral, no fato de que ela constroi, protege, administra, um lugar vazio, deixando vir a nós uma outra história» (Guy Lardreau, Christian Jambet). Uma primeira observação: a revolta, sim, como a exigência da virada em que o tempo muda, o extremo da paciência estando em relação com o extremo da responsabilidade. Mas não se pode então assimilar revolta e rebelião. A rebelião não faz senão reintroduir a guerra, quer dizer, luta para a maestria e a dominação. O que não quer dizer que não seria necessário lutar contra o mestre pelo meio de sua maestria, mas que ao mesmo tempo, à vez, há lugar de fazer apelo sem socorro à «distorsão infinitamente multiplicada», lá onde maestria e desejo, no reino absoluto que eles exercem, se chocam sem que o saibam (precisamente porque eles sabem tudo, não sabendo senão o tudo) com o outro múltiplo que jamais se resolve em um, uno. E o que se pode dizer da outra história, se seu traço é não ser uma história, nem no sentido de Historie, nem no sentido de Geschichte (que implica a ideia de agrupamento), e também nesse fato de que nela nada advém de presente, que nenhum evento ou advento a mensura ou a escande, que estrangeira à sucessão

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sempre linear, mesmo quando esta está encabrestada, ziguezagueante tanto quanto dialética, ela é projetamento de uma pluralidade que não é aquela do mundo ou do número: história em demasia, história «secreta», separada, que supõe o fim da história visível, enquanto ela se priva de toda ideia de começo e de fim: sempre em relação com um desconhecido que exige a utopia do conhecer tudo, porque ele a desborda – desconhecido que não se liga ao irracional para além da razão, nem mesmo a um irracional da razão: talvez retorno a um outro sentido no trabalho laborioso da « dessignificação». A outra história seria uma história fingida, o que não quer dizer um puro nada], mas chamando sempre o vazio de um não-lugar, uma falta onde ela falta a si mesma: incrível porque ela está em ausência em relação a toda crença.

Memorial: falar de Wittgenstein (por exemplo), é ir até alguém que não se conhece, que - como filósofo – não queria sê-lo, não queria ser conhecido, do mesmo modo que ensinou a contragosto, do mesmo modo que a maior parte do que se publicou é uma publicação desviada. Daí - talvez - que tantas de suas interrogações sejam fragmentárias, abram sobre o fragmentário. Não se pode fazer dele um destruidor. Aquele que interroga vai sempre além, e a simplicidade de um pensamento que abala, pertence sempre ao respeito do pensamento, na recusa do patético. Se ele dá a impressão de estar no intervalo abismal da história da filosofia, ele faz pressentir não somente que ele é um isolado – ninguém pode sê-lo -, mas que há uma história não histórica daquilo que não se sabe nomear senão como pensamento.

Aquele que espera, precisamente não te espera. É assim que tu és, entretanto, esperado, mas não a título vocativo: não chamado.

Por que o Deus Uno? Por que Uno está de alguma maneira acima de Deus, do Deus que tem um nome pronunciável? Uno não é evidentemente um número, «uno» não se opõe a «vários»; o monoteísmo, o politeísmo, isso não faz a diferença. O zero, também, não é um número, não mais que uma ausência de número, nem muito menos um conceito. Talvez o «Uno» esteja destinado a preservar «Deus» de todo qualificativo, a começar por «bom» e, sobretudo, «divino». O «Uno» é o que menos autoriza a união, mesmo que fosse com o infinitamente longínquo, na mais forte razão o remonte e a confusão místicos. O rigor e a impossibilidade do Uno sem unidade não permitem mesmo lhe dar por visada a transcendência. O Uno não tem horizonte, o horizonte por sentido. O Uno não é mesmo único, não mais do que ele seria singular. Daquilo que subtrai o Uno a toda dialética, como a todo movimento de pensamento, vem seu prestígio sobre o pensamento. Pensar é se encaminhar em direção ao pensamento do Uno que rigorosamente escapa ao pensamento, ainda que, em direção ao Uno, ele esteja virado, como a agulha em direção ao pólo que ela não indica - virado? Antes: desviado. A severidade do Uno que não prescreve nada, evoca o que há de imprescritível na Lei, superior a todas as prescrições, e que é tão

