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A CRIANÇA E O BRINCAR

Jul 17, 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO - UFRRJ DECANATO DE PESQUISA E PS-GRADUAO - DPPG

L U Z I A M AR I A R O DR I G U ES

A C RI AN A E O B RI NC A R

Orientador: Carlos Roberto Carvalho

M ES Q UI T A 2009

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo discutir e propor uma reflexo sobre o tema brincar. Partindo de uma anlise bibliogrfica, procurei apontar importantes argumentos sobre o tema e a partir de uma pesquisa de campo com anlise de dados, confrontar a teoria e a prtica, o discurso e a realidade. Inicialmente, fez-se necessrio conhecer um pouco da histria da infncia e como esta mesma histria tem produzido, em diferentes tempos e espaos, diferentes conceitos sobre a criana. Num segundo momento, a brincadeira aparece como algo essencial no desenvolvimento da criana e assim como o conceito de infncia, o brinquedo tambm apresenta sua dimenso histrica e cultural. Logo aps, a brincadeira assume sua forma especfica de ser um fator social que pressupe uma aprendizagem e uma importante experincia de cultura e que ao longo dos anos, vem se modificando. E por ltimo, apresento o brincar dentro do tempo e do espao escolar atravs do olhar do adulto e da prpria criana.

SUMRIO

INTRODUO...............................................................................................................09 1. CONTEXTO HISTRICO DA INFNCIA..............................................................10 2. INFNCIA, BRINCADEIRA E DESENVOLVIMENTO.........................................17 3. O BRINCAR COMO EXPERINCIA DE CULTURA.............................................22 4. A CRIANA E O BRINCAR: IMAGENS E NARRATIVAS DA INFNCIA........28 CONSIDERAES FINAIS..........................................................................................41 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................43 ANEXO................................................................................46

INTRODUOPensar a infncia e a educao no momento atual requer um grande esforo e uma profunda reflexo por parte da escola e da sociedade. Ao longo dos sculos, a criana vem assumindo diferentes papis de acordo com a poca e a sociedade em que est inserida. A concepo de infncia uma noo historicamente construda e consequentemente vem mudando, no se manifestando de maneira homognea nem mesmo no interior de uma mesma sociedade e poca. A criana desenvolve-se pela experincia social, nas interaes que estabelece, desde cedo, com a experincia scio-histrica dos adultos e do mundo por eles criado. Dessa forma, a brincadeira uma atividade humana, na qual as crianas so introduzidas constituindo-se em um modo de assimilar e recriar a experincia scio-cultural dos adultos. A escolha do tema desta monografia foi motivada pela discusso, que provocou em mim grande interesse, de documentos oficiais onde o tema brincar foi abordado. Podese verificar que nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil, a questo da ludicidade foi contemplada, enquanto que nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, ela nem sequer mencionada. Buscando respostas aos meus questionamentos, elaborei este trabalho. A estrutura desta monografia est organizada em quatro captulos. No captulo I Contexto Histrico da Infncia, o conceito de infncia abordado de maneira dinmica, pois no decorrer dos sculos ele vai mudando. Deixa-se claro, que a infncia e a criana ser vista de acordo com os interesses da sociedade na qual est inserida. Fala-se tambm da infncia no capitalismo e aponta-se um grande problema da atualidade que seria o desaparecimento da infncia, j que estudiosos mencionam indcios que afirmam tal prerrogativa. Postman (1999), ressalta que hoje meninas tem sido apresentadas, no mais de maneira nostlgica, mas como mulheres espertas e sexualmente atraentes; diminui rapidamente a diferena entre crimes de adultos e crimes de criana; as roupas usadas por crianas esto cada vez mais parecidas com a dos adultos e tambm as brincadeiras e jogos infantis, assim como a prpria infncia so uma espcie ameaada.

09 No segundo captulo Infncia, brincadeira e desenvolvimento, apresento uma breve sntese sobre o contexto histrico e cultural do brinquedo e, apoiada nas idias de Vygotsky, ressalto a importncia da brincadeira no desenvolvimento da criana. O terceiro captulo O brincar como experincia de cultura, tem como proposta falar da brincadeira como fenmeno de cultura, algo que aprendido pela criana desde muito cedo. Fala-se tambm da forte influncia da televiso na cultura ldica da criana, seu apelo ao consumismo e a prpria transformao do brincar com o advento de novas formas de tecnologia e de tantos outros fatores que tem diminudo o tempo e o espao do brincar. E como referncia terica, utilizei-me de textos da autora ngela Meyer Borba como base para este captulo. No ltimo captulo A criana e o brincar: imagens e narrativas da infncia, buscouse entender como o brincar aparece dentro do tempo e do espao escolar. Apesar de todo aparato terico e legal, que mostra a importncia do brincar, ainda h dentro das idias e prticas educativas institucionais, um olhar indiferente sobre a questo da presena da brincadeira dentro do cotidiano escolar. Assim, entre o discurso e a prtica, o tempo e o espao do brincar vo sendo reduzidos para que nossas crianas se tornem alunos. Minha expectativa que este trabalho sirva de base para uma reflexo sobre a infncia e especialmente, a importncia do brincar no espao escolar, no apenas como recurso pedaggico mas como espao de liberdade e criao.

no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criana ou o adulto fruem sua liberdade de criao.

D.W. Winnicott

CAPTULO I CONTEXTO HISTRICO DA INFNCIA 1.1 Conceito de infnciaTudo que existe hoje passou por um processo at chegar ao que . A existncia de muitas coisas s compreendida quando se conhece seu contexto histrico e cultural. Segundo Kramer (2007), as vises sobre a infncia so construdas social e historicamente. A insero concreta das crianas e seus papis variam com as formas de organizao da sociedade. Assim, a ideia de infncia no existiu sempre e da mesma maneira. Faria (1997, p.9) ressalta que a criana ser percebida pela sociedade de forma diversificada ao longo dos tempos, conforme as determinaes das relaes de produo vigentes em cada poca. De acordo com Faria, apresentarei um breve histrico da infncia em diferentes pocas e seu significado tambm para o sistema capitalista.

1.1.1 Infncia na Idade Mdia: a criana como adulto em miniatura Na Idade Mdia no existia um sentimento de infncia que distinguisse a criana do adulto, sendo a criana considerada um adulto de pequeno tamanho executando tambm as mesmas atividades dos mais velhos. A infncia, nessa poca, era vista como um estado de transio para a vida adulta. No se dispensava um tratamento especial para as crianas, o que tornava sua sobrevivncia difcil. Para a sociedade medieval, o importante era a criana crescer rapidamente para poder participar do trabalho e de outras atividades do mundo adulto. Todas as crianas a partir dos sete anos de idade, independentemente de sua condio social, eram colocadas em famlias estranhas para aprenderem os servios domsticos. O anfitrio

11 era chamado mestre e a criana, aprendiz. De acordo com Aris (2006): era atravs do servio que o mestre transmitia a uma criana no a seu filho, mas ao filho de outro homem, a bagagem de conhecimentos, a experincia prtica e o valor humano que pudesse possuir (p.156). Naquele perodo, a criana aprendia atravs da prtica. Os trabalhos domsticos no eram considerados degradantes e constituam uma forma comum de educao tanto para ricos, como para pobres. O fato da criana sair bastante cedo da casa dos pais, fazia com que ela escapasse do controle da famlia genitora, mesmo que voltasse a ela mais tarde depois de adulta, o que raramente acontecia.

A famlia no podia portanto, nessa poca, alimentar um sentimento existencial profundo entre pais e filhos. Isso no significa que os pais no amassem seus filhos: eles se ocupavam de suas crianas menos por elas mesmas, pelo apego que lhes tinham, do que pela contribuio que essas crianas podiam trazer obra comum, ao estabelecimento da famlia. A famlia era uma realidade moral e social, mais do que sentimental. No caso de famlias muito pobres, ela no correspondia a nada alm da instalao material do casal no seio de um meio mais amplo, a aldeia, a fazenda, o ptio ou a casa dos amos e senhores, onde esses pobres passavam mais tempo do que em sua prpria casa (s vezes nem ao menos tinham uma casa, eram vagabundos sem eira nem beira, verdadeiros mendigos). Nos meios mais ricos, a famlia se confundia com a prosperidade do patrimnio, a honra do nome. A famlia quase no existia sentimentalmente entre os pobres, e quando havia riqueza e ambio, o sentimento se inspirava no mesmo sentimento provocado pelas antigas relaes de linhagem. (Aris, 2006, p.158)

No existia um traje reservado infncia. Isto , a Idade Mdia vestia indiferentemente todas as classes de idade, preocupando-se apenas em manter visveis atravs da roupa os degraus da hierarquia social (Aris, 2006, p.32). Os colgios estavam reservados a um pequeno nmero de clrigos e eram frequentados por estudantes de todas as idades. Ensinava-se letras latinas e ao mestre, limitava-se transmisso de conhecimentos. 1.1.2 Infncia na Idade Moderna ( sculos XVI XVIII ): da criana divertida e agradvel criana educvel O registro das primeiras iniciativas de atendimento infncia aparece nos contextos da Revoluo Industrial, do Iluminismo e da constituio dos Estados laicos. So denominados refgios ou asilos, que abrigavam crianas, filhas de mes operrias.