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alta que não existe altura onde ela se revela. A Lei, pela autoridade acima de toda justificação que se tende a lhe reconhecer (de sorte que não importa que ela seja legítima ou ilegítima), abaixa já o Uno que, não sendo nem alto nem baixo, nem único, nem secundário, admite todas as equivalências que o deixam intacto: o Mesmo, o Simples, a Presença. Mas se pode muito bem também dizer que o Uno requerer melhor ainda todas as noções de oposição que não lhe são adversas senão para reconhecê-lo na transgressão mesma. Quando provamos a necessidade de pensar com coerência ou quando estamos mal à vontade porque não unificamos nosso saber, é somente por causa da unidade ordinária ou não seria por uma reverência esquecida para o Uno sem referência, como se o sente muito bem cada vez que se lhe encontram traduções, éticas ou não, como o Super-Ego, até o «eu[je]» transcendental? O que se passaria se se pudesse fazer o Uno fracassar? Como fazer o Uno fracassar? Talvez falando, por uma espécie de palavra. É sem dúvida o combate do desastre. Foi de uma certa maneira o combate de Kafka, combatendo para o Uno contra o Uno?

Hölderlin: « De onde vem, pois, por entre os homens o desejo doentio de que não haja senão um e que não haja senão algo de uno?»

Combate da passividade, combate que se anula em extrema paciência e que o neutro não tem êxito em indicar. Combate para não nomear o combate. Fora de referência a matéria ou o inimaginável real, assim como é fora de referência o Uno - o que não constitui nenhum dualismo, pois como fazer entrar numa conta, até na diferença de um discurso aquilo que se dá ao mesmo tempo como sua incondição ou sua prévia interrupção?

O que Kafka nos dá, dom que não recebemos, é uma espécie de combate pela literatura para a literatura, combate do qual ao mesmo tempo a finalidade escapa e que é tão diferente daquilo que conhecemos sob esse nome ou sob outros nomes que o desconhecido mesmo não é suficiente para torná-lo sensível para nós, já que ele nos é tão familiar quanto estrangeiro. «Bartleby o escritor» pertence ao mesmo combate, naquilo que não é a simplicidade de uma recusa.

« Admitir a ação da literatura sobre os homens – esta talvez seja a última sabedoria do Ocidente em que o povo da Bíblia se reconhecerá» (Levinas).

É estranho que K., no fim do Castelo, tenha sido por certos comentadores prometido à loucura. Desde o começo, ele está fora do debate razão-desrazão, na medida em que tudo o que ele faz, é sem relação com o razoável, entretanto absolutamente necessário, quer dizer, justo ou justificado. Do mesmo modo, não parece possível que K. morra (condenado ou salvo: isso é quase sem importância), não somente porque seu combate não se inscreve nos termos de viver e de morrer, mas porque ele está demasiado cansado (seu cansaço, único traço que se acentua

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com a narrativa) para poder morrer: para que o advento de sua morte não se mude em inadvento interminável.