12 As primeiras iniciativas deste tipo datam de 1774, na Frana, e sua origem est nos movimentos filantrpicos de cunho marcadamente assistencial. No perodo de transio do feudalismo para o capitalismo ocorreram, na Europa Ocidental, alteraes nas relaes sociais que tiveram reflexos na organizao familiar, escolar e no sentimento de infncia. A criana tornou-se fonte de alegria; redobraram-se os cuidados e as atenes. No sculo XVII, a paparicao foi considerada algo prejudicial, pois tornava as crianas mimadas e mal-educadas. Por isso, foi proposta a educao e moralizao dos pequeninos com o objetivo de torn-los, mais tarde, pessoas honradas, e homens racionais incumbindo aos colgios essa tarefa. A criana deixou de ser divertida e agradvel e tornou-se educvel. A substituio da educao prtica pela terica e o apelo dos moralistas foram correspondidos pelos pais atravs da preocupao de vigiar seus filhos mais de perto e de no abandon-los mais, mesmo temporariamente, aos cuidados de uma outra famlia (Aris,2006, p.159). Esta aproximao pais-criana, gerou um sentimento de famlia e de infncia que outrora no existia, e a criana tornou-se o centro das atenes, pois a famlia comeou a se organizar em torno dela. O uso do castigo corporal tornou-se comum nas escolas e nas famlias refletindo a ideologia da poca: moralizao e enquadramento da criana. No mesmo sculo XVII, foi criado um traje especial onde cada um comeou a se trajar de acordo com a sua idade e condio social. At a primeira metade do sculo XVII, a primeira infncia ia at os cinco ou seis anos. Aos sete anos, j podia-se ir para o colgio. Mas, a partir da segunda metade do mesmo sculo, observa-se o cuidado com a precocidade. O comeo da idade escolar foi adiado para os dez anos, o que prolongava a primeira infncia, sob a justificativa pela fraqueza, imbecilidade e incapacidade dos meninos. O ensino s foi levado s meninas a partir do sculo XVIII e neste mesmo sculo, criou-se um ensino para o povo e outro para as classes burguesas e aristocrticas, comeando assim a discriminao social no sistema educacional.

13 1.1.3 Infncia no Brasil Escravista: surgimento da Roda A economia colonial, fundada no latifndio e na mo-de-obra escrava propiciou o aparecimento do poder representado pela autoridade sem limites do dono de terras e pela famlia patriarcal, que favoreceu a importao de formas de pensamento e de ideias dominantes na cultura medieval europia. Em fins do sculo XIX, os ndices de mortalidade infantil no eram vivenciados com muito sofrimento devido a identificao da criana morta ao anjinho, puro e intocado pelo pecado, sendo vlida tanto para o branco quanto para o negro. A idade de cinco a seis anos parece encerrar uma fase na vida da criana escrava. Dos seis aos doze anos, ela aparece desempenhando pequenas tarefas e depois dos doze anos, meninos e meninas eram vistos como adultos no que se refere ao trabalho e sexualidade. A vara de marmelo e a palmatria se incumbiam de transformar o antigo anjinho numa miniatura de adulto precoce. Nos sculos XVIII e XIX, a Roda recebia crianas de qualquer cor, mas seus usurios eram geralmente os filhos das escravas, pois os proprietrios no se responsabilizavam pelos encargos da criao da prole de seus escravos e ainda utilizavam as escravas como amas-de-leite, trabalho este que no permitia a permanncia dos filhos perto delas. A partir da segunda metade do sculo XIX, essa prtica tornou-se alvo de crticas do movimento abolicionista e do movimento higienista: os mdicos deixavam uma nica opo segura para a me que era amamentar seu prprio filho, ficando a escrava ou ex-escrava responsvel somente pelo servio domstico. A partir de 1871, a Roda comea a ser menos utilizada e surge um novo problema pois, no se sabia o que fazer com os filhos das escravas. Surgem ento, as primeiras creches brasileiras que foram implantadas por mdicos com a ajuda das mulheres burguesas, visando o atendimento dos filhos dessas trabalhadoras domsticas. Por isso, pode-se dizer que as primeiras iniciativas voltadas para a infncia no Brasil foram marcadas pelo carter mdico-sanitarista. As profundas e rpidas transformaes sociais e polticas ( Abolio da Escravatura em 1888 e a Proclamao da Repblica em 1889) abrem, no Brasil, o caminho para a construo de uma nova sociedade de tipo capitalista e urbano-industrial.

14 1.1.4 Infncia no Capitalismo: a criana como ser fraco e incompleto No final do sculo XVIII ocorreu na Europa, a Revoluo Industrial que marcou o incio da consolidao da sociedade capitalista, dominada pela indstria, cincia, tecnologia e pelo trabalho assalariado. Nesse contexto, a criana tornou-se algum que precisava ser cuidada, escolarizada e preparada para uma atuao ulterior. Foi institudo o ensino primrio s classes populares que tinha um ciclo de pequena durao e exclusivamente prtico com o intuito de formar mo-de-obra. J para a burguesia e a aristocracia, instituiu-se o ensino secundrio que privilegiava a formao de eruditos, pensantes e mandantes e, consequentemente, sucessores dos grupos hegemnicos. Ainda para a burguesia, foi difundido o ensino superior nas universidades ou grandes escolas. A escola tornou-se um instrumento de fragmentao da sociedade, na medida que isolou as crianas dos adultos e separou os ricos dos pobres. Pode-se perceber assim que, o prolongamento da infncia, o aparecimento da adolescncia, da idade adulta e dos nveis de ensino, foram fatores coadjuvantes na estratificao social (Aris, 2006). Para encobrir as contradies da sociedade capitalista, a ideologia dominante reproduz a crena num modelo nico e abstrato de infncia que o da criana burguesa. A sociedade capitalista, atravs da ideologia burguesa, caracteriza e concebe a criana como um ser a-histrico, a-poltico, a-crtico, fraco e incompleto, um ser economicamente no produtivo que o adulto tem que alimentar e proteger. Esta concepo de infncia escamoteia e trata como um fato natural a subordinao da criana em relao ao adulto e em relao prpria sociedade. Na sociedade capitalista, o conceito de infncia est intrinsecamente vinculado insero social da criana na sua classe, no seu contexto poltico e econmico, e esses modos completamente diferentes de vida e inseres sociais, refletem nos diferentes graus de valorizao da infncia pelo adulto. E a partir das condies objetivas, das condies econmicas, sociais, polticas e culturais que a criana pode ser analisada.

15 1.1.5 Infncia na contemporaneidade: a criana como protagonista Ao longo do sculo XX, cresceu o esforo pelo conhecimento da criana, em vrios campos. Desde que o historiador francs Philippe Aris publicou, nos anos 1970, seu estudo sobre a histria social da criana e da famlia, analisando o surgimento da noo de infncia na sociedade moderna. A ideia de infncia surgiu no contexto histrico e social da modernidade, com a reduo dos ndices de mortalidade infantil, graas ao avano da cincia e a mudanas econmicas e sociais. Essa concepo, para Aris, nasceu nas classes mdias e foi marcada por um duplo modo de ver as crianas, pela contradio entre moralizar (treinar, conduzir, controlar a criana) e paparicar (ach-la engraadinha, ingnua, pura, querer mant-la como criana). As contribuies do socilogo francs Bernard Charlot, neste mesmo perodo, tambm foram fundamentais e ajudaram a compreender o significado ideolgico da criana e o valor social atribudo infncia. As ideias de Charlot (apud Kramer, 2007) favoreceram compreender a infncia de maneira histrica, ideolgica e cultural. Tambm a antropologia favorece conhecer a diversidade das populaes infantis, as prticas culturais entre crianas e com adultos, bem como brincadeiras, atividades, msicas, histrias, valores, significados. E a busca de uma psicologia baseada na histria e na sociologia as teorias de Vygotsky e Wallon e seu debate com Piaget revelam esse avano e revolucionam os estudos da infncia. Segundo Kramer (2007, p.15):Crianas so sujeitos sociais e histricos, marcadas, portanto, pelas contradies das sociedades em que esto inseridas. A criana no se resume a ser algum que no , mas que se tornar (adulto, no dia em que deixar de ser criana). Reconhecemos o que especfico da infncia: seu poder de imaginao, a fantasia, a criao, a brincadeira entendida como experincia de cultura. Crianas so cidads, pessoas detentoras de direitos, que produzem cultura e so nela produzidas. Esse modo de ver as crianas favorece entend-las e tambm ver o mundo a partir do seu ponto de vista. A infncia, mais que estgio, categoria da histria: existe uma histria humana porque o homem tem infncia.

A referida autora ressalta que atualmente vivemos um grande paradoxo: por um lado, temos um vasto e complexo conhecimento terico sobre a infncia mas por outro, encontramos dificuldades para lidar com populaes infantis. E aponta tambm uma questo que tem inquietado alguns pensadores: estar a infncia desaparecendo?

16 Postman (1999) aponta alguns indcios que confirmam o desaparecimento da infncia, uma vez que a violncia contra as crianas e entre elas se tornou constante. Imagens de pobreza de crianas e trabalho infantil retratam uma situao em que o reino encantado da infncia teria chegado ao fim. Na era ps-industrial no haveria mais lugar para a ideia de infncia, uma das invenes mais humanitrias da modernidade; com a mdia e a Internet, o acesso das crianas informao adulta teria terminado por expuls-las do jardim da infncia. Para Ketzer (2003, p.14):Por incrvel que possa parecer, a condio vivida socialmente pela criana no fim do sculo XVII e incio do XVIII pode ser verificada na contemporaneidade em camadas da populao socialmente desprivilegiadas, em que o infante divide, em p de igualdade com o adulto, as agruras da vida impostas pela lei da sobrevivncia. Nas grandes metrpoles brasileiras, por exemplo, o fenmeno de infantes pedindo esmola nas ruas e fazendo piruetas nas sinaleiras para arrecadar moedas j se tornou uma cena familiar, como que plasmada circunstncia do cenrio. E nessa cena encontra-se uma criana. No a criana da literatura clssica da pedagogia ou da psicologia, no a criana prevista pelos manuais, no a criana que frequenta sesses de terapia, mas uma criana corporificada nas condies de um adulto.

Mas at hoje o projeto da modernidade no real para a maioria das populaes infantis, em pases como o Brasil, onde no assegurado o direito de brincar, de no trabalhar. De acordo com Kramer (2007, p.15):Numa sociedade desigual, as crianas desempenham, nos diversos contextos, papis diferentes. A idia de infncia moderna foi universalizada com base em um padro de crianas das classes mdias, a partir de critrios de idade e de dependncia do adulto, caractersticos de sua insero no interior dessas classes. No entanto, preciso considerar a diversidade de aspectos sociais, culturais e polticos: no Brasil, as naes indgenas, suas lnguas e seus costumes; a escravido das populaes negras; a opresso e a pobreza de expressiva parte da populao; o colonialismo e o imperialismo que deixaram marcas diferenciadas no processo de socializao de crianas e adultos.

CAPTULO II INFNCIA, BRINCADEIRA E DESENVOLVIMENTO

2.1 O brinquedoO brinquedo tambm possui uma dimenso histrica e cultural cuja apresentao torna-se primordial para sua compreenso. Os termos criana, infncia e brinquedo so construes sociais. Tais construes sociais so representaes criadas pela sociedade para identificar coisas ou objetos. Na histria das sociedades ocidentais, a criana e o brinquedo tomaram sobre si diferentes representaes (Porto, 2005). Ainda no sculo XI, havia pequenas miniaturas de objetos utilizados pelos adultos, que serviam como enfeites de estantes ou eram depositados nos tmulos dos entes falecidos como uma forma de amuleto. As fbricas produziam estatuetas de crianas, mas na maioria das vezes, tais imagens eram destinadas a fins religiosos. Na Idade Mdia, as rplicas dos adultos foram dando lugar ao brinquedo, objeto que despertava interesse nas crianas. No manusear desses objetos foi se descobrindo, aos poucos, o mundo da brincadeira, ou seja, o mundo do brincar. Quando houve a descoberta das crianas pelos objetos decorativos, os adultos tambm perceberam que esses objetos, que antes eram apenas para decorar estantes, agora passam a ter uma nova funo. Os brinquedos surgiram das mos dos entalhadores de madeira, dos produtores de vela, dos caldeireiros e artesos entre outros. Por isso eram secundrios, pois surgiam das diversas indstrias manufatureiras. Como afirma Porto (2005, p.172): Eram objetos de culto domstico ou funerrio, ex-votos de devotos e de peregrinos. Objetos familiares eram reduzidos e depositados nos tmulos. Ento, importante ressaltar que no eram s as crianas que os utilizavam. De acordo com Benjamin (1984, p.67):Todavia, tais brinquedos no foram em seus primrdios invenes de fabricantes especializados; eles nasceram sobretudo nas oficinas de entalhadores em madeira, fundidores de estanho etc. Antes do sculo XIX a produo de brinquedos no era funo de uma nica indstria. O estilo e a beleza das peas mais antigas explicam-se pela circunstncia de que o brinquedo representava antigamente um produto secundrio das diversas indstrias manufatureiras, as quais, restringidas pelos estatutos corporativos, s podiam fabricar aquilo que competia a seu ramo.

18 Na segunda metade do sculo XIX, a industrializao de brinquedos se expandiu e a madeira comea a perder o lugar para outros tipos de materiais como: metais, vidros, papel e alabastro. Com o incio do Renascimento, as brincadeiras que antes englobavam adultos e crianas, paulatinamente, foram se transformando numa especialidade das crianas. O brinquedo ento passou a se tornar um mediador entre a criana e o mundo. A criana passa a ter um espao para brincar junto ao brinquedo que torna possvel sua insero no mundo ldico (Kishimoto, 1993). Alguns brinquedos e brincadeiras surgiram devido a acontecimentos da poca. A pipa, por exemplo, era utilizada pelos adultos para fins de prtica de estratgia militar. Segundo DAllemagne (apud Kishimoto, 1993, p.18): (...) conta a tradio chinesa que o uso da pipa, em estratgia militar, provm da poca do imperador Wou-ti, da dinastia dos Liang, quando ela servia para comunicar aos aliados a posio e o pedido de ajuda. Hoje, a pipa utilizada como um brinquedo e muito comercializada.

2.2 A importncia da brincadeira para o desenvolvimento da criana

Segundo estudos da Psicologia baseados numa viso histrica e social dos processos de desenvolvimento infantil, que tem em Vygotsky (2007) um dos seus principais representantes, o brincar uma atividade humana criadora, na qual imaginao, fantasia e realidade interagem na produo de novas possibilidades de interpretao, de expresso e de ao pelas crianas, assim como de novas formas de construir relaes sociais com outros sujeitos, crianas e adultos. Para Borba (2006), tal concepo se afasta da viso predominante da brincadeira como atividade restrita assimilao de cdigos e papis sociais e culturais, cuja funo principal seria facilitar o processo de socializao da criana e a sua integrao

sociedade. Ultrapassando essa ideia, Vygotsky compreende que, se por um lado a criana de fato reproduz e representa o mundo por meio das situaes criadas nas atividades de brincadeiras, por outro lado tal reproduo no se faz passivamente, mas

19 mediante um processo ativo de reinterpretao do mundo, que abre lugar para a inveno e a produo de novos significados, saberes e prticas. De acordo com Borba (2006, p.38):

importante enfatizar que o modo prprio de comunicar do brincar no se refere a um pensamento ilgico, mas a um discurso organizado com lgica e caractersticas prprias, o qual permite que as crianas transponham espaos e tempos e transitem entre os planos da imaginao e da fantasia explorando suas contradies e possibilidades.Assim, o plano informal das brincadeiras possibilita a construo e a ampliao de competncias e conhecimentos nos planos da cognio e das interaes sociais, o que certamente tem conseqncias na aquisio de conhecimentos nos planos da aprendizagem formal.