O messianismo judeu (em certos comentadores) nos deixa pressentir a relação do evento e do inadvento. Se o Messias está às portas de Roma em meio aos mendigos e aos leprosos, pode-se crer que seu incógnito o protege ou impede sua vinda, mas precisamente ele é reconhecido; alguém, pressionado pela obsessão da interrogação, lhe pergunta: «Quando tu virás?» O fato de estar lá não é, pois, a vinda. Junto ao Messias que está lá, deve sempre ressoar o apelo: «Vem, Vem». Sua presença não é uma garantia. Futura ou passada (é dito, ao menos uma vez, que o Messias já veio), sua vinda não corresponde a uma presença. O apelo também não basta; há condições – o esforço dos homens, sua moralidade, seu arrepender-se - que são conhecidas; há sempre outras que não são conhecidas. E se ele chega à questão: « Para quando a tua vinda?», o Messias responde: «Para hoje», a resposta certamente é impressionnante: é, pois, hoje. É agora e sempre agora. Não há que se esperar, ainda que seja como que uma obrigação esperar. E quando é agora? Um agora que não pertence ao tempo ordinário, que necessariamente o abala, não o mantém, o desestabiliza, sobretudo se se lembra que esse «agora» fora de texto, de um relato de severa ficção, reenvia a textos que o fazem de novo depender de condições realizáveis - irrealizáveis: «Agora por pouco que tu me prestes atenção, ou se tu queres então escutar minha voz». Enfim o Messias, contrariamente à hipóstase cristã, não tem nada de divino: consolador, o justo dos justos, ele não está mesmo seguro de que ele seja uma pessoa, alguém singular. Quando um comentador diz: esse talvez seja eu, ele não se exalta por aí, cada um pode sê-lo, deve sê-lo, não o é; pois seria deslocado falar do Messias em linguagem hegeliana: «a intimidade absoluta da exterioridade absoluta», tanto mais quanto o advento messiânico não significa ainda o fim da história, a supressão de um tempo mais futuro que nenhuma profecia saberia anunciar, assim como se pode lê-lo nesse texto misterioso: «Todos os profetas – não há exceção – não profetizaram senão para o tempo messiânico [a epokhé?]. Quanto ao tempo futuro, qual olho o viu fora de Ti, Senhor, que agirás para aquele que te é fiel e permanece em espera» (Levinas e Scholem).

Por que o cristianismo teve necessidade de um Messias que seja Deus? Não basta dizer: por impaciência. Mas que nós divinizemos os personagens históricos, é, pois, por um subterfúgio impaciente. E por que a ideia do Messias? Por que a necessidade do acabamento na justiça? Por que não suportamos, não desejamos aquilo que é sem fim? A esperança messiânica - esperança que é também pavor – se impõe, quando a história não aparece politicamente senão como um tohu-bohu8 arbitrário, um processo privado de sentido. Mas se a razão política devém por sua vez messiânica, essa confusão que retira sua seriedade à procura de uma história razoável (compreensível) como à exigência de um messianismo (cumprimento da moralidade), dá testemunho somente de um tempo tão angustiante, tão perigoso, que 8 Nota do tradutor: de uma palavra hebraica que significa "caos anterior à criação do mundo").

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todo recurso parece justificado: pode-se tomar recuo quando tem lugar Auschwitz? Como dizer: Auschwitz teve lugar?

O julgamento final segundo a expressão alemã: o dia mais jovem, o dia para além dos dias; não que o julgamento esteja reservado para o fim dos tempos; ao contrário, a justiça não espera, ela está a cada instante por cumprir, render, meditar também (aprender); cada ato justo (há isso?) faz do dia o último dia ou – como diz Kafka - o realmente último, não se situando mais na seqüência ordinária dos dias, mas do ordinário mais ordinário fazendo o extraordinário. Aquele que foi contemporâneo dos campos é para sempre um sobrevivente: a morte não o fará morrer.