O brincar um importante processo psicolgico, fonte de desenvolvimento e aprendizagem. Ele envolve complexos processos de articulao entre o j dado e o novo, entre a experincia, a memria e a imaginao, entre a realidade e a fantasia, sendo marcado como uma forma particular de relao com o mundo, distanciando-se da realidade da vida comum, ainda que nela referenciada. A brincadeira de fundamental importncia para o desenvolvimento infantil, na medida em que a criana pode transformar e produzir novos significados. O brincar no s requer muitas aprendizagens como tambm constitui um espao de aprendizagem. Como ressalta Machado (2003, p.37):

Brincar tambm um grande canal para o aprendizado, seno o nico canal para verdadeiros processos cognitivos. Para aprender precisamos adquirir certo distanciamento de ns mesmos, e isso o que a criana pratica desde as primeiras brincadeiras transicionais, distanciando-se da me. Atravs do filtro do

distanciamento podem surgir novas maneiras de pensar e de aprender sobre o mundo. Ao brincar, a criana pensa, reflete e organiza-se internamente para aprender aquilo que ela quer, precisa, necessita, est no seu momento de aprender; isso pode no ter a ver com o que o pai, o professor ou o fabricante de brinquedos propem que ela aprenda.

Como afirma Borba (2006), a imaginao, constitutiva do brincar e do processo de humanizao dos homens, um importante processo psicolgico, iniciado na infncia,que permite aos sujeitos se desprenderem das restries impostas pelo contexto imediato e transform-lo. Combinada com uma ao performativa construda por gestos, movimentos, vozes, formas de dizer, roupas, cenrios etc., a imaginao estabelece o plano do brincar, do fazer de conta, da criao de uma realidade fingida.

20 Vygotsky (2007) defende que nesse novo plano de pensamento, ao, expresso e comunicao, novos significados so elaborados, novos papis sociais e aes sobre o mundo so desenhados, e novas regras e relaes entre os objetos e os sujeitos, e desses entre si, so institudas. A brincadeira de faz-de-conta estimula a capacidade da criana respeitar regras que valer no s para a brincadeira, mas tambm para a vida. Ela tambm ativa a criatividade, pois atravs da escolha dos papis ter que reproduzir e criar a representao na brincadeira. assim que cabos de vassoura tornam-se cavalos e com eles as crianas cavalgam para outros tempos e lugares; pedaos de pano transformam-se em capas e vestimentas de prncipes e princesas; pedrinhas em comidinhas; cadeiras em trens; crianas em pais, professores, motoristas, monstros, super-heris etc. (Borba, 2006). O brincar envolve mltiplas aprendizagens. Vygotsky afirma que na brincadeira a criana se comporta alm do comportamento habitual de sua idade, alm de seu comportamento dirio; no brinquedo, como se ela fosse maior do que ela na realidade (2007, p.122). Isso porque a brincadeira, na sua viso, cria uma zona de desenvolvimento proximal, permitindo que as aes da criana ultrapassem o

desenvolvimento j alcanado (desenvolvimento real), impulsionando-a a conquistar novas possibilidades de compreenso e de ao sobre o mundo.

Segundo Vygotsky (2007, p.118):

Em resumo, o brinquedo cria na criana uma nova forma de desejos. Ensina-a a desejar, relacionando seus desejos a um eu fictcio, ao seu papel no jogo e suas regras. Dessa maneira, as maiores aquisies de uma criana so conseguidas no brinquedo, aquisies que no futuro tornar-se-o seu nvel bsico de ao real e moralidade.

Portanto, pode-se concluir que a brincadeira auxilia o desenvolvimento da criana de forma to intensa e marcante que a criana leva todo o conhecimento adquirido nesta fase para o resto de sua vida.

CAPTULO III O BRINCAR COMO EXPERINCIA DE CULTURAApesar da palavra brincadeira ser estreitamente ligada infncia e s crianas, vemos que a brincadeira sempre foi uma atividade significativa na vida dos homens em diferentes pocas e lugares (Borba, 2007). De acordo com Borba (2007), a experincia do brincar cruza diferentes tempos e lugares, passados, presentes e futuros, sendo marcada ao mesmo tempo pela continuidade e pela mudana. Mas essa experincia no simplesmente reproduzida, e sim recriada a partir do que a criana traz de novo, com seu poder de imaginar, criar, reinventar e produzir cultura.

A brincadeira no algo j dado na vida do ser humano, ou seja, aprende-se a brincar desde cedo, nas relaes que os sujeitos estabelecem com os outros e com a cultura. Para a referida autora, brincar uma atividade que, ao mesmo tempo, identifica e diversifica os seres humanos em diferentes tempos e espaos. tambm uma forma de ao que contribui para a construo da vida social coletiva. Para as crianas, a brincadeira uma forma privilegiada de interao com os outros sujeitos, adultos e crianas, e com os objetos e a natureza sua volta. Brincando, elas se apropriam criativamente de formas de ao social tipicamente humanas e de prticas sociais especficas dos grupos aos quais pertencem, aprendendo sobre si mesmas e sobre o mundo em que vivem. A brincadeira, por sua vez, cria laos de solidariedade e de comunho entre os sujeitos que dela participam e tambm assume importncia fundamental como forma de participao social. Segundo Borba (2007, p.12):

Se entendermos que a infncia um perodo em que o ser humano est se constituindo culturalmente, a brincadeira assume importncia fundamental como forma de participao social e como atividade que possibilita a apropriao, a ressignificao e a reelaborao da cultura pelas crianas.

Brincar , portanto, uma importante experincia de cultura e um complexo processo interativo e reflexivo que amplia os conhecimentos da criana sobre o mundo e sobre si mesma. 22 3.1 Infncia, brincadeira e cultura Crianas so sujeitos sociais e histricos, marcados pelas contradies das sociedades em que esto inseridas. Elas produzem cultura e so produzidas na cultura em que se inserem (em seu espao) e que lhes contempornea (de seu tempo). Por isso, no formam uma comunidade isolada mas, fazem parte de um grupo e suas brincadeiras expressam esse pertencimento (Kramer, 2007). E por situar-se nesse contexto histrico e social, as crianas acabam por incorporar a experincia social e cultural do brincar por meio das relaes que estabelecem com os outros adultos e crianas. Para Borba (2006, p.39):

(...) a brincadeira um fenmeno da cultura, uma vez que se configura como um conjunto de prticas, conhecimentos e artefatos construdos e acumulados pelos sujeitos nos contextos histricos e sociais em que se inserem. Representa, dessa forma, um acervo comum sobre o qual os sujeitos desenvolvem atividades conjuntas. Por outro lado, o brincar um dos pilares da constituio de culturas da infncia, compreendidas como significaes e formas de ao social especficas que estruturam as relaes das crianas entre si, bem como os modos pelos quais interpretam, representam e agem sobre o mundo.

Brincar uma experincia de cultura importante no apenas nos primeiros anos da infncia, mas durante todo o percurso de vida de qualquer ser humano. As crianas brincam, isso o que as caracteriza (Kramer, 2007). Para ilustrar essa afirmao, devemos atentar que mesmo antes do brincar com os objetos, vem o brincar consigo mesmo e com as pessoas. O brincar com o corpo descoberta. As primeiras brincadeiras do beb esto relacionadas descoberta do eu corporal: lidar com o seu corpo uma grande e importante brincadeira das crianas (Machado, 2003). O brincar alimenta-se das referncias e do acervo cultural a que as crianas tm acesso, bem como das experincias que elas tm (Borba, 2007). Machado (2003, p.21) afirma que:Brincar nossa primeira forma de cultura. A cultura algo que pertence a todos e que nos faz participar de ideais e objetivos comuns. A cultura o jeito de as pessoas conviverem, se expressarem, o modo como as crianas brincam, como os adultos vivem, trabalham, fazem arte. Mesmo sem estar brincando com o que denominamos brinquedo, a criana brinca com a cultura.

23 Ela acrescenta ainda que: No brincar, a criana lida com sua realidade interior e sua traduo livre da realidade exterior: tambm o que o adulto faz quando est filosofando, escrevendo e lendo poesias, exercendo sua religio (p.22). A autora ressalta que o brincar uma linguagem e que para explorar, descobrir e apreender a realidade, paradoxalmente a criana se utiliza do faz-de-conta e das brincadeiras. Brincando, ela aprende a linguagem dos smbolos e entra no espao original de todas as atividades scio-criativo-culturais. Ainda segundo Machado (2003):

Fazer-de-conta surge quando a criana est apta a simbolizar: dizendo algo de outra maneira, fazendo poesia. Do mesmo modo que os sonhos, as

brincadeiras tambm servem auto revelao bem como, comunicao com nveis mais profundos, inconscientes, arquetpicos (p.26).

Desta forma, a criana na brincadeira se apropria de elementos da realidade imediata, atribuindo-lhes novos significados. Por isso, toda brincadeira uma imitao transformada, no plano das emoes e das ideias, de uma realidade anteriormente vivenciada. A criana que brinca, est no s explorando o mundo ao seu redor mas tambm, comunicando sentimentos, ideias, fantasias, intercambiando o real e o imaginrio nesse espao chamado brincadeira e que ser o de suas futuras atividades culturais.

3.2 Brincar: entre a fico, a realidade e o consumo na cultura contemporneaComo membros da sociedade, as crianas herdam a cultura dos adultos e so socializadas nesta cultura. Se outrora a criana era vista como um ser marcado pela ingenuidade, ignorncia e indolncia, cujo desenvolvimento dependia estritamente do controle adulto, atravs da disciplina e da moralizao, hoje ela assume o lugar de protagonista, alvo privilegiado da sociedade de consumo. Se outrora a famlia e a escola eram instituies privilegiadas para a socializao das crianas, hoje elas contam com o aporte da mdia eletrnica, com a qual tem interagido diariamente.

24 Nesse contexto, o mundo contemporneo, marcado pela falta de espao nas grandes cidades, pela pressa, pela influncia da mdia, pelo consumismo e pela violncia acabam se refletindo na forma como as crianas brincam. Constituindo um saber e um conjunto de prticas partilhadas pelas crianas, o brincar est estreitamente associado sua formao como sujeitos culturais e constituio de culturas em espaos e tempos nos quais convivem cotidianamente (Borba, 2006). Borba (2006) assinala que essa influncia pode ser tanto pelo contexto fsico do ambiente, a partir dos recursos naturais e materiais disponveis, como tambm pelo contexto simblico, ou seja, pelos significados preexistentes e partilhados pelo grupo de crianas.

Todos esses elementos externos brincadeira, localizados na escola, na famlia, no bairro ou na mdia televisiva, entre outros espaos propiciadores de experincias sociais e culturais, so reinterpretados pelas crianas e articulados s suas experincias ldicas. A partir da geram-se novos modos de brincar. A televiso, por exemplo, um elemento externo de grande influncia hoje, mas preciso salientar que suas imagens e representaes no so simplesmente imitadas pelas crianas mas recriadas a partir de suas prticas ldicas. Para Pereira e Santos (2008), a televiso no s transformou a cultura, a poltica e o cotidiano das pessoas como tambm criou novos hbitos e comportamentos, propondo identidades e linguagens, acelerando o ritmo entre produo e consumo, sendo uma das principais difusoras de informaes. a mdia que se tem maior acesso sendo possvel at afirmar sua participao nos processos de socializao e subjetivao infantis. Porm, essas transformaes trazem como pano de fundo as mudanas econmicas e culturais do mundo capitalista que migra de uma lgica centrada na produo e no trabalho do adulto, para a lgica do consumo, em que a criana na condio de consumidora, j est inserida mesmo antes de nascer. O mercado est cada vez mais atento ao pblico infantil, grupo que tem por linguagem singular a brincadeira, onde o real e o imaginrio/fictcio se entrelaam. fato como afirma Brougre (2001), que a televiso, com suas imagens e fices, influenciou a vida e a cultura ldica das crianas, as referncias que elas dispem.A televiso no se ope brincadeira, mas alimenta-a, influencia-a, estrutura-a na medida em que a brincadeira no nasceu do nada, mas sim daquilo com que a criana confrontada. Reciprocamente, a brincadeira permite criana apropriar-se de certos contedos da televiso (2001, p.56-57).

25 O que a criana assiste oferece contedo para suas brincadeiras, no de forma natural mas na medida em que pode ser incorporada na cultura ldica da criana. Isto se d porque a cultura ldica da criana, estrutura complexa e hierarquizada, constituda de costumes ldicos e brincadeiras (conhecidas, disponveis, individuais, tradicionais, universais, geracionais, etc.) e, tambm, de uma estrutura simblica e de representaes, sempre imersas no contexto mais amplo da realidade cultural em que a criana est inserida (Pereira e Santos, 2008). A brincadeira um lugar de construo de culturas fundado nas interaes sociais entre as crianas. O brincar contm o mundo e ao mesmo tempo, contribui para express-lo, pens-lo e recri-lo.

Brincando, jogando e criando narrativas, as crianas esto falando de si prprias, de seus medos, coragem, angstias, sonhos e ideais. Esto falando de seu tempo, da cultura em que vivem, aprendem e se desenvolvem, das promessas e do mal estar dessa mesma cultura. Esto falando tambm de ns, adultos, de nossas expectativas e projetos, de nossa presena e silncio, de nossas certezas e dvidas. Para Salgado (2008, p.105):

Fazer do ldico um espao dialgico entre crianas e adultos abre a possibilidade de participarmos da vida da criana e de sua cultura como um outro que traz experincias, histrias, vises e valores distintos e, por ocupar um outro lugar social e olhar para a vida sob outras perspectivas, apresenta modos diversos de interpretar e lidar com a cultura contempornea.

3.3 A transformao do brincarNos ltimos anos tem sido notvel a mudana na cultura ldica da criana. Atualmente, a cultura ldica est sendo direcionada constantemente para o domnio de objetos. De certa forma a cultura ldica evoluiu, devido chegada de novos brinquedos. Dentro desta evoluo chegaram os jogos eletrnicos e o videogame. Novas construes de brincadeiras ou desenvolvimento de algumas na falta de outras, novas representaes (Brougre, 2001). Brincadeiras que so desenvolvidas nas ruas em coletividade, praticadas por adultos e crianas e geralmente, transmitidas de gerao para gerao, como: roda, ciranda,

26 amarelinha, pular elstico, cabo de guerra, passa anel, cabra-cega, boca-de-forno, o pique e suas variaes esto sendo deixadas de lado, ou seja, sendo substitudas.. Com a evoluo da cultura ldica surgiram novos brinquedos. E foram por esses brinquedos que as brincadeiras de rua foram substitudas. Os brinquedos eletrnicos se fazem mais atraentes. E com o decorrer dos dias, a variedade dos brinquedos se torna maior. Exemplo disso, pode ser comparado s crianas de geraes passadas que no estavam expostas a tantas mudanas que levam as crianas de hoje a uma espcie de insaciedade e insatisfao permanentes, pois fica cada vez mais difcil acompanhar o ritmo do brinquedo ou do jogo que est na moda, tal sua agilidade, versatilidade e fugacidade (Ketzer, 2003)

As brincadeiras de rua esto to esquecidas que muitas crianas nem mesmo as conhecem. Como ressalta Postman (1999, p.18) (...) as brincadeiras de criana, antes to visveis nas ruas das nossas cidades, tambm esto desaparecendo. (...) Os jogos infantis, em resumo, so uma espcie ameaada. Tendo em vista que na sociedade em que se vive, em uma era de avano tecnolgico jamais visto, estes tipos de brincadeiras no passam de mais um referencial e uma nostalgia para quem viveu a poca em que eram um hbito comum e prazeroso (Abramovich, 1983). Acredita-se tambm que o alto ndice de violncia das grandes cidades privou muitas crianas de brincarem nas ruas. O trnsito dos carros aumentou, a velocidade em que percorrem as ruas tambm se tornou elevada. Os ataques repentinos dos traficantes contra os cidados civis e militares. Todos esses fatores influenciaram para que o espao do brincar se tornasse reduzido. Mesmo vivendo imersos em novas tecnologias e tendo dificuldades de encontrar um espao para brincar, necessrio reconhecer que as brincadeiras em coletivo, que o corpo se faz presente em um grupo so consideradas por Paternost (2005), de grande valor para o desenvolvimento da interao social da criana. As novas tecnologias, as novas formas de se comunicar atravs de brincadeiras com jogos eletrnicos e as comunicaes online via internet so novos meios de comunicao geniais para a evoluo humana. Mas cabe reconhecer que assim como vem ampliando a capacidade de interao social de forma virtual, vem tambm reduzindo essas capacidades presencialmente. De acordo com Marcondes (apud Paternost, 2005, p.174), o verdadeiro processo de intercomunicar vai alm do contato verbal, quer seja escrito ou oral. Segundo L 27 Boulch (apud Paternost, 2005) por intermdio do corpo que se efetiva a presena na vida do outro e no mundo. Portanto, as brincadeiras presenciais em grupo, anteriormente citadas, proporcionam as reais capacidades de interao social, pelo fato de compreender e compartilhar emoes com o outro. Este aspecto proporciona o desenvolvimento do reconhecimento das pessoas pelo olhar, do ato de se comportar em grupo e saber se expor, se colocar atravs da fala. Como ressalta Fortuna (2008, p.15):

No mundo do faz-de-conta, um outro senso da realidade experimentado, impulsionando a confiana na possibilidade de transformao da realidade, marcada por novo imaginrio, novos princpios e novos valores gerados na solidariedade, ousadia e autonomia que as atividades ldicas podem comportar. Isso conseqncia da interao social plasmada no brincar, que nos lana em direo ao outro, e nesse enlace recordemos o timo da palavra brincar: vinculum, no latim constitui-nos como sujeitos. Brincando, reconhecemos o outro na sua diferena e na sua singularidade, e as trocas inter-humanas a partilhadas podem lastrear o combate ao individualismo e ao narcisismo, to abundantes na nossa poca, restituindo-nos o senso de pertencimento igualitrio. No toa que justo a brincadeira, em tempos to hostis, pode contribuir para trazer para a realidade a utopia de um mundo melhor, no qual todos estejam includos. (...) Brincar um meio de aprender a viver e de proclamar a vida. Um direito que deve ser assegurado a todos os cidados, ao longo da vida, enquanto restar dentro do homem a criana que ele foi um dia e enquanto a vida nele pulsar. Quem vive brinca.