A substituição da lei pelas regras parece, nos tempos modernos, uma tentativa não somente para desmistificar o poder ligado ao interdito, mas para liberar o pensamento do Uno propondo ao costume a multiplicidade das possibilidades não ligadas da técnica. Mas sempre houve uma ambiguidade sob o nome de lei: sagrada, soberana, ela reclama para si a natureza, exalta-se dos prestígios do sangue, ela não é poder, mas onipotência – não há nada senão ela; aquilo contra o qual ela se exerce não é nada: nenhuma humanidade, somente mitos, monstros, fascinações. A lei judaica é santa e não sagrada: ela põe no lugar da natureza que ela não investe com a magia do pecado, relações, decisões, mandamentos, quer dizer palavras que obrigam; no lugar do étnico o ético; os ritos são religiosos; eles, entretanto, não transformam o cotidiano em afetividade religiosa, buscam, antes, aliviá-lo do tempo sem história ligando-o em prática, em serviço, numa rede meticulosa de consentimento sob o dia feliz das lembranças, das antecipações históricas. Resta o julgamento. Ele é reenviado àquilo que é o mais alto: Deus só julga; quer dizer, de novo o Uno. O Uno que libera no fato de que não há céus onde ele possa reinar, nem medida com que se medir, nem pensamento que possa rebaixá-lo a ser só pensável – de onde a tentação de sua dissolução em ausência ou seu retorno na inexorabilidade da Lei que se pratica menos do que ela faz tremer, que releva menos do estudo que da leitura fascinada, reverencial. São Paulo quer nos franquear da Lei: a Lei entra no drama do sagrado, da tragédia sagrada, da vida nascida da morte, inseparável dela.

As leis - o prosaico das leis – liberam talvez da Lei substituindo a majestade invisível do tempo pela imposição multiplicada do espaço; do mesmo modo, o regulamentar suprime aquilo que o poder evoca, sempre primeiro, pelo nome de lei, assim como os direitos que a dobram, mas estabelece o reino da técnica, a qual, afirmação do puro saber, investe tudo, controla tudo, submete todo gesto à sua gestão, de sorte que não há mais possibilidade de liberação, já que não se pode mais falar de opressão. O processo de Kafka pode ser interpretado como um encabrestamento dos três reinos (a Lei, as leis, as regras): interpretação entretanto insuficiente, na medida em que seria preciso, para torná-la admissível, supor um quarto reino que não releva dos três outros – aquele do domínio saliente da própria literatura, ao passo que esta recusa esse ponto de vista privilegiado, ao mesmo

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tempo que não se deixa depender de uma outra ordem ou de qualquer ordem que seja (pura inteligibilidade) ao nome do qual se poderia simbolizá-la.

Em Bartleby, o enigma vem da «pura» escritura que não pode ser senão cópia (re-escritura), da passividade na qual essa atividade desaparece e que passa insensível e repentinamente da passividade ordinária (a re-produção) ao além de todo passivo: vida tão passiva, tendo a decência escondida do morrer, que ela não tem a morte por saída, não faz da morte uma saída. Bartleby copia; escreve incessantemente e não pode parar para se submeter àquilo que se assemelharia a um controle. Preferiria não (fazer). Essa frase fala na intimidade de nossas noites: a preferência negativa, a negação que apaga a preferência e se apaga nela, o neutro daquilo que não há nada a fazer, a retenção, a doçura que não se pode dizer obstinada e que falta à obstinação com essas poucas palavras; a linguagem se cala se perpetuando.

Aprende a pensar com dor.

O pensamento parece imediato (eu penso, eu existo [je suis]), e, no entanto, está em proporção com o estudo; é preciso se levantar cedo para pensar, é preciso pensar e jamais estar seguro de pensar; não estamos bastante desvelados: velar além da vigília; a vigilância é a noite que vela. Dor, ela desune, mas não de uma maneira visível (por uma deslocação ou uma disjunção que seria espetacular): de uma maneira silenciosa, fazendo calar o ruído por trás das palavras. A dor perpétua, perdida, esquecida. Ela não torna o pensamento doloroso. Não se deixa socorrer. Sorriso pensativo da face não esfacelante que o céu a terra desaparecidos, o dia a noite passados um no outro, deixam naquele que não olha mais e que, votado ao retorno, jamais partirá.

A palavra escrita; não vivemos mais nela, não que ela anuncie: «ontem foi o fim», mas ela é nosso desacordo, o dom da palavra precária.

Partilhemos a eternidade para torná-la transitória.

Aquilo que resta para dizer.

Solidão que irradia, vazio do céu, morte diferida: desastre.