CAPTULO IV A CRIANA E O BRINCAR: IMAGENS E NARRATIVAS DA INFNCIA 4.1 Brincadeira coisa sriaMesmo sabendo que o brincar um espao de apropriao e constituio pelas crianas de conhecimentos e habilidades no mbito da linguagem, da cognio de valores e da sociabilidade, e apesar de todo aporte terico que tem surgido sobre o tema, afirmando a importncia da brincadeira, ainda assim, encontramos ideias e prticas que

reduzem o brincar uma atividade de menos importncia no cotidiano escolar e isso se d medida em que se avanam os segmentos escolares. O discurso se faz mais forte e presente na Educao Infantil. Porm, no Ensino Fundamental, ele desaparece se nos pautarmos apenas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais, onde no documento redigido para a Educao Infantil, a questo da ludicidade encontra-se no artigo 3, inciso I, alnea c e diz o seguinte: Art. 3 So as seguintes as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil: 1-As propostas pedaggicas das instituies de Educao Infantil devem respeitar os seguintes fundamentos norteadores: (...) c) os princpios estticos da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e de manifestaes artsticas e culturais.

J no documento redigido para o Ensino Fundamental, a questo da ludicidade desaparece, assim como mostra o art. 3, inciso I, alnea c:Art. 3 So as seguintes as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental: 1-As escolas devero estabelecer como norteadores de suas aes pedaggicas: c) os princpios estticos da sensibilidade, da criatividade e da diversidade de manifestaes artsticas e culturais.

Tambm encontramos referncia ao brincar no Estatuto da Criana e do Adolescente, no artigo 16, inciso IV, dizendo que:Art. 16 O direito liberdade compreende os seguintes aspectos: (...) IV. brincar, praticar esportes e divertir-se.

29 O Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) Lei Federal n 8069/1990, deixa claro a proibio do trabalho para menores de quatorze anos de idade, salvo na condio de aprendiz e aponta o direito `a liberdade, incluindo o brincar, a prtica de esportes e a diverso. Mas, ainda na Educao Infantil, nico nvel de ensino que a escola deu passaporte livre, aberto iniciativa, criatividade, inovao por parte de seus protagonistas, que a brincadeira pode assumir sua forma especfica.

E como mostra o Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (2002, p.27):A brincadeira uma linguagem infantil que mantm um vnculo essencial com aquilo que o no brincar. Se a brincadeira uma ao que ocorre no plano da imaginao, isto implica que aquele que brinca tenha o domnio da linguagem simblica. Isto quer dizer que preciso haver conscincia da diferena existente entre brincadeira e a realidade imediata que lhe forneceu contedo para realizarse. Nesse sentido, para brincar preciso apropriar-se de elementos da realidade imediata de tal forma a atribuir-lhes novos significados. Essa peculiaridade da brincadeira ocorre por meio da articulao e a imitao da realidade. Toda brincadeira uma imitao transformada, no plano das emoes e das ideias, de uma realidade anteriormente vivenciada. (...) A brincadeira favorece a autoestima das crianas, auxiliando-as a superar progressivamente suas aquisies de forma criativa. Brincar contribui, assim, para a interiorizao de determinados modelos de adulto, no mbito de grupos sociais diversos. Essas significaes atribudas ao brincar transformam-no em um espao singular de constituio infantil.

Neste documento, a brincadeira considerada um meio que favorece a auto-estima das crianas, auxiliando-as a superar progressivamente suas aquisies de forma criativa, transformando os conhecimentos que j possuam em conceitos gerais com os quais brinca. As crianas podem acionar seus pensamentos para a resoluo de problemas que lhes so importantes e significativos, pela oportunidade de vivenciar brincadeiras imaginativas e criadas por elas mesmas. Portanto, propiciando a brincadeira cria-se um espao na qual as crianas podem experimentar o mundo e internalizar uma compreenso particular sobre as pessoas, os sentimentos e os diversos conhecimentos.

30 Porm, todo esse aparato legal no garante na prtica o direito de brincar. E assim, entre o discurso e a realidade, o tempo e o espao do brincar vo sendo reduzidos, sendo este, visto at mesmo como atividade oposta ao trabalho.

4.2 Brinquedos e brincadeiras nos espaos escolaresA brincadeira uma palavra estreitamente associada infncia e s crianas. Porm, ao menos nas sociedades ocidentais, ainda considerada irrelevante ou de pouco valor

do ponto de vista da educao formal, assumindo frequentemente a significao de oposio ao trabalho, tanto no contexto da escola quanto no cotidiano familiar (Borba, 2006). Na opinio de Borba (2006), a significativa produo terica j acumulada afirmando a importncia da brincadeira na constituio dos processos de desenvolvimento e de aprendizagem no foi capaz de modificar as ideias e prticas que reduzem o brincar a uma atividade parte, paralela, de menos importncia no contexto da formao escolar da criana. Por outro lado, podemos identificar hoje um discurso generalizado em torno da importncia do brincar, presente no apenas na mdia e na publicidade produzidas para a infncia como tambm nos programas, propostas e prticas educativas institucionais. Como ressalta a referida autora, tanto a dimenso cientfica quanto a dimenso cultural e artstica deveriam estar contemplados nas nossas prticas junto s crianas, mas para isso preciso que as rotinas, as grades de horrios, a organizao dos contedos e das atividades abram espao para que possamos, junto com as crianas, brincar e produzir cultura. A autora destaca ainda, que a brincadeira est entre as atividades frequentemente avaliadas por ns como tempo perdido e que essa viso fruto da ideia de que a brincadeira uma atividade oposta ao trabalho, sendo por isso menos importante, uma vez que no se vincula ao mundo produtivo, no gera resultados. Borba (2006) enfatiza tambm que essa concepo que provoca a diminuio dos espaos e tempos do brincar medida que avanam as sries/anos do ensino

31 fundamental. Seu lugar e seu tempo vo se restringindo hora do recreio, assumindo contornos cada vez mais definidos e restritos em termos de horrios, espaos e disciplina: no pode correr, pular, jogar bola etc. Sua funo fica reduzida a proporcionar o relaxamento e a reposio de energias para o trabalho, este sim srio e importante. De acordo com Perrotti (1990, p.20):A racionalidade do sistema produtivo torna o ldico invivel, pois o tempo do ldico no regulvel, mensurvel, objetivvel. Toda tentativa de subordin-lo ao tempo da produo provoca sua morte. Por isso ele banido da vida cotidiana

do adulto e permitido nas esferas discriminadas dos improdutivos. O ldico, dentro do mecanismo do sistema, a sua negao. Em seu lugar permite-se o lazer, o no-trabalho, coisa totalmente diferente do ldico, que o jogo, a brincadeira, a criao contnua, ininterrupta, intrnseca produo.

Segundo Wajskop (1999), a brincadeira uma forma de comportamento social, que se destaca da atividade do trabalho e do ritmo da vida, reconstruindo-os para compreend-los segundo uma lgica prpria, circunscrito e organizado no tempo e no espao. Mais que um comportamento especfico, a brincadeira define uma situao onde esse comportamento adquire uma nova significao. Como atividade social especfica, ainda, a brincadeira partilhada pelas crianas, supondo um sistema de comunicao e interpretao da realidade que vai sendo negociado passo a passo pelos pares, medida que este se desenrola. Da mesma forma, implica uma atividade consciente e no evasiva, dado que cada gesto significativo, cada uso de objetos implica a (re)elaborao constante das hipteses sobre a realidade com os quais se est confrontando. A criana que brinca pode adentrar o mundo do trabalho pela via da representao e da experimentao; o espao da instituio deve ser um espao de vida e interao e os materiais fornecidos para as crianas podem ser uma das variveis fundamentais que as auxiliam a construir e apropriar-se do conhecimento universal (Wajskop, 1999). Perrotti (1990) afirma que o tempo do ldico no pode ser jamais o da produo capitalista. Da, o ldico identificar-se com a criana, j que ela no est apta para o sistema de produo em virtude de o esprito da racionalidade no ter conseguido ainda

32 dom-la. Porm, com o tempo, ela trocar seus sonhos, seu tempo, pelos privilgios parcos oferecidos pelo sistema; premida pelas exigncias, ela sucumbir racionalidade (p.20).

4.3 O olhar do adulto X o olhar da criana: entre o discurso e a prticaAo longo de todo o trabalho, procurei levantar pontos importantes sobre a brincadeira. Utilizei-me do termo brincadeira (de modo geral), conforme Gisela

Wajskop em seu livro Brincar na Pr-Escola, que a define como um fato social, espao privilegiado de interao e constituio do sujeito. Procurei no definir separadamente o

jogo, a brincadeira e o brinquedo. E assim como a autora, tambm considerei a atividade de desenho infantil como brincadeira, tendo em vista o comportamento interpretativo e imaginativo das crianas. Procurando respostas aos questionamentos que deram origem a este trabalho, realizei primeiramente um estudo bibliogrfico e para finaliz-lo, fiz uma pesquisa com coleta e anlise dos dados obtidos, a fim de constrastar a teoria e a prtica do brincar dentro do espao escolar. Nessa pesquisa, realizei uma entrevista atravs de um questionrio para professores e outro para as crianas. Sendo que com as crianas da Educao Infantil, pude observar e gravar a fala delas durante a atividade da brincadeira. E surpreendeu-me a fala das crianas. Para dar mais consistncia ao trabalho, pedi a todas as crianas que desenhassem a brincadeira que elas mais gostavam na escola. A pesquisa contou com a participao de doze professores da rede pblica de Mesquita ( dois professores de cada ano de escolaridade: Educao Infantil e Ensino Fundamental do 1 ao 5 ano). Foi pedido aos professores, durante a entrevista, que no colocassem seus nomes pois seria assegurado no s a eles, mas tambm s crianas, a no identificao dos entrevistados e nem da instituio escolhida. A instituio escolhida fica localizada no bairro de Rocha Sobrinho, no municpio de Mesquita. uma escola pblica de grande porte; funciona em trs turnos (manh, tarde

33 e noite) e atende da Educao Infantil (4 e 5 anos), Ensino Fundamental (l ao 9 ano) e EJA. A instituio possui um total de 15 salas de aula, alm da sala de leitura, de vdeo, de informtica (que ainda no est funcionando) e de oficina de aprendizagem. Atende o quantitativo de cerca de mil cento e oitenta (1.180) alunos. A proposta pedaggica do municpio baseia-se na concepo scio-construtivista e a escola ainda no elaborou sua prpria proposta. A escola no possui parquinho para a Educao Infantil e o pouco espao do ptio ocupado por dois bancos de cimento que causam na professora grande preocupao; possui tambm uma quadra dentro da escola e ao lado dela h tambm

uma pequena pracinha com uma quadra mal conservada. No entorno da instituio no presenciei espaos para brincar, pois o bairro possui muitas moradias. Minha expectativa durante esta pesquisa de campo era confrontar o discurso que se faz e a realidade que se pratica. Para isso, apliquei um pequeno questionrio aos professores da instituio. Onze desses profissionais foram enfticos ao afirmar a importncia do brincar no desenvolvimento da criana. Apenas uma mostrou-se contrria alegando que, como profissional, a funo dela somente ensinar. Quando perguntados se apiam e incentivam a brincadeira, os profissionais disseram que sim. Mas apontaram algumas dificuldades que tm se colocado como obstculo ao brincar dentro do cotidiano escolar: 1) competio com os contedos programticos, pois cada vez mais as crianas chegam escola com dificuldades de aprendizagem; 2) medo de perder o controle, j que a indisciplina est to presente dentro das instituies; 3) falta de espao e a infra-estrutura que no permite certas atividades que exijam liberdade de movimento; 4) a falta de olhar a criana como criana e no como aluno e de reconhecer a brincadeira como um direito dela. Na fala dos professores, as prticas que limitam o brincar esto relacionadas ao prprio ritmo em que a educao est organizada. Eles demonstraram certo

reconhecimento da importncia da brincadeira na Educao Infantil porm, nas sries iniciais argumentaram que esta etapa de ensino requer mais seriedade e que a brincadeira aparece em seus planejamentos mas, sempre atrelada a contedos a serem trabalhados.

34 Segundo Borba (2006), o brincar sugerido em muitas propostas e prticas pedaggicas com crianas e adolescentes como um pretexto ou instrumento para o ensino de contedos. A autora assinala que quando as atividades so compreendidas apenas como recursos, perdem o sentido de brincadeira e, muitas vezes, at mesmo o seu carter ldico, assumindo muito mais a funo de treinar e sistematizar conhecimentos, uma vez que so usadas com o objetivo principal de atingir resultados preestabelecidos. preciso compreender que o jogo como recurso didtico no contm os requisitos

bsicos que configuram uma atividade como brincadeira: ser livre, espontneo, no ter hora marcada, nem resultados prvios e determinados (p.43). Para a Educao Infantil, o municpio elaborou um documento que norteia (ou deveria nortear) o trabalho com as crianas pequenas. Este documento chama-se Orientaes Curriculares: Educao Infantil. Foi elaborado no incio de 2007 e enviado s escolas que possuam turmas de Educao Infantil a fim de que os professores discutissem e elaborassem o seu parecer, se necessrio com modificaes. O documento baseia-se na concepo scio-construtivista e apia-se nos tericos VYGOTSKY e WALLON entre outros que so citados. O brincar ressaltado como um ato coletivo na escola e alm desse tema ainda aborda outros como a questo do letramento e da sexualidade. Mas apesar de tudo que se ouve e se l sobre o tema, a fala das crianas denuncia um outro fato que dar brincadeira um tempo determinado como bem explicitou Borba. importante demarcar que o eixo principal em torno do qual o brincar deve ser incorporado em nossas prticas o seu significado como experincia de cultura. Isso exige que a garantia de tempos e espaos para que as prprias crianas e os adolescentes criem e desenvolvam suas brincadeiras, no apenas em locais e horrios destinados pela escola a essas atividades (como os ptios e parques para recreao), mas tambm nos espaos das salas de aula, por meio da inveno de diferentes formas de brincar com os conhecimentos (2006, p.44).

A seguir apresento trechos de algumas falas de crianas com relao aos espaos e tempos em que o brincar pode aparecer.

35 Educao Infantil 4 anos Pesquisadora: Na escola vocs podem brincar? Turma: Pode! Pesquisadora: A professora deixa brincar toda hora? Turma: No! Pesquisadora: No! Pesquisadora: Quando que vocs podem brincar aqui na escola? J.: 11 horas.

W.: 5 horas. K.: 8 horas. Pesquisadora: De que vocs mais gostam de brincar aqui na escola? G.: De corda. P.: Brinquedo. K.: Com o brinquedo. Pesquisadora: S com o brinquedo? P.: E l fora! Pesquisadora: De que os meninos gostam de brincar quando esto l fora? K.: De polcia. ( As meninas contestam ). J.: De polcia nada!

Educao Infantil 5 anos Pesquisadora: Em casa a me de vocs deixa brincar? Turma: Deixa! Pesquisadora: E na escola, a professora deixa? Turma: No! ( Sentindo-se contrariada, a professora contestou e algumas crianas disseram sim ). Pesquisadora: Mas ela deixa brincar todo dia ou tem dia que ela no deixa?

36 V.: Tem dia que ela deixa. Pesquisadora: Mas ela s deixa brincar onde: na sala ou aqui fora? Turma: Aqui! M.: Porque sala de aula. Pesquisadora: E na sala no pode brincar? L.: Pode fazer dever. S.: Tem que estudar!

J para as crianas do 1 ao 5 ano, quando indagados sobre o momento no qual a brincadeira era permitida deixaram bem claro, que somente durante o recreio ou em dia de recreao. Um deles chegou a afirmar que sua brincadeira era estudar. Segundo Vidal e Filho (2000), a escola no foi feita nem pensada de forma afetiva mas para que corpos estejam em pleno trabalho. Para os autores:A repartio das salas e dos corredores, a localizao e o formato de janelas e portas, a distribuio de alunos e alunas na sala de aula e nos demais espaos das escolas dos nossos atuais prdios apontam para a construo de lugares concebidos como cientificamente equacionados, em funo do nmero de pessoas, tipo de iluminao e cubagem de ar. Frias, as paredes e as salas conformam a imagem de ensino racional, neutro e assptico. Implicitamente se afastam do ambiente escolar caractersticas afetivas. Mentes, mais do que corpos, esto em trabalho. E, nesse esforo, a escola abandona a criana para constituir o aluno (p.32).

Como assinala Wajskop (1999), na situao de brincar que as crianas se podem colocar desafios e questes alm de seu comportamento dirio, levantando hipteses na tentativa de compreender os problemas que lhes so propostos pelas pessoas e pela realidade com a qual interagem. Quando brincam, ao mesmo tempo em que

desenvolvem sua imaginao, as crianas podem construir relaes reais entre elas e elaborar regras de organizao e convivncia. Concomitantemente a esse processo, ao reiterarem situaes de sua realidade, modificam-nas de acordo com suas necessidades. Ao brincarem, as crianas vo construindo a conscincia da realidade, ao mesmo tempo em que j vivem uma possibilidade de modific-la. Portanto, a brincadeira uma situao privilegiada de aprendizagem onde o desenvolvimento pode alcanar nveis mais complexos, exatamente pela possibilidade

37 de interao entre os pares em uma situao imaginria e pela negociao de regras de convivncia e de contedos. Enfim, preciso deixar que as crianas e os adolescentes brinquem, preciso aprender com eles a rir, a inverter a ordem, a representar, a imitar, a sonhar e a imaginar.Brincar

viver criativamente no mundo. Ter prazer em brincar ter prazer em viver. M.M. Machado

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CONSIDERAES FINAIS Nunca se gostou tanto das crianas e ao mesmo tempo, hoje, se produzem cada vez menos crianas e cada vez mais dispe de menos tempo e espao para elas. A criana um sujeito social e histrico, que vivencia e expressa-se de acordo com a sociedade em que est inserida. Por isso, muito daquilo que ela socializa caracterstica de sua realidade na qual muitas vezes, sua infncia desrespeitada e colocada num lugar de esquecimento, medo e explorao. E na escola, que algumas delas tentam encontrar um escape. Neste lugar to criticado, mas que ao mesmo tempo pode servir como caminho de liberdade. Liberdade de ser tratado como um ser singular, com especificidades e diferenas que precisam ser reconhecidas e respeitadas dentro dos tempos e dos espaos em que se encontram. Muitos so os desafios que a educao precisa enfrentar e um deles fazer com que a criana seja reconhecida como sujeito de direitos, cidad. necessrio assegurar criana condies para o seu desenvolvimento, no s na letra da lei, mas no plano concreto e real onde o direito de brincar seja legitimamente reconhecido assim como o seu tempo e o seu espao sejam respeitados e ganhem tambm sua devida importncia. Ao longo de todo este trabalho pude confrontar a teoria e a prtica e o quanto difcil dentro do espao escolar abrir caminhos para a mudana. Pude perceber que no toa que uma instituio se organiza. Por trs de toda esta organizao h um sistema cruel que quer fazer da criana apenas um corpo dcil e que para isso, a primeira coisa a se fazer retirar dela a sua mais brilhante caracterstica que a brincadeira e que a faz ainda diferente do adulto. O direito infncia , nesta discusso, prioritariamente, o direito ao no-trabalho, caracterstico da brincadeira que se constitui como o espao que fornece a possibilidade da construo de uma identidade infantil autnoma, cooperativa e criativa (Wajskop, 1999). O brincar o caminho da aprendizagem na infncia e os professores devem ser

42 os primeiros profissionais na sociedade a reconhecer a brincadeira como um direito da criana. Trabalhar os desafios do cotidiano exige cada vez mais prticas reflexivas e crticas em torno da realidade que nos cerca, pois muitos so os problemas enfrentados pelos professores da rede municipal de Mesquita. Mas, se olharmos apenas para os problemas no iremos buscar solues, que claro, no vem de forma instantnea. necessrio contemplarmos as possibilidades.

43 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

ABRAMOVICH, F. O estranho mundo que se mostra s crianas. So Paulo: Summus, 5 ed., p. 135-155, 1983 ARIS, P. Histria social da criana e da famlia. Rio de Janeiro: LTC, 2 ed., 2006 BENJAMIN, Walter. Reflexes: a criana, o brinquedo, a educao. So Paulo: Summus, 1984 BORBA, ngela M. O brincar como um modo de ser e estar no mundo. In: BRASIL, MEC/SEB Ensino fundamental de nove anos: orientaes para a incluso da criana de seis anos de idade/ organizao Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Rangel, Ariclia Ribeiro do Nascimento Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Bsica, 2006 ____A brincadeira como experincia de cultura na educao infantil. In: BRASIL/MEC Revista Criana do professor de educao infantil Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Bsica, 2007 BRASIL. Conselho Nacional de Educao. Resoluo 02/98. Institui Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental. Cmara de Educao Bsica, Braslia, 1998 ___Conselho Nacional de Educao. Resoluo 01/99. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil. Cmara de Educao Bsica, Braslia, 1999 ___Estatuto da Criana e do Adolescente. Lei 8.069/90, Braslia, 1990 ___Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil. Volume 1: Introduo. Braslia, 1998 BROUGRE, Gilles. Brinquedo e cultura. So Paulo: Cortez, 5 ed., 2001 FARIA, Sonimar C. de. Histria e poltica da educao infantil. In: FAZOLO, Eliane, CARVALHO, Maria C. M. P. de, LEITE, Maria Isabel & KRAMER, Snia. Educao Infantil em curso. Rio de Janeiro: Ravel, p. 9-37, 1997

44 FORTUNA, Tnia R. A brincadeira na incluso social . Revista Ptio Educao Infantil, Ano VI, n 16, MAR/JUN, p. 14-17, 2008 KETZER, Solange. A criana, a produo cultural e a escola. In: JACOBY, Sissa (org.). A criana e a produo cultural: do brinquedo literatura. Porto Alegre, Mercado Aberto, 2003 KISHIMOTO, T. M. Jogos Infantis: o jogo, a criana e a educao. Petrpolis, Rio de Janeiro: Vozes, 12 ed., 1993 KRAMER, Snia. A infncia e sua singularidade. In: Ensino fundamental de nove anos: orientaes para a incluso da criana de seis anos de idade/ organizao Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Rangel, Ariclia Ribeiro do Nascimento Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Bsica, 2007 MACHADO, M. M. O brinquedo-sucata e a criana. Edies Loyola, 2003 PATERNOST, V. O jogo da linguagem . In: VENNCIO, S. e FREIRE, J. B. (orgs.). O jogo dentro e fora da escola. Campinas, So Paulo: Autores Associados, apoio: Faculdade de Educao Fsica da UNICAMP, p. 27-36, 2005 PEREIRA, R. M. B. e SANTOS, N. O. A melhor novela da minha vida. As crianas e a telenovela Rebelde. In: OSWALD, M. L. & RIBES, R. (orgs.). Infncia e Juventude Narrativas contemporneas. Faperj, 2008 PERROTTI, Edmir. A criana e a produo cultural. In: A produo cultural para as crianas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990 PORTO, C. L. Brinquedo e brincadeira na brinquedoteca. In: KRAMER, S. e LEITE, M. I. F. P. (orgs.). Infncia e produo cultural Campinas, So Paulo: Papirus, 4 ed., p. 171-198, 2005 POSTMAN, Neil. Quando no havia crianas. In: POSTMAN, N. O desaparecimento da Infncia. Rio de Janeiro: Grapha, p. 17-33, 1999

45 SALGADO, Raquel G. Entre a fico e a realidade: as facetas do poder infantil na cultura contempornea. In: OSWALD, M. L. & RIBES, R. (orgs.). Infncia e Juventude Narrativas contemporneas. Faperj, 2008 VIDAL, Diana G. & FILHO, Luciano M. de F. Os tempos e os espaos escolares no processo de institucionalizao da escola primria no Brasil. Revista Brasileira de Educao, MAI/AGO, n 14, 2000 VYGOTSKY, L. S. A formao social da mente. So Paulo: Martins Fontes, 2007 WAJSKOP, Gisela. Brincar na pr-escola. 3 ed., So Paulo: Cortez, 1999

46 ANEXO

Questionrio para os professores Turma:......................................... 1. As crianas tm sido apoiadas e incentivadas a brincar? 2. Na sua opinio, que fatores levam perda do tempo e do espao da brincadeira na escola? 3. Por que as prticas voltadas para o ensino cada vez mais limitam a brincadeira? 4. No seu planejamento, voc inclui a brincadeira como atividade?

Questionrio para as crianas Turma:.................................... 1. De que elas brincam em casa, com quem e aonde? 2. De que ela gosta de brincar na escola e como ela v a brincadeira